Comportamento
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Comportamento
20 Expresso, 13 de PRIMEIRO CADERNO SAÚDE Comportamento Levados ao limite, os distúrbios alimentares matam. Tratados, são curáveis. No verão, as adolescentes expõem os corpos, comparam formas, tomam decisões. Algumas escolhem o caminho da privação alimentar. Desde 2010 realizaramse 12.858 consultas e só em 2015 foram 47 os internamentos no Hospital de Santa Maria. Patrícia é um casolimite. Há 25 anos sofre de anorexia nervosa. A doença provocou-lhe uma severa osteoporose e, quando estava a morrer, apenas nos Estados Unidos encontrou solução para lhe sustentar a coluna. Conta o que passou para que não se repita Christiana Martins A os 34 anos, o peso mínimo que Patrícia chegou a ter foi 20 quilos. Pouco, para quem media 1,60 metros. O cérebro deixou de responder a contento e os órgãos começaram a falhar. Hoje, depois de vários internamentos e de uma complexa cirurgia nos Estados Unidos, Patrícia pesa 38 quilos e come para mudar um percurso de vida marcado por uma anorexia nervosa grave. Pelo caminho perdeu dez centímetros de altura e ganhou oito parafusos cromados na coluna. Escolheu morrer, mas foi-lhe dada a oportunidade de viver e por isso decidiu contar a sua história. Porque acredita que será possível ajudar outras jovens a evitar a privação alimentar severa. 1. No início, lavava as mãos “Desde que sou gente que me recordo de ter uma relação especial com a comida. Lembro-me de estar sempre a lavar as mãos, até criar frieiras. Acho que comecei a fazê-lo com nove anos. Pensava que tudo o que entrasse no meu corpo tinha de ser puro. No fundo da minha memória há uma recordação de estar a mamar e não querer, sentir repugnância.” Assim, num golpe, Patrícia explica como o distúrbio alimentar começou. Como se fosse indissociável da própria identidade. A doença foi-lhe diagnosticada aos 13 anos, quando passou a ser acompanhada psicologicamente. Tem 39 e é considerada pela equipa que a acompanha no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, como um dos casos mais graves que ali deram entrada. É um exemplo limite que serve para mostrar até onde a privação alimentar pode levar uma pessoa. A maior parte dos casos de anorexia nervosa que são tratados recuperam e apenas 30% se tornam crónicos (ver entrevista). É o caso de Patrícia. Nada no seu relato é ficcional. 2. Linhas arredondadas não A anorexia tirou-lhe dez centímetros de altura. E muito mais “Não gostei de ver os meus seios a crescer e as ancas a arredondar. Comecei a usar T-shirts em cima de T-shirts para esconder o corpo. Queria travar aquilo. Tinha medo. E não era de comida. Não sei do que era. Aos 13 anos fui fazer uma ecografia porque a minha menstruação não era regular e encaminharam-me para uma consulta psiquiátrica. Foi no verão e o médico recomendou o internamento. Na altura, eu estava sempre a pensar no que poderia fazer para não comer. Tinha muita fome, mas, mais importante do que me saciar, era encontrar uma forma de enganar as pessoas e não comer. Cheguei a pesar 27 quilos.” Durante dois meses Patrícia esteve internada. No hospital, apenas outra jovem, então com 20 anos, lhe servia de espelho. Foi a primeira vez que conviveu com uma pessoa com anorexia. Alguém que conseguia ser ainda mais magra do que ela. Um dos passatempos era a comparação do diâmetro das coxas e a outra batia-a aos pontos porque tinha as pernas ainda mais estreitas. Em ambas, o mesmo sentimento de desconforto e inadaptação. 3. Ganhar peso e ainda ser magra “Entre os 15 e os 28 anos pesei cerca de 45 quilos e estava satisfeita porque ninguém me chateava e ainda diziam que era magra. Acabei o colégio, entrei para Arquitetura, fui estudante Erasmus em Paris, comia baguetes. De volta a Lisboa, comecei a trabalhar em cinema, à frente das câmaras, e parecia que finalmente me tinham dado uma vida para viver: a da personagem. Quando atuava não pensava em comida. Foi a altura em que me senti feliz no meu corpo. Mas o meu único irmão morreu de leucemia. Eu tinha 28 anos e ele tinha 31.” Não comer foi a saída encontrada por Patrícia para lidar com a perda. Em causa já não estava o objetivo de ser magra, simplesmente não conseguia comer. O corpo dela estava programado para ter fome e no fim do curso pesava 32 quilos. Passaram-se seis anos de alimentação insuficiente, durante os quais foi perdendo peso, gordura, músculos. Tinha dores terríveis e ficou encurvada. e agosto de 2016 PRIMEIRO CADERNO FRASES “Continuo a pensar que nada é mais perfeito do que o zero, que um corpo vazio está limpo” “Tinha muita fome, mas, mais importante do que me saciar, era encontrar uma forma de enganar as pessoas e não comer” “Entre os 15 e os 28 anos pesei cerca de 45 quilos e estava satisfeita porque ninguém me chateava e ainda diziam que era magra” “Aquela era a pior maneira de estar viva. Sofria um achatamento intervertebral devido à osteoporose causada pelos muitos anos de anorexia. Estava disforme e custava-me respirar” “Eu pensava que não iria suportar a cirurgia e sentia-me tranquila por ir morrer. Estava à espera disso há muito tempo. Mas no dia a seguir à operação, acordei” “Quando cheguei aos 22 quilos fui internada no Hospital da Covilhã e alimentaram-me por sonda. Foi como se tivesse sido violada” Patrícia Doente que sofre de anorexia nervosa há 25 anos Os raios X de Patrícia. O primeiro, à esquerda, foi enviado ao médico americano que a operou. O segundo mostra a coluna após a cirurgia Os órgãos estavam comprimidos, sem espaço para funcionar corretamente, sofria de diarreia. O pescoço não podia sustentar-lhe a cabeça. Patrícia não queria, mas, mesmo que quisesse, não conseguia alimentar-se. Aproximou-se do peso limite: 20 quilos. 4.PRespirar,PsóPnosPEstadosPUnidos “Aquela era a pior maneira de estar viva. Sofria de um achatamento intervertebral devido à osteoporose causada pelos muitos anos de anorexia. Estava disforme e custava-me respirar. Certo dia, enquanto fazia exercício, senti a coluna estalar e as vértebras ruir. Procurei ajuda na internet e um cirurgião respondeu-me do Hospital Monte Sinai, em Nova Iorque. Disse que me operava se eu pesasse 20 quilos. Tinha 34 anos e aqui em Portugal ninguém queria ajudar, diziam que não tinha peso suficiente para suportar a cirurgia. Estava a morrer. A operação nos Estados Unidos era muito cara, mas o meu pai, que sempre foi o meu pilar, já tinha perdido um filho e sabia que estava a perder a única filha que lhe restava. Vendemos a nossa casa em Lisboa. Era a minha vida ou a casa.” A cirurgia de osteosíntese para juntar as vértebras da coluna com parafusos no Monte Sinai em 2012 custou cerca de 270 mil euros aos pais de Patrícia. Tiveram de se mudar para uma casa da família na zona da Covilhã. E foi ela quem tratou de tudo para partir. Além dos detalhes burocráticos, do envio de exames por e-mail, era preciso preparar a alimentação: saquinhos com cereais integrais e tofu. Em Nova Iorque, o neurocirurgião que a operou ficou tão impressionado com a situação que não hesitou em avançar, apesar dos riscos. No dia em que completou 35 anos, Patrícia foi operada. 5.PNaPcidadePquePnãoPdorme “Quando cheguei ao hotel, parecia que todos olhavam para mim por ser tão magra. No hospital, nas vésperas da operação, os médicos mandaram-me comer tudo o que conseguisse, um conselho assustador para qualquer anorética. Eu pensava que não iria suportar a cirurgia e sentia-me tranquila por ir morrer. Estava à espera disso há muito tempo. Mas no dia a seguir à operação, acordei. Foi uma sorte. Agora quero viver. Nunca mais quero sentir a sensa- DISTÚRBIOS DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR Número de consultas Género/Grupo etário 2010 2011 2012 2013 2014 Mulheres 10 a 14 anos 15 a 24 anos 25 a 44 anos 45 a 64 anos 65 a 74 anos 75 a 84 anos Homens 10 a 14 anos 15 a 24 anos 25 a 44 anos 45 a 64 anos 65 a 74 anos 75 a 84 anos Total por ano 2.028 146 1.183 626 71 2 0 60 4 31 25 0 2 0 2.088 1.874 169 998 639 68 0 0 67 2 39 26 0 0 0 1.941 1.899 130 931 738 96 0 4 72 9 51 11 1 0 4 1.971 2.227 138 1.144 783 160 2 0 92 4 80 8 0 2 0 2.319 2.141 173 1.138 691 139 0 0 53 1 31 19 2 0 0 2.194 FONTE: SERVIÇO DE PSIQUIATRIA E SAÚDE MENTAL DO HOSPITAL DE SANTA MARIA 2015 Total dos 5 anos 2.292 124 1.309 678 174 6 1 53 5 38 10 0 6 1 2.345 12.461 880 6.703 4.155 708 10 5 397 25 270 99 3 10 5 12.858 ção de ter menos de 35 quilos, quando o meu cérebro não me responde. Quanto mais alimento dou ao meu corpo, menos anoreticamente eu penso.” Patrícia partiu sozinha para Nova Iorque. Com ela, levava os seus 20 quilos e pequenos sacos com amêndoas secas. Ficou cerca de um mês. A recuperação foi dura porque tinha dificuldade em andar devido à falta de forças e o movimento fazia parte do tratamento. Os médicos insistiram, apoiaram-na. O corpo dela assemelhava-se ao de uma mulher com 80 anos. Depois da cirurgia, usava um colete plástico para alinhar a coluna e tinha uma grande cicatriz nas costas. 6.PNadaPéPmaisPperfeitoPP doPquePoPzero “De regresso a Portugal, continuei a restringir a alimentação. E a fazer exercício. Como não consigo fazer muito mais, andava. Acordava de madrugada, saía descalça, no frio, e andava muito, subia escadas. Quando cheguei aos 22 quilos fui internada no Hospital da Covilhã e entubaram-me, alimentaram-me por sonda. Foi como se tivesse sido violada. Mas sobrevivi. Vim para Lisboa para novo internamento. Há dez anos que nada mais se passa na minha vida. Mas desta vez vai correr bem: finalmente fiz as pazes com a morte do meu irmão.” Este ano, em Santa Maria, Patrícia não foi sedada. Medicada, sim. Os médicos administraram-lhe uma dieta hipercalórica. Hoje, quando se deita, os parafusos doem-lhe. Estão lá para ficar. Pesa 38 quilos e a meta são os 40. Sabe que se baixar novamente para os 20, morre. O corpo parou de se desmoronar, mas há um longo caminho a percorrer. Deixar de comer dá-lhe imenso prazer: “Ainda sou prisioneira, continuo a pensar que nada é mais perfeito do que o zero, que um corpo vazio está limpo e organizado. O meu corpo é o meu campo de batalha.” [email protected] 21 Jennifer Santos Psiquiatra do Hospital de Santa Maria “Efeitos do verão sentem-se meses mais tarde” A anorexia nervosa continua a afetar sobretudo adolescentes do sexo feminino, no entanto aparecem cada vez mais doentes mais velhas. Recentemente, o Hospital de Santa Maria teve de internar uma mulher de 65 anos por dois meses e meio. Contudo, mesmo nestes casos, o mais habitual é que a doença tenha começado por se manifestar na adolescência. Mas há exemplos de mulheres que se curam, têm filhos, seguem com a vida. O verão é um período de risco, em que a comparação dos corpos pode incentivar à mudança de comportamentos. PP PorquePéPquePosPdistúrbiosPalimentaresPafetamPsobretudoPadolescentes? R Porque é quando acontecem as maiores alterações corporais. É uma fase em que as relações com os amigos assumem maior importância e se começa a construir a autonomia e a definir a identidade. E sobre todas estas questões paira uma dúvida fundamental: iremos ser aceites pelo nosso grupo? É um período de risco. PP APanorexiaPéPumaPdoençaPassociadaPaPparâmetrosPdePbelezaPsocialmentePdefinidos? R Não, não tem que ver com esté- tica. Estas meninas sabem que não estão bonitas. Houve um tempo em que se acreditava que elas se viam gordas e por isso deixavam de comer. Hoje sabe-se que muitas delas têm consciência da magreza, mas não conseguem parar com os comportamentos. O critério da alteração da perceção corporal deixou de ser central no diagnóstico. que há padrões comportamentais que podem deixar os doentes mais suscetíveis e numa família em que uma pessoa sofra de distúrbio alimentar, há maior probabilidade de surgir mais alguém doente. Já nos apareceu um caso de anorexia purgativa (em que a doente vomita o pouco que come) que se prolongava por quatro gerações. PP OPgenePdaPanorexiaPjáPfoiPidentificado,PàPsemelhançaPdoPquePjáP aconteceuPcomPoutrasPpatologias? R Não, o que se sabe é que a doen- ça está associada a alterações na receção de serotonina, um dos neurotransmissores responsáveis pela regulação do humor. Ainda há um longo caminho a percorrer na investigação. PP EntrePosPdistúrbiosPalimentares,P qualPoPmaisPfrequente,PaPanorexiaP (restriçãoPalimentar)PouPaPbulimiaP (ingerirPgrandePquantidadePdePalimentosPePdepoisPvomitar)? R A prevalência, na população fe- minina em geral, é de 0,2% para os casos de anorexia e de 2% para os de bulimia. Mas a anorexia nervosa leva a mais internamentos devido às consequências provocadas pela privação alimentar. Além disso, é mais grave na adolescência devido aos problemas ósseos que provoca. Mas a bulimia gera perda de potássio, o que pode levar a arritmia e paragens cardíacas. PP QualPaPcronicidadePdosPdistúrbiosPalimentares? R É de cerca de 30%. PP EPqualPaPtaxaPdePmortalidade? R Ronda os 10%. É a doença psi- quiátrica com a maior taxa. PP PorquePéPquePelasPnãoPconseguemPinterromperPosPcomportamentosPrestritivos? R Elas não conseguem explicar, PP APsazonalidadePinfluenciaPoPsurgimentoPdePnovosPcasos? R Não é claro, mas o verão é quan- PP QualPoPpapelPdaPfamíliaPnoPsurgimentoPePnaPresoluçãoPdoPproblema? R Muitos pais chegam ao hospital PP QualPoPcritérioPquePdecidePpeloP internamentoPdasPdoentes? R A maior parte dos casos é tratada mas falam muito no medo das alterações corporais. É preciso dizer que também há uma carga genética associada à doença. Sobretudo é necessário esclarecer que os distúrbios alimentares são doenças multifatoriais. pensando que são culpados. Fazemos sempre reuniões com as famílias, tentamos envolver todos, afinal este é um problema que causa muito sofrimento familiar, não só a quem está doente. Explicamos que os pais não são os culpados e que não consideramos que as famílias estejam doentes. Esta é uma situação que tem de ser resolvida com a participação de todos. Ainda não conseguimos quantificar o peso da influência genética e o dos comportamentos, mas sabemos “ENTREPP ASPDOENÇASP PSIQUIÁTRICAS,P APANOREXIAP NERVOSAPP ÉPAQUELAPP COMPMAIORP TAXAPDEP MORTALIDADE:P RONDAPOSP10%P DOSPCASOS” do existe maior exposição corporal, uma altura em que muitas jovens começam a fazer dietas, cujos efeitos serão sentidos meses mais tarde e, talvez por isso, o número de internamentos diminua no verão e aumente em outubro e novembro. nas consultas, mas quando as doentes atingem um peso muito baixo, com índice de massa corporal (IMC) inferior a 14 e 13 (a OMS determina como 18,5 o IMC mínimo) é preciso interná-las. Ou quando vomitam com frequência, alterando os níveis de potássio ou quando a família está numa situação de saturação e não consegue lidar com o problema. Um internamento pode durar duas semanas a três meses, tendo já acontecido situações de até seis meses de internamento. A média é de dois meses. PP OsPdistúrbiosPalimentaresPsãoP tratadosPcomPmedicação? R Sim, com doses baixas de antipsi- cóticos para atuar sobre a ansiedade e os comportamentos obsessivos, também com antidepressivos e algumas vezes para o sono. Nunca damos medicação para abrir o apetite porque não queremos criar situações de alimentação artificial. Até porque elas têm apetite, mas lutam contra ele. O problema é que toda esta medicação só atua sobre os sintomas e não sobre as causas. Mas, apesar da complexidade da doença, a maioria das doentes melhora ou fica curada.