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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Novembro de 2007
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
Publicada em Novembro de 2007
Editorial
Patrimônios Comunitários Brasileiros
Roberto Bartholo
Elizabeth Tunes
As diversas manifestações da cultura popular são formas autônomas de iniciativas sociais. As
manifestações da cultura popular guardam importantes patrimônios históricos e artísticos.
Contemporaneamente, muito se tem falado do patrimônio imaterial que as culturas populares
representam. Inúmeras iniciativas visam à sua proteção sob o argumento da manutenção de
"patrimônios imateriais". Esse conjunto de artigos da Revista GIS, além de apontar para os
patrimônios históricos, artísticos e imaterias que as culturas populares representam, atenta para seu
papel na salvaguarda dos patrimônios relacionais. As manifestações da cultura popular - rodas de
capoeira, de samba, de viola, os teatros de rua, as festas e tantos outros folguedos - são ambiente de
encontro de pessoas, de criação de vínculos, de alcance da plenitude que os papéis sociais dados a
nós em nossa moderna civilização não são capazes de nos propiciar. Nos ambientes dialógicos e
comunitários, fundados na cultura popular, exercemos virtudes éticas e tornamo-nos pessoas melhores.
Os artigos mostram que a beleza artística dessas manifestações, embora impressionantes, nunca
poderiam desvincular-se do ambiente relacional que lhes dá sentido. E observamos que, a cada dia,
amplia-se a tendência de conversão dessas ricas manifestações em meros espetáculos a serem
consumidos como mercadorias fúteis. Esse número da Revista GIS procura, por meio dos artigos,
alertar para o risco inerente a esse processo.
A proposição fundamental da antropologia filosófica de Martin Buber (Bartholo, 2001) pode vir a
nosso auxílio ao confrontarmos essa questão. Ela nos afirma que antes de ser um ente político ou
econômico o ser humano é um ser relacional. As formas políticas e econômicas correspondem a
padrões historicamente construídos de institucionalização. Percebida desde essa perspectiva, como
bem aponta Hassan Zaoual (2003): "... a pobreza é irredutível a uma simples insuficiência de renda.
Todo o contexto da pessoa deve ser tomado em consideração, em particular sua capacidade de ser
livre de mudar, de agir sobre a situação, de participar da vida social etc. Os espaços da desigualdade
são, então, múltiplos e interativos; utilidades, bens de primeira necessidade, renda, liberdade, entre
outros. Todos esses espaços nem sempre estão adequadamente relacionados uns com os outros. Ao se
dar privilégio a um deles, pode-se produzir efeitos contrários sobre os outros".
Nos contextos situacionais concretos somos chamados a responder a apelos diversos. E a dimensão
ética da resposta é a responsabilidade. Responsabilidade situada, isto é, concreta, pessoal e rigorosamente
intransferível. Não apenas a retórica de uma responsabilização formal. E nesse ponto podemos retomar
o compromisso de Dom Hélder (Câmara, 1987: 129): "... lutar por meios pacíficos, mas corajosos,
contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não basta socorrer as
vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa inaceitável infelicidade".
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais
ISSN: 1808-6535
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Informações básicas
A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de
periodicidade quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de
Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ).
Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências
ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências nesse
campo.
Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas críticas.
Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line, explorando as
possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o recurso do
hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação complementar
disponíveis na web.
O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas e
referências.
Copyright
Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo,
necessariamente, a opinião da redação.
Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a sua
fonte.
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ISSN: 1808-6535
CORPO EDITORIAL
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Expediente
Editor responsável
Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ
e Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social
Comitê editorial
Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ
Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento
Social da COPPE/UFRJ
Conselho Editorial
Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG
Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF
Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP
Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ
Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina
Organização e redação
Elizabeth Tunes (Coordenação Geral)
Gabriela Tunes da Silva
Tereza Hamendani Mudado
Maria Carmen Villela Rosa Tacca
Secretaria
Maria Joselina de Barros
Concepção do projeto gráfico
Ivan Bursztyn
Webdesign
Marise Carpenter Elias
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Sumário
Resenha Crítica
Roberto M. Moura, “No princípio, era a roda: um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes”
MOURA, Roberto M. - Por Tereza Harmendani Mudado ....................................................................06
Artigos
Sobre possibilidades de exercício da ética inter-humana no jogo da capoeira
Gabriela Tunes da Silva..........................................................................................................................09
Achegas para a história da viola no Brasil
Wagner Campos.......................................................................................................................................21
Introdução ao Registro Documental dos Pregões Cantados da Tradição Oral no Nordeste do Brasil
Lucyane de Moraes ..............................................................................................................................46
Reportagem
Pelo Circo e Artesanato Tradicionais
Bruno Rezende....................................................................................................................................57
Sugestões
Para Assistir ........................................................................................................................................59
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Resenha Crítica
Roberto M. Moura “No princípio, era a roda: um estudo sobre o
samba, partido-alto e outros pagodes”. Rocco, São Paulo, 2004
MOURA, Roberto M.
Tereza Harmendani Mudado*
Roberto M. Moura foi escritor, jornalista,
produtor e diretor de espetáculos, professor e
crítico musical. Morreu aos 58 anos em outubro
de 2005, no Rio de Janeiro, de falência múltipla
dos órgãos.
Roberto M. Moura trabalhou no semanário O
Pasquim, nas revistas Veja Isto é, e Rio, Samba e
Carnaval e também fazia parte do júri do
Estandarte de Ouro concedido pelo jornal O Globo
aos destaques dos desfiles das Escolas de Samba
no Rio; à época de sua morte era comentarista da
TVE e colunista do jornal Tribuna da Imprensa.
Grande estudioso de samba e comunicação,
assuntos sobre os quais fazia conferências no
Brasil e no exterior, deixou vários livros
publicados, entre eles o autobiográfico Praça Onze
- no meio do caminho tinha as meninas do mangue
(Relume-Dumará,1999); Carnaval - da redentora à
praça do Apocalipse (Jorge Zahar,1986); Sobre cultura
e mídia (Irmãos Vitale, 2002); MPB - caminhos da
arte brasileira mais reconhecida no mundo (Irmãos
Vitale, 1998), e No princípio, era a roda, publicado
pela Rocco, 2004
No Princípio era a Roda: um estudo sobre o samba,
partido-alto e outros pagodes é uma obra genial que
atende a músicos profissionais e amadores,
amantes do samba e do choro, antropólogos
sociais e pessoas interessadas em conhecer um
pouco mais da história do Rio de Janeiro no início
do século XX. Nesse livro, Roberto Moura resgata
magistralmente um momento inaugural do
cenário musical brasileiro, as 'rodas de samba'
refazendo a história do samba de 'fundo de
quintal', o surgimento das Escolas de Samba e o
resgate renovado da tradição da roda nos dias
atuais. Mesmo sendo baseado em sua tese de
doutorado em Música na UniRio, o estilo
informal que ele adota denuncia a intimidade do
autor com o samba e o testemunho dessas
transformações, partilhando com o leitor suas
lembranças pessoais e resgatando depoimentos
das pessoas que viveram naquele momento e
preservaram em sua memória informações que
são ou foram transmitidas por uma tradição oral.
Analisando as funções sociais da roda, o autor
compara-a com os meios de comunicação, porém,
ao contrário do caráter obrigatoriamente
industrial desses meios, a roda é sempre artesanal.
Mais que a questão estilística, para ele, o samba
expressa um "fato social total" (p. 51) expressão
cultural de uma comunidade e a roda é o "...
elemento fundamental na geração, preservação e
divulgação do gênero musical que mais identifica o nosso
país entre todos os que são originários do Brasil" (p.
29). A roda precede o samba e é a sua matriz
física (p. 31). Caracterizada por ter
simultaneamente dimensões religiosas,
econômicas, políticas, morais, estéticas e
ideológicas, a roda é apresentada como o evento
inaugural desse fato social, mas não só, a "roda"
é um espaço de encontro único e irrepetível que
só se deixa conhecer pelos que a presenciaram e
que exerce uma função social que extrapola os
limites do tempo. A primeira menção à "dança
excumungada" data de 1880, segundo Jota Efegê
mas o lundu já era mencionado no romance "As
mulheres de mantilha" de Joaquim Manuel de
Macedo, que se passa por volta de 1770 (p. 50).
Como em qualquer ritual, a roda preserva e
atualiza o que está na sua origem sendo o batuque
ou a batucada a chave desse entendimento.
Tereza Harmendani Mudado é psicóloga, mestre em Engenharia de Produção pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em Educação, na Universidade
de Brasília. Atualmente, integra a equipe de pesquisadores do Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ.
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A "roda" é antes de tudo um evento festivo de
caráter plural, familiar, um espaço mítico
resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia;
a roda de samba instaura no sambista a ilusão da
eternidade. (p. 23) É um espaço onde o que é
intimo se mistura e se confunde com o que é
coletivo. Música, comida, bebida e alegria, um
conjunto de relações em que se instaura um
processo de interação (comunicação) não-verbal
entre as pessoas ligadas por afinidades existenciais
muito claras. A roda é o meio e o lugar dessa
troca social, de expressão de opiniões, fantasias
e frustrações, de continuidade de uma fala (negra)
que resiste à expropriação cultural. O samba,
assim como a roda de capoeira são apresentados
como guetos de resistência e afirmação cultural,
sempre artesanal e selvagem com relação à
ideologia produtiva dominante (p. 54 e 55) onde
o embate se dá através da dança e da música. Ao
longo dos anos, essa música original vai mudar;
os instrumentos também. O que vai permanecer
é a roda.
O autor se pergunta como pôde essa "nova forma
de convivência" evoluir para a Escola de Samba?
Para responder a essa pergunta o autor adota dois
eixos de análise: o diacrônico, que vê a roda
através dos tempos, e o sincrônico, que
contextualiza cada momento do samba com as
variáveis políticas e sociais. A atividade dos
bambas do Estácio, em direção à gravação do
primeiro disco e de Paulo da Portela em direção
da mídia e da institucionalização do desfile com
sua conseqüente aceitação do samba pelas
autoridades, impõe essa visão dupla. A roda de
samba é encontrada sempre em três interseções
diferentes: no limite entre o sambista e o
simpatizante, na fronteira que separa cada vez
mais abertamente o samba da escola e,
finalmente, no fio de navalha que separa o autor
do mercado.
Como farol de leitura dessa realidade, o autor
adota as categorias sociológicas "casa" e "rua"
elaboradas pelo antropólogo Roberto DaMatta,
palavras que expressam mais que simples espaços
geográficos ou coisas físicas comensuráveis,
designam antes "...domínios culturais institucionais e
províncias éticas brasileiras, capazes de despertar emoções
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e reações, música e imagens esteticamente emolduradas e
inspiradas." (p.29)
Assim, na casa/roda, "as leituras ressaltam a
pessoa" e ser um artista de sucesso não garante
qualquer respeitabilidade, o que importa é o que
ele for capaz de fazer ali. A hierarquia da roda é
baseada na experiência e história pessoal de cada
sambista, cujo código de ética é "fundado na
família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no
compadrio." (DaMatta) O que faz com que ser
do mundo do samba seja quase uma escolha
filosófica (p. 67). Já na escola/rua, há uma ênfase
no "indivíduo" adotando discursos mais rígidos
e instauradores de novos processos sociais e
econômicos. A roda de samba é descrita antes
como uma expressão comunitária enquanto em
seu aspecto mais comercial caminha numa direção
na Escola (mais pragmática e mercantil). Percebese, porém, na roda de samba, uma manifestação
que se esquiva historicamente de qualquer
tentativa de institucionalização. (p. 86)
O livro está organizado em cinco capítulos. O
primeiro capítulo faz uma deliciosa reconstituição
do período ao qual pertence Tia Ciata, em fins
do século XIX, início do século XX. Baiana de
nascença, africana de corpo e carioca de coração,
Tia Ciata transformava sua casa, que ficava perto
da Praça Onze, "em uma grande festa em que
ocorriam simultaneamente baile na sala de visita,
samba de partido-alto nos fundos da casa e
batucada no terreiro". (p. 35) Foi nesse berço,
um ritual de encontro, momento de reforço de
laços de identidade, encontro entre iguais e locus
de trocas com outros grupos sociais que nasceu
o samba. A primeira escola, a Deixa falar, só
surgiria dez anos depois, em 1928.
No segundo capítulo o autor se detém em três
espaços fundadores do samba: da Praça Onze
(Periferia) ao Estácio (no morro). Daí à Festa da
Penha (no ramal da Leopoldina) que mistura festa
religiosa (católica) e samba. Aqui a história do
samba se mistura com a própria história da cidade.
No terceiro capítulo o autor descreve as
condições sociais e o jogo de influências que
interagiram dialeticamente para estabelecer as
bases do surgimento da primeira escola que ganha
forma no Estácio e a relação visceral existente
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entre os compositores como Cartola, Paulinho da
Viola, Carlos Cachaça, Nei Lopes, Monarco com
a sua escola e, ao mesmo tempo, o clima de
familiaridade e cortesia existente entre eles. Esse
clima vai se perdendo nesse fenômeno de
transição casa/rua, no qual o sambista vivencia
as estranhezas da "rua", representada por
burocracia e normas de comportamento rumo à
profissionalização exigidos pela Escola. Assim,
os sambistas vão perdendo espaço dentro das
Escolas e começam a procurar novos espaços, como
se verifica na enorme produção e na popularização
de diversos subgêneros como o samba-canção, cuja
raiz invariável continua sendo o samba.
O quarto capítulo apresenta a importância e
contribuição dos blocos semi-profissionais
Zicartola e dos espetáculos como o Rosa de Ouro
e as noitadas de samba do Teatro Opinião, onde
os sambistas que buscavam seus espaços
preservaram a cultura da roda.
No quinto capítulo revela como o inchaço das
escolas e a crescente profissionalização leva a um
novo movimento dos sambistas em direção à roda.
É o tipo de música que vai se desenvolver pelos
pagodeiros do Cacique de Ramos. Essa mudança
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transformadora não transmite apenas o passado
imobilizado, mas o reconstrói, entregando-o
renovado e revitalizado aos sambistas que surgem
a partir dos anos 70. Novos instrumentos, novas
gerações.
O sexto e último capítulo apresenta como, quase
sem rádio ou presença na mídia ou TV, as rodas
foram se multiplicando em espaços como o
Candogueiro em Pendotiba e espalha-se por
diversos bairros do Rio de Janeiro, sem
preferências sociais ou raciais, da Zona Sul à
Zona Norte. O livro traz uma seleção detalhada
de sambas que falam de samba, assim como sobre
sucessos da época, além de uma rica discografia.
No princípio era a roda: um estudo sobre o samba,
partido-alto e outros pagodes vem preencher uma
lacuna deixada por grande parte dos estudiosos
do samba desse evento mítico e fundador de um
estilo e cuja raiz comum liga-o à capoeira, ao
choro, ao jongo e a outros estilos musicais
populares: o batuque e a roda. Sendo também
fundamental no entendimento da história do
samba e suas origens, o que torna evidente seu
incontestável valor comunitário, social e
histórico.
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Artigo
Sobre possibilidades de exercício da ética inter-humana no jogo da
capoeira
Gabriela Tunes da Silva*
Resumo
Esse artigo tem por objetivo apontar para as possibilidades de exercício da ética inter-humana no
jogo da capoeira. A ética, de acordo com a concepção de Martin Buber, realiza-se nos encontros
face-a-face que ocorrem no cotidiano da vida ordinária. Para esse autor, a vulnerabilidade à alteridade
é condição de possibilidade de uma existência pautada pela ética. A capoeira, por suas características
- a roda, o jogo jogado entre dois, a ausência de regras formais - é espaço propício para o diálogo dos
encontros face-a-face. Para isso, contudo, é preciso deliberada opção por instaurar a realidade
dialógica.
Palavras-chave: capoeira, identidade cultural, jogo, ética, diálogo
Abstract
This paper's objective is to point out possibilities of practicing inter-human ethics in capoeira. Ethics,
according to Martin Buber's view, establishes itself in face-to-face meetings that take place along
everyday ordinary life. To this author, vulnerability to alterity is a condition of existence guided by
ethics. Capoeira, for its characteristics - the circle, the game played by two people, the lack of formal
rules - is a propitious space for the dialogue of face-to-face encounterings. For that to happen,
however, a deliberate option for establishing the dialogical reality is necessary.
Key words: capoeira, cultural identity, play, ethics, dialogue
Definir a capoeira é tarefa que muitos tentaram
e tantos outros seguem tentando. A busca pela
essência una da luta-dança-arte, tão
representativa da identidade cultural brasileira,
é compartilhada por inúmeros capoeiristas e
capoeirólogos, que pretendem traduzir em
palavras e conceitos as descobertas, sentimentos
e experiências vividos na prática cotidiana da
capoeira. Graças a esse enorme esforço,
possuímos hoje vasta literatura sobre aspectos
diversos da capoeira, que nos trazem
conhecimentos e reflexões importantes. Se
alguém chegou a encontrar a definição, a essência
una, é motivo de controvérsias. A capoeira é tão
repleta de mandingas e maneirismos que se nega
a enquadrar-se na definição mesmo daqueles que
mais viveram e entenderam a capoeira; é
também libertária a ponto de permitir
entendimentos distintos dos mesmos
acontecimentos.
O estudo acadêmico da capoeira é, então, a difícil
missão de postar-se diante de um fato concreto
*Gabriela Tunes é graduada em Biologia, mestre em Ecologia e doutora em
Desenvolvimento Sustentável, títulos obtidos na UnB.
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que se apresenta como essencialmente
indefinido. A capoeira parece não caber nos
esquemas conceituais da ciência e da própria
razão, mas incomodamente existe como
realidade. Vieira e Assunção (1998) discorrem
sobre mitos criados em torno da história e da
essência da capoeira que apontam para
unicidades distintas: ora caracterizam a capoeira
como negra, ora como popular, ora como
quilombola, etc. Os inoportunos fatos, contudo,
insistem em derrubá-los um a um. Os mitos não
servem somente às explicações teóricas e
acadêmicas: são importantes ferramentas para
legitimação de uma capoeira e desqualificação
de outras, criando embates intermináveis. Com
bases nesses mitos, segundo os autores, foram
construídos discursos que justificam posições
contrárias no universo da capoeira. Eles
identificam cinco principais discursos:
o da repressão - aponta a capoeira como
negra e afro-brasileira, praticada por vadios e
marginais, e prega a necessária erradicação dessa
prática danosa à sociedade brasileira;
o nacionalista - em resposta ao discurso
da repressão, o discurso nacionalista apontava
para a capoeira como "luta nacional", e como
representativa da identidade nacional. Esse
discurso surgiu de suporte para a legalização da
capoeira na década de 1930;
o étnico - aponta para a origem e natureza
negra
da
capoeira;
é
utilizado,
contemporaneamente, pelo movimento negro, e
muitas vezes omite as contribuições não-negras
para a história da capoeira;
o discurso corporativo-iniciatório - define
como o mais importante para a capoeira a
linhagem, a origem; critica a importação de
conhecimentos científicos, principalmente da
área de Educação Física, para a prática da
capoeira. Pode assumir facetas regionalistas,
afirmando, por exemplo, que "só baiano entende
de capoeira".
o discurso classista - aponta para a
capoeira como sendo "do povo", negando a
participação histórica de pessoas de outras
camadas sociais e o imbricamento do universo
capoeirístico com os círculos de poder político.
Publicada em Novembro de 2007
Conforme afirmam os autores, nenhum desses
discursos dá conta da capoeira integralmente.
Eles tampouco existem isoladamente; misturamse e formam outros que legitimam uns e
desqualificam outros. Mas a existência desses
discursos revela um aspecto interessante da
capoeira: a diversidade.
Pelas suas características, pelo modo como se
desenvolveu, não existe uma única história da
capoeira. Existem várias histórias de várias
capoeiras. Os discursos mencionados servem
também às recorrentes tentativas de escrever A
história da capoeira. A diversidade que ela
assumiu, contudo, impede o êxito dessa tarefa.
Conforme apontam Vieira e Assunção (1998), a
história da capoeira é repleta de rupturas e
contradições. Sua complexidade é grande a
ponto de não ser possível definir "a partir de
quando aquilo que hoje é considerado essencial
à capoeira (uso do berimbau, existência da roda)
realmente passou a fazer parte do que aparece
como capoeira ou capoeiragem nas
fontes".(Vieira e Assunção, 1998, p. 109).
Apesar disso, existem aspectos que se repetem
nas
suas
diversas
manifestações
contemporâneas. Um deles é o jogo, jogado
sempre entre dois; outro é a roda, com
instrumentos musicais, palmas e canto; também
a transmissão oral de conhecimento é
predominante. A mandinga, a ambigüidade ou
pseudo-morfismo da capoeira é também aspecto
freqüente e valorizado. Esses aspectos,
juntamente com o modo como a capoeira se
organiza, a diversidade que pode assumir,
tornam-na uma instituição propícia para o
exercício e o aprendizado da ética inter-humana.
Este artigo busca contribuir para essa discussão.
Sobre a ética inter-humana na
concepção de Martin Buber
Bartholo (2001) afirma que Buber é um pensador
inclassificável, impossível de ser enquadrado nos
limites das caixinhas conceituais definidoras do
pensamento moderno. E o próprio Buber não
identificava seu pensamento como pertencente
a alguma área específica do conhecimento:
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"eu me chamaria de um homem atípico" (Buber,
2001, p. 689). O caráter libertário de seus escritos
está imbricado em seus testemunhos de vida e
pode ser sintetizado na afirmação:
"[...] não tenho nenhuma doutrina. Apenas aponto
para algo. Aponto para a realidade, aponto para
alguma coisa na realidade que não tinha sido vista,
ou o tinha sido muito pouco. Tomo quem me ouve
pela mão e o encaminho à janela. Abro a janela e
aponto para o que está lá fora. Não tenho nenhuma
doutrina, mas mantenho uma conversação." (Buber,
2001, p. 689)
Esse algo para o qual Buber aponta é o princípio
dialógico, "uma realidade da qual nossa
modernidade se fez cega" (Bartholo, 2001, p. 9).
Segundo esse princípio, a nossa condição humana
não está assentada nos elementos que nos
caracterizam como sujeitos, pois "não é o sujeito
a chance primordial do Ser, mas sim nossa
vulnerabilidade à alteridade" (Bartholo, 2001, p.
9). E Buber enfatiza que a condição humana
depende das relações inter-pessoais, pois "sem o
Tu, o Eu é impossível" (Bartholo, 2001, p. 9).
Buber (1977), na sua obra maior, Eu e Tu, formula
uma antropologia-filosófica ancorada no princípio
dialógico. O homem é entendido como um ser
relacional. A condição humana é caracterizada pela
possibilidade de transitar entre dois modos
relacionais fundamentais, expressos pelas
palavras-fundantes Eu - Tu e Eu - Isso. Uma vez
proferidas, as palavras-fundantes são, para Buber,
instauradoras de realidades. À palavra-fundante
Eu - Tu corresponde uma realidade de presenças.
À palavra-fundante Eu - Isso corresponde uma
realidade de coisas e objetos. O homem tem a
liberdade de proferir, a cada momento de sua
vida, uma dessas palavras-fundantes (Eu - Tu ou
Eu - Isso). E ao fazê-lo, instaurar uma ou outra
realidade. A vida humana acontece na tensão
dessa polaridade. E o Eu que diz Tu não é o
mesmo Eu que diz Isso, mesmo que as duas
palavras tenham saído da mesma boca, em
momentos diferentes.
O mundo do Isso incorpora em si vários submundos:
da razão utilitarista, da objetivação, da
causalidade, da intencionalidade, da mediação,
pois um Isso pode sempre ser analisado, medido,
Publicada em Novembro de 2007
enquadrado, explicado, inserido em uma cadeia
de causas e efeitos. Em contrapartida o mundo do
Tu é singular, tecido de imediaticidade e
inteireza, no encontro face a face com a
irredutível alteridade de um outro que é presença e
interlocução. Um Tu não pode nunca ser
inteiramente explicado e analisado no discurso
do Eu/Sujeito, pois não cabe em modelos e
esquemas conceituais, uma vez que sempre os
ultrapassa, trazendo em si algo de incognoscível:
sua irredutível alteridade.
Buber (1977) alerta que seria um erro identificar
o mundo do Isso como algo de inerentemente
negativo. A condição humana seria inviabilizada
sem a capacidade de instrumentalizar a realidade
que se efetiva no mundo do Isso. O mal está em
pretender subordinar toda a vida humana a essa
instrumentalidade. E fazer com que a causalidade
eficiente e a programação dos cursos de ação
silenciem a imprevisibilidade e os riscos da
abertura dialogal.
Buber (1977) assim responde à pergunta "o que
é o homem?": é o ser que está face-a-face, o ser
que está apto à relação com a alteridade, o serem-relação, aberto ao diálogo, entendido como
o modo relacional entre dois, que pressupõe
alteridade, vulnerabilidade e responsabilidade.
Para Buber, o mundo do Isso é acessível ao homem
por meio de experiências: as coisas se colocam
diante do homem e ele as experiencia, e nesse
experienciar conhece-as. Mas o mundo do Tu tem
natureza diversa. O Tu não é nem coisa, nem
objeto de conhecimento. Não se tem experiência
de um Tu: entra-se em relação.
Para Buber, a dualidade das palavras-fundantes
(Eu - Tu e Eu - Isso) não deve ser confundida com
uma suposta oposição entre razão e sentimento.
O sentimento é também uma experiência de
coisas que se realiza naquele que sente. Não entre
ele e o mundo. No meu sentimento para com um
outro, ele é para mim um Isso.
A relação vinculante Eu - Tu, a que Buber
denomina encontro, não pode ser produzida por
nenhum experimento pré-programado. O
encontro é um acontecimento, não um experimento.
A relação Eu-Tu é uma relação de interferência
e vulnerabilidade para com a alteridade do outro.
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Interferência e vulnerabilidade que são essenciais
ao diálogo. Interferência e vulnerabilidade que
cobram do Eu uma abertura dialogal que
reconhece o primado da escuta. O que posso saber
do Tu no diálogo autêntico não cabe nunca nos
limites do que já sei. Para sabê-lo preciso ouvir a
palavra a mim dirigida que me diz do que não
sei. E aprender.
Para Buber, a realidade dialógica funda o exercício
da responsabilidade, entendida como "resposta
eticamente fundada à presença-palavra que me é
dirigida por outrem". Ao acolher a interlocução
que me é dirigida dizendo-lhe: Tu, permito-me
ser responsável. Essa responsabilidade é, então,
algo que somente acontece no mundo real
concreto, no mundo da vida vivida, pois: "não
conheço mais outra plenitude a não ser a plenitude
da exigência e da responsabilidade de cada hora
mortal" (Buber, 1982, p. 47).
Responsabilidade e ética são, assim, referidas à
vida vivida. As virtudes éticas exercem-se na
concretude dos desafios situacionais. Normatizar
a ética mediante um conjunto de disposições
prescritivas universais, desvinculadas do
comprometimento situacional é, para Buber,
sinônimo de falsidade e hipocrisia.
A ética sempre se refere à experiência de um limite.
Cada situação, cada momento pessoal da vida vivida
tem uma singularidade intrínseca, com relação à qual
a pessoa é chamada a responder em responsabilidade.
A dimensão mais propriamente ética dessa resposta
não está referida ao "previsível, programável e
controlável". Ela não é "um desejo de
instrumentalizar a vida, capturando-a em cadeias
de causalidade, mas um desejo de fruir a aventura
de possibilidades surpreendentes" (Bartholo, 2002,
p. 136). O agir responsável é um agir em meio a
riscos e incertezas, pois:
"Respondemos ao momento, mas respondemos ao
mesmo tempo por ele, responsabilizamo-nos por ele.
Uma realidade concreta do mundo, novamente
criada, foi-nos colocada nos braços: nós respondemos
por ela. Um cão olhou para ti, tu respondes pelo
seu olhar; uma criança agarrou tua mão, tu
respondes pelo seu toque; uma multidão de homens
move-se em torno de ti, tu respondes pela sua
miséria." (Buber, 1982, p. 50)
Publicada em Novembro de 2007
Agir em responsabilidade não é algo que possa
ser imposto a alguém. Toda responsabilidade
autêntica é livre, pois "responder não é um dever,
mas é um poder" (Buber, 1982, p. 71). É um
poder inerente à vida de qualquer ser humano,
independentemente de seus atributos e
competências. Buber enfatiza que "o dialógico
não é, como o dialético, um privilégio da atividade
intelectual. Não há aqui dotados e não-dotados,
somente há aqueles que se dão e aqueles que se
retraem" (Buber, 1982, p. 71).
Assim, na perspectiva buberiana, o debate sobre
a ética deve ultrapassar a estrita referência ao
primado do sujeito e sua autonomia, para ser
referido ao primado de duas outras categorias:
alteridade e vulnerabilidade (Bartholo, 2002, p. 137).
Minha vulnerabilidade à presença do Tu
determina a minha abertura ao diálogo. O agir
ético e responsável não pode prescindir dessa
vulnerabilidade à alteridade do outro. A abertura
ao diálogo, a possibilidade de responder e de agir
em responsabilidade é algo dado ao homem
enquanto tal. Ele opta por ela em liberdade, e tal
opção independe de qualquer característica que
o constitui; a possibilidade de optar pelo diálogo
é inerente à condição humana:
O lugar onde nasce a ética, para Buber, é esse entre
dois. É desta recíproca (mas não necessariamente
simétrica) experiência de limites que o exercício, a
ascese das virtudes éticas se nutre. É no horizonte
do entre dois que o agir ético atua. A ética,
buberianamente concebida, pertence ao entre das
relações Eu-Tu, no qual toda escolha é sempre um
risco e uma prova. Querer escolher com segurança,
querer fazer do sucesso, da eficiência, da
produtividade, critério do Bom, do Belo e do
Verdadeiro é eliminar esse horizonte: é
despersonalizar. É fazer do cálculo utilitarista, juiz.
(Bartholo, 2002, p. 138-139).
Viver unicamente a realidade dialógica implicaria
ser consumido por ela. O desenrolar cotidiano
de nossas vidas requer a instrumentalização e a
racionalização, até mesmo como um simples
imperativo de sobrevivência. Mas o risco maior
de nosso tempo, em que os poderes
tecnocientíficos de intervenção na realidade tanto
se multiplicam, é principalmente de outra
natureza: a expansão dos campos de vigência das
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relações do tipo Eu - Isso ser tão vigorosa que
torne os espaços das relações do tipo Eu -Tu cada
vez mais escassos e quase os anule. Nesse ponto,
faz-se atual a advertência de Buber: e, com toda
a seriedade da verdade, ouça - o homem não pode
viver sem o Isso, mas aquele que vive somente
com o Isso não é homem" (Buber, 1977, p. 39).
Na
contemporânea
realidade
de
instrumentalização radical da vida e de redução
das possibilidades de acontecimento da relação
Eu-Tu, pela expansão de contextos institucionais
que prentendem esconder a face humana por
detrás de cargos, funções, status social, renda,
entre outros atributos, aquelas instituições que
permitem o desnudamento da face, o encontro
com a alteridade, podem ser consideradas de
resistência. A capoeira, por suas características,
pode, contemporaneamente, representar esse
modo específico de resistência. Pode funcionar
como uma ferramenta convivencial (Illich, 1981),
permitindo não somente a manutenção dos
patrimônios culturais e históricos que guarda, mas
também a criação e manutenção de patrimônios
relacionais, importantes para o exercício e o
aprendizado ético.
Sobre possibilidades de diálogo no
jogo da capoeira
Uma característica da capoeira, que a torna uma
instituição propícia ao acontecimento do diálogo
inter-humano buberianamente concebido, é o
fato de ser um jogo de dois. Evidentemente que
o caráter dialógico de um jogo de capoeira não é
algo que possa ser imposto externamente; é
preciso que os jogadores, no momento do jogo,
optem por estabelecer o diálogo. A capoeira,
segundo Tavares (1984), é um tipo de discurso
não-verbal "arquivado" no corpo. Entendida
como discurso, nossa arte-luta-jogo é também
linguagem. Como linguagem, pode ser dialógica,
e converter-se num diálogo corpóreo, em que o
corpo é, a um só tempo, boca e ouvidos, e o
movimento é feito palavra. No diálogo da
capoeira, muito se diz sobre si, mas muito mais
se ouve do outro. O diálogo buberiano, que pode
ocorrer no jogo da capoeira, não consiste na mera
troca de palavras que se reportam a uma realidade
Publicada em Novembro de 2007
qualquer; ele estabelece uma relação com outra
pessoa, sendo linguagem de interlocução. O
capoeira, no momento do jogo, coloca-se face-aface diante de seu companheiro. Nesse sentido,
a capoeira não é somente uma luta, uma dança,
uma coreografia, uma manifestação cultural.
Embora seja tudo isso, pode ser ainda muito mais
do que isso e servir como lugar de suporte de
relação entre pessoas.
A imprevisibilidade do jogo da capoeira enfatiza
também sua dialogicidade. Um dos primeiros
ensinamentos transmitidos ao capoeira refere-se
ao respeito ao jogo do outro, fundado pela
imprevisibilidade inerente a este. Não subestimar
o jogo de alguém, independentemente de seu
nível técnico, significa instaurar o primado da
escuta, fundamental para o diálogo inter-humano.
Significa, também, que não é possível prever o
que vai acontecer em um jogo; o capoeira nunca
pode pretender conhecer por completo o jogo de
alguém. A roda de capoeira é o reino do
imprevisível. O jogo somente revela-se na
imediatez do momento em que acontece.
É interessante realçar que Buber (1988) discorre
sobre o papel da linguagem no diálogo e aponta
para os caminhos alternativos do discurso: de um
lado, a reprodução monológica do mesmo, de
outro, a aventura dialógica da alteridade. O
monólogo busca apoiar-se na segurança, na
precisão, no controle. Ele quer se assegurar da
possibilidade da repetição infinitamente
enumerável de proposições já sabidas, no acesso
repetível a condições determinadas de observação
e experiência. Seu empenho maior, desde o ponto
de vista metodológico e sistemático, é por superar
qualquer imprevisibilidade intrínseca ao
conhecer. O discurso monologal sabe de antemão
que resposta dará à questão que formula, e quer
se assegurar de que essa formulação não sofrerá
mudanças imprevistas. Busca para tanto valer-se
das potências da objetivização. Mas Buber (1988)
enfatiza que uma característica fundamental da
linguagem é precisamente a possibilidade de
entendimentos diferenciados da mesma palavra
por pessoas diferentes, ou seja, a precariedade
da precisão da palavra em relação ao seu
significado. Ele afirma como valor mais alto da
linguagem não a precisão monologal que fixa a
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palavra e seu significado, mas sim sua intrínseca
ambigüidade. A ambigüidade da palavra permite
que o discurso supere-se num entendimento que é
mais do que assimilação, para poder ser também
fruição. A ambigüidade é a aura da palavra, e é
justamente ela que permite que o discurso esteja
repleto da existência pessoal daquele que o profere.
Publicada em Novembro de 2007
no desconhecido. A depender do momento, um mesmo
movimento, um mesmo golpe, pode ser leal ou covarde.
O capoeirista responde a cada momento, a cada
situação, buscando respostas corretas.
A mandinga, na capoeira, pode ser entendida
como a maliciosa capacidade de dissimular, de
esconder as verdadeiras intenções do jogador. A
ambigüidade, ou o pseudomorfismo da capoeira,
é uma de suas características mais marcantes. A
ginga, sua base móvel, é um tipo de
movimentação que permite ao capoeira utilizar
maneirismos e mandingas que confundem o outro
jogador. Desse modo, ele torna seu jogo
completamente imprevisível, nunca sujeito a ser
conhecido por antecipação, mesmo nas últimas
frações de segundo que antecedem sua
movimentação. O pseudomorfismo é o elemento
que garante a imprevisibilidade, que não permite
que um jogador conheça o jogo outro; para saber,
é preciso viver. A mandinga impede qualquer
antecipação; impede que o conhecimento racional
e objetivo capture o jogo, garantindo que a
imediatez do encontro face-a-face tenha primazia
sobre as tentativas de previsão. A mandinga torna
a linguagem corpórea da capoeira imprecisa e
imprevisível. Nesse sentido, a mandinga é guardiã
da alteridade.
A liberdade do jogo da capoeira funda-se não no
princípio da autonomia do sujeito, mas no da
heteronomia da relação entre dois. É a liberdade
difícil (Bartholo, 2003), isenta de arbitrariedade
e plena de responsabilidade. O homem livre,
segundo Bartholo (2003), é aquele que se volta
ao Outro. No jogo da capoeira, a presença do
Outro "não nega meus poderes, mas põe sim em
questão os direitos dos meus poderes" (Bartholo,
2003, p. 67). A capoeira, entendida como
linguagem, contém ação e resposta, que, na
seqüência do jogo, é nova ação que demanda
nova resposta. A responsabilidade é a dimensão
ética da resposta, pois tem o outro por horizonte
e limite. A resposta responsável pressupõe
empenho e compromisso com o bem e a justiça.
Segundo Lévinas (2000), a presença do outro
impõe automaticamente um limite à minha
liberdade de ação. A ética é a impugnação da
minha liberdade pela presença da Outro, pois a
"moral começa quando a liberdade, em vez de se
justificar por si própria, se sente arbitrária e
violenta" (Lévinas, 2000, p. 71). Para ele, a
liberdade não se justifica a si própria, pois
justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas sim
torná-la justa.
Outro aspecto da capoeira que pode contribuir
para o aprendizado ético é um fato simples e
intrigante: não há regras. Não existe um conjunto
de condutas "corretas" que possa ser
objetivamente transmitido ao praticante de
capoeira. Ao longo de seu aprendizado, ele amplia
seu repertório de movimentos, e pode livremente
utilizá-los sem uma definição precisa de quando
ou como lançar mão de um ou outro movimento.
Em outras palavras, objetivamente, tudo é
permitido. Todavia, a liberdade do jogador de
capoeira não é absoluta, ou infinita. Ela encontra
limites, não em um conjunto de normas e regras
impostos externamente ao jogo, mas sim no outro
que está perante ele. A simples presença do outro
coloca um limite na liberdade do capoeira. Tomar
a decisão correta no jogo da capoeira é um desafio
situacional, o que torna cada jogo uma aventura
É interessante notar que a ausência de regras na
capoeira é tão marcante a ponto de o jogo não
ter um objetivo claro. Em muitos relatos, nos
treinamentos também, é comum a afirmação que
o capoeirista não deve ficar em situação de
desvantagem, e deve procurar deixar o
"adversário" nessa situação. Muitas vezes, estar
em desvantagem resulta em receber um golpe.
Outras vezes, em uma queda, ou em somente a
marcação de um golpe ou de uma queda. Muitas
vezes, resulta em nada. O objetivo do jogo
depende também dos jogadores. É definido
tacitamente entre eles à medida que o jogo se
desenvolve. Por isso, em determinados
momentos, acertar o golpe no companheiro, ou
seja, deixar o pé tocar seu tronco ou rosto, não é
considerada uma atitude desleal. Em outros, uma
queda (ato fisicamente menos violento do que
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um golpe) pode significar uma grande covardia.
É comum, contudo, a afirmação de que derrubar
o outro é o objetivo do jogo:
A principal intenção no jogo da capoeira é sempre a
de desequilibrar o outro, o qual, por sua vez, deve
evitar cair. Cair é ficar em desvantagem, é perder
poder. Todas as estratégias de luta da capoeira têm
esse mesmo propósito, qual seja, derrubar o outro.
(Reis, 2000, p. 181).
Com efeito, a capoeira é um jogo. Mas, entendida
como linguagem, torna-se um jogo retórico, em
que um jogador tenta envolver o outro em sua
"argumentação". Nesse contexto, nem sempre o
embate direto, o golpe certeiro ou a queda são as
melhores abordagens. Evidentemente que
conseguir derrubar o outro é, fazendo analogia
com embates retóricos, deixar o outro sem
palavras, demonstrando que seus argumentos
falharam. Mas os embates retóricos não
necessariamente têm esse objetivo. Por vezes,
podem servir somente para alongar a conversa,
para exercitar as capacidades de discurso dos
jogadores. De fato, é possível assistir rodas de
capoeira com horas de duração em que não se
observa nenhuma queda. Ainda assim, não se
pode dizer que o objetivo da roda ou dos jogos
que nela tomaram curso não foi atingido. Então,
afirmar que o objetivo do jogo da capoeira é
sempre derrubar o outro pode levar a
entendimentos equivocados de nossa prática,
principalmente por observadores externos que
nunca vivenciaram a capoeira. Mesmo parecendo
ridiculamente óbvio, o objetivo do jogo da
capoeira é jogar capoeira, ou seja, manter uma
conversação. E conforme nos mostra Martin Buber,
é precisamente nas conversações que podemos
exercitar nossas virtudes éticas.
Quando dá lugar a esses elementos - a
imprevisibilidade, o respeito à alteridade e a
liberdade responsável - a roda de capoeira tornase local propício ao exercício e aprendizado da
ética. O círculo que delimita o espaço onde ocorre
o jogo, o interior da roda, para onde convergem
todos os sons - dos instrumentos, das vozes, das
palmas - e todas as atenções, delimita também
um espaço inter-humano, um espaço onde o mais
importante não é um nem outro, mas um-comoutro. Mas é preciso considerar que isso não é
Publicada em Novembro de 2007
algo válido em si; é possível que o jogo da capoeira
converta-se em seqüências de monólogos
alternados, baseados em demonstrações de
impressionantes habilidades acrobáticas, ou de
força física, ou de técnica de luta e imobilização,
deixando em segundo plano a interação dos dois
jogadores. De fato, isso ocorre com freqüência
nas rodas de capoeira. O que se quer aqui
defender é que a roda de capoeira é local propício
para o acontecimento do diálogo, mas isso irá
depender das pessoas que a formam, do ambiente
em que estão inseridas e, principalmente, de sua
vontade de instaurar, no jogo da capoeira, uma
realidade dialógica.
Capoeira e resistência
Letícia Vidor de Souza Reis (2000) afirma
que a capoeira, juntamente com outras
manifestações culturais de raiz negra, foi uma das
formas de afirmação dos negros no Brasil. Pela
via da criação cultural, os negros conquistavam
seus espaços e recriavam sua identidade,
dilacerada pela realidade da escravidão, que
apagou seu passado e sua história e destruiu suas
famílias e vínculos. Assim, as práticas culturais
de raiz negra no Brasil possuem uma forte
conotação de resistência. A resistência é um dos
aspectos mais explorados nos inúmeros discursos
que tratam da capoeira.
A ambigüidade da capoeira, que torna impossível
seu enquadramento como apenas luta ou apenas
dança, é por vezes interpretada como uma forma
de disfarçar sua verdadeira intenção guerreira,
fazendo-a parecer uma dança, como se houvesse
um projeto de libertação escravista por meio dela.
Vieira e Assunção (1988) afirmam que a
resistência nela insinuada alimenta o imaginário
dos capoeiristas, que criam e reforçam mitos,
como aquele que supervaloriza a resistência
radical e constrói heróis negros, íntegros e
corajosos. Todavia, o malandro, historicamente
protagonista das rodas de capoeira, "é por
definição mais um anti-herói e sua ambigüidade
não se presta a visões épicas de um herói puro,
sem nenhum compromisso com o "sistema"
(Vieira e Assunção, 1998, p. 109).
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Todavia, Reis (2000) afirma que a ambigüidade
da capoeira, ou a mandinga, revela um outro
modo de resistência, muito mais presente no
Brasil: a negociação. Segundo ela, o confronto
aberto não foi a tônica da afirmação dos negros,
que preferiam a negociação com os senhores. A
negociação, contudo, nunca significou
passividade absoluta. A mandinga, o
pseudomorfismo, reflete esse modo de se
relacionar com o mundo: ser, mas não ser; ser
inimigo, mas amigo íntimo; sorrir, mas bater;
servir, mas rebelar-se. Mantendo essa conduta, é
possível criar situações favoráveis, pensar antes
de agir, esconder, esquivar, aliar-se quando
preciso, golpear em seguida. A mandinga,
conforme aponta Reis (2000), é um modo de
reduzir o poder da força; reduzindo-se o poder
da força, reduz-se o poder dos senhores, seus
históricos detentores.
A capoeira reflete, portanto, as negociações da
própria vida desses homens. Há momentos de
recuo e de avanço. Há momentos de sorrisos e
brincadeiras, há momentos de dureza e violência.
O jogo da capoeira ocorre na tensão dessas
polaridades opostas, e o capoeira mandingueiro
é justamente aquele que não se deixa prever. O
pseudomorfismo do capoeirista obriga seu
companheiro de jogo a nunca ter a pretensão de
conhecer por antecipação o que ele vai fazer, pois,
no último milésimo de segundo, ele pode mudar.
O ethos da mandinga, que obriga sempre o
interlocutor a ouvir antes de falar ou agir, presente
na capoeira, pautava o modo de vida de muitas
pessoas marcadas pela realidade da escravidão.
Tais pessoas não eram somente negros escravos
ou ex-escravos; eram também seus descendentes,
trabalhadores "livres" e até os senhores. É
importante considerar que a sociedade brasileira
configurou-se como escravista. As cartas de
alforria, o fim do tráfico negreiro e da escravidão
não foram capazes de bani-la por completo da
sociedade brasileira. As relações de trabalho
mantiveram, e mantêm até hoje, em grande
medida, aspectos de relações escravistas; as
relações pessoais também são marcadas pela
violência da escravidão. A própria noção de
educação vincula-se à violência física, pois os
negros apanhavam sob o argumento de que assim
Publicada em Novembro de 2007
"aprenderiam", conforme afirma Gilberto Freyre
(2001) em Casa Grande & Senzala. Hoje em dia é
ainda comum o hábito de bater nas crianças para
educá-las, misturando o afeto e o cuidado com
práticas violentas. A frase de uma mãe carioca
contemporânea sobre sua prática de bater em seu
filho é emblemática dessa realidade:
Eu converso com ele, eu boto de castigo, na hora de
bater, eu dou uma chineladinha, lógico que não
machuca. Uma chineladinha de mãe. Aí ,todo
mundo me respeita e eu respeito eles (Tunes et al,
2006, p. 74).
A mandinga é também uma forma de lidar com a
escravidão: concordar mas resistir, aceitar e
rebelar-se. As camadas mais baixas da população,
os que sofreram mais com essa realidade,
firmavam pactos com a elite. No Rio de Janeiro
do século XIX era comum negros alforriados, que
conseguiam melhorar sua situação econômica,
comprarem escravos. Apesar disso, embora
tivessem uma relação ambígua com a escravidão,
em alguns momentos ou lugares buscavam fugir
dela. A capoeira servia a isso, assim como outras
práticas, sendo muito importantes as religiosas.
Finda a escravidão, o preconceito racial
permaneceu, e pode-se dizer que com mais força
permaneceu o preconceito contra as instituições
culturais e religiosas afro-brasileiras. Se os negros
não temiam mais o tronco, passaram a temer a
polícia, pois a sociedade brasileira tirava-lhes o
direito de auto-definição sócio-cultural. Por isso,
práticas como a capoeira representavam
importantes focos de resistência, pois se tratava
da resistência da construção cultural, e construir
a cultura é construir a vida cotidiana. Nesses locais
de resistência, os "marginais" estabeleciam seus
espaços de vida, refaziam laços, vínculos,
linhagens e famílias, tentando remendar os rasgos
da escravidão. Mesmo concordando com sua
situação em relação à elite que os oprimia, não
poderiam viver sem os lugares onde eram
realmente livres, onde podiam existir plenamente
como pessoas. Esse modo de entender a liberdade
foi assim expresso nas palavras de Romano
Guardini:
"Pessoa" significa que, naquilo que sou eu mesmo,
não posso em última análise ser possuído por
qualquer outra instância, mas me pertenço. Posso
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viver numa época em que a escravatura é vigente,
onde, portanto, um homem pode comprar outro
homem e dele dispor. Mas este poder sobre o homem
comprado não é exercido sobre a pessoa, e antes
sobre a sua natureza psicofísica(...). A pessoa
propriamente subtrai-se a essa relação de pertença.
Pessoa significa que não posso ser empregado por
ninguém mais, mas que sou eu próprio um fim.
(Guardini, 1963, p. 152).
Romano Guardini discorre acerca do caráter
inapreensível da pessoa, afirmando que o corpo,
a alma, a inteligência, a vontade, a liberdade, o
espírito são apenas os "materiais" de que é
composta, mas a pessoa radica no fato de que
este material existe na forma de uma pertença a
si mesmo (Guardini, 1963, p. 160). Ele faz
referência à relação Eu-Tu conforme concebida
por Martin Buber, afirmando que a condição de
possibilidade da existência pessoal do sujeito
reside em sua abertura ao encontro dialógico
(Guardini, 1963, p. 169). Em outras palavras, sou
plenamente "pessoa" quando consigo ver a face
do "Tu" diante de meus olhos, quando cessa a
relação sujeito-objeto e permito que aquele que
está diante de mim seja meu "Tu".
Guardini afirma ser a linguagem pré-condição do
encontro pessoal (e, portanto, numa perspectiva
buberiana, pré-condição da própria vida
autenticamente humana). Para ele a linguagem
não é apenas uma forma de transmissão de
conteúdos conceituais, ela é o espaço de sentido
(ou de verdade) em que vive cada homem
(Guardini, 1963, p. 175). O aspecto mais
importante que Guardini aponta com relação à
linguagem refere-se ao fato de que:
Mediante a linguagem, a verdade converte-se num
espaço objetivo. No sentido próprio da palavra, não
se pode falar consigo próprio, e apenas com o outro.
É assim que a linguagem, no seu estado de perfeição
e como expressão de uma comum responsabilidade
pela verdade, e de uma comunidade de destino,
conduz inevitavelmente os homens para a realização
da relação eu-tu. (Guardini, 1963, p. 175-176).
Considerando que a capoeira pode ser entendida
como linguagem, e mais ainda, como espaço
propício para o acontecimento do diálogo interhumano, e que a construção de identidade pessoal
Publicada em Novembro de 2007
não é possível sem esses espaços, podemos afirmar
que a capoeira representou também esse outro
modo de resistência, por ter permitido o exercício
da convivência que cria os patrimônios
relacionais. Por permitir a existência como pessoas
daqueles que eram vistos somente como força
de trabalho, funcionava como espaço de sentido
de suas vidas, sentido esse alheio ao degradante
papel social que lhes cabia na sociedade
brasileira. Mesmo não tendo gerado nenhuma
revolução, mesmo completamente inserida no
sistema social vigente, mesmo sem a pretensão
de modificá-lo, a capoeira foi resistência pela
própria existência.
Chama a atenção a existência da capoeira como
resistência. Considerando que foi proibida pelo
Estado e duramente perseguida pela polícia por
um período que durou mais de um século, é
notável sua capacidade de permanência.
Conforme afirma Soares (2004, p. 145):
A construção social e cultural chamada "capoeira",
na primeira metade do século XIX, provou ser capaz
de resistir aos mais fortes abalos. A persistência do
fenômeno, mesmo diante das fases de maior
perseguição, aponta para complexos mecanismos de
reprodução acionados nos subterrâneos daquela
sociedade. (Soares, 2004, p. 145)
Aponta também para a forte necessidade e
vontade de manutenção dessa instituição por
aqueles que dela faziam parte, que arcavam com
o enorme risco que isso representava. No
ambiente da capoeira, aqueles indivíduos
excluídos da vida social marcavam seu lugar na
sociedade; criavam uma identidade individual e
de grupo. A capoeira servia como instância
aglutinadora e de construção de identidades. A
capoeira permitia, ao menos no que estritamente
lhe dizia respeito, a auto-definição cultural, num
ambiente marcado pela mentalidade colonial que
entendia como cultura válida somente a européia.
A capoeira civilizada
A abordagem do Estado brasileiro em relação à
capoeira, que até então era marcada pela
condenação e repressão, sofreu profundas
modificações no final do século XX. Luiz Renato
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Vieira (2002) afirma que "fazemos parte de uma
geração que está criando um novo significado
para a capoeira, que passa a ser identificada, até
mesmo pelo leigo, como um fenômeno cultural
brasileiro reconhecido em escala mundial".
Segundo esse autor, na década de 1980, a
capoeira "conquistou definitivamente seu lugar
no cenário esportivo nacional," sendo
reconhecida pelos órgãos governamentais ligados
ao esporte e à educação. Esse mesmo período
foi de expansão nacional dos grandes grupos,
consolidando o modelo de organização centrado
em grupos, em que o mestre ou professor que
tem um pequeno grupo se vincula a grupos
maiores, passando a usar seu nome e sua marca,
visando maior visibilidade e inserção no mercado
das aulas de capoeira. Ao mesmo tempo, cresce
a tendência à valorização dos velhos mestres,
portadores da tradição, e à valorização da
capoeira como cultura, e não somente como
esporte marcial. A exportação da capoeira tem
seu boom, na década de 1990, sob a égide de prática
cultural, e não de modalidade esportiva. Esse
processo insere-se numa nova estratégia de
permanência da capoeira, que pressupõe a
conquista de mercados. Assim, podemos dizer que,
no contexto da contemporânea civilização,
centrada no mercado e marcada pela globalização,
a capoeira civilizou-se.
Nesse novíssimo contexto, onde ficou a
resistência? Será que somente nos ainda marginais
grupos de capoeira, aqueles em que predominam
os excluídos de nossa contemporânea sociedade?
Se um dos aspectos mais marcantes da resistência
da capoeira era sua simples existência, será que
no momento em que adquire reconhecimento da
sociedade, que não mais a proíbe e condena, ela
perde um de seus sentidos originais? Se isso for
verdade, estaria a capoeira condenada à
marginalização sob pena de perda de sentido?
Nesse ponto, o entendimento da capoeira como
espaço dialógico abre a possibilidade de
reconhecer um outro modo de resistência, ainda
importante em nossa realidade contemporânea.
A grande obra "O Processo", de Franz Kafka
(1988), é emblemática de nosso tempo, e evidencia
uma tendência que se cristaliza a cada dia. Sua
Publicada em Novembro de 2007
leitura gera a angústia de ver o protagonista
enredado num processo sem fim que se perde em
labirintos burocráticos, sem ter cometido crime
algum, sem saber do quê está sendo acusado e
completamente impotente diante dessa situação.
Kafka nos mostra a opressão que se faz presente
por meio de poderes sem face, que se dissimulam,
fazem-se representar pela Lei e executar pelos
imensos aparatos burocráticos. A opressão é
marcada, acima de tudo, pela impessoalidade.
Hans Freyer (1965) afirma que esse tipo de
dominação impessoal é feito como
administração. Os sistemas burocráticos não são
entendidos como modelos de dominação do
homem pelo homem, mas sim como
administração das coisas. Por meio dessa
ideologia da administração das coisas, tem-se a ilusão
de não haver dominação e opressão:
Quem administra não produz coisa alguma, nem
mesmo faz com que algo funcione. Pressupõe que
determinados processos já se verificam e que
determinadas forças já se fazem sentir. Administrar
quer dizer fomentar esses processos e manter,
coordenar e regular essas forças. "Pôr em
funcionamento" é o mais alto grau de atividade que
ainda é administrado, "impulsionar" o que vem
logo abaixo. (Freyer, 1965, p. 91).
Uma instituição como a capoeira, capaz de dar
lugar ao encontro dialogal, que, segundo Martin
Buber, é crucial para a realização da condição
humana, pode ser considerada de resistência
quando inserida em um modelo civilizacional que
tende a apagar o rosto humano por detrás dos
aparatos burocráticos. Na realidade impessoal da
burocracia, o indivíduo é reduzido ao suporte de
sua função no sistema. Talvez nesse ponto
possamos encontrar o motivo pelo qual a capoeira
consiga tantos adeptos nos mais distantes e
diversos locais do planeta. Pois a liberdade, desde
a perspectiva buberiana, não é o isolamento no
individualismo pregado pelas ideologias liberais,
e sim a possibilidade de existência como pessoa,
fundada nos encontros face-a-face. No modelo
civilizacional em que vemos crescer um
assustador vácuo ético, a capoeira, mesmo
civilizada, operando como instituição de suporte
do diálogo, pode representar resistência de
fundamental importância.
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Todavia, Hans Freyer (1965) alerta para os riscos
inerentes à civilização. Para ele, civilizar o homem
significa a eliminação da diversidade, e a criação
de um padrão "humano" ao qual todos os homens
têm que se adequar. Quanto mais aproximado um
homem está deste padrão definido por critérios
alheios à sua própria natureza, mais civilizado ele
é. Civilizar o homem é confiná-lo a uma prisão
existencial, em que o seu ser é definido
externamente
e
sua
liberdade
é,
conseqüentemente, inexistente. O resultado da
civilização dos homens é a criação de uma massa
de homens idênticos, e de uma sociedade que tem
repulsa pela diversidade e por tudo o que foge do
padrão:
Ser civilizado significa, aqui, que os homens são
cada vez mais trazidos a um denominador comum,
que o tipo de um comportamento normal se expande,
que é esperado de todos e que, de fato, é adotado em
porcentagens crescentes. (Freyer, 1965, p. 43)
Publicada em Novembro de 2007
processo possam surgir práticas tão diferentes a
ponto de não conseguirmos reconhecê-las como tal.
Conforme o estudo da história da capoeira nos
mostra, é-nos impossível definir qual é a capoeira
"verdadeira". Os intermináveis embates retóricos
entre Regional e Angola até hoje não foram
conclusivos sobre qual delas é "melhor". Os
discursos desqualificadores de uma ou outra
mostram-se falhos, e se apóiam em mitos criados
para tal, conforme aponta Vieira e Assunção
(1998). Tem valor, portanto, o empenho por fazer
verdadeira a nossa capoeira, aquela que
praticamos cotidianamente, e nessa tarefa reside
um primado da ética, do compromisso e da
responsabilidade. Nesse empenho, não cabe
enquadrar nossa velha capoeira em um conjunto
de regras; cada capoeirista singular deve assumir
sua responsabilidade intransferível, de fazer
verdadeira a herança cultural que lhe foi legada
por nossos antepassados.
A civilização não tem por finalidade ampliar as
possibilidades criativas dos homens e provocar
soluções originais, e sim conseguir desempenhos
garantidos (Freyer, 1965, p. 48). O
reconhecimento da capoeira como prática cultural
brasileira não pode significar sua civilização no
sentido indicado por Hans Freyer, pois isso
implicaria modelá-la a um esquema, exclusivo e
excludente, definido por instâncias externas. Esse
tipo modelagem poderia ser realizado por meio
da redução de todas as diversas capoeiras a um
padrão fora do qual qualquer modo de sua
expressão seria considerado anômalo.
Assim, não corremos o risco de pensar que a
prática de capoeira é a simples reprodução de
práticas ancestrais, que um dia tiveram o sentido
da busca pela liberdade e da resistência à opressão,
e que hoje somente nos fazem lembrar nossa
história. Reconhecer o sentido presente da
capoeira é compreender que sua prática não é
importante somente para ela mesma ou para a
cultura brasileira; é importante para as nossas
vidas.
No contexto de nossa contemporânea civilização,
manter a resistência e a busca por liberdade que a
capoeira representou desde sua origem significa
também dar espaço às manifestações de sua
diversidade. Pois a liberdade não é possível sem
auto-definição. O intenso processo de expansão da
capoeira, mesmo que utilize as mesmas vias da
globalização de mercados, que tende a
homogeneizar as culturas, pode gerar o efeito
inverso, permitindo a criação de cada vez mais
diversidade em seu universo. Pois em cada local
em que ela aportar, seus praticantes nela
imprimirão os sentidos que lhes forem
convenientes, e assim irão adaptá-la à sua própria
realidade e aos seus anseios, mesmo que desse
Bartholo, Roberto. O Diálogo nos Rigores do
Pensamento: Notas sobre Conhecimento e
Verdade a partir de Emmanuel Lévinas. Revista
Tempo Brasileiro, no 152 (Sociedade do Conhecimento:
Passes e Impasses), p. 43-73, 2003.
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Artigo
Achegas para a História da Viola no Brasil
Wagner Campos*
Resumo
Trata-se de um texto que narra, com base em documentação, a história da viola e de sua chegada ao
Brasil, trazida pelos portugueses. Procura descrever como, em terras brasileiras, fruto da miscigenação
de culturas diversas, especialmente a negra e a indígena, desenvolvem-se novos tipos de viola, ainda
que mantida a sua estrutura original básica.
Palavras-chave: viola, guitarra de cinco cordas, música, folguedos populares
Abstract
This text narrates, based on documentation, the history of viola and its arrival in Brazil, brought by
Portuguese people. It describes how, in Brazil, as a result of miscegenation of various cultures,
specially black and Indian, new types of viola are developed, even though its basic original structure
is kept unchanged.
Key words: viola of five guitar strings, music, popular folk
"(...) e eu da viola empossado
cantava como um quebrado,
tangia como um crioulo,
conversava como um tolo,
e ria como um danado..."
Gregório de Mattos
Introdução
Segundo a mitologia Grega, Hermes1 teria sido o
inventor do primeiro instrumento musical de
cordas dedilhadas, a lira. Ainda, segundo a lenda,
Apolo, deus da música e da arte do arco e flecha,
então encantado com o som do instrumento, teria
trocado tudo o que tinha por ele2.
em Osuna em 1555, escrevendo sobre a origem
da vihuela diz:
Referindo-se também à antiga lenda, Juan
Bermudo, no capítulo XXXVI de seu tratado
"Declaración de instrumentos musicales", publicado
* Jornalista formado pela UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF).
"Quiem fue el inventor primero dela vihuela?
Respondefe, que Mercurio, y la hallo en la manera
figuiente. Como el rio Nilo, dizem, falgava muchas
1
Nome grego de Mercúrio. Uma das doze divindades do Olimpo, filho de Júpiter e
Maia, nascido no monte Cilene, na Arcádia.
2
De acordo com a lenda, Mercúrio rouba parte dos rebanhos guardados por Apolo,
que, ao descobrir o feito, o conduz a Júpiter que o obriga a devolver os animais.
Apolo, no entanto, encantado com o som do instrumento inventado por Mercúrio,
dá-lhe o gado em troca da lira.
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vezez fuera de madre, ala buelta que mengua
dexailos cãpos muchos animales muertos entre los
quales quedo una tortuga, o galapago, Como efte
animal fe pudriefe, y fe quedafen los niervos
eftirados:fueron heridos los dichos niervos por
Mercurio, y hizieron fonido harmonico. Ocafiunado
de efte hecho el dicho Mercurio:hizo la vihuela, y
diofela a Orpheo: porque era muy eftudioso en la
Mufica. La vihuela que Mercurio inveto: tuue
quatro cuerdas, y Orpheo la perfecciono".
hebreos a Jubal. Pero basándonos en investigaciones
científicas, encontramos que los instrumentos de
cuerdas pulsadas conocidos por las más lejanas
civilizaciones del Antiguo Oriente, se dividen en
dos grupos. Los unos, provistos de un mango más o
menos largo, a fin de obtener de cada cuerda varias
notas, como ocurre en la guitarra o el violin; los
otros, sin mango alguno, dejando que las cuerdas
vibraran en toda su extención, como la cítara o el
arpa".
Citando uma variante da lenda, D.E.M. em seu
método "Novísimo Arte de Tocar La Guitarra por
Cifra, sin necesidad de maestro", publicado em Madri
no ano de 1881, diz que a guitarra teria sido
inventada por Mercúrio que a deu a Apolo em
troca de um rebanho de bois. Apolo, já possuidor
de uma cítara, cedeu-a então a Orfeu, que teria
dito:
Certo é que, desde a mais remota Antigüidade,
instrumentos de cordas já eram utilizados, tendo
seus remanescentes recebido durante a idade
média e a renascença a denominação geral de
"viola". Atribui-se a esse termo, comum a todo o
romançário, um sentido onomatopaico,
procedente do occitano antigo "viula",3 derivado
de "viular", ou seja, tocar um instrumento de
sopro, aludindo ao ato do cantar melódico. Em
uma variante, registra o dialeto Catalão a palavra
"fiular",4 significando "piar", assim como no latim
vulgar do século XI, os termos "vidula", "vitula"
e "fitola"5.
"Es un instrumento en el cual suenam tantas voces
cuantas son las cuerdas de que se compone".
Apesar do caráter poético atribuído, considerase hoje a possibilidade de os instrumentos de
cordas serem derivados do arco de caça, utilizado
pelo homem desde os seus primórdios. Assim é
que Homero, em seu clássico "Odisséia", conta
que o herói Ulisses, ao experimentar seu arco
perante os pretendentes de Penélope, pulsa a
corda produzindo uma nota musical, só igualada
pelo cantar de um pássaro:
"... Mas o engenhoso Ulisses, já tendo examinado
o grande arco - qual um hábil citarista e cantor,
facilmente estende com a cravelha nova uma corda
feita com a tripa retorcida de uma ovelha, que antes
prendera de um lado e de outro: deste modo, sem
esforço algum, armou Ulisses o grande arco. Em
seguida tangeu a corda com a mão direita
produzindo um som tão belo, só semelhante ao canto
de uma andorinha".
Emilio Pujol, discutindo as origens da guitarra
em conferências realizadas em Londres, Paris,
Barcelona, Buenos Aires e Montevidéu,
respectivamente nos anos de 1928, 1929 e 1930,
disse:
"...según la Mitología antigua, tendrian su origen
en la lira, cuya invención atribuyen los griegos a
Hermes; los egipcios, a Thoth Trismégiste, y los
"Alcuns hòmens an subtilea en parlar (...), altres
en sonar la viula..." 6
Diz-se, então, que o termo "viula", tanto quanto
suas variantes, adaptou-se facilmente nas línguas
modernas, como nas nórdicas "fiele" e "fele"; no
alemão, "videl"; no francês "vielle", no inglês
"violl", no espanhol "vihuella", e em nossa forma
conhecida, no italiano e no português "viola".
Diz-se também que com o mesmo sentido
imitativo, de caráter onomatopaico, o termo passa
a ser aplicado a instrumentos de cordas,
procurando dar aos cordofones a mesma
dimensão melódica atribuída aos instrumentos de
sopro:
3
J. Corominas, em "Diccionario crítico etimológico catellano e hispânico" , Madrid - 1954. A.
Buarque de Holanda Ferreira, em "Novo Dicionário da Língua Portuguesa", Rio de Janeiro
- 1986.
("Silbar", "Piular"). Citado por Ramón Andrés, em "Dicionario de Instrumentos Musicales
de Píndaro a J. S. Bach", Barcelona - 1995.
4
5
Francisco da Silveira Buena, em seu "Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua
Portuguesa", publicado em São Paulo em 1968, escreve: "Lat. Med. Vidula. A origem desta
forma está ainda em litígio: seria o germânico Fidula que foi alatinado em Vidula ou, ao contrário,
proviria o germânico do latim? A maioria inclina-se a admitir uma origem germânico-escandinava,
onomatopaica. A minoria aceita que Vidula se derivou do latim vitulari, entoar cantos de vitória, de
alegria". Alceu Maynard de Araújo, em seu livro "Folclore Nacional", publicado no Rio de
Janeiro em 1964, escreve: "No baixo latim encontramos: vidula, vitula, viella ou fiola, mas nenhum
destes vocábulos serviu para designar a nossa viola. Tratava-se de um violino pequeno, um tetracórdio.
Era a viola de arco, uma espécie de rabeca".
Ramon Lull (1235-1315), em seu "Libre de Contemplació de Déu".
6
22
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"O cembalo dá lugar ao saltério e a doce viella não
permite que adormeçam brandamente os olvidos dos
homens".7
As violas existiam em duas versões, uma delas
tocada com arco e outra com a mão, tangida com
os dedos ou com um plectro.8 Em sua versão de
arco, a viola foi na baixa idade média um dos
instrumentos mais apreciados da música cortesã,
conhecida na França com os nomes de vièle ou
vielle. Acredita-se, no entanto, que em sua origem
oriental a viola tenha sido um instrumento
ponteado, ou seja, tocado com os dedos,
tornando-se posteriormente, devido a várias
transformações morfológicas, um instrumento de
arco, adaptado primeiramente pelos povos
mediterrâneos, sendo muito utilizado na Europa
a partir do século X. Data dessa época a primeira
iconografia conhecida desse instrumento, em um
manuscrito mozárabe do Apocalipse, conservado
na Biblioteca Nacional de Madrid, provavelmente
escrito em meados daquele século.
Atribui-se aos primeiros arcos uma forma curva,
apresentando pequeno tamanho, de construção
muito rudimentar, estilizando-se com o tempo,
adquirindo, já no século XI, maiores proporções.
No século XII, de acordo com as esculturas em
pedra existentes no "Pórtico de la Glória" da
Catedral de Santiago de Compostela, o
instrumento apresenta caixa de ressonância e
braço independentes, tendo a caixa um formato
que remete levemente ao tradicional formato de
"oito" conhecido posteriormente. No século XIII,
Hyeronimus de Moravia, em seu "Tractatus de
Musica", registra a utilização de três afinações
distintas para o instrumento, atestando assim a
sua larga presença na Península Ibérica:
Publicada em Novembro de 2007
Aludindo sobre a antiguidade da viola em
Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira em seu livro
"Instrumentos Musicais Populares Portugueses",
publicado em Lisboa em 1966, escreve:
"As violas e seus congêneres9 são também de estirpe
muito remota. Entre nós, elas identificam-se já no
século XIII, como instrumento trovadoresco, e
sobretudo no século XV em diante, em que aparecem
largamente difundidas e com favor crescente,
especialmente em terras ocidentais;"
Importante esclarecer que Ernesto Veiga de
Oliveira, utilizando genericamente o termo viola,
se refere a uma variedade de instrumentos de
cordas da baixa idade média, tocados com arco
ou com as mãos. A viola, tal qual a conhecemos
hoje, é um instrumento de cinco ordens de cordas
duplas, oriundo de finais do século XVI e início
do XVII, bastante assemelhado a chamada
guitarra espanhola de cinco ordens do período
barroco.
Em termos documentais sabe-se que o fabrico
de violas10 em Portugal, sobretudo em Lisboa,
remete ao século XV, onde se tem notícia, desde
1424, de um profissional artesão chamado
Martins Vasques Coelho (1912):
"...vassalo de El -Rei, que habitava numa herdade
aforada pelo convento de São Domingos, sita em
frente de Santa Maria da Escada, em Lisboa".
Sobre o assunto, inúmeras outras fontes
existentes informam sobre a presença da viola em
Portugal desde o século XV, tornando-se com o
tempo o principal e mais importante instrumento
musical do país, presente nos mais diversos
momentos da vida cotidiana.
Em documento existente em Portugal, datado de
1459, foi encontrada a "Reclamação dos Procuradores
da Cidade de Ponte de Lima" (Brito, 1910),
referindo-se a uma exposição feita às cortes de
Lisboa queixando-se ao rei D. Afonso V dos
7
Guillaume de Castillon (século XII), em seu poema "La Alexandreis". Aqui o termo
"viella" aparece como uma variante.
Um tipo de palheta, em geral feita com pena de ave.
8
Se utilizarmos como fonte, por exemplo, as iluminuras existentes nas "Cantigas de Santa
Maria", do século XIII, podem significar tanto instrumentos de arco quanto de mão.
9
10
Considerando a primeira metade do século XV, entende-se ainda que as “violas” em
questão podem ser tanto instrumentos de arco quanto de mão.
23
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malefícios que "por causa das violas"11 se sentem
por todo o reino, alegando que certas pessoas se
serviam do instrumento para, tocando e cantando,
mais facilmente roubarem as casas e dormirem
com suas mulheres, filhas e criadas.
há-mo de jurar o autor.
Isto quero agora ver
e hei-vos d'ouvir tanger
e mais cantar, meu senhor.
"Ajuntãse dez e dez hom?s E leuom hua violla E
tres e quatro estam tamgendo E camtando E os
outros Entom escallam as cassas E Rouba os hom?s
de suas fazemdas, E outros que tem máas molheres
E máas filhas ou criadas como ouuem tanger a violla
vemlhes deffechar as portas e dormem com ellas. E
quamdo se espedem leuom alguua coussa".
Autor, quereis cá chegar?
João de Freitas Branco, em seu livro "História da
Música Portuguesa", publicado em Lisboa em 1995,
refere-se a 26a. Constituição do Sínodo13 do
Porto, de 1474, proibindo que se realizassem nas
vigílias das igrejas jogos, momos,14 cantigas ou
bailes:
"... ou que se tangessem sinos nem campanas, nem
órgãos nem alaúdes, guitarras, violas, pandeiros,
nem outro nenhum instrumento".
Em relação à popularidade do instrumento,
utilizado pelos mais diversos segmentos sociais,
Antonio Ribeyro Chiado, em seu "Auto da Natural
Invenção"15, apresenta uma personagem-ator negro,
tocador de guitarra e responsável pela execução
da parte musical de uma companhia de teatro
ambulante. Tendo sido então posta em dúvida
suas habilidades artísticas pelo dono da casa
contratante do espetáculo, as personagens travam
o seguinte diálogo:
" Dono:
Por que entraes?
Negro:
Para tanger e cantar.
Dono:
Sois negro Orfeo?
Nam creo que sois cantor;
Quem me quer?
Dono:
Nam se espante:
conheceis êste galante?
Como consequência, ordena el-Rei:
"... quem depois do sino de correr, onde o houvesse,
e, onde o não houvesse, depois das nove horas da
noite até "manhãa chãa sol saydo"- fôsse achado
com viola ou outro instrumento de tanger pela cidade,
vila ou lugar, desde que não houvesse festas "e vodas
que se faz~e com mujta gente e com tochas
e candeas", fôsse preso e perdesse a viola e as armas
e vestidos que troxesse".11
Autor:
Autor:
Si, senhor, que há de cantar.
Dono:
Mandai-lhe vir um discante,16
que isto hei d'exprimentar.
Negro:
Nam, que eu trago aqui guitarra. (...)17
Aqui tange e canta o Negro um vilancete..."18
Um aspecto importante deste diálogo diz respeito
à utilização do termo "guitarra", sendo este
utilizado genericamente pelos europeus, já em
meados do século XV e em diante,19 para designar
vários instrumentos de cordas dedilhadas,
11
Considerando a segunda metade do século XV, o instrumento em questão tanto
pode ser uma guitarra de quatro ordens quanto uma vihuela de mão.
Citado por Mario Sampaio Ribeiro em "As guitarras de Alcácer e a guitarra portuguesa".
12
Hildebrando Lima e Gustavo Barroso, em seu "Pequeno dicionário brasileiro da língua
portuguesa", publicado no Rio de Janeiro em 1939, escrevem: "Assembléia de párocos e de
outros padres, convocada por ordem de seu prelado ou de outro superior".
13
Frei Domingos Vieira, em seu "Thesouro da Língua portuguesa", diz que "momo", do
latim "momus", significa: "Representação mímica, expressão de um drama por meio de linguagem
gesticulada. Farsa satyrica, a que os antigos davam o nome de arremedilho".
14
15
Sem data conhecida de publicação. Sabe-se, no entanto, que foi representado na
presença de D. João III (1502-1557).
16
Entre os séculos XI e XII o termo "discante" significava, em um sentido geral, a parte
mais aguda de uma composição musical a duas vozes. A partir do século XVI, sem
perder seu sentido, o termo se especifica, passando a significar o instrumento musical
responsável por tocar a parte mais aguda dentro de um conjunto. Também, mais
especificamente, passa a designar espécies de cordofones pequenos, de tessitura aguda,
sendo o termo discante, utilizado em Portugal à época para designar até mesmo
instrumentos como o banza.
17
A julgar pela comparação feita pela personagem, diferenciando hierarquicamente
um discante de uma guitarra, o instrumento em questão se trata provavelmente de um
de mais amplos recursos técnicos, incluindo dimensão e tessitura.
18
Vilancete: Gênero de cantiga popular da península ibérica, cantada em espanhol ou
português, o termo deriva da palavra "vilão", significando homem de vila (da rua), ou
seja, do povo. Pe. Raphael Bluteau, em seu "Vocabulario Portuguez e Latino", escreve:
"Som que se faz em inftrumentos de corda".
19
Pe. Raphael Bluteau, em seu já citado "Vocabulario Portuguez e Latino", registra, sem
diferençar: "Viola. Guitarra".
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incluindo, a julgar pela gravura que ilustra o
frontispício da primeira edição do "Auto da
Natural Invenção", o banza20.
marchetada cõ h? marchete de oito e outro de quatro
muito bem feitos, e pelo pescoço arriba leuara h?
rotolo ou h?a trema cõ h?as encaixaduras cõ seus remates
e seraa grudada cõ grude de pexe, fundo e tampão, e
seraa forrada por dentro co forros de panno:
Ainda em termos de registro, João Brandão em
seu "Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança
da Cidade de Lisboa na Segunda Metade do século
XVI" (Tinhorão, 1998), referindo-se a
levantamento estatístico realizado em 1552
naquela cidade, informa sobre a existência de
cerca de quinze fabricantes de viola,21 bem como
de outros dez fabricantes de cordas. Sabe-se ainda
que na região norte do país estes instrumentos
eram fabricados por uma indústria localizada na
então vila de Guimarães, composta de várias
oficinas especializadas na construção de
instrumentos de cordas.
E Cristovão Rodrigues de Oliveira, em "Sumário
em que Brevemente se Contém Algumas Cousas que Há
na Cidade de Lisboa", publicado no ano de 1938
em Lisboa, referindo-se ao século XVI confirma
a existência naquela cidade de dezesseis violeiros
e "homens que fazem cordas de viola" (Sardinha,
2001).
Assim é que a partir da segunda metade do século
XVI em Portugal 22, um instrumento com a
característica forma de oito, de caixa alta, boca
redonda, braço de médio tamanho, com dez
cordas agrupadas em cinco ordens duplas, presas
em um cavalete colado sobre um tampo,
encontra-se amplamente difundido. Designado
correntemente de viola, sua utilização generalizase em contextos mais populares, ou no dizer de
Ernesto Veiga de Oliveira:
"...em festas rurais e de rua, ao serviço de amores,
aventuras, devaneios e folias, a entreter lazeres e
saudades,
serenatas
e
23
mundanidades, mais ou menos sérias ou frívolas "
O ano de 1572 registra em Portugal, o "Livro dos
regim~etos dos officiaes mecânicos da mui nobre e sepre
leal cidade de Lixboa"24 no qual dá um registro
detalhado da fabricação de violas no país à época:
"E o official do ditto officio que tenda houuer de ter
faraa h?a viola de seis ord?s de costilhas de pao
preto ou vermelho laurada de fogo muito bem
moldada e laurada, tampão e
fundo de duas
metades - ss - junta pelo meo muita bem feita e
Publicada em Novembro de 2007
Item faraa h? laço de talha fundo ou raso muito
bem feito:
Item regrara muito bem a dita viola e a alimpara e
per esta manr.a seraa acabada:
Item encordoara a dita viola muito bem segundo
pertencer ao tamanho della, e apontara e afinara
de maneira que possão nella tanger:
Item mandão que os violeiros que tenda teuerem
que fação as violas de seis ord?s de duas costilhas,
e seião forradas cõ pions ou lenços. e os laços dellas
de talha seião de folha. e se os quiserem fazer no
tampão seião forrados de purgaminho:"25
O instrumento aparece também registrado na
"Chronica de ElRei D. Sebastião"26, escrita em 1586
por Fr. Bernardo da Cruz27 e publicado em Lisboa
20
Instrumento de origem africana, de quatro ordens de cordas simples e caixa redonda,
conhecido em Portugal desde o início do século XVI. Sobre o instrumento, Domingo
Prat, em seu "Diccionario de Guitarristas", publicado em Buenos Aires em 1934, escreve:
"Se llama Banza, una espécie de guitarra que usam los negros y que produce sonidos monótonos y
desagradables . Su construcción es grossera y primitiva....".
Podendo significar tanto guitarras quanto vihuelas.
21
Considerando a época, registra-se em Portugal a já existência de instrumentos com
cinco ordens de cordas, como por exemplo o único exemplar que chegou até nossos
dias, a famosa guitarra de Belchior Diaz, construída no ano de 1581, pertencente hoje
à coleção do Royal College of Music, de Londres, também chamada de viola requinta
em Portugal.
22
"Instrumentos Musicais Populares portugueses".
23
Publicado por Vergílio Correa, em Coimbra, no ano de 1926 .
24
Importante notar que o texto do Regimento, ao citar viola de seis ordens de cordas,
se refere certamente à vihuela.
25
Sobre o livro, Innocencio Francisco da Silva, em seu "Diccionario Bibliographico Portuguez",
publicado em Lisboa, no ano de 1858, escreve: "Chronica d'Elrei D. Sebastião, publicada
por A. Herculano e o Doutor A. C. Paiva. Lisboa, na Imp. de Galhardo e Irmãos 1837. 8.º gr. de
XVI 446 pag. e indice no fim sem numeração, seguindo se uma lista dos subscriptores, que sobem ao
numero de seiscentos e tantos, circumstancia assás notavel entre nós. - Tem um prologo dos editores, em
que se dá razão da obra e do seu auctor, com interessantes particularidades, que lhes dizem respeito.
(...) Este livro é hoje quasi raro no mercado achando se exhausta a edição, que foi toda distribuida entre
os assignantes. Os exemplares usados que apparecem têem sido vendidos pelos preços de 480 até 720
réis. Eu comprei um em 1840 pelo primeiro dos referidos preços". Em verdade, sabe-se hoje que
a obra em questão foi escrita por Estevan Ribeiro mas atribuída a Bernardo da Cruz.
Diogo Barbosa Machado, em seu "Bibliotheca Lusitana", publicado em Lisboa entre os
anos de 1741 e 1758, escreve: "Estevan Ribeyro cuja patria, e estado de vida ignoramos, escreveo com
estilo sincero. Chronica delrey D. Sebastião. M.S. a quall alegaõ Fr. Ant. à Purif. de vir. Iillustrib.Ord.
Eremit. D. Aug. lib. 3. Cap. 14. e Cardos. Agiol. Lusit. Tom. 2. pág. 621. no comment. de 17. de Abril.
let. D". E Mário de Sampayo Ribeiro, em seu artigo "As guitarra de Alcácer e a guitarra
portuguesa", publicado em Lisboa em 1936, escreve: "Estêvam Ribeiro, em sua Chronica de D.
Sebastião - a que anda impressa como da autoria de frei Bernardo da Cruz ...".
26
D. Frei Bernardo da Cruz (1530? - ?). Franciscano da Congregação da Terceira Ordem,
e Capelão mór da Armada do Rei D. Sebastião. Foi o único dominicano a ascender ao
cargo de reitor da Universidade de Coimbra, exercendo-o entre os anos de 1541 e 1543.
Foi também o primeiro de vários reitores a estar ligado ao Tribunal do Santo Ofício e
foi encarregado pelo Cardeal Infante D. Henrique de estabelecer a Inquisição em
Coimbra. Em sua "Chronica", frei Bernardo da Cruz, que acompanhou a expedição de
D. Sebastião (1554-1578) a África, deixou um relato preciso das batalhas travadas no
Marrocos, descrevendo minuciosamente alguns de seus cruciais momentos.
27
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no ano de 1837, por Alexandre Herculano e Dr.
A. C. Payva, onde narra o episódio de AlcácerQuibir28 ocorrido em 1578 na África, envolvendo
os exércitos de Portugal e Marrocos, sendo o
último liderado pelo sultão Mulei-Maluco. Sobre
o sultão, Bernardo da Cruz, no capítulo XXIII,
descreve-o como homem culto, civilizado,
conhecedor de vários idiomas e dono de muitos
talentos, dominando as artes da poesia, dança e
música, incluindo diversos instrumentos:
"...e era Mulei-Maluco de tanto engenho, que
aprendeo a lingua Turcesca, Latina, Italiana,
Franceza e Espanhola, lendo e sabendo muitas
historias nellas escritas, em que aprendeo muita
discrição e primor de palavras e
cortezias, dinas de hum principe mui cortesão; mas
por que lhe naõ ficasse alguma manha que naõ
tentasse aprender, deo-se á poesia, e em as línguas
que tinha sabido fazia muitos versos e sonetos de
muita suavidade de palavras e gravidade de
sentenças, acrecentando a isto ser muito musico,
dançador, tangedor de tecla, de viola e alaúde, com
outros instrumentos que os christãos usaõ, fazendoo com tanta arte e melodia, que punha
espanto a toda Berberia, por nisso fazer ventagem
a todos os mouros, pouco acostumados a estas artes".
Ainda, no capítulo LXXV, Bernardo da Cruz,
referindo-se aos muitos "sinais que houve do infeliz
sucesso delrei e do seu desbarate", cita o músico
português Domingos Madeira, que cantou uma
vez durante a jornada pelo mar um romance29,
acompanhando-se à viola30,sendo o fato encarado
como um mau presságio, um prenúncio do que
viria a ocorrer:
"...Outro cuja significação não se engeitou, foi, que
indo hindo pelo mar Domingos Madeira, musico
del-rei, cantando-lhe, e tangendo em huma viola,
começou de cantar hum romance: Ayer fuiste rey
d'España: hoy no tienes un castillo: tanto foi isto
tomado em máo agouro, que logo Manoel Coresma
lhe disse deixasse aquella cantiga triste, e cantasse
outra mais alegre".
Quatro anos depois, o relato de Bernardo da Cruz
é complementado pelo do secretário do abade
Dom Jean Sarrazim, o frei francês Philipe de
Caverel, religioso de Saint-Vaaz, narrando a
viagem que o embaixador fez a corte de Filippe
Publicada em Novembro de 2007
II em Lisboa no ano de 1582, no qual discorre
sobre a lenda das "dez mil guitarras" 31
encontradas no campo de batalha de AlcácerQuibir (Ribeiro, 1936):
"Foi encontrado nos despojos do campo de batalha
do Rei D. Sebastião de Portugal, depois dos
combates, nos quais ele foi derrotado pelo Rei de
Fez e do Marrocos, cerca de dez mil guitarras, coisa
notável que alguns justificavam dizendo que os
portugueses engajados cantavam o seguinte refrão:
"os castelhanos matam os toros, os portugueses
matam os mouros".
Fruto de uma romântica lenda que percorreu todo
o sul de Portugal, claro é que o evidente exagero
do frei francês, citando "dez mil guitarras", não
28
A batalha de Alcácer-Quibir aconteceu em uma aldeia chamada Suaken, próxima a
Al-Kasr al-Kebir, no Marrocos, norte da África, travada entre os portugueses e os
mouros de Marrocos, liderados, respectivamente, por D. Sebastião (1544 -1578) e o
sultão Ahmed Mohammed de Fez, resultando a derrota do exército português e a
morte de D. Sebastião. Sobre sua morte, Frei Bernardo da Cruz em sua "Chronica"
escreve: "O primeiro que cometteo, e o derradeiro que acabou, foi elrei dom Sebastiam de gloriosa
memória, cujas façanhas, feitas com sua mão, foraõ taes que em certa maneira ficarão viciadas, por se
ver claramente que nenhum fim elle tivera naquella temerária batalha, senão conclui-la com a força de
seu braço, com o qual até a morte naõ cessou de pelejar, deixando magoa aos cristãos de se perder tal
esforço por mãos conselhos, e espanto aos mouros pelo estrago que nelles aquelle dia fez". O conflito
teve origem em 1576 com a deposição do sultão Mulei Maamede pelo sultão MuleiMaluco, constituindo uma ameaça para a segurança das costas portuguesas e para o
comércio entre o oriente, Guiné e Brasil, motivando então a intervenção de Portugal.
Partindo de Lisboa em oitocentos navios, no dia 25 de junho de 1578, o exército de
D. Sebastião segue viagem para Tanger e Arzila, e de lá para Larache, por terra, a
caminho de Alcácer-Quibir, chegando no dia 27 de julho, onde se dá a batalha com
o numericamente maior exército de Mulei-Maluco em 4 de agosto. A morte de D.
Sebastião provoca uma crise política que põe em risco a independência de Portugal,
devido ao fato de el-rei não ter deixado herdeiros, resultando na perda do trono para
Felipe II da Espanha. Ainda, dá início a um movimento místico-secular que se inicia já
na segunda metade do século XVI, denominado sebastianismo, ocasionado pelo
inconformismo popular com aquela situação política, traduzida pela expectativa e
crença do povo na ressurreição do rei morto vindo em salvação de Portugal, libertando
o país do jugo estrangeiro. O movimento sebastianista também teve reflexos no Brasil
em fins do século XIX e início do XX, refletindo, por exemplo, os eventos históricos
acontecidos na pedra bonita e Canudos, na região nordeste, pregando, igualmente,
que D. Sebastião, retornaria da morte, desta vez para restaurar a monarquia no Brasil,
contra o recém inaugurado governo Republicano. Considerado símbolo da
nacionalidade portuguesa, sobre el-rei D. Sebastião, José Mattoso em seu livro "História
de Portugal", publicado em Lisboa, s/d, escreve: "Senhor da sua vontade, não encontrou quem
soubesse evitar a sua ida a Marrocos em 1578. A sua valentia física e a preparação militar pessoal
não lhe deram qualidades de comando em campo, de que precisava. Por isso se ficou na jornada de
África".
29
Os romances eram textos musicados geralmente cantados com acompanhamento de
vihuela. Primeiramente, na baixa idade média, designava a língua falada pelo povo,
também conhecido como baixo latim, em contraste com o latim falado pelos nobres e
clérigos. Menéndez Pidal, em seu livro "Flor Nueva de Romances Viejos", publicado em
Madri em 1938, define: "poemas épicos-líricos breves que são cantados ao som de um instrumento, seja
em festas dançantes, seja em reuniões ensejadas para o recreio simplesmente, ou para o trabalho comum".
Derivados das epopéias e gestas medievais, com o passar dos tempos o romance adquire
novas formas. No Brasil registra-se ainda hoje a permanência de vários romances na
quase totalidade das regiões do país, tendo como característica também o ser
acompanhado pela viola.
30
Possivelmente, uma vihuela ou uma guitarra de quatro ordens de cordas.
Queiroz Veloso, em seu livro "D. Sebastião", publicado em Lisboa no ano de 1935,
escreve: "É corrente a afirmação de que entre os despojos da batalha se encontraram dez mil guitarras.
Ainda que todos os aventureiros e fidalgos levassem um desses instrumentos - o que parece inverossímil
- nunca poderiam atingir a quarta parte". Sobre o contingente de homens envolvidos na
batalha de Alcácer-Quibir, frei Bernardo da Cruz, em sua já citada crônica, escreve:
"...começou elrei a ajuntar gente, e se fez numero de quatorze mil infantes: havia mais mil e quinhentos
de cavallo, assi acubertados, como ligeiros, excepto mil e quinhentos gastadores, e outra gente de serviço,
que fez numero mais de vinte e cinco mil homens, que pêra jornada taõ comprida, onde todas as cousas
necessárias haviaõ de passar por mar, foi grande exercito".
31
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denota outra coisa senão a popularidade que o
instrumento desfrutava em Portugal à época,
sabidamente generalizado em todo o país. Tanto
é que Philipe de Caverel registra em sua crônica:
"Os Portugueses são grandes amantes de suas
guitarras".
Por outro lado, Souza Viterbo32, na "Apreciação
Crítica" que introduz o segundo volume do
"Cancioneiro de Músicas Populares", de Cesar das
Neves,33 publicado no Porto em 1895, interpreta
como algo negativo a história contada e
interpretada por Caverel:
"Dir-se-hia que eram estas (as dez mil guitarras)
as suas armas de combate. Não é este, porém, o
único absurdo que o snr. Caverel edita tão
levianamente por conta propria, querendo
porventura amesquinhar-nos, quando não faz senão
pôr em relevo a sua falta de criterio. É certo todavia
que os documentos dão-nos noticia de bastantes
musicos que lá ficaram estirados, embalando nas
ultimas harmonias guerreiras o somno tragico da
morte. De não menos de cinco charamellas mortos
encontramos nós noticia pelas mercês concedidas ás
viuvas e filhos. Um d'elles, Luis Jaquez, era o
charamella-mór e tinha sessenta e tantos réis
d'ordenado. Antão Rodrigues, atabaleiro, tambem
lhe fazendo companhia".
Certo é que Souza Viterbo, na referida
"Apreciação Crítica", dá valiosas informações
sobre o músico tocador de viola Domingos
Madeira, dizendo:
"Domingos Madeira tambem foi dos que ficaram
captivos em Alcacer, libertando-se á sua custa.
Parece que era homem de alguns bens de
fortuna; pelo menos possuia numerosa familia; não
menos de cinco filhos e quatro irmãs. Parece tambem
que
era
musico
de
fama
e
merecimento. Filippe II o mandou vir de Torres
Vedras para Lisboa, fazendo-lhe por esse motivo
algumas mercês".
E cita ainda um documento histórico intitulado
"Doações Lo 15,o", conservado na Torre do
Tombo, em Lisboa, que atesta o caso ocorrido:
"Dom Felipe &e faço saber aos que esta minha
carta virem que avendo respeito aos serviços de
Domingos Madeira, meu musyco de camara, e a ir
Publicada em Novembro de 2007
na jornada de Africa com ho senhor Rey Dom
Sebastyão, meu sobrinho, que sancta gloria aja, e
se hachar na Batalha d Alcacere, onde foi catiuo e
se resguatar a sua custa e se vyr por meu mandado
de Torres Vedras com sua casa, molher, cinquo
filhos e quatro irmãas , viuer a esta cidade de
Lisboa pera seruir ao cardeal archeduque, meu
muito amado e prezado sobrinho e irmãao, he há
continuação de seu seruiço e a sua pobreza e asy a
vaguarem por falecimento de Jeronimo Carualho,
seu sogro, LR rs (noventa mil rs) que tynha de
tença cada ano e elle ser seu herdeiro per ren~uciação
que nelle fez Miguel Perdigão, ey por bem e me
praz de fazer merce ao dito Domingos Madeira de
coremta mill rs de tença cada ano pellos LR rs que
asy vagarão pello dito seu sogro, os quaes R rs (40
mil reaes) de tença começara a vemcer de xxiij dias
dagosto deste ano presente de bc lxxxb (1586) em
diamte, em que lhe fiz esta merce, a quall lhe asy
faço alem das mais merces que lhe jaa tenho feito
pellos mesmos respeitos, e por tamto mamdo a Dom
Fernando de Noronha, conde de Lynhares, do meu
concelho do estado e vedor de minha fazenda, que
lhos faça asemtar no Livro della e do dito tempo em
diamte despachar cada ano em parte homde delles
lhe sejão bem paguos, e por firmeza de todo lhe
mãdey dar este por mim asynado e asellado do meu
sello pemdemte. Antão da Rocha a fez en Liboa a
xx doutubro, ano do nacimento de nosso Senhor
Ih~uu xpo de jbc lxxxb (1585), e eu Manuel d
Azevedo o fiz escrever".
E sobre o assunto, José Alberto Sardinha, em seu
livro "A Viola Campaniça, o outro Alentejo",
publicado em Vila Verde no ano de 2001, cita,
sem informar a fonte:
"Aliás, já antes da fatídica jornada, D. Sebastião
exibira perante
Filipe II de Espanha, no Mosteiro de Guadalupe,
durante as festas de Natal de 1576, menestréis
portugueses,
cantores
e
tangedores,
entre os quais os tocadores de viola Manuel de
Vitória e Alexandre Aguiar, este natural do
Porto".
32
Francisco Marques de Souza Viterbo (1846-1910), historiador português, publicou,
entre outros, diversos estudos sobre música.
33
Cesar Augusto Pereira das Neves (1841-1920), pesquisador português, publicou no
Porto, além do referido "Cancioneiro de Músicas Populares", o "Methodo elementar de violão",
no ano de 1878, entre outros livros sobre música.
27
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No século XVII, "Autos do Definitorio" 34 ,
documento escrito no Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra (Pinho, 1981), Definição 64a, saída da
Mesa do Definitório, em 25 de maio de 1605,
regula sobre a proibição dos clérigos de tocar viola
e outros instrumentos de cordas, aludindo sobre
o caráter pouco abonador de tal prática, objeto
de inúmeras reclamações das autoridades:
"Por auer deuacidad em tanger uiolas, citharas,
bandurrias, co m.to scandalo dos seculares, de q~
nos fizeraõ queixas, mãdamos q~ nh?
Religioso da nossa ordem uze dos tais instrum.tos
em nh? lugar sob pena de culpa graue, aqual o
Prelado sabendo executara sob a mesma
pena. O q~ naõ entendemos nos grãias e quintas
da(s) portas adentro".
E no início do século XVIII, Pe. Raphael
Bluteau,35 em seu "Vocabulario Portuguez e Latino",
publicado em Coimbra e Lisboa entre os anos de
1712 e 1727, assim descreve o instrumento:
"Inftrumento mufico de cordas. Tem corpo concavo,
coftas, tampo, braço, efpelho, cavallete para prender
as cordas, & pastana para as dividir, & para as
pòr em proporçaõ igual, tem onze traftos, para fe
dividirem as vozes, & para fe formarem as
confonancias. Tem cinco cordas, a faber, a primeira,
a fegunda, & corda prima, a contraprima, & o
bordaõ. Ha violas de cinco requintadas,36 violas de
cinco sem requintes, violas de arco, &c. Chamaõlhe
commummente Cithara, polloque o inftrumento, a
que os Latinos chamaraõ Cithara, podia fer muito
diverfo do que chamamos viola".37
Em 1719 é dada à luz na cidade de Guimarães
ao "Regimento para o ofício de Violeiro" (Caldas,
1996), com auto de aprovação pela câmara, em
sessão realizada em 21 de Junho do mesmo ano.
Entre outros, o Regimento fixa tabelas com
condições de venda e fabrico de instrumentos de
cordas, especificamente violas e machinhos,
objetivando regular seu comércio, evitando
especulações de mercado.
Publicada em Novembro de 2007
"Rendimento do ofício de violeiros
Não levarão mais por uma violla de marca grande, de
costilhas, que................................1$500 réis.
E sendo branca, do mesmo tamanho............1$200 réis.
De uma meia violla de contrabordão, sendo de costilhas
pretas......................................................800 réis.
E sendo branca, do mesmo tamanho...............700 réis.
As viollas que chamam segundas.....................480 réis.
E sendo mais pequenas..................................400 réis.
Machinho de cinco cordas................................300 réis.
Machinho de quatro cordas..............................240 réis.
Um tampo de pinhavete, de uma violla de marca, sendo
liso..........................................................480 réis.
Um tampo de meia violla de pinhavete............240 réis.
E sendo mais pequeno...................................150 réis.
Cavaletes de pau preto, para viollas de marca....60 réis.
E sendo mais pequenos....................................50 réis.
E sendo branco.............................................30 réis.
E um jogo de caravelhas de pau preto, lisas......60 réis.
E sendo brancas.............................................30 réis.
"Autos do Definitorio do Cap.o geral q~ se celebrou em o m.to de S.ta Cruz o anno de 605".
34
Pe. Raphael Bluteau (1638-1734) foi Clérigo Regular, Doutor em Teologia e
Qualificador do Tribunal da Inquisição de Lisboa.
35
36
Requintada, ou seja, que utiliza, em instrumentos de cordas duplas, uma corda mais
fina como par do bordão (baixo), afinada oitava acima deste.
37
Antonio de Moraes Silva, em seu "Diccionario da Lingua Portugueza", publicado em
Lisboa em 1813, define: "Instrumento musico vulgar, com cordas de tripas de carneiro,
e trastes no braço". F. Adolpho Coelho, citando o instrumento em seu "Diccionario
Manual Etymologico da Lingua Portugueza", publicado em Lisboa em 1899,
diz:"Instrumento musico semelhante á guitarra, mas de sons mais baixos e caixa em
formato de oito". Tomás Borba e Fernando Lopes Graça em seu "Dicionário de
Música", publicado em Lisboa em 1958, escrevem: "Instrumento de cordas. Tem
etimològicamente a mesma origem da vielle francesa e da vihuela espanhola e, como
estes, também se apresentou como instrumento de cordas picadas e de cordas
friccionadas, embora fosse nesta última função mais e melhor aproveitada (salvo em
Portugal, onde veio sempre designando o instrumento de cordas dedilhadas ou
unguladas que, com a característica forma de 8, ainda hoje existe sob três espécies:
viola, violinha e violão). (...) Viola Braguesa. Viola cuja designação lhe provém da
grande popularidade que sempre teve no distrito de Braga. É, pois, uma viola
caracteristicamente portuguesa, montada com cinco ou seis pares de cordas, todas de
aço ou arame, mesmo as que servem de alma aos bordões (donde lhe advém a designação
de viola de arame por que também é conhecida em várias regiões de Portugal). A sua
prática encontra-se muito espalhada, não só nas terras minhotas, mas também nas
ilhas dos Açores, Madeira, Brasil e províncias do ultramar. Os virtuosos aproveitam-na,
com notável mestria, para realizar variações de toda a natureza no acompanhamento
dos cantares e danças populares. É instrumento de sua natureza ungulado, modo de
execução que permite a realização de um rasgado (passagem rápida dos dedos, ou,
melhor, das unhas, por sobre todas as cordas) quase impossível nos outros instrumentos.
A sua afinação é a mesma do violão: mi4, si3, sol3, ré3, lá2, mi2 (de cima para baixo).
Nem todas as violas de arame têm esta última corda, ou, melhor, esta parelha de cordas,
que, como as duas imediatamente superiores, é constituída por um bordão e uma
corda metálica afinada à oitava".
28
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E sendo marchetadas.....................................120 réis.
A mais obras, que não vão neste Regimento, se avirão
com as partes como lhes parecer.
E não passarão este Regimento, com pena de mil réis
para acusador e conselho, por cada vez que forem
compreendidos".
Ainda, o regimento especifica a feitura de vários
tipos de violas: "viollas pequenas", "meias
viollas", "de marca grande", "de contrabordões",
"de costilha", entre outras, além dos machinhos
(Guimarães, 1926), estes descritos como
instrumentos de quatro e cinco ordens de cordas.
E registra também alguns nomes de construtores
de viola atuantes entre os anos de 1720 e 1745,
entre eles, Francisco de Figueiredo, Antonio
Campos, Belchior de Almeida e António de
Figueiredo, todos pertencentes a uma mesma
Irmandade, a de Nossa Senhora do Rosário, com
oficinas e postos de venda situados numa mesma
localidade, a Rua da Fonte Nova.38
O ano de 1752 registra a publicação em Lisboa
de um tratado de viola intitulado "Liçam
instrumental da viola portuguesa ou de ninfas, de cinco
ordens", de João Leite Pita de Roche. O livro em
questão aborda os rudimentos técnicos do
instrumento, sendo na verdade uma tradução
quase literal do método do guitarrista e músico
espanhol Juan Carlos Amat, "Guitarra española de
cinco ordenes39 ", publicado em Lérida no ano de
1626.
Em 1778 é dada à luz na cidade de Évora ao
"Livro de Regimentos dos Ofícios e doutros Documentos
para a História econômica e Administrativa de Évora",
contendo, entre outros, o "Rol da tacha do oficio de
violeiros":40
Publicada em Novembro de 2007
Huma Rabeca..............................................1.200
Emcordaduras de emcordoar
huma violla grande..........................................240
Meia violla........................................................180
Hum machete...................................................100
Huma Arpa.................................................1.200
No ano de 1789 é publicado em Coimbra o mais
importante método para o instrumento, o "Nova
Arte de Viola"41. De acordo com seu autor, Manuel
da Paixão Ribeiro:
" Sendo a viola hum inftrumento taõ
eftimavel, e que bem apparelhado naõ tem
inveja ao melhor Manicórdio (com tanto, que feja
feita com a porporçaõ devida, e executada por artifice
habil, e perito das fuas Regras)".
E justificando a publicação de seu livro, diz:
"A viola tem perdido muito da fua eftimaçaõ, por
naõ haver hoje quafi peffoa alguma, que fé naõ jacte
de a saber tocar".
Em seu método o autor trata de variadas questões
referentes à prática do instrumento, incluindo
ainda uma parte "especulativa", ou seja, teórica.
Entre outras considerações, o método informa
que o instrumento se monta com cinco ordens
de cordas duplas (sendo as duas mais graves,
triplas) e ensina sobre como reconhecer as cordas,
como encordoar e temperar a viola, sugerindo
para o instrumento o mesmo padrão intervalar
de afinação utilizado pela guitarra de cinco
ordens: 4a, 3a, 4a, 4a, do agudo para o grave:
"Violeiros
Violla grande (de) pinho..............................600R.es
Violla preta grande.............................................800
Meia violla.....................................................480
Meia violla de pinho...........................................400
Machete e Bandurra...........................................240
Huma Arpa de pinho....................................8.000
38
Citado por Alfredo de Guimarães, em seu estudo "Violas de Guimarães", publicado no
volume XXXVI da "Revista de Guimarães", no ano de 1926.
39
"Guitarra española de cinco ordenes la qual ensenã de templar, y tañer rasgado todo los puntos...".
O livro de Amat é o mais antigo método para guitarra de cinco ordens que se conhece,
tendo sido publicado primeiramente entre os anos de 1586 e 1596. Desta primeira
edição nenhum exemplar sobreviveu aos dias de hoje.
40
"RegimentoE. - Este livro contem vários documentos pertencentes a Câmara desta Cidade, e por
rezoluçaõ della o numerei e rubriquei com minha rubrica = (Sá?) = Évora 30. de Dezembro de 1778".
Citado por Manuel de Moraes em seu estudo introdutório para a edição da"Colecção
de Peças para Machete", de Cândido Drumond de Vasconcelos - 1846, publicado no
Funchal em 2003.
41
"Nova Arte de Viola para accompanhar com fundamento sem mestre, dividida em duas partes,
huma especulativa, e outra practica".
29
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Entre outras tantas considerações fundamentais,
de ordem teórica e prática, o autor reproduz em
seu método seis táboas explicativas do
instrumento e de como tocá-lo, intituladas "Lugar
dos Signos na Viola", em duas táboas, "Pontos
Naturaes" e "Pontos Bmolados", em três táboas
, e "Modo depor cifra qualquer Modinha,
Minuette, Etc.", utilizando como exemplo uma
peça musical intitulada "Minuette do Mattos".
Ainda, registra outros quatro exemplos musicais
em partitura, intitulados "Minuette da Rozinha"
e "Contra Rozinha", para violino e
acompanhamento de viola, e "Modinha a Duo,
de meu Mestre o Snr' Ioze Mauricio" e "Outra
Modinha a duo do mesmo Autor", ambas para
duas vozes com acompanhamento de viola.
Assim é que o método escrito por Manuel da
Paixão Ribeiro, revestido de caráter pioneiro,
significa uma peça importantíssima para a
consolidação da viola como instrumento
qualificado, de ampla referência na música
desenvolvida à época em Portugal. Um verdadeiro
ponto de chegada para o saber tradicional.
Registra-se ainda em Portugal a existência de três
importantes manuscritos históricos sobre a viola,
contendo peças musicais para se tocar no
instrumento, a saber: "Codex Coimbra", "Codex
Gulbenkian" e "O Livro do Conde de Redondo"42,
todos provavelmente do século XVIII,
conservados, respectivamente, na Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra, no Serviço
de Música da Fundação Calouste Gulbenkian em
Lisboa e na Seção de Música da Biblioteca
Nacional de Lisboa.
Em referência ao manuscrito "O livro do Conde
de Redondo", o musicólogo João Manuel Borges
de Azevedo, no estudo introdutório da edição
fac-similada de 1987, informa sobre a presença
de quatro peças musicais de influência afrobrasileiras na obra, considerando, as duas últimas,
provavelmente de origem especificamente
brasileira, a saber: "Naõ venda apretas",
"Canzindo de Sofalla", "Cumbe"43 e "Amable".
De acordo com o musicólogo,44 Cumbe é uma
dança de negros. Ainda, diz respeito ao nome de
duas serras situadas nos estados de Alagoas e
Bahia, além de um rio em Minas Gerais e de uma
Publicada em Novembro de 2007
lagoa na Paraíba. Quanto à segunda peça citada,
supõe tratar-se de uma canção que prenuncia a
modinha, dado o estilo do poema escrito, bem
como da utilização do termo "meu bem", sendo
esta forma de tratamento, segundo o musicólogo,
muito mais afeita ao Brasil do que a Portugal.
No que respeita à possível procedência brasileira
do "Cumbé", o poeta seiscentista e tocador de
viola baiano, Gregório de Matos e Guerra, cita
muito antes em sua obra este gênero. E cita
também, além do "Cumbé", outros gêneros como
o "Arromba", Cãozinho, espanholeta, Canário,
saltarelo, vilão, cubango, gandu e etc., sendo
alguns destes registrados também, posteriormente,
nos citados Códices de Coimbra e Gulbenkian.
Sobre a prática musical na corte portuguesa do
século XVIII, registra-se o depoimento do doutor
em Direito Canônico, Antonio Ribeiro dos
Santos, em "Carta sobre as cantigas e modinhas, que
as Senhoras cantaõ nas Assemblêas" (Braga, 1901),
em sua coleção de "Manuscritos", da Biblioteca
Nacional de Lisboa, referindo-se ao mulato
brasileiro Domingos Caldas Barbosa, o nosso
"Lereno"45 cantando modinhas acompanhadas à
viola, em um sarau acontecido na casa de D.
Leonor de Almeida, marquesa de Alorna:
"(...) cantaraõ mancebos, e donzelas cantigas de
amor taõ descompostas, que corei de pejo, como se
me achasse de repente em burdeis, ou com mulheres
de ma fazenda (...) Hoje pelo contrário só se ouvem
cantigas amorosas de sospiros, de requebros de
namoros refinados, de garridisses. (...) Esta praga
he hoje geral depois que o Caldas começou de pôr
em uzo os seus Rimances, e de versejar
para mulheres: eu não conheço hum poeta mais
prejudicial á educação particular, e pública, do que
este trovador de Venus, e de Cupido; a tafularia
do amor, a meiguice do Brazil e em geral a molleza
americana, que faz o caracter das suas
trovas, respiraõ os ares voluptuosos de Paphos, e
Cythera, e encantaõ com venenosos filtros, a fantasia
42
Sobre este documento, registra-se ainda uma edição fac-similada com tiragem de 750
exemplares, publicada em Lisboa em 1987 pelo Ministério da Educação e Cultura/
Instituto Português do Patrimônio Cultural, na série Lusitana Musica: I Opera Musica
Selecta, intitulada "Uma tablatura para guitarra barroca" - O Livro do Conde de Redondo.
43
"Cumbe...Baile de negros, que se hace al son de un tañido alegre, que se llama del mismo modo, y
consiste en muchos meneos de cuerpo a un lado y a otro...". Verbete do "Diccionario da Real
Academia Española", Vol. II, publicado em Madri em 1729.
Segundo o "Dicionário Universal Ilustrado Linguistico e Enciclopédico", de João Romano
Torres, publicado em Lisboa em 1921.
44
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ISSN: 1808-6535
dos moços, e o coração das Damas; eu admiro a
facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenções,
a variedade dos motivos, que toma para seus cantos,
e o pico, e a graça, com que os remata; mas detesto
o assumpto, e mais ainda a maneira porque elle
o trata".
No entanto, em "Diário de William Beckford em
Portugal e Espanha", publicado em Londres no ano
de 1788, o citado autor,46 músico amador e
embaixador inglês na corte de D. Maria I, relata
o seguinte fato acontecido em evento datado de
29 de Outubro de 1787:
Em livro intitulado "Sketches of Portuguese Life",47
publicado em Londres no ano de 1826, registrase interessante depoimento de seu autor, que se
identifica apenas pela sigla A.P.D.G., explicando
sobre a prática de se tocar viola em dupla, dando
ainda preciosas informações sobre os diversos
gêneros musicais praticados:
"A música que os portugueses tocam na sua guitarra
de cordas de metal consiste sobretudo em valsas, em
lunduns e nos acompanhamentos das
suas modinhas. As valsas são predominantemente
da autoria deles, e são em geral muito bonitas e
fortemente coloridas pela expressão lânguida
nacional. Os lunduns são mais caracteristicamente
portugueses do que qualquer outro tipo de música.
A guitarra deles parece ter sido feita para este genero
de música. Para ser bem tocada é necessário
que haja dois instrumentos, um dos quais toca apenas
o motivo, ou tema, que é uma espécie de arpejo bonito
e simples, enquanto o outro improvisa sobre estes
as melodias mais encantadoras. Nestas, dá-se
rédea livre à imaginação mais musical e mais rica
possível, e são ocasionalmente acompanhadas pela
voz, caso em que é habitual que as palavras sejam
tanbém improvisadas".
"Estava D. Luís de Miranda, Martinho António
de Castro, e Caldas, o poeta, o qual,
assim que trouxeram a sobremesa, se desentranhou
numa torrente de improvisados versos e durante mais
de meia hora prosseguiu lamentando a minha
partida em rimas extraordinariamente
harmoniosas. Não pude deixar de sentir um
entusiasmo que me fez sentar ao cravo e me obrigou
a cantar, a despeito da minha disposição. O
resultado foi eu ser acometido de violentas palpitações
e de um razoável ataque de febre".
Certo é que William Beckford em seu diário,
referindo-se às modinhas que certamente ouviu
cantadas e acompanhadas na viola por Caldas
Barbosa, escreve:
"não fosse pelos dois meses de viagem de barco, me
deslocaria ao Brasil para viver baloiçando-me em
redes e estirando-me em suaves esteiras, na
companhia de jovens coroados de jasmins e de moças
que a cada gesto derramassem essência de rosas".
Em inícios do século XIX, o oficial inglês Walter
Henry, que esteve em Lisboa no ano de 1808,
descreve em seu livro "Events of a Military Life",
publicado em Londres em 1843, os hábitos das
jovens portuguesas:
"Com a exceção de tocarem de vez em quando uma
modinha composta para a guitarra, creio que estas
raparigas nunca liam, nem trabalhavam,
nem desenhavam, nem faziam visitas, nem saiam
de casa senão para ir a igreja; e a sua única ocupação,
durante o tempo em que fui vizinho delas,
parecia consistir em preguisarem pela casa,
espreitarem pelas janelas, recostarem-se nos sofás,
divertirem-se às custas dos galegos e namorarem
comigo, da forma que já descrevi".
Publicada em Novembro de 2007
A viola, então, tinha um papel destacado no
panorama musical do país, até mesmo num
contexto mais urbano, onde, em Lisboa, era o
principal instrumento acompanhante com que
45
Lereno Selinuntino, nome arcádico do mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa.
Sobre Domingos Caldas Barbosa, Silvio Romero, considerado o primeiro historiador
da literatura brasileira, escreve: "O poeta teve a consagração da popularidade. Não falo dessa que
adquiriu em Lisboa, assistindo a festas e improvisando na viola. Refiro-me a uma popularidade mais
vasta, e mais justa. Quase todas as cantigas de Lereno correm de boca em boca nas classes plebéias
truncadas ou ampliadas. Formam um material de que o povo se apoderou, modelando-o ao seu sabor.
Tenho dêsse fato uma prova direta. Quando em algumas províncias do norte coligí grande cópia de
canções populares, repetidas vezes, colhi cantigas de Caldas Barbosa, como anônimas, repetidas por
analfabetos. Foi depois preciso compulsar as obras do poeta para expungir da coleção anônima os versos
que lhe pertenciam. É o maior elogio que, sob o ponto de vista etnográfico, se lhe pode fazer". Ainda,
Alexandre Barbosa de Souza, em texto de apresentação do livro de José Ramos
Tinhorão, "Domingos Caldas Barbosa - O poeta da viola, da modinha e do lundu", publicado
em São Paulo em 2004, se refere ao cantor, violeiro e compositor como o "primeiro
menestrel brasileiro a fazer sucesso na Europa". E escreve: "E nessa posição Caldas Barbosa
consegue granjear "geral estimação" e pleitear uma sinecura religiosa e a inscrição na Arcádia de
Roma, onde adotaria o nome de Lereno Selinuntino. (...) Mulato nascido no Rio de Janeiro em 1740,
filho de um funcionário real português com uma escrava de Angola, Domingos Caldas Barbosa é um
símbolo da miscigenada cultura de nosso país". A obra mais conhecida de Domingos Caldas
Barbosa, falecido em 9 de novembro de 1800, intitula-se "Viola de Lereno: colecção das suas
Cantigas, Offerecidas aos seus Amigos", publicado em Lisboa em dois volumes nos anos de
1798 e 1806.
46
William Beckford (1760 - 1844), filho de um milionário mercador de escravos e
proprietário de terras e plantações na Jamaica, contava vinte e sete anos quando esteve
pela primeira vez em Portugal. Considerado um homem culto, com talentos musicais
tanto para o canto como para a prática instrumental, era, no entanto, tido como de
péssima fama quanto aos costumes pessoais.
"Sketches of Portuguese Life, Manners, Costume, and Character".
47
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se cantavam as modinhas, os lundus e até mesmo
o fado, nos seus primórdios.48
Ocorre que entre o fim do século XVIII e o início
do XIX, com o surgimento da guitarra de seis
ordens na Europa, a viola vai aos poucos sendo
substituída em todo o país, dando lugar ao novo
instrumento de mais amplos recursos técnicos,
difundido em todo o continente como
instrumento moderno, de feição mais citadina.
documentais feitas a formas de representações
cênicas tais como entremezes, folias e comédias,
todas sabidamente ligadas à música. Mais
especificamente no caso da folia, esta forma de
manifestação
dançada
encontrava-se
estreitamente ligada à música de guitarra e viola,
conforme atestam várias fontes documentais.
Domingo Prat, em seu "Diccionario de Guitarristas",
publicado em Buenos Aires em 1934, escreve:
"Antiguo aire de danza en compás ternario,
utilizado como tema de variaciones instrumentales
por los compositores del siglo XVII
y XVIII. Parece de origen español. Salinas lo citaba
en el año 1577, y Cervantes lo menciona junto com
la Zarabanda y la Chacona. En 1623, el italiano
Carlos
Milanutio
incluia
entre
sus danzas de carácter español (españoletas,
gallardas, etc.), algunas Folias."
Sobre a importância da viola em Portugal,
Ernesto Veiga de Oliveira, em seu já citado
"Instrumentos Musicais Populares Portugueses",
afirma:
" ...mas, pelas suas características estruturais e pelo
seu
fácil
ajustamento
a
um
acompanhamento por acordes alternados - o típico
toque "de rasgado" das nossas violas e cavaquinhos,
em acordes de tonica e dominante - , elas vêm
ao encontro e ajustam-se eminentemente às feições
tonais, harmônicas e rítmicas dos tipos musicais
recentes".
Certo é que a partir do século XVI os portugueses
levaram a viola a todas as regiões coloniais,
incorporando-a nas culturas locais, entre outras,
das ilhas da Madeira, Cabo Verde, Açores e
também do Brasil. A esse respeito documentos
existentes49 atestam inúmeras atividades artísticas
desenvolvidas a bordo das naus portuguesas,
inclusive vindas para o Brasil, desde o século XVI,
resumindo especialmente teatro e dança, sempre
acompanhadas por música.
A. Gomes da Costa, na apresentação do livro
"Teatro a Bordo de Naus Portuguesas", de Carlos
Francisco Moura, publicado no Rio de Janeiro
no ano de 2000, escreve:
"Faziam-se a bordo das naus portuguesas
representações
parateatrais
ou
teatrais. E os diários e relações de viagens fazem
menção, a cada passo, dos autos e entremezes,
diálogos e comédias, folias50 e chacotas, que se
encenavam com a finalidade de entreter as
tripulações.
Entretanto,
essa
era
também uma maneira de difundir nas novas terras
descobertas as tradições, cultos e costumes
portugueses".
Importante notar as várias referências
Publicada em Novembro de 2007
Higinio Anglés e Joaquím Pena, em seu
"Diccionario de La Musica Labor", publicado em
Barcelona em 1954, dizem:
"Forma musical basada sobre um tema melódico
típico el cual se prestaba a la variación instrumental.
(...) Los vihuelistas españoles del siglo XVI
incluyeron en sus obras la forma de
48
Sobre as orígens do fado, José Blanc Portugal, em conferência intitulada "A Influência
do Ultramar na Dança", proferida em 18 de março de 1963 em Lisboa, e publicado em
1965 no livro "Colóquio sobre a influência do ultramar na arte", afirma: "O fado batido é derivado
do velho lundum setecentista cantado e dançado à viola".
"Relação da Viagem, e Naufrágio da Nao S. Paulo", de Henrique Dias, "Relaçam da Viagem
de Socorro do Mestre de Campo D. Diogo Lobo", do jesuíta Luís Lopes, "Viaggio al Congo", do
capuchinho Dionigio Carli, "Relaçam da viagem que fez o Excelentissímo Bispo de S. Paulo the
o Rio de Janeiro na Nau de Guerra Senhora da Nazaret", anônimo, etc.
49
50
Sebastián De Covarrubias, em seu "Tesoro de la Lengua Castellana o Española", publicado
em Madrid no ano de 1673, define: "Es una cierta danza portuguesa de mucho ruido, porque
resulta de ir muchas figuras a pie com sonajas y otros instrumentos. Llevan unos ganapanes disfrazados
sobre sus hombros; unos muchachos vestidos de doncellas que, com las mangas de punta van haciendo
tornos y a veces bailan. Y tanbién tañem sus sonajas, y es tan grande el ruido y el son tan apresurado,
que parecen estar los unos y los otros fuera de juicio. Y así le dieron a la danza el nombre de "folia",
de la palabra toscana "folle" que vale vano, loco, sin seso". Pe. Raphael Bluteau, em seu
"Vocabulario Portuguez e Latino", publicado em Lisboa entre os anos de 1712 e 1727,
escreve: "Folia. Derivafe do Grego Phelcos, que quer dizer Homem ridículo, ou de Phaulos também
Grego, que às vezes val o mefmo, que liviano, & doudo, (como notou Henrique Eftevaõ, no Livro da
precedência do idioma Francez. De Phelcos, ou Phaulos, fizeraõ alguns Autores Follus, que foy ufado
na baxa Latinidade por Doudo, louco (...) Entre nós Folia val o mefmo que Festa de varias peffoas,
tangendo, & cantando com tanbor, & pandeiro, ou Dança com muytas foalhas, & outros instrumentos,
com tanto ruido, extravagancia, & confufaõ, que os que andaõ nella parecem doudos. (...) Qualquer
efpetaculo, jogo, ou demoftraçaõ alegre, que fe faz em dias de fefta". Higinio Anglés e Joaquím
Pena, no referido "Diccionario de La Musica Labor", escrevem: "El nombre de Folia aparece
primeramente en Portugal, en 1505, en forma de danza, cuya melodía fué famosa durante el s. XVII
por el uso que de ella hicieron los músicos europeos. (...) Hacia 1600 es citada esta danza por Cervantes,
junto com la zarabanda y la chacona. Un siglo más tarde, el Cancionero de Sablonara contiene 3 Folias,
arregladas para 3 y 4 voces". Thomas Borba e Fernando Lopes Graça, em seu "Dicionário
de Música", publicado em Lisboa em 1958, escrevem: "Antiga dança portuguesa, afirmam os
dicionaristas, mas, na verdade, muito mal conhecida entre nós. (...) "quas lusitani follias vocant". O
Cancioneiro de Sablonara (princípios do século XVII) transcreve algumas folias a três e quatro vozes
e um manuscrito do Escurial três, com acompanhamento de baixo cifrado". Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira, em seu "Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa"-1988, escreve: "Forma
musical espanhola que, por seu estilo e construção se aproxima da Chacona ou da Passacale e se presta
facilmente à variação instrumental".
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la Folia en algunas de sus "pavanas" para vihuela
(...) En los libros de guitarra de Ruiz de Ribayaz
y Gaspar Sanz se ncuentram asimismo varias Folias
extendida su melodia por toda Europa".
foram espalhando pelas sete partidas do mundo".
Não coincidentemente, Luís da Câmara Cascudo
em seu "Dicionário do Folclore Brasileiro", publicado
em 1945 no Rio de Janeiro, escreve:
Thomas Borba e Fernando Lopes Graça, em seu
"Dicionário de Música", publicado em Lisboa em
1958, escrevem:
"A primeira referência concreta à celebrada dança
acha-se no cancioneiro Musical (1500). Parece que
nesta época o ritmo da folia era ainda muito incerto,
porquanto
o
alaudista
espanhol
Alfonso Mudarra transcreve uma (1546) em
binário, ao passo que, quase na mesma ocasião
(1547),
Valderraban
Anriquez
faz a transcrição de outra em ternário, compasso
em que depois se fixou". Para guitarra transcrevemnas
também
Ruiz
de
Ribayas
(1672) e Gaspar Sanz (1674 e 1697).
Assim é que compositores vihuelistas e
guitarristas ibéricos dos séculos XVI e XVII
escrevem peças musicais na forma de folias,
dentre os quais Luys de Milan, em seu "Libro de
música de vihuela de mano intitulado El Maestro", de
1536, Alonso Mudarra, em "Tres libros de música
en cifras para vihuela", de 1546, Enríquez de
Valderrabano em "Libro de música de vihuela,
intitulado Silva de Sirenas", de 1547, Diego Pisador,
em seu "Libro de música de vihuela", de 1552,
Gaspar Sanz, em seu "Instruccion de musica sobre la
guitarra española", de 1674 e Lucaz Ruiz de
Ribayas, em "Luz y norte musical para caminar por
las cifras de la guitarra", de 1677.
"A viola foi o primeiro instrumento de cordas que o
ortuguês divulgou no Brasil. O século do
povoamento, o XVI, foi a época
do esplendor da viola em Portugal, indispensável
nas romarias, arraiais e bailaricos, documentada
por
Gil
Vicente
e
nos
cancioneiros".
Assim é que, herdada de Portugal, a viola se fez
presente no Brasil, resultando daí diversas formas
originais, constituindo, hoje, parte fundamental
de nosso instrumental popular (Araújo, 1964).51
Viola caipira, viola cabocla, viola de dez cordas,
viola de pinho, viola brasileira, viola de arame,
viola de tripa, etc. No Brasil muitos são os nomes
atribuídos ao mesmo instrumento. Apesar de
mantida a sua estrutura básica, as tradições
musicais de cada região determinaram o
aparecimento de outros tipos de violas, fruto da
miscigenação das culturas diversas, em especial
a negra e a indígena. Viola de cabaça, viola de
bambu, viola de buriti e viola de cocho, entre outras.
Presente em diversos contextos da vida no país,
a viola foi inclusive utilizada pelos jesuítas no
processo catequético dos indígenas no século
XVI. Sobre o assunto, Pe. Serafim Leite, em seu
livro "História da Companhia de Jesus no Brasil",
publicado em Lisboa e Rio de Janeiro no ano de
1938, afirma:
Então, a julgar pelo vínculo histórico da vihuela
e da guitarra com esta forma de manifestação, e
tendo em vista as diversas citações documentais
que afiguram instrumentos musicais trazidos nas
naus portuguesas, pode-se bem supor sobre a
também presença desses instrumentos a bordo,
embarcados e trazidos também ao Brasil.
Resumindo a questão, José Alberto Sardinha, em
seu já citado livro "A Viola Campaniça, o outro
Alentejo", reafirma:
"Sabe-se que os navegadores portugueses
transportavam violas e outros instrumentos nas suas
viagens (lembre-se o caso da expedição militar de
Alcácer
Quibir),
que
assim
Publicada em Novembro de 2007
"Consta que o padre Antônio Vieira foi o
introdutor, no Pará, da viola e de
outros instrumentos musicais, que trouxera do reino.
O interesse do jesuíta pela música e pelo seu ensino
está patenteado na legislação interna da
Companhia de Jesus, que êle redigiu, - o
"Regulamento
das
aldeias
do
Maranhão e Pará" -, onde se lê, no parágrafo 15:
"Nas escolas de ler e escrever das aldeias, havendo
Alceu Maynard de Araújo, em seu já citado livro "Folclore Nacional", escreve: "Mas a
nossa viola é tambem bastante idosa, veio de Portugal e ao aclimatar-se em terras brasileiras sofreu
algumas modificações, não só em sua anatomia como também no números de cordas (...) Quando os
portugueses aqui chegaram, ao lado do desejo de trabalhar na dura lide de povoar e colonizar as terras
cabralinas, trouxeram também algo que encheria os momentos de lazer. As danças e os cantos camponeses,
a viola, a rabeca, o adufe, o triângulo, a tarola, o culto de São Gonçalo, as Folias de Reis e do Divino
Espírito Santo e os votos de comer e beber na Igreja, estes já codicilados e condenados nas Ordenações
Filipinas. Na terra além-mar eles iriam viver e, as danças, cantos, cerimônias religiosas contribuiram
para anular a nostalgia".
51
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ISSN: 1808-6535
número bastante, ensinem-se também a
a cantar e a tanger instrumentos".
Em 1584, José de Anchieta em sua "Informação
do Brasil e suas Capitanias", referindo-se a uma das
aldeias de índios do colégio da Bahia, relata:
"(...) les enseñam a cantar y tienem su capilla de
canto y frautas para sus fiestas, y hazen sus danças
a la portuguesa com tamboriles y vihuelas com mucha
gracia, como si fueron muchachos portugueses".
Sobre as festas com danças, procissões e
tragicomédias realizadas pelos jesuítas nas aldeias
do colégio da Bahia, registra-se em "Relaçam Geral
das Festas", impresso em Lisboa em 1623, o
seguinte relato de uma passagem (Viterbo, 1920)
acontecida em um evento em homenagem a
canonização de Santo Ignácio de Loyola e São
Francisco Xavier:
"As quatro partes do mundo para se mostrarem
agradecidas aos grandes beneficios, que por meyo
deste zelo receberaõ, naõ só fizeram o celebre
acompanhamento, que logo veremos, mas tambem
ordenaraõ h~ua fermosa dança de Aves, que com
suas mudanças fossem alegrando a todos, para a
qual deu Europa duas Aguias, Asia dous pauões,
America dous papagayos, e Africa h~ua Ema que
guiaua a dança, fazendo o som dous Bugios, com
viola e pandeiro. (...) Seguia-se h~ua dança das
sete artes mecanicas, que saõ as do laurador, caçador,
do soldado, do marinheiro, do surgiaõ, do tecelam,
& do ferreiro. Todos vestiaõ muito ao proprio,
leuauam na maõ suas diuisas, Arado, espada, remo,
tenta, lançadeira, martelo, com elles a som
de viola & pandeiro, faziaõ tantas, & tam nouas
mudanças que recreauaõ muito a todos".
Sobre a também presença do instrumento em
outros contextos, de espetáculos públicos e
ambientes privados no estado de São Paulo, Paulo
Castagna e Jaelson Trindade, em seu artigo
"Música Pré-Barroca Luso Americana: O Grupo
de Mogi das Cruzes", publicado em São Paulo
no ano de 1996, afirmam:
"A prática ordinária da música no mundo colonial
estava profissionalmente vinculada aos atos litúrgicos
e às festas religiosas. Mas, também, ainda que
excepcionalmente, podia ocorrer durante a encenação
de pequenas "óperas", comédias e entremezes. De
Publicada em Novembro de 2007
resto, a documentação tem mostrado que entre
as populações dessas vilas paulistas do Seiscentos e
Setecentos, era usual tanger viola, harpa, cítara e
até pandeiro".
O século XVII registra também na Bahia a figura
de um cantor e tocador de viola, um padre mulato
chamado Lourenço Ribeiro, em artigo escrito por
José Álvares do Amaral intitulado "Resumo
cronológico e noticioso da Bahia, desde o seu descobrimento
em 1500", publicado em "Revista do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia", de 1921-1922. No
entanto, segundo se sabe, nenhum registro de sua
obra sobreviveu aos dias de hoje, restando-nos
apenas a notícia de sua existência:
"O Padre Lourenço Ribeiro, além de aplaudido
orador sacro era excelente cantor de modinhas, que
improvisava ao som da viola, a lira daqueles
tempos..."
Presente em diversos segmentos sociais da
população, especialmente nos ambientes
populares, o cultivo da viola também se deu nos
meios aristocráticos representando para estes não
um meio de vida, mas sim um recurso a mais em
seu grau de instrução, voltado para a prática
diletante do fazer musical como elemento de
distinção social. Assim é que Pedro Taques de
Almeida Paes Leme, em seu "Nobiliarchia
Paulistana", publicado em São Paulo no ano de
1926, relata sobre a decisão de Salvador Correia
de Sá52 em contratar os serviços de Francisco
Rodrigues Penteado53 como professor de viola de
seus três filhos, no ano de 1648:
" A nobre família dos Penteados teve origem em
São Paulo em Francisco Rodrigues Penteado,
natural de Pernambuco, para onde veio ser morador
seu pae Manoel Correa com casa, saindo de Lisboa;
e em Pernambuco se estabeleceu com negocio grande.
Tendo este filho Francisco Rodrigues Penteado já
bem instruído em artes liberais, sendo excelente e
com muito mimo na de tanger viola, e destro na arte
da música, seu pai o mandou a Lisboa sobre
dependência de uma herança que ali tinha; o filho,
porém, vendo-se em uma corte das mais nobres da
Europa e com prendas para conciliar estimação,
cuidou só no estrago que fez do cabedal que recebeu,
consumindo em bom tratamento e amizades:
Refletindo depois que não estava nos termos de dar
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ISSN: 1808-6535
satisfação da comissão com que passara de
Pernambuco a Lisboa, embarcou na frota do Rio
de Janeiro com Salvador Correa de Sá e Benevides
em 1648, o qual tendo de passar a Angola, como
passou, para a restaurar dos holandeses, o deixou
na cidade do Rio muito recomendado pelo interesse
de instruir nos instrumentos músicos a suas filhas e
ao filho mais velho Martim Correa com quem estava
unido pela igualdade dos annos. Do Rio de Janeiro,
pela demora em Angola do dito Salvador Correa
de Sá, que ficou feito general daquele reino, passou
para a vila de Santos Francisco Rodrigues Penteado;
e já desta vila subia para São Paulo contratado
para casar com uma sobrinha de Fernando Dias
Paes, que foi quem o ajustou para este casamento".
Ainda sobre o assunto, Paulo Castagna (2000)
reitera a questão citando vários documentos
históricos referentes a processos de inventários
registrados no Brasil entre os anos de 1604 e 1700,54
arrolando entre os bens, inclusive violas, resumindo
sua importância e presença em ambos contextos:
"Viola, de propriedade de Mécia Roiz, São Paulo
entre
01/08/1605
e
04/02/
1606.................................................160 réis.
Viola/guitarra, de propriedade de Paula
Fernandes, São Paulo - 19/09/
1614.................................................640 réis.
Viola, de propriedade de João do Prado, São Paulo
23/09/
1615..............................................1,280 réis.
Viola, de propriedade de Balthazar Nunes, São
Paulo
06/
1623..............................................1,280 réis.
Viola, de propriedade de Leonardo do Couto,
Parnaíba
03/08/
1650.................................................320 réis.
Viola, de propriedade de Sebastião Paes de Barros,
Parnaíba
24/12/
1688..............................................2,000 réis.
Viola, de propriedade de Afonso Dias de Macedo,
Publicada em Novembro de 2007
Itú - 20/03/1700.............sem informação de
preço".
Reafirmativamente, Mário de Andrade, no
"Dicionário Musical Brasileiro" (1989), atesta, já
na década de 40, a existência de um antigo
documento paulista que trata do valor atribuído
em inventário ao referido instrumento de
Sebastião Paes de Barros:
"Em 1688 surge uma certa viola avaliada em dois
mil réis, preço enorme para o tempo. E, caso curioso,
esta guitarra pertenceu a um dos mais
notáveis bandeirantes do século XVII".
Ainda na Bahia do século XVII registra-se a figura
de Gregório de Mattos e Guerra, a quem o
renomado Silvio Romero, no século XIX, referese como "delicioso cantor de modinhas e tocador
de viola". Em sua obra, inúmeras são as citações
que o poeta seiscentista faz ao instrumento, como
nesta "Desempulha-se o poeta depois de gozar esta dama
de huns çapatos que lhe pedio", dando uma dimensão
bastante clara do seu envolvimento com a viola:
" Um cruzado pede o homem,
Anica pelos sapatos,
mas eu ponho isso à viola
na postura do cruzado:
Diz, que são de sete pontos,
mas como eu tanjo rasgado,
nem nesses pontos me meto,
nem me tiro desses trastos.
Inda assim se eu não soubera
o como tens trastejado
na banza dos meus sentidos
52
Salvador Correia de Sá e Benevides (1591-1688). Político e militar português nascido
no Brasil, descendente da família dos Sá, fundadores da cidade do Rio de Janeiro.
Exerceu por três vezes o cargo de governador do Rio de Janeiro, de 1637 a 1642, em
1648, e entre 1659 e 1660, destacando-se, ainda, pela reconquista de São Paulo de
Luando (atual capital de Angola), até então em poder dos holandeses, no ano de 1648,
exercendo, conseqüentemente, o cargo de governador entre 1648 e 1651.
53
Francisco Rodrigues Penteado nasceu em Pernambuco por volta do ano de 1630,
filho do comerciante português Manoel Correa e Clara de Miranda, falecendo em São
Paulo em 13 de novembro de 1673. Atribui-se a Francisco Rodrigues Penteado a
fundação em 1653 da Capela de Nossa Senhora da Piedade de Araçariguama, São
Paulo, sendo esta a capela mais antiga daquela localidade, destruída no século XVIII.
Sua localização situava-se a cerca de dois quilômetros de onde hoje fica a matriz da
cidade.
54
Em "Inventários e Testamentos", Publicado em "Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo", 1920-1977.
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pondo-me a viola em cacos:
Ó cruzado pagaria,
já que fui tão desgraçado,
que buli co'a escaravelha,
e toquei sobre o buraco.
Porém como já conheço,
que o teu instrumento é baixo,
e são tão falsas as cordas,
que quebram a cada passo:
Não te rasgo, nem ponteio,
não te ato, nem desato,
que pelo tom que me tanges,
pelo mesmo tom te danço.
Busca a outros temperilhos,
que eu já estou destemperado, ..."
Interessante notar como Gregorio de Matos,
usando de duplo sentido, descreve o fim do
relacionamento com uma amante de nome Anica
utilizando terminologia específica ligada a
elementos musicais, interpretativos e
constitutivos do universo da viola: "...mas eu ponho
isso à viola na postura do cruzado (...na postura do
cruzado, referindo-se a uma "posição" da mão
esquerda no braço do instrumento, resultando um
dado acorde musical representado pelo signo+,55
segundo os sistemas de cifragem de acordes em
tablatura dos séculos XVI e XVII. ": Diz que são
de sete pontos" (pontos, significando as sete notas
da escala musical, as quais se montam os
acordes), "mas como eu tanjo rasgado, nem nesses pontos
me meto" (ou seja, tocar acordes, no estilo
rasgueado, para o acompanhamento da voz, e não
notas melódicas, no estilo ponteado, ou solista),
"nem me tiro desses trastos" (referindo-se aos trastos
da viola, ou sejam, as divisões das casas no braço
do instrumento). "... o como tens trastejado na banza
dos meus sentidos" (significando tocar errado,
esbarrando nos trastos do instrumento). "... que
buli co'a escaravelha" (referindo-se às cravelhas; os
pinos que servem para estender ou afrouxar as
cordas, afinando o instrumento), "e toquei sobre o
Publicada em Novembro de 2007
buraco" (significando buraco, a boca situada na
caixa de ressonância do instrumento). "... que o
teu instrumento é baixo" (baixo, no sentido de sons
graves), "e são tão falsas as cordas, que quebram a
cada passo" (aludindo a cordas de baixa qualidade,
que quebram a cada compasso de música tocado):
"Não te rasgo, nem ponteio" (não tocar
acompanhamento, nem solo), "não te ato, nem
desato" (não por, nem tirar as cordas, mantendo o
instrumento desencordoado), "que pelo tom que me
tanges" (referindo-se a tonalidade específica de
uma música tocada), "Busca a outros temperilhos,
que eu já estou destemperado" (temperilho,
significando temperamento, afinação do
instrumento).
Na Bahia do século XVIII, a presença da viola é
atestada por E. M. Le Gentil de La Barbinais, em
1718, e relatada em seu livro "Noveau voyage
au tour du monde"56, publicado em Paris no ano
de 1728. Referindo-se à prática de se fazer
serenatas à época, La Barbinais afirma ter visto
na cidade de Salvador:
" portugueses vestidos de roupões, rosário ao pescoço
e espada nua sob as vestes, a caminhar debaixo
das janelas de suas amadas de viola na mão,
cantando com voz ridiculamente terna cantigas que
faziam lembrar música chinesa, ou as nossas
gigas da Baixa Bretanha".
Ainda, referindo-se a uma Festa de São Gonçalo,57
o "santo violeiro", acontecida na Bahia no mesmo
ano de 1718, o autor escreve que os participantes,
incluindo o Marquês de Angeja, então Vice-Rei
do Brasil,58 seus fidalgos, padres e até mesmo
escravos, dançavam de forma tão vigorosa que
"faziam vibrar a nave da igreja". Escreve ainda,
escandalizado, que os dançantes, aos gritos de
"Viva São Gonçalo", de posse da imagem do
55
Pe. Raphael Bluteau, em seu "Vocabulario Portuguez & Latino", escreve: "Na viola he o
differente modo, com que o tangedor poem os dedos nos traftes; As pofturas da maõ no tanger viola faõ
Forças, Trempe, Caranguejo, Vaõ, Cruzado, &c". Felipe Pedrell, em seu "Diccionario Técnico de
la Música", publicado em Barcelona em 1894, escreve: "Cruzado: Nombre de la postura de
un acorde en la guitarra que difería ségun el sistema de cifra adoptado por unos y otros vihuelistas".
Lucas Ruiz de Ribayaz, em seu método "Luz y Norte Musical para caminar por las cifras de
la guitarra española" - 1677, escreve: "Dos maneras ay de cifrar para tañer la Guitarra, vna para
quien aprende de rafgado, y otra para quien aprende de punteado, para darles facil inteligencia. A eftas
cifras, supuesto el principio, de que los numeros que fe efcriven fobre las lineas, indican los traftes, y las
lineas las cuerdas, y que fe han de pifar con la mano izquierda, no mas que aquellas en que fe hallaren
los numeros: en los traftes que indican dichos numeros, fe aduierte, para que el que aprende entre en
el conocimiento de los puntos que ha de faber para tañer de rafgado, que fe comienza por el cruzado,
el qual con otros doze que fe figuem defpues de èl, es menester que el que aprende, los encomiende a la
memoria, para entrar defpues con facilidad, tañendo todo lo que hallare cifrado para de rafgado; (...)
Cifrace el cruzado poniendo vn dos en terceras, las quales fe pifan con el indice en fegundo trafte, y vn
tres en fegundas, que fe pifan con el anular en tercer trafte; y vn dos en prima, que fe pifa con el largo
en primer trafte, y dos ceros en cuartas, y en quintas".
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santo, "começaram a jogá-la para o alto, de um
para o outro", tudo isso acompanhado por música
feita por um conjunto de variados instrumentos
musicais, incluindo violas:
"Partimos em companhia do Vice-Rei e de toda a
Corte. Próximo da igreja dedicada a São Gonçalo
nos deparamos com uma imensa multidão que
dançava ao som de suas violas. Os dançarinos
faziam vibrar a nave da igreja chamada de São
Gonçalo. Tão logo viram o Vice-Rei, cercaram-no e
o obrigaram a dançar e pular, exercício violento e
pouco apropriado tanto para a sua idade quanto
posição: seria porém aos olhos de tal Povo uma
impiedade digna do inferno ter ele se recusado a
prestar aquela homenagem ao santo cuja festa se
celebrava. Nós, queiramos ou não, acabamos por
dançar e foi muito interessante ver dentro de uma
Igreja Padres, Mulheres, Monges, Cavaleiros, e
Escravos dançar e pular misturados, e a gritar a
valer Viva São Gonçalo de Amarante. (...)
desaparecendo assim as distinções sociais nessa
saturnal cristã, celebrada ao som de maviosas
violas, e na qual o amplexo dos sexos atingia
proporções de demencia animal. Em seguida,
pegaram uma pequena imagem do santo de sobre o
altar e começaram a jogá-la para o alto, de um para
outro: a bem dizer, faziam o mesmo que os antigos
pagãos no ritual que costumavam realizar todos os
anos em honra à Hércules, durante o qual açoitavam
e enchiam de xingamentos a estátua do semi-deus.
(...) numa tribuna, religiosas cantando canções
estudadas, enquanto a platéia, embaixo, cantava
simultaneamente, outras canções, formando um
chivari; tudo aliado aos instrumentos desafinados
dava vontade de rir. (...) A dança fazia grande
barulho e podia ser comparada ao Nonnains de
Loudun, que também apresenta humor, gaiatice e
jovialidade".
Sabe-se, no entanto, que a prática musical nos
conventos de freiras era uma constante não só
no Brasil, mas há muito também em Portugal,
conforme atesta o registro de Diogo Mendes de
Vasconcelos em seu livro "Do Sítio de Lisboa",
publicado em 1608 naquela cidade, referindo-se
aos pendores musicais das freiras do Convento
de Odivellas:59
"... não creio que tenha o mundo outro de mais
Religiosas, sendo, entre servidoras, e freiras, mais
Publicada em Novembro de 2007
de quatrocentas mulheres, nove frades, e muitos
servidores de fóra; do qual se contão algumas
grandezas muito notaveis que deixo por serem
sabidas de todos; mas a excellencia da sua musica
não póde deixar de se celebrar em todo o tempo, e
occasião; porque, em bondade de vozes, e multidão
de musicas, em destreza da arte, e em suavidade de
instrumentos, não creio que se lhe iguale nenhuma
capela de nenhum Principe; porque tem setenta
mulheres, que todas cantão mui destramente,
e as mais tem bellissimas vozes, tangem na estante
tres baixões, tocão muitas dellas tecla, arpa, viola
de arco, e a violinha60 particularmente".
No ano de 1728 também na Bahia, Nuno
Marques Pereira, em seu "Compêndio Narrativo do
Peregrino da América"61, referindo-se aos "...abusos,
que se achão introduzidos, pela malicia diabólica, no
Estado do Brasil", o autor nos dá o seguinte relato,
seguido de comentário repleto de interpretação
moral:
" E foi o caso: que estando eu uma noite na cidade
da Bahia, ouvi ir cantando pela rua uma voz: e
tanto que punha fim à copla, dizia, como por apoio
da cantiga: Oh diabo! E fazendo eu reparo em
palavra tão indecente de se proferir, me disseram
que não havia negra, nem mulata, nem mulher
dama, que o não cantasse, por ser moda nova, que
56
"Nouveau voyage au tour du monde / par M. Le Gentil ; enrichi de plusieurs plans,
vûës & perspectives des principales villes & ports du Pérou, Chily, Bresil, & de la Chine
; avec une description de l'empire de la Chine".
57
Em Portugal a Festa de São Gonçalo é realizada, desde finais do século XV, na cidade
de Amarante, no dia 7 de Junho, oportunidade a qual acontece a dança em homenagem
ao Santo protetor dos violeiro e das donzelas casamenteiras, nascido em Vizella, Portugal,
em 1187 e falecido em Amarante em 1259, sendo canonizado no ano de 1561. Segundo
a lenda, São Gonçalo quando jovem tocava viola e dançava com as prostitutas da
região, com o intuito de impedi-las de pecar. Após sua morte a dança em sua homenagem
continua sendo realizada. No Brasil o início do culto a São Gonçalo do Amarante data
da época em que os primeiros portugueses chegaram no país, acontecendo com maior
freqüência nos estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Goiás, Minas
Gerais e São Paulo. Tradicionalmente, fazem-se festas para o Santo oferecendo uma
dança, cerimônia esta que ocorre na maioria das vezes por pagamento de promessa,
seguindo um ritual básico, que inclui almoço, procissão e dança. A dança completa
inclui, além do ritual básico, sete ensaios que o procede, realizados num período de
sete semanas. No estado do Ceará, no município de São Gonçalo do Amarante, a
dança é realizada durante a festa do santo padroeiro e apresentada em nove jornadas.
Trata-se de dança coreográfica de sapateados, intercalada de momentos de oração, a
qual é acompanhada pelo bater das mãos sincronizadas ao som de violas, violões,
pandeiros e adufes.
58
À época, era Vice-Rei no Brasil D. Pedro Antônio de Noronha e Albuquerque (16611731), 1º marquês de Angeja e 2º conde de Vila Verde, exerceu, entre 14 de outubro de
1714 e 11 de junho de 1718, o cargo de Vice-Rei do Brasil com superintendência em
todas as capitanias da América do Sul. Exerceu também os cargos de conselheiro de
Estado e da Guerra, vedor da Fazenda e mordomo-mor da princesa do Brasil. A
função de Vice-Rei foi extinta após a chegada de D. João VI ao Brasil, em 1808.
59
Convento de freiras da Ordem de Cister, fundado em 1295 pelo rei D. Dinis em
pagamento de uma promessa. Situado no largo de S. Dinis, na cidade de Odivelas,
atualmente o monumento pertence ao ministério do exército, funcionando como um
colégio feminino para as filhas dos militares.
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Publicada em Novembro de 2007
se usava (...) Porém, eu me persuado, que a
maior parte destas modas lhe ensina o demônio:
porque ele é grande poeta, contrapontista, músico e
tocador de viola e sabe inventar modas profanas,
para as ensinar àqueles que não temem a Deus".
Assim é que inúmeros registros atestam a rápida
disseminação da viola no país no século XIX,
dentre os quais destaca-se "Viagem pelo Brasil",
publicado em Munique em 182362. Em sua obra,
Spix & Martius dão interessantes testemunhos:
Sobre a presença da viola no Rio de Janeiro
setecentista, sabe-se da existência de inúmeros
construtores e reparadores desse e de outros
instrumentos na cidade, todos com comércio
regular estabelecido em vários pontos, na Rua da
Prainha e Rua das Violas, entre outras, sendo esta
última assim denominada devido à grande
concentração na mesma de profissionais artesãos
construtores e reparadores do instrumento nela
estabelecidos. Dentre os registros de fabricantes
existentes, conhecemos os nomes de Izidoro dos
Reis Carrilho, Thomé José da Silva, Bento da Silva
Campos, Thomé Gonçalves Barbosa e Salvador
José de Almeida Farias, construtores de violas,
rabecas e rabecões e até mesmo cravos
(Cavalcanti, 2004).
"O brasileiro tem disposição alegre, pronto para
divertir-se. Quase por toda parte onde chegávamos
à noite, éramos recebido com as toadas das violas,
a cujo acompanhamento se canta ou se dança. (...)
O principal encanto desta dança (batuque), para os
brasileiros, está nas rotações e contorções artificiais
da bacia, que eles exageram quase tanto como os
faquires das Índias Orientais. Dura às vezes, aos
monótonos acordes da viola, horas intermináveis sem
No século XIX, o Brasil recebe a visita de
inúmeros viajantes estrangeiros, dentre os quais
destacam-se médicos, naturalistas, militares,
religiosos, engenheiros, etc., de formação e
interesses variados, que registraram suas
impressões sobre diversos aspectos da terra
brasileira e de sua gente, incluindo as práticas
musicais. Henri Koster, em seu "Travels in
Brazil", publicado em Londres no ano de 1817,
descreve assim uma cena de rua vista por ele na
cidade do Recife em 1813:
" Os negros livres dançavam diante de uma de suas
choupanas. As danças lembravam as dos negros
africanos. O circulo se fechava e o tocador de viola
sentava-se num dos cantos, e começava uma simples
toada, acompanhada por algumas canções favoritas,
repetindo o refrão, e frequentemente um dos versos
era improvisado e continha alusões
obscenas".
Em seu livro "Reisen Nach Brasilien", publicado
em Frankfurt no ano de 1820, Maximiliano
Príncipe de Wied-Neuwied, de passagem pela
Bahia, escreve em 1817:
"Não se vê, pelo Brasil, outro instrumento, senão
violas".
Interrupção, ou alternado só por cantigas
improvisadas...".
"É aqui a viola, tanto quanto no sul da Europa, o
instrumento favorito."
A inglesa Maria Graham em seu "Journal of a
voyage to Brazil"63, publicado em Londres no ano
de 1824, descrevendo de forma detalhada a
decoração de uma casa baiana, observa:
"Há em geral um sofá em cada extremidade da
peça e, à esquerda e à direita, uma longa fila de
cadeiras como se nunca pudessem ser mudadas de
lugar. Entre as duas filas de assentos há um espaço
que, disseram-me, é muito usado para dançar; e em
cada casa vi, ou uma guitarra ou um piano".
Na região Centro-Oeste do Brasil, Raimundo José
da Cunha Mattos (1979), em seu artigo
"Chorografia Histórica da Província de Goyaz",
publicado no Rio de Janeiro em "Revista do
Instituto Histórico, geográphico e etnográphico
do Brasil", no ano de 1874, relata sobre a
presença do instrumento sendo utilizado por
senhoras, como acompanhamento do canto nas
liturgias e festas de igreja:
Provavelmente uma guitarra de quatro ordens, ou até mesmo um machete.
60
"Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Em que se tratam vários discursos espirituaes, e
moraes, com muitas advertências e documentos contra os abusos, que se achaõ introduzidos, pela
malícia, diabólica no Estado do Brasil".
61
A obra só foi publicada no Brasil no ano de 1938.
62
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" A musica fez progressos, ou foi cultivada com
gosto em toda a provincia de Goyaz: e apezar da
decadencia da mesma provincia, ainda se encontram
na cidade, e nos arraiaes muitos homens que tocam
rabeca, rabecão e outros instrumentos de corda; tanto
assim, que nas festas das igrejas sempre a
musica vocal é acompanhada de musica
instrumental; mas não ha quem toque instrumentos
fortes de sopro. Algumas senhoras cantam
soffivelmente e tocam psalterio, citharas, guitarras
e violas".
Em 1888, Silvio Romero (1977) em seu livro
"Estudos sobre a Poesia Popular do Brazil" publicado
no Rio de Janeiro, descrevendo alguns aspectos
característicos do homem do povo e seus
folguedos afirma:
" São chegados a rixas, amigos da pinga e amantes
da viola. Levam, às vezes, semanas inteiras
dansando e cantando em chibas ou sambas.
Assim chamam-se umas funcções populares em que,
ao som da viola, do pandeiro e de improvisos, amase, dança-se e bebe-se. Quasi todo
praiero possue o instrumento predilecto e canta ao
desafio. (...) Chama-se chiba na província do Rio
de Janeiro, samba nas do norte,
cateretê na de Minas, fandango nas do sul uma
funcção popular dos da predilecção dos pardos e
mestiços em geral, que consiste em se
reunirem damas e cavalheiros em uma sala ou n'um
alpendre para dançar e cantar. Variadas são as
tocadas e as danças. Ordinariamente
porém consiste o baile rustico em sentarem-se em
bancos à roda da sala os convidados, e, ao som de
violas e pandeiros, pular um par ao meio
do recinto a dançar com animação e requebros
singulares o bahiano ou outras variações populares.
O bahiano é dança e musica ao mesmo
tempo. Os figurantes em uma toada certa tem a
faculdade do improviso em que fazem maravilhas,
e os tocadores de viola vão fazendo o mesmo,
variando os tons. (...) Nos sambas, chibas, batuques
e candomblês é que o povo excede toda espectativa.
Vamos vêr despontar o manancial mais
fecundo da poesia popular. A viola e o
enthusiasmo, o canto e os ardores da paixâo, eis a
dupla origem da grande torrente".
Publicada em Novembro de 2007
Segunda metade do século XIX, nos dá mais uma
afirmativa da presença da viola no âmbito da
cultura de origem africana no país, em seu livro
"Elementos de Folk-Lore Musical Brasileiro"
publicado em São Paulo em 1936:
"Ha mais de um seculo que a viola caipira ou
viola de arame tem merecido a preferencia
dos negros, contando entre elles e os caboclos
eximios tocadores".
E referindo-se à Bahia de finais do século XIX,
Anísio Melhor em seu livro "Violas" registra um
"desafio" feito pelo cantador baiano Manoel do
Riachão, do qual citamos a seguinte quadra:
"Se a lua não apparece
Na noite do meu descante,
É mocinho do machete
Que eu canto só no minguante".
Muito embora a função de tocador estivesse
tradicionalmente restrita ao universo masculino,
Anísio Melhor registra a também presença de
mulheres violeiras naquele estado, citando
nominalmente Xiquinha Ribeirôa, 64 e Maria
Tyranna,65 sendo a primeira, segundo o autor, "a
mulher de mais fama entre os violeiros do sertão da
Bahia".
"Sabendo manejar a viola, soltava o chalé no
hombro, prendia ao canto da bocca um cigarro,
manchava a negrura do cabello com uma flor
qualquer, e estava prompta para vencer léguas e lá
ir derramar em oiças alheias a graça e a
expontaneidade de seus repentes rústicos. (...)
Xiquinha morreu de cantar, dizem as chronistas
do seu tempo. Cantou um dia e uma noite nas
Lavras e, vencida, entregou a viola chorando. Foi
a nossa Severa de chalé e chinellinha de couro."
Sobre a presença do instrumento no sul do Brasil,
Alceu Maynard de Araújo (1964), em seu livro
"Folclore Nacional", escreve:
“Trago para estas páginas o testemunho insuspeito
"Journal of a voyage to Brazil, and residence there, during part of the years 1821, 1822, 1823".
63
Flausino Rodrigues Valle (1978), referindo-se a
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de meu avô materno, Virgilio Maynard, tropeiro,
que dos 12 aos 60 anos de idade, isto é, desde
1870 palmilhou as ínvias estradas do Rio
Grande do Sul a São Paulo. Contava que nunca
vira seus peões e camaradas viajarem sem sua viola,
quase sempre conduzida dentro de um saco,
amarrada à garupa de seu animal vaqueano".
Resumindo, Mucio Teixeira em seu livro "Os
Gaúchos", publicado no Rio de Janeiro em 1920,
escreve:
"O gaúcho é o tipo mais notável do Brasil, tanto na
sua vida innocente e simples, como nos rasgos e picos
da sua indomita bravura. (...) A sua arma de
guerra é a viola, o seu pinho, como
elle diz, derretendo o "figueirote", cheio de
manimolencias..."
Na região norte do Brasil registra-se na cidade de
Belém do Pará em 1886 a inauguração da primeira
loja de música, a José Mendes Leite, especializada
na comercialização de partituras e instrumentos
musicais. Nos primeiros anos de 1900 o já
próspero estabelecimento anunciava seus
produtos e serviços, atuando também no âmbito
da importação de instrumentos e músicas,
abarcando todas as grandes editoras européias.
Em seu catálogo de instrumentos à venda
constam as seguintes peças (Sales, 1972):
"Instrumentos de Madeira de Cordas.
Guitarras:
Importante notar que o catálogo assinala a venda
de violas confeccionadas no Maranhão e no Pará,
demonstrando a já fabricação de instrumentos
nacionais de boa qualidade, comercializados em
igualdade de condições com os tradicionais
instrumentos portugueses.
No início do século XX, com o advento da
urbanização, os grandes centros recebem enorme
contingente de trabalhadores vindos do campo
em busca de novas oportunidades de vida nas
cidades. Produto do êxodo rural, essa nova classe
introduz nas grandes cidades padrões de cultura
marcadamente do campo, incluindo o uso dos
implementos necessários para a manifestação de
suas práticas artísticas, como por exemplo, a viola.
E com o surgimento do registro sonoro mecânico
no Brasil, generalizam-se essas manifestações,
criando segmentos específicos de mercado para
o consumo cultural, considerando usos e
costumes atinentes, estabelecendo inclusive as
condições efetivas para a realização de eventos
coletivos em torno de práticas culturais rurais,
atendendo a expectativas desses segmentos.
Assim é que no ano de 1913, expandindo seus
negócios no Brasil, a Casa Edison 66 realiza
gravações musicais no estado do Rio Grande do
Sul, registrando em discos duplos67 o que de mais
representativo existia naquela localidade,
incluindo melodias acompanhadas por viola,
entre outras, conforme registradas no respectivo
catálogo de anúncios da gravadora:
"Canções á Viola
No 75. Guitarras de Leque, lisas; de madeira
escolhida.
Pelo velho JULIO LOPES, 72 annos
No 76. Guitarras de Leque; ricas, com embutidos
de madrepérola, de fantasia, fabricação superior.
120761: O Monarcha (Canção) e O Dandão
(Canção Gaúcha).
Violas:
No 77. Viola commum, de Maranhão, de 10
caravelhas, bem acabadas.
No 78. Viola Paraense, de 10 caravelhas,
fabricação superior.
No 79. Viola Portugueza, de 10 e 12 caravelhas,
recomendadas pelo bom acabamento e superior
afinação."
Publicada em Novembro de 2007
120762: A Tyranna (Canção Gaúcha) e Maruca,
olhai! (Canção Gaúcha)" .
No mês de maio do ano de 1929, registram-se as
primeiras gravações realizadas por violeiros64
Sobre a violeira e cantadora Anísio Melhor escreve: "Nascida na cidade de Arathuype,
segundo opinião de Francisco Adolpho de Farias, que me offereceu o desafio divulgado adeante, Xiquinha
vivia de trabalhos domésticos, mas o espírito andeiro não na deixava fazer pousada longa no logar onde
chegava".
Sobre Maria Tyranna, o autor comenta: "Depois de Ribeirôa, a cantadeira de mais fama no
littoral da Bahia foi Maria Tyranna, que eu conheci já no ultimo quartel da vida. Velha e syphilitica,
Maria Tyranna ainda guardava certo alinho no traje. E no olhar luminoso e humido, denunciava ainda
a mulatinha engraçada que devia ter sido".
65
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cantadores de modas de viola do interior de São
Paulo, produzidas pelo mesmo Cornélio Pires
para o selo Columbia, rótulo vermelho.
Constituídas em uma série, chamada "Série
Caipira de Cornélio Pires", gravadas em disco de
78 rpm, foram registradas as músicas "Jorginho
do Sertão" e "Moda de Pião", ambas da autoria
do próprio Cornélio Pires, atingindo em apenas
vinte dias a marca de cinco mil discos vendidos.
Em 1938, registra-se um dos acontecimentos
mais importantes para a cultura musical brasileira,
abarcando, indiretamente, a música de viola
desenvolvida no norte e nordeste do país: a
Missão de Pesquisas Folclóricas. Idealizada pelo
professor, escritor, dramaturgo e pesquisador
Mário de Andrade, quando de sua gestão à frente
do Departamento de Cultura de São Paulo, a
"Missão" teve como objetivo a coleta e registro
de parte significativa da música de tradição oral
das duas regiões, enviando, para tal, uma equipe
de pesquisadores aos estados de Pernambuco,
Paraíba, Maranhão e Pará, formada por Luís Saia,
chefe, fotógrafo e cinegrafista da expedição,
Martin Braunwieser, técnico Musical, Benedicto
Pacheco, técnico de som e Antônio Ladeira,
auxiliar geral e assistente técnico de gravação,
realizada entre os meses de fevereiro e julho de
1938.
Em 23 de março, os pesquisadores chegam ao
Estado da Paraíba, cumprindo um cronograma
que se estende até o dia 30 de maio, visitando as
cidades de João Pessoa, Itabaiana, Torrelândia,
Campina Grande, Pombal, Patos, Cajazeiras,
Souza, Coresma, Alagoa Nova, Areia, Alagoa
Grande, Mamanguape e Baía da Traição. Na
cidade de Cajazeiras, no dia 19 de abril, a equipe
da Missão realiza a antológica gravação em áudio
dos violeiros Manuel Galdino Bandeira e Vicente
José de Souza, registrando gêneros como "Nove
por Três", "Galope a Beira Mar", "Martelo Solto",
"Embolada" e "Seis e Meio"
Paralelamente, no que respeita ao aspecto
autenticamente popular da viola, Luís da Câmara
Cascudo (2005), em seu livro "Vaqueiros e
Cantadores", publicado em Porto Alegre em 1939,
informa as seguintes "Louvações"68 recolhidas em
Goiás e Mato Grosso:
Publicada em Novembro de 2007
“Viola tem cinco cordas,
cinco cordas mais não tem.
Em cinco infernos se veja
quem me apartou de meu bem".
"A viola sem a prima,
A prima sem o burdão,
Parece filha sem pai,
No poder de seu irmão.
A viola sem a prima,
Sem a toeira do meio.
Parece moça bonita,
Casada com homem feio".69
Nos anos de 1942 e 1943, Luíz Heitor Corrêa de
Azevedo realiza estudo pioneiro sobre o
instrumento no país, atestando, entre outros, a
sua ainda presença nas mais variadas
manifestações musicais do povo. Ainda, em
pesquisa realizada no estado do Ceará, Corrêa de
Azevedo informa que a afinação básica do
instrumento era "mi - si - sol - re - la", do agudo
para o grave, a mesma, basicamente, daquela
apresentada por Manuel da Paixão Ribeiro em seu
citado método"Nova Arte de Viola", publicado em
1789 em Portugal.
Em resumo, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo em
seu "Relação dos Discos Gravados no Estado de
Goiás", publicação do Centro de Pesquisas
Primeira gravadora brasileira, instalada no Rio de Janeiro no ano de 1900 por Frederico
Figner (1866-1946), principiando com a gravação de cilindros metálicos. Em 1902 inicia
as gravações em chapas de cera grandes, registrando parte importante da produção
musical brasileira.
66
Ou seja, contendo gravações em ambos os lados das chapas.
67
Anísio Melhor, em seu livro "Violas", escreve: "A Louvação é um typo de tyranna que se
preoccupa em elogiar e descrever com galhardia figuras da sala onde se encontram os violeiros. Ha nos
tyrannistas cégos esse geito de adulação poetica, cujos resultados pecuniarios fazem pesar a viola e
garantir uns dias de fartura". Mário de Andrade, em seu já citado "Dicionário Musical Brasileiro"
e em seu "Danças Dramáticas", Define: "Canto louvando a alguém. É costume antigo nas festas
sertanejas os cantadores locais louvarem os donos da casa ou o homenageado. (...) As louvações recebem
no Nordeste às vezes o nome antigo de Loas, mas este nome designa especialmente certas recitações de
alguns bailados (...) Algumas das Louvações são chamadas Benditos, são as que coincidem na temática,
com as atuais canções de esmolar dos mendigos."
68
"A viola sem a prima, a prima sem o burdão ...", referindo-se a primeira corda, a mais aguda,
e a quinta corda, a mais grave da viola.
69
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Folclóricas, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, escreve:
"Ora, é evidente que a nossa viola sertaneja
permaneceu, nas mãos do povo, como um verdadeiro
remanescente da velha viola portuguesa
renascentista, a mesma que havia acompanhado as
saborosas modinhas de Domingos Caldas
Barbosa; a autêntica viola do Lereno. Ela coexiste
com o violão urbano, mas refugiou-se no sertão; é,
musicalmente, um arcaísmo, como tantos outros
linguísticos, que o povo mantém vivos, com a força
inconsciente do seu arraigado tradicionalismo".
A viola de arame foi também utilizada no Brasil
no âmbito da chamada música erudita, por
Flausino Vale, que compôs "A Volta do Rancho",
para viola solo, e por Theodoro Nogueira 70,
quando, por sugestão de Rossini Tavares de Lima,
então membro do Conselho Nacional do Folclore,
o compositor realizou extenso estudo sobre o
instrumento71, terminando por compor as peças
"Sete Prelúdios para Viola Brasileira" e "Concertino
para Viola Brasileira e Orquestra de Câmara" (Lima,
1964):
"...desejando compor música para viola, tive que
adquirir um exemplar, para estuda-la. Estabeleci
a maneira de escrever para ela, usando clave de sol
e clave de fá, em virtude dos tons oitavados e
uníssonos".
As obras de Theodoro Nogueira foram gravadas
em 1963 pela extinta gravadora Chantecler no
"long-play" intitulado "A Viola Brasileira", tendo
como solista do instrumento o ainda hoje
afamado violonista Antônio Carlos Barbosa Lima,
acompanhado por uma orquestra de câmara
organizada e regida pelo maestro Armando Belardi.
Ainda hoje, mais ligada à vivência rural, como
em outros países do mundo, a viola do século
XVI encontra-se igualmente disseminada em
nosso país, presente nas mais diversas formas de
manifestação da cultura e da sociabilidade
brasileira de, literalmente, todas as regiões, de
Norte a Sul, com fortíssima presença no nordeste,
sudeste e centro-oeste do país.
Dentre os diversos violeiros do Brasil, de todos
os tempos, destacam-se Cirino da Guajurema,
Publicada em Novembro de 2007
Julio Lopes, Gustavo Pinheiro Machado, Jacó
Passarinho, Tomás Antônio da Costa, Anselmo,
Inácio das Catingueiras, Zé Côco do Riachão, Seu
Manelim, Badia Medeiros, Adauto Pereira, José
de Souza, Roselverte Antonio Pires, Agostinho
Praxédes, Nego da Venança, Bambico, Antônio
Lisboa, Ivanildo Vilanova, Zé Porfírio, Vilmar
Soares da Silva, Antônio Marinho, Mestre
Eugênio, Edisio Calixto, Nilo Pereira, Antônio
Baptista Camargo, Otacílio Batista, Ascendino
Aureliano, José Aires de Mendonça, Toninho da
Viola, Belarmino de França, José Erotides, José
Gaspar, Cesário José de Pontes, Zé de Lelinha,
Mundinho Camarão, José Bernardino de Oliveira,
Antônio Pereira, Manuel Neto de Oliveira,
Chagas Aureliano, Seu Minervino, Jomaci Dantas
Nóbrega, Oliveira de Panelas, Antônio Nunes de
França, Zé Catôta, Gonçalves Rodrigues
Guimarães, Dimas Batista, Vicente Granjeiro,
Gabino, Diniz Viturino, Zé Padre, Domingos
Martins Fonseca, Adão Barbeiro, Elísio Felix da
Costa, Geraldo Amâncio, Expedito Sobrinho,
João Ferreira de Souza, Fabião das Queimadas,
Seu Olegário, Louro Branco, Idimar Turetta,
Geraldo Brito, Gedeão da Viola, Antônio Mota,
Waldemar Barbosa Cordeiro, Gerson Carlos de
Morais, Jonas Pereira Gomes, Jó Patriota,
Ferrolho da Viola, Furiba, Julião, Canção, Anísio
Pereira, João Dessoles Monteiro, João Alves
Batista, João Paraibano, ... e Gustavo Pinheiro
Machado, Renato Andrade, Roberto Corrêa,
Paulo Freire, Ivan Villela e Brás da Viola, entre
um sem fim de outros.
Considerando o seu desenvolvimento, cabe
ressaltar que a viola do século XVI, trazida ao
Brasil pelos portugueses, não só apresenta
características e desenvolvimento análogos ao da
guitarra na Europa, como muito se pensa.
Considera-se hoje a afirmação de que, em
verdade, trata-se do mesmo instrumento, que,
adaptado às diferentes condições locais,
resguarda ainda o mesmo caráter.
Na Europa, as primeiras guitarras, apresentando
Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2002), compositor e violinista nascido na cidade
de Santa Rita do Passa Quatro, em São Paulo. Aluno de Camargo Guarnieri, foi Membro
da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea e o primeiro compositor a escrever
música de concerto para a viola.
70
71
Inclusive reiterando a afinação básica "mi - si - sol - re - la", informada pelos estudos
anteriormente feitos.
42
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corpo com o tradicional formato de oito,
aparecem na Espanha e na Itália durante o período
do Renascimento, no século XVI. Contando com
apenas quatro ordens duplas de cordas de tripa e
caixa de ressonância e braço bem menores do que
os da guitarra atual, o instrumento tinha, por
conseguinte, atuação circunscrita a uma região
média aguda de freqüências sonoras. Em outras
palavras, a típica guitarra do século XVI, era um
instrumento pequeno, de aproximados 69
centímetros de comprimento, e de tessitura
aguda, provavelmente afinado em intervalo de
quarta ou quinta acima do instrumento de hoje.
Alonso Mudarra, em seu já citado "Tres libros de
música en cifras para vihuela", descreve-a como um
instrumento de dez trastes e um bordão na quarta
ordem.
Ainda, a obra de Alonso de Mudarra é a primeira
a conter música escrita para uma guitarra de
quatro ordens, incluindo quatro Fantasias, uma
Pavana e uma Romanesca baseada no conhecido
tema popular espanhol "O guárdame las vacas".
Em fins do século XVI e princípio do XVII, sob
a influência italiana da Escola Florentina, a
música de caráter polifônico vai perdendo espaço
para um novo tipo de produção, de textura
homofônica, mais voltada para o
desenvolvimento da melodia acompanhada. Ao
mesmo tempo, com o surgimento da guitarra de
cinco ordens, em fins do século XVI, a guitarra
de quatro ordens praticamente desaparece, dando
lugar ao novo instrumento, de mais amplo
potencial e maiores recursos técnicos. No entanto,
é praticamente impossível precisar, com os dados
atualmente disponíveis, o que determinou
concretamente a evolução deste instrumento.
Certo é que mudanças sociais e culturais ocorridas
no período determinaram mudanças também nos
gostos musicais da época, demandando, por sua
vez, o surgimento de instrumentos
representativos desses novos gostos, atendendo
a expectativas, inclusive técnicas, estabelecidas.
Diferentemente da guitarra de quatro ordens do
século XVI, sua sucessora de cinco ordens do
século XVII apresentava dimensões mais amplas
de tamanho, em torno de 94 centímetros de
comprimento, guardando semelhança com aquela
Publicada em Novembro de 2007
apenas no que respeita a também utilização de
cordas duplas de tripa. Significa dizer, entre outras,
que o novo instrumento, dotado de um mais
amplo potencial técnico, incluindo caixa de
ressonância mais larga e braço mais longo,
apresentava recursos até então inexistentes em
seu predecessor.
O primeiro registro de música escrita para a
guitarra de cinco ordens encontra-se no já citado
Libro de musica para vihuela, intitulado Orphenica
Lyra, publicado em 1554 por Miguel de Fuenllana,
contendo seis fantasias, bem como duas
transcrições de música vocal da época, sendo um
villancico e uma missa. No referido livro o
instrumento é denominado de vihuela de cinco
ordens.
O primeiro método específico para guitarra de
cinco ordens foi publicado em Barcelona em
159672 por Juan Carlos Amat, intitulado Guitarra
espanõla de cinco órdenes. A utilização do termo
"guitarra espanhola" é assim justificada pelo
autor:
"... El modo de templar y tocar rasgado esta guitarra
de cinco, llamada española por ser más recibida en
esta tierra que en otras."
A partir daí, entre os anos de 1606 e 1714, são
publicados mais de quarenta livros de música
dedicados ao instrumento em diversos países, da
Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha,
dentre outros, formulando uma série de
considerações teóricas e técnicas sobre o
instrumento, bem como apresentando um sem
número de composições originalmente
concebidas por guitarristas como Girolamo
Montesardo, Giovanni Ambrosio Colonna,
Benedeto Sanseverino, Luis Briçeño, Giovanni
Battista Abatessa, Estienne Moulinié, Pietro
Millioni, Tomasso Marchetti, Giovanni Battista
Sfondrino, Francisco Corbetta, Michele
Bartolotti, Nicolao Doizi de Velasco, Antonio
Carbonchi, Carlo Calvi, Giulio Banfi, Anthoine
Carré, Gaspar Sanz, Remy Médard, Lucaz Ruiz
de Ribayas, Giovanni Pietro Ricci, Henry
Grenerin, Antonio di Micheli, Nicola Matteis,
Robert de Visée, Jacob Kremberg, Nicolas
Derosier, Ludovico Roncalli, Francisco Guerau,
A primeira reedição conservada é de 1626.
72
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Publicada em Novembro de 2007
François Campion e Santiago de Murcia.
Paulo, 2000.
A presença da guitarra de cinco ordens se estende
praticamente até o fim do século XVIII, apesar
de já demonstrar entre a aristocracia, desde o
início do século, crescente declínio, sendo
preterida por instrumentos outros tais como a
harpa, a flauta, a viola de arco e, finalmente, o
piano-forte, na música dos salões.
Cavalcanti, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a
vida e a construção da cidade da invasão francesa até a
chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Ainda, tendo em vista o enorme desenvolvimento
técnico e musical alcançado pela guitarra de
cinco ordens, convertida em instrumento solista
de excelência graças aos citados compositores,
considera-se, também, que o nível de
desenvolvimento musical atingido, bem como o
grau de exigências técnicas decorrentes,
contribuiu em muito para o seu desaparecimento,
provocando o surgimento de um instrumento com
mais um par de cordas graves, constituído de mais
amplos recursos e muito mais possibilidades
musicais, tendo sido este o predecessor daquele
que a partir da segunda metade do século XIX
irá se tornar, em sua forma definitiva, o mais
popular dos instrumentos de cordas dedilhadas:
o violão.
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Publicada em Novembro de 2007
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Publicada em Novembro de 2007
Artigo
Introdução ao Registro Documental dos Pregões Cantados da
Tradição Oral no Nordeste do Brasil
Lucyane De Moraes*
Resumo
O presente texto trata dos pregões, uma das formas mais antigas de publicidade e uma das práticas
tradicionais da oralidade que têm resistido aos avanços tecnológicos e às constantes mudanças nas
relações de trabalho das sociedades contemporâneas. Busca-se realçar seu valor como cantos de
trabalho, que são ao mesmo tempo uma forma de produção simbólica e de organização funcional do
trabalho.
Palavras-chave: tradição oral, pregões, publicidade
Abstract
The present text regards pregões (popular oral announcements), one of the most antique forms of
publicity and a traditional practice of orality that has been resistent to technological advances and to
the constant changes in work relations of contemporary societies. We emphasize their value as work
songs, which are a symbolic way of production and of functional organization of work.
Key words: oral tradition, rather, publicity
"Apregoar é para a cidade uma maneira de cantar.
E por tal, arranja estilos, escalas e tons de que
pode recolher uma rapsódia. Há pregões que formam
uma melodia completa"
traduzem hoje em conflitos políticos e sociais
agudos, base de um modelo hegemônico que
ignora amplas camadas da sociedade, ecoando,
conseqüentemente, no ambiente cultural.
Azinhal Abelho.
Sob a ótica destes modelos estabelecidos, os
assuntos que compreendem temas tradicionais,
de caráter cultural, calcados na oralidade, não
encontram mais, em suas formas originais, espaço
nas sociedades capitalistas avançadas, onde a
população é mobilizada a se engajar nas tarefas
necessárias à manutenção de modelos
econômicos e sociais predeterminados, voltados
para o consumo de produtos.
Observando os modelos de desenvolvimento das
sociedades atuais, os processos civilizatórios
modernos e o destino do homem na era das
tecnologias, percebe-se que os elementos da
tradição, como elos de ligação com aspectos mais
profundos da vida cotidiana, têm sido
sistematicamente relegados a planos secundários,
interrompendo variados fluxos contínuos de vida
comunitária.
Assim é que o desenvolvimento histórico das
sociedades modernas tem demonstrado a
existência de contradições internas que se
*Lucyane De Moraes é Filósofa, Historiadora da Arte e Cineasta. Dedica-se, ao ensino
de matérias relacionadas ao cinema, enfocando diversos aspectos da filosofia e das
artes plásticas, considerados como elementos comuns que interagem com a linguagem
cinematográfica. Atualmente se dedica a pesquisa e elaboração de textos sobre cultura
popular e a música da tradição oral, tendo como foco o folclore do nordeste do Brasil.
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De forma diferenciada, manifestações culturais,
mesmo quando ligadas ao mundo do trabalho,
caracterizam-se como atividades que não
fabricam nenhum produto, mas constituem
representações nunca idênticas, significando
práticas vivas, autônomas e independentes, com
um alto grau de funcionalidade das formas,
sempre articuladas estreitamente com os
ambientes sociais, resultando daí o forte sentido
de oralidade tradicional que adquire.
As manifestações de tradição oral, ao contrário
de outros documentos preservados através de
variados recursos de escrita existentes, extinguemse com os seus intérpretes, sobrevivendo somente
na memória dos últimos executantes e
desaparecendo por falta de transmissão, tendo a
sua vitalidade condicionada ao grau de
funcionalidade que a mesma mantêm em seu
determinado contexto econômico e social.
Etimologicamente, tradição, do latim traditio,
compreende em seu sentido geral um processo
complexo de trocas, significando explicitamente
"entrega", "transmissão", "ensino", relacionado
tanto a objetos quanto a pessoas, determinando
modelos singulares de relacionamento entre
grupos sociais, voltados para o estabelecimento
de bases identitárias de natureza coletiva, mas
nunca idênticas.
"Tradição, em sentido restrito, é um termo neutro,
empregado para designar a transmissão, geralmente
oral, por meio da qual modo de atividades, gosto
ou crença são passados de geração para a seguinte,
perpetuando-se dessa forma. (...) O termo enfatiza
noções de continuidade, estabilidade, vulnerabilidade."
(Benecdito Silva: 1986, 1254) 1
Dentre variados exemplos que ilustram as
diversas práticas tradicionais da oralidade, os
aboios e os pregões destacam-se como cantos de
trabalho, através da entoação melódica e da
marcação rítmica, ao mesmo tempo como forma
de produção simbólica e de organização funcional
do trabalho.
E é dentre essas diversas formas de manifestação
ligadas ao mundo do trabalho que a prática de
apregoar publicamente se destaca, desde os mais
idos tempos, como um dos meios mais
expressivos e eficazes de reclamo, divulgando
Publicada em Novembro de 2007
todo tipo de produto, gritado ou cantado,
livremente por vendedores ambulantes. Forma
específica e qualificada de proclamar, de anunciar
a viva voz, de dizer ao público entoando, os
pregões representam ainda hoje uma das mais
tradicionais expressões da criatividade humana.
Considerada uma das formas mais antigas de
publicidade, os pregões cantados da tradição oral
apresentam vocação inequívoca para a narrativa
social, revestidos de caráter estetizante,
resumindo muitas vezes atividades qualificadas
de natureza musical.
Ocorre que o registro da prática singular de
apregoar mercadorias e serviços nos centros
urbanos por profissionais livres, quase não se
encontra presente em fontes documentais
específicas, sendo muito mais objeto esporádico
da observação de cronistas e memorialistas que,
de forma descompromissada, relatam os
costumes e o cotidiano diversificado das
sociedades contemporâneas.
"De todas as manifestações musicais do povo das
cidades o pregão continua até hoje como das menos
estudadas e documentadas, quer na parte da música,
quer na parte das letras."
Ainda assim, os pregões cantados, enquanto
intrincadas formas de comunicação, têm se
mantido vivos na memória de nosso povo graças,
entre outros, aos processos sonoros e semânticos
que asseguram, para além da fruição estética, a
preservação do texto-melodia pela memória,
transmitido exclusivamente por tradição oral,
sobrevivendo aos avanços tecnológicos e às
constantes mudanças nas relações de trabalho das
sociedades contemporâneas.
Historicamente, conhecem-se registros de uso de
pregões desde a Roma antiga, em funções
públicas, sendo os seus protagonistas chamados
"præco", significando o homem que em voz forte
anunciava nas ruas aquilo que deveria ser
conhecido por todos, proclamando em alta voce
notícias, regulamentações, proclamação de
Verbete do Dicionário de Ciências Socias, FGV - MEC.
1
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casamentos, etc., bem como serviços e produtos
a serem comercializados. Citando uma passagem
do "De Divinatione", de Cícero (II, 84), Luis da
Câmara Cascudo,2 escreve:
"... ao embarcar Crasso no porto de Brindisi, para
combater os partas, ouviu-se uma voz gritando Cave
ne eas (cuidado, não vás!) Pareceu a todos uma
misteriosa advertência. Era apenas um vendedor
de figos secos, que apregoava sua mercadoria,
cauneas, pronunciando espaçadamente o
substantivo".
Etimologicamente, o termo pregão, do latim præco,õnis,
apresenta, em um sentido mais amplo, sinonímia com
"núncio", significando aquele responsável pelos
anúncios de guerra e paz, de informar os principais
sucessos nas batalhas, de conduzir mensagens, etc.,
tornando pública uma notícia. Pe. Raphael Bluteau,3
citando Cicero, registra: "Nenhuma guerra, que não foi
apregoada he justa".
À prática de apregoar chamavam sub præconari
subjicere, ou seja, o ofício ou função do præconium,
termo este que corresponde, no português, a
pregoeiro. Tal como entendiam os Romanos pela
palavra præconia, o termo pregão existe em
Portugal desde recuadíssimos tempos. O termo
apresenta ligação com "arauto", sendo este o
oficial das monarquias medievais encarregado de
proclamações solenes. Alexandre Herculano,4
citando as "Chronicas d'elrei D. Fernando", de
Fernão Lopes, informa o seguinte pregão
proferido em público no ano de 1372:
Publicada em Novembro de 2007
Francisco António Correia 5 , em seu livro
"Psicologia dos Negócios", referindo-se aos
primórdios do comércio naquele país, escreve:
"Nas povoações ou nos bairros das grandes cidades,
esses pregoeiros convocavam, ao rufo do tambor ou
ao som da trombeta, a multidão das diferentes
localidades, para lhe anunciar a abertura dos
estabelecimentos, a chegada de mercadorias e a
baixa de preços"
No artigo intitulado Feiras e Mercados, publicado
na Revista de Guimarães, são citadas referências
documentais encontradas nos livros das Câmaras
da vila de Guimarães - Catálogo dos
Pergaminhos, sobre os primeiros nomes de
pregoeiros conhecidos em Portugal no século XIV,
citando Diogo Pires, atuante em 1328 e Castindo
Pregoeiro, em 1343. E complementa:
"(...) nos séculos XIII e XIV já o número de
mercadores era regularmente acrescido na parte alta
do Castelo. (...) O grande núcleo de mercadores,
que pelos fins do século XV e princípios do século
XVI entre nós se desenvolveu, numa progressiva
escala de comércio, descendia em linha directa,
daquelas classes populares mozárabes que depois
do alvorecer da monarquia invadiram todos os
agrupados municipais. (...) Antes da vulgarização
da Imprensa, foram estes anunciadores os primeiros
agentes de publicidade"
Rebelo Bonito, em seu livro "Pregões do Porto6 ",
referindo-se à prática dos pregões em Portugal,
dá as seguintes informações:
"Item: Fernão Vaasques, peom, alfayate, cabeça e
propoedor dos ssusodictos rreveis. (...)
"No século XV, as populações alimentavam-se na
base de peixe, aves, legumes e carnes, predominando,
então, os pratos preparados com açafrão, leite,
mosto, mel, ovos e manteiga. O comércio destes e
doutros géneros levara à criação de feiras; dos pregões
se pode dizer que são tão ou mais antigos que elas."
Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas,
acostado do alcayde moor que ffoy do castelo desta
lyal cidade, capitão dos beesteiros que fforam a Ssam
domingos.(...)
Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom,
jograll de sseu officio, bevedo, assoalhador de pallavras
e dictos devedados, scuita dhos rreveis. (...)
... Justiça que manda fazer elrei em Fernão Vasques,
João Lobeira e Fr. Roy: que morram na forca, sendo
ao primeiro as mãos decepadas em vida. (...)
2
Em "Dicionário do Folclore Brasileiro", 5a edição, publicado em Belo Horizonte em
1984.
Em "Vocabulário Portuguez e Latino", Tomo I.
3
Em "Lendas e Narrativas", tomo I, 13a edição, publicado em Lisboa em 1918.
4
Citado em Revista de Guimarães, no artigo "Curiosidades de Guimarães", n.ºVI Feiras e mercados.
5
"Este pregão, dado a horas mortas e numa praça
deserta, parecia um escarneo.""
6
Pregões do Porto - Separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Vol.
XXVI - FACS, 1-2.
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E ainda:
"Gil Vicente deixou-nos um quadro pitoresco e
animado duma feira em que o Tempo vende não só
piedosos conselhos e remédios contra adversidades
mas também amor e razão, justiça e verdade, temor
a Deus e chaves para entrar no Paraíso. E serve-se
do pregão:
"Quem quer feirar
venha trocar, que eu não hei-de vender;
todas virtudes que houverem mister,
nesta minha tenda as podem achar
a troco de coisas que hão-de trazer!""
Segundo Pe. Bluteau em seu Suplemento ao
Dicionário Portuguez - Latino,7 os pregões mais
usados em Lisboa, no século XVIII, eram os
seguintes, para: Panos; Sardinhas; Velharias; Cal
em Pedra; Favinhas Frescas; Tremoços; Carvão
e Panos de Linho:
"Os pregoens em Lisboa mais ufados faõ os
feguintes: Quem quer hum par de varas de caça,
hum par de varas de Hollanda: Ifto dizem as criadas
das mulheres que vendem huma cefta à cabeça, chea
de panos de Hollanda, Inglaterra, India, &c. Há
fem fal de pofta. He o pregaõ das Regateiras, que
vendem fardinhas, querem dizer que faõ frefcas, e
taõ grandes, que fe pódem fazer poftas bellas. Há
fem fal, como cavalla. Querem dizer, que faõ taõ
grandes como o peixe, a que chamamos Cavalla; ou
querem comparallas com o dito peixe, por terem
femelhança no feitio; mas nunca nomeaõ Sardinhas.
Ferro velho, Eftanho velho, Lataõ para vender,
affamane de prata, Galaõ velho. He o pregaõ dos
que compraõ pela Cidade ferros velhos, &c. Trazem
ordinariamente as capas traçadas à canhota, do
braço efquerdo para o direito. Marcay cal, ou marcay
quel. Dizem as mulheres, que vendem pedra de cal,
para vender, querem dizer, compray cal. As
mulheres, que vendem favinhas frefcas, dizem: Tenho
ruca Sirîa, ou Cirîa. Idos carregando no I. he o
pregaõ das negras, que vendem Tramoços. Biu, ou
Carbiu, era o pregaõ dos que vendiaõ facas de
carvaõ, que traziaõ às coftas. Os que vendem
peneiras de toda a forte, trazem de ordinario vinte,
ou trinta peneiras metidas huma pelas outras em
hum circulo grande, que trazem as coftas, e o final
Publicada em Novembro de 2007
para ferem chamados, he tangerem apreffado hum
pandeiro. Os que vendem pannos de linho, com feu
fardo às coftas fuftentando por hum pao, que he
fua vara de medir dizem, mercay panos medir,
dizem, Mercay panos de linho".
Considerando os muito poucos registros escritos
existentes, entre crônicas, textos jornalísticos e
partituras, é graças aos mecanismos da oralidade
que conhecemos hoje muitos dos pregões que
circulavam outrora pelas ruas da capital
portuguesa, fixando costumes, práticas cotidianas
e certos usos8. Azinhal Abelo descreve as manhãs
da cidade de Lisboa da seguinte forma: "as cores,
os movimentos e os sons, principalmente os
sons". M. Emygdio da Silva, também em Cousas
e Lousas, assim escreve:
"Quem não conhece as escadas da Baixa e do Bairro
Alto, as da Mouraria e de Alfama? (...)
Os vendedores em seu incessante labutar, percorremnas depois, primeiro o padeiro (...); após vem o
leiteiro (...), a peixeira, o homem do petróleo, e a
vendedeira da hortaliça, cuja passagem fica
assinalada por visíveis marcas, que os degraus
conservam indelevelmente e pelos quais, (...) seria
fácil reconstruir o movimento comercial (...)9
Também em ruas portuenses, os pregoeiros
figuravam-se como personagens populares e
queridas de toda gente. Eram os azeiteiros, que
às vezes acumulavam a função como vendedores
de petróleo e vinagre, percorrendo a cidade,
principalmente os bairros populares; os graixas,
que se utilizavam de praças públicas para polirem
e engraxarem os calçados dos passantes; os
amoladores, que ainda há uns tantos, consertavam
porcelanas e unia peças quebradas; as padeiras
que vendiam a inimitável broa de milho,
saborosos biscoitos e tosta azeda; os
castanheiros, assando castanhas num fogareiro
dos carros de mão; o ardina, que apregoava de
forma alegre os jornais das manhãs e fins de tarde;
e tantos outros que se comunicavam através de
Raphael Bluteau. Suplemento ao Dicionário Portuguez - Latino, parte II, págs 152 e 153.
7
"Há pregões de texto silibino, hermético, só acessível aos iniciados nos altos mistérios da prosódia popular. Se ao
passarem outrora pelas ruas de Lisboa ouvissem gritar - E erre! - aquilo queria dizer: Mexilhão! Na cidade de
Elvas as dificuldades subiram ao ponto de ouvir-se: Um há! Há cramé! Há tatarrá! Há tricoé! Aguinha da
cisterna! Impenetrável, não é verdade? Eis a tradução: "Há! Há caramelos! Há como torrão! Há a cinco réis!
Aquinha da cisterna!" (Em Rebelo Bonito. Op. Cit., pág. 9).
8
Em: Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral / Tradicional / Popular,
pág. 246.
9
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seus cantos e vozes fortes. Helder Pacheco, assim
escreve, em Tradições Populares do Porto:
"Os pregões eram ambientes musicais humanizando
sítios e ruas. Eram sons mágicos do quotidiano. E
- ó encanto das sobrevivências, ó inesperada
resistência! - alguns poucos, continuam a ouvir-se,
brandamente, nos lugares onde os motores não
abafam a voz da gente (...) Ah! E o doce, o inefável,
para os nossos ouvidos, pregões musicais de flauta
pânica dos amola-tesouras-e-navalhas (dois ou três)
que ainda têm pernas, coração e esperança, para
calcorrearem, a pé, a cidade (a nova e a antiga).
Pregões! Sons do encantamento; Sons que vêm das
origens, sons do espírito mais profundo da cidade.
Deles deixou Alberto Pimentel (O Porto na
Berlinda) a seguinte evocação oitocentista:
"Os Pregões do Porto não deixam de ter certa
originalidade pitoresca, sobretudo o que diz respeito
à sonoridade das vozes, que nas províncias do Norte
são ordinariamente afinadas (...). No Porto tudo
se faz a horas, de modo que não é preciso que o
pregão previna ninguém. Estão todos a postos,
compradores e vendedores"". (Pacheco: 1991, 51)
A prática dos pregões era tão freqüente em ruas
portuguesas, que existiam leis para regulamentálas. Segundo Ana Paula Guimarães, em seu artigo:
"El-Rei Senhor Dom João / Mandou Deitar um
Pregão", na Coleção Oficial da Legislação
Portuguesa, relativa ao ano de 1850, José Leite
Vasconselos redige o seguinte artigo de número 49:
Apesar disto, já por volta de meados do século
XX, a prática de apregoar dos vendedores
ambulantes vai pouco a pouco desaparecendo em
Portugal, devido, entre outros, aos modernos
recursos de venda engendrados por novas regras
nas relações de comércio formal:
"Nos grandes meios, aquelas normas de governo
criaram uma nova orientação ao comércio,
esclarecendo definitivamente que tempo é dinheiro e
o negócio é em resumo uma simples transação de
permuta, embora a mercadoria passe as mais das
vezes por muitas mãos de intermediários, figuras
pouco simpáticas no concêrto da economia social. (...)
Coimbra e Lisboa são as terras dos mais lindos e
cantarolados pregões, alguns dos quais não deviam
desaparecer" 10
Martinho Nobre Melo, em seu livro "Cesário
Verde", reafirma o desaparecimento dos pregões
na maioria das cidades portuguesas, explicando:
"(...) Os processos do trabalho deixaram de
transmitir-se lentamente pela tradição e por
tentativas empíricas para se efetuarem em ritmo
acelerado pela aplicação da ciência à indústria e o
aperfeiçoamento dos aparelhos técnicos por inventos
científicos, pondo o rendimento e a economia das
forças de trabalho ao serviço da fabricação e da
tração."11
E sobre a questão, Eurico Gama, em seu livro
"Pregões de Elvas"12, escreve em tom poético:
"O tempo tudo apaga, tudo esquece e quando ele é
da natureza daquele que atravessamos mandam a
consciência e o coração que resguardemos de qualquer
forma o que de bom, de curioso e de elevado de outras
eras ainda nos resta. O progresso e a civilização de
mãos dadas têm ceifado pertinazmente os adoráveis
costumes de nossos avós (...)."
Artº 49º "Dos pregoeiros, vendedores ou
distribuidores"
Os pregoeiros, vendedores, e distribuidores, poderão
apregoar, vender, ou distribuir qualquer impresso
não prohibido; e nunca apregoarão de noite, nem
outra cousa mais que o título impresso. A infracção
em qualquer desses dois casos será punida com a
multa de cinco mil a cincoenta mil réis; e no de
insolvencia com a prisão equivalente, sem prejuízo
das mais penas a que possa estar sujeito o impresso,
segundo as disposições desta Lei.
§ único. O Governo, quando assim o exigir a
segurança pública, poderá prohibir o pregão, ou
publicação pelas ruas, de todo e qualquer impresso".
Publicada em Novembro de 2007
Abonando seu discurso, que ele próprio considera
como "curto e talvez impertinente", Eurico Gama
se utiliza das palavras do Prof. Armando de
Lucena: "Seria impróprio de pessoas cultas a
condenação do progresso, mas é perfeitamente
10
Em Revista de Guimarães, no artigo "Curiosidades de Guimarães", N.º VI - Feiras e
mercados.
Em: Melo, Martinho Nobre. Césario Verde. 3ªedição. Rio de Janeiro, 1975.
11
Separata da Revista 'Ocidente'. Edição Álvaro Pinto - Lisboa, 1954.
12
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explicável o esforço ou o desejo de não ser
totalmente perdido o sabor da vida e das
actividades regionais de qualquer quadrante da
terra portuguesa". Se utiliza, ainda, da seguinte e
"admirável" frase do Mestre Antonio Sardinha:
"A TRADIÇÃO VALE, SOBRETUDO,
COMO
PERMANÊNCIA
NA
CONTINUIDADE"
No Brasil, a prática de apregoar mercadorias surge
com a cultura portuguesa e seus primeiros
registros são de meados do século XIX.. Criação
reconhecidamente ligada aos vendedores
ambulantes, a prática de anunciar e vender
produtos surge nos principais centros urbanos do
país à época: Rio de Janeiro, Recife e Salvador.
Atualmente não se conhecem registros anteriores
dessa prática até o início da colonização, tendo
em vista, para tal, a necessidade de um nível de
desenvolvimento das cidades que justificasse uma
atividade regular de trocas.
No século XIX, a atividade ambulante no Brasil
era uma das poucas soluções encontradas por
negros alforriados ou recém libertos, sobretudo
os não alfabetizados, que não conseguiam
ocupação em termos de mercado de trabalho. Por
outro lado, no período escravagista encontramse relatos de cronistas e viajantes referindo-se aos
negros de ganho, escravos que mercavam
produtos e prestavam serviços para incrementar
o orçamento de seus senhores.
Relatos de sociólogos e historiadores revelam que
ainda no século XX eram os negros que,
principalmente por sua condição social, exerciam
a função de ambulantes, pois encontravam seu
sustento nessa forma de trabalho. Sabe-se, no
entanto, que não só os negros exerciam esse
ofício, existindo registros, sobretudo, de
estrangeiros que exerciam essa prática, inclusive
apregoando. Conseqüentemente, ainda hoje a
prática dos pregões está associada à economia
informal, prática esta diretamente ligada à
questão da escassez de ocupação formal,
transformando uma totalidade de trabalhadores
em vendedores de rua.
Considerando que os pregões cantados de
tradição oral ainda se fazem presentes em algumas
localidades do Brasil, alimentados e reforçados
Publicada em Novembro de 2007
pelo imaginário popular, sem sofrer alterações
estruturais ou funcionais significativas, e que,
adaptando-se às novas condições de vida das
sociedades, adquiriram novas nuances em nosso
país, necessário se faz contribuir para o registro
dessas fontes em seus vários contextos de atuação,
resguardados em suas formas mais tradicionais.
Silvio Romero, em seu livro "Cantos Populares
do Brasil", assim escreve:
"Aí se exerce uma força verdadeiramente prodigiosa
e os cantos inspirados por motivos de ocasião e
sempre com vivíssima cor local, ou varrem-se para
sempre da memória, ou decorados e transformados,
segundo o ensejo, vão passando de boca em boca, e
constituindo esta abundante corrente de cantos líricos
que esvoaçam por toda extensão do Brasil."
Os pregões cantados são, sem dúvida, uma das
representações populares mais marcantes da
herança lusitana. Em ruas brasileiras há pregões
melodicamente tão expressivos que encantam
toda a gente. São sons peculiares. Vozes fortes
que invadem casas e carros, caracterizando
lugares e épocas. São ditos alegres, jocosos, às
vezes até irônicos, dirigidos aos seus fregueses,
destinados para atraí-los. Em 1936, Álvaro
Moreira , em seu texto, faz deliciosos convites a
reviver lembranças de outrora:
"Os guerreiros das tabas sagradas, os portugueses
descobridores, os pretos trazidos da África, e muitos
outros turistas fizeram uma raça nesta terra do sol,
das montanhas e do mar. A nossa raça do Brasil.
Ela anda nas mulheres bonitas, nos homens ágeis,
na poesia que fala como se fosse música, na música,
que é poesia desfolhada…
Todas as manhãs e de tarde e de noite, a raça
brasileira passa pela minha porta na voz dos pregões
cariocas, os pregões cariocas que escrevem no ar o
poema da cidade".
Considerando que o contexto sócio-econômico,
principalmente da região nordeste do Brasil,
apresenta ainda hoje características que em parte
possibilitam a convivência simultânea de
processos informais de relações de troca com
outros mais de natureza determinada, é possível
identificar a permanência de formas singulares de
mercancia que valorizam relacionamentos com
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um certo nível de especificidade, calcado no
contato meramente pessoal.
Esse processo de relacionamento qualificado,
fruto de condições sócio-econômicas específicas
e da divisão social do trabalho naquela localidade,
tem determinado a persistência de modelos de
relação que propiciam o desenvolvimento de
atividades funcionais eivadas de características
lúdicas, deixando transparecer a natureza criativa
do homem comum, anônimo, que faz de seu meio
de subsistência um ato criador. É nesse contexto
que a prática dos pregões cantados encontra
formas contemporâneas de se fazer presente nos
dias de hoje, aferindo, ainda, um caráter efetivo
de funcionalidade.
Considerando que os pregões cantados 13
apresentam notável persistência, sobretudo, no
nordeste do Brasil, importante é examinar tal fato
sob o aspecto das circunstâncias de produção/
recepção dos textos melódico-literários, vistos
como formas qualificadas de comunicação em
contextos diversos.
É curioso notar a presença de mercadores
ambulantes cantadores de pregões ainda hoje em
atividade, sobretudo nas grandes capitais do
nordeste do Brasil, principalmente se
considerarmos os aspectos funcionais ligados à
demandas mercadológicas, bem como as formas
de expressão e representações de fragmentos
poético-musicais originados da função social dos
vendedores ambulantes no trabalho de apregoar
e vender suas mercadorias:14
1. Picolé
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Nos grandes centros urbanos do nordeste, ainda
é corriqueira a prática de ambulantes que cantam
vendendo mercadorias como jornal, cestos,
vassouras, abanos, facas, espanadores, regadores,
bacias, esteiras, colher de pau; e produtos
comestíveis tais como rapadura, beiju, taboca,
picolés, amendoim torrado, jaca mole, castanha
assada, rolete de cana, peixes, leite e queijos, doce
de caju, camarão no espeto, pães doces, lelê, broa
de milho, mingau de tapioca, mungunzá, etc.
Dentre os vários exemplos de pregões cantados
nas ruas do Brasil, destacamos alguns, inclusive
de notável permanência da influência
portuguesa15:
"Pamonhas! Pamonhas quentinhas e docinhas,
freguesa!
É o carro da pamonha que está na sua rua…
Pamoooonhas, com leite, coco e açúcar…"16
"Oh, freguesa!
Tem picolé, seu José.
É de juçara, dona Januária,
É de murici, dona Lili,
É de abacaxi, seu Gigi,
É de coco, seu Tinoco,
É de caju, dona Juju,
13
"O pregão, quando musical [porque também os há simplesmente gritados], conta
duma parte melódica e um pequeno texto prosódico". (Em: Bonito, Rebelo. Op. Cit.,
Pág. 7).
14
"A culinária baiana tem um aspecto curioso: não se restringe ao santuário doméstico
da sala de jantar. Vem para as ruas, para as praças para as esquinas nos tabuleiros, tão
bem ornamentados das baianas. E é acompanhada pelos pregões musicais que são
simpáticos convites para experimentá-la:
Acarajé...
tá quentinho tá
2. Vassoura
ô abara
mingau de Carimã...
É a melodia do paladar, tão expressiva que já desperta em quem ouve um princípio
agradável de sabor". (Em: Joaquim Ribeiro. Folclore Baiano. MINC - Serviço de
documentação, Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro 1956. p. 38)
3. Salada de Frutas e Sanduíches
15
"O vassoureiro é clássico no Rio, percorrendo todos os recantos; são empregados das
fábricas e, raramente, vendem por conta própria. É tipo curioso como bazar ambulante
de vassouras, espanadores, escovas, vasculhos, cestas e cadeiras de vime. São todos os
vendedores de origem portuguesa, e passam anunciando: "bassoiras, espainadores,
cadeiras de bime", e assim vão com a sua "funetica" vivendo e vendendo as suas
mercadorias." (Em: Corrêa, Magalhães. O Sertão Carioca. 1936)
16
Recolhido por Álvaro Moreira, poeta, cronista e jornalista brasileiro. Nasceu em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1888 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em
1964.
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É de maracujá, dona Sinhá,
Compra aqui do Jorge,
É um suplício, seu Simplício,
Que você fica bonita".21
É um coquinho, seu Agostinho,
"Cheiro cheiroso!
É um tremendão, seu Brandão!"17
Cheiro cheiroso!
"Batata doce
É do bom e do melhor
Tá quentinha,
Pro banho de São João!"22
Ó! Que beleza
De sobremesa
"Pinhão quente!
Dona Teresa
Quem não come fica doente!"23
Traz a bandeja
E leva a sobremesa
"Na esquina do Rosário
Que beleza.
Quer de noite, quer de dia
Olha a batata doce
Há sorvete de patente
Depressa dona Maria,
Feito por engenharia"24
Traga a bacia
"Eu tenho ostras
Senão esfria".18
Tenho ostras
"Soberano, gargalhada,
Chegada agora…
Biscoito fino, bananada…
Chegada agora…"25
Ninguém me chama,
Vou-m'imbora!
"Ei, mugunzá
Daqui a pouco não tem mais nada!
Tá quentinho o mugunzá
Soberanô!"19
Istá bom, ispiciá"26
"Olha o duceiro,
Olha o duceiro,
Olha o duceiro,
Perticular…."20
17
Raimundo Correia recolheu esse pregão do sorveteiro Luís Almeida, em São Luís do
Maranhão.
18
Recolhido de um vendedor de batata doce do bairro de Vila Mariana, São Paulo, SP,
em 1948.
Recolhido por de Álvaro Moreira, 1936.
19
Ibidem.
20
Pregão de um mascate da Rua José Paulino, em São Paulo, do ano de 1948.
21
Pregão dos vendedores de banhos-de-cheiros em Belém, Pará.
22
"Fita, renda e botão,
Recolhido por Waldemar Inglésias Fernandes, em Lendas e crendices de Piracicaba
e outros estudos.
Renda, botão e fita,
24
Recolhido por Mário Sette, em Maxambombas e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro,
Casa do Estudante Brasileiro, 1958.
23
Ibidem.
25
Ibidem.
26
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"Lá vem o cuscuzeiro
Bassoura, abano
Cuscuz!
Arupemba, raspa-coco"32
Cuscuz de milho!"27
"Ei bolinha de cambará
"É doce, é doce
Dois pacotes é um tostão"33
O abacaxi
É doce, é doce
"Ah é... o pirulito
E é barato"28
Enfiado num palito
Chupa pobre, chupa rico
"Banana prata,
Chupa eu que também grito"34
Maçã, madurinha
Sapoti, sapota
"Ôie o rolete de cana,
Manga-rosa
De cana caiana
Manga-espada
Ôie o rolete..."35
Sapatinho Tamaracá"29
"Pão doce, dez tões
"Oiti da praia
Dez tões, tá chegando quentinho...
Oito coró
Olha aqui o novinho...
Jacaiu cajá
Dez tões, chega tá se derretendo"36
Jaca-mole
Jaca-dura"30
"Tapioca na minha mão é melhor,
porque é a legítima do sertão.
"Pamonha de milho verde
Olha aí que beleza,
Milho cozido
pode chegar e pedir, freguesa."37
Ei pamonha"
Ibidem.
27
"Ô marcela pra trabisseiro
Lã de barriguda
Ei marcela"31
Ibidem.
28
Ibidem.
29
Ibidem.
30
Ibidem.
31
Ibidem.
32
Retirado de Poemas duma vida simples. Em: Carneiro, Edison. "Antologia do Negro
Brasileiro".
33
"Lá se vai o home da bassoura
Retirado de A Gazeta. Vitória, 8 de março de 1959.
34
Lá se vai ele…
O home da bassoura
Ibidem.
35
Retirado de Téo Brandão. Em Boletim trimestral da Comissão Catarinense de Folclore.
36
Ibidem.
37
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"Compre banana vendida por mim
Vai guri, vai chamar o papai, gugu
quem dela comprar jamais será ruim!
que o puxa-puxa tá no meu baú!"44
Olha a melancia..,
quem comprar só tem alegria"38.
"Peixe: Olha o peixinho!
Só compra quem tiver dinheiro.
"Olha o doce da dona Maria, esse é garantido...
Quem não tiver não sente nem o cheiro!"45
Não dá dor de barriga e nem dor de bexiga..."39
"Quem quer a tabuada
"Olha o amendoim torrado
Tem de dividir dez dividido por dois é a cinco
a alegria dos namorados!"40
Cinco vez duas, dez, para dez nada
Quem quer a tabuada?"46
"Olha o cheiro cheiroso
para lavar catingoso!"41
"Rolete de cana caiana
Manga de Itamaracá
"Olha a melancia dona Maria
São os melhores que há"47
panela no fogo, barriga vazia!
Olha o chuchu, dona Teresa,
"Ôôôô... Pula-pula, é bem, é bem pulado...
que está uma beleza"42
Paçoca, pipoca, amendoim torrado".48
"Moças bonitas
Referências Bibliográficas
senhoras bacanas
Andrade, Mário - Aspectos da Música Brasileira. Vila
Rica, 1991.
venham aqui
comprar suas bananas!"43
Bandeira, Manuel - Poesias Completas. Casa do
estudante do Brasil, 1551.
"Lá vou eu de baú
vou vender puxa-puxa
vou por aí...
Lá vou eu, vou vender puxa-puxa
quem quiser puxa-puxa
puxa-puxa o dinheiro, já tô aí...
Vai guri, vai chamar a mamãe, guri
que o puxa-puxa te espera aqui...
Ibdem.
38
Ibdem.
39
Ibdem.
40
Ibdem.
41
Ibdem.
42
Ibdem.
43
Ibdem.
44
Retirado de "Folclore fluminense", p.201-202.
45
Ibdem.
46
Retirado de "Do jeito mais simples; crianças pesquisam cultura popular". Rio de
Janeiro, 1979. vol.2.
47
48
Retirado de Contin, Adi Lizzi. "O pregão do pula-pula". Correio Paulistano. São
Paulo, 1950.
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ISSN: 1808-6535
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_____________ Dicionário do Folclore Brasileiro.
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Reportagem
Pelo Circo e Artesanato Tradicionais
Cia. circense de Águas Lindas de Goiás valoriza tradição, apesar das
dificuldades
Bruno Rezende*
"Tombei, tombei, tornei tombar/ a brincadeira
já vai começar". Em coro, o palhaço Mangaba e
os integrantes da Companhia de Circo Boa
Vontade chamam, e o público responde. E assim
começam os espetáculos da companhia desde que
foi criada, em 2004, como conta José Carlos do
Nascimento, que dá vida ao palhaço e é um dos
responsáveis pelo circo, situado no município de
Águas Lindas de Goiás, a cerca de 40 quilômetros
de Brasília. Filho de José André dos Santos, o
Mestre Zezito (falecido em 2006), José Carlos,
de 36 anos, ressalta a importância da tradição
transmitida por seu pai. Mas também as
dificuldades de se levar adiante a arte que
começou a aprender com ele ainda criança.
Como o próprio Mestre Zezito, José Carlos nasceu
e foi criado na cidade de Juazeiro do Norte, no
Estado do Ceará. Começou a trabalhar muito
cedo (aos oito anos de idade), e não teve
oportunidade de seguir com o ensino
fundamental. Mas logo resolveu trocar os ofícios
de pintor de paredes, pedreiro, eletricista e
carpinteiro pelas artes circenses e pelo artesanato
tradicional. Ensinado e incentivado por seu pai,
passou a praticar e desenvolver, além da
construção de brinquedos artesanais, números de
mágica, equilíbrio em pernas de pau e em
monociclo, e cenas e cantigas de palhaço, dentre
outras das mais diversas atividades circenses e
artesanais - algumas criadas por seu pai; todas
apresentadas e transmitidas por este ao longo de
seus 47 anos de carreira. Além disso,
acompanhou de perto o palhaço Pilombeta
(Mestre Zezito) para, mais tarde, criar e dar vida
ao palhaço Mangaba.
circense ainda cedo (desde os três anos). Ele
afirma que apenas ele próprio e o já falecido
Rafael (um irmão mais novo) escolheram seguir
os passos do pai. Outros irmãos não teriam
seguido por diversos motivos, como a falta de
interesse pelo circo e possibilidades de maior
retorno financeiro em outros ofícios. Mas José
Carlos afirma que a principal causa foi a falta de
vocação: "é vocação mesmo; não têm vocação
para o circo. Alguns queriam, inclusive, mas
chegava na hora do espetáculo não entravam nem
em cena. Ficavam com vergonha".
Longe de se arrepender da escolha que fez, ele
diz não trocar os ofícios circenses e artesanais
pelos antigos ofícios, mesmo considerando que
sua renda seria maior: "é uma escolha que eu faria
de qualquer forma. Se eu estivesse hoje
trabalhando de pintor, meu dinheiro seria muito
maior. Ganharia mais ou menos R$ 5 mil por mês.
Sempre gostei do circo. Não tenho vocação para
outra coisa. Só para o circo mesmo". E
complementa: "daria para trocar de carro todo ano".
José Carlos reitera que gosta do que faz. Ele
garante: "a gente trabalha brincando, divertindo
crianças de cinco a 105 anos". Seja nas
apresentações da Companhia de Circo Boa
Vontade (a companhia se apresenta em diversos
locais, como no Parque da Cidade, em Brasília,
ou em praças públicas, em municípios do Distrito
Federal e no interior de Goiás), seja nos
treinamentos para andar em pernas de pau e nas
oficinas de construção de brinquedos (oferecidos
quase sempre para público infanto-juvenil).
*Jornalista.
Como muitos de seus 42 irmãos (alguns também
filhos do Mestre Zezito com Francisca do
Nascimento), José Carlos foi levado ao ambiente
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Por outro lado, ele se queixa de oportunistas, da
falta de reconhecimento e respeito, e dos
conseqüentes cachês reduzidos e baixas
remunerações por oficinas e por treinamentos.
Segundo José Carlos, das propostas de trabalho
que recebe, muitas oferecem valores abaixo da
faixa que vai de R$ 400 a R$ 1 mil (margem que
considera razoável para cachês e remunerações),
e não prevêem custos com alimentação e
transporte. Ele também afirma que muitos
contratantes atrasam os pagamentos (alguns
sequer "dão satisfação"). E reclama, ainda, da
falta de reconhecimento, principalmente em
referência a oportunistas que, segundo ele, foram
aprendizes de seu pai ou conhecem sua obra, mas
não atribuem autoria ou importância ao mestre.
As grandes dificuldades de José Carlos e da
Companhia de Circo Boa Vontade mostram
problemas e controvérsias enfrentados por muitos
artistas, e empecilhos para que a arte se torne
efetivo meio de vida e de inclusão social. Aluízio
Augusto Carvalho também foi aprendiz do Mestre
Zezito, embora não seja seu filho (segundo
Aluízio, não era necessário ser da família para
ser um dos muitos aprendizes do mestre). Além
de integrar a Companhia de Circo Boa Vontade,
ele exerce atividades circenses por conta própria
(dando vida ao palhaço Ximbica e em outros
ofícios). Aos 33 anos, com 12 de carreira, Aluízio
confirma os problemas e as dificuldades
mencionados por José Carlos. E vai além: "eu
acredito que a grande dificuldade, hoje, seja as
pessoas confundirem arte com mercado. A classe
média se apropria de um discurso, mas a maioria
das pessoas não tem a vivência, e coloca como
se fosse um produto. E mais do que um produto,
um espetáculo, uma 'brincadeira' ou um
brinquedo que é feito, por exemplo, é a expressão
daquele artista. Essa visão é que as pessoas
perderam e, hoje em dia, não dão o valor devido".
Publicada em Novembro de 2007
Luan, de cinco anos, é o filho mais novo de
Aluízio. Ele já anda em pernas de pau e 'brinca'
caracterizado como o palhaço Curumim.
"O Luan tem grandes possibilidades de ser um
grande artista, porque ele está começando muito
cedo, ao contrário de mim. Quando ele está
comigo, ele me pede para 'brincar', já me pediu outro
par de pernas de pau... Mas como opção profissional,
só mesmo o tempo vai dizer", avalia Aluízio.
Francicarla, Franciele e Francilaine (17, 11 e dez
anos, respectivamente) são filhas de José Carlos e
já se apresentam com a companhia. Além delas, José
Carlos possui mais dois filhos. Ele percebe e
compreende que nem todos seguirão seus passos,
seja por falta de interesse, seja por falta de vocação.
Alguns já se inclinam para outros caminhos, inclusive
com a oportunidade de seguir exclusivamente com
os estudos regulares e outra profissão.
Por outro lado, José Carlos cita o exemplo de
Franciele. Segundo ele, além de Franciele gostar
muito do circo, ela tem muito talento: "acho que
ela decide ficar no circo, porque o que aquela
menina já faz… ela está com 11 anos, e o que ela
faz eu com 11 anos não fazia. É a única mesmo
que eu acho que não vai querer outra coisa, a
não ser a vida do circo".
Mestre Zezito e parte da família foram para Águas
Lindas de Goiás em 1992. Hoje, José Carlos, sua
família e a Companhia de Circo Boa Vontade
estão alocados no Ninho dos Artistas, um local
de encontros e produções artísticas do município.
Aluízio, José Carlos e outros integrantes da
companhia reúnem características de artistas e
artesãos pouco comuns nos dias atuais, buscando
levar adiante não só a tradição artística do circo,
mas também a tradição da arte em família,
transmitida através de gerações, com o objetivo
de perpetuar e fazer reconhecer, inclusive, o
nome e a obra do Mestre Zezito.
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Sugestões
Para Assistir
DVD SARAVAH - Pierre Barouh, 1969
Este documentário pode ser acessado
diretamente do Porta-Curtas Petrobrás:
Distribuído pela Biscoito Fino (2005)
Curtas Documentário: Partido Alto
Sinopse:
Com raízes na batucada baiana, o partido alto
sofre variações porque, ao contrário do samba
comprometido com o espetáculo, é uma forma
livre de expressão e comunicação imediata, com
versos simples e improvisados, de acordo com a
impiração de cada um. Partido Alto é uma forma
de comunhão, reunido sambistas em qualquer
lugar e hora pelo simples prazer de se diverti.
Sinopse:
No mês de fevereiro de 1969 o diretor de cinema
francês Pierre Barouch desembarca no Rio de
Janeiro disposto a registrar em película momentos
de uma música que, embora conhecesse pouco,
o fascinava intensamente. O olhar do estrangeiro
aberto para a música brasileira, capturou imagens
que durante 36 anos permaneceram
desconhecidas no nosso país.
O DVD "Saravah" é o resultado das sessões de
filmagem de Barouh com gigantes como
Pixinguinha e João da Baiana, então octagenários
e os jovens Maria Bethânia (aos 21 anos) e
Paulinho da Viola, tendo Baden Powell como elo
de ligação entre gerações tão distantes e
fundamentais da arte brasileira. São imagens
imperdíveis!
ASSISTA: http://www.portacurtas.com.br/
filme_abre_pop.asp?cod=4751&Exib=2573
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