identidade e representação amazônica no conto voluntário

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identidade e representação amazônica no conto voluntário
IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO AMAZÔNICA NO CONTO VOLUNTÁRIO DE INGLÊS
DE SOUSA1
Samuel Pereira Campos
Geraldo Brandão Neto¹
RESUMO: A Literatura é uma arte que através dos séculos descreveu em suas letras o nascer
e o desaparecer de diversas nações. Procurou relacionar as mais diversas experiências entre o
homem e seu ambiente, demonstrando uma relação de mútua dependência entre ambos, onde
um forma o outro. Assim, o presente artigo procura delinear no conto “Voluntário”, de Inglês de
Sousa, algumas interpretações que evidenciem a representação da identidade amazônica na
formação do homem da região, em especial do caboclo, aqui caracterizado na figura da
personagem Pedro.
Palavras-chave: Amazônia, narrador, Pedro, caboclo, floresta, ribeirinho.
ABSTRACT: The literature is an art through the ages described in their letters sunrise and
disappear from different nations. Sought to relate the diverse experiences between man and his
environment, demonstrating a relationship of mutual dependence between them, where as the
other one. Thus, this article seeks to outline the story "Voluntário" in Inglês de Sousa, some
interpretations that depict the representation of identity in the Amazon region of formation of
man, especially the caboclo, characterized here in the figure of the character Pedro.
Keywords: Amazon, narrator, Pedro, Indian, forest, river.
INTRODUÇÃO
O mundo amazônico é um locus em constante mutação. Inerente a esse mundo real e
também imaginário temos diversas situações que enfocam uma realidade bastante peculiar,
que ora oscila entre o tradicional, ora se faz presente numa inserção ao mundo moderno.
Retratar a realidade do homem amazônida é um trabalho que vem sendo proposto nos mais
diversos ramos de estudo. Revelar como esse homem se apresenta, suas características, seus
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Discentes do Curso de Especialização em Letras: Língua e Literatura Vernácula pela Universidade Federal do
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dons, seus pensamentos e sentimentos é uma tarefa destinada àqueles que observam essa
realidade local através de uma apurada ótica, ótica essa que analisa minuciosamente a relação
do homem com seu meio, evidenciando nesta perspectiva a formação do indivíduo quanto a
busca por sua identidade, pela representação de sua realidade.
Assim, o presente artigo busca enfocar no conto “Voluntário”, da obra Contos
Amazônicos, de Inglês de Sousa, as perspectivas literárias que desencadeiam na identidade
amazônica das personagens e como estes são representados. Atentaremos aqui para a
análise da personagem Pedro, figura central da obra. Importante salientar o modo de vida
rústico descrito na trama, evidenciando dessa maneira uma realidade puramente local, típica e
que serve como espelho para a compreensão deste “mundo” que parece estar à parte do
território nacional, um mundo que flutua na imensidão de seu caráter social e imaginário. Para
realizar o intuito de concretizar tais explanações, valemo-nos neste artigo dos conceitos
perpetrados por estudiosos como João de Jesus Paes Loureiro, Deborah de Magalhães Lima,
Tony Leão, entre outros. Sem jamais deixar a margem o próprio texto literário, no caso, o conto
como forma melhor de compreensão desta identidade.
1. NARRATIVA/DRAMA
Todos sabem da relação Literatura e História. E o reflexo disso são as obras que se
apresentam recheadas de críticas sociais que deixam transparecer a insatisfação do autor para
com a realidade em que vive. É comum, portanto, que personagens acabem se apresentando
de forma a caracterizar essa insatisfação.
Nesta obra, especificamente, verifica-se que tudo gira em torno da ironia. É com o título,
que Inglês de Sousa inicia sua crítica em torno das ações militares que aconteciam no país e
como essa prática se refletia na situação da população brasileira, haja vista que a mesma não
possui poder de escolha, sendo totalmente submissa as ordens provenientes da corte instalada
no Rio de Janeiro. Um exemplo disso, observamos no conto “Voluntário”, um texto que reflete a
crueldade com que eram recrutados os homens que participariam da guerra do Paraguai.
No conto “Voluntário”, Inglês de Sousa narra à história de Pedro e sua mãe, a velha
tapuia Rosa que viviam numa vila as margens do rio, próxima a cidade de Alenquer, no interior
do Pará. Os dois, filho e mãe, vivem sossegadamente com um sustento mínimo até que Pedro
é recrutado a força pelo Capitão Fabrício para servir na guerra. A partir de então, o conto
ganha uma conotação histórica, relatando este fato marcante na historiografia nacional. A partir
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disso, sua mãe, Rosa, segue numa tentativa de resgatar seu filho e encontra em Alenquer um
antigo conhecido, advogado, que em dias passados já dormira em sua casa. Expõe para ele a
situação ocorrida, recebendo sua ajuda com o intento de soltar seu filho. O advogado, que fica
subentendido para alguns estudiosos ser o próprio Inglês de Sousa, procura na cidade contatar
as autoridades locais para libertar Pedro, porém não consegue, já que o juiz que analisava o
caso foi subordinado a enviar o jovem tapuio para o “Paço da Pátria”, isto é, para combater na
guerra.
Ao longo do texto, as personagens seguem uma única linha de comportamento, sendo
dessa forma consideradas personagens planas, pois cada persona permanece agindo segundo
uma forma de conduta. Existem, porém, algumas mudanças no que diz respeito às atitudes das
personagens. Pedro, por exemplo, quando assediado pelo Capitão Fabrício para servir como
voluntário na guerra transforma-se numa fera que luta por sua sobrevivência:
Foi uma cena terrível que teve lugar então. A velha Rosa, desgrenhada com os vestidos rotos,
cobertos de sangue, soltava bramidos de fera parida. Pedro estorcia-se em convulsões violentas,
e os soldados não conseguiam arredá-lo da mãe. Fabrício ordenando que levassem o preso,
lançara ambas as mãos aos cabelos da velha e puxando por eles, procurava conseguir que
largasse as roupas do filho. Os guardas impacientes e coléricos desembainharam a baioneta e
começaram a espancar alternadamente a mãe e o filho, animados pela voz e pelo exemplo do
sargento, ainda pálido pelo susto que sofrera. (SOUSA, 2005, p. 30)
Estória narrada predominantemente em terceira pessoa, descrita num tempo cronológico
pelo advogado contratado por Rosa para defender o filho. É um narrador onisciente e
onipresente. O narrador do conto, a princípio narra em terceira pessoa, como no seguinte
excerto: “Pedro era em 1865 um rapagão de dezenove anos, desempenado e forte. Tinha os
olhos pequenos, tais quais os do pai, com a diferença de que eram vivos, e de uma negrura de
pasmar” (SOUSA, 2005, 24). Porém ocorre uma mudança na narrativa, a história é contada por
um narrador que é testemunha dos fatos ocorridos com Pedro e sua mãe Rosa. Assim,
podemos entender o narrador homodiegético, ou, seja, em 1ª pessoa, mas que não é a
personagem principal da trama, pois o narrador surge como o advogado que iria interceder por
Pedro e ele afirma que: “Estava eu a esse tempo em Santarém, preparando uma viagem a
Itaituba, a serviço da minha advocacia” (SOUSA, 2005, p. 32). A narrativa segue apresentando
uma linguagem coloquial e regional, típica do povo amazônico evidenciando dessa forma um
dos elementos que contribuem na construção de uma identidade amazônica no texto:
Apesar da pobreza rústica da casa, com as suas portas de japá e as paredes de sopapo, com o
chão de terra batida, cavada pela ação do tempo, tinha a tapuia em alguma conta o asseio. Trazia
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o terreiro bem varrido e o porto livre das caravanas que a corrente do rio vinha ali depositando.
(SOUSA, 2005, p. 23)
A ambientação da vida do homem Amazônico, retratando o cotidiano real e mágico de
cada tapuio é relatado na trama, como podemos observar no trecho abaixo transcrito:
Em que pensará o pobre tapuio? No encanto misterioso da mãe-d’água, cuja sedutora voz lhe
parece estar ouvindo no murmúrio da corrente? No curupira que vagabundeia nas matas, fatal e
esquivo, com o olhar ardente, cheio de promessas e ameaças? No diabólico saci-pererê, cujo
assobio sardônico dá ao corpo o calafrio das sezões? Em que pensa? Na vida? É talvez um
sonho, talvez nada. É uma contemplação pura. (SOUSA, 2005, p. 26)
1.1 A DOMINAÇÃO COMO FORMA DE EXCLUSÃO DA IDENTIDADE
“Voluntário” é uma grande ironia, pois como podemos verificar no trecho transcrito abaixo,
o recrutamento era dado de forma mais violenta e desumana possível. Sobre essa perspectiva,
Inglês de Sousa (2005), relata este fato através da seguinte situação:
O rapaz soltou um grito surdo, avançou contra Fabrício, arrancou-lhe a espingarda das mãos e
brandiu-a sobre a cabeça do capitão, como se fora uma bengala. Quando ia descarregar o golpe
sentiu-se agarrado. Era o sargento Moura e dois soldados, que saindo de um matagal próximo,
moviam-se aproximando sem serem vistos. Ao ruído da luta, acudiu à velha Rosa, que, soltando
brados lamentosos, tentou arrancar o filho aos soldados, mas o capitão Fabrício segurou-a por um
braço e atirou-a de encontro a um esteio da casa. (p. 30)
Na obra temos a relação entre o dominador e o dominado, representados por “capitão
Fabrício, nomeado recrutador em todo o termo de Alenquer, recebera ordem terminante do
presidente da província para mandar pelo primeiro vapor um contingente de voluntários,
custasse o que custasse” (SOUSA, 2005, p. 28); e pelo jovem Pedro, este filho único da velha
tapuia Rosa, que não poderia ser recrutado para a guerra do Paraguai.
Nessa ocasião, o narrador, foi procurado por Rosa, que lhe havia dado guarida em
algumas passagens pelo igarapé de Alenquer. Foi ela quem lhe contou à história que ele
narrara até aquele momento do conto. Ante a astúcia das forças “legalistas”, o que fez o
advogado para soltar Pedro foi em vão, pois ele fora embarcado antes dos demais
“voluntários”, o que fez o advogado pensar que o jovem estava livre de sua “obrigação” com a
Pátria.
Ao procurar velha Rosa para dar a boa notícia, esta replicou afirmando que aquilo não
era verdade, expondo seu caráter supersticioso, verificado na seguinte fala do narrador: “Na
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sua opinião, eu estava enfeitiçado. Pedro não estava no quartel, e, portanto, seguira naquele
mesmo vapor para capital” (SOUSA, 2005, p. 35).
Em conversa com o juiz, o advogado constatou que Pedro realmente estava entre os
embarcados, o que gerou seus protestos:
A indignação fez-me ultrapassar os limites da conveniência”. Perguntei irado, ao juiz como se
deixara ele assim burlar pela polícia, expondo a dignidade do seu cargo ao menosprezo de um
funcionário subalterno. Mas ele, sorrindo misteriosamente, bateu-me no ombro e disse em tom
paternal:
– Colega, você ainda é muito moço. Manda quem pode. Não queira ser palmatória do mundo.
(SOUSA, 2005, p. 35)
A última frase do juiz funciona como uma denúncia de um sistema corrupto, que não
leva em consideração os direitos alheios, mas sim as conveniências, tanto que a resposta do
magistrado é reveladora.
O destino de Rosa foi perambular pelas ruas de Santarém, carregando os estigmas da
exclusão, denotado nos qualificativos a ela atribuído: “pobre tapuia doida”. Os três termos
expõem sua condição de desvalida, de mestiça e de sem voz, pois a fala do louco é
desconsiderada, como se depreende de considerações de Michel Foucault (1978), n’A História
da Loucura.
A exclusão é demarcada mesmo no discurso daquele que, aparentemente, questiona o
sistema excludente, o narrador, pois todo o conto ele faz com que os posicionamentos de
Pedro e de sua mãe sejam feitos por meio do discurso indireto, portanto vetando-lhes a
palavra.
A ausência do poder da palavra pode ser depreendida também de algumas
aproximações feitas, como no momento em que Pedro foi abordado pelos homens do capitão e
sua mãe interferiu: “A velha Rosa, desgrenhada, com os vestidos rotos, coberta de sangue,
bramidos de fera parida” ou fala do capanga Manoel de Andrade, ao mandar prenderem Pedro:
“- Amarra porco, rapaziada!”. Ao serem vistos como animais perdem o aspecto humano,
demarcado principalmente pelo uso afetivo da palavra.
A única expressão direta de Rosa ocorre ao final da narrativa: “Meu anel de diamantes/
caiu n’água e foi ao fundo;/ os peixinhos me disseram:/ viva Dom Pedro Segundo!”. Porém,
essa fala é desconsiderada, devido à loucura da mulher e ao fato de trata-se de uma “quadrilha
popular”, portanto de cunho coletivo. O caráter pessoal da fala está subjacente ao texto e
advém justamente da ironia que inicia o conto, o seu título. A trova é uma crítica ao Segundo
Império e propõe um pequeno jogo alegórico em que os elementos da composição popular
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podem representar elementos do conto: anel de diamantes = Pedro; caiu n’água e foi ao fundo
= sucumbir na guerra; os peixinhos = opinião pública; e Dom Pedro segundo = sistema vigente.
Como se observa, a narrativa de Inglês de Sousa se afigura como um documento de
crítica social, e é por conta desse aspecto, dentre outros, que sua obra continua atual, podendo
funcionar como uma fonte de leitura da cultura e do homem da Amazônia e do Brasil.
2. O RETRATO DO LOCAL COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE
Quando se trata a respeito de uma identidade, tem por finalidade primordial buscar uma
revelação de aspectos interiores e exteriores de si ou de outrem. Uma revelação que tem por
base um caráter empírico, ou seja, é necessário caracterizar os elementos que formam todo
um ambiente ou um ser. Para tal, é de suma importância a inserção do indivíduo neste
ambiente identitário, onde ele se vê como parte não somente extrínseca, mas também
intrinsecamente num espaço que interage com ele, onde ele (indivíduo) o forma e
automaticamente também é formado por ele (espaço/local).
A identidade cultural é um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos
historicamente compartilhados que estabelece a comunhão de determinados valores entre os
membros de uma sociedade. Sendo um conceito de trânsito intenso e tamanha complexidade,
podemos compreender a constituição de uma identidade em manifestações que podem
envolver um amplo número de situações que vão desde a fala até a participação em certos
eventos.
Durante muito tempo, a ideia de uma identidade cultural não era devidamente
problematizada no campo das ciências humanas. Com o desenvolvimento das sociedades
modernas, muitos teóricos tiveram grande preocupação em apontar o enorme “perigo” que o
avanço das transformações tecnológicas, econômicas e políticas poderiam oferecer a
determinados grupos sociais. Nesse âmbito, principalmente os folcloristas, defendiam a
preservação de certas práticas e tradições.
Partindo dessas novas noções de identidade, antigos temas relacionados à cultura que
aparentavam completo esgotamento ganharam um novo fôlego interpretativo. As identidades
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passaram a ser trabalhadas com definições menos rígidas. Diversos estudos vão contra a ideia
de que uma população deve abraçar a sua cultura e garantir todas as formas possíveis de
cristalizá-la. Dessa forma, presenciamos a abertura de novas possibilidades de entender o
comportamento do homem com seu mundo. Assim, verificamos no conto “Voluntário”, de Inglês
de Sousa, tais aspectos que tendem a ir em busca de uma identidade amazônica, através de
descrições minuciosas dos caracteres que formam o povo amazônida, seu modo de vida e o
seu ambiente. Salientaremos aqui que a IDENTIDADE não é uma máxima dentro da obra de
Inglês de Sousa, mas procuramos levantar uma questão que pode se apresentar em um ou
outro texto do autor paraense, sendo assim, possível de discussão.
É notório como o narrador descreve o ambiente amazônida, e em especial a população
ribeirinha. Ao longo de certas passagens da narrativa, o narrador relata o ambiente ribeirinho
como um locus amoenus, um lugar de calma, de paz e onde todos se congratulam através de
uma perspectiva muito ímpar. Na comunidade ribeirinha não existe egoísmo, individualidade,
posto que o tudo pertence a todos, demonstrando uma divisão igualitária das “coisas da gente
tapuia”:
Quanto à generosidade, basta dizer que jamais lhe sucedia arpoar um pirarucu sem
presentear com a ventrecha² os vizinhos pobres, e se um belo dia lhe caía sorte de matar
um peixe-boi no lago, havia festa em casa. (SOUSA, 2005, p. 24)
Esta passagem confirma um traço peculiar referente à personagem central da trama,
Pedro, que “era o mais destro pescador do igarapé de Alenquer. Nenhum conhecia melhor do
que ele as manhas do pirarucu e da tartaruga” é tratado como um tapuio autêntico que nasceu
para lidar com as coisas da floresta, afeiçoado a pesca, ao trato com as coisas da natureza
exuberante que o cerca, além de ser muito bem quisto por seu povo. Assim, a identidade
presente no texto está fortemente ligada à figura de Pedro, que como mencionado, mantém
uma adaptação concreta ao espaço em que vive, um espaço verdadeiro, onde o protagonista
mantém uma relação de familiarização, um espaço que além de ser de todos, também é seu,
fato este que evidencia uma relação umbilical da personagem e seu ambiente. Quando
notamos tais aspectos, em que o indivíduo é basicamente formado por um lugar no qual está
inserido, torna-se claro a presença de uma relação identitária do ambiente. Reforçamos o valor
da identidade segundo a afirmativa de CANCLINI (2000):
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Ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um país, uma cidade ou
um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos que
habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável. (p. 190)
O grau de identidade não se apresenta somente através de uma ótica da relação entre
personagem e espaço, mas também através de uma cultura local que é seguida a risca por
todos os seres que habitam a região, que tratam e seguem suas vidas através de normas
simples e naturais. O caboclo amazônida retratado no conto é um tipo humano que vê a vida
passar sem pressa nenhuma. Exala em suas atitudes uma tranquilidade latente, onde fuma seu
tabaco, come seu peixe, demonstrando assim um aspecto de seu cotidiano:
Quando caía a tarde, depois de ter comido a sua lasca de pirarucu assado ou a gorda posta do
fresco tambaqui, com pirão de farinha d’água, molho de sal, pimenta e limão, ia sentar-se à soleira
da porta, de onde contemplava o magnífico espetáculo do pôr-do-sol entre os aningais da margem
do rio e ouvia o canto da cigarra, chorando saudades da efêmera existência, que a tananá oculta,
em doce estribilho, consolava. (SOUSA, 2005, p. 25)
Observa-se então a rotina do caboclo que reside às margens dos grandes rios da
Amazônia, conectado com o mundo do qual extrai o seu sustento e para o qual pode ao fim da
tarde contemplar. Tal contemplação ocorre como uma junção do magnífico com o grandioso,
revelando desta forma o caráter poético da enormidade do ambiente, e quando este aspecto se
revela, tende a acarretar numa diminuição do próprio caboclo que se vê minúsculo diante de
um ambiente que para ele é considerado seu próprio mundo, ou melhor, este ambiente é o
mundo, no sentido que tudo possui, que gera a vida e que a vida sustenta. Paes Loureiro, em
Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, afirma que:
Percebe-se nas relações estetizantes com o real da Amazônia, que há um maravilhamento do
homem, o que é próprio de quem está diante de algo que é imenso e diante do qual a pequenez
do homem se evidencia. Pequenez que é superada pelo homem natural através de um imaginário
que a transforma e permite uma articulação com a natureza, dentro de uma relação onde estão
presentes as categorias perto-longe, convivência-estranhamento. Penetrar na floresta, navegar
nos intermináveis e incontáveis rios (aproximadamente 14 mil cursos d’água) provoca a sensação
de estar adiante ‘do mundo’ e não a de estar diante de um mundo delimitado; a de estar diante do
próprio universo. (1995, p. 61)
O caboclo amazônida é retratado na narrativa como um ser de virilidade, capaz de
adentrar na floresta e conhecer todos os seus mínimos detalhes, mantendo uma afinidade com
o ambiente, o que é notório no povo da região, em especial o povo ribeirinho. Assim o narrador
destaca os caracteres físicos de Pedro, afirmando ser ele um caboclo “legítimo”. A partir desta
afirmativa, admitimos uma característica marcante na Literatura Amazônica que seria formar
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uma “persona” local, isto é, criar um indivíduo que congratule de aspectos muito peculiarmente
naturais, aspectos estes que são muito melhor delineados quando o indivíduo referido vive em
contato direto com seu locus, nascendo, portanto, a figura do caboclo como elemento central
desta Literatura, já que o caboclo é apresentado como objeto de reflexão do homem da
Amazônia, segundo afirma COSTA (2010) a respeito do caboclo como elemento preponderante
da Literatura Amazônica:
A literatura ao buscar como objeto de reflexão o homem da Amazônia acabaria mais cedo ou mais
tarde elegendo, ou melhor dizendo, construindo seu personagem principal. E no caso paraense,
para ficarmos apenas no estado do Pará, esse personagem foi sem dúvida nenhuma o “caboclo”.
(p. 65)
O caboclo amazônida é retratado então numa perspectiva reflexiva sob a condição do
homem da Amazônia, que procura caracterizar um indivíduo que se expõe em todos os seus
aspectos, desde os mais comuns, até os mais complexos. MAGALHÃES LIMA (1999) em seu
artigo A Construção Histórica do Termo Caboclo – Sobre estruturas e representações sociais
no meio rural amazônico, aborda de maneira objetiva as múltiplas denominações atribuídas ao
vocábulo caboclo, teorizando atos e hábitos peculiares do homem amazônida que vive em
constante fluxo relacional com o ambiente em que está inserido. Numa destas teorias, ela nos
informa que:
O arquétipo do caboclo também é composto de traços culturais que distinguem seu modo de vida
de uma existência branca e urbana. As características de uma arquitetura distinta, os meios de
transporte que usa seus instrumentos de trabalho, seu conhecimento e modo de manejar os
recursos da floresta, seus hábitos alimentares, sua religiosidade, mitologia, sistema de parentesco
e diversos maneirismos sociais expressam a existência de uma cultura cabocla que é básica para
o conceito desse típico amazônida. (p. 13)
Assim podemos perceber uma teorização sobre o modo de vida caboclo, isto é, uma
descrição puramente objetiva dessa realidade. Numa espécie de fusão, entre o objetivo e o
subjetivo, carregado de uma conotação histórica, Inglês de Sousa aborda esta concepção de
criação de uma identidade amazônica retratando em seu texto um típico caboclo do Amazonas,
um indivíduo que só vai existir nesse e para esse hábitat.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, procuramos relatar a evidência de marcas de identidade que ora se
apresentam em algumas passagens do conto “Voluntário”, escrito pelo paraense Inglês de
Sousa. Com a descrição dos hábitos e costumes do povo amazônida, o autor procura mostrar o
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cotidiano simples de um povo que oscila entre o tradicional e o moderno, num contraponto
entre o rural e o urbano, característica tão fortemente enraizada na cultura popular do Norte.
Tendo como enfoque principal a situação do caboclo como uma classe social, que vive em
constante relação com o ambiente e que deste tira o seu sustento, o autor aborda questões
particulares daquela realidade tão tipicamente comum, mas recheada de um fator imaginário
estetizador, como afirma Paes Loureiro, em seu Cultura Amazônica: uma poética do
imaginário. Este mesmo fator imaginário estetizador tende a construir uma sequência de
aspectos que são altamente concernentes ao ambiente, formando neste, uma auratização,
construindo, assim, uma noção de identidade.
REFERÊNCIAS
COSTA, Tony Leão da. Música, Literatura e identidade amazônica no século XX: o caso do
carimbo no Pará. Uberlândia: ArtCultura, v. 12, n. 20, p. 61-81, jan. – jun., 2010.
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Editora Perspectiva,
2010.
GARCIA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: para Entrar e Sair da Modernidade: tradução de
Heloíza Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 3ª ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2000.
LIMA, Deborah de Magalhães. A Construção Histórica do termo Caboclo – sobre Estruturas e
Representações Sociais no Meio Rural Amazônico. NAEA (Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos). Belém, Universidade Federal do Pará – UFPA, vol. 2, nº 2, dezembro de 1999.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário. Belém:
Cejup, 1995.
SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
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