- LTDS
Transcrição
- LTDS
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 1 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Editorial Patrimônios Comunitários Brasileiros Roberto Bartholo Elizabeth Tunes As diversas manifestações da cultura popular são formas autônomas de iniciativas sociais. As manifestações da cultura popular guardam importantes patrimônios históricos e artísticos. Contemporaneamente, muito se tem falado do patrimônio imaterial que as culturas populares representam. Inúmeras iniciativas visam à sua proteção sob o argumento da manutenção de "patrimônios imateriais". Esse conjunto de artigos da Revista GIS, além de apontar para os patrimônios históricos, artísticos e imaterias que as culturas populares representam, atenta para seu papel na salvaguarda dos patrimônios relacionais. As manifestações da cultura popular - rodas de capoeira, de samba, de viola, os teatros de rua, as festas e tantos outros folguedos - são ambiente de encontro de pessoas, de criação de vínculos, de alcance da plenitude que os papéis sociais dados a nós em nossa moderna civilização não são capazes de nos propiciar. Nos ambientes dialógicos e comunitários, fundados na cultura popular, exercemos virtudes éticas e tornamo-nos pessoas melhores. Os artigos mostram que a beleza artística dessas manifestações, embora impressionantes, nunca poderiam desvincular-se do ambiente relacional que lhes dá sentido. E observamos que, a cada dia, amplia-se a tendência de conversão dessas ricas manifestações em meros espetáculos a serem consumidos como mercadorias fúteis. Esse número da Revista GIS procura, por meio dos artigos, alertar para o risco inerente a esse processo. A proposição fundamental da antropologia filosófica de Martin Buber (Bartholo, 2001) pode vir a nosso auxílio ao confrontarmos essa questão. Ela nos afirma que antes de ser um ente político ou econômico o ser humano é um ser relacional. As formas políticas e econômicas correspondem a padrões historicamente construídos de institucionalização. Percebida desde essa perspectiva, como bem aponta Hassan Zaoual (2003): "... a pobreza é irredutível a uma simples insuficiência de renda. Todo o contexto da pessoa deve ser tomado em consideração, em particular sua capacidade de ser livre de mudar, de agir sobre a situação, de participar da vida social etc. Os espaços da desigualdade são, então, múltiplos e interativos; utilidades, bens de primeira necessidade, renda, liberdade, entre outros. Todos esses espaços nem sempre estão adequadamente relacionados uns com os outros. Ao se dar privilégio a um deles, pode-se produzir efeitos contrários sobre os outros". Nos contextos situacionais concretos somos chamados a responder a apelos diversos. E a dimensão ética da resposta é a responsabilidade. Responsabilidade situada, isto é, concreta, pessoal e rigorosamente intransferível. Não apenas a retórica de uma responsabilização formal. E nesse ponto podemos retomar o compromisso de Dom Hélder (Câmara, 1987: 129): "... lutar por meios pacíficos, mas corajosos, contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não basta socorrer as vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa inaceitável infelicidade". 2ii Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Informações básicas A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de periodicidade quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ). Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências nesse campo. Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas críticas. Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line, explorando as possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o recurso do hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação complementar disponíveis na web. O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas e referências. Copyright Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião da redação. Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a sua fonte. iii3 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 CORPO EDITORIAL Publicada em Novembro de 2007 Expediente Editor responsável Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/UFRJ e Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social Comitê editorial Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ Conselho Editorial Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina Organização e redação Elizabeth Tunes (Coordenação Geral) Gabriela Tunes da Silva Tereza Hamendani Mudado Maria Carmen Villela Rosa Tacca Secretaria Maria Joselina de Barros Concepção do projeto gráfico Ivan Bursztyn Webdesign Marise Carpenter Elias iv 4 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Sumário Resenha Crítica Roberto M. Moura, “No princípio, era a roda: um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes” MOURA, Roberto M. - Por Tereza Harmendani Mudado ....................................................................06 Artigos Sobre possibilidades de exercício da ética inter-humana no jogo da capoeira Gabriela Tunes da Silva..........................................................................................................................09 Achegas para a história da viola no Brasil Wagner Campos.......................................................................................................................................21 Introdução ao Registro Documental dos Pregões Cantados da Tradição Oral no Nordeste do Brasil Lucyane de Moraes ..............................................................................................................................46 Reportagem Pelo Circo e Artesanato Tradicionais Bruno Rezende....................................................................................................................................57 Sugestões Para Assistir ........................................................................................................................................59 5vii Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Resenha Crítica Roberto M. Moura “No princípio, era a roda: um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes”. Rocco, São Paulo, 2004 MOURA, Roberto M. Tereza Harmendani Mudado* Roberto M. Moura foi escritor, jornalista, produtor e diretor de espetáculos, professor e crítico musical. Morreu aos 58 anos em outubro de 2005, no Rio de Janeiro, de falência múltipla dos órgãos. Roberto M. Moura trabalhou no semanário O Pasquim, nas revistas Veja Isto é, e Rio, Samba e Carnaval e também fazia parte do júri do Estandarte de Ouro concedido pelo jornal O Globo aos destaques dos desfiles das Escolas de Samba no Rio; à época de sua morte era comentarista da TVE e colunista do jornal Tribuna da Imprensa. Grande estudioso de samba e comunicação, assuntos sobre os quais fazia conferências no Brasil e no exterior, deixou vários livros publicados, entre eles o autobiográfico Praça Onze - no meio do caminho tinha as meninas do mangue (Relume-Dumará,1999); Carnaval - da redentora à praça do Apocalipse (Jorge Zahar,1986); Sobre cultura e mídia (Irmãos Vitale, 2002); MPB - caminhos da arte brasileira mais reconhecida no mundo (Irmãos Vitale, 1998), e No princípio, era a roda, publicado pela Rocco, 2004 No Princípio era a Roda: um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes é uma obra genial que atende a músicos profissionais e amadores, amantes do samba e do choro, antropólogos sociais e pessoas interessadas em conhecer um pouco mais da história do Rio de Janeiro no início do século XX. Nesse livro, Roberto Moura resgata magistralmente um momento inaugural do cenário musical brasileiro, as 'rodas de samba' refazendo a história do samba de 'fundo de quintal', o surgimento das Escolas de Samba e o resgate renovado da tradição da roda nos dias atuais. Mesmo sendo baseado em sua tese de doutorado em Música na UniRio, o estilo informal que ele adota denuncia a intimidade do autor com o samba e o testemunho dessas transformações, partilhando com o leitor suas lembranças pessoais e resgatando depoimentos das pessoas que viveram naquele momento e preservaram em sua memória informações que são ou foram transmitidas por uma tradição oral. Analisando as funções sociais da roda, o autor compara-a com os meios de comunicação, porém, ao contrário do caráter obrigatoriamente industrial desses meios, a roda é sempre artesanal. Mais que a questão estilística, para ele, o samba expressa um "fato social total" (p. 51) expressão cultural de uma comunidade e a roda é o "... elemento fundamental na geração, preservação e divulgação do gênero musical que mais identifica o nosso país entre todos os que são originários do Brasil" (p. 29). A roda precede o samba e é a sua matriz física (p. 31). Caracterizada por ter simultaneamente dimensões religiosas, econômicas, políticas, morais, estéticas e ideológicas, a roda é apresentada como o evento inaugural desse fato social, mas não só, a "roda" é um espaço de encontro único e irrepetível que só se deixa conhecer pelos que a presenciaram e que exerce uma função social que extrapola os limites do tempo. A primeira menção à "dança excumungada" data de 1880, segundo Jota Efegê mas o lundu já era mencionado no romance "As mulheres de mantilha" de Joaquim Manuel de Macedo, que se passa por volta de 1770 (p. 50). Como em qualquer ritual, a roda preserva e atualiza o que está na sua origem sendo o batuque ou a batucada a chave desse entendimento. Tereza Harmendani Mudado é psicóloga, mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em Educação, na Universidade de Brasília. Atualmente, integra a equipe de pesquisadores do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ. * 6 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 A "roda" é antes de tudo um evento festivo de caráter plural, familiar, um espaço mítico resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia; a roda de samba instaura no sambista a ilusão da eternidade. (p. 23) É um espaço onde o que é intimo se mistura e se confunde com o que é coletivo. Música, comida, bebida e alegria, um conjunto de relações em que se instaura um processo de interação (comunicação) não-verbal entre as pessoas ligadas por afinidades existenciais muito claras. A roda é o meio e o lugar dessa troca social, de expressão de opiniões, fantasias e frustrações, de continuidade de uma fala (negra) que resiste à expropriação cultural. O samba, assim como a roda de capoeira são apresentados como guetos de resistência e afirmação cultural, sempre artesanal e selvagem com relação à ideologia produtiva dominante (p. 54 e 55) onde o embate se dá através da dança e da música. Ao longo dos anos, essa música original vai mudar; os instrumentos também. O que vai permanecer é a roda. O autor se pergunta como pôde essa "nova forma de convivência" evoluir para a Escola de Samba? Para responder a essa pergunta o autor adota dois eixos de análise: o diacrônico, que vê a roda através dos tempos, e o sincrônico, que contextualiza cada momento do samba com as variáveis políticas e sociais. A atividade dos bambas do Estácio, em direção à gravação do primeiro disco e de Paulo da Portela em direção da mídia e da institucionalização do desfile com sua conseqüente aceitação do samba pelas autoridades, impõe essa visão dupla. A roda de samba é encontrada sempre em três interseções diferentes: no limite entre o sambista e o simpatizante, na fronteira que separa cada vez mais abertamente o samba da escola e, finalmente, no fio de navalha que separa o autor do mercado. Como farol de leitura dessa realidade, o autor adota as categorias sociológicas "casa" e "rua" elaboradas pelo antropólogo Roberto DaMatta, palavras que expressam mais que simples espaços geográficos ou coisas físicas comensuráveis, designam antes "...domínios culturais institucionais e províncias éticas brasileiras, capazes de despertar emoções Publicada em Novembro de 2007 e reações, música e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas." (p.29) Assim, na casa/roda, "as leituras ressaltam a pessoa" e ser um artista de sucesso não garante qualquer respeitabilidade, o que importa é o que ele for capaz de fazer ali. A hierarquia da roda é baseada na experiência e história pessoal de cada sambista, cujo código de ética é "fundado na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio." (DaMatta) O que faz com que ser do mundo do samba seja quase uma escolha filosófica (p. 67). Já na escola/rua, há uma ênfase no "indivíduo" adotando discursos mais rígidos e instauradores de novos processos sociais e econômicos. A roda de samba é descrita antes como uma expressão comunitária enquanto em seu aspecto mais comercial caminha numa direção na Escola (mais pragmática e mercantil). Percebese, porém, na roda de samba, uma manifestação que se esquiva historicamente de qualquer tentativa de institucionalização. (p. 86) O livro está organizado em cinco capítulos. O primeiro capítulo faz uma deliciosa reconstituição do período ao qual pertence Tia Ciata, em fins do século XIX, início do século XX. Baiana de nascença, africana de corpo e carioca de coração, Tia Ciata transformava sua casa, que ficava perto da Praça Onze, "em uma grande festa em que ocorriam simultaneamente baile na sala de visita, samba de partido-alto nos fundos da casa e batucada no terreiro". (p. 35) Foi nesse berço, um ritual de encontro, momento de reforço de laços de identidade, encontro entre iguais e locus de trocas com outros grupos sociais que nasceu o samba. A primeira escola, a Deixa falar, só surgiria dez anos depois, em 1928. No segundo capítulo o autor se detém em três espaços fundadores do samba: da Praça Onze (Periferia) ao Estácio (no morro). Daí à Festa da Penha (no ramal da Leopoldina) que mistura festa religiosa (católica) e samba. Aqui a história do samba se mistura com a própria história da cidade. No terceiro capítulo o autor descreve as condições sociais e o jogo de influências que interagiram dialeticamente para estabelecer as bases do surgimento da primeira escola que ganha forma no Estácio e a relação visceral existente 7 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 entre os compositores como Cartola, Paulinho da Viola, Carlos Cachaça, Nei Lopes, Monarco com a sua escola e, ao mesmo tempo, o clima de familiaridade e cortesia existente entre eles. Esse clima vai se perdendo nesse fenômeno de transição casa/rua, no qual o sambista vivencia as estranhezas da "rua", representada por burocracia e normas de comportamento rumo à profissionalização exigidos pela Escola. Assim, os sambistas vão perdendo espaço dentro das Escolas e começam a procurar novos espaços, como se verifica na enorme produção e na popularização de diversos subgêneros como o samba-canção, cuja raiz invariável continua sendo o samba. O quarto capítulo apresenta a importância e contribuição dos blocos semi-profissionais Zicartola e dos espetáculos como o Rosa de Ouro e as noitadas de samba do Teatro Opinião, onde os sambistas que buscavam seus espaços preservaram a cultura da roda. No quinto capítulo revela como o inchaço das escolas e a crescente profissionalização leva a um novo movimento dos sambistas em direção à roda. É o tipo de música que vai se desenvolver pelos pagodeiros do Cacique de Ramos. Essa mudança Publicada em Novembro de 2007 transformadora não transmite apenas o passado imobilizado, mas o reconstrói, entregando-o renovado e revitalizado aos sambistas que surgem a partir dos anos 70. Novos instrumentos, novas gerações. O sexto e último capítulo apresenta como, quase sem rádio ou presença na mídia ou TV, as rodas foram se multiplicando em espaços como o Candogueiro em Pendotiba e espalha-se por diversos bairros do Rio de Janeiro, sem preferências sociais ou raciais, da Zona Sul à Zona Norte. O livro traz uma seleção detalhada de sambas que falam de samba, assim como sobre sucessos da época, além de uma rica discografia. No princípio era a roda: um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes vem preencher uma lacuna deixada por grande parte dos estudiosos do samba desse evento mítico e fundador de um estilo e cuja raiz comum liga-o à capoeira, ao choro, ao jongo e a outros estilos musicais populares: o batuque e a roda. Sendo também fundamental no entendimento da história do samba e suas origens, o que torna evidente seu incontestável valor comunitário, social e histórico. 8 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Artigo Sobre possibilidades de exercício da ética inter-humana no jogo da capoeira Gabriela Tunes da Silva* Resumo Esse artigo tem por objetivo apontar para as possibilidades de exercício da ética inter-humana no jogo da capoeira. A ética, de acordo com a concepção de Martin Buber, realiza-se nos encontros face-a-face que ocorrem no cotidiano da vida ordinária. Para esse autor, a vulnerabilidade à alteridade é condição de possibilidade de uma existência pautada pela ética. A capoeira, por suas características - a roda, o jogo jogado entre dois, a ausência de regras formais - é espaço propício para o diálogo dos encontros face-a-face. Para isso, contudo, é preciso deliberada opção por instaurar a realidade dialógica. Palavras-chave: capoeira, identidade cultural, jogo, ética, diálogo Abstract This paper's objective is to point out possibilities of practicing inter-human ethics in capoeira. Ethics, according to Martin Buber's view, establishes itself in face-to-face meetings that take place along everyday ordinary life. To this author, vulnerability to alterity is a condition of existence guided by ethics. Capoeira, for its characteristics - the circle, the game played by two people, the lack of formal rules - is a propitious space for the dialogue of face-to-face encounterings. For that to happen, however, a deliberate option for establishing the dialogical reality is necessary. Key words: capoeira, cultural identity, play, ethics, dialogue Definir a capoeira é tarefa que muitos tentaram e tantos outros seguem tentando. A busca pela essência una da luta-dança-arte, tão representativa da identidade cultural brasileira, é compartilhada por inúmeros capoeiristas e capoeirólogos, que pretendem traduzir em palavras e conceitos as descobertas, sentimentos e experiências vividos na prática cotidiana da capoeira. Graças a esse enorme esforço, possuímos hoje vasta literatura sobre aspectos diversos da capoeira, que nos trazem conhecimentos e reflexões importantes. Se alguém chegou a encontrar a definição, a essência una, é motivo de controvérsias. A capoeira é tão repleta de mandingas e maneirismos que se nega a enquadrar-se na definição mesmo daqueles que mais viveram e entenderam a capoeira; é também libertária a ponto de permitir entendimentos distintos dos mesmos acontecimentos. O estudo acadêmico da capoeira é, então, a difícil missão de postar-se diante de um fato concreto *Gabriela Tunes é graduada em Biologia, mestre em Ecologia e doutora em Desenvolvimento Sustentável, títulos obtidos na UnB. 9 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 que se apresenta como essencialmente indefinido. A capoeira parece não caber nos esquemas conceituais da ciência e da própria razão, mas incomodamente existe como realidade. Vieira e Assunção (1998) discorrem sobre mitos criados em torno da história e da essência da capoeira que apontam para unicidades distintas: ora caracterizam a capoeira como negra, ora como popular, ora como quilombola, etc. Os inoportunos fatos, contudo, insistem em derrubá-los um a um. Os mitos não servem somente às explicações teóricas e acadêmicas: são importantes ferramentas para legitimação de uma capoeira e desqualificação de outras, criando embates intermináveis. Com bases nesses mitos, segundo os autores, foram construídos discursos que justificam posições contrárias no universo da capoeira. Eles identificam cinco principais discursos: o da repressão - aponta a capoeira como negra e afro-brasileira, praticada por vadios e marginais, e prega a necessária erradicação dessa prática danosa à sociedade brasileira; o nacionalista - em resposta ao discurso da repressão, o discurso nacionalista apontava para a capoeira como "luta nacional", e como representativa da identidade nacional. Esse discurso surgiu de suporte para a legalização da capoeira na década de 1930; o étnico - aponta para a origem e natureza negra da capoeira; é utilizado, contemporaneamente, pelo movimento negro, e muitas vezes omite as contribuições não-negras para a história da capoeira; o discurso corporativo-iniciatório - define como o mais importante para a capoeira a linhagem, a origem; critica a importação de conhecimentos científicos, principalmente da área de Educação Física, para a prática da capoeira. Pode assumir facetas regionalistas, afirmando, por exemplo, que "só baiano entende de capoeira". o discurso classista - aponta para a capoeira como sendo "do povo", negando a participação histórica de pessoas de outras camadas sociais e o imbricamento do universo capoeirístico com os círculos de poder político. Publicada em Novembro de 2007 Conforme afirmam os autores, nenhum desses discursos dá conta da capoeira integralmente. Eles tampouco existem isoladamente; misturamse e formam outros que legitimam uns e desqualificam outros. Mas a existência desses discursos revela um aspecto interessante da capoeira: a diversidade. Pelas suas características, pelo modo como se desenvolveu, não existe uma única história da capoeira. Existem várias histórias de várias capoeiras. Os discursos mencionados servem também às recorrentes tentativas de escrever A história da capoeira. A diversidade que ela assumiu, contudo, impede o êxito dessa tarefa. Conforme apontam Vieira e Assunção (1998), a história da capoeira é repleta de rupturas e contradições. Sua complexidade é grande a ponto de não ser possível definir "a partir de quando aquilo que hoje é considerado essencial à capoeira (uso do berimbau, existência da roda) realmente passou a fazer parte do que aparece como capoeira ou capoeiragem nas fontes".(Vieira e Assunção, 1998, p. 109). Apesar disso, existem aspectos que se repetem nas suas diversas manifestações contemporâneas. Um deles é o jogo, jogado sempre entre dois; outro é a roda, com instrumentos musicais, palmas e canto; também a transmissão oral de conhecimento é predominante. A mandinga, a ambigüidade ou pseudo-morfismo da capoeira é também aspecto freqüente e valorizado. Esses aspectos, juntamente com o modo como a capoeira se organiza, a diversidade que pode assumir, tornam-na uma instituição propícia para o exercício e o aprendizado da ética inter-humana. Este artigo busca contribuir para essa discussão. Sobre a ética inter-humana na concepção de Martin Buber Bartholo (2001) afirma que Buber é um pensador inclassificável, impossível de ser enquadrado nos limites das caixinhas conceituais definidoras do pensamento moderno. E o próprio Buber não identificava seu pensamento como pertencente a alguma área específica do conhecimento: 10 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 "eu me chamaria de um homem atípico" (Buber, 2001, p. 689). O caráter libertário de seus escritos está imbricado em seus testemunhos de vida e pode ser sintetizado na afirmação: "[...] não tenho nenhuma doutrina. Apenas aponto para algo. Aponto para a realidade, aponto para alguma coisa na realidade que não tinha sido vista, ou o tinha sido muito pouco. Tomo quem me ouve pela mão e o encaminho à janela. Abro a janela e aponto para o que está lá fora. Não tenho nenhuma doutrina, mas mantenho uma conversação." (Buber, 2001, p. 689) Esse algo para o qual Buber aponta é o princípio dialógico, "uma realidade da qual nossa modernidade se fez cega" (Bartholo, 2001, p. 9). Segundo esse princípio, a nossa condição humana não está assentada nos elementos que nos caracterizam como sujeitos, pois "não é o sujeito a chance primordial do Ser, mas sim nossa vulnerabilidade à alteridade" (Bartholo, 2001, p. 9). E Buber enfatiza que a condição humana depende das relações inter-pessoais, pois "sem o Tu, o Eu é impossível" (Bartholo, 2001, p. 9). Buber (1977), na sua obra maior, Eu e Tu, formula uma antropologia-filosófica ancorada no princípio dialógico. O homem é entendido como um ser relacional. A condição humana é caracterizada pela possibilidade de transitar entre dois modos relacionais fundamentais, expressos pelas palavras-fundantes Eu - Tu e Eu - Isso. Uma vez proferidas, as palavras-fundantes são, para Buber, instauradoras de realidades. À palavra-fundante Eu - Tu corresponde uma realidade de presenças. À palavra-fundante Eu - Isso corresponde uma realidade de coisas e objetos. O homem tem a liberdade de proferir, a cada momento de sua vida, uma dessas palavras-fundantes (Eu - Tu ou Eu - Isso). E ao fazê-lo, instaurar uma ou outra realidade. A vida humana acontece na tensão dessa polaridade. E o Eu que diz Tu não é o mesmo Eu que diz Isso, mesmo que as duas palavras tenham saído da mesma boca, em momentos diferentes. O mundo do Isso incorpora em si vários submundos: da razão utilitarista, da objetivação, da causalidade, da intencionalidade, da mediação, pois um Isso pode sempre ser analisado, medido, Publicada em Novembro de 2007 enquadrado, explicado, inserido em uma cadeia de causas e efeitos. Em contrapartida o mundo do Tu é singular, tecido de imediaticidade e inteireza, no encontro face a face com a irredutível alteridade de um outro que é presença e interlocução. Um Tu não pode nunca ser inteiramente explicado e analisado no discurso do Eu/Sujeito, pois não cabe em modelos e esquemas conceituais, uma vez que sempre os ultrapassa, trazendo em si algo de incognoscível: sua irredutível alteridade. Buber (1977) alerta que seria um erro identificar o mundo do Isso como algo de inerentemente negativo. A condição humana seria inviabilizada sem a capacidade de instrumentalizar a realidade que se efetiva no mundo do Isso. O mal está em pretender subordinar toda a vida humana a essa instrumentalidade. E fazer com que a causalidade eficiente e a programação dos cursos de ação silenciem a imprevisibilidade e os riscos da abertura dialogal. Buber (1977) assim responde à pergunta "o que é o homem?": é o ser que está face-a-face, o ser que está apto à relação com a alteridade, o serem-relação, aberto ao diálogo, entendido como o modo relacional entre dois, que pressupõe alteridade, vulnerabilidade e responsabilidade. Para Buber, o mundo do Isso é acessível ao homem por meio de experiências: as coisas se colocam diante do homem e ele as experiencia, e nesse experienciar conhece-as. Mas o mundo do Tu tem natureza diversa. O Tu não é nem coisa, nem objeto de conhecimento. Não se tem experiência de um Tu: entra-se em relação. Para Buber, a dualidade das palavras-fundantes (Eu - Tu e Eu - Isso) não deve ser confundida com uma suposta oposição entre razão e sentimento. O sentimento é também uma experiência de coisas que se realiza naquele que sente. Não entre ele e o mundo. No meu sentimento para com um outro, ele é para mim um Isso. A relação vinculante Eu - Tu, a que Buber denomina encontro, não pode ser produzida por nenhum experimento pré-programado. O encontro é um acontecimento, não um experimento. A relação Eu-Tu é uma relação de interferência e vulnerabilidade para com a alteridade do outro. 11 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Interferência e vulnerabilidade que são essenciais ao diálogo. Interferência e vulnerabilidade que cobram do Eu uma abertura dialogal que reconhece o primado da escuta. O que posso saber do Tu no diálogo autêntico não cabe nunca nos limites do que já sei. Para sabê-lo preciso ouvir a palavra a mim dirigida que me diz do que não sei. E aprender. Para Buber, a realidade dialógica funda o exercício da responsabilidade, entendida como "resposta eticamente fundada à presença-palavra que me é dirigida por outrem". Ao acolher a interlocução que me é dirigida dizendo-lhe: Tu, permito-me ser responsável. Essa responsabilidade é, então, algo que somente acontece no mundo real concreto, no mundo da vida vivida, pois: "não conheço mais outra plenitude a não ser a plenitude da exigência e da responsabilidade de cada hora mortal" (Buber, 1982, p. 47). Responsabilidade e ética são, assim, referidas à vida vivida. As virtudes éticas exercem-se na concretude dos desafios situacionais. Normatizar a ética mediante um conjunto de disposições prescritivas universais, desvinculadas do comprometimento situacional é, para Buber, sinônimo de falsidade e hipocrisia. A ética sempre se refere à experiência de um limite. Cada situação, cada momento pessoal da vida vivida tem uma singularidade intrínseca, com relação à qual a pessoa é chamada a responder em responsabilidade. A dimensão mais propriamente ética dessa resposta não está referida ao "previsível, programável e controlável". Ela não é "um desejo de instrumentalizar a vida, capturando-a em cadeias de causalidade, mas um desejo de fruir a aventura de possibilidades surpreendentes" (Bartholo, 2002, p. 136). O agir responsável é um agir em meio a riscos e incertezas, pois: "Respondemos ao momento, mas respondemos ao mesmo tempo por ele, responsabilizamo-nos por ele. Uma realidade concreta do mundo, novamente criada, foi-nos colocada nos braços: nós respondemos por ela. Um cão olhou para ti, tu respondes pelo seu olhar; uma criança agarrou tua mão, tu respondes pelo seu toque; uma multidão de homens move-se em torno de ti, tu respondes pela sua miséria." (Buber, 1982, p. 50) Publicada em Novembro de 2007 Agir em responsabilidade não é algo que possa ser imposto a alguém. Toda responsabilidade autêntica é livre, pois "responder não é um dever, mas é um poder" (Buber, 1982, p. 71). É um poder inerente à vida de qualquer ser humano, independentemente de seus atributos e competências. Buber enfatiza que "o dialógico não é, como o dialético, um privilégio da atividade intelectual. Não há aqui dotados e não-dotados, somente há aqueles que se dão e aqueles que se retraem" (Buber, 1982, p. 71). Assim, na perspectiva buberiana, o debate sobre a ética deve ultrapassar a estrita referência ao primado do sujeito e sua autonomia, para ser referido ao primado de duas outras categorias: alteridade e vulnerabilidade (Bartholo, 2002, p. 137). Minha vulnerabilidade à presença do Tu determina a minha abertura ao diálogo. O agir ético e responsável não pode prescindir dessa vulnerabilidade à alteridade do outro. A abertura ao diálogo, a possibilidade de responder e de agir em responsabilidade é algo dado ao homem enquanto tal. Ele opta por ela em liberdade, e tal opção independe de qualquer característica que o constitui; a possibilidade de optar pelo diálogo é inerente à condição humana: O lugar onde nasce a ética, para Buber, é esse entre dois. É desta recíproca (mas não necessariamente simétrica) experiência de limites que o exercício, a ascese das virtudes éticas se nutre. É no horizonte do entre dois que o agir ético atua. A ética, buberianamente concebida, pertence ao entre das relações Eu-Tu, no qual toda escolha é sempre um risco e uma prova. Querer escolher com segurança, querer fazer do sucesso, da eficiência, da produtividade, critério do Bom, do Belo e do Verdadeiro é eliminar esse horizonte: é despersonalizar. É fazer do cálculo utilitarista, juiz. (Bartholo, 2002, p. 138-139). Viver unicamente a realidade dialógica implicaria ser consumido por ela. O desenrolar cotidiano de nossas vidas requer a instrumentalização e a racionalização, até mesmo como um simples imperativo de sobrevivência. Mas o risco maior de nosso tempo, em que os poderes tecnocientíficos de intervenção na realidade tanto se multiplicam, é principalmente de outra natureza: a expansão dos campos de vigência das 12 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 relações do tipo Eu - Isso ser tão vigorosa que torne os espaços das relações do tipo Eu -Tu cada vez mais escassos e quase os anule. Nesse ponto, faz-se atual a advertência de Buber: e, com toda a seriedade da verdade, ouça - o homem não pode viver sem o Isso, mas aquele que vive somente com o Isso não é homem" (Buber, 1977, p. 39). Na contemporânea realidade de instrumentalização radical da vida e de redução das possibilidades de acontecimento da relação Eu-Tu, pela expansão de contextos institucionais que prentendem esconder a face humana por detrás de cargos, funções, status social, renda, entre outros atributos, aquelas instituições que permitem o desnudamento da face, o encontro com a alteridade, podem ser consideradas de resistência. A capoeira, por suas características, pode, contemporaneamente, representar esse modo específico de resistência. Pode funcionar como uma ferramenta convivencial (Illich, 1981), permitindo não somente a manutenção dos patrimônios culturais e históricos que guarda, mas também a criação e manutenção de patrimônios relacionais, importantes para o exercício e o aprendizado ético. Sobre possibilidades de diálogo no jogo da capoeira Uma característica da capoeira, que a torna uma instituição propícia ao acontecimento do diálogo inter-humano buberianamente concebido, é o fato de ser um jogo de dois. Evidentemente que o caráter dialógico de um jogo de capoeira não é algo que possa ser imposto externamente; é preciso que os jogadores, no momento do jogo, optem por estabelecer o diálogo. A capoeira, segundo Tavares (1984), é um tipo de discurso não-verbal "arquivado" no corpo. Entendida como discurso, nossa arte-luta-jogo é também linguagem. Como linguagem, pode ser dialógica, e converter-se num diálogo corpóreo, em que o corpo é, a um só tempo, boca e ouvidos, e o movimento é feito palavra. No diálogo da capoeira, muito se diz sobre si, mas muito mais se ouve do outro. O diálogo buberiano, que pode ocorrer no jogo da capoeira, não consiste na mera troca de palavras que se reportam a uma realidade Publicada em Novembro de 2007 qualquer; ele estabelece uma relação com outra pessoa, sendo linguagem de interlocução. O capoeira, no momento do jogo, coloca-se face-aface diante de seu companheiro. Nesse sentido, a capoeira não é somente uma luta, uma dança, uma coreografia, uma manifestação cultural. Embora seja tudo isso, pode ser ainda muito mais do que isso e servir como lugar de suporte de relação entre pessoas. A imprevisibilidade do jogo da capoeira enfatiza também sua dialogicidade. Um dos primeiros ensinamentos transmitidos ao capoeira refere-se ao respeito ao jogo do outro, fundado pela imprevisibilidade inerente a este. Não subestimar o jogo de alguém, independentemente de seu nível técnico, significa instaurar o primado da escuta, fundamental para o diálogo inter-humano. Significa, também, que não é possível prever o que vai acontecer em um jogo; o capoeira nunca pode pretender conhecer por completo o jogo de alguém. A roda de capoeira é o reino do imprevisível. O jogo somente revela-se na imediatez do momento em que acontece. É interessante realçar que Buber (1988) discorre sobre o papel da linguagem no diálogo e aponta para os caminhos alternativos do discurso: de um lado, a reprodução monológica do mesmo, de outro, a aventura dialógica da alteridade. O monólogo busca apoiar-se na segurança, na precisão, no controle. Ele quer se assegurar da possibilidade da repetição infinitamente enumerável de proposições já sabidas, no acesso repetível a condições determinadas de observação e experiência. Seu empenho maior, desde o ponto de vista metodológico e sistemático, é por superar qualquer imprevisibilidade intrínseca ao conhecer. O discurso monologal sabe de antemão que resposta dará à questão que formula, e quer se assegurar de que essa formulação não sofrerá mudanças imprevistas. Busca para tanto valer-se das potências da objetivização. Mas Buber (1988) enfatiza que uma característica fundamental da linguagem é precisamente a possibilidade de entendimentos diferenciados da mesma palavra por pessoas diferentes, ou seja, a precariedade da precisão da palavra em relação ao seu significado. Ele afirma como valor mais alto da linguagem não a precisão monologal que fixa a 13 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 palavra e seu significado, mas sim sua intrínseca ambigüidade. A ambigüidade da palavra permite que o discurso supere-se num entendimento que é mais do que assimilação, para poder ser também fruição. A ambigüidade é a aura da palavra, e é justamente ela que permite que o discurso esteja repleto da existência pessoal daquele que o profere. Publicada em Novembro de 2007 no desconhecido. A depender do momento, um mesmo movimento, um mesmo golpe, pode ser leal ou covarde. O capoeirista responde a cada momento, a cada situação, buscando respostas corretas. A mandinga, na capoeira, pode ser entendida como a maliciosa capacidade de dissimular, de esconder as verdadeiras intenções do jogador. A ambigüidade, ou o pseudomorfismo da capoeira, é uma de suas características mais marcantes. A ginga, sua base móvel, é um tipo de movimentação que permite ao capoeira utilizar maneirismos e mandingas que confundem o outro jogador. Desse modo, ele torna seu jogo completamente imprevisível, nunca sujeito a ser conhecido por antecipação, mesmo nas últimas frações de segundo que antecedem sua movimentação. O pseudomorfismo é o elemento que garante a imprevisibilidade, que não permite que um jogador conheça o jogo outro; para saber, é preciso viver. A mandinga impede qualquer antecipação; impede que o conhecimento racional e objetivo capture o jogo, garantindo que a imediatez do encontro face-a-face tenha primazia sobre as tentativas de previsão. A mandinga torna a linguagem corpórea da capoeira imprecisa e imprevisível. Nesse sentido, a mandinga é guardiã da alteridade. A liberdade do jogo da capoeira funda-se não no princípio da autonomia do sujeito, mas no da heteronomia da relação entre dois. É a liberdade difícil (Bartholo, 2003), isenta de arbitrariedade e plena de responsabilidade. O homem livre, segundo Bartholo (2003), é aquele que se volta ao Outro. No jogo da capoeira, a presença do Outro "não nega meus poderes, mas põe sim em questão os direitos dos meus poderes" (Bartholo, 2003, p. 67). A capoeira, entendida como linguagem, contém ação e resposta, que, na seqüência do jogo, é nova ação que demanda nova resposta. A responsabilidade é a dimensão ética da resposta, pois tem o outro por horizonte e limite. A resposta responsável pressupõe empenho e compromisso com o bem e a justiça. Segundo Lévinas (2000), a presença do outro impõe automaticamente um limite à minha liberdade de ação. A ética é a impugnação da minha liberdade pela presença da Outro, pois a "moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e violenta" (Lévinas, 2000, p. 71). Para ele, a liberdade não se justifica a si própria, pois justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas sim torná-la justa. Outro aspecto da capoeira que pode contribuir para o aprendizado ético é um fato simples e intrigante: não há regras. Não existe um conjunto de condutas "corretas" que possa ser objetivamente transmitido ao praticante de capoeira. Ao longo de seu aprendizado, ele amplia seu repertório de movimentos, e pode livremente utilizá-los sem uma definição precisa de quando ou como lançar mão de um ou outro movimento. Em outras palavras, objetivamente, tudo é permitido. Todavia, a liberdade do jogador de capoeira não é absoluta, ou infinita. Ela encontra limites, não em um conjunto de normas e regras impostos externamente ao jogo, mas sim no outro que está perante ele. A simples presença do outro coloca um limite na liberdade do capoeira. Tomar a decisão correta no jogo da capoeira é um desafio situacional, o que torna cada jogo uma aventura É interessante notar que a ausência de regras na capoeira é tão marcante a ponto de o jogo não ter um objetivo claro. Em muitos relatos, nos treinamentos também, é comum a afirmação que o capoeirista não deve ficar em situação de desvantagem, e deve procurar deixar o "adversário" nessa situação. Muitas vezes, estar em desvantagem resulta em receber um golpe. Outras vezes, em uma queda, ou em somente a marcação de um golpe ou de uma queda. Muitas vezes, resulta em nada. O objetivo do jogo depende também dos jogadores. É definido tacitamente entre eles à medida que o jogo se desenvolve. Por isso, em determinados momentos, acertar o golpe no companheiro, ou seja, deixar o pé tocar seu tronco ou rosto, não é considerada uma atitude desleal. Em outros, uma queda (ato fisicamente menos violento do que 14 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 um golpe) pode significar uma grande covardia. É comum, contudo, a afirmação de que derrubar o outro é o objetivo do jogo: A principal intenção no jogo da capoeira é sempre a de desequilibrar o outro, o qual, por sua vez, deve evitar cair. Cair é ficar em desvantagem, é perder poder. Todas as estratégias de luta da capoeira têm esse mesmo propósito, qual seja, derrubar o outro. (Reis, 2000, p. 181). Com efeito, a capoeira é um jogo. Mas, entendida como linguagem, torna-se um jogo retórico, em que um jogador tenta envolver o outro em sua "argumentação". Nesse contexto, nem sempre o embate direto, o golpe certeiro ou a queda são as melhores abordagens. Evidentemente que conseguir derrubar o outro é, fazendo analogia com embates retóricos, deixar o outro sem palavras, demonstrando que seus argumentos falharam. Mas os embates retóricos não necessariamente têm esse objetivo. Por vezes, podem servir somente para alongar a conversa, para exercitar as capacidades de discurso dos jogadores. De fato, é possível assistir rodas de capoeira com horas de duração em que não se observa nenhuma queda. Ainda assim, não se pode dizer que o objetivo da roda ou dos jogos que nela tomaram curso não foi atingido. Então, afirmar que o objetivo do jogo da capoeira é sempre derrubar o outro pode levar a entendimentos equivocados de nossa prática, principalmente por observadores externos que nunca vivenciaram a capoeira. Mesmo parecendo ridiculamente óbvio, o objetivo do jogo da capoeira é jogar capoeira, ou seja, manter uma conversação. E conforme nos mostra Martin Buber, é precisamente nas conversações que podemos exercitar nossas virtudes éticas. Quando dá lugar a esses elementos - a imprevisibilidade, o respeito à alteridade e a liberdade responsável - a roda de capoeira tornase local propício ao exercício e aprendizado da ética. O círculo que delimita o espaço onde ocorre o jogo, o interior da roda, para onde convergem todos os sons - dos instrumentos, das vozes, das palmas - e todas as atenções, delimita também um espaço inter-humano, um espaço onde o mais importante não é um nem outro, mas um-comoutro. Mas é preciso considerar que isso não é Publicada em Novembro de 2007 algo válido em si; é possível que o jogo da capoeira converta-se em seqüências de monólogos alternados, baseados em demonstrações de impressionantes habilidades acrobáticas, ou de força física, ou de técnica de luta e imobilização, deixando em segundo plano a interação dos dois jogadores. De fato, isso ocorre com freqüência nas rodas de capoeira. O que se quer aqui defender é que a roda de capoeira é local propício para o acontecimento do diálogo, mas isso irá depender das pessoas que a formam, do ambiente em que estão inseridas e, principalmente, de sua vontade de instaurar, no jogo da capoeira, uma realidade dialógica. Capoeira e resistência Letícia Vidor de Souza Reis (2000) afirma que a capoeira, juntamente com outras manifestações culturais de raiz negra, foi uma das formas de afirmação dos negros no Brasil. Pela via da criação cultural, os negros conquistavam seus espaços e recriavam sua identidade, dilacerada pela realidade da escravidão, que apagou seu passado e sua história e destruiu suas famílias e vínculos. Assim, as práticas culturais de raiz negra no Brasil possuem uma forte conotação de resistência. A resistência é um dos aspectos mais explorados nos inúmeros discursos que tratam da capoeira. A ambigüidade da capoeira, que torna impossível seu enquadramento como apenas luta ou apenas dança, é por vezes interpretada como uma forma de disfarçar sua verdadeira intenção guerreira, fazendo-a parecer uma dança, como se houvesse um projeto de libertação escravista por meio dela. Vieira e Assunção (1988) afirmam que a resistência nela insinuada alimenta o imaginário dos capoeiristas, que criam e reforçam mitos, como aquele que supervaloriza a resistência radical e constrói heróis negros, íntegros e corajosos. Todavia, o malandro, historicamente protagonista das rodas de capoeira, "é por definição mais um anti-herói e sua ambigüidade não se presta a visões épicas de um herói puro, sem nenhum compromisso com o "sistema" (Vieira e Assunção, 1998, p. 109). 15 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Todavia, Reis (2000) afirma que a ambigüidade da capoeira, ou a mandinga, revela um outro modo de resistência, muito mais presente no Brasil: a negociação. Segundo ela, o confronto aberto não foi a tônica da afirmação dos negros, que preferiam a negociação com os senhores. A negociação, contudo, nunca significou passividade absoluta. A mandinga, o pseudomorfismo, reflete esse modo de se relacionar com o mundo: ser, mas não ser; ser inimigo, mas amigo íntimo; sorrir, mas bater; servir, mas rebelar-se. Mantendo essa conduta, é possível criar situações favoráveis, pensar antes de agir, esconder, esquivar, aliar-se quando preciso, golpear em seguida. A mandinga, conforme aponta Reis (2000), é um modo de reduzir o poder da força; reduzindo-se o poder da força, reduz-se o poder dos senhores, seus históricos detentores. A capoeira reflete, portanto, as negociações da própria vida desses homens. Há momentos de recuo e de avanço. Há momentos de sorrisos e brincadeiras, há momentos de dureza e violência. O jogo da capoeira ocorre na tensão dessas polaridades opostas, e o capoeira mandingueiro é justamente aquele que não se deixa prever. O pseudomorfismo do capoeirista obriga seu companheiro de jogo a nunca ter a pretensão de conhecer por antecipação o que ele vai fazer, pois, no último milésimo de segundo, ele pode mudar. O ethos da mandinga, que obriga sempre o interlocutor a ouvir antes de falar ou agir, presente na capoeira, pautava o modo de vida de muitas pessoas marcadas pela realidade da escravidão. Tais pessoas não eram somente negros escravos ou ex-escravos; eram também seus descendentes, trabalhadores "livres" e até os senhores. É importante considerar que a sociedade brasileira configurou-se como escravista. As cartas de alforria, o fim do tráfico negreiro e da escravidão não foram capazes de bani-la por completo da sociedade brasileira. As relações de trabalho mantiveram, e mantêm até hoje, em grande medida, aspectos de relações escravistas; as relações pessoais também são marcadas pela violência da escravidão. A própria noção de educação vincula-se à violência física, pois os negros apanhavam sob o argumento de que assim Publicada em Novembro de 2007 "aprenderiam", conforme afirma Gilberto Freyre (2001) em Casa Grande & Senzala. Hoje em dia é ainda comum o hábito de bater nas crianças para educá-las, misturando o afeto e o cuidado com práticas violentas. A frase de uma mãe carioca contemporânea sobre sua prática de bater em seu filho é emblemática dessa realidade: Eu converso com ele, eu boto de castigo, na hora de bater, eu dou uma chineladinha, lógico que não machuca. Uma chineladinha de mãe. Aí ,todo mundo me respeita e eu respeito eles (Tunes et al, 2006, p. 74). A mandinga é também uma forma de lidar com a escravidão: concordar mas resistir, aceitar e rebelar-se. As camadas mais baixas da população, os que sofreram mais com essa realidade, firmavam pactos com a elite. No Rio de Janeiro do século XIX era comum negros alforriados, que conseguiam melhorar sua situação econômica, comprarem escravos. Apesar disso, embora tivessem uma relação ambígua com a escravidão, em alguns momentos ou lugares buscavam fugir dela. A capoeira servia a isso, assim como outras práticas, sendo muito importantes as religiosas. Finda a escravidão, o preconceito racial permaneceu, e pode-se dizer que com mais força permaneceu o preconceito contra as instituições culturais e religiosas afro-brasileiras. Se os negros não temiam mais o tronco, passaram a temer a polícia, pois a sociedade brasileira tirava-lhes o direito de auto-definição sócio-cultural. Por isso, práticas como a capoeira representavam importantes focos de resistência, pois se tratava da resistência da construção cultural, e construir a cultura é construir a vida cotidiana. Nesses locais de resistência, os "marginais" estabeleciam seus espaços de vida, refaziam laços, vínculos, linhagens e famílias, tentando remendar os rasgos da escravidão. Mesmo concordando com sua situação em relação à elite que os oprimia, não poderiam viver sem os lugares onde eram realmente livres, onde podiam existir plenamente como pessoas. Esse modo de entender a liberdade foi assim expresso nas palavras de Romano Guardini: "Pessoa" significa que, naquilo que sou eu mesmo, não posso em última análise ser possuído por qualquer outra instância, mas me pertenço. Posso 16 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 viver numa época em que a escravatura é vigente, onde, portanto, um homem pode comprar outro homem e dele dispor. Mas este poder sobre o homem comprado não é exercido sobre a pessoa, e antes sobre a sua natureza psicofísica(...). A pessoa propriamente subtrai-se a essa relação de pertença. Pessoa significa que não posso ser empregado por ninguém mais, mas que sou eu próprio um fim. (Guardini, 1963, p. 152). Romano Guardini discorre acerca do caráter inapreensível da pessoa, afirmando que o corpo, a alma, a inteligência, a vontade, a liberdade, o espírito são apenas os "materiais" de que é composta, mas a pessoa radica no fato de que este material existe na forma de uma pertença a si mesmo (Guardini, 1963, p. 160). Ele faz referência à relação Eu-Tu conforme concebida por Martin Buber, afirmando que a condição de possibilidade da existência pessoal do sujeito reside em sua abertura ao encontro dialógico (Guardini, 1963, p. 169). Em outras palavras, sou plenamente "pessoa" quando consigo ver a face do "Tu" diante de meus olhos, quando cessa a relação sujeito-objeto e permito que aquele que está diante de mim seja meu "Tu". Guardini afirma ser a linguagem pré-condição do encontro pessoal (e, portanto, numa perspectiva buberiana, pré-condição da própria vida autenticamente humana). Para ele a linguagem não é apenas uma forma de transmissão de conteúdos conceituais, ela é o espaço de sentido (ou de verdade) em que vive cada homem (Guardini, 1963, p. 175). O aspecto mais importante que Guardini aponta com relação à linguagem refere-se ao fato de que: Mediante a linguagem, a verdade converte-se num espaço objetivo. No sentido próprio da palavra, não se pode falar consigo próprio, e apenas com o outro. É assim que a linguagem, no seu estado de perfeição e como expressão de uma comum responsabilidade pela verdade, e de uma comunidade de destino, conduz inevitavelmente os homens para a realização da relação eu-tu. (Guardini, 1963, p. 175-176). Considerando que a capoeira pode ser entendida como linguagem, e mais ainda, como espaço propício para o acontecimento do diálogo interhumano, e que a construção de identidade pessoal Publicada em Novembro de 2007 não é possível sem esses espaços, podemos afirmar que a capoeira representou também esse outro modo de resistência, por ter permitido o exercício da convivência que cria os patrimônios relacionais. Por permitir a existência como pessoas daqueles que eram vistos somente como força de trabalho, funcionava como espaço de sentido de suas vidas, sentido esse alheio ao degradante papel social que lhes cabia na sociedade brasileira. Mesmo não tendo gerado nenhuma revolução, mesmo completamente inserida no sistema social vigente, mesmo sem a pretensão de modificá-lo, a capoeira foi resistência pela própria existência. Chama a atenção a existência da capoeira como resistência. Considerando que foi proibida pelo Estado e duramente perseguida pela polícia por um período que durou mais de um século, é notável sua capacidade de permanência. Conforme afirma Soares (2004, p. 145): A construção social e cultural chamada "capoeira", na primeira metade do século XIX, provou ser capaz de resistir aos mais fortes abalos. A persistência do fenômeno, mesmo diante das fases de maior perseguição, aponta para complexos mecanismos de reprodução acionados nos subterrâneos daquela sociedade. (Soares, 2004, p. 145) Aponta também para a forte necessidade e vontade de manutenção dessa instituição por aqueles que dela faziam parte, que arcavam com o enorme risco que isso representava. No ambiente da capoeira, aqueles indivíduos excluídos da vida social marcavam seu lugar na sociedade; criavam uma identidade individual e de grupo. A capoeira servia como instância aglutinadora e de construção de identidades. A capoeira permitia, ao menos no que estritamente lhe dizia respeito, a auto-definição cultural, num ambiente marcado pela mentalidade colonial que entendia como cultura válida somente a européia. A capoeira civilizada A abordagem do Estado brasileiro em relação à capoeira, que até então era marcada pela condenação e repressão, sofreu profundas modificações no final do século XX. Luiz Renato 17 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Vieira (2002) afirma que "fazemos parte de uma geração que está criando um novo significado para a capoeira, que passa a ser identificada, até mesmo pelo leigo, como um fenômeno cultural brasileiro reconhecido em escala mundial". Segundo esse autor, na década de 1980, a capoeira "conquistou definitivamente seu lugar no cenário esportivo nacional," sendo reconhecida pelos órgãos governamentais ligados ao esporte e à educação. Esse mesmo período foi de expansão nacional dos grandes grupos, consolidando o modelo de organização centrado em grupos, em que o mestre ou professor que tem um pequeno grupo se vincula a grupos maiores, passando a usar seu nome e sua marca, visando maior visibilidade e inserção no mercado das aulas de capoeira. Ao mesmo tempo, cresce a tendência à valorização dos velhos mestres, portadores da tradição, e à valorização da capoeira como cultura, e não somente como esporte marcial. A exportação da capoeira tem seu boom, na década de 1990, sob a égide de prática cultural, e não de modalidade esportiva. Esse processo insere-se numa nova estratégia de permanência da capoeira, que pressupõe a conquista de mercados. Assim, podemos dizer que, no contexto da contemporânea civilização, centrada no mercado e marcada pela globalização, a capoeira civilizou-se. Nesse novíssimo contexto, onde ficou a resistência? Será que somente nos ainda marginais grupos de capoeira, aqueles em que predominam os excluídos de nossa contemporânea sociedade? Se um dos aspectos mais marcantes da resistência da capoeira era sua simples existência, será que no momento em que adquire reconhecimento da sociedade, que não mais a proíbe e condena, ela perde um de seus sentidos originais? Se isso for verdade, estaria a capoeira condenada à marginalização sob pena de perda de sentido? Nesse ponto, o entendimento da capoeira como espaço dialógico abre a possibilidade de reconhecer um outro modo de resistência, ainda importante em nossa realidade contemporânea. A grande obra "O Processo", de Franz Kafka (1988), é emblemática de nosso tempo, e evidencia uma tendência que se cristaliza a cada dia. Sua Publicada em Novembro de 2007 leitura gera a angústia de ver o protagonista enredado num processo sem fim que se perde em labirintos burocráticos, sem ter cometido crime algum, sem saber do quê está sendo acusado e completamente impotente diante dessa situação. Kafka nos mostra a opressão que se faz presente por meio de poderes sem face, que se dissimulam, fazem-se representar pela Lei e executar pelos imensos aparatos burocráticos. A opressão é marcada, acima de tudo, pela impessoalidade. Hans Freyer (1965) afirma que esse tipo de dominação impessoal é feito como administração. Os sistemas burocráticos não são entendidos como modelos de dominação do homem pelo homem, mas sim como administração das coisas. Por meio dessa ideologia da administração das coisas, tem-se a ilusão de não haver dominação e opressão: Quem administra não produz coisa alguma, nem mesmo faz com que algo funcione. Pressupõe que determinados processos já se verificam e que determinadas forças já se fazem sentir. Administrar quer dizer fomentar esses processos e manter, coordenar e regular essas forças. "Pôr em funcionamento" é o mais alto grau de atividade que ainda é administrado, "impulsionar" o que vem logo abaixo. (Freyer, 1965, p. 91). Uma instituição como a capoeira, capaz de dar lugar ao encontro dialogal, que, segundo Martin Buber, é crucial para a realização da condição humana, pode ser considerada de resistência quando inserida em um modelo civilizacional que tende a apagar o rosto humano por detrás dos aparatos burocráticos. Na realidade impessoal da burocracia, o indivíduo é reduzido ao suporte de sua função no sistema. Talvez nesse ponto possamos encontrar o motivo pelo qual a capoeira consiga tantos adeptos nos mais distantes e diversos locais do planeta. Pois a liberdade, desde a perspectiva buberiana, não é o isolamento no individualismo pregado pelas ideologias liberais, e sim a possibilidade de existência como pessoa, fundada nos encontros face-a-face. No modelo civilizacional em que vemos crescer um assustador vácuo ético, a capoeira, mesmo civilizada, operando como instituição de suporte do diálogo, pode representar resistência de fundamental importância. 18 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Todavia, Hans Freyer (1965) alerta para os riscos inerentes à civilização. Para ele, civilizar o homem significa a eliminação da diversidade, e a criação de um padrão "humano" ao qual todos os homens têm que se adequar. Quanto mais aproximado um homem está deste padrão definido por critérios alheios à sua própria natureza, mais civilizado ele é. Civilizar o homem é confiná-lo a uma prisão existencial, em que o seu ser é definido externamente e sua liberdade é, conseqüentemente, inexistente. O resultado da civilização dos homens é a criação de uma massa de homens idênticos, e de uma sociedade que tem repulsa pela diversidade e por tudo o que foge do padrão: Ser civilizado significa, aqui, que os homens são cada vez mais trazidos a um denominador comum, que o tipo de um comportamento normal se expande, que é esperado de todos e que, de fato, é adotado em porcentagens crescentes. (Freyer, 1965, p. 43) Publicada em Novembro de 2007 processo possam surgir práticas tão diferentes a ponto de não conseguirmos reconhecê-las como tal. Conforme o estudo da história da capoeira nos mostra, é-nos impossível definir qual é a capoeira "verdadeira". Os intermináveis embates retóricos entre Regional e Angola até hoje não foram conclusivos sobre qual delas é "melhor". Os discursos desqualificadores de uma ou outra mostram-se falhos, e se apóiam em mitos criados para tal, conforme aponta Vieira e Assunção (1998). Tem valor, portanto, o empenho por fazer verdadeira a nossa capoeira, aquela que praticamos cotidianamente, e nessa tarefa reside um primado da ética, do compromisso e da responsabilidade. Nesse empenho, não cabe enquadrar nossa velha capoeira em um conjunto de regras; cada capoeirista singular deve assumir sua responsabilidade intransferível, de fazer verdadeira a herança cultural que lhe foi legada por nossos antepassados. A civilização não tem por finalidade ampliar as possibilidades criativas dos homens e provocar soluções originais, e sim conseguir desempenhos garantidos (Freyer, 1965, p. 48). O reconhecimento da capoeira como prática cultural brasileira não pode significar sua civilização no sentido indicado por Hans Freyer, pois isso implicaria modelá-la a um esquema, exclusivo e excludente, definido por instâncias externas. Esse tipo modelagem poderia ser realizado por meio da redução de todas as diversas capoeiras a um padrão fora do qual qualquer modo de sua expressão seria considerado anômalo. Assim, não corremos o risco de pensar que a prática de capoeira é a simples reprodução de práticas ancestrais, que um dia tiveram o sentido da busca pela liberdade e da resistência à opressão, e que hoje somente nos fazem lembrar nossa história. Reconhecer o sentido presente da capoeira é compreender que sua prática não é importante somente para ela mesma ou para a cultura brasileira; é importante para as nossas vidas. No contexto de nossa contemporânea civilização, manter a resistência e a busca por liberdade que a capoeira representou desde sua origem significa também dar espaço às manifestações de sua diversidade. Pois a liberdade não é possível sem auto-definição. O intenso processo de expansão da capoeira, mesmo que utilize as mesmas vias da globalização de mercados, que tende a homogeneizar as culturas, pode gerar o efeito inverso, permitindo a criação de cada vez mais diversidade em seu universo. Pois em cada local em que ela aportar, seus praticantes nela imprimirão os sentidos que lhes forem convenientes, e assim irão adaptá-la à sua própria realidade e aos seus anseios, mesmo que desse Bartholo, Roberto. O Diálogo nos Rigores do Pensamento: Notas sobre Conhecimento e Verdade a partir de Emmanuel Lévinas. Revista Tempo Brasileiro, no 152 (Sociedade do Conhecimento: Passes e Impasses), p. 43-73, 2003. Referências Bibliográficas Bartholo, Roberto. Passagens: Ensaios entre Teologia e Filosofia. Editora Garamond, Rio de Janeiro, 170 pp, 2002. Bartholo, Roberto. Você e Eu: Martin Buber, Presença Palavra. Editora Garamond, Rio de Janeiro, 117 pp, 2001. 19 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Buber, Martin. Do Diálogo e do Dialógico. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. Editora Perspectiva, São Paulo, 171 pp, 1982. Reis, Letícia V. Souza. O Mundo de Pernas Para o Ar: A Capoeira no Brasil. Publisher Brasil, São Paulo, 208 pp, 2000. Buber, Martin. Eu e Tu. Tradução de Newton Aquiles Von Zuben. Editora Cortez e Moraes, São Paulo, 170 pp, 1977. Soares, Carlos Eugênio Libano. A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro. 2ª edição, Editora Unicamp, Campinas, SP, 2004, 608 pp. Buber, Martin. The Knowledge of Man. Tradução de Maurice Friedman e Ronald G. Smith. Humanities Press International Inc. New Jersey, 174 p, 1988. Freyer, Hans. Teoria da Época Atual. Tradução de F. Guimarães. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 226 pp, 1965. Freyre, Gilberto. Casa Grande & Senzala. 43ª edição, Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 2001, 668 pp. Guardini, Romano. O mundo e a pessoa : ensaio para uma doutrina cristã do homem. Tradução de Fernando Gil. Livraria Morais Editora, Lisboa, 253 p, 1963. Illich, Ivan. La convivencialidad. México: Joaquin Mortiz/Planeta, 1981. Kafka, Franz. O Processo. Editora Brasiliense, 1998, 292 pp. Tavares, Julio César de Souza. "Dança da guerra: arquivo-arma", dissertação de mestrado, Sociologia, Universidade de Brasília (UnB), 1984. Tunes, Gabriela; Tunes, Elizabeth e Mamede, Márcia. Chineladinha de mãe: a articulação do uso da violência a um sistema de valores na educação de crianças. Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais, no 5, 2006, p. 57-75. Disponível em www.ltds.ufrj.br/gis. Vieira, Luiz Renato e Assunção, Mathias Röhrig. Mitos, Controvérsias e Fatos: Construindo a História da Capoeira". Estudos Afro-Asiáticos, n. 34, 1998. Vieira, Luiz Renato. A Capoeira e a Cultura Internacional Popular. Revista Praticando Capoeira, n. 18, 2002. Lévinas, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Edições 70, Lisboa, Portugal, 287 pp, 2000. 20 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Artigo Achegas para a História da Viola no Brasil Wagner Campos* Resumo Trata-se de um texto que narra, com base em documentação, a história da viola e de sua chegada ao Brasil, trazida pelos portugueses. Procura descrever como, em terras brasileiras, fruto da miscigenação de culturas diversas, especialmente a negra e a indígena, desenvolvem-se novos tipos de viola, ainda que mantida a sua estrutura original básica. Palavras-chave: viola, guitarra de cinco cordas, música, folguedos populares Abstract This text narrates, based on documentation, the history of viola and its arrival in Brazil, brought by Portuguese people. It describes how, in Brazil, as a result of miscegenation of various cultures, specially black and Indian, new types of viola are developed, even though its basic original structure is kept unchanged. Key words: viola of five guitar strings, music, popular folk "(...) e eu da viola empossado cantava como um quebrado, tangia como um crioulo, conversava como um tolo, e ria como um danado..." Gregório de Mattos Introdução Segundo a mitologia Grega, Hermes1 teria sido o inventor do primeiro instrumento musical de cordas dedilhadas, a lira. Ainda, segundo a lenda, Apolo, deus da música e da arte do arco e flecha, então encantado com o som do instrumento, teria trocado tudo o que tinha por ele2. em Osuna em 1555, escrevendo sobre a origem da vihuela diz: Referindo-se também à antiga lenda, Juan Bermudo, no capítulo XXXVI de seu tratado "Declaración de instrumentos musicales", publicado * Jornalista formado pela UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF). "Quiem fue el inventor primero dela vihuela? Respondefe, que Mercurio, y la hallo en la manera figuiente. Como el rio Nilo, dizem, falgava muchas 1 Nome grego de Mercúrio. Uma das doze divindades do Olimpo, filho de Júpiter e Maia, nascido no monte Cilene, na Arcádia. 2 De acordo com a lenda, Mercúrio rouba parte dos rebanhos guardados por Apolo, que, ao descobrir o feito, o conduz a Júpiter que o obriga a devolver os animais. Apolo, no entanto, encantado com o som do instrumento inventado por Mercúrio, dá-lhe o gado em troca da lira. 21 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 vezez fuera de madre, ala buelta que mengua dexailos cãpos muchos animales muertos entre los quales quedo una tortuga, o galapago, Como efte animal fe pudriefe, y fe quedafen los niervos eftirados:fueron heridos los dichos niervos por Mercurio, y hizieron fonido harmonico. Ocafiunado de efte hecho el dicho Mercurio:hizo la vihuela, y diofela a Orpheo: porque era muy eftudioso en la Mufica. La vihuela que Mercurio inveto: tuue quatro cuerdas, y Orpheo la perfecciono". hebreos a Jubal. Pero basándonos en investigaciones científicas, encontramos que los instrumentos de cuerdas pulsadas conocidos por las más lejanas civilizaciones del Antiguo Oriente, se dividen en dos grupos. Los unos, provistos de un mango más o menos largo, a fin de obtener de cada cuerda varias notas, como ocurre en la guitarra o el violin; los otros, sin mango alguno, dejando que las cuerdas vibraran en toda su extención, como la cítara o el arpa". Citando uma variante da lenda, D.E.M. em seu método "Novísimo Arte de Tocar La Guitarra por Cifra, sin necesidad de maestro", publicado em Madri no ano de 1881, diz que a guitarra teria sido inventada por Mercúrio que a deu a Apolo em troca de um rebanho de bois. Apolo, já possuidor de uma cítara, cedeu-a então a Orfeu, que teria dito: Certo é que, desde a mais remota Antigüidade, instrumentos de cordas já eram utilizados, tendo seus remanescentes recebido durante a idade média e a renascença a denominação geral de "viola". Atribui-se a esse termo, comum a todo o romançário, um sentido onomatopaico, procedente do occitano antigo "viula",3 derivado de "viular", ou seja, tocar um instrumento de sopro, aludindo ao ato do cantar melódico. Em uma variante, registra o dialeto Catalão a palavra "fiular",4 significando "piar", assim como no latim vulgar do século XI, os termos "vidula", "vitula" e "fitola"5. "Es un instrumento en el cual suenam tantas voces cuantas son las cuerdas de que se compone". Apesar do caráter poético atribuído, considerase hoje a possibilidade de os instrumentos de cordas serem derivados do arco de caça, utilizado pelo homem desde os seus primórdios. Assim é que Homero, em seu clássico "Odisséia", conta que o herói Ulisses, ao experimentar seu arco perante os pretendentes de Penélope, pulsa a corda produzindo uma nota musical, só igualada pelo cantar de um pássaro: "... Mas o engenhoso Ulisses, já tendo examinado o grande arco - qual um hábil citarista e cantor, facilmente estende com a cravelha nova uma corda feita com a tripa retorcida de uma ovelha, que antes prendera de um lado e de outro: deste modo, sem esforço algum, armou Ulisses o grande arco. Em seguida tangeu a corda com a mão direita produzindo um som tão belo, só semelhante ao canto de uma andorinha". Emilio Pujol, discutindo as origens da guitarra em conferências realizadas em Londres, Paris, Barcelona, Buenos Aires e Montevidéu, respectivamente nos anos de 1928, 1929 e 1930, disse: "...según la Mitología antigua, tendrian su origen en la lira, cuya invención atribuyen los griegos a Hermes; los egipcios, a Thoth Trismégiste, y los "Alcuns hòmens an subtilea en parlar (...), altres en sonar la viula..." 6 Diz-se, então, que o termo "viula", tanto quanto suas variantes, adaptou-se facilmente nas línguas modernas, como nas nórdicas "fiele" e "fele"; no alemão, "videl"; no francês "vielle", no inglês "violl", no espanhol "vihuella", e em nossa forma conhecida, no italiano e no português "viola". Diz-se também que com o mesmo sentido imitativo, de caráter onomatopaico, o termo passa a ser aplicado a instrumentos de cordas, procurando dar aos cordofones a mesma dimensão melódica atribuída aos instrumentos de sopro: 3 J. Corominas, em "Diccionario crítico etimológico catellano e hispânico" , Madrid - 1954. A. Buarque de Holanda Ferreira, em "Novo Dicionário da Língua Portuguesa", Rio de Janeiro - 1986. ("Silbar", "Piular"). Citado por Ramón Andrés, em "Dicionario de Instrumentos Musicales de Píndaro a J. S. Bach", Barcelona - 1995. 4 5 Francisco da Silveira Buena, em seu "Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa", publicado em São Paulo em 1968, escreve: "Lat. Med. Vidula. A origem desta forma está ainda em litígio: seria o germânico Fidula que foi alatinado em Vidula ou, ao contrário, proviria o germânico do latim? A maioria inclina-se a admitir uma origem germânico-escandinava, onomatopaica. A minoria aceita que Vidula se derivou do latim vitulari, entoar cantos de vitória, de alegria". Alceu Maynard de Araújo, em seu livro "Folclore Nacional", publicado no Rio de Janeiro em 1964, escreve: "No baixo latim encontramos: vidula, vitula, viella ou fiola, mas nenhum destes vocábulos serviu para designar a nossa viola. Tratava-se de um violino pequeno, um tetracórdio. Era a viola de arco, uma espécie de rabeca". Ramon Lull (1235-1315), em seu "Libre de Contemplació de Déu". 6 22 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 "O cembalo dá lugar ao saltério e a doce viella não permite que adormeçam brandamente os olvidos dos homens".7 As violas existiam em duas versões, uma delas tocada com arco e outra com a mão, tangida com os dedos ou com um plectro.8 Em sua versão de arco, a viola foi na baixa idade média um dos instrumentos mais apreciados da música cortesã, conhecida na França com os nomes de vièle ou vielle. Acredita-se, no entanto, que em sua origem oriental a viola tenha sido um instrumento ponteado, ou seja, tocado com os dedos, tornando-se posteriormente, devido a várias transformações morfológicas, um instrumento de arco, adaptado primeiramente pelos povos mediterrâneos, sendo muito utilizado na Europa a partir do século X. Data dessa época a primeira iconografia conhecida desse instrumento, em um manuscrito mozárabe do Apocalipse, conservado na Biblioteca Nacional de Madrid, provavelmente escrito em meados daquele século. Atribui-se aos primeiros arcos uma forma curva, apresentando pequeno tamanho, de construção muito rudimentar, estilizando-se com o tempo, adquirindo, já no século XI, maiores proporções. No século XII, de acordo com as esculturas em pedra existentes no "Pórtico de la Glória" da Catedral de Santiago de Compostela, o instrumento apresenta caixa de ressonância e braço independentes, tendo a caixa um formato que remete levemente ao tradicional formato de "oito" conhecido posteriormente. No século XIII, Hyeronimus de Moravia, em seu "Tractatus de Musica", registra a utilização de três afinações distintas para o instrumento, atestando assim a sua larga presença na Península Ibérica: Publicada em Novembro de 2007 Aludindo sobre a antiguidade da viola em Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira em seu livro "Instrumentos Musicais Populares Portugueses", publicado em Lisboa em 1966, escreve: "As violas e seus congêneres9 são também de estirpe muito remota. Entre nós, elas identificam-se já no século XIII, como instrumento trovadoresco, e sobretudo no século XV em diante, em que aparecem largamente difundidas e com favor crescente, especialmente em terras ocidentais;" Importante esclarecer que Ernesto Veiga de Oliveira, utilizando genericamente o termo viola, se refere a uma variedade de instrumentos de cordas da baixa idade média, tocados com arco ou com as mãos. A viola, tal qual a conhecemos hoje, é um instrumento de cinco ordens de cordas duplas, oriundo de finais do século XVI e início do XVII, bastante assemelhado a chamada guitarra espanhola de cinco ordens do período barroco. Em termos documentais sabe-se que o fabrico de violas10 em Portugal, sobretudo em Lisboa, remete ao século XV, onde se tem notícia, desde 1424, de um profissional artesão chamado Martins Vasques Coelho (1912): "...vassalo de El -Rei, que habitava numa herdade aforada pelo convento de São Domingos, sita em frente de Santa Maria da Escada, em Lisboa". Sobre o assunto, inúmeras outras fontes existentes informam sobre a presença da viola em Portugal desde o século XV, tornando-se com o tempo o principal e mais importante instrumento musical do país, presente nos mais diversos momentos da vida cotidiana. Em documento existente em Portugal, datado de 1459, foi encontrada a "Reclamação dos Procuradores da Cidade de Ponte de Lima" (Brito, 1910), referindo-se a uma exposição feita às cortes de Lisboa queixando-se ao rei D. Afonso V dos 7 Guillaume de Castillon (século XII), em seu poema "La Alexandreis". Aqui o termo "viella" aparece como uma variante. Um tipo de palheta, em geral feita com pena de ave. 8 Se utilizarmos como fonte, por exemplo, as iluminuras existentes nas "Cantigas de Santa Maria", do século XIII, podem significar tanto instrumentos de arco quanto de mão. 9 10 Considerando a primeira metade do século XV, entende-se ainda que as “violas” em questão podem ser tanto instrumentos de arco quanto de mão. 23 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 malefícios que "por causa das violas"11 se sentem por todo o reino, alegando que certas pessoas se serviam do instrumento para, tocando e cantando, mais facilmente roubarem as casas e dormirem com suas mulheres, filhas e criadas. há-mo de jurar o autor. Isto quero agora ver e hei-vos d'ouvir tanger e mais cantar, meu senhor. "Ajuntãse dez e dez hom?s E leuom hua violla E tres e quatro estam tamgendo E camtando E os outros Entom escallam as cassas E Rouba os hom?s de suas fazemdas, E outros que tem máas molheres E máas filhas ou criadas como ouuem tanger a violla vemlhes deffechar as portas e dormem com ellas. E quamdo se espedem leuom alguua coussa". Autor, quereis cá chegar? João de Freitas Branco, em seu livro "História da Música Portuguesa", publicado em Lisboa em 1995, refere-se a 26a. Constituição do Sínodo13 do Porto, de 1474, proibindo que se realizassem nas vigílias das igrejas jogos, momos,14 cantigas ou bailes: "... ou que se tangessem sinos nem campanas, nem órgãos nem alaúdes, guitarras, violas, pandeiros, nem outro nenhum instrumento". Em relação à popularidade do instrumento, utilizado pelos mais diversos segmentos sociais, Antonio Ribeyro Chiado, em seu "Auto da Natural Invenção"15, apresenta uma personagem-ator negro, tocador de guitarra e responsável pela execução da parte musical de uma companhia de teatro ambulante. Tendo sido então posta em dúvida suas habilidades artísticas pelo dono da casa contratante do espetáculo, as personagens travam o seguinte diálogo: " Dono: Por que entraes? Negro: Para tanger e cantar. Dono: Sois negro Orfeo? Nam creo que sois cantor; Quem me quer? Dono: Nam se espante: conheceis êste galante? Como consequência, ordena el-Rei: "... quem depois do sino de correr, onde o houvesse, e, onde o não houvesse, depois das nove horas da noite até "manhãa chãa sol saydo"- fôsse achado com viola ou outro instrumento de tanger pela cidade, vila ou lugar, desde que não houvesse festas "e vodas que se faz~e com mujta gente e com tochas e candeas", fôsse preso e perdesse a viola e as armas e vestidos que troxesse".11 Autor: Autor: Si, senhor, que há de cantar. Dono: Mandai-lhe vir um discante,16 que isto hei d'exprimentar. Negro: Nam, que eu trago aqui guitarra. (...)17 Aqui tange e canta o Negro um vilancete..."18 Um aspecto importante deste diálogo diz respeito à utilização do termo "guitarra", sendo este utilizado genericamente pelos europeus, já em meados do século XV e em diante,19 para designar vários instrumentos de cordas dedilhadas, 11 Considerando a segunda metade do século XV, o instrumento em questão tanto pode ser uma guitarra de quatro ordens quanto uma vihuela de mão. Citado por Mario Sampaio Ribeiro em "As guitarras de Alcácer e a guitarra portuguesa". 12 Hildebrando Lima e Gustavo Barroso, em seu "Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa", publicado no Rio de Janeiro em 1939, escrevem: "Assembléia de párocos e de outros padres, convocada por ordem de seu prelado ou de outro superior". 13 Frei Domingos Vieira, em seu "Thesouro da Língua portuguesa", diz que "momo", do latim "momus", significa: "Representação mímica, expressão de um drama por meio de linguagem gesticulada. Farsa satyrica, a que os antigos davam o nome de arremedilho". 14 15 Sem data conhecida de publicação. Sabe-se, no entanto, que foi representado na presença de D. João III (1502-1557). 16 Entre os séculos XI e XII o termo "discante" significava, em um sentido geral, a parte mais aguda de uma composição musical a duas vozes. A partir do século XVI, sem perder seu sentido, o termo se especifica, passando a significar o instrumento musical responsável por tocar a parte mais aguda dentro de um conjunto. Também, mais especificamente, passa a designar espécies de cordofones pequenos, de tessitura aguda, sendo o termo discante, utilizado em Portugal à época para designar até mesmo instrumentos como o banza. 17 A julgar pela comparação feita pela personagem, diferenciando hierarquicamente um discante de uma guitarra, o instrumento em questão se trata provavelmente de um de mais amplos recursos técnicos, incluindo dimensão e tessitura. 18 Vilancete: Gênero de cantiga popular da península ibérica, cantada em espanhol ou português, o termo deriva da palavra "vilão", significando homem de vila (da rua), ou seja, do povo. Pe. Raphael Bluteau, em seu "Vocabulario Portuguez e Latino", escreve: "Som que se faz em inftrumentos de corda". 19 Pe. Raphael Bluteau, em seu já citado "Vocabulario Portuguez e Latino", registra, sem diferençar: "Viola. Guitarra". 24 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 incluindo, a julgar pela gravura que ilustra o frontispício da primeira edição do "Auto da Natural Invenção", o banza20. marchetada cõ h? marchete de oito e outro de quatro muito bem feitos, e pelo pescoço arriba leuara h? rotolo ou h?a trema cõ h?as encaixaduras cõ seus remates e seraa grudada cõ grude de pexe, fundo e tampão, e seraa forrada por dentro co forros de panno: Ainda em termos de registro, João Brandão em seu "Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa na Segunda Metade do século XVI" (Tinhorão, 1998), referindo-se a levantamento estatístico realizado em 1552 naquela cidade, informa sobre a existência de cerca de quinze fabricantes de viola,21 bem como de outros dez fabricantes de cordas. Sabe-se ainda que na região norte do país estes instrumentos eram fabricados por uma indústria localizada na então vila de Guimarães, composta de várias oficinas especializadas na construção de instrumentos de cordas. E Cristovão Rodrigues de Oliveira, em "Sumário em que Brevemente se Contém Algumas Cousas que Há na Cidade de Lisboa", publicado no ano de 1938 em Lisboa, referindo-se ao século XVI confirma a existência naquela cidade de dezesseis violeiros e "homens que fazem cordas de viola" (Sardinha, 2001). Assim é que a partir da segunda metade do século XVI em Portugal 22, um instrumento com a característica forma de oito, de caixa alta, boca redonda, braço de médio tamanho, com dez cordas agrupadas em cinco ordens duplas, presas em um cavalete colado sobre um tampo, encontra-se amplamente difundido. Designado correntemente de viola, sua utilização generalizase em contextos mais populares, ou no dizer de Ernesto Veiga de Oliveira: "...em festas rurais e de rua, ao serviço de amores, aventuras, devaneios e folias, a entreter lazeres e saudades, serenatas e 23 mundanidades, mais ou menos sérias ou frívolas " O ano de 1572 registra em Portugal, o "Livro dos regim~etos dos officiaes mecânicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lixboa"24 no qual dá um registro detalhado da fabricação de violas no país à época: "E o official do ditto officio que tenda houuer de ter faraa h?a viola de seis ord?s de costilhas de pao preto ou vermelho laurada de fogo muito bem moldada e laurada, tampão e fundo de duas metades - ss - junta pelo meo muita bem feita e Publicada em Novembro de 2007 Item faraa h? laço de talha fundo ou raso muito bem feito: Item regrara muito bem a dita viola e a alimpara e per esta manr.a seraa acabada: Item encordoara a dita viola muito bem segundo pertencer ao tamanho della, e apontara e afinara de maneira que possão nella tanger: Item mandão que os violeiros que tenda teuerem que fação as violas de seis ord?s de duas costilhas, e seião forradas cõ pions ou lenços. e os laços dellas de talha seião de folha. e se os quiserem fazer no tampão seião forrados de purgaminho:"25 O instrumento aparece também registrado na "Chronica de ElRei D. Sebastião"26, escrita em 1586 por Fr. Bernardo da Cruz27 e publicado em Lisboa 20 Instrumento de origem africana, de quatro ordens de cordas simples e caixa redonda, conhecido em Portugal desde o início do século XVI. Sobre o instrumento, Domingo Prat, em seu "Diccionario de Guitarristas", publicado em Buenos Aires em 1934, escreve: "Se llama Banza, una espécie de guitarra que usam los negros y que produce sonidos monótonos y desagradables . Su construcción es grossera y primitiva....". Podendo significar tanto guitarras quanto vihuelas. 21 Considerando a época, registra-se em Portugal a já existência de instrumentos com cinco ordens de cordas, como por exemplo o único exemplar que chegou até nossos dias, a famosa guitarra de Belchior Diaz, construída no ano de 1581, pertencente hoje à coleção do Royal College of Music, de Londres, também chamada de viola requinta em Portugal. 22 "Instrumentos Musicais Populares portugueses". 23 Publicado por Vergílio Correa, em Coimbra, no ano de 1926 . 24 Importante notar que o texto do Regimento, ao citar viola de seis ordens de cordas, se refere certamente à vihuela. 25 Sobre o livro, Innocencio Francisco da Silva, em seu "Diccionario Bibliographico Portuguez", publicado em Lisboa, no ano de 1858, escreve: "Chronica d'Elrei D. Sebastião, publicada por A. Herculano e o Doutor A. C. Paiva. Lisboa, na Imp. de Galhardo e Irmãos 1837. 8.º gr. de XVI 446 pag. e indice no fim sem numeração, seguindo se uma lista dos subscriptores, que sobem ao numero de seiscentos e tantos, circumstancia assás notavel entre nós. - Tem um prologo dos editores, em que se dá razão da obra e do seu auctor, com interessantes particularidades, que lhes dizem respeito. (...) Este livro é hoje quasi raro no mercado achando se exhausta a edição, que foi toda distribuida entre os assignantes. Os exemplares usados que apparecem têem sido vendidos pelos preços de 480 até 720 réis. Eu comprei um em 1840 pelo primeiro dos referidos preços". Em verdade, sabe-se hoje que a obra em questão foi escrita por Estevan Ribeiro mas atribuída a Bernardo da Cruz. Diogo Barbosa Machado, em seu "Bibliotheca Lusitana", publicado em Lisboa entre os anos de 1741 e 1758, escreve: "Estevan Ribeyro cuja patria, e estado de vida ignoramos, escreveo com estilo sincero. Chronica delrey D. Sebastião. M.S. a quall alegaõ Fr. Ant. à Purif. de vir. Iillustrib.Ord. Eremit. D. Aug. lib. 3. Cap. 14. e Cardos. Agiol. Lusit. Tom. 2. pág. 621. no comment. de 17. de Abril. let. D". E Mário de Sampayo Ribeiro, em seu artigo "As guitarra de Alcácer e a guitarra portuguesa", publicado em Lisboa em 1936, escreve: "Estêvam Ribeiro, em sua Chronica de D. Sebastião - a que anda impressa como da autoria de frei Bernardo da Cruz ...". 26 D. Frei Bernardo da Cruz (1530? - ?). Franciscano da Congregação da Terceira Ordem, e Capelão mór da Armada do Rei D. Sebastião. Foi o único dominicano a ascender ao cargo de reitor da Universidade de Coimbra, exercendo-o entre os anos de 1541 e 1543. Foi também o primeiro de vários reitores a estar ligado ao Tribunal do Santo Ofício e foi encarregado pelo Cardeal Infante D. Henrique de estabelecer a Inquisição em Coimbra. Em sua "Chronica", frei Bernardo da Cruz, que acompanhou a expedição de D. Sebastião (1554-1578) a África, deixou um relato preciso das batalhas travadas no Marrocos, descrevendo minuciosamente alguns de seus cruciais momentos. 27 25 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 no ano de 1837, por Alexandre Herculano e Dr. A. C. Payva, onde narra o episódio de AlcácerQuibir28 ocorrido em 1578 na África, envolvendo os exércitos de Portugal e Marrocos, sendo o último liderado pelo sultão Mulei-Maluco. Sobre o sultão, Bernardo da Cruz, no capítulo XXIII, descreve-o como homem culto, civilizado, conhecedor de vários idiomas e dono de muitos talentos, dominando as artes da poesia, dança e música, incluindo diversos instrumentos: "...e era Mulei-Maluco de tanto engenho, que aprendeo a lingua Turcesca, Latina, Italiana, Franceza e Espanhola, lendo e sabendo muitas historias nellas escritas, em que aprendeo muita discrição e primor de palavras e cortezias, dinas de hum principe mui cortesão; mas por que lhe naõ ficasse alguma manha que naõ tentasse aprender, deo-se á poesia, e em as línguas que tinha sabido fazia muitos versos e sonetos de muita suavidade de palavras e gravidade de sentenças, acrecentando a isto ser muito musico, dançador, tangedor de tecla, de viola e alaúde, com outros instrumentos que os christãos usaõ, fazendoo com tanta arte e melodia, que punha espanto a toda Berberia, por nisso fazer ventagem a todos os mouros, pouco acostumados a estas artes". Ainda, no capítulo LXXV, Bernardo da Cruz, referindo-se aos muitos "sinais que houve do infeliz sucesso delrei e do seu desbarate", cita o músico português Domingos Madeira, que cantou uma vez durante a jornada pelo mar um romance29, acompanhando-se à viola30,sendo o fato encarado como um mau presságio, um prenúncio do que viria a ocorrer: "...Outro cuja significação não se engeitou, foi, que indo hindo pelo mar Domingos Madeira, musico del-rei, cantando-lhe, e tangendo em huma viola, começou de cantar hum romance: Ayer fuiste rey d'España: hoy no tienes un castillo: tanto foi isto tomado em máo agouro, que logo Manoel Coresma lhe disse deixasse aquella cantiga triste, e cantasse outra mais alegre". Quatro anos depois, o relato de Bernardo da Cruz é complementado pelo do secretário do abade Dom Jean Sarrazim, o frei francês Philipe de Caverel, religioso de Saint-Vaaz, narrando a viagem que o embaixador fez a corte de Filippe Publicada em Novembro de 2007 II em Lisboa no ano de 1582, no qual discorre sobre a lenda das "dez mil guitarras" 31 encontradas no campo de batalha de AlcácerQuibir (Ribeiro, 1936): "Foi encontrado nos despojos do campo de batalha do Rei D. Sebastião de Portugal, depois dos combates, nos quais ele foi derrotado pelo Rei de Fez e do Marrocos, cerca de dez mil guitarras, coisa notável que alguns justificavam dizendo que os portugueses engajados cantavam o seguinte refrão: "os castelhanos matam os toros, os portugueses matam os mouros". Fruto de uma romântica lenda que percorreu todo o sul de Portugal, claro é que o evidente exagero do frei francês, citando "dez mil guitarras", não 28 A batalha de Alcácer-Quibir aconteceu em uma aldeia chamada Suaken, próxima a Al-Kasr al-Kebir, no Marrocos, norte da África, travada entre os portugueses e os mouros de Marrocos, liderados, respectivamente, por D. Sebastião (1544 -1578) e o sultão Ahmed Mohammed de Fez, resultando a derrota do exército português e a morte de D. Sebastião. Sobre sua morte, Frei Bernardo da Cruz em sua "Chronica" escreve: "O primeiro que cometteo, e o derradeiro que acabou, foi elrei dom Sebastiam de gloriosa memória, cujas façanhas, feitas com sua mão, foraõ taes que em certa maneira ficarão viciadas, por se ver claramente que nenhum fim elle tivera naquella temerária batalha, senão conclui-la com a força de seu braço, com o qual até a morte naõ cessou de pelejar, deixando magoa aos cristãos de se perder tal esforço por mãos conselhos, e espanto aos mouros pelo estrago que nelles aquelle dia fez". O conflito teve origem em 1576 com a deposição do sultão Mulei Maamede pelo sultão MuleiMaluco, constituindo uma ameaça para a segurança das costas portuguesas e para o comércio entre o oriente, Guiné e Brasil, motivando então a intervenção de Portugal. Partindo de Lisboa em oitocentos navios, no dia 25 de junho de 1578, o exército de D. Sebastião segue viagem para Tanger e Arzila, e de lá para Larache, por terra, a caminho de Alcácer-Quibir, chegando no dia 27 de julho, onde se dá a batalha com o numericamente maior exército de Mulei-Maluco em 4 de agosto. A morte de D. Sebastião provoca uma crise política que põe em risco a independência de Portugal, devido ao fato de el-rei não ter deixado herdeiros, resultando na perda do trono para Felipe II da Espanha. Ainda, dá início a um movimento místico-secular que se inicia já na segunda metade do século XVI, denominado sebastianismo, ocasionado pelo inconformismo popular com aquela situação política, traduzida pela expectativa e crença do povo na ressurreição do rei morto vindo em salvação de Portugal, libertando o país do jugo estrangeiro. O movimento sebastianista também teve reflexos no Brasil em fins do século XIX e início do XX, refletindo, por exemplo, os eventos históricos acontecidos na pedra bonita e Canudos, na região nordeste, pregando, igualmente, que D. Sebastião, retornaria da morte, desta vez para restaurar a monarquia no Brasil, contra o recém inaugurado governo Republicano. Considerado símbolo da nacionalidade portuguesa, sobre el-rei D. Sebastião, José Mattoso em seu livro "História de Portugal", publicado em Lisboa, s/d, escreve: "Senhor da sua vontade, não encontrou quem soubesse evitar a sua ida a Marrocos em 1578. A sua valentia física e a preparação militar pessoal não lhe deram qualidades de comando em campo, de que precisava. Por isso se ficou na jornada de África". 29 Os romances eram textos musicados geralmente cantados com acompanhamento de vihuela. Primeiramente, na baixa idade média, designava a língua falada pelo povo, também conhecido como baixo latim, em contraste com o latim falado pelos nobres e clérigos. Menéndez Pidal, em seu livro "Flor Nueva de Romances Viejos", publicado em Madri em 1938, define: "poemas épicos-líricos breves que são cantados ao som de um instrumento, seja em festas dançantes, seja em reuniões ensejadas para o recreio simplesmente, ou para o trabalho comum". Derivados das epopéias e gestas medievais, com o passar dos tempos o romance adquire novas formas. No Brasil registra-se ainda hoje a permanência de vários romances na quase totalidade das regiões do país, tendo como característica também o ser acompanhado pela viola. 30 Possivelmente, uma vihuela ou uma guitarra de quatro ordens de cordas. Queiroz Veloso, em seu livro "D. Sebastião", publicado em Lisboa no ano de 1935, escreve: "É corrente a afirmação de que entre os despojos da batalha se encontraram dez mil guitarras. Ainda que todos os aventureiros e fidalgos levassem um desses instrumentos - o que parece inverossímil - nunca poderiam atingir a quarta parte". Sobre o contingente de homens envolvidos na batalha de Alcácer-Quibir, frei Bernardo da Cruz, em sua já citada crônica, escreve: "...começou elrei a ajuntar gente, e se fez numero de quatorze mil infantes: havia mais mil e quinhentos de cavallo, assi acubertados, como ligeiros, excepto mil e quinhentos gastadores, e outra gente de serviço, que fez numero mais de vinte e cinco mil homens, que pêra jornada taõ comprida, onde todas as cousas necessárias haviaõ de passar por mar, foi grande exercito". 31 26 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 denota outra coisa senão a popularidade que o instrumento desfrutava em Portugal à época, sabidamente generalizado em todo o país. Tanto é que Philipe de Caverel registra em sua crônica: "Os Portugueses são grandes amantes de suas guitarras". Por outro lado, Souza Viterbo32, na "Apreciação Crítica" que introduz o segundo volume do "Cancioneiro de Músicas Populares", de Cesar das Neves,33 publicado no Porto em 1895, interpreta como algo negativo a história contada e interpretada por Caverel: "Dir-se-hia que eram estas (as dez mil guitarras) as suas armas de combate. Não é este, porém, o único absurdo que o snr. Caverel edita tão levianamente por conta propria, querendo porventura amesquinhar-nos, quando não faz senão pôr em relevo a sua falta de criterio. É certo todavia que os documentos dão-nos noticia de bastantes musicos que lá ficaram estirados, embalando nas ultimas harmonias guerreiras o somno tragico da morte. De não menos de cinco charamellas mortos encontramos nós noticia pelas mercês concedidas ás viuvas e filhos. Um d'elles, Luis Jaquez, era o charamella-mór e tinha sessenta e tantos réis d'ordenado. Antão Rodrigues, atabaleiro, tambem lhe fazendo companhia". Certo é que Souza Viterbo, na referida "Apreciação Crítica", dá valiosas informações sobre o músico tocador de viola Domingos Madeira, dizendo: "Domingos Madeira tambem foi dos que ficaram captivos em Alcacer, libertando-se á sua custa. Parece que era homem de alguns bens de fortuna; pelo menos possuia numerosa familia; não menos de cinco filhos e quatro irmãs. Parece tambem que era musico de fama e merecimento. Filippe II o mandou vir de Torres Vedras para Lisboa, fazendo-lhe por esse motivo algumas mercês". E cita ainda um documento histórico intitulado "Doações Lo 15,o", conservado na Torre do Tombo, em Lisboa, que atesta o caso ocorrido: "Dom Felipe &e faço saber aos que esta minha carta virem que avendo respeito aos serviços de Domingos Madeira, meu musyco de camara, e a ir Publicada em Novembro de 2007 na jornada de Africa com ho senhor Rey Dom Sebastyão, meu sobrinho, que sancta gloria aja, e se hachar na Batalha d Alcacere, onde foi catiuo e se resguatar a sua custa e se vyr por meu mandado de Torres Vedras com sua casa, molher, cinquo filhos e quatro irmãas , viuer a esta cidade de Lisboa pera seruir ao cardeal archeduque, meu muito amado e prezado sobrinho e irmãao, he há continuação de seu seruiço e a sua pobreza e asy a vaguarem por falecimento de Jeronimo Carualho, seu sogro, LR rs (noventa mil rs) que tynha de tença cada ano e elle ser seu herdeiro per ren~uciação que nelle fez Miguel Perdigão, ey por bem e me praz de fazer merce ao dito Domingos Madeira de coremta mill rs de tença cada ano pellos LR rs que asy vagarão pello dito seu sogro, os quaes R rs (40 mil reaes) de tença começara a vemcer de xxiij dias dagosto deste ano presente de bc lxxxb (1586) em diamte, em que lhe fiz esta merce, a quall lhe asy faço alem das mais merces que lhe jaa tenho feito pellos mesmos respeitos, e por tamto mamdo a Dom Fernando de Noronha, conde de Lynhares, do meu concelho do estado e vedor de minha fazenda, que lhos faça asemtar no Livro della e do dito tempo em diamte despachar cada ano em parte homde delles lhe sejão bem paguos, e por firmeza de todo lhe mãdey dar este por mim asynado e asellado do meu sello pemdemte. Antão da Rocha a fez en Liboa a xx doutubro, ano do nacimento de nosso Senhor Ih~uu xpo de jbc lxxxb (1585), e eu Manuel d Azevedo o fiz escrever". E sobre o assunto, José Alberto Sardinha, em seu livro "A Viola Campaniça, o outro Alentejo", publicado em Vila Verde no ano de 2001, cita, sem informar a fonte: "Aliás, já antes da fatídica jornada, D. Sebastião exibira perante Filipe II de Espanha, no Mosteiro de Guadalupe, durante as festas de Natal de 1576, menestréis portugueses, cantores e tangedores, entre os quais os tocadores de viola Manuel de Vitória e Alexandre Aguiar, este natural do Porto". 32 Francisco Marques de Souza Viterbo (1846-1910), historiador português, publicou, entre outros, diversos estudos sobre música. 33 Cesar Augusto Pereira das Neves (1841-1920), pesquisador português, publicou no Porto, além do referido "Cancioneiro de Músicas Populares", o "Methodo elementar de violão", no ano de 1878, entre outros livros sobre música. 27 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 No século XVII, "Autos do Definitorio" 34 , documento escrito no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (Pinho, 1981), Definição 64a, saída da Mesa do Definitório, em 25 de maio de 1605, regula sobre a proibição dos clérigos de tocar viola e outros instrumentos de cordas, aludindo sobre o caráter pouco abonador de tal prática, objeto de inúmeras reclamações das autoridades: "Por auer deuacidad em tanger uiolas, citharas, bandurrias, co m.to scandalo dos seculares, de q~ nos fizeraõ queixas, mãdamos q~ nh? Religioso da nossa ordem uze dos tais instrum.tos em nh? lugar sob pena de culpa graue, aqual o Prelado sabendo executara sob a mesma pena. O q~ naõ entendemos nos grãias e quintas da(s) portas adentro". E no início do século XVIII, Pe. Raphael Bluteau,35 em seu "Vocabulario Portuguez e Latino", publicado em Coimbra e Lisboa entre os anos de 1712 e 1727, assim descreve o instrumento: "Inftrumento mufico de cordas. Tem corpo concavo, coftas, tampo, braço, efpelho, cavallete para prender as cordas, & pastana para as dividir, & para as pòr em proporçaõ igual, tem onze traftos, para fe dividirem as vozes, & para fe formarem as confonancias. Tem cinco cordas, a faber, a primeira, a fegunda, & corda prima, a contraprima, & o bordaõ. Ha violas de cinco requintadas,36 violas de cinco sem requintes, violas de arco, &c. Chamaõlhe commummente Cithara, polloque o inftrumento, a que os Latinos chamaraõ Cithara, podia fer muito diverfo do que chamamos viola".37 Em 1719 é dada à luz na cidade de Guimarães ao "Regimento para o ofício de Violeiro" (Caldas, 1996), com auto de aprovação pela câmara, em sessão realizada em 21 de Junho do mesmo ano. Entre outros, o Regimento fixa tabelas com condições de venda e fabrico de instrumentos de cordas, especificamente violas e machinhos, objetivando regular seu comércio, evitando especulações de mercado. Publicada em Novembro de 2007 "Rendimento do ofício de violeiros Não levarão mais por uma violla de marca grande, de costilhas, que................................1$500 réis. E sendo branca, do mesmo tamanho............1$200 réis. De uma meia violla de contrabordão, sendo de costilhas pretas......................................................800 réis. E sendo branca, do mesmo tamanho...............700 réis. As viollas que chamam segundas.....................480 réis. E sendo mais pequenas..................................400 réis. Machinho de cinco cordas................................300 réis. Machinho de quatro cordas..............................240 réis. Um tampo de pinhavete, de uma violla de marca, sendo liso..........................................................480 réis. Um tampo de meia violla de pinhavete............240 réis. E sendo mais pequeno...................................150 réis. Cavaletes de pau preto, para viollas de marca....60 réis. E sendo mais pequenos....................................50 réis. E sendo branco.............................................30 réis. E um jogo de caravelhas de pau preto, lisas......60 réis. E sendo brancas.............................................30 réis. "Autos do Definitorio do Cap.o geral q~ se celebrou em o m.to de S.ta Cruz o anno de 605". 34 Pe. Raphael Bluteau (1638-1734) foi Clérigo Regular, Doutor em Teologia e Qualificador do Tribunal da Inquisição de Lisboa. 35 36 Requintada, ou seja, que utiliza, em instrumentos de cordas duplas, uma corda mais fina como par do bordão (baixo), afinada oitava acima deste. 37 Antonio de Moraes Silva, em seu "Diccionario da Lingua Portugueza", publicado em Lisboa em 1813, define: "Instrumento musico vulgar, com cordas de tripas de carneiro, e trastes no braço". F. Adolpho Coelho, citando o instrumento em seu "Diccionario Manual Etymologico da Lingua Portugueza", publicado em Lisboa em 1899, diz:"Instrumento musico semelhante á guitarra, mas de sons mais baixos e caixa em formato de oito". Tomás Borba e Fernando Lopes Graça em seu "Dicionário de Música", publicado em Lisboa em 1958, escrevem: "Instrumento de cordas. Tem etimològicamente a mesma origem da vielle francesa e da vihuela espanhola e, como estes, também se apresentou como instrumento de cordas picadas e de cordas friccionadas, embora fosse nesta última função mais e melhor aproveitada (salvo em Portugal, onde veio sempre designando o instrumento de cordas dedilhadas ou unguladas que, com a característica forma de 8, ainda hoje existe sob três espécies: viola, violinha e violão). (...) Viola Braguesa. Viola cuja designação lhe provém da grande popularidade que sempre teve no distrito de Braga. É, pois, uma viola caracteristicamente portuguesa, montada com cinco ou seis pares de cordas, todas de aço ou arame, mesmo as que servem de alma aos bordões (donde lhe advém a designação de viola de arame por que também é conhecida em várias regiões de Portugal). A sua prática encontra-se muito espalhada, não só nas terras minhotas, mas também nas ilhas dos Açores, Madeira, Brasil e províncias do ultramar. Os virtuosos aproveitam-na, com notável mestria, para realizar variações de toda a natureza no acompanhamento dos cantares e danças populares. É instrumento de sua natureza ungulado, modo de execução que permite a realização de um rasgado (passagem rápida dos dedos, ou, melhor, das unhas, por sobre todas as cordas) quase impossível nos outros instrumentos. A sua afinação é a mesma do violão: mi4, si3, sol3, ré3, lá2, mi2 (de cima para baixo). Nem todas as violas de arame têm esta última corda, ou, melhor, esta parelha de cordas, que, como as duas imediatamente superiores, é constituída por um bordão e uma corda metálica afinada à oitava". 28 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 E sendo marchetadas.....................................120 réis. A mais obras, que não vão neste Regimento, se avirão com as partes como lhes parecer. E não passarão este Regimento, com pena de mil réis para acusador e conselho, por cada vez que forem compreendidos". Ainda, o regimento especifica a feitura de vários tipos de violas: "viollas pequenas", "meias viollas", "de marca grande", "de contrabordões", "de costilha", entre outras, além dos machinhos (Guimarães, 1926), estes descritos como instrumentos de quatro e cinco ordens de cordas. E registra também alguns nomes de construtores de viola atuantes entre os anos de 1720 e 1745, entre eles, Francisco de Figueiredo, Antonio Campos, Belchior de Almeida e António de Figueiredo, todos pertencentes a uma mesma Irmandade, a de Nossa Senhora do Rosário, com oficinas e postos de venda situados numa mesma localidade, a Rua da Fonte Nova.38 O ano de 1752 registra a publicação em Lisboa de um tratado de viola intitulado "Liçam instrumental da viola portuguesa ou de ninfas, de cinco ordens", de João Leite Pita de Roche. O livro em questão aborda os rudimentos técnicos do instrumento, sendo na verdade uma tradução quase literal do método do guitarrista e músico espanhol Juan Carlos Amat, "Guitarra española de cinco ordenes39 ", publicado em Lérida no ano de 1626. Em 1778 é dada à luz na cidade de Évora ao "Livro de Regimentos dos Ofícios e doutros Documentos para a História econômica e Administrativa de Évora", contendo, entre outros, o "Rol da tacha do oficio de violeiros":40 Publicada em Novembro de 2007 Huma Rabeca..............................................1.200 Emcordaduras de emcordoar huma violla grande..........................................240 Meia violla........................................................180 Hum machete...................................................100 Huma Arpa.................................................1.200 No ano de 1789 é publicado em Coimbra o mais importante método para o instrumento, o "Nova Arte de Viola"41. De acordo com seu autor, Manuel da Paixão Ribeiro: " Sendo a viola hum inftrumento taõ eftimavel, e que bem apparelhado naõ tem inveja ao melhor Manicórdio (com tanto, que feja feita com a porporçaõ devida, e executada por artifice habil, e perito das fuas Regras)". E justificando a publicação de seu livro, diz: "A viola tem perdido muito da fua eftimaçaõ, por naõ haver hoje quafi peffoa alguma, que fé naõ jacte de a saber tocar". Em seu método o autor trata de variadas questões referentes à prática do instrumento, incluindo ainda uma parte "especulativa", ou seja, teórica. Entre outras considerações, o método informa que o instrumento se monta com cinco ordens de cordas duplas (sendo as duas mais graves, triplas) e ensina sobre como reconhecer as cordas, como encordoar e temperar a viola, sugerindo para o instrumento o mesmo padrão intervalar de afinação utilizado pela guitarra de cinco ordens: 4a, 3a, 4a, 4a, do agudo para o grave: "Violeiros Violla grande (de) pinho..............................600R.es Violla preta grande.............................................800 Meia violla.....................................................480 Meia violla de pinho...........................................400 Machete e Bandurra...........................................240 Huma Arpa de pinho....................................8.000 38 Citado por Alfredo de Guimarães, em seu estudo "Violas de Guimarães", publicado no volume XXXVI da "Revista de Guimarães", no ano de 1926. 39 "Guitarra española de cinco ordenes la qual ensenã de templar, y tañer rasgado todo los puntos...". O livro de Amat é o mais antigo método para guitarra de cinco ordens que se conhece, tendo sido publicado primeiramente entre os anos de 1586 e 1596. Desta primeira edição nenhum exemplar sobreviveu aos dias de hoje. 40 "RegimentoE. - Este livro contem vários documentos pertencentes a Câmara desta Cidade, e por rezoluçaõ della o numerei e rubriquei com minha rubrica = (Sá?) = Évora 30. de Dezembro de 1778". Citado por Manuel de Moraes em seu estudo introdutório para a edição da"Colecção de Peças para Machete", de Cândido Drumond de Vasconcelos - 1846, publicado no Funchal em 2003. 41 "Nova Arte de Viola para accompanhar com fundamento sem mestre, dividida em duas partes, huma especulativa, e outra practica". 29 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Entre outras tantas considerações fundamentais, de ordem teórica e prática, o autor reproduz em seu método seis táboas explicativas do instrumento e de como tocá-lo, intituladas "Lugar dos Signos na Viola", em duas táboas, "Pontos Naturaes" e "Pontos Bmolados", em três táboas , e "Modo depor cifra qualquer Modinha, Minuette, Etc.", utilizando como exemplo uma peça musical intitulada "Minuette do Mattos". Ainda, registra outros quatro exemplos musicais em partitura, intitulados "Minuette da Rozinha" e "Contra Rozinha", para violino e acompanhamento de viola, e "Modinha a Duo, de meu Mestre o Snr' Ioze Mauricio" e "Outra Modinha a duo do mesmo Autor", ambas para duas vozes com acompanhamento de viola. Assim é que o método escrito por Manuel da Paixão Ribeiro, revestido de caráter pioneiro, significa uma peça importantíssima para a consolidação da viola como instrumento qualificado, de ampla referência na música desenvolvida à época em Portugal. Um verdadeiro ponto de chegada para o saber tradicional. Registra-se ainda em Portugal a existência de três importantes manuscritos históricos sobre a viola, contendo peças musicais para se tocar no instrumento, a saber: "Codex Coimbra", "Codex Gulbenkian" e "O Livro do Conde de Redondo"42, todos provavelmente do século XVIII, conservados, respectivamente, na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, no Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa e na Seção de Música da Biblioteca Nacional de Lisboa. Em referência ao manuscrito "O livro do Conde de Redondo", o musicólogo João Manuel Borges de Azevedo, no estudo introdutório da edição fac-similada de 1987, informa sobre a presença de quatro peças musicais de influência afrobrasileiras na obra, considerando, as duas últimas, provavelmente de origem especificamente brasileira, a saber: "Naõ venda apretas", "Canzindo de Sofalla", "Cumbe"43 e "Amable". De acordo com o musicólogo,44 Cumbe é uma dança de negros. Ainda, diz respeito ao nome de duas serras situadas nos estados de Alagoas e Bahia, além de um rio em Minas Gerais e de uma Publicada em Novembro de 2007 lagoa na Paraíba. Quanto à segunda peça citada, supõe tratar-se de uma canção que prenuncia a modinha, dado o estilo do poema escrito, bem como da utilização do termo "meu bem", sendo esta forma de tratamento, segundo o musicólogo, muito mais afeita ao Brasil do que a Portugal. No que respeita à possível procedência brasileira do "Cumbé", o poeta seiscentista e tocador de viola baiano, Gregório de Matos e Guerra, cita muito antes em sua obra este gênero. E cita também, além do "Cumbé", outros gêneros como o "Arromba", Cãozinho, espanholeta, Canário, saltarelo, vilão, cubango, gandu e etc., sendo alguns destes registrados também, posteriormente, nos citados Códices de Coimbra e Gulbenkian. Sobre a prática musical na corte portuguesa do século XVIII, registra-se o depoimento do doutor em Direito Canônico, Antonio Ribeiro dos Santos, em "Carta sobre as cantigas e modinhas, que as Senhoras cantaõ nas Assemblêas" (Braga, 1901), em sua coleção de "Manuscritos", da Biblioteca Nacional de Lisboa, referindo-se ao mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa, o nosso "Lereno"45 cantando modinhas acompanhadas à viola, em um sarau acontecido na casa de D. Leonor de Almeida, marquesa de Alorna: "(...) cantaraõ mancebos, e donzelas cantigas de amor taõ descompostas, que corei de pejo, como se me achasse de repente em burdeis, ou com mulheres de ma fazenda (...) Hoje pelo contrário só se ouvem cantigas amorosas de sospiros, de requebros de namoros refinados, de garridisses. (...) Esta praga he hoje geral depois que o Caldas começou de pôr em uzo os seus Rimances, e de versejar para mulheres: eu não conheço hum poeta mais prejudicial á educação particular, e pública, do que este trovador de Venus, e de Cupido; a tafularia do amor, a meiguice do Brazil e em geral a molleza americana, que faz o caracter das suas trovas, respiraõ os ares voluptuosos de Paphos, e Cythera, e encantaõ com venenosos filtros, a fantasia 42 Sobre este documento, registra-se ainda uma edição fac-similada com tiragem de 750 exemplares, publicada em Lisboa em 1987 pelo Ministério da Educação e Cultura/ Instituto Português do Patrimônio Cultural, na série Lusitana Musica: I Opera Musica Selecta, intitulada "Uma tablatura para guitarra barroca" - O Livro do Conde de Redondo. 43 "Cumbe...Baile de negros, que se hace al son de un tañido alegre, que se llama del mismo modo, y consiste en muchos meneos de cuerpo a un lado y a otro...". Verbete do "Diccionario da Real Academia Española", Vol. II, publicado em Madri em 1729. Segundo o "Dicionário Universal Ilustrado Linguistico e Enciclopédico", de João Romano Torres, publicado em Lisboa em 1921. 44 30 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 dos moços, e o coração das Damas; eu admiro a facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenções, a variedade dos motivos, que toma para seus cantos, e o pico, e a graça, com que os remata; mas detesto o assumpto, e mais ainda a maneira porque elle o trata". No entanto, em "Diário de William Beckford em Portugal e Espanha", publicado em Londres no ano de 1788, o citado autor,46 músico amador e embaixador inglês na corte de D. Maria I, relata o seguinte fato acontecido em evento datado de 29 de Outubro de 1787: Em livro intitulado "Sketches of Portuguese Life",47 publicado em Londres no ano de 1826, registrase interessante depoimento de seu autor, que se identifica apenas pela sigla A.P.D.G., explicando sobre a prática de se tocar viola em dupla, dando ainda preciosas informações sobre os diversos gêneros musicais praticados: "A música que os portugueses tocam na sua guitarra de cordas de metal consiste sobretudo em valsas, em lunduns e nos acompanhamentos das suas modinhas. As valsas são predominantemente da autoria deles, e são em geral muito bonitas e fortemente coloridas pela expressão lânguida nacional. Os lunduns são mais caracteristicamente portugueses do que qualquer outro tipo de música. A guitarra deles parece ter sido feita para este genero de música. Para ser bem tocada é necessário que haja dois instrumentos, um dos quais toca apenas o motivo, ou tema, que é uma espécie de arpejo bonito e simples, enquanto o outro improvisa sobre estes as melodias mais encantadoras. Nestas, dá-se rédea livre à imaginação mais musical e mais rica possível, e são ocasionalmente acompanhadas pela voz, caso em que é habitual que as palavras sejam tanbém improvisadas". "Estava D. Luís de Miranda, Martinho António de Castro, e Caldas, o poeta, o qual, assim que trouxeram a sobremesa, se desentranhou numa torrente de improvisados versos e durante mais de meia hora prosseguiu lamentando a minha partida em rimas extraordinariamente harmoniosas. Não pude deixar de sentir um entusiasmo que me fez sentar ao cravo e me obrigou a cantar, a despeito da minha disposição. O resultado foi eu ser acometido de violentas palpitações e de um razoável ataque de febre". Certo é que William Beckford em seu diário, referindo-se às modinhas que certamente ouviu cantadas e acompanhadas na viola por Caldas Barbosa, escreve: "não fosse pelos dois meses de viagem de barco, me deslocaria ao Brasil para viver baloiçando-me em redes e estirando-me em suaves esteiras, na companhia de jovens coroados de jasmins e de moças que a cada gesto derramassem essência de rosas". Em inícios do século XIX, o oficial inglês Walter Henry, que esteve em Lisboa no ano de 1808, descreve em seu livro "Events of a Military Life", publicado em Londres em 1843, os hábitos das jovens portuguesas: "Com a exceção de tocarem de vez em quando uma modinha composta para a guitarra, creio que estas raparigas nunca liam, nem trabalhavam, nem desenhavam, nem faziam visitas, nem saiam de casa senão para ir a igreja; e a sua única ocupação, durante o tempo em que fui vizinho delas, parecia consistir em preguisarem pela casa, espreitarem pelas janelas, recostarem-se nos sofás, divertirem-se às custas dos galegos e namorarem comigo, da forma que já descrevi". Publicada em Novembro de 2007 A viola, então, tinha um papel destacado no panorama musical do país, até mesmo num contexto mais urbano, onde, em Lisboa, era o principal instrumento acompanhante com que 45 Lereno Selinuntino, nome arcádico do mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa. Sobre Domingos Caldas Barbosa, Silvio Romero, considerado o primeiro historiador da literatura brasileira, escreve: "O poeta teve a consagração da popularidade. Não falo dessa que adquiriu em Lisboa, assistindo a festas e improvisando na viola. Refiro-me a uma popularidade mais vasta, e mais justa. Quase todas as cantigas de Lereno correm de boca em boca nas classes plebéias truncadas ou ampliadas. Formam um material de que o povo se apoderou, modelando-o ao seu sabor. Tenho dêsse fato uma prova direta. Quando em algumas províncias do norte coligí grande cópia de canções populares, repetidas vezes, colhi cantigas de Caldas Barbosa, como anônimas, repetidas por analfabetos. Foi depois preciso compulsar as obras do poeta para expungir da coleção anônima os versos que lhe pertenciam. É o maior elogio que, sob o ponto de vista etnográfico, se lhe pode fazer". Ainda, Alexandre Barbosa de Souza, em texto de apresentação do livro de José Ramos Tinhorão, "Domingos Caldas Barbosa - O poeta da viola, da modinha e do lundu", publicado em São Paulo em 2004, se refere ao cantor, violeiro e compositor como o "primeiro menestrel brasileiro a fazer sucesso na Europa". E escreve: "E nessa posição Caldas Barbosa consegue granjear "geral estimação" e pleitear uma sinecura religiosa e a inscrição na Arcádia de Roma, onde adotaria o nome de Lereno Selinuntino. (...) Mulato nascido no Rio de Janeiro em 1740, filho de um funcionário real português com uma escrava de Angola, Domingos Caldas Barbosa é um símbolo da miscigenada cultura de nosso país". A obra mais conhecida de Domingos Caldas Barbosa, falecido em 9 de novembro de 1800, intitula-se "Viola de Lereno: colecção das suas Cantigas, Offerecidas aos seus Amigos", publicado em Lisboa em dois volumes nos anos de 1798 e 1806. 46 William Beckford (1760 - 1844), filho de um milionário mercador de escravos e proprietário de terras e plantações na Jamaica, contava vinte e sete anos quando esteve pela primeira vez em Portugal. Considerado um homem culto, com talentos musicais tanto para o canto como para a prática instrumental, era, no entanto, tido como de péssima fama quanto aos costumes pessoais. "Sketches of Portuguese Life, Manners, Costume, and Character". 47 31 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 se cantavam as modinhas, os lundus e até mesmo o fado, nos seus primórdios.48 Ocorre que entre o fim do século XVIII e o início do XIX, com o surgimento da guitarra de seis ordens na Europa, a viola vai aos poucos sendo substituída em todo o país, dando lugar ao novo instrumento de mais amplos recursos técnicos, difundido em todo o continente como instrumento moderno, de feição mais citadina. documentais feitas a formas de representações cênicas tais como entremezes, folias e comédias, todas sabidamente ligadas à música. Mais especificamente no caso da folia, esta forma de manifestação dançada encontrava-se estreitamente ligada à música de guitarra e viola, conforme atestam várias fontes documentais. Domingo Prat, em seu "Diccionario de Guitarristas", publicado em Buenos Aires em 1934, escreve: "Antiguo aire de danza en compás ternario, utilizado como tema de variaciones instrumentales por los compositores del siglo XVII y XVIII. Parece de origen español. Salinas lo citaba en el año 1577, y Cervantes lo menciona junto com la Zarabanda y la Chacona. En 1623, el italiano Carlos Milanutio incluia entre sus danzas de carácter español (españoletas, gallardas, etc.), algunas Folias." Sobre a importância da viola em Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira, em seu já citado "Instrumentos Musicais Populares Portugueses", afirma: " ...mas, pelas suas características estruturais e pelo seu fácil ajustamento a um acompanhamento por acordes alternados - o típico toque "de rasgado" das nossas violas e cavaquinhos, em acordes de tonica e dominante - , elas vêm ao encontro e ajustam-se eminentemente às feições tonais, harmônicas e rítmicas dos tipos musicais recentes". Certo é que a partir do século XVI os portugueses levaram a viola a todas as regiões coloniais, incorporando-a nas culturas locais, entre outras, das ilhas da Madeira, Cabo Verde, Açores e também do Brasil. A esse respeito documentos existentes49 atestam inúmeras atividades artísticas desenvolvidas a bordo das naus portuguesas, inclusive vindas para o Brasil, desde o século XVI, resumindo especialmente teatro e dança, sempre acompanhadas por música. A. Gomes da Costa, na apresentação do livro "Teatro a Bordo de Naus Portuguesas", de Carlos Francisco Moura, publicado no Rio de Janeiro no ano de 2000, escreve: "Faziam-se a bordo das naus portuguesas representações parateatrais ou teatrais. E os diários e relações de viagens fazem menção, a cada passo, dos autos e entremezes, diálogos e comédias, folias50 e chacotas, que se encenavam com a finalidade de entreter as tripulações. Entretanto, essa era também uma maneira de difundir nas novas terras descobertas as tradições, cultos e costumes portugueses". Importante notar as várias referências Publicada em Novembro de 2007 Higinio Anglés e Joaquím Pena, em seu "Diccionario de La Musica Labor", publicado em Barcelona em 1954, dizem: "Forma musical basada sobre um tema melódico típico el cual se prestaba a la variación instrumental. (...) Los vihuelistas españoles del siglo XVI incluyeron en sus obras la forma de 48 Sobre as orígens do fado, José Blanc Portugal, em conferência intitulada "A Influência do Ultramar na Dança", proferida em 18 de março de 1963 em Lisboa, e publicado em 1965 no livro "Colóquio sobre a influência do ultramar na arte", afirma: "O fado batido é derivado do velho lundum setecentista cantado e dançado à viola". "Relação da Viagem, e Naufrágio da Nao S. Paulo", de Henrique Dias, "Relaçam da Viagem de Socorro do Mestre de Campo D. Diogo Lobo", do jesuíta Luís Lopes, "Viaggio al Congo", do capuchinho Dionigio Carli, "Relaçam da viagem que fez o Excelentissímo Bispo de S. Paulo the o Rio de Janeiro na Nau de Guerra Senhora da Nazaret", anônimo, etc. 49 50 Sebastián De Covarrubias, em seu "Tesoro de la Lengua Castellana o Española", publicado em Madrid no ano de 1673, define: "Es una cierta danza portuguesa de mucho ruido, porque resulta de ir muchas figuras a pie com sonajas y otros instrumentos. Llevan unos ganapanes disfrazados sobre sus hombros; unos muchachos vestidos de doncellas que, com las mangas de punta van haciendo tornos y a veces bailan. Y tanbién tañem sus sonajas, y es tan grande el ruido y el son tan apresurado, que parecen estar los unos y los otros fuera de juicio. Y así le dieron a la danza el nombre de "folia", de la palabra toscana "folle" que vale vano, loco, sin seso". Pe. Raphael Bluteau, em seu "Vocabulario Portuguez e Latino", publicado em Lisboa entre os anos de 1712 e 1727, escreve: "Folia. Derivafe do Grego Phelcos, que quer dizer Homem ridículo, ou de Phaulos também Grego, que às vezes val o mefmo, que liviano, & doudo, (como notou Henrique Eftevaõ, no Livro da precedência do idioma Francez. De Phelcos, ou Phaulos, fizeraõ alguns Autores Follus, que foy ufado na baxa Latinidade por Doudo, louco (...) Entre nós Folia val o mefmo que Festa de varias peffoas, tangendo, & cantando com tanbor, & pandeiro, ou Dança com muytas foalhas, & outros instrumentos, com tanto ruido, extravagancia, & confufaõ, que os que andaõ nella parecem doudos. (...) Qualquer efpetaculo, jogo, ou demoftraçaõ alegre, que fe faz em dias de fefta". Higinio Anglés e Joaquím Pena, no referido "Diccionario de La Musica Labor", escrevem: "El nombre de Folia aparece primeramente en Portugal, en 1505, en forma de danza, cuya melodía fué famosa durante el s. XVII por el uso que de ella hicieron los músicos europeos. (...) Hacia 1600 es citada esta danza por Cervantes, junto com la zarabanda y la chacona. Un siglo más tarde, el Cancionero de Sablonara contiene 3 Folias, arregladas para 3 y 4 voces". Thomas Borba e Fernando Lopes Graça, em seu "Dicionário de Música", publicado em Lisboa em 1958, escrevem: "Antiga dança portuguesa, afirmam os dicionaristas, mas, na verdade, muito mal conhecida entre nós. (...) "quas lusitani follias vocant". O Cancioneiro de Sablonara (princípios do século XVII) transcreve algumas folias a três e quatro vozes e um manuscrito do Escurial três, com acompanhamento de baixo cifrado". Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em seu "Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa"-1988, escreve: "Forma musical espanhola que, por seu estilo e construção se aproxima da Chacona ou da Passacale e se presta facilmente à variação instrumental". 32 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 la Folia en algunas de sus "pavanas" para vihuela (...) En los libros de guitarra de Ruiz de Ribayaz y Gaspar Sanz se ncuentram asimismo varias Folias extendida su melodia por toda Europa". foram espalhando pelas sete partidas do mundo". Não coincidentemente, Luís da Câmara Cascudo em seu "Dicionário do Folclore Brasileiro", publicado em 1945 no Rio de Janeiro, escreve: Thomas Borba e Fernando Lopes Graça, em seu "Dicionário de Música", publicado em Lisboa em 1958, escrevem: "A primeira referência concreta à celebrada dança acha-se no cancioneiro Musical (1500). Parece que nesta época o ritmo da folia era ainda muito incerto, porquanto o alaudista espanhol Alfonso Mudarra transcreve uma (1546) em binário, ao passo que, quase na mesma ocasião (1547), Valderraban Anriquez faz a transcrição de outra em ternário, compasso em que depois se fixou". Para guitarra transcrevemnas também Ruiz de Ribayas (1672) e Gaspar Sanz (1674 e 1697). Assim é que compositores vihuelistas e guitarristas ibéricos dos séculos XVI e XVII escrevem peças musicais na forma de folias, dentre os quais Luys de Milan, em seu "Libro de música de vihuela de mano intitulado El Maestro", de 1536, Alonso Mudarra, em "Tres libros de música en cifras para vihuela", de 1546, Enríquez de Valderrabano em "Libro de música de vihuela, intitulado Silva de Sirenas", de 1547, Diego Pisador, em seu "Libro de música de vihuela", de 1552, Gaspar Sanz, em seu "Instruccion de musica sobre la guitarra española", de 1674 e Lucaz Ruiz de Ribayas, em "Luz y norte musical para caminar por las cifras de la guitarra", de 1677. "A viola foi o primeiro instrumento de cordas que o ortuguês divulgou no Brasil. O século do povoamento, o XVI, foi a época do esplendor da viola em Portugal, indispensável nas romarias, arraiais e bailaricos, documentada por Gil Vicente e nos cancioneiros". Assim é que, herdada de Portugal, a viola se fez presente no Brasil, resultando daí diversas formas originais, constituindo, hoje, parte fundamental de nosso instrumental popular (Araújo, 1964).51 Viola caipira, viola cabocla, viola de dez cordas, viola de pinho, viola brasileira, viola de arame, viola de tripa, etc. No Brasil muitos são os nomes atribuídos ao mesmo instrumento. Apesar de mantida a sua estrutura básica, as tradições musicais de cada região determinaram o aparecimento de outros tipos de violas, fruto da miscigenação das culturas diversas, em especial a negra e a indígena. Viola de cabaça, viola de bambu, viola de buriti e viola de cocho, entre outras. Presente em diversos contextos da vida no país, a viola foi inclusive utilizada pelos jesuítas no processo catequético dos indígenas no século XVI. Sobre o assunto, Pe. Serafim Leite, em seu livro "História da Companhia de Jesus no Brasil", publicado em Lisboa e Rio de Janeiro no ano de 1938, afirma: Então, a julgar pelo vínculo histórico da vihuela e da guitarra com esta forma de manifestação, e tendo em vista as diversas citações documentais que afiguram instrumentos musicais trazidos nas naus portuguesas, pode-se bem supor sobre a também presença desses instrumentos a bordo, embarcados e trazidos também ao Brasil. Resumindo a questão, José Alberto Sardinha, em seu já citado livro "A Viola Campaniça, o outro Alentejo", reafirma: "Sabe-se que os navegadores portugueses transportavam violas e outros instrumentos nas suas viagens (lembre-se o caso da expedição militar de Alcácer Quibir), que assim Publicada em Novembro de 2007 "Consta que o padre Antônio Vieira foi o introdutor, no Pará, da viola e de outros instrumentos musicais, que trouxera do reino. O interesse do jesuíta pela música e pelo seu ensino está patenteado na legislação interna da Companhia de Jesus, que êle redigiu, - o "Regulamento das aldeias do Maranhão e Pará" -, onde se lê, no parágrafo 15: "Nas escolas de ler e escrever das aldeias, havendo Alceu Maynard de Araújo, em seu já citado livro "Folclore Nacional", escreve: "Mas a nossa viola é tambem bastante idosa, veio de Portugal e ao aclimatar-se em terras brasileiras sofreu algumas modificações, não só em sua anatomia como também no números de cordas (...) Quando os portugueses aqui chegaram, ao lado do desejo de trabalhar na dura lide de povoar e colonizar as terras cabralinas, trouxeram também algo que encheria os momentos de lazer. As danças e os cantos camponeses, a viola, a rabeca, o adufe, o triângulo, a tarola, o culto de São Gonçalo, as Folias de Reis e do Divino Espírito Santo e os votos de comer e beber na Igreja, estes já codicilados e condenados nas Ordenações Filipinas. Na terra além-mar eles iriam viver e, as danças, cantos, cerimônias religiosas contribuiram para anular a nostalgia". 51 33 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 número bastante, ensinem-se também a a cantar e a tanger instrumentos". Em 1584, José de Anchieta em sua "Informação do Brasil e suas Capitanias", referindo-se a uma das aldeias de índios do colégio da Bahia, relata: "(...) les enseñam a cantar y tienem su capilla de canto y frautas para sus fiestas, y hazen sus danças a la portuguesa com tamboriles y vihuelas com mucha gracia, como si fueron muchachos portugueses". Sobre as festas com danças, procissões e tragicomédias realizadas pelos jesuítas nas aldeias do colégio da Bahia, registra-se em "Relaçam Geral das Festas", impresso em Lisboa em 1623, o seguinte relato de uma passagem (Viterbo, 1920) acontecida em um evento em homenagem a canonização de Santo Ignácio de Loyola e São Francisco Xavier: "As quatro partes do mundo para se mostrarem agradecidas aos grandes beneficios, que por meyo deste zelo receberaõ, naõ só fizeram o celebre acompanhamento, que logo veremos, mas tambem ordenaraõ h~ua fermosa dança de Aves, que com suas mudanças fossem alegrando a todos, para a qual deu Europa duas Aguias, Asia dous pauões, America dous papagayos, e Africa h~ua Ema que guiaua a dança, fazendo o som dous Bugios, com viola e pandeiro. (...) Seguia-se h~ua dança das sete artes mecanicas, que saõ as do laurador, caçador, do soldado, do marinheiro, do surgiaõ, do tecelam, & do ferreiro. Todos vestiaõ muito ao proprio, leuauam na maõ suas diuisas, Arado, espada, remo, tenta, lançadeira, martelo, com elles a som de viola & pandeiro, faziaõ tantas, & tam nouas mudanças que recreauaõ muito a todos". Sobre a também presença do instrumento em outros contextos, de espetáculos públicos e ambientes privados no estado de São Paulo, Paulo Castagna e Jaelson Trindade, em seu artigo "Música Pré-Barroca Luso Americana: O Grupo de Mogi das Cruzes", publicado em São Paulo no ano de 1996, afirmam: "A prática ordinária da música no mundo colonial estava profissionalmente vinculada aos atos litúrgicos e às festas religiosas. Mas, também, ainda que excepcionalmente, podia ocorrer durante a encenação de pequenas "óperas", comédias e entremezes. De Publicada em Novembro de 2007 resto, a documentação tem mostrado que entre as populações dessas vilas paulistas do Seiscentos e Setecentos, era usual tanger viola, harpa, cítara e até pandeiro". O século XVII registra também na Bahia a figura de um cantor e tocador de viola, um padre mulato chamado Lourenço Ribeiro, em artigo escrito por José Álvares do Amaral intitulado "Resumo cronológico e noticioso da Bahia, desde o seu descobrimento em 1500", publicado em "Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia", de 1921-1922. No entanto, segundo se sabe, nenhum registro de sua obra sobreviveu aos dias de hoje, restando-nos apenas a notícia de sua existência: "O Padre Lourenço Ribeiro, além de aplaudido orador sacro era excelente cantor de modinhas, que improvisava ao som da viola, a lira daqueles tempos..." Presente em diversos segmentos sociais da população, especialmente nos ambientes populares, o cultivo da viola também se deu nos meios aristocráticos representando para estes não um meio de vida, mas sim um recurso a mais em seu grau de instrução, voltado para a prática diletante do fazer musical como elemento de distinção social. Assim é que Pedro Taques de Almeida Paes Leme, em seu "Nobiliarchia Paulistana", publicado em São Paulo no ano de 1926, relata sobre a decisão de Salvador Correia de Sá52 em contratar os serviços de Francisco Rodrigues Penteado53 como professor de viola de seus três filhos, no ano de 1648: " A nobre família dos Penteados teve origem em São Paulo em Francisco Rodrigues Penteado, natural de Pernambuco, para onde veio ser morador seu pae Manoel Correa com casa, saindo de Lisboa; e em Pernambuco se estabeleceu com negocio grande. Tendo este filho Francisco Rodrigues Penteado já bem instruído em artes liberais, sendo excelente e com muito mimo na de tanger viola, e destro na arte da música, seu pai o mandou a Lisboa sobre dependência de uma herança que ali tinha; o filho, porém, vendo-se em uma corte das mais nobres da Europa e com prendas para conciliar estimação, cuidou só no estrago que fez do cabedal que recebeu, consumindo em bom tratamento e amizades: Refletindo depois que não estava nos termos de dar 34 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 satisfação da comissão com que passara de Pernambuco a Lisboa, embarcou na frota do Rio de Janeiro com Salvador Correa de Sá e Benevides em 1648, o qual tendo de passar a Angola, como passou, para a restaurar dos holandeses, o deixou na cidade do Rio muito recomendado pelo interesse de instruir nos instrumentos músicos a suas filhas e ao filho mais velho Martim Correa com quem estava unido pela igualdade dos annos. Do Rio de Janeiro, pela demora em Angola do dito Salvador Correa de Sá, que ficou feito general daquele reino, passou para a vila de Santos Francisco Rodrigues Penteado; e já desta vila subia para São Paulo contratado para casar com uma sobrinha de Fernando Dias Paes, que foi quem o ajustou para este casamento". Ainda sobre o assunto, Paulo Castagna (2000) reitera a questão citando vários documentos históricos referentes a processos de inventários registrados no Brasil entre os anos de 1604 e 1700,54 arrolando entre os bens, inclusive violas, resumindo sua importância e presença em ambos contextos: "Viola, de propriedade de Mécia Roiz, São Paulo entre 01/08/1605 e 04/02/ 1606.................................................160 réis. Viola/guitarra, de propriedade de Paula Fernandes, São Paulo - 19/09/ 1614.................................................640 réis. Viola, de propriedade de João do Prado, São Paulo 23/09/ 1615..............................................1,280 réis. Viola, de propriedade de Balthazar Nunes, São Paulo 06/ 1623..............................................1,280 réis. Viola, de propriedade de Leonardo do Couto, Parnaíba 03/08/ 1650.................................................320 réis. Viola, de propriedade de Sebastião Paes de Barros, Parnaíba 24/12/ 1688..............................................2,000 réis. Viola, de propriedade de Afonso Dias de Macedo, Publicada em Novembro de 2007 Itú - 20/03/1700.............sem informação de preço". Reafirmativamente, Mário de Andrade, no "Dicionário Musical Brasileiro" (1989), atesta, já na década de 40, a existência de um antigo documento paulista que trata do valor atribuído em inventário ao referido instrumento de Sebastião Paes de Barros: "Em 1688 surge uma certa viola avaliada em dois mil réis, preço enorme para o tempo. E, caso curioso, esta guitarra pertenceu a um dos mais notáveis bandeirantes do século XVII". Ainda na Bahia do século XVII registra-se a figura de Gregório de Mattos e Guerra, a quem o renomado Silvio Romero, no século XIX, referese como "delicioso cantor de modinhas e tocador de viola". Em sua obra, inúmeras são as citações que o poeta seiscentista faz ao instrumento, como nesta "Desempulha-se o poeta depois de gozar esta dama de huns çapatos que lhe pedio", dando uma dimensão bastante clara do seu envolvimento com a viola: " Um cruzado pede o homem, Anica pelos sapatos, mas eu ponho isso à viola na postura do cruzado: Diz, que são de sete pontos, mas como eu tanjo rasgado, nem nesses pontos me meto, nem me tiro desses trastos. Inda assim se eu não soubera o como tens trastejado na banza dos meus sentidos 52 Salvador Correia de Sá e Benevides (1591-1688). Político e militar português nascido no Brasil, descendente da família dos Sá, fundadores da cidade do Rio de Janeiro. Exerceu por três vezes o cargo de governador do Rio de Janeiro, de 1637 a 1642, em 1648, e entre 1659 e 1660, destacando-se, ainda, pela reconquista de São Paulo de Luando (atual capital de Angola), até então em poder dos holandeses, no ano de 1648, exercendo, conseqüentemente, o cargo de governador entre 1648 e 1651. 53 Francisco Rodrigues Penteado nasceu em Pernambuco por volta do ano de 1630, filho do comerciante português Manoel Correa e Clara de Miranda, falecendo em São Paulo em 13 de novembro de 1673. Atribui-se a Francisco Rodrigues Penteado a fundação em 1653 da Capela de Nossa Senhora da Piedade de Araçariguama, São Paulo, sendo esta a capela mais antiga daquela localidade, destruída no século XVIII. Sua localização situava-se a cerca de dois quilômetros de onde hoje fica a matriz da cidade. 54 Em "Inventários e Testamentos", Publicado em "Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo", 1920-1977. 35 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 pondo-me a viola em cacos: Ó cruzado pagaria, já que fui tão desgraçado, que buli co'a escaravelha, e toquei sobre o buraco. Porém como já conheço, que o teu instrumento é baixo, e são tão falsas as cordas, que quebram a cada passo: Não te rasgo, nem ponteio, não te ato, nem desato, que pelo tom que me tanges, pelo mesmo tom te danço. Busca a outros temperilhos, que eu já estou destemperado, ..." Interessante notar como Gregorio de Matos, usando de duplo sentido, descreve o fim do relacionamento com uma amante de nome Anica utilizando terminologia específica ligada a elementos musicais, interpretativos e constitutivos do universo da viola: "...mas eu ponho isso à viola na postura do cruzado (...na postura do cruzado, referindo-se a uma "posição" da mão esquerda no braço do instrumento, resultando um dado acorde musical representado pelo signo+,55 segundo os sistemas de cifragem de acordes em tablatura dos séculos XVI e XVII. ": Diz que são de sete pontos" (pontos, significando as sete notas da escala musical, as quais se montam os acordes), "mas como eu tanjo rasgado, nem nesses pontos me meto" (ou seja, tocar acordes, no estilo rasgueado, para o acompanhamento da voz, e não notas melódicas, no estilo ponteado, ou solista), "nem me tiro desses trastos" (referindo-se aos trastos da viola, ou sejam, as divisões das casas no braço do instrumento). "... o como tens trastejado na banza dos meus sentidos" (significando tocar errado, esbarrando nos trastos do instrumento). "... que buli co'a escaravelha" (referindo-se às cravelhas; os pinos que servem para estender ou afrouxar as cordas, afinando o instrumento), "e toquei sobre o Publicada em Novembro de 2007 buraco" (significando buraco, a boca situada na caixa de ressonância do instrumento). "... que o teu instrumento é baixo" (baixo, no sentido de sons graves), "e são tão falsas as cordas, que quebram a cada passo" (aludindo a cordas de baixa qualidade, que quebram a cada compasso de música tocado): "Não te rasgo, nem ponteio" (não tocar acompanhamento, nem solo), "não te ato, nem desato" (não por, nem tirar as cordas, mantendo o instrumento desencordoado), "que pelo tom que me tanges" (referindo-se a tonalidade específica de uma música tocada), "Busca a outros temperilhos, que eu já estou destemperado" (temperilho, significando temperamento, afinação do instrumento). Na Bahia do século XVIII, a presença da viola é atestada por E. M. Le Gentil de La Barbinais, em 1718, e relatada em seu livro "Noveau voyage au tour du monde"56, publicado em Paris no ano de 1728. Referindo-se à prática de se fazer serenatas à época, La Barbinais afirma ter visto na cidade de Salvador: " portugueses vestidos de roupões, rosário ao pescoço e espada nua sob as vestes, a caminhar debaixo das janelas de suas amadas de viola na mão, cantando com voz ridiculamente terna cantigas que faziam lembrar música chinesa, ou as nossas gigas da Baixa Bretanha". Ainda, referindo-se a uma Festa de São Gonçalo,57 o "santo violeiro", acontecida na Bahia no mesmo ano de 1718, o autor escreve que os participantes, incluindo o Marquês de Angeja, então Vice-Rei do Brasil,58 seus fidalgos, padres e até mesmo escravos, dançavam de forma tão vigorosa que "faziam vibrar a nave da igreja". Escreve ainda, escandalizado, que os dançantes, aos gritos de "Viva São Gonçalo", de posse da imagem do 55 Pe. Raphael Bluteau, em seu "Vocabulario Portuguez & Latino", escreve: "Na viola he o differente modo, com que o tangedor poem os dedos nos traftes; As pofturas da maõ no tanger viola faõ Forças, Trempe, Caranguejo, Vaõ, Cruzado, &c". Felipe Pedrell, em seu "Diccionario Técnico de la Música", publicado em Barcelona em 1894, escreve: "Cruzado: Nombre de la postura de un acorde en la guitarra que difería ségun el sistema de cifra adoptado por unos y otros vihuelistas". Lucas Ruiz de Ribayaz, em seu método "Luz y Norte Musical para caminar por las cifras de la guitarra española" - 1677, escreve: "Dos maneras ay de cifrar para tañer la Guitarra, vna para quien aprende de rafgado, y otra para quien aprende de punteado, para darles facil inteligencia. A eftas cifras, supuesto el principio, de que los numeros que fe efcriven fobre las lineas, indican los traftes, y las lineas las cuerdas, y que fe han de pifar con la mano izquierda, no mas que aquellas en que fe hallaren los numeros: en los traftes que indican dichos numeros, fe aduierte, para que el que aprende entre en el conocimiento de los puntos que ha de faber para tañer de rafgado, que fe comienza por el cruzado, el qual con otros doze que fe figuem defpues de èl, es menester que el que aprende, los encomiende a la memoria, para entrar defpues con facilidad, tañendo todo lo que hallare cifrado para de rafgado; (...) Cifrace el cruzado poniendo vn dos en terceras, las quales fe pifan con el indice en fegundo trafte, y vn tres en fegundas, que fe pifan con el anular en tercer trafte; y vn dos en prima, que fe pifa con el largo en primer trafte, y dos ceros en cuartas, y en quintas". 36 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 santo, "começaram a jogá-la para o alto, de um para o outro", tudo isso acompanhado por música feita por um conjunto de variados instrumentos musicais, incluindo violas: "Partimos em companhia do Vice-Rei e de toda a Corte. Próximo da igreja dedicada a São Gonçalo nos deparamos com uma imensa multidão que dançava ao som de suas violas. Os dançarinos faziam vibrar a nave da igreja chamada de São Gonçalo. Tão logo viram o Vice-Rei, cercaram-no e o obrigaram a dançar e pular, exercício violento e pouco apropriado tanto para a sua idade quanto posição: seria porém aos olhos de tal Povo uma impiedade digna do inferno ter ele se recusado a prestar aquela homenagem ao santo cuja festa se celebrava. Nós, queiramos ou não, acabamos por dançar e foi muito interessante ver dentro de uma Igreja Padres, Mulheres, Monges, Cavaleiros, e Escravos dançar e pular misturados, e a gritar a valer Viva São Gonçalo de Amarante. (...) desaparecendo assim as distinções sociais nessa saturnal cristã, celebrada ao som de maviosas violas, e na qual o amplexo dos sexos atingia proporções de demencia animal. Em seguida, pegaram uma pequena imagem do santo de sobre o altar e começaram a jogá-la para o alto, de um para outro: a bem dizer, faziam o mesmo que os antigos pagãos no ritual que costumavam realizar todos os anos em honra à Hércules, durante o qual açoitavam e enchiam de xingamentos a estátua do semi-deus. (...) numa tribuna, religiosas cantando canções estudadas, enquanto a platéia, embaixo, cantava simultaneamente, outras canções, formando um chivari; tudo aliado aos instrumentos desafinados dava vontade de rir. (...) A dança fazia grande barulho e podia ser comparada ao Nonnains de Loudun, que também apresenta humor, gaiatice e jovialidade". Sabe-se, no entanto, que a prática musical nos conventos de freiras era uma constante não só no Brasil, mas há muito também em Portugal, conforme atesta o registro de Diogo Mendes de Vasconcelos em seu livro "Do Sítio de Lisboa", publicado em 1608 naquela cidade, referindo-se aos pendores musicais das freiras do Convento de Odivellas:59 "... não creio que tenha o mundo outro de mais Religiosas, sendo, entre servidoras, e freiras, mais Publicada em Novembro de 2007 de quatrocentas mulheres, nove frades, e muitos servidores de fóra; do qual se contão algumas grandezas muito notaveis que deixo por serem sabidas de todos; mas a excellencia da sua musica não póde deixar de se celebrar em todo o tempo, e occasião; porque, em bondade de vozes, e multidão de musicas, em destreza da arte, e em suavidade de instrumentos, não creio que se lhe iguale nenhuma capela de nenhum Principe; porque tem setenta mulheres, que todas cantão mui destramente, e as mais tem bellissimas vozes, tangem na estante tres baixões, tocão muitas dellas tecla, arpa, viola de arco, e a violinha60 particularmente". No ano de 1728 também na Bahia, Nuno Marques Pereira, em seu "Compêndio Narrativo do Peregrino da América"61, referindo-se aos "...abusos, que se achão introduzidos, pela malicia diabólica, no Estado do Brasil", o autor nos dá o seguinte relato, seguido de comentário repleto de interpretação moral: " E foi o caso: que estando eu uma noite na cidade da Bahia, ouvi ir cantando pela rua uma voz: e tanto que punha fim à copla, dizia, como por apoio da cantiga: Oh diabo! E fazendo eu reparo em palavra tão indecente de se proferir, me disseram que não havia negra, nem mulata, nem mulher dama, que o não cantasse, por ser moda nova, que 56 "Nouveau voyage au tour du monde / par M. Le Gentil ; enrichi de plusieurs plans, vûës & perspectives des principales villes & ports du Pérou, Chily, Bresil, & de la Chine ; avec une description de l'empire de la Chine". 57 Em Portugal a Festa de São Gonçalo é realizada, desde finais do século XV, na cidade de Amarante, no dia 7 de Junho, oportunidade a qual acontece a dança em homenagem ao Santo protetor dos violeiro e das donzelas casamenteiras, nascido em Vizella, Portugal, em 1187 e falecido em Amarante em 1259, sendo canonizado no ano de 1561. Segundo a lenda, São Gonçalo quando jovem tocava viola e dançava com as prostitutas da região, com o intuito de impedi-las de pecar. Após sua morte a dança em sua homenagem continua sendo realizada. No Brasil o início do culto a São Gonçalo do Amarante data da época em que os primeiros portugueses chegaram no país, acontecendo com maior freqüência nos estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Goiás, Minas Gerais e São Paulo. Tradicionalmente, fazem-se festas para o Santo oferecendo uma dança, cerimônia esta que ocorre na maioria das vezes por pagamento de promessa, seguindo um ritual básico, que inclui almoço, procissão e dança. A dança completa inclui, além do ritual básico, sete ensaios que o procede, realizados num período de sete semanas. No estado do Ceará, no município de São Gonçalo do Amarante, a dança é realizada durante a festa do santo padroeiro e apresentada em nove jornadas. Trata-se de dança coreográfica de sapateados, intercalada de momentos de oração, a qual é acompanhada pelo bater das mãos sincronizadas ao som de violas, violões, pandeiros e adufes. 58 À época, era Vice-Rei no Brasil D. Pedro Antônio de Noronha e Albuquerque (16611731), 1º marquês de Angeja e 2º conde de Vila Verde, exerceu, entre 14 de outubro de 1714 e 11 de junho de 1718, o cargo de Vice-Rei do Brasil com superintendência em todas as capitanias da América do Sul. Exerceu também os cargos de conselheiro de Estado e da Guerra, vedor da Fazenda e mordomo-mor da princesa do Brasil. A função de Vice-Rei foi extinta após a chegada de D. João VI ao Brasil, em 1808. 59 Convento de freiras da Ordem de Cister, fundado em 1295 pelo rei D. Dinis em pagamento de uma promessa. Situado no largo de S. Dinis, na cidade de Odivelas, atualmente o monumento pertence ao ministério do exército, funcionando como um colégio feminino para as filhas dos militares. 37 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 se usava (...) Porém, eu me persuado, que a maior parte destas modas lhe ensina o demônio: porque ele é grande poeta, contrapontista, músico e tocador de viola e sabe inventar modas profanas, para as ensinar àqueles que não temem a Deus". Assim é que inúmeros registros atestam a rápida disseminação da viola no país no século XIX, dentre os quais destaca-se "Viagem pelo Brasil", publicado em Munique em 182362. Em sua obra, Spix & Martius dão interessantes testemunhos: Sobre a presença da viola no Rio de Janeiro setecentista, sabe-se da existência de inúmeros construtores e reparadores desse e de outros instrumentos na cidade, todos com comércio regular estabelecido em vários pontos, na Rua da Prainha e Rua das Violas, entre outras, sendo esta última assim denominada devido à grande concentração na mesma de profissionais artesãos construtores e reparadores do instrumento nela estabelecidos. Dentre os registros de fabricantes existentes, conhecemos os nomes de Izidoro dos Reis Carrilho, Thomé José da Silva, Bento da Silva Campos, Thomé Gonçalves Barbosa e Salvador José de Almeida Farias, construtores de violas, rabecas e rabecões e até mesmo cravos (Cavalcanti, 2004). "O brasileiro tem disposição alegre, pronto para divertir-se. Quase por toda parte onde chegávamos à noite, éramos recebido com as toadas das violas, a cujo acompanhamento se canta ou se dança. (...) O principal encanto desta dança (batuque), para os brasileiros, está nas rotações e contorções artificiais da bacia, que eles exageram quase tanto como os faquires das Índias Orientais. Dura às vezes, aos monótonos acordes da viola, horas intermináveis sem No século XIX, o Brasil recebe a visita de inúmeros viajantes estrangeiros, dentre os quais destacam-se médicos, naturalistas, militares, religiosos, engenheiros, etc., de formação e interesses variados, que registraram suas impressões sobre diversos aspectos da terra brasileira e de sua gente, incluindo as práticas musicais. Henri Koster, em seu "Travels in Brazil", publicado em Londres no ano de 1817, descreve assim uma cena de rua vista por ele na cidade do Recife em 1813: " Os negros livres dançavam diante de uma de suas choupanas. As danças lembravam as dos negros africanos. O circulo se fechava e o tocador de viola sentava-se num dos cantos, e começava uma simples toada, acompanhada por algumas canções favoritas, repetindo o refrão, e frequentemente um dos versos era improvisado e continha alusões obscenas". Em seu livro "Reisen Nach Brasilien", publicado em Frankfurt no ano de 1820, Maximiliano Príncipe de Wied-Neuwied, de passagem pela Bahia, escreve em 1817: "Não se vê, pelo Brasil, outro instrumento, senão violas". Interrupção, ou alternado só por cantigas improvisadas...". "É aqui a viola, tanto quanto no sul da Europa, o instrumento favorito." A inglesa Maria Graham em seu "Journal of a voyage to Brazil"63, publicado em Londres no ano de 1824, descrevendo de forma detalhada a decoração de uma casa baiana, observa: "Há em geral um sofá em cada extremidade da peça e, à esquerda e à direita, uma longa fila de cadeiras como se nunca pudessem ser mudadas de lugar. Entre as duas filas de assentos há um espaço que, disseram-me, é muito usado para dançar; e em cada casa vi, ou uma guitarra ou um piano". Na região Centro-Oeste do Brasil, Raimundo José da Cunha Mattos (1979), em seu artigo "Chorografia Histórica da Província de Goyaz", publicado no Rio de Janeiro em "Revista do Instituto Histórico, geográphico e etnográphico do Brasil", no ano de 1874, relata sobre a presença do instrumento sendo utilizado por senhoras, como acompanhamento do canto nas liturgias e festas de igreja: Provavelmente uma guitarra de quatro ordens, ou até mesmo um machete. 60 "Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Em que se tratam vários discursos espirituaes, e moraes, com muitas advertências e documentos contra os abusos, que se achaõ introduzidos, pela malícia, diabólica no Estado do Brasil". 61 A obra só foi publicada no Brasil no ano de 1938. 62 38 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 " A musica fez progressos, ou foi cultivada com gosto em toda a provincia de Goyaz: e apezar da decadencia da mesma provincia, ainda se encontram na cidade, e nos arraiaes muitos homens que tocam rabeca, rabecão e outros instrumentos de corda; tanto assim, que nas festas das igrejas sempre a musica vocal é acompanhada de musica instrumental; mas não ha quem toque instrumentos fortes de sopro. Algumas senhoras cantam soffivelmente e tocam psalterio, citharas, guitarras e violas". Em 1888, Silvio Romero (1977) em seu livro "Estudos sobre a Poesia Popular do Brazil" publicado no Rio de Janeiro, descrevendo alguns aspectos característicos do homem do povo e seus folguedos afirma: " São chegados a rixas, amigos da pinga e amantes da viola. Levam, às vezes, semanas inteiras dansando e cantando em chibas ou sambas. Assim chamam-se umas funcções populares em que, ao som da viola, do pandeiro e de improvisos, amase, dança-se e bebe-se. Quasi todo praiero possue o instrumento predilecto e canta ao desafio. (...) Chama-se chiba na província do Rio de Janeiro, samba nas do norte, cateretê na de Minas, fandango nas do sul uma funcção popular dos da predilecção dos pardos e mestiços em geral, que consiste em se reunirem damas e cavalheiros em uma sala ou n'um alpendre para dançar e cantar. Variadas são as tocadas e as danças. Ordinariamente porém consiste o baile rustico em sentarem-se em bancos à roda da sala os convidados, e, ao som de violas e pandeiros, pular um par ao meio do recinto a dançar com animação e requebros singulares o bahiano ou outras variações populares. O bahiano é dança e musica ao mesmo tempo. Os figurantes em uma toada certa tem a faculdade do improviso em que fazem maravilhas, e os tocadores de viola vão fazendo o mesmo, variando os tons. (...) Nos sambas, chibas, batuques e candomblês é que o povo excede toda espectativa. Vamos vêr despontar o manancial mais fecundo da poesia popular. A viola e o enthusiasmo, o canto e os ardores da paixâo, eis a dupla origem da grande torrente". Publicada em Novembro de 2007 Segunda metade do século XIX, nos dá mais uma afirmativa da presença da viola no âmbito da cultura de origem africana no país, em seu livro "Elementos de Folk-Lore Musical Brasileiro" publicado em São Paulo em 1936: "Ha mais de um seculo que a viola caipira ou viola de arame tem merecido a preferencia dos negros, contando entre elles e os caboclos eximios tocadores". E referindo-se à Bahia de finais do século XIX, Anísio Melhor em seu livro "Violas" registra um "desafio" feito pelo cantador baiano Manoel do Riachão, do qual citamos a seguinte quadra: "Se a lua não apparece Na noite do meu descante, É mocinho do machete Que eu canto só no minguante". Muito embora a função de tocador estivesse tradicionalmente restrita ao universo masculino, Anísio Melhor registra a também presença de mulheres violeiras naquele estado, citando nominalmente Xiquinha Ribeirôa, 64 e Maria Tyranna,65 sendo a primeira, segundo o autor, "a mulher de mais fama entre os violeiros do sertão da Bahia". "Sabendo manejar a viola, soltava o chalé no hombro, prendia ao canto da bocca um cigarro, manchava a negrura do cabello com uma flor qualquer, e estava prompta para vencer léguas e lá ir derramar em oiças alheias a graça e a expontaneidade de seus repentes rústicos. (...) Xiquinha morreu de cantar, dizem as chronistas do seu tempo. Cantou um dia e uma noite nas Lavras e, vencida, entregou a viola chorando. Foi a nossa Severa de chalé e chinellinha de couro." Sobre a presença do instrumento no sul do Brasil, Alceu Maynard de Araújo (1964), em seu livro "Folclore Nacional", escreve: “Trago para estas páginas o testemunho insuspeito "Journal of a voyage to Brazil, and residence there, during part of the years 1821, 1822, 1823". 63 Flausino Rodrigues Valle (1978), referindo-se a 39 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 de meu avô materno, Virgilio Maynard, tropeiro, que dos 12 aos 60 anos de idade, isto é, desde 1870 palmilhou as ínvias estradas do Rio Grande do Sul a São Paulo. Contava que nunca vira seus peões e camaradas viajarem sem sua viola, quase sempre conduzida dentro de um saco, amarrada à garupa de seu animal vaqueano". Resumindo, Mucio Teixeira em seu livro "Os Gaúchos", publicado no Rio de Janeiro em 1920, escreve: "O gaúcho é o tipo mais notável do Brasil, tanto na sua vida innocente e simples, como nos rasgos e picos da sua indomita bravura. (...) A sua arma de guerra é a viola, o seu pinho, como elle diz, derretendo o "figueirote", cheio de manimolencias..." Na região norte do Brasil registra-se na cidade de Belém do Pará em 1886 a inauguração da primeira loja de música, a José Mendes Leite, especializada na comercialização de partituras e instrumentos musicais. Nos primeiros anos de 1900 o já próspero estabelecimento anunciava seus produtos e serviços, atuando também no âmbito da importação de instrumentos e músicas, abarcando todas as grandes editoras européias. Em seu catálogo de instrumentos à venda constam as seguintes peças (Sales, 1972): "Instrumentos de Madeira de Cordas. Guitarras: Importante notar que o catálogo assinala a venda de violas confeccionadas no Maranhão e no Pará, demonstrando a já fabricação de instrumentos nacionais de boa qualidade, comercializados em igualdade de condições com os tradicionais instrumentos portugueses. No início do século XX, com o advento da urbanização, os grandes centros recebem enorme contingente de trabalhadores vindos do campo em busca de novas oportunidades de vida nas cidades. Produto do êxodo rural, essa nova classe introduz nas grandes cidades padrões de cultura marcadamente do campo, incluindo o uso dos implementos necessários para a manifestação de suas práticas artísticas, como por exemplo, a viola. E com o surgimento do registro sonoro mecânico no Brasil, generalizam-se essas manifestações, criando segmentos específicos de mercado para o consumo cultural, considerando usos e costumes atinentes, estabelecendo inclusive as condições efetivas para a realização de eventos coletivos em torno de práticas culturais rurais, atendendo a expectativas desses segmentos. Assim é que no ano de 1913, expandindo seus negócios no Brasil, a Casa Edison 66 realiza gravações musicais no estado do Rio Grande do Sul, registrando em discos duplos67 o que de mais representativo existia naquela localidade, incluindo melodias acompanhadas por viola, entre outras, conforme registradas no respectivo catálogo de anúncios da gravadora: "Canções á Viola No 75. Guitarras de Leque, lisas; de madeira escolhida. Pelo velho JULIO LOPES, 72 annos No 76. Guitarras de Leque; ricas, com embutidos de madrepérola, de fantasia, fabricação superior. 120761: O Monarcha (Canção) e O Dandão (Canção Gaúcha). Violas: No 77. Viola commum, de Maranhão, de 10 caravelhas, bem acabadas. No 78. Viola Paraense, de 10 caravelhas, fabricação superior. No 79. Viola Portugueza, de 10 e 12 caravelhas, recomendadas pelo bom acabamento e superior afinação." Publicada em Novembro de 2007 120762: A Tyranna (Canção Gaúcha) e Maruca, olhai! (Canção Gaúcha)" . No mês de maio do ano de 1929, registram-se as primeiras gravações realizadas por violeiros64 Sobre a violeira e cantadora Anísio Melhor escreve: "Nascida na cidade de Arathuype, segundo opinião de Francisco Adolpho de Farias, que me offereceu o desafio divulgado adeante, Xiquinha vivia de trabalhos domésticos, mas o espírito andeiro não na deixava fazer pousada longa no logar onde chegava". Sobre Maria Tyranna, o autor comenta: "Depois de Ribeirôa, a cantadeira de mais fama no littoral da Bahia foi Maria Tyranna, que eu conheci já no ultimo quartel da vida. Velha e syphilitica, Maria Tyranna ainda guardava certo alinho no traje. E no olhar luminoso e humido, denunciava ainda a mulatinha engraçada que devia ter sido". 65 40 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 cantadores de modas de viola do interior de São Paulo, produzidas pelo mesmo Cornélio Pires para o selo Columbia, rótulo vermelho. Constituídas em uma série, chamada "Série Caipira de Cornélio Pires", gravadas em disco de 78 rpm, foram registradas as músicas "Jorginho do Sertão" e "Moda de Pião", ambas da autoria do próprio Cornélio Pires, atingindo em apenas vinte dias a marca de cinco mil discos vendidos. Em 1938, registra-se um dos acontecimentos mais importantes para a cultura musical brasileira, abarcando, indiretamente, a música de viola desenvolvida no norte e nordeste do país: a Missão de Pesquisas Folclóricas. Idealizada pelo professor, escritor, dramaturgo e pesquisador Mário de Andrade, quando de sua gestão à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, a "Missão" teve como objetivo a coleta e registro de parte significativa da música de tradição oral das duas regiões, enviando, para tal, uma equipe de pesquisadores aos estados de Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Pará, formada por Luís Saia, chefe, fotógrafo e cinegrafista da expedição, Martin Braunwieser, técnico Musical, Benedicto Pacheco, técnico de som e Antônio Ladeira, auxiliar geral e assistente técnico de gravação, realizada entre os meses de fevereiro e julho de 1938. Em 23 de março, os pesquisadores chegam ao Estado da Paraíba, cumprindo um cronograma que se estende até o dia 30 de maio, visitando as cidades de João Pessoa, Itabaiana, Torrelândia, Campina Grande, Pombal, Patos, Cajazeiras, Souza, Coresma, Alagoa Nova, Areia, Alagoa Grande, Mamanguape e Baía da Traição. Na cidade de Cajazeiras, no dia 19 de abril, a equipe da Missão realiza a antológica gravação em áudio dos violeiros Manuel Galdino Bandeira e Vicente José de Souza, registrando gêneros como "Nove por Três", "Galope a Beira Mar", "Martelo Solto", "Embolada" e "Seis e Meio" Paralelamente, no que respeita ao aspecto autenticamente popular da viola, Luís da Câmara Cascudo (2005), em seu livro "Vaqueiros e Cantadores", publicado em Porto Alegre em 1939, informa as seguintes "Louvações"68 recolhidas em Goiás e Mato Grosso: Publicada em Novembro de 2007 “Viola tem cinco cordas, cinco cordas mais não tem. Em cinco infernos se veja quem me apartou de meu bem". "A viola sem a prima, A prima sem o burdão, Parece filha sem pai, No poder de seu irmão. A viola sem a prima, Sem a toeira do meio. Parece moça bonita, Casada com homem feio".69 Nos anos de 1942 e 1943, Luíz Heitor Corrêa de Azevedo realiza estudo pioneiro sobre o instrumento no país, atestando, entre outros, a sua ainda presença nas mais variadas manifestações musicais do povo. Ainda, em pesquisa realizada no estado do Ceará, Corrêa de Azevedo informa que a afinação básica do instrumento era "mi - si - sol - re - la", do agudo para o grave, a mesma, basicamente, daquela apresentada por Manuel da Paixão Ribeiro em seu citado método"Nova Arte de Viola", publicado em 1789 em Portugal. Em resumo, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo em seu "Relação dos Discos Gravados no Estado de Goiás", publicação do Centro de Pesquisas Primeira gravadora brasileira, instalada no Rio de Janeiro no ano de 1900 por Frederico Figner (1866-1946), principiando com a gravação de cilindros metálicos. Em 1902 inicia as gravações em chapas de cera grandes, registrando parte importante da produção musical brasileira. 66 Ou seja, contendo gravações em ambos os lados das chapas. 67 Anísio Melhor, em seu livro "Violas", escreve: "A Louvação é um typo de tyranna que se preoccupa em elogiar e descrever com galhardia figuras da sala onde se encontram os violeiros. Ha nos tyrannistas cégos esse geito de adulação poetica, cujos resultados pecuniarios fazem pesar a viola e garantir uns dias de fartura". Mário de Andrade, em seu já citado "Dicionário Musical Brasileiro" e em seu "Danças Dramáticas", Define: "Canto louvando a alguém. É costume antigo nas festas sertanejas os cantadores locais louvarem os donos da casa ou o homenageado. (...) As louvações recebem no Nordeste às vezes o nome antigo de Loas, mas este nome designa especialmente certas recitações de alguns bailados (...) Algumas das Louvações são chamadas Benditos, são as que coincidem na temática, com as atuais canções de esmolar dos mendigos." 68 "A viola sem a prima, a prima sem o burdão ...", referindo-se a primeira corda, a mais aguda, e a quinta corda, a mais grave da viola. 69 41 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Folclóricas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreve: "Ora, é evidente que a nossa viola sertaneja permaneceu, nas mãos do povo, como um verdadeiro remanescente da velha viola portuguesa renascentista, a mesma que havia acompanhado as saborosas modinhas de Domingos Caldas Barbosa; a autêntica viola do Lereno. Ela coexiste com o violão urbano, mas refugiou-se no sertão; é, musicalmente, um arcaísmo, como tantos outros linguísticos, que o povo mantém vivos, com a força inconsciente do seu arraigado tradicionalismo". A viola de arame foi também utilizada no Brasil no âmbito da chamada música erudita, por Flausino Vale, que compôs "A Volta do Rancho", para viola solo, e por Theodoro Nogueira 70, quando, por sugestão de Rossini Tavares de Lima, então membro do Conselho Nacional do Folclore, o compositor realizou extenso estudo sobre o instrumento71, terminando por compor as peças "Sete Prelúdios para Viola Brasileira" e "Concertino para Viola Brasileira e Orquestra de Câmara" (Lima, 1964): "...desejando compor música para viola, tive que adquirir um exemplar, para estuda-la. Estabeleci a maneira de escrever para ela, usando clave de sol e clave de fá, em virtude dos tons oitavados e uníssonos". As obras de Theodoro Nogueira foram gravadas em 1963 pela extinta gravadora Chantecler no "long-play" intitulado "A Viola Brasileira", tendo como solista do instrumento o ainda hoje afamado violonista Antônio Carlos Barbosa Lima, acompanhado por uma orquestra de câmara organizada e regida pelo maestro Armando Belardi. Ainda hoje, mais ligada à vivência rural, como em outros países do mundo, a viola do século XVI encontra-se igualmente disseminada em nosso país, presente nas mais diversas formas de manifestação da cultura e da sociabilidade brasileira de, literalmente, todas as regiões, de Norte a Sul, com fortíssima presença no nordeste, sudeste e centro-oeste do país. Dentre os diversos violeiros do Brasil, de todos os tempos, destacam-se Cirino da Guajurema, Publicada em Novembro de 2007 Julio Lopes, Gustavo Pinheiro Machado, Jacó Passarinho, Tomás Antônio da Costa, Anselmo, Inácio das Catingueiras, Zé Côco do Riachão, Seu Manelim, Badia Medeiros, Adauto Pereira, José de Souza, Roselverte Antonio Pires, Agostinho Praxédes, Nego da Venança, Bambico, Antônio Lisboa, Ivanildo Vilanova, Zé Porfírio, Vilmar Soares da Silva, Antônio Marinho, Mestre Eugênio, Edisio Calixto, Nilo Pereira, Antônio Baptista Camargo, Otacílio Batista, Ascendino Aureliano, José Aires de Mendonça, Toninho da Viola, Belarmino de França, José Erotides, José Gaspar, Cesário José de Pontes, Zé de Lelinha, Mundinho Camarão, José Bernardino de Oliveira, Antônio Pereira, Manuel Neto de Oliveira, Chagas Aureliano, Seu Minervino, Jomaci Dantas Nóbrega, Oliveira de Panelas, Antônio Nunes de França, Zé Catôta, Gonçalves Rodrigues Guimarães, Dimas Batista, Vicente Granjeiro, Gabino, Diniz Viturino, Zé Padre, Domingos Martins Fonseca, Adão Barbeiro, Elísio Felix da Costa, Geraldo Amâncio, Expedito Sobrinho, João Ferreira de Souza, Fabião das Queimadas, Seu Olegário, Louro Branco, Idimar Turetta, Geraldo Brito, Gedeão da Viola, Antônio Mota, Waldemar Barbosa Cordeiro, Gerson Carlos de Morais, Jonas Pereira Gomes, Jó Patriota, Ferrolho da Viola, Furiba, Julião, Canção, Anísio Pereira, João Dessoles Monteiro, João Alves Batista, João Paraibano, ... e Gustavo Pinheiro Machado, Renato Andrade, Roberto Corrêa, Paulo Freire, Ivan Villela e Brás da Viola, entre um sem fim de outros. Considerando o seu desenvolvimento, cabe ressaltar que a viola do século XVI, trazida ao Brasil pelos portugueses, não só apresenta características e desenvolvimento análogos ao da guitarra na Europa, como muito se pensa. Considera-se hoje a afirmação de que, em verdade, trata-se do mesmo instrumento, que, adaptado às diferentes condições locais, resguarda ainda o mesmo caráter. Na Europa, as primeiras guitarras, apresentando Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2002), compositor e violinista nascido na cidade de Santa Rita do Passa Quatro, em São Paulo. Aluno de Camargo Guarnieri, foi Membro da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea e o primeiro compositor a escrever música de concerto para a viola. 70 71 Inclusive reiterando a afinação básica "mi - si - sol - re - la", informada pelos estudos anteriormente feitos. 42 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 corpo com o tradicional formato de oito, aparecem na Espanha e na Itália durante o período do Renascimento, no século XVI. Contando com apenas quatro ordens duplas de cordas de tripa e caixa de ressonância e braço bem menores do que os da guitarra atual, o instrumento tinha, por conseguinte, atuação circunscrita a uma região média aguda de freqüências sonoras. Em outras palavras, a típica guitarra do século XVI, era um instrumento pequeno, de aproximados 69 centímetros de comprimento, e de tessitura aguda, provavelmente afinado em intervalo de quarta ou quinta acima do instrumento de hoje. Alonso Mudarra, em seu já citado "Tres libros de música en cifras para vihuela", descreve-a como um instrumento de dez trastes e um bordão na quarta ordem. Ainda, a obra de Alonso de Mudarra é a primeira a conter música escrita para uma guitarra de quatro ordens, incluindo quatro Fantasias, uma Pavana e uma Romanesca baseada no conhecido tema popular espanhol "O guárdame las vacas". Em fins do século XVI e princípio do XVII, sob a influência italiana da Escola Florentina, a música de caráter polifônico vai perdendo espaço para um novo tipo de produção, de textura homofônica, mais voltada para o desenvolvimento da melodia acompanhada. Ao mesmo tempo, com o surgimento da guitarra de cinco ordens, em fins do século XVI, a guitarra de quatro ordens praticamente desaparece, dando lugar ao novo instrumento, de mais amplo potencial e maiores recursos técnicos. No entanto, é praticamente impossível precisar, com os dados atualmente disponíveis, o que determinou concretamente a evolução deste instrumento. Certo é que mudanças sociais e culturais ocorridas no período determinaram mudanças também nos gostos musicais da época, demandando, por sua vez, o surgimento de instrumentos representativos desses novos gostos, atendendo a expectativas, inclusive técnicas, estabelecidas. Diferentemente da guitarra de quatro ordens do século XVI, sua sucessora de cinco ordens do século XVII apresentava dimensões mais amplas de tamanho, em torno de 94 centímetros de comprimento, guardando semelhança com aquela Publicada em Novembro de 2007 apenas no que respeita a também utilização de cordas duplas de tripa. Significa dizer, entre outras, que o novo instrumento, dotado de um mais amplo potencial técnico, incluindo caixa de ressonância mais larga e braço mais longo, apresentava recursos até então inexistentes em seu predecessor. O primeiro registro de música escrita para a guitarra de cinco ordens encontra-se no já citado Libro de musica para vihuela, intitulado Orphenica Lyra, publicado em 1554 por Miguel de Fuenllana, contendo seis fantasias, bem como duas transcrições de música vocal da época, sendo um villancico e uma missa. No referido livro o instrumento é denominado de vihuela de cinco ordens. O primeiro método específico para guitarra de cinco ordens foi publicado em Barcelona em 159672 por Juan Carlos Amat, intitulado Guitarra espanõla de cinco órdenes. A utilização do termo "guitarra espanhola" é assim justificada pelo autor: "... El modo de templar y tocar rasgado esta guitarra de cinco, llamada española por ser más recibida en esta tierra que en otras." A partir daí, entre os anos de 1606 e 1714, são publicados mais de quarenta livros de música dedicados ao instrumento em diversos países, da Itália, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, dentre outros, formulando uma série de considerações teóricas e técnicas sobre o instrumento, bem como apresentando um sem número de composições originalmente concebidas por guitarristas como Girolamo Montesardo, Giovanni Ambrosio Colonna, Benedeto Sanseverino, Luis Briçeño, Giovanni Battista Abatessa, Estienne Moulinié, Pietro Millioni, Tomasso Marchetti, Giovanni Battista Sfondrino, Francisco Corbetta, Michele Bartolotti, Nicolao Doizi de Velasco, Antonio Carbonchi, Carlo Calvi, Giulio Banfi, Anthoine Carré, Gaspar Sanz, Remy Médard, Lucaz Ruiz de Ribayas, Giovanni Pietro Ricci, Henry Grenerin, Antonio di Micheli, Nicola Matteis, Robert de Visée, Jacob Kremberg, Nicolas Derosier, Ludovico Roncalli, Francisco Guerau, A primeira reedição conservada é de 1626. 72 43 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 François Campion e Santiago de Murcia. Paulo, 2000. A presença da guitarra de cinco ordens se estende praticamente até o fim do século XVIII, apesar de já demonstrar entre a aristocracia, desde o início do século, crescente declínio, sendo preterida por instrumentos outros tais como a harpa, a flauta, a viola de arco e, finalmente, o piano-forte, na música dos salões. Cavalcanti, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Ainda, tendo em vista o enorme desenvolvimento técnico e musical alcançado pela guitarra de cinco ordens, convertida em instrumento solista de excelência graças aos citados compositores, considera-se, também, que o nível de desenvolvimento musical atingido, bem como o grau de exigências técnicas decorrentes, contribuiu em muito para o seu desaparecimento, provocando o surgimento de um instrumento com mais um par de cordas graves, constituído de mais amplos recursos e muito mais possibilidades musicais, tendo sido este o predecessor daquele que a partir da segunda metade do século XIX irá se tornar, em sua forma definitiva, o mais popular dos instrumentos de cordas dedilhadas: o violão. Referências Bibliográficas Andrade, Mário. Dicionário Musical Brasileiro. Villa Rica, São Paulo, 1989, 791 pp. Araújo, Alceu Maynard.Folclore Nacional, Rio de Janeiro, 1964. Braga, Teófilo. Filinto Elysio e os dissidentes da Arcádia. Porto, 1901. Caldas, Padre António José Ferreira.Guimarães, Apontamentos para a sua História. Ed. Sociedade Martins Sarmento e Câmara Municipal de Guimarães, 1996. Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1945. Cascudo, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Ed. Global, Rio de Janeiro, 2005, 368 pp. Castagna, Paulo. O 'estilo antigo' na prática musical paulista e mineira nos séculos XVIII e XIX. Tese de Doutorado, Universidade de São Cunha Brito, M.J. O Arqueólogo Português - Os Pergaminhos da Câmara de Ponte de Lima, Lisboa, 1910. Guimarães, Alfredo. Violas de Guimarães. In: Revista de Guimarães, volume XXXVI, 1926. Leme, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana Histórica e Genealógica. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1926. Lima, Rossini Tavares. Estudo sobre a viola. In: Revista Brasileira de Mattos, Raimundo José da Cunha. (1979), Corografia Histórica da província de Goiás. Goiânia, SUDECO, Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral do Governo de Goiás. O Folclore, Ano IV, N 8/10: 29-38, 1964. Oliveira, Ernesto Veiga. "Instrumentos Musicais Populares Portugueses", Lisboa, 1966. Pinho, Ernesto Gonçalves. Santa Cruz de Coimbra: Centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII. Lisboa, 1981. Pujol, Emilio. La Guitarra y su Historia, editado em Buenos Aires, s/d. Rebelo, Brito. Curiosidades Musicais, Um guitarreiro do XV século. In: "A Arte Musical" , Lisboa, 1912. Ribeiro, Mario Sampayo. As guitarra de Alcácer e a guitarra portuguesa. In: "Achegas para a história da música em Portugal", volume IV, Lisboa , 1936. Rodrigues Vale, Flausino. Elementos de Folklore Musical Brasileiro. São Paulo, Companhia Editora Nacional/MEC, 1978. Romero, Sílvio. Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1977. Sales, Vicente. Editoras de Música no Pará. Revista Brasileira de Cultura, 1972. Sardinha, José Alberto. A Viola Campaniça, o outro Alentejo. Vila Verde, 2001. 44 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Teixeira, Múcio. Os Gaúchos. Livraria Leite Ribeiro, Rio de Janeiro, 1920. Tinhorão, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo, 1998. Viterbo, Souza. Artes e Artistas em Portugal, Lisboa, 1920. 45 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Artigo Introdução ao Registro Documental dos Pregões Cantados da Tradição Oral no Nordeste do Brasil Lucyane De Moraes* Resumo O presente texto trata dos pregões, uma das formas mais antigas de publicidade e uma das práticas tradicionais da oralidade que têm resistido aos avanços tecnológicos e às constantes mudanças nas relações de trabalho das sociedades contemporâneas. Busca-se realçar seu valor como cantos de trabalho, que são ao mesmo tempo uma forma de produção simbólica e de organização funcional do trabalho. Palavras-chave: tradição oral, pregões, publicidade Abstract The present text regards pregões (popular oral announcements), one of the most antique forms of publicity and a traditional practice of orality that has been resistent to technological advances and to the constant changes in work relations of contemporary societies. We emphasize their value as work songs, which are a symbolic way of production and of functional organization of work. Key words: oral tradition, rather, publicity "Apregoar é para a cidade uma maneira de cantar. E por tal, arranja estilos, escalas e tons de que pode recolher uma rapsódia. Há pregões que formam uma melodia completa" traduzem hoje em conflitos políticos e sociais agudos, base de um modelo hegemônico que ignora amplas camadas da sociedade, ecoando, conseqüentemente, no ambiente cultural. Azinhal Abelho. Sob a ótica destes modelos estabelecidos, os assuntos que compreendem temas tradicionais, de caráter cultural, calcados na oralidade, não encontram mais, em suas formas originais, espaço nas sociedades capitalistas avançadas, onde a população é mobilizada a se engajar nas tarefas necessárias à manutenção de modelos econômicos e sociais predeterminados, voltados para o consumo de produtos. Observando os modelos de desenvolvimento das sociedades atuais, os processos civilizatórios modernos e o destino do homem na era das tecnologias, percebe-se que os elementos da tradição, como elos de ligação com aspectos mais profundos da vida cotidiana, têm sido sistematicamente relegados a planos secundários, interrompendo variados fluxos contínuos de vida comunitária. Assim é que o desenvolvimento histórico das sociedades modernas tem demonstrado a existência de contradições internas que se *Lucyane De Moraes é Filósofa, Historiadora da Arte e Cineasta. Dedica-se, ao ensino de matérias relacionadas ao cinema, enfocando diversos aspectos da filosofia e das artes plásticas, considerados como elementos comuns que interagem com a linguagem cinematográfica. Atualmente se dedica a pesquisa e elaboração de textos sobre cultura popular e a música da tradição oral, tendo como foco o folclore do nordeste do Brasil. 46 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 De forma diferenciada, manifestações culturais, mesmo quando ligadas ao mundo do trabalho, caracterizam-se como atividades que não fabricam nenhum produto, mas constituem representações nunca idênticas, significando práticas vivas, autônomas e independentes, com um alto grau de funcionalidade das formas, sempre articuladas estreitamente com os ambientes sociais, resultando daí o forte sentido de oralidade tradicional que adquire. As manifestações de tradição oral, ao contrário de outros documentos preservados através de variados recursos de escrita existentes, extinguemse com os seus intérpretes, sobrevivendo somente na memória dos últimos executantes e desaparecendo por falta de transmissão, tendo a sua vitalidade condicionada ao grau de funcionalidade que a mesma mantêm em seu determinado contexto econômico e social. Etimologicamente, tradição, do latim traditio, compreende em seu sentido geral um processo complexo de trocas, significando explicitamente "entrega", "transmissão", "ensino", relacionado tanto a objetos quanto a pessoas, determinando modelos singulares de relacionamento entre grupos sociais, voltados para o estabelecimento de bases identitárias de natureza coletiva, mas nunca idênticas. "Tradição, em sentido restrito, é um termo neutro, empregado para designar a transmissão, geralmente oral, por meio da qual modo de atividades, gosto ou crença são passados de geração para a seguinte, perpetuando-se dessa forma. (...) O termo enfatiza noções de continuidade, estabilidade, vulnerabilidade." (Benecdito Silva: 1986, 1254) 1 Dentre variados exemplos que ilustram as diversas práticas tradicionais da oralidade, os aboios e os pregões destacam-se como cantos de trabalho, através da entoação melódica e da marcação rítmica, ao mesmo tempo como forma de produção simbólica e de organização funcional do trabalho. E é dentre essas diversas formas de manifestação ligadas ao mundo do trabalho que a prática de apregoar publicamente se destaca, desde os mais idos tempos, como um dos meios mais expressivos e eficazes de reclamo, divulgando Publicada em Novembro de 2007 todo tipo de produto, gritado ou cantado, livremente por vendedores ambulantes. Forma específica e qualificada de proclamar, de anunciar a viva voz, de dizer ao público entoando, os pregões representam ainda hoje uma das mais tradicionais expressões da criatividade humana. Considerada uma das formas mais antigas de publicidade, os pregões cantados da tradição oral apresentam vocação inequívoca para a narrativa social, revestidos de caráter estetizante, resumindo muitas vezes atividades qualificadas de natureza musical. Ocorre que o registro da prática singular de apregoar mercadorias e serviços nos centros urbanos por profissionais livres, quase não se encontra presente em fontes documentais específicas, sendo muito mais objeto esporádico da observação de cronistas e memorialistas que, de forma descompromissada, relatam os costumes e o cotidiano diversificado das sociedades contemporâneas. "De todas as manifestações musicais do povo das cidades o pregão continua até hoje como das menos estudadas e documentadas, quer na parte da música, quer na parte das letras." Ainda assim, os pregões cantados, enquanto intrincadas formas de comunicação, têm se mantido vivos na memória de nosso povo graças, entre outros, aos processos sonoros e semânticos que asseguram, para além da fruição estética, a preservação do texto-melodia pela memória, transmitido exclusivamente por tradição oral, sobrevivendo aos avanços tecnológicos e às constantes mudanças nas relações de trabalho das sociedades contemporâneas. Historicamente, conhecem-se registros de uso de pregões desde a Roma antiga, em funções públicas, sendo os seus protagonistas chamados "præco", significando o homem que em voz forte anunciava nas ruas aquilo que deveria ser conhecido por todos, proclamando em alta voce notícias, regulamentações, proclamação de Verbete do Dicionário de Ciências Socias, FGV - MEC. 1 47 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 casamentos, etc., bem como serviços e produtos a serem comercializados. Citando uma passagem do "De Divinatione", de Cícero (II, 84), Luis da Câmara Cascudo,2 escreve: "... ao embarcar Crasso no porto de Brindisi, para combater os partas, ouviu-se uma voz gritando Cave ne eas (cuidado, não vás!) Pareceu a todos uma misteriosa advertência. Era apenas um vendedor de figos secos, que apregoava sua mercadoria, cauneas, pronunciando espaçadamente o substantivo". Etimologicamente, o termo pregão, do latim præco,õnis, apresenta, em um sentido mais amplo, sinonímia com "núncio", significando aquele responsável pelos anúncios de guerra e paz, de informar os principais sucessos nas batalhas, de conduzir mensagens, etc., tornando pública uma notícia. Pe. Raphael Bluteau,3 citando Cicero, registra: "Nenhuma guerra, que não foi apregoada he justa". À prática de apregoar chamavam sub præconari subjicere, ou seja, o ofício ou função do præconium, termo este que corresponde, no português, a pregoeiro. Tal como entendiam os Romanos pela palavra præconia, o termo pregão existe em Portugal desde recuadíssimos tempos. O termo apresenta ligação com "arauto", sendo este o oficial das monarquias medievais encarregado de proclamações solenes. Alexandre Herculano,4 citando as "Chronicas d'elrei D. Fernando", de Fernão Lopes, informa o seguinte pregão proferido em público no ano de 1372: Publicada em Novembro de 2007 Francisco António Correia 5 , em seu livro "Psicologia dos Negócios", referindo-se aos primórdios do comércio naquele país, escreve: "Nas povoações ou nos bairros das grandes cidades, esses pregoeiros convocavam, ao rufo do tambor ou ao som da trombeta, a multidão das diferentes localidades, para lhe anunciar a abertura dos estabelecimentos, a chegada de mercadorias e a baixa de preços" No artigo intitulado Feiras e Mercados, publicado na Revista de Guimarães, são citadas referências documentais encontradas nos livros das Câmaras da vila de Guimarães - Catálogo dos Pergaminhos, sobre os primeiros nomes de pregoeiros conhecidos em Portugal no século XIV, citando Diogo Pires, atuante em 1328 e Castindo Pregoeiro, em 1343. E complementa: "(...) nos séculos XIII e XIV já o número de mercadores era regularmente acrescido na parte alta do Castelo. (...) O grande núcleo de mercadores, que pelos fins do século XV e princípios do século XVI entre nós se desenvolveu, numa progressiva escala de comércio, descendia em linha directa, daquelas classes populares mozárabes que depois do alvorecer da monarquia invadiram todos os agrupados municipais. (...) Antes da vulgarização da Imprensa, foram estes anunciadores os primeiros agentes de publicidade" Rebelo Bonito, em seu livro "Pregões do Porto6 ", referindo-se à prática dos pregões em Portugal, dá as seguintes informações: "Item: Fernão Vaasques, peom, alfayate, cabeça e propoedor dos ssusodictos rreveis. (...) "No século XV, as populações alimentavam-se na base de peixe, aves, legumes e carnes, predominando, então, os pratos preparados com açafrão, leite, mosto, mel, ovos e manteiga. O comércio destes e doutros géneros levara à criação de feiras; dos pregões se pode dizer que são tão ou mais antigos que elas." Item: Joham Lobeira, escudeiro, homem darmas, acostado do alcayde moor que ffoy do castelo desta lyal cidade, capitão dos beesteiros que fforam a Ssam domingos.(...) Item: Fr. Roy, dalcunha Zambrana, biguino, ffolliom, jograll de sseu officio, bevedo, assoalhador de pallavras e dictos devedados, scuita dhos rreveis. (...) ... Justiça que manda fazer elrei em Fernão Vasques, João Lobeira e Fr. Roy: que morram na forca, sendo ao primeiro as mãos decepadas em vida. (...) 2 Em "Dicionário do Folclore Brasileiro", 5a edição, publicado em Belo Horizonte em 1984. Em "Vocabulário Portuguez e Latino", Tomo I. 3 Em "Lendas e Narrativas", tomo I, 13a edição, publicado em Lisboa em 1918. 4 Citado em Revista de Guimarães, no artigo "Curiosidades de Guimarães", n.ºVI Feiras e mercados. 5 "Este pregão, dado a horas mortas e numa praça deserta, parecia um escarneo."" 6 Pregões do Porto - Separata do Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Vol. XXVI - FACS, 1-2. 48 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 E ainda: "Gil Vicente deixou-nos um quadro pitoresco e animado duma feira em que o Tempo vende não só piedosos conselhos e remédios contra adversidades mas também amor e razão, justiça e verdade, temor a Deus e chaves para entrar no Paraíso. E serve-se do pregão: "Quem quer feirar venha trocar, que eu não hei-de vender; todas virtudes que houverem mister, nesta minha tenda as podem achar a troco de coisas que hão-de trazer!"" Segundo Pe. Bluteau em seu Suplemento ao Dicionário Portuguez - Latino,7 os pregões mais usados em Lisboa, no século XVIII, eram os seguintes, para: Panos; Sardinhas; Velharias; Cal em Pedra; Favinhas Frescas; Tremoços; Carvão e Panos de Linho: "Os pregoens em Lisboa mais ufados faõ os feguintes: Quem quer hum par de varas de caça, hum par de varas de Hollanda: Ifto dizem as criadas das mulheres que vendem huma cefta à cabeça, chea de panos de Hollanda, Inglaterra, India, &c. Há fem fal de pofta. He o pregaõ das Regateiras, que vendem fardinhas, querem dizer que faõ frefcas, e taõ grandes, que fe pódem fazer poftas bellas. Há fem fal, como cavalla. Querem dizer, que faõ taõ grandes como o peixe, a que chamamos Cavalla; ou querem comparallas com o dito peixe, por terem femelhança no feitio; mas nunca nomeaõ Sardinhas. Ferro velho, Eftanho velho, Lataõ para vender, affamane de prata, Galaõ velho. He o pregaõ dos que compraõ pela Cidade ferros velhos, &c. Trazem ordinariamente as capas traçadas à canhota, do braço efquerdo para o direito. Marcay cal, ou marcay quel. Dizem as mulheres, que vendem pedra de cal, para vender, querem dizer, compray cal. As mulheres, que vendem favinhas frefcas, dizem: Tenho ruca Sirîa, ou Cirîa. Idos carregando no I. he o pregaõ das negras, que vendem Tramoços. Biu, ou Carbiu, era o pregaõ dos que vendiaõ facas de carvaõ, que traziaõ às coftas. Os que vendem peneiras de toda a forte, trazem de ordinario vinte, ou trinta peneiras metidas huma pelas outras em hum circulo grande, que trazem as coftas, e o final Publicada em Novembro de 2007 para ferem chamados, he tangerem apreffado hum pandeiro. Os que vendem pannos de linho, com feu fardo às coftas fuftentando por hum pao, que he fua vara de medir dizem, mercay panos medir, dizem, Mercay panos de linho". Considerando os muito poucos registros escritos existentes, entre crônicas, textos jornalísticos e partituras, é graças aos mecanismos da oralidade que conhecemos hoje muitos dos pregões que circulavam outrora pelas ruas da capital portuguesa, fixando costumes, práticas cotidianas e certos usos8. Azinhal Abelo descreve as manhãs da cidade de Lisboa da seguinte forma: "as cores, os movimentos e os sons, principalmente os sons". M. Emygdio da Silva, também em Cousas e Lousas, assim escreve: "Quem não conhece as escadas da Baixa e do Bairro Alto, as da Mouraria e de Alfama? (...) Os vendedores em seu incessante labutar, percorremnas depois, primeiro o padeiro (...); após vem o leiteiro (...), a peixeira, o homem do petróleo, e a vendedeira da hortaliça, cuja passagem fica assinalada por visíveis marcas, que os degraus conservam indelevelmente e pelos quais, (...) seria fácil reconstruir o movimento comercial (...)9 Também em ruas portuenses, os pregoeiros figuravam-se como personagens populares e queridas de toda gente. Eram os azeiteiros, que às vezes acumulavam a função como vendedores de petróleo e vinagre, percorrendo a cidade, principalmente os bairros populares; os graixas, que se utilizavam de praças públicas para polirem e engraxarem os calçados dos passantes; os amoladores, que ainda há uns tantos, consertavam porcelanas e unia peças quebradas; as padeiras que vendiam a inimitável broa de milho, saborosos biscoitos e tosta azeda; os castanheiros, assando castanhas num fogareiro dos carros de mão; o ardina, que apregoava de forma alegre os jornais das manhãs e fins de tarde; e tantos outros que se comunicavam através de Raphael Bluteau. Suplemento ao Dicionário Portuguez - Latino, parte II, págs 152 e 153. 7 "Há pregões de texto silibino, hermético, só acessível aos iniciados nos altos mistérios da prosódia popular. Se ao passarem outrora pelas ruas de Lisboa ouvissem gritar - E erre! - aquilo queria dizer: Mexilhão! Na cidade de Elvas as dificuldades subiram ao ponto de ouvir-se: Um há! Há cramé! Há tatarrá! Há tricoé! Aguinha da cisterna! Impenetrável, não é verdade? Eis a tradução: "Há! Há caramelos! Há como torrão! Há a cinco réis! Aquinha da cisterna!" (Em Rebelo Bonito. Op. Cit., pág. 9). 8 Em: Literatura Popular Portuguesa. Teoria da Literatura Oral / Tradicional / Popular, pág. 246. 9 49 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 seus cantos e vozes fortes. Helder Pacheco, assim escreve, em Tradições Populares do Porto: "Os pregões eram ambientes musicais humanizando sítios e ruas. Eram sons mágicos do quotidiano. E - ó encanto das sobrevivências, ó inesperada resistência! - alguns poucos, continuam a ouvir-se, brandamente, nos lugares onde os motores não abafam a voz da gente (...) Ah! E o doce, o inefável, para os nossos ouvidos, pregões musicais de flauta pânica dos amola-tesouras-e-navalhas (dois ou três) que ainda têm pernas, coração e esperança, para calcorrearem, a pé, a cidade (a nova e a antiga). Pregões! Sons do encantamento; Sons que vêm das origens, sons do espírito mais profundo da cidade. Deles deixou Alberto Pimentel (O Porto na Berlinda) a seguinte evocação oitocentista: "Os Pregões do Porto não deixam de ter certa originalidade pitoresca, sobretudo o que diz respeito à sonoridade das vozes, que nas províncias do Norte são ordinariamente afinadas (...). No Porto tudo se faz a horas, de modo que não é preciso que o pregão previna ninguém. Estão todos a postos, compradores e vendedores"". (Pacheco: 1991, 51) A prática dos pregões era tão freqüente em ruas portuguesas, que existiam leis para regulamentálas. Segundo Ana Paula Guimarães, em seu artigo: "El-Rei Senhor Dom João / Mandou Deitar um Pregão", na Coleção Oficial da Legislação Portuguesa, relativa ao ano de 1850, José Leite Vasconselos redige o seguinte artigo de número 49: Apesar disto, já por volta de meados do século XX, a prática de apregoar dos vendedores ambulantes vai pouco a pouco desaparecendo em Portugal, devido, entre outros, aos modernos recursos de venda engendrados por novas regras nas relações de comércio formal: "Nos grandes meios, aquelas normas de governo criaram uma nova orientação ao comércio, esclarecendo definitivamente que tempo é dinheiro e o negócio é em resumo uma simples transação de permuta, embora a mercadoria passe as mais das vezes por muitas mãos de intermediários, figuras pouco simpáticas no concêrto da economia social. (...) Coimbra e Lisboa são as terras dos mais lindos e cantarolados pregões, alguns dos quais não deviam desaparecer" 10 Martinho Nobre Melo, em seu livro "Cesário Verde", reafirma o desaparecimento dos pregões na maioria das cidades portuguesas, explicando: "(...) Os processos do trabalho deixaram de transmitir-se lentamente pela tradição e por tentativas empíricas para se efetuarem em ritmo acelerado pela aplicação da ciência à indústria e o aperfeiçoamento dos aparelhos técnicos por inventos científicos, pondo o rendimento e a economia das forças de trabalho ao serviço da fabricação e da tração."11 E sobre a questão, Eurico Gama, em seu livro "Pregões de Elvas"12, escreve em tom poético: "O tempo tudo apaga, tudo esquece e quando ele é da natureza daquele que atravessamos mandam a consciência e o coração que resguardemos de qualquer forma o que de bom, de curioso e de elevado de outras eras ainda nos resta. O progresso e a civilização de mãos dadas têm ceifado pertinazmente os adoráveis costumes de nossos avós (...)." Artº 49º "Dos pregoeiros, vendedores ou distribuidores" Os pregoeiros, vendedores, e distribuidores, poderão apregoar, vender, ou distribuir qualquer impresso não prohibido; e nunca apregoarão de noite, nem outra cousa mais que o título impresso. A infracção em qualquer desses dois casos será punida com a multa de cinco mil a cincoenta mil réis; e no de insolvencia com a prisão equivalente, sem prejuízo das mais penas a que possa estar sujeito o impresso, segundo as disposições desta Lei. § único. O Governo, quando assim o exigir a segurança pública, poderá prohibir o pregão, ou publicação pelas ruas, de todo e qualquer impresso". Publicada em Novembro de 2007 Abonando seu discurso, que ele próprio considera como "curto e talvez impertinente", Eurico Gama se utiliza das palavras do Prof. Armando de Lucena: "Seria impróprio de pessoas cultas a condenação do progresso, mas é perfeitamente 10 Em Revista de Guimarães, no artigo "Curiosidades de Guimarães", N.º VI - Feiras e mercados. Em: Melo, Martinho Nobre. Césario Verde. 3ªedição. Rio de Janeiro, 1975. 11 Separata da Revista 'Ocidente'. Edição Álvaro Pinto - Lisboa, 1954. 12 50 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 explicável o esforço ou o desejo de não ser totalmente perdido o sabor da vida e das actividades regionais de qualquer quadrante da terra portuguesa". Se utiliza, ainda, da seguinte e "admirável" frase do Mestre Antonio Sardinha: "A TRADIÇÃO VALE, SOBRETUDO, COMO PERMANÊNCIA NA CONTINUIDADE" No Brasil, a prática de apregoar mercadorias surge com a cultura portuguesa e seus primeiros registros são de meados do século XIX.. Criação reconhecidamente ligada aos vendedores ambulantes, a prática de anunciar e vender produtos surge nos principais centros urbanos do país à época: Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Atualmente não se conhecem registros anteriores dessa prática até o início da colonização, tendo em vista, para tal, a necessidade de um nível de desenvolvimento das cidades que justificasse uma atividade regular de trocas. No século XIX, a atividade ambulante no Brasil era uma das poucas soluções encontradas por negros alforriados ou recém libertos, sobretudo os não alfabetizados, que não conseguiam ocupação em termos de mercado de trabalho. Por outro lado, no período escravagista encontramse relatos de cronistas e viajantes referindo-se aos negros de ganho, escravos que mercavam produtos e prestavam serviços para incrementar o orçamento de seus senhores. Relatos de sociólogos e historiadores revelam que ainda no século XX eram os negros que, principalmente por sua condição social, exerciam a função de ambulantes, pois encontravam seu sustento nessa forma de trabalho. Sabe-se, no entanto, que não só os negros exerciam esse ofício, existindo registros, sobretudo, de estrangeiros que exerciam essa prática, inclusive apregoando. Conseqüentemente, ainda hoje a prática dos pregões está associada à economia informal, prática esta diretamente ligada à questão da escassez de ocupação formal, transformando uma totalidade de trabalhadores em vendedores de rua. Considerando que os pregões cantados de tradição oral ainda se fazem presentes em algumas localidades do Brasil, alimentados e reforçados Publicada em Novembro de 2007 pelo imaginário popular, sem sofrer alterações estruturais ou funcionais significativas, e que, adaptando-se às novas condições de vida das sociedades, adquiriram novas nuances em nosso país, necessário se faz contribuir para o registro dessas fontes em seus vários contextos de atuação, resguardados em suas formas mais tradicionais. Silvio Romero, em seu livro "Cantos Populares do Brasil", assim escreve: "Aí se exerce uma força verdadeiramente prodigiosa e os cantos inspirados por motivos de ocasião e sempre com vivíssima cor local, ou varrem-se para sempre da memória, ou decorados e transformados, segundo o ensejo, vão passando de boca em boca, e constituindo esta abundante corrente de cantos líricos que esvoaçam por toda extensão do Brasil." Os pregões cantados são, sem dúvida, uma das representações populares mais marcantes da herança lusitana. Em ruas brasileiras há pregões melodicamente tão expressivos que encantam toda a gente. São sons peculiares. Vozes fortes que invadem casas e carros, caracterizando lugares e épocas. São ditos alegres, jocosos, às vezes até irônicos, dirigidos aos seus fregueses, destinados para atraí-los. Em 1936, Álvaro Moreira , em seu texto, faz deliciosos convites a reviver lembranças de outrora: "Os guerreiros das tabas sagradas, os portugueses descobridores, os pretos trazidos da África, e muitos outros turistas fizeram uma raça nesta terra do sol, das montanhas e do mar. A nossa raça do Brasil. Ela anda nas mulheres bonitas, nos homens ágeis, na poesia que fala como se fosse música, na música, que é poesia desfolhada… Todas as manhãs e de tarde e de noite, a raça brasileira passa pela minha porta na voz dos pregões cariocas, os pregões cariocas que escrevem no ar o poema da cidade". Considerando que o contexto sócio-econômico, principalmente da região nordeste do Brasil, apresenta ainda hoje características que em parte possibilitam a convivência simultânea de processos informais de relações de troca com outros mais de natureza determinada, é possível identificar a permanência de formas singulares de mercancia que valorizam relacionamentos com 51 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 um certo nível de especificidade, calcado no contato meramente pessoal. Esse processo de relacionamento qualificado, fruto de condições sócio-econômicas específicas e da divisão social do trabalho naquela localidade, tem determinado a persistência de modelos de relação que propiciam o desenvolvimento de atividades funcionais eivadas de características lúdicas, deixando transparecer a natureza criativa do homem comum, anônimo, que faz de seu meio de subsistência um ato criador. É nesse contexto que a prática dos pregões cantados encontra formas contemporâneas de se fazer presente nos dias de hoje, aferindo, ainda, um caráter efetivo de funcionalidade. Considerando que os pregões cantados 13 apresentam notável persistência, sobretudo, no nordeste do Brasil, importante é examinar tal fato sob o aspecto das circunstâncias de produção/ recepção dos textos melódico-literários, vistos como formas qualificadas de comunicação em contextos diversos. É curioso notar a presença de mercadores ambulantes cantadores de pregões ainda hoje em atividade, sobretudo nas grandes capitais do nordeste do Brasil, principalmente se considerarmos os aspectos funcionais ligados à demandas mercadológicas, bem como as formas de expressão e representações de fragmentos poético-musicais originados da função social dos vendedores ambulantes no trabalho de apregoar e vender suas mercadorias:14 1. Picolé Publicada em Novembro de 2007 Nos grandes centros urbanos do nordeste, ainda é corriqueira a prática de ambulantes que cantam vendendo mercadorias como jornal, cestos, vassouras, abanos, facas, espanadores, regadores, bacias, esteiras, colher de pau; e produtos comestíveis tais como rapadura, beiju, taboca, picolés, amendoim torrado, jaca mole, castanha assada, rolete de cana, peixes, leite e queijos, doce de caju, camarão no espeto, pães doces, lelê, broa de milho, mingau de tapioca, mungunzá, etc. Dentre os vários exemplos de pregões cantados nas ruas do Brasil, destacamos alguns, inclusive de notável permanência da influência portuguesa15: "Pamonhas! Pamonhas quentinhas e docinhas, freguesa! É o carro da pamonha que está na sua rua… Pamoooonhas, com leite, coco e açúcar…"16 "Oh, freguesa! Tem picolé, seu José. É de juçara, dona Januária, É de murici, dona Lili, É de abacaxi, seu Gigi, É de coco, seu Tinoco, É de caju, dona Juju, 13 "O pregão, quando musical [porque também os há simplesmente gritados], conta duma parte melódica e um pequeno texto prosódico". (Em: Bonito, Rebelo. Op. Cit., Pág. 7). 14 "A culinária baiana tem um aspecto curioso: não se restringe ao santuário doméstico da sala de jantar. Vem para as ruas, para as praças para as esquinas nos tabuleiros, tão bem ornamentados das baianas. E é acompanhada pelos pregões musicais que são simpáticos convites para experimentá-la: Acarajé... tá quentinho tá 2. Vassoura ô abara mingau de Carimã... É a melodia do paladar, tão expressiva que já desperta em quem ouve um princípio agradável de sabor". (Em: Joaquim Ribeiro. Folclore Baiano. MINC - Serviço de documentação, Departamento de Imprensa Nacional. Rio de Janeiro 1956. p. 38) 3. Salada de Frutas e Sanduíches 15 "O vassoureiro é clássico no Rio, percorrendo todos os recantos; são empregados das fábricas e, raramente, vendem por conta própria. É tipo curioso como bazar ambulante de vassouras, espanadores, escovas, vasculhos, cestas e cadeiras de vime. São todos os vendedores de origem portuguesa, e passam anunciando: "bassoiras, espainadores, cadeiras de bime", e assim vão com a sua "funetica" vivendo e vendendo as suas mercadorias." (Em: Corrêa, Magalhães. O Sertão Carioca. 1936) 16 Recolhido por Álvaro Moreira, poeta, cronista e jornalista brasileiro. Nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 1888 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1964. 52 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 É de maracujá, dona Sinhá, Compra aqui do Jorge, É um suplício, seu Simplício, Que você fica bonita".21 É um coquinho, seu Agostinho, "Cheiro cheiroso! É um tremendão, seu Brandão!"17 Cheiro cheiroso! "Batata doce É do bom e do melhor Tá quentinha, Pro banho de São João!"22 Ó! Que beleza De sobremesa "Pinhão quente! Dona Teresa Quem não come fica doente!"23 Traz a bandeja E leva a sobremesa "Na esquina do Rosário Que beleza. Quer de noite, quer de dia Olha a batata doce Há sorvete de patente Depressa dona Maria, Feito por engenharia"24 Traga a bacia "Eu tenho ostras Senão esfria".18 Tenho ostras "Soberano, gargalhada, Chegada agora… Biscoito fino, bananada… Chegada agora…"25 Ninguém me chama, Vou-m'imbora! "Ei, mugunzá Daqui a pouco não tem mais nada! Tá quentinho o mugunzá Soberanô!"19 Istá bom, ispiciá"26 "Olha o duceiro, Olha o duceiro, Olha o duceiro, Perticular…."20 17 Raimundo Correia recolheu esse pregão do sorveteiro Luís Almeida, em São Luís do Maranhão. 18 Recolhido de um vendedor de batata doce do bairro de Vila Mariana, São Paulo, SP, em 1948. Recolhido por de Álvaro Moreira, 1936. 19 Ibidem. 20 Pregão de um mascate da Rua José Paulino, em São Paulo, do ano de 1948. 21 Pregão dos vendedores de banhos-de-cheiros em Belém, Pará. 22 "Fita, renda e botão, Recolhido por Waldemar Inglésias Fernandes, em Lendas e crendices de Piracicaba e outros estudos. Renda, botão e fita, 24 Recolhido por Mário Sette, em Maxambombas e maracatus. 3ª ed. Rio de Janeiro, Casa do Estudante Brasileiro, 1958. 23 Ibidem. 25 Ibidem. 26 53 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 "Lá vem o cuscuzeiro Bassoura, abano Cuscuz! Arupemba, raspa-coco"32 Cuscuz de milho!"27 "Ei bolinha de cambará "É doce, é doce Dois pacotes é um tostão"33 O abacaxi É doce, é doce "Ah é... o pirulito E é barato"28 Enfiado num palito Chupa pobre, chupa rico "Banana prata, Chupa eu que também grito"34 Maçã, madurinha Sapoti, sapota "Ôie o rolete de cana, Manga-rosa De cana caiana Manga-espada Ôie o rolete..."35 Sapatinho Tamaracá"29 "Pão doce, dez tões "Oiti da praia Dez tões, tá chegando quentinho... Oito coró Olha aqui o novinho... Jacaiu cajá Dez tões, chega tá se derretendo"36 Jaca-mole Jaca-dura"30 "Tapioca na minha mão é melhor, porque é a legítima do sertão. "Pamonha de milho verde Olha aí que beleza, Milho cozido pode chegar e pedir, freguesa."37 Ei pamonha" Ibidem. 27 "Ô marcela pra trabisseiro Lã de barriguda Ei marcela"31 Ibidem. 28 Ibidem. 29 Ibidem. 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Retirado de Poemas duma vida simples. Em: Carneiro, Edison. "Antologia do Negro Brasileiro". 33 "Lá se vai o home da bassoura Retirado de A Gazeta. Vitória, 8 de março de 1959. 34 Lá se vai ele… O home da bassoura Ibidem. 35 Retirado de Téo Brandão. Em Boletim trimestral da Comissão Catarinense de Folclore. 36 Ibidem. 37 54 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 "Compre banana vendida por mim Vai guri, vai chamar o papai, gugu quem dela comprar jamais será ruim! que o puxa-puxa tá no meu baú!"44 Olha a melancia.., quem comprar só tem alegria"38. "Peixe: Olha o peixinho! Só compra quem tiver dinheiro. "Olha o doce da dona Maria, esse é garantido... Quem não tiver não sente nem o cheiro!"45 Não dá dor de barriga e nem dor de bexiga..."39 "Quem quer a tabuada "Olha o amendoim torrado Tem de dividir dez dividido por dois é a cinco a alegria dos namorados!"40 Cinco vez duas, dez, para dez nada Quem quer a tabuada?"46 "Olha o cheiro cheiroso para lavar catingoso!"41 "Rolete de cana caiana Manga de Itamaracá "Olha a melancia dona Maria São os melhores que há"47 panela no fogo, barriga vazia! Olha o chuchu, dona Teresa, "Ôôôô... Pula-pula, é bem, é bem pulado... que está uma beleza"42 Paçoca, pipoca, amendoim torrado".48 "Moças bonitas Referências Bibliográficas senhoras bacanas Andrade, Mário - Aspectos da Música Brasileira. Vila Rica, 1991. venham aqui comprar suas bananas!"43 Bandeira, Manuel - Poesias Completas. Casa do estudante do Brasil, 1551. "Lá vou eu de baú vou vender puxa-puxa vou por aí... Lá vou eu, vou vender puxa-puxa quem quiser puxa-puxa puxa-puxa o dinheiro, já tô aí... Vai guri, vai chamar a mamãe, guri que o puxa-puxa te espera aqui... Ibdem. 38 Ibdem. 39 Ibdem. 40 Ibdem. 41 Ibdem. 42 Ibdem. 43 Ibdem. 44 Retirado de "Folclore fluminense", p.201-202. 45 Ibdem. 46 Retirado de "Do jeito mais simples; crianças pesquisam cultura popular". Rio de Janeiro, 1979. vol.2. 47 48 Retirado de Contin, Adi Lizzi. "O pregão do pula-pula". Correio Paulistano. São Paulo, 1950. 55 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Barreto, Mônica L. de Barros (org.) - Do jeito mais Simples - Crianças Pesquisam Cultura Popular. Secretaria de Educação e Cultura, 1979. Bluteau, Raphael - Vocabulário Portuguez e Latino. Tomos I e II. Bógea, Lopes e Antonio Vieira - Pregões de São Luis. FUNC, 1980. Bonito, Rebelo- Pregões do Porto. Separata do Boletim Cultural da Cãmara Municipal do Porto. Vol XXVI - FACS. 1-2. Cabral, Alfredo do Vale - Achegas ao Estudo do Folclore Brasileiro. MEC/FUNART, 1978. Cascudo, Luis da Câmara - Antologia do folclore brasileiro. Martins, 1956. _____________ Dicionário do Folclore Brasileiro. Ediouro, 1972. Chaves, Luís - Nota Entográfica - Os pregões populares das ruas de Lisboa. Separata da Revista Municipal, n.º 64. Lisboa, 1955. Costa, F. A. - Folk-lore de Pernambuco - Subsídios para a história da Poesia Popular. Arquivo Publico Estadual, 1974. Contim, Adi Lizzi - O pregão do pula-pula. Correio Paulistano, 1950. Cortesão, Jaime - O que o povo canta em Portugal. Rio de Janeiro, 1942. D'Assumpção, José Teixeira - Curso de Folclore Musical Brasileiro. Freitas Bastos, 1967. Publicada em Novembro de 2007 Herculano, Alexandre - Lendas e Narrativas, tomo I, 13a edição, Lisboa em 1918. Melo, Martinho Nobre. Césario Verde. 3ªedição. Rio de Janeiro, 1975. Moraes Filho, Mello - Festas e Tradições Populares no Brasil. Editora da USP, 1977. Pacheco, Helder - Tradições Populares do Porto. Editorial Presença - Lisboa, 1991. Peixoto, Afrânio - Breviário da Bahia. Agir, 1946. Queiroz, Rachel de - Cenas Brasileiras. Ática, 1996. Quirino, Manuel - A Bahia de Outr'ora, Vultos e Factos Populares. Livraria Econômica - Bahia, 1916. Romero, Silvio - Contos Populares do Brasil. EDUSP, 1984. Sette, Mário - Maxambocas e Maracatus. Casa do Estudante do Brasil, 1958. Tinhorão, José Ramos - Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Vozes, 1999. ________________ Editora 34, 2005. Sons que vêm das Ruas. Vasconselos, José Leite de - Etnografia Portuguesa. Vol. V. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982. Vianna, Hildegards - A Bahia já foi Assim. Itapuã, 1973. Wanderley, Eustorgio - Tipos Populares do Recife Antigo. Colégio Moderno, 1954. Revista de Guimarães - Feiras e mercados. Artigo. Curiosidades de Guimarães, n.º VI, pág 177. Debret, Jean Baptiste - Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Itatiaia, 1989. Duarte, Abelardo - Folclore Negro das Alagoas. Imprensa Universitária UFAL, 1974. Gama, Eurico - Os pregões de Elvas. Separata da Revista Ocdente. Ed. Álvaro Pinto. Lisboa, 1954. Guerreiro, Manuel Viegas. ORG - Literatura popular portuguesa - Teoria da literatura oral / tradicional / popular. Fundação Caloute Gulbenkian, 1992. Habsburgo, Maximiliano - Bahia 1860 - Esboço de Viagem. Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982. 56 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Reportagem Pelo Circo e Artesanato Tradicionais Cia. circense de Águas Lindas de Goiás valoriza tradição, apesar das dificuldades Bruno Rezende* "Tombei, tombei, tornei tombar/ a brincadeira já vai começar". Em coro, o palhaço Mangaba e os integrantes da Companhia de Circo Boa Vontade chamam, e o público responde. E assim começam os espetáculos da companhia desde que foi criada, em 2004, como conta José Carlos do Nascimento, que dá vida ao palhaço e é um dos responsáveis pelo circo, situado no município de Águas Lindas de Goiás, a cerca de 40 quilômetros de Brasília. Filho de José André dos Santos, o Mestre Zezito (falecido em 2006), José Carlos, de 36 anos, ressalta a importância da tradição transmitida por seu pai. Mas também as dificuldades de se levar adiante a arte que começou a aprender com ele ainda criança. Como o próprio Mestre Zezito, José Carlos nasceu e foi criado na cidade de Juazeiro do Norte, no Estado do Ceará. Começou a trabalhar muito cedo (aos oito anos de idade), e não teve oportunidade de seguir com o ensino fundamental. Mas logo resolveu trocar os ofícios de pintor de paredes, pedreiro, eletricista e carpinteiro pelas artes circenses e pelo artesanato tradicional. Ensinado e incentivado por seu pai, passou a praticar e desenvolver, além da construção de brinquedos artesanais, números de mágica, equilíbrio em pernas de pau e em monociclo, e cenas e cantigas de palhaço, dentre outras das mais diversas atividades circenses e artesanais - algumas criadas por seu pai; todas apresentadas e transmitidas por este ao longo de seus 47 anos de carreira. Além disso, acompanhou de perto o palhaço Pilombeta (Mestre Zezito) para, mais tarde, criar e dar vida ao palhaço Mangaba. circense ainda cedo (desde os três anos). Ele afirma que apenas ele próprio e o já falecido Rafael (um irmão mais novo) escolheram seguir os passos do pai. Outros irmãos não teriam seguido por diversos motivos, como a falta de interesse pelo circo e possibilidades de maior retorno financeiro em outros ofícios. Mas José Carlos afirma que a principal causa foi a falta de vocação: "é vocação mesmo; não têm vocação para o circo. Alguns queriam, inclusive, mas chegava na hora do espetáculo não entravam nem em cena. Ficavam com vergonha". Longe de se arrepender da escolha que fez, ele diz não trocar os ofícios circenses e artesanais pelos antigos ofícios, mesmo considerando que sua renda seria maior: "é uma escolha que eu faria de qualquer forma. Se eu estivesse hoje trabalhando de pintor, meu dinheiro seria muito maior. Ganharia mais ou menos R$ 5 mil por mês. Sempre gostei do circo. Não tenho vocação para outra coisa. Só para o circo mesmo". E complementa: "daria para trocar de carro todo ano". José Carlos reitera que gosta do que faz. Ele garante: "a gente trabalha brincando, divertindo crianças de cinco a 105 anos". Seja nas apresentações da Companhia de Circo Boa Vontade (a companhia se apresenta em diversos locais, como no Parque da Cidade, em Brasília, ou em praças públicas, em municípios do Distrito Federal e no interior de Goiás), seja nos treinamentos para andar em pernas de pau e nas oficinas de construção de brinquedos (oferecidos quase sempre para público infanto-juvenil). *Jornalista. Como muitos de seus 42 irmãos (alguns também filhos do Mestre Zezito com Francisca do Nascimento), José Carlos foi levado ao ambiente 57 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Por outro lado, ele se queixa de oportunistas, da falta de reconhecimento e respeito, e dos conseqüentes cachês reduzidos e baixas remunerações por oficinas e por treinamentos. Segundo José Carlos, das propostas de trabalho que recebe, muitas oferecem valores abaixo da faixa que vai de R$ 400 a R$ 1 mil (margem que considera razoável para cachês e remunerações), e não prevêem custos com alimentação e transporte. Ele também afirma que muitos contratantes atrasam os pagamentos (alguns sequer "dão satisfação"). E reclama, ainda, da falta de reconhecimento, principalmente em referência a oportunistas que, segundo ele, foram aprendizes de seu pai ou conhecem sua obra, mas não atribuem autoria ou importância ao mestre. As grandes dificuldades de José Carlos e da Companhia de Circo Boa Vontade mostram problemas e controvérsias enfrentados por muitos artistas, e empecilhos para que a arte se torne efetivo meio de vida e de inclusão social. Aluízio Augusto Carvalho também foi aprendiz do Mestre Zezito, embora não seja seu filho (segundo Aluízio, não era necessário ser da família para ser um dos muitos aprendizes do mestre). Além de integrar a Companhia de Circo Boa Vontade, ele exerce atividades circenses por conta própria (dando vida ao palhaço Ximbica e em outros ofícios). Aos 33 anos, com 12 de carreira, Aluízio confirma os problemas e as dificuldades mencionados por José Carlos. E vai além: "eu acredito que a grande dificuldade, hoje, seja as pessoas confundirem arte com mercado. A classe média se apropria de um discurso, mas a maioria das pessoas não tem a vivência, e coloca como se fosse um produto. E mais do que um produto, um espetáculo, uma 'brincadeira' ou um brinquedo que é feito, por exemplo, é a expressão daquele artista. Essa visão é que as pessoas perderam e, hoje em dia, não dão o valor devido". Publicada em Novembro de 2007 Luan, de cinco anos, é o filho mais novo de Aluízio. Ele já anda em pernas de pau e 'brinca' caracterizado como o palhaço Curumim. "O Luan tem grandes possibilidades de ser um grande artista, porque ele está começando muito cedo, ao contrário de mim. Quando ele está comigo, ele me pede para 'brincar', já me pediu outro par de pernas de pau... Mas como opção profissional, só mesmo o tempo vai dizer", avalia Aluízio. Francicarla, Franciele e Francilaine (17, 11 e dez anos, respectivamente) são filhas de José Carlos e já se apresentam com a companhia. Além delas, José Carlos possui mais dois filhos. Ele percebe e compreende que nem todos seguirão seus passos, seja por falta de interesse, seja por falta de vocação. Alguns já se inclinam para outros caminhos, inclusive com a oportunidade de seguir exclusivamente com os estudos regulares e outra profissão. Por outro lado, José Carlos cita o exemplo de Franciele. Segundo ele, além de Franciele gostar muito do circo, ela tem muito talento: "acho que ela decide ficar no circo, porque o que aquela menina já faz… ela está com 11 anos, e o que ela faz eu com 11 anos não fazia. É a única mesmo que eu acho que não vai querer outra coisa, a não ser a vida do circo". Mestre Zezito e parte da família foram para Águas Lindas de Goiás em 1992. Hoje, José Carlos, sua família e a Companhia de Circo Boa Vontade estão alocados no Ninho dos Artistas, um local de encontros e produções artísticas do município. Aluízio, José Carlos e outros integrantes da companhia reúnem características de artistas e artesãos pouco comuns nos dias atuais, buscando levar adiante não só a tradição artística do circo, mas também a tradição da arte em família, transmitida através de gerações, com o objetivo de perpetuar e fazer reconhecer, inclusive, o nome e a obra do Mestre Zezito. 58 Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Novembro de 2007 Sugestões Para Assistir DVD SARAVAH - Pierre Barouh, 1969 Este documentário pode ser acessado diretamente do Porta-Curtas Petrobrás: Distribuído pela Biscoito Fino (2005) Curtas Documentário: Partido Alto Sinopse: Com raízes na batucada baiana, o partido alto sofre variações porque, ao contrário do samba comprometido com o espetáculo, é uma forma livre de expressão e comunicação imediata, com versos simples e improvisados, de acordo com a impiração de cada um. Partido Alto é uma forma de comunhão, reunido sambistas em qualquer lugar e hora pelo simples prazer de se diverti. Sinopse: No mês de fevereiro de 1969 o diretor de cinema francês Pierre Barouch desembarca no Rio de Janeiro disposto a registrar em película momentos de uma música que, embora conhecesse pouco, o fascinava intensamente. O olhar do estrangeiro aberto para a música brasileira, capturou imagens que durante 36 anos permaneceram desconhecidas no nosso país. O DVD "Saravah" é o resultado das sessões de filmagem de Barouh com gigantes como Pixinguinha e João da Baiana, então octagenários e os jovens Maria Bethânia (aos 21 anos) e Paulinho da Viola, tendo Baden Powell como elo de ligação entre gerações tão distantes e fundamentais da arte brasileira. São imagens imperdíveis! ASSISTA: http://www.portacurtas.com.br/ filme_abre_pop.asp?cod=4751&Exib=2573 59