REVISTA REDAÇÃO
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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação 14 DATA: 17/04/2015 ————————————————————————————————————————————— 1 O que experiências em países tolerantes com o uso de drogas têm a nos mostrar? (LÚCIA SESTOKAS e NATHÁLIA OLIVEIRA) Confira o levantamento, análise e infográfico feito em 36 países que adotaram políticas de drogas flexíveis, ou seja, políticas que despenalizaram, descriminalizaram ou legalizaram o uso, o cultivo, a produção e/ou o comércio de alguma substância psicoativa considerada ilícita (maconha, cocaína, lisérgicos etc) ————————————————————————————————————————————— 2 ————————————————————————————————————————————— 3 ————————————————————————————————————————————— 4 ————————————————————————————————————————————— 5 DIREITOS relacionados a drogas estão entre os maiores motivos de encarceramento no mundo. Existem cada vez mais provas de que a declarada guerra às drogas é uma política custosa [1], que falhou em estabelecer um “mundo livre das drogas”[2], e que serviu e serve para militarizar territórios e justificar iniciativas de caráter intervencionistas e higienistas. Mas como seria um modelo de política de drogas que não endossa os resultados conhecidos de encarceramento e genocídio de populações periféricas? No âmbito do projeto Gênero e Drogas, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, realizamos um estudo que propõe uma análise dos países que flexibilizaram suas política de drogas nas Américas e na Europa. Identificados os 36 países que apresentaram flexibilização, fizemos um segundo levantamento – agora sobre a evolução do encarceramento em cada um deles, a partir do ano de mudança da legislação até meados de 2014. Foram encontrados 22 países que aumentaram o número de pessoas encarceradas, com um destaque para o aumento do encarceramento de mulheres em vários desses países. Análises locais: particularidades das Américas e Europa No caso da Europa, dos 21 países que flexibilizaram suas políticas de drogas, 10 apresentaram aumento da população carcerária geral desde a adoção da nova legislação até os anos 2010. É, contudo, essencial ponderar que em alguns desses 10 países houve diminuição do encarceramento após a flexibilização, mas se observou aumento expressivo do número de pessoas presas depois da crise econômica de 2008. Esse é o caso de Portugal, em que o número de pessoas presas diminuiu após a mudança da legislação sobre drogas. Essa diminuição foi mantida por quase uma década: em 2000 eram 12.944 pessoas encarceradas e, em 2010, 11.613. De forma geral, os países europeus flexibilizaram suas políticas entre as décadas de 1970 e 1990, antes, portanto, do continente americano. Outra particularidade da Europa é o número muito inferior de países com superpopulação carcerária, bem como de pessoas em prisão provisória, quando comparada com a América Latina. Já nas Américas, dos 15 países que flexibilizaram suas políticas de drogas, 13 apresentaram aumento na população carcerária. Na maioria dos países da América Latina, se nota aumento sistemático do encarceramento, principalmente após a mudança da legislação de drogas, com recorrência de superpopulação carcerária e elevado número de pessoas em prisão provisória. Esses dados demonstram uma grande fragilidade no direito básico de acesso à Justiça em quase todos os países estudados, o que pode ter relação direta com a idade das democracias latino-americanas, uma vez que em quase todos esses países ditaduras avançaram pela segunda metade do século XX. Além disso, na grande maioria dos países americanos, houve aumento do percentual de mulheres presas por delitos relacionados a drogas. Para analisar esse dado, é necessário levar em consideração o perfil da mulher em situação de cárcere, que, no caso da América Latina, é predominantemente de mães, provedoras do lar, rés primárias e processadas por crimes sem violência[4] – um perfil que o ITTC identifica desde a sua primeira investigação no cárcere, em 1997. Considerações a partir desse levantamento A partir dos dados sistematizados nesse estudo, foi possível verificar que a adoção de uma política de drogas tolerante somente com parte dessas condutas não necessariamente tem efeitos de desencarceramento. As 36 legislações estudadas adotam uma postura de tolerância em relação ao uso de substâncias, porém, existe pouca ou nenhuma regulamentação sobre sua produção, distribuição e comércio, havendo apenas exceções pontuais como a Holanda, o Uruguai e o Colorado, nos EUA. O resultado disso é a criminalização de grupos economicamente mais vulneráveis e que historicamente se ocupam de atividades do mercado informal, como o varejo de drogas. A criminalização do comércio de drogas se mostra uma escolha política de criminalização do trabalho de uma parte da população. No Brasil, a política de drogas implementada em 2006 adotou a despenalização da pessoa usuária e, simultaneamente, o endurecimento das penas para tráfico de drogas e para “associação” ao “crime organizado”, além de criar novas condutas tipificadas como crime. Na prática, a despenalização da pessoa usuária significa, ainda que ela não vá para a prisão, que ela continua na malha da justiça criminal. A pessoa pode ser enquadrada e processada por estar fazendo uso de substância ilícita. De maneira geral, a pessoa enquadrada pela polícia, que vai enfrentar julgamento e cumprir uma pena é a pessoa usuária pobre, negra e periférica. Ainda, o endurecimento de penas para “tráfico” resultou em um aumento de 50% da população carcerária total entre 2006 e 2014, com um aumento de 345% das pessoas presas por tráfico de drogas, entre 2005 e 2013. No caso das mulheres o percentual fica ainda mais gritante: o aumento do encarceramento feminino foi de 84,5% e, em 2014, cerca de 60,3% das mulheres presas respondiam por delitos relacionados a drogas. A experiência do ITTC mostra que as pessoas que são presas por tráfico entram nesse mercado como um trabalho, para sanar um problema econômico, pontual ou crônico, pra geração ou complementação de renda. Esse diagnóstico é ainda mais marcante no caso das mulheres: a mulher pobre e negra tem ainda mais dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal, assim como mais dificuldade no acesso à estrutura pública. O emprego no comércio de substâncias permite provisão para a família enquanto mantém uma flexibilidade que possibilita que ela cuide da casa e dos filhos, ainda responsabilidades atribuídas predominantemente às mulheres. ————————————————————————————————————————————— 6 Hoje, o Supremo Tribunal Federal está em processo de julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, colocando em pauta a possibilidade de descriminalização do uso caso seja declarado inconstitucional o artigo 28 da Lei 11.343/06. Ainda que seja positiva a perspectiva de uma descriminalização do uso, é possível dizer que essa medida pode não ter efeitos impactantes de desencarceramento, principalmente se direcionada somente para a maconha e se adotada com base em critérios objetivos de quantidade. Descriminalizar somente à maconha não aborda a questão da estigmatização de pessoas usuárias de outras drogas. A manutenção da criminalização do uso de substâncias como o crack, muitas vezes associados a populações mais pobres, pode significar uma continuidade das dificuldades hoje enfrentadas por essas pessoas no acesso a direitos básicos. Ainda, adotar critérios objetivos de quantidade para estabelecer essa diferenciação pode significar a criminalização automática de pessoas, reforçando práticas de exclusão social de quem trabalha na ponta do comércio de drogas [5]. Às vesperas do início Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS), não podemos esperar encontrar um modelo de política de drogas único, sendo essencial atentar às especificidades locais, que não são levadas em consideração quando importamos um modelo pronto. Pensar política de drogas é também falar de Política de Saúde, assistência social, segurança pública, judiciário, trabalho, raça, gênero, distribuição de renda. As políticas de drogas ainda são pensadas no tripé segurança pública, saúde e justiça criminal, de maneira desarticulada com as realidades locais. Se entendemos que o varejo de drogas é também uma maneira de geração de renda, o investimento das políticas públicas deveria focar em políticas sociais de geração de renda e erradicação de desigualdades. Dedicar, por outro lado, o orçamento em mecanismos de cerceamento de direitos é perpetuar desigualdades sociais. Hoje, o investimento maciço do Estado em polícia, armas e cadeia serve primordialmente para perpetuar e aumentar as atrocidades cometidas em nome da guerra ás drogas à parcela mais vulnerável da população. Ainda que não haja um modelo de política de drogas pronto que seja possível seguir de olhos fechados, já é possível notar que perpetuar uma política construída com base em dicotomizações entre pessoas usuárias e “traficantes” resulta na perda de direitos para algum grupo, notadamente para pessoas que trabalham com o varejo de drogas. É necessário questionar para quem e para quê serve a política de drogas e pensar em propostas que vão além da manutenção do panorama que a gente já tem hoje: uma guerra às drogas que resulta em políticas militarizantes, higienistas, genocidas e encarceradoras de populações marginalizadas. A guerra às drogas nada mais é do que mais uma guerra às e aos pobres. Para mais informações, acessar The alternative World Drug eport: https://www.unodc.org/documents/ungass2016//Contributions/Civil/Count-the-Costs-Initiative/AWDR-exec-summary.pdf [2] Para mais informações, acessar Ending the Drug Wars:http://www.lse.ac.uk/IDEAS/publications/reports/pdf/LSE-IDEAS-DRUGS-REPORTFINAL-WEB.pdf [3] Para entender a diferenciação das políticas, ver o Glossário de políticas de drogas:http://ittc.org.br/glossario-tipos-de-politicas-de-drogas/ [4] Para mais informações, ver também Corina Giacomello:https://drogasenmovimiento.files.wordpress.com/2014/01/13-11-18-women-inprison-for-drug-crimes-in-latin-america-an-invisible-population.pdf E o relatório Women, Drug Policies and Incarceration http://www.wola.org/sites/default/files/WOLA%20WOMEN%20FINAL%20ver%2025%2002%201016.pdf [5] Para mais informações, acessar Guerra às drogas: heranças e novos paradigmas : http://jota.uol.com.br/guerra-drogas-herancas-e-novos-paradigmas [1] LÚCIA SESTOKAS é Internacionalista e desenvolve o Projeto Gênero e Drogas no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. NATHÁLIA OLIVEIRA é Cientista social, desenvolve o Projeto Gênero e Drogas no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e integra a Iniciativa Negra por uma Nova Política Sobre Drogas. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Abril de 2016. ————————————————————————————————————————————— 7 Células-tronco não curam tudo (LUCAS VASQUES) Especialista em Alzheimer, o neurocientista brasileiro, radicado no Canadá, Marco Antonio Prado atua em pesquisas para descobrir por que as mudanças moleculares e celulares em doenças neurodegenerativas provocam falhas cognitivas BRASILEIRO, radicado no Canadá há anos, o neurocientista, mestre e doutor em Bioquímica e Imunologia Marco Antonio Prado se dedica a pesquisas científicas para compreender como e por que as mudanças moleculares e celulares em doenças neurodegenerativas causam falhas cognitivas, especialmente em doenças como o Alzheimer. Após concluir seu PhD e pósdoutorado em 1994, comandou um laboratório de pesquisas no Brasil até 2008, quando foi recrutado como professor titular da Universidade de Western Ontario e como cientista no Instituto de Pesquisa Robarts. Prado foi reconhecido como parceiro do Guggenheim pela John Simon Guggenheim Memorial Foundation, em 2004, e recebeu o Prêmio Acadêmico Faculdade da Universidade de Western Ontario (2013-2014). Em colaboração com sua companheira, Vânia Ferreira Prado, ele tem gerado novos camundongos geneticamente modificados para formular déficits neuroquímicos na demência, com foco particular para a doença de Alzheimer. Esses ratos têm permitido novas descobertas sobre mecanismos de falha cognitiva, que utilizam tecnologia de ponta para avaliar a percepção deles. Uma de suas principais atividades é desenvolver novos tratamentos para a doença de Alzheimer. Entretanto, outro interesse do laboratório de Prado é a extensão da doença de Prion e sua interface com Alzheimer e acidente vascular cerebral. Ele recebeu apoio financeiro contínuo por 20 anos, a partir do NI H, CI HR, Associação de Alzheimer, Brain Canada, Instituto do Cérebro Weston, CN Pq e outras agências em três países (Brasil, Estados Unidos e Canadá), e preparou mais de 30 estudantes de graduação e pós-doutorado, além de ter publicado mais de 130 artigos em revistas científicas de primeira linha, como Neuron, PLoS Biology, PNAS, J. Neuroscience e FASEB J. O neurocientista conta à Psique quais são as principais novidades no que se refere à doença de Alzheimer. O que se sabe até hoje sobre os mecanismos biológicos envolvidos na doença de Alzheimer (DA)? Prado: Existem inúmeros mecanismos que vêm sendo estudados nos últimos anos. Por exemplo, uma proteína conhecida como APP, a qual é normalmente metabolizada no nosso organismo em fragmentos menores. Essa proteína pode gerar um peptídeo (algo como um pedaço da proteína original), que se acumula na doença de Alzheimer. Esse elemento, conhecido como peptídeo amiloide, aumenta bastante no cérebro de pessoas que apresentam DA . Isso, provavelmente, ocorre devido a alterações na produção ou degradação do peptídeo. O amiloide é tóxico para neurônios e se organiza em agregados. Existem evidências de que essa toxicidade causa várias outras alterações bioquímicas, que diminuem a capacidade dos neurônios de se comunicarem uns com os outros. Um grupo de neurônios conhecidos como colinérgicos é afetado e eles param de trabalhar normalmente. Isso parece aumentar ainda mais a formação desses peptídeos amiloides e aumenta a toxicidade desses peptídeos. Outros eventos ocorrem, como alterações em uma proteína conhecida como tau, que regula a capacidade dos neurônios de manterem suas funções. Tudo isso culmina em morte de neurônios específ icos e disfunção cognitiva. ————————————————————————————————————————————— 8 Quais as principais alterações bioquímicas conhecidas relacionadas ao Alzheimer? Prado: Os peptídeos amiloides agregam- se para formar as placas, enquanto que a tau também se agrega e forma emaranhados neurofibrilares. Essas são alterações patológicas. De maneira geral, o enovelamento de proteínas e a capacidade dos neurônios de lidar com o acúmulo de proteínas agregadas estão comprometidos. Existem evidências epidemiológicas e biológicas de um relacionamento entre diabetes e doença de Alzheimer (DA). Há várias pesquisas testando a possibilidade de que algumas drogas usadas em diabetes possam ser usadas na DA Alguns estudos defendem que existe relação entre Alzheimer e diabetes. Quais seriam essas convergências e você acredita que os remédios usados hoje para tratar diabetes podem ser utilizados para combater o Alzheimer? Prado: Existem evidências epidemiológicas e biológicas de uma relação entre diabetes e DA . Pessoas que apresentam diabetes têm maiores chances de desenvolver DA . Há várias pesquisas testando a possibilidade de que algumas drogas usadas em diabetes possam ser usadas na DA . No entanto, os resultados dessas pesquisas ainda não foram publicados. Cientistas usam evidências para julgar se um tratamento é efetivo ou não. Acreditar ou não é irrelevante no momento, enquanto não tivermos dados pré-clínicos e clínicos bem substanciosos. Na medida em que o ser humano vive mais, a tendência é a ocorrência mais frequente de demências como o Alzheimer. Em função desse quadro, segundo seus estudos e pesquisas, o que há de mais moderno em termos de descobertas de novos mecanismos de falha celular e de memória? Prado: A incapacidade dos neurônios de se comunicarem de maneira apropriada na DA é uma área de pesquisa que começou a ser explorada recentemente. Isso parece ocorrer antes dos neurônios morrerem. A incapacidade deles de lidarem com agregados de proteínas pode ser uma das causas. Quanto à memória, começam a ser reconhecidas também importantes alterações no metabolismo de RNA (ácido ribonucleico), responsável pela produção de proteínas. O problema não é simples e, além disso, é possível que várias alterações diferentes ocorram de maneira simultânea na função de neurônios. Outro aspecto importante é a inflamação no sistema nervoso. Células que são consideradas como suporte no cérebro parecem ter uma importância maior do que imaginávamos anteriormente. Algumas dessas células regulam processos inflamatórios no cérebro, que podem também danificar os neurônios. Nossa capacidade de reconhecer alterações moleculares devido ao déficit de acetilcolina melhorou. Somos capazes de detectar alterações no genoma, no transcriptoma e no proteoma de forma muito mais detalhada e sofisticada Você, ao lado de sua mulher, a bioquímica Vânia Ferreira Prado, havia produzido um grupo de camundongos geneticamente alterados, com o objetivo de mostrar que os roedores não aproveitavam a acetilcolina, um dos mensageiros químicos responsáveis pela transmissão do comando de uma célula nervosa para outra, o que influenciava na memória. Poderia detalhar esse estudo, informar qual foi sua evolução e o que mudou em termos de abordagem para os dias de hoje? Prado: Em 2006, começamos a produzir animais com déficits parciais na atividade colinérgica em camundongos. Mais recentemente, fomos capazes de produzir déficits mais elaborados exclusivamente em regiões do cérebro que participam da DA . Além disso, agora somos capazes de estudar a memória de camundongos usando tablets, que permitem testes muito similares aos usados em humanos. Finalmente, nossa capacidade de reconhecer alterações moleculares devido ao déficit de acetilcolina melhorou muito. Somos capazes de detectar alterações no genoma, no transcriptoma e no proteoma de forma muito mais detalhada e sofisticada. Outra mudança recente é a nossa capacidade de ativar grupos celulares específicos usando optogenética ou quimogenética. Isso permite entendermos que tipos de neurônios contribuem para os déficits cognitivos na DA . ————————————————————————————————————————————— 9 Na época, você apostava que essa defasagem na liberação da acetilcolina estava associada aos efeitos do Alzheimer sobre a memória. Essa conclusão ainda vale ou os avanços nos estudos indicam outros caminhos? Prado: Embora não seja o único problema, o déficit colinérgico contribui bastante com os maiores problemas na DA . Entre as conclusões da pesquisa está, além do déficit de memória espacial, o fato de que a carência de acetilcolina no hipocampo também apresenta alterações em um processo eletrofisiológico chamado potenciação de longa duração, necessário para a formação de vários tipos de memória de longa duração. A indústria farmacêutica desenvolveu remédios para o equilíbrio de acetilcolina no organismo, o que pode ajudar no combate ao Alzheimer? Prado: Embora alguns medicamentos tenham sido desenvolvidos, eles ainda apresentam muitos efeitos A incapacidade dos neurônios de se comunicarem de forma indesejáveis. Além disso, nem todos os pacientes adequada na DA é uma área de pesquisa que passou a ser mais respondem bem a esses medicamentos. Essa é uma explorada recentemente área de pesquisa que continua atraindo interesse de indústrias farmacêuticas. O objetivo seria salvar os neurônios que secretam acetilcolina ou mimetizar seus efeitos no cérebro, sem ocasionar problemas em outras partes do organismo. Existem medicamentos no mercado, como galantamina e rivastagmina, mas os resultados não são tão significativos. A explicação estaria no fato de que no Alzheimer são afetadas as memórias visual, auditiva, de números e de reconhecimento de rostos, além da espacial, e o fato de outras formas de memória sofrerem prejuízos sugere que o nível de outros neurotransmissores também seja alterado, o que não seria corrigido pelos medicamentos que tentam aumentar a concentração de acetilcolina? Prado: É exatamente isso. Existem outras alterações que também são importantes e a acetilcolina não resolve todos os problemas. Os estudos sobre a relação de acetilcolina com a perda de memória se aplicam para qualquer tipo de demência ou especificamente para o Alzheimer? Aliás, como identificar se um idoso está com Alzheimer ou outra demência? Prado: Em várias formas de demência a acetilcolina parece estar envolvida. O diagnóstico do tipo de demência tem de ser feito por médicos neurologistas especializados na área. Eles usam uma combinação de testes clínicos e de memória. No entanto, o diagnóstico definitivo depende de avaliação patológica post mortem. Neurocientistas do Massachusetts General Hospital de Boston, nos Estados Unidos, desenvolveram uma técnica chamada Alzheimer em petri, uma espécie de Alzheimer artificial. O que acha dessa técnica e se é possível dizer que a medida permite aprofundar as pesquisas sobre a doença e pela busca por novas drogas e tratamentos? Prado: O que eles fizeram foi produzir neurônios humanos com as mesmas mutações encontradas em famílias que têm uma forma rara de Alzheimer. Esses neurônios em culturas especiais podem ajudar a entender mecanismos biológicos da doença. No entanto, não substituem análises em modelos de animais intactos. Afinal, queremos saber se melhorando aspectos bioquímicos da doença podemos melhorar os déficits de memória também. E isso não pode ser examinado em células ou tecidos. Muito se fala em fatores de prevenção ao Alzheimer. Em sua avaliação, por meio de sua vasta experiência, é possível prevenir da doença? Prado: É possível modificar hábitos no nosso dia a dia, o que pode diminuir a chance de desenvolver a DA . Por exemplo, posso dizer que boa alimentação, exercícios físicos, interações sociais e educação são os principais fatores que podem influenciar o desenvolvimento da doença. É claro que os nossos genes também têm um papel importante, e esses não há como mudar. ————————————————————————————————————————————— 10 A idade provoca inevitáveis perdas de neurônios, o que facilita o surgimento do Alzheimer. É possível impedir ou retardar essa perda, além de modificar hábitos? Prado: Além da necessidade de modif icar hábitos não muito saudáveis, a saúde cardiovascular é um importante fator para a prevenção de demência. Em sua opinião, a neurociência vislumbra uma cura em médio prazo? Estaria nas pesquisas com células-tronco a chave para a descoberta da cura do Alzheimer? Prado: "Para todo problema complexo existe uma solução simples e ela, geralmente, está errada" (H. L. Mencken). A DA é extremamente complexa. Não existem soluções simples ou pílulas mágicas. Estudar pessoas idosas e animais idosos é muito difícil. Células-tronco podem ajudar a entender mecanismos da Prado revela que algumas atitudes podem diminuir a chance de doença, ao permitirem gerar neurônios em desenvolver a DA, como boa alimentação, exercícios físicos, interações sociais e educação culturas para estudos bioquímicos. Entretanto, essas células dificilmente podem ser usadas para substituir neurônios. Elas precisariam contatar outros neurônios de forma correta. Essa ideia de que as células-tronco são uma panaceia, ou seja, que podem curar tudo, é danosa. Para isso não seria necessário substituir os neurônios defeituosos? Prado: Sim, o que seria impossível. É correto dizer que as pessoas que sofrem com fatores socioculturais, sendo mais pobres, têm estimulação cerebral menor, pois quase não leem, não vão ao cinema etc., e isso faz com que tenham uma propensão maior a desenvolver a doença? Em resumo, isso demonstra que exercitar o cérebro faz bem? Prado: Dados epidemiológicos sugerem que a educação é um dos principais fatores que modulam o aparecimento da DA . Ainda não entendemos as razões. Pessoas com mais escolaridade desenvolvem a doença mais tarde. Óbvio que esse é apenas um dos fatores, existem vários outros que contribuem com o risco de desenvolver a DA (genes, hábitos de alimentação, saúde cardiovascular, exercícios físicos, entre outros). Os neurônios em culturas especiais podem ajudar a entender mecanismos biológicos da doença, mas não substituem análises em modelos de animais. Afinal, queremos saber se melhorando aspectos bioquímicos podemos melhorar os déficits de memória Existem casos comprovados de doentes de Alzheimer assintomáticos, ou seja, idosos que tiveram seus cérebros analisados após sua morte e revelaram placas e emaranhados de proteínas que são a marca típica dos estágios avançados da doença, porém sem apresentarem seus sintomas. Como explicar esse fato? Prado: Sim. Existem pessoas que têm a patologia, mas não apresentaram sintomas cognitivos durante sua vida. Uma das possibilidades é que, além da patologia, alguma forma de neurodegeneração precisa ser associada para o desenvolvimento da doença. Outra possibilidade é que algumas pessoas tenham tipos de genes que ajudam o cérebro a lidar com essas patologias. Sabemos pouco sobre esse processo ainda. Ultimamente muitos cientistas brasileiros reclamam da falta de recursos para as pesquisas. Você conhece bem os dois lados, pois trocou a UFMG pela University of Western Ontario, devido à falta de condições estruturais. Como avalia a questão e quais as diferenças básicas que encontrou depois da sua mudança? Prado: Existem excelentes cientistas no Brasil, mas, de maneira geral, a infraestrutura e a previsão de verbas são péssimas. No Canadá, sei do meu orçamento para pesquisas para os próximos cinco anos. Tenho acesso aos últimos tipos de equipamentos. A infraestrutura para a pesquisa científica é muito mais organizada. Além disso, meu principal trabalho é ser pesquisador e treinar alunos de pós-graduação e dar aulas presenciais para a graduação. No Brasil, eu ministrava oito horas/ aula por semana, e no Canadá são 20 horas/aula por ano letivo. Na maior parte das universidades do Brasil, professores têm de lidar com a falta de infraestrutura e um ambiente onde a pesquisa não é valorizada. ————————————————————————————————————————————— 11 Por exemplo, o prédio onde eu trabalhava na UFMG, o Instituto de Ciências Biológicas, corria um risco permanente de incêndio. De fato, se o corpo de bombeiros vistoriasse o prédio na época que trabalhávamos lá, não poderia liberá-lo. A infraestrutura elétrica era péssima; novos equipamentos não podiam ser ligados. Acho que em 2007 tivemos um incêndio que assustou todos, mas os bombeiros não foram chamados. É uma irresponsabilidade enorme dos dirigentes e do governo. Não acho que melhorou muito e o problema é similar em outras universidades. Faltam dinheiro e infraestrutura, existe excesso de corporativismo e falta vontade política para melhorar a pesquisa. Não conheço nenhuma universidade séria onde dirigentes universitários são eleitos por alunos, professores e funcionários. Nas melhores universidades os dirigentes são contratados por competência. Enfim, temos ótimos pesquisadores brasileiros, eles são tão bons ou até melhores do que os canadenses ou americanos, mas fazem milagre para produzir ciência. Isso é fruto de um sistema educacional e político que não valoriza a ciência de qualidade. Células-tronco podem ajudar a entender mecanismos da doença. Entretanto, essas células dificilmente podem ser usadas para substituir neurônios. A ideia de que as célulastronco são uma panaceia, ou seja, que podem curar tudo, é danosa Você já disse que talvez pudéssemos ter descoberto a cura do Alzheimer se não precisássemos lidar com uma rotina de falta de investimentos no Brasil. Por que, então, essa descoberta ainda não ocorreu em centros nos quais não há dificuldades na obtenção de verba? Prado: Em nenhum lugar do mundo é fácil obter verbas para pesquisa. No caso da DA , os investimentos são muito aquém do necessário. Mas, certamente, se pesquisadores brasileiros tivessem uma ideia genial hoje para tratar a doença, essa ideia não seria aplicada nos próximos O neurocientista conta que, hoje, existe a possibilidade de se estudar a 30 anos por falta de infraestrutura. memória de camundongos usando tablets, que permitem testes similares aos usados em humanos Há informações de que nos Estados Unidos gastam-se US $ 200 bilhões ao ano no tratamento de pacientes com Alzheimer. Em contrapartida, gastam-se US $ 500 milhões, em média, em pesquisas que tentam desvendar as causas primárias da doença. Isso quer dizer que mesmo em grandes centros ainda se gasta mal? Prado: Sim, e gasta-se pouco. Se a sociedade acha que pesquisa é cara, é preciso ver o custo da doença. Você colocou muito bem a pergunta, pois o custo da doença é 400 vezes maior do que o da pesquisa. LUCAS VASQUES é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista PSIQUE, Abril de 2016. Golpe, democracia e barbárie (MÁRCIA TIBURI) MAIS uma vez, em defesa da democracia. A chamada “comissão especial do impeachment” seria irônica se não fosse um estranho fenômeno de cinismo no pior sentido: a maior parte dos deputados que dela participam são acusados por algum tipo de corrupção. Salvam-se poucos. Uma câmara de deputados que, na sua maioria, parece trabalhar contra a democracia em todos os seus atos vai julgar uma das poucas pessoas que não foi acusada de cometer nenhum crime. Qual o teor de um julgamento sem crime de responsabilidade? Não podemos compreendê-lo sem que nos coloquemos à questão ética que deveria fundamentar esse procedimento e todas os nossas operações políticas em todos os níveis, micro e macropolíticos. Ética, a uma altura dessas, pode parecer algo meramente retórico. Falar dela dá a sensação de anacronismo. A acusação é uma velha estratégia de quem quer se redimir por antecipação, desviar a atenção da própria culpa. Talvez por isso, no Brasil, as pessoas tenham se apegado tão facilmente à acusação e a corrupção tenha se tornado “corrupção dos outros”. Essa é a forma superficial que a questão da corrupção assume entre nós. Quando os brasileiros ————————————————————————————————————————————— 12 começarem a se ocupar com uma reflexão menos superficial sobre a corrupção de si promovida pela corrupção substancial do capitalismo na vida, nos corpos, na mentalidade e na existência como um todo, então podemos ter esperanças no fim dela. Enquanto isso, o presidente da câmara, suspeito e acusado de diversos crimes continua conduzindo o processo de impeachment como se nada estivesse acontecendo com ele mesmo. Foto Gazeta do Povo Fato é que a defesa da democracia entre nós confunde-se hoje com a defesa do mandato da presidente Dilma Rousseff que, hoje em dia, parece sofrer realmente algo da ordem de estupro político. Dilma foi objetificada para os fins inconfessáveis dos defensores do impeachment. Seria ela tão maltratada se não fosse mulher? É uma pergunta que podemos nos colocar, sobretudo as mulheres que sabem como sofrem, simbólica e fisicamente, apenas porque são mulheres. Teríamos que aprofundar um pouco a questão do fator “gênero” no caso da posição ocupada por Dilma Roussef hoje. Ser a primeira mulher a assumir a presidência da república deve causar muita raiva, muito ódio e muita inveja em muitos homens que consideram que esse cargo seria seu de direito. As mulheres conhecem a inveja masculina, sabem que a inveja masculina, como qualquer outra, é destrutiva. Mas vem com a força física e a força do poder da dominação masculina. A inveja é pior naqueles que tem o poder nas mãos. O governo Dilma não é o governo dos sonhos do povo brasileiro, muito menos das feministas. Na realidade, é um governo muito ruim. No quesito ajuste fiscal, trabalhadores saem perdendo em benefícios enquanto taxas de juros beneficiam quem tem capital, as grandes corporações. No campo dos direitos das mulheres e dos grupos LGBT, tudo o que era péssimo ficou ainda pior. A intromissão do preconceito religioso e fundamentalista ataca as poucas leis minimamente razoáveis sobre direitos reprodutivos, sem que o governo tenha investido em políticas públicas voltadas para as mulheres e a população LGBT, inclusive de esclarecimento acerca desses direitos. O Estatuto do Nascituro e a absurda “bolsa estupro” são retrocessos objetivos em nossa cultura promovida por coronéis machistas e que não tem o mínimo respeito pela cultura e pelo cotidiano, bem como pelos direitos das mulheres. Infelizmente, eles não receberam o necessário rechaço da presidenta. No que concerne aos direitos dos povos originários do Brasil, a situação é das piores. Indígenas brasileiros vivem em estado de invisibilidade quanto a direitos e, ao mesmo tempo, submetidos a todo tipo de violência. A usina de Belo Monte em terras indígenas, o chamado “recorde negativo” de demarcação de terras, no faz lembrar de momentos infelizes da história brasileira como a ditadura. Mesmo assim, nada disso justifica um golpe disfarçado na forma jurídica distorcida do impeachment. ————————————————————————————————————————————— 13 A defesa da democracia como um princípio que assegura que podemos confiar nas instituições, exige que não se cometa um crime contra a democracia. O golpe, ou o processo de conspiração e julgamento sem crime de responsabilidade, é ele mesmo o crime em cena. Um crime que se disfarça de direito e de defesa da democracia. Orquestrado pelo legislativo, o judiciário, e a mídia, os poderes que regem o Brasil cada vez mais ignorante e mistificado, o golpe é a máxima corrupção à qual parcela do povo faz coro, assinando embaixo de uma cultura corrupta que serve àqueles que desenvolvem uma relação com a sociedade ao nível do individualismo egoísta, avarento e predador. Hoje a defesa do golpe e a execração cotidiana da presidente (que vem acompanhada de todo tipo de ignorância sobre “comunistas” e outras designações políticas) tornou-se gesto que faz parte de toda uma cultura autoritária que toca o fascismo. O golpe foi introjetado por alguns cidadãos, como se tivesse nascido em seu coração. A população se torna ela mesma golpista sem entender de que modo é manobrada, sobretudo pelos meios de comunicação. O golpe, seja como Grande Golpe institucional, seja como o pequeno golpe que cada um traz dentro de si, faz parte da grande ideologia que impede que se veja o que de fato está acontecendo. Essa ideologia é a face sorridente do capitalismo que agrada até mesmo às suas vítimas. Tirada a máscara ideológica, surgirá a caveira descarnada da democracia. Retornamos ao pó da barbárie. MÁRCIA TIBURI é graduada em filosofia e artes graduação em Educação, Arte e História da Cultura colunista da Revista CULT. Publicou diversos livros (2013) e “Como Conversar com um Facista” (2015). (2012). Revista CULT, Abril de 2016. e mestre e doutora em filosofia. É professora do programa de pósda Universidade Mackenzie, da graduação em Filosofia da Unicamp e de filosofia, entre eles “Filosofia Pop” (2011), “Sociedade Fissurada” Publicou também romances: “O Manto” (2009), “Era meu esse Rosto” Protesto e repressão (ÂNGELA ALONSO) EM 21 de março, dois grupos de estudantes da PUC-SP se manifestaram. Um trouxe trio elétrico, bandeira e hino nacionais e os slogans: “Sergio Moro, estamos com você”, “O meu partido é o Brasil”. A outra turma reagiu: “Não vai ter golpe”. O conflito de ideias evoluiu para as vias de fato e a Polícia Militar entrou em campo, munida de pouca paciência, alguns cassetetes e as indefectíveis bombas de efeito moral. ————————————————————————————————————————————— 14 Protestos desse tipo viraram o dia a dia de nossas grandes cidades, contra ou a favor do governo. Até aí, nada de mais. Manifestações são o arroz com feijão das democracias. E até termômetro delas: ditaduras não suportam dissidentes. Contudo, além de manifestantes e governantes, tais atos contam com um ostensivo terceiro elemento: a polícia. Ela vem garantir a ordem e apaziguar confrontos, como os da PUC. Mas, na prática, princípios se interpretam. A margem para tanto é larga porque manifestantes trafegam no meio-fio: reconhecem as autoridades, às quais endereçam clamores, mas as deslegitimam, considerando-as ineptas para efetivar suas demandas. Quando se anda na segunda linha, sempre se pode aspirar gás pimenta. É que o Estado, como os manifestantes, tem postura ambivalente em relação a protestos. Mobilizações acontecem nas ruas, espaço público sujeito a regras que manifestantes nunca acatam in totum, por exemplo, ao burlar o perímetro que a polícia demarca como lícito para os atos. Ante a desobediência, os governos, por meio de seu braço policial, decodificam a lei, ora classificando os manifestantes como “opinião pública” legítima, ora como “vândalos” perturbadores da ordem. A rotulagem remete às estratégias clássicas de autoridades diante de protestos: tolerância, barganha, repressão. Qual delas os governos preferem? Depende. Repressão demais tem efeito paradoxal: faz crescer o que se visava sufocar – como em junho de 2013. Já leniência em excesso também infla protestos, ao atestá-los isentos de risco, uma “festa da democracia”. Por isso, autoridades calculam ao orientar a polícia. Na equação, entra o grau de afinidade do governo com os manifestantes. Há os do contra, como os revigoradores para o governante. Daí por que, em vez de reprimir, barganhar ou tolerar, a autoridade pode pender para uma inusitada quarta opção: o congraçamento. Autoridades e manifestantes Tais diferenças de reação estatal ficaram patentes nas últimas megamanifestações. Em junho de 2013, a polícia abusou das bombas de efeito moral. Já em março de 2015, tirou retratos com manifestantes. Esse passado soou como um aviso de futuro para eventos do miolo de março. Tomemos os dos dias 13 e 18 em São Paulo. No domingo, 13, polícia, autoridades, mídia e setores organizados da sociedade pularam a tolerância, indo direto ao congraçamento. Camaradagem desde o planejamento, com liberação da Avenida Paulista e organização digna de megashow. Associações patronais e empresas – como o Habib’s – conclamaram e subsidiaram o protesto. Hotéis franquearam toaletes e a Fiesp serviu aos participantes não esfihas ou coxinhas, mas carne de primeira. O beneplácito da grande mídia se escancarou em capa do Estadão, que, num arroubo, falou num “Occupy São Paulo”. A complacência policial ultrapassou a selfie e se materializou em ato prenhe de simbolismo: a tropa bateu continência para os manifestantes. Na sexta-feira, 18, dia da manifestação pró-governo, mudou tudo. Embora tenham pré-agendado, os organizadores penaram, só vendo liberada a Paulista – ocupada por remanescentes do 13 – na manhã do dia do evento. Até então o governador se esmerara em declarações equívocas. Talvez temeroso de confronto entre os pró e os contra o governo, afinal acedeu à retirada dos domingueiros e de suas barracas de grife, com gentilezas e sem cassetetes. Para os que chegaram na sexta, nada de banheiros químicos. O apoio logístico veio dos aliados tradicionais do PT: os sindicatos. Em contraponto ao pato da Fiesp, bandeiras da CUT. Em vez de filé mignon, pão com mortadela. A mídia escrita e televisiva minimizou o ato do dia 18 na mesma proporção que magnificou o do dia 13. E, em vez de batalhão amistoso, as franjas do ato foram delimitadas pela tropa de choque. Dois padrões de resposta do Estado e das elites sociais aos protestos, portanto. Pode-se conjecturar que ação desigual corresponda a número dissonante, já que o Datafolha contou cinco vezes mais pessoas no domingo que na sexta. Ainda assim, 100 mil pessoas é gente demais para ser desconsiderada. Então, talvez a diferença resida no tipo de gente que protesta. Gente diferenciada No dia 18, o batalhão de choque se posicionou a distância, mas preparado para o enfrentamento com os manifestantes. No dia 13, a Polícia Militar esbanjou simpatia, com a tropa de cerca viva do ato. Num caso, proteção; no outro, prontidão para o ataque. A polícia distinguiu porque sempre distingue. Distingue por raça, prende e mata mais negros que brancos. Distingue por classe, prende e mata mais pobres que ricos. E reprime mais atos populares que de classe média. Para entender a variação de solicitude, cabe pôr a lupa nos manifestantes. À primeira vista, no domingo e na sexta protestou o mesmo povo. Ou melhor, a mesma elite: varões de classe média. O Datafolha dá, para os dois dias, números idênticos para sexo (57% homens, 43% mulheres) e escolaridade (18% com ensino médio, 77% e 78% com superior), mais alta que a média da população. Não espanta: há mais mulheres na política das ruas que na das instituições, e a escolaridade é um corte, porque protestar requer acesso a conhecimentos e recursos. Esse perfil social talvez esclareça por que o choque não bateu. Mas a polícia aturou uns e se irmanou com outros. Deve então haver diferenças entre os manifestantes que abrem distâncias sociais. Escolaridade elevada indica classe média. A renda confirma: o estrato que ganha entre cinco e dez salários mínimos compareceu em pé de igualdade nos eventos (26% e 28%). A discrepância está nas pontas da pirâmide social. Os mais pobres (até 5 s.m.) foram um terço dos presentes no dia 13 (31%) e perto da metade no dia 18 (44%). No ápice, a diferença se inverte: 37% dos domingueiros ganhavam mais de 10 s.m., com destaque para empresários; já na sexta, a faixa caiu para um quarto dos manifestantes (24%) – funcionários públicos e profissionais liberais. De outro modo, a ————————————————————————————————————————————— 15 residência diz o mesmo: os de sexta moram em proporções parecidas das zonas leste, oeste e centro, ao passo que um terço dos de domingo veio da zona sul – e suas roupas atestam que dos condomínios, não das favelas. Patente é a silhueta mais jovem (48% tinham até 35 anos, no dia 18; já 40% passavam dos 51, no dia 13) e mais negra da sexta-feira. No domingo, 15% se disseram pardos e apenas 4% pretos. Já na sexta, o número de pretos triplicou e, somados aos pardos, responderam por quase um terço dos presentes (31%) – o que se via a olho nu. Para não perder a escala: na Pnad de 2014, 40,3% dos paulistanos se autodeclararam pretos ou pardos. O pessoal de sexta, portanto, representa mais fidedignamente os paulistanos que o de domingo. O governador, os policiais e a elite econômica local se deram conta da gente diferenciada. E agiram de acordo. Pró e anti A diferenciação reassomou nas pautas: antiPT/pró-Moro, no domingo, anti-impeachment/pró-Lula, na sexta. No 18, embora organizadores e muitos participantes tenham tentado a desvinculação, o vermelho dominou. A presença de Lula sacramentou o ato como de em apoio ao governo. Os slogans recuperaram a antiga agenda petista: defesa do Estado de direito (“não vai ter golpe”) e de direitos sociais e individuais (redistributivismo, igualdade de gênero, vide os adesivos roxinhos de Frida Kahlo), ataque a Eduardo Cunha em particular e a adversários de Lula em geral e ao oligopólio dos meios de comunicação (“o povo não é bobo, abaixo a rede globo”). E um clamor por tolerância: “Eu não te odeio”. Já no domingo, o oposto: o Judas malhado foi Lula, sob forma de Pixuleco, com Sérgio Moro ungido a cristo salvador. Reprovação ao PT e ao governo, mas também a “políticos em geral”, que vitimou Alckmin e Aécio, corridos da manifestação. A tônica foi a exigência de moralidade pública, sem advogar alternativas. Como na Espanha, “que se vayan todos”, uma antipolítica. Um dos poucos a discursar foi um militar: Jair Bolsonaro. Não por acaso, pois opiniões consonantes como as suas bordaram o evento, em demonstrações contundentes de ira santa, com referências a Deus e à família, e impropérios a adversários. Um destes, muito jovem, berrou um “não vai ter golpe”. Quase o lincharam. A polícia, impassível, escoltou-o lentamente em meio à turba raivosa, que externou todos os preconceitos conhecidos, culminados num “viadinho”. Jogo é jogo Enquanto no domingo na Paulista policiais testaram sua fotogenia, no protesto na PUC, mencionado ao início, um grupo gritava: “Não acabou, tem que acabar. Eu quero o fim da Polícia Militar”. Os policiais tratam diferentemente os manifestantes, que retribuem. Durante, “o mesmo que para um jogo de futebol.” Resumiu bem: a polícia está disponível para o a manifestação, perguntei a um dos soldados que treinamento ele recebera para atuar na Paulista. “O padrão”, respondeu congraçamento, quando o time joga a seu favor, e pronta para descer o cacete, em caso contrário. ÂNGELA ALONSO é professora livre-docente da Universidade de São Paulo e presidente do Cebrap. Ilustração: Eugênio. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Abril de 2016. De cuspe a Deus, teve de tudo na votação do Impeachment (MALU FONTES) ALÉM de a votação da admissibilidade de um processo de impeachment contra a presidente da República já ser, em si, um fato histórico com robustez suficiente para atrair todo um país para a sua transmissão, o Brasil teve e terá outros motivos para lembrar, por décadas e décadas, as cenas transmitidas para o mundo no último domingo pela TV Câmara. Se, por um lado, a população tem o direito e a razão de estar assombrada com as espécimes esquisitonas que se sucederam no microfone da Câmara, atendendo ao chamado do inominável Eduardo Cunha para dizer sim ou não ao impeachment, por outro, cabe uma pergunta típica de advogado do diabo: por que tanta surpresa com os tipos que desfilaram diante do microfone da Câmara? Quem ficou horrorizado com o que viu, da aparência tosca às falas surreais, invocando Deus e até o papagaio da família, parece supor que aqueles tipos destoam da cara, do caráter ou do comportamento do povo brasileiro. Que aquilo só pode ser fruto de geração espontânea, algo fenomenológico que ocorre lá pelas bandas do Cerrado, justo onde Juscelino Kubitscheck decidiu construir Brasília. Portador não merece pancada e o problema da paisagem não está na janela. Gostemos ou não, aqueles tipos estranhos, que fazem o Coronel Saruê de Antônio Fagundes parecer contido e cool, são exatamente a cara do Brasil. Foram, literalmente, exportados para Brasília pelo povo brasileiro. CRINA DE CAVALO Diante do espanto com o show de horrores e histrionices visto domingo, manifestado na esfera pública virtual, nas mesas de botecos, nos bancos escolares e nas alcovas de todos os estratos sociais, ficou uma sensação rara de que o verso de Caetano Veloso não se aplica a algumas coisas.Definitivamente não se aplica à relação entre a Câmara Federal e o povo brasileiro: Narciso acha feio o que é espelho. Além das lições políticas que todo esse processo deixa, para os ganhadores e os derrotados, também se aprendeu muito sobre hipocrisia, estética, religião e família. ————————————————————————————————————————————— 16 Foi preciso uma sessão de votação de impeachment para o brasileiro descobrir que é tendência entre os seus representantes os implantes malsucedidos de cabelo, assim como os tons acaju e a textura dos fios a la crina de cavalo sintética. Foi preciso Janaína Pascoal, a musa da República da Cobra, entrar para a história do país pedindo o impeachment de Dilma para que o eleitorado brasileiro descobrisse o quanto os deputados brasileiros são religiosos, tementes a Deus e o quanto prezam os valores familiares. Como uma garota de programa foi filmada recentemente fazendo saliências com alguém da casa, vossas excelências aproveitaram o microfone da Câmara para renovar os votos matrimoniais com suas consortes oficias. Ah, e algo que precisa ser registrado: na votação, Tiririca, em seu segundo mandato, usou pela primeira vez o microfone da Câmara. Ou seja, pior que está, fica, sim. TORTURADOR O jornalismo enxerga tudo, mas é ligeiro demais para se deter em detalhes que só a história escancara. O que foi aquela cena de Jair Bolsonaro invocando seu ídolo maior, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores, mais cruéis e mais perversos torturadores do regime militar brasileiro, e a quem o deputado dedicou seu voto? Somente numa republiqueta latina, que nunca se deu ao trabalho de fazer a revisão de seus anos de chumbo e tortura, para um homem com mandato homenagear um torturador na casa de representantes do povo e ficar por isso mesmo. Só os próximos e o próprio Jean Willys devem saber o naipe das coisas que Bolsonaro lhe disse como insulto, durante a votação, para que, como revide, recebesse uma bola de cuspe em sua direção. E somente com a cantilena divina foi possível espalhar para o mundo o que já sabemos de nós mesmos: somos uma piada pronta. O jornal espanhol El País, em sua versão brasileira, diagnosticou com precisão o resultado do impeachment, usando como métrica a invocação de Deus pelos deputados: “Deus derruba a presidenta do Brasil”. MALU FONTES é Jornalista, Doutora em Cultura pela UFBA, além de professora desta mesma instituição. Jornal CORREIO, Março de 2016. Gripe fora de hora (DAVID UIP) QUADROS gripais costumam ter evolução benigna. Assim, basta o controle dos sintomas a base de analgésicos e antitérmicos, hidratação, boa alimentação e repouso, que a doença tende a desaparecer em poucos dias. Em alguns casos, no entanto, a infecção pelo vírus influenza pode trazer complicações, principalmente em pessoas que possuem baixa imunidade ou fazem parte dos grupos mais vulneráveis, como os idosos, crianças, grávidas e doentes crônicos. Quando o vírus A H1N1 retornou em forma de pandemia, em 2009, o susto foi grande. Não havia vacina à época. Somente em São Paulo foram registrados 9,7 mil casos e 641 mortes. Passados sete anos, já se sabe que a gripe causada pelo H1N1 não é mais nem menos perigosa do que as causadas pelas cepas mais comuns em circulação pelo mundo. Os cuidados relativos à prevenção e ao tratamento são os mesmos. Em 2016 a gripe surgiu fora de hora no Estado de São Paulo, antes de o inverno chegar. Até 29 de março foram notificados pelos serviços de saúde 465 casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) confirmados para o vírus influenza, com 82,5% de predominância para o tipo A H1N1, e 59 mortes. O número de casos graves de gripe já supera os registrados durante todo o ano de 2015, quando o vírus A H3N2 foi predominante, respondendo por 55,6% do total. Mas o cenário não se assemelha, nesse momento, ao ano da pandemia. Ao analisarmos os gráficos do Centro de Vigilância Epidemiológica, observamos que em novembro de 2015 se nota um aumento na frequência de casos de SRAG por H1N1 e, concomitantemente, há elevação do número de casos pelo influenza B, cenário que se manteve até a nona semana epidemiológica deste ano, quando, de fato, a circulação do H1N1 se mostrou prevalente. Em 2015, a presença de uma ou mais comorbidade foi verificada em 60% dos óbitos por SRAG notificados no Estado. Neste ano, o índice é parecido: 61,5%. É precipitado dizer o que causou a circulação antecipada e não prevista dos casos de influenza antes do período de junho a agosto, como costuma ocorrer. Os institutos Adolfo Lutz e Butantan, ligados à Secretaria estadual da Saúde, estão investigando o porquê. Evidentemente que não é possível esperar respostas para agir. Ao detectarmos uma circulação mais intensa do vírus no noroeste do Estado, iniciamos em 23 de março uma campanha extra de vacinação em 67 municípios da região de São José do Rio Preto, com doses de 2015. Com o apoio do Ministério da Saúde, que enviou doses da campanha deste ano, o governo paulista antecipou a vacinação na capital e na região metropolitana de São Paulo, iniciada no dia 4 de abril para 532 mil profissionais de saúde de hospitais públicos e particulares e que a partir desta segunda-feira (11) também será estendida a idosos, gestantes e crianças entre seis meses e cinco anos incompletos, totalizando, nesta imunização antecipada, 3,5 milhões de paulistas. Já a partir do dia 18, a imunização atenderá portadores de doenças crônicas e em tratamento com imunossupressores, puérperas (até 45 dias após o parto), e população indígena residente na capital e região metropolitana de São Paulo. Para as demais cidades do Estado a campanha de vacinação contra a gripe deve seguir o calendário do Ministério da Saúde, com início previsto para o dia 30 de abril. ————————————————————————————————————————————— 17 As vacinas – trivalentes – são produzidas pelo Instituto Butantan e protegem contra os três tipos de influenza que circularam no último inverno do hemisfério norte. Importante ressaltar que a vacina, além de prevenir a gripe, ajuda a evitar complicações decorrentes da infecção por esses vírus, a exemplo de pneumonias, otites e sinusites. São Paulo está enfrentando sua onda de gripe fora de hora com a seriedade e a serenidade que o momento exige. Há motivo para alerta entre as autoridades de saúde, mas nenhum para pânico entre a população. Vida normal. DAVID UIP, 63, infectologista, é secretário da Saúde do Estado de São Paulo. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. O novo moralismo jovem (LUIZ FELIPE PONDÉ) UMA coisa tem me preocupado muito nos últimos tempos. Sei que em meio ao horror que virou a vida política brasileira, com a ausência de referências que valham a pena, tudo parece menor, mas nem tudo é menor. Uma das razões da vida inteligente no Brasil estar tão chata é que a democracia, quando muito ativa, tem uma tendência a invadir todas as dimensões da vida. Como uma forma de fanatismo religioso que tudo devora. Este traço é típico do modelo de soberania na democracia, a saber, a soberania popular. E quando tudo vira política, a vida sempre será violenta. Mas, eu não disse até agora o que está me preocupando há algum tempo. O que tem me preocupado há algum tempo é a tendência de alguns jovens se transformarem nuns chatos, caretas e moralistas. Vejo isso piorar a cada dia. E é broxante. Dê-me um jovem que não gosta de ler, mas não me dê um jovem que acha Nelson Rodrigues um machista. Se você não sabe com certeza o que vem a ser um moralista (no senso comum), eu explico. Do modo mais preciso, técnico e filosófico possível, um moralista é alguém que caga regra. Os franceses falam, como sempre, de forma mais chique: "faire la morale". Sim, parece estranho. Principalmente, se eu completar da seguinte forma: acho que o que começou o processo de transformação dos jovens nuns chatos moralistas foram os anos 1960 e seu discursinho de paz e amor. Devíamos ter dado mais atenção ao fato de que na raiz do movimento hippie estava o medo de ir para a guerra (do Vietnã). E todo moralista é um covarde. Outra raiz do movimento hippie era a preguiça de acordar cedo. E todo preguiçoso é um covarde. Sei que essa afirmação parece absurda porque associamos a juventude à revolução e à contracultura, mas o maior produto da contracultura foi a caretice dos jovens se acharem reformadores do mundo e abandonarem qualquer senso do próprio ridículo. E todo reformador é um chato, sem senso de qualquer ridículo. Por isso, os jovens perdem, a cada dia, o senso de humor e se levam cada vez mais a sério. Como alguém de 18 anos (ou mesmo mais jovem), pode se levar tão a sério? Suas ideias são artificiais, sua experiência de vida, postiça, e sua visão de mundo, infantil. Todo jovem que se julga revolucionário é um Torquemada de bolso. Assusta-me o modo violento e rápido com o qual, cada vez mais, mais jovens se acham arautos do modo justo de comportamento. Muitos defendem a pureza de sentimentos (ninguém tem ciúme), a pureza da alimentação (e perdem o paladar para o sangue, que sustenta toda a existência no planeta) e negam a existência de inseguranças (ninguém confessa que está morrendo de medo do mundo). Ninguém tem preconceitos, a não ser os preconceitos "justos". Quase todo mundo está disposto a atirar a primeira pedra porque se acha um puro de coração. Não existem mais adúlteras, apenas praticantes de poliamor. E um mundo sem adúlteras é um mundo sem misericórdia. Um dos traços mais cruéis dos moralistas é sua total insensibilidade para o pecado. E onde não há pecado, não há misericórdia. Nem esperança. Nem os puritanos calvinistas do séculos 16 e 17 imaginavam-se tão puros quanto muitos dos jovens hoje se imaginam. Resumo da ópera: preocupa-me a ideia, presente em muitos jovens, de que eles não têm pecados. Culpa é para os opressores; eles, os jovens, não têm maus sentimentos. E quando os têm, "foram impostos pela sociedade". Com certeza nós, os pais e professores desses jovens, somos muito responsáveis por este estado de moralismo em que se encontram. Cegos ao gosto de sangue em nossas bocas, cospem na cara de quem não tem certeza absoluta de representar o bem. Como idiotas, temos construído a ideia de que eles tem de salvar o mundo. Nós contemporâneos, como infantis que somos, não percebemos que estamos construindo um novo clero puritano, com todo o moralismo, a boçalidade, a insensibilidade e a arrogância que marca toda a pureza de coração nesse mundo. Nunca foi tão importante cuidar dos jovens para que eles despertem desse sono dogmático acerca da própria "santidade". LUIZ FELIPE PONDÉ é filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. ————————————————————————————————————————————— 18 As famílias da sociedade órfã (ROSELY SAYÃO) A FAMÍLIA transformou-se em bode expiatório das mazelas de nossa sociedade. Crianças se descontrolam, brigam, desobedecem? Jovens fazem algazarras, bebem em demasia, usam drogas ilegais, namoram escandalosamente em espaços públicos? Faltou educação de berço. Como é bom ter uma "Geni" para nela atirar todas as pedras, principalmente quando se trata dos mais novos. Até o secretário estadual da Educação de São Paulo, em um artigo de sua autoria, para defender sua tese de que estamos vivendo em uma "sociedade órfã", inicia suas justificativas afirmando que "... a fragmentação da família, a perda de importância da figura paterna — e também a materna — a irrelevância da Igreja e da Escola em múltiplos ambientes geram um convívio amorfo". As escolas também costumam agir assim: quando um aluno é considerado problemático e indisciplinado, ou apresenta um ritmo de aprendizagem diferente do esperado pela instituição, a família é chamada para resolver o "problema". Vamos refletir sobre expressões usadas a respeito da família: "família fragmentada", "família desestruturada", "família disfuncional", "família sem valores" e outras semelhantes. Não lhe parece, caro leitor, que tais expressões apontam na direção de que a família decidiu entornar o caldo da sociedade? Não é a família que está fragmentada: é a vida. Hoje, os tratamentos médicos, o conhecimento, as metodologias, as relações interpessoais, as escolas, o Estado etc. estão fragmentados. Mesmo não sendo a família um agente passivo nesse contexto, é salutar lembrar que ela se desenvolve conectada ao clima sociocultural em que vive. A família não está desestruturada ou disfuncional: ela passa por um período de transição, com sucessivas e intensas mudanças, o que provoca uma redefinição de papéis e funções. Esse processo está em andamento, o que nos permite falar, hoje, não em família, mas em famílias, no plural, já que há grande diversidade de desenhos, dinâmicas etc. As famílias não estão sem valores: elas têm valores fortes, em sua maioria eleitos pelas prioridades que a sociedade determina. O consumo é um deles: as famílias não decidiram consumir cada vez mais, foi o sistema econômico que apontou esse valor para elas. Há problemas com a escola, sim: ela tem ensinado sem educar devido, principalmente, à primazia do conteúdo -que insisto em dizer que não é conhecimento-, às políticas públicas adotadas e à ausência de outras, prioritárias. Por isso, a escola tem tido um papel irrelevante na formação dos mais novos. Há famílias em situações de risco e fragilidade? Há. A escola perdeu sua importância na socialização de crianças e jovens? Sim. Mães e pais podem estar mais ocupados com suas vidas do que com os filhos? Sim. Mas isso ocorre porque as ideologias socioculturais da juventude, do sucesso e da instantaneidade ganharam grande relevância, e não há políticas públicas - de novo - que busquem equilibrar tal contexto. E, mesmo assim, têm sido as famílias a instituição protetora dos mais novos! A sociedade não precisa, tampouco demanda, que o Estado exerça a função de babá, de pai ou de mãe. Ela necessita que o Estado reconheça, na prática, que as famílias e a escola dependem de ações públicas de apoio ao seu pleno desenvolvimento e que garantam os seus direitos. ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e articulista do programa “Seus Filhos” da Rádio BandNews FM, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. Impeachment, exigência da realidade (CARLOS SIQUEIRA) O BRASIL vive a mais grave crise de sua história republicana, resultante da falência de aspectos políticos, econômicos, sociais, federativos e éticos do país. Esta crise teve origem ainda no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, quando o PSB cumpriu o seu papel, na pessoa do então presidente da sigla Eduardo Campos (1965-2014), e advertiu a mandatária sobre os graves problemas que seriam gerados pela ausência de diálogo político e pelos equívocos e irresponsabilidades cometidos na economia. Lamentavelmente, não fomos ouvidos e nenhuma mudança de rumo aconteceu. Reeleita, a presidente cuidou de prover novos ingredientes a uma receita já desastrada. Para espanto de todos, iniciou o novo mandato com a proposta de um ajuste fiscal de viés claramente liberal e conservador, que incluiu a diminuição de direitos previdenciários e trabalhistas e cortes nos programas sociais. Contrariou o programa de governo que não escreveu, mas que verbalizou fartamente por meio de sua publicidade, evidenciando as fragilidades até então negadas. Nos aspectos que envolvem diretamente a vida dos cidadãos e compõem o pano de fundo do processo de impedimento ou "juízo político", como dizem de forma mais apropriada os hispânicos, nosso país acumula derrotas sob o comando da presidente Dilma. O governo tenta sem sucesso pôr em prática uma política econômica de tendência tristemente conservadora, que valoriza e beneficia de forma excessiva o setor financeiro, em detrimento da produção, do trabalho e do emprego.Sacrifica o futuro do país ao desmontar a política de ciência, tecnologia e inovação, destruindo assim, em pouco tempo, um esforço que até certo ponto vinha sendo bem-sucedido. Liquida a indústria nacional, cuja participação no PIB regride a patamares de 50 anos atrás. ————————————————————————————————————————————— 19 Enfraquece ainda mais a Federação, cujas consequências na prestação de serviços básicos à população já estão muito evidentes. Dessa forma, despreza a agenda política progressista, ao banir para a condição de verniz de discurso as reformas política, agrária, urbana, federativa e tributária. Entrega simultaneamente ao trabalhador, por exemplo, o corte de mais de 9 milhões de postos de trabalho e a limitação de direitos trabalhistas, com destaque para o seguro-desemprego. Igualmente grave é a explosão da dívida pública, que perigosamente aproxima-se de R$ 3 trilhões, comprometendo parcela significativa do orçamento da União. O impasse em que se encontra o país, entretanto, não resulta apenas dos aspectos de natureza política. A simples leitura do bem fundamentado parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) revela que a presidente cometeu crime de responsabilidade ao editar decretos de aumento de despesa sem autorização do Congresso, desrespeitando a Constituição e a lei orçamentária. Portanto, não há dúvida de que ao descalabro governamental somam-se aspectos legais. A inaceitável narrativa do "golpe" beira o ridículo. Diante desta sombria realidade, a dinâmica política impõe ao PSB apoiar o processo de impeachment que ora tramita na Câmara dos Deputados, única saída constitucional e legal, no momento, para que nosso país tenha um governo de transição, a exemplo do que realizou o presidente Itamar Franco. Um governo que coloque o país nos trilhos e inicie a tarefa de reconstrução nacional, unindo a nação e promovendo a necessária coesão social e política, visando enfrentar a herança, esta sim maldita, do atual governo. CARLOS SIQUEIRA é presidente nacional do PSB (Partido Socialista Brasileiro). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. Golpe brasileiro ameaça democracia (MARK WEISBROT) A PRESIDENTA Dilma Rousseff está ameaçada de impeachment, mas não há evidências que a vinculem a qualquer esquema de corrupção. Em vez disso, ela é acusada de manipular as contas públicas, algo que presidentes anteriores já haviam feito. Para traçar uma analogia com os Estados Unidos, quando os republicanos se negaram a elevar o teto da dívida, em 2013, a administração Obama recorreu a vários truques de contabilidade para adiar o prazo final no qual se alcançaria o limite. Ninguém se incomodou com isso. A campanha do impeachment, que o governo descreveu corretamente como golpe, é um esforço da elite brasileira tradicional para obter por outros meios aquilo que não conseguiu conquistar nas urnas nos últimos anos. O ex-presidente Lula é acusado de receber dinheiro de empresas investigadas por corrupção para fazer discursos e reformar um imóvel que ele afirma não ser dele. Mesmo que as acusações sejam verdadeiras, não há prova de vínculo com corrupção. O juiz Sergio Moro, entretanto, lidera uma bem executada campanha de difamação de Lula. O magistrado teve que pedir desculpas ao Supremo Tribunal Federal por ter divulgado grampos telefônicos de conversas entre Lula e Dilma, Lula e seu advogado e até mesmo entre a mulher de Lula e os filhos deles. É claro que o Partido dos Trabalhadores não estaria vulnerável a essa tentativa de golpe se a economia não estivesse em recessão profunda. Mas também a esse respeito a mídia está claramente equivocada, defendendo mais cortes nos gastos públicos e mais juros altos. O Brasil precisa, pelo contrário, de um estímulo sério para fazer sua economia pegar no tranco. O principal obstáculo à recuperação é o poder dos grandes bancos. O Brasil está pagando juros de quase 7% de seu PIB sobre a dívida pública, mais que a Grécia no auge de sua crise. Mas o Brasil não tem crise de dívida nem apresenta qualquer risco significativo de moratória. Seus juros usurários são o resultado do poder político de seus próprios bancos, que hoje desfrutam um "spread" recorde de 34% entre suas taxas de empréstimos contraídos e concedidos. A simples redução dos juros sobre a dívida pública para o nível de alguns anos atrás criaria condições para um estímulo importante. O governo dos EUA vem guardando silêncio sobre esta tentativa de golpe, mas há poucas dúvidas quanto à sua posição. Ele sempre apoiou golpes contra governos de esquerda no hemisfério, incluindo, apenas no século 21, o Paraguai em 2012, Haiti em 2004, Honduras em 2009 e Venezuela em 2002. O presidente Obama foi à Argentina para derramar-se em elogios ao novo governo de direita, pró-EUA, e a administração reverteu sua política anterior de bloqueio de empréstimos multilaterais ao país. E hoje, no Brasil, a oposição é dominada por políticos favoráveis a Washington. Seria mais uma coisa lamentável se o Brasil perdesse boa parte de sua soberania nacional, além de sua democracia, com este golpe sórdido. MARK WEISBROT é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington, e presidente da Just Foreign Policy, organização norte-americana especializada em política externa. Tradução de CLARA ALLAIN. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. ————————————————————————————————————————————— 20 O 'outrem' e o 'nós' de Temer (PASQUALE CIPRO NETO) MUITO já se falou sobre o "exercício" de Temer que "vazou" no início da semana e sobre a impressionante capacidade que essa gente tem para inventar razões para certos atos. Parece-me, no entanto, que um ponto do "treinamento" de Temer passou despercebido. Transcrevo a passagem em questão: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se outrem assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família, vamos acabar com o Pronatec, vamos acabar com o Fies. Isto é falso. É mentiroso". Por favor, releia o trecho que transcrevi, com atenção especial para a palavra "outrem". Imagino que boa parte dos leitores saiba o que significa "outrem", mas não custa transcrever o que registra o "Houaiss": "Pessoa que não participa do processo de comunicação e cuja menção é imprecisa ou indefinida (seja porque o falante não sabe, seja porque não lhe interessa dar a indicação precisa); outra pessoa". A julgar pelo uso que Temer fez de "outrem", o brilhante pessoal do Instituto Houaiss será obrigado e dar outra redação à definição desse pronome, a começar pelo tipo de pronome. O "Houaiss" diz que outrem é pronome indefinido, mas Temer, inexorável, acaba com isso. Bem, para quem ainda não entendeu o que expliquei no parágrafo anterior, lá vai: Temer disse que sabe que de vez em quando dizem que, "se outrem assumir, nós vamos acabar com o Bolsa Família...". Quem leu com atenção o trecho destacado notou que o "outrem" de Temer se tornou "nós" imediatissimamente. Temer nem se vale do recurso da ocultação do sujeito de "vamos", o pronome reto "nós", que poderia ter ficado implícito na desinência dessa flexão verbal. Em outras palavras, o "outrem" de Temer não é o que está no "Houaiss" ou nos outros dicionários; é mesmo o definidíssimo "nós", ou, como diria a galera, "é nóis" (ou, melhor ainda, "É nóis, mano!"). Como diria o impagabilíssimo Osmar Lins, do PAN (Partido dos Aposentados da Nação), "Peroba neles!". Mas voltemos ao "aquecimento" de Temer e suponhamos que ele não tivesse empregado "outrem". Teríamos algo semelhante a isto: "... eu sei que dizem de vez em quando que, se assumirmos, nós vamos acabar com o Bolsa Família...". Se assim tivesse sido, alguém poderia dizer que Temer teria se valido do plural majestático, que se caracteriza quando uma autoridade emprega "nós" no lugar de "eu", por exemplo. Modéstia? Sim, de fato Temer fala em modéstia em outra passagem do seu "treinamento": "...muitos me procuraram para que eu desse pelo menos uma palavra preliminar à nação brasileira, o que eu faço, com muita modéstia, com muita cautela, com muita moderação...". A modéstia de Temer é patente e inquestionável, sobretudo quando se leva em conta o que o ainda vice-presidente disse sobre as declarações do ministro Ricardo Berzoini a respeito da fala de Temer. Lá vai: "Certas afirmações não merecem, digamos assim, a honra da minha resposta". Haja modéstia! A sucessão de patacoadas que os nossos brilhantes homens públicos (da situação e da oposição) têm proferido é de chorar, é, literalmente, desesperadora. Lamento dizer, mas esse é o mais fiel retrato da verdadeira nação que somos, "primitiva", como bem disse o grande Clóvis Rossi em recente artigo. O que o discurso dessa gente deixa escapar é só uma nesga da barbárie. É isso. PASQUALE CIPRO NETO é Professor de português desde 1975 e também colunista semanal desta publicação. É o idealizador e apresentador do programa “Nossa Língua Portuguesa”, transmitido pela Rádio Cultura (São Paulo) AM e pela TV Cultura, e do programa “Letra e Música”, transmitido pela Rádio Cultura AM. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. Somos os otários de todos (CONTARDO CALLIGARIS) NO DIA 8/4, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) tomou a palavra na Comissão Especial do impeachment. Mostrou (mais uma vez) que esse impeachment não tem tanto a ver com as pedaladas fiscais, por mais que fossem enérgicas, quanto com o descontrole, a incompetência e a corrupção no partido de governo. Até aí, tudo bem. Mas, criticando a política educacional do PT, o deputado produziu esta pérola: "É a receita de Gramsci, da hegemonia cultural, e da escola de Frankfurt, da doutrina de gênero, numa tentativa de destruir a família"¦" Mamma mia. Deputado, Gramsci não distribuía receitas. Nos cadernos que ele preencheu no fundo das prisões fascistas, ele registrava suas tentativas de entender como funciona o mundo. A "hegemonia cultural" não é uma estratégia que Gramsci proporia ao partido comunista; ao contrário, trata-se de um conceito para tentar entender como, em cada momento da história, a classe dominante produz e impõe à população um conjunto de ideias e crenças. Entender como funciona a hegemonia cultural talvez nos permitisse nos livrar (um pouco) dela, ou seja, descartar a visão do mundo sugerida pelos preconceitos mais triviais das "elites". O incrível parágrafo do deputado Marinho é um bom exemplo da retórica da hegemonia cultural. A família sequer é um valor cristão, sua idealização faz parte de um projeto de gestão de nossas vidas – por exemplo, o dos vários movimentos "Tradição, Família, Propriedade". Marinho convida seus ouvintes a defender a família para que, combatendo o PT e Gramsci etc., eles aceitem a família como um pressuposto e se esqueçam de criticar esse valor. Vamos à frase seguinte de Marinho, a "doutrina de gênero da Escola de Frankfurt". Aqui, evito os detalhes, porque sinto um pouco de vergonha alheia. Com o que se apavora o deputado? Com a ideia de que o gênero poderia ser uma construção social e não só um efeito do sexo anatômico? Ou ainda com a obviedade de que alguém pode se sentir ————————————————————————————————————————————— 21 pertencendo a um gênero que não corresponde ao seu sexo anatômico? O que propõe o deputado: exterminar essas pessoas? Segregá-las para que ele não se sinta ameaçado em suas certezas? Mais uma coisa: não existe uma "doutrina de gênero", salvo a dos que querem nos convencer de que só há dois gêneros e eles devem corresponder ao sexo anatômico de cada um (mais um exemplo de hegemonia cultural, aliás). A frase do deputado Marinho não vale essa resposta toda. De onde vem minha irritação? É que pertenço, há tempos, à classe dos otários, e isso começa a me irritar. É uma classe média, remediada (enriquecer não está no topo da lista), alguns são marxistas, outros liberais, mas o essencial é que todos são frequentadores de cinemas, teatros e livrarias, geralmente laicos e agnósticos em matéria de religião, desprezam os moralistas, desconfiam das agremiações que ferem a liberdade individual e promovem ideais de justiça social e de convivência social-democrata. Você se reconheceu? Não tem um partido que nos represente. A Rede? Só se Marina nos escrevesse uma carta jurando que ela governaria sem o apoio da bancada evangélica. O PSDB? Rogério Marinho é do PSDB, João Campos também é, com sua moção de repúdio ao "beijo gay" nas novelas. O PT, por não ser um partido marxista, poderia representar uma boa parte dos nossos. Seriam seus "companheiros de caminhada". Claro, veio o mau governo. Mas já éramos os otários da caminhada. O governo sempre preferiu comprar a amizade de Maluf, Malafaia etc. a respeitar quem tinha depositado nele suas esperanças de uma sociedade melhor. O pressuposto, suponho, era que nós reconheceríamos a necessidade das alianças e continuaríamos apoiando o partido, sem precisar que ele respondesse aos nossos anseios. E o resultado foi o abandono de qualquer agenda libertária e progressista. Um exemplo? Em 14 anos, o governo foi incapaz de introduzir sequer a discussão de um projeto de descriminalização do aborto. O medo de comprar brigas e de perder apoios falou sistematicamente mais alto. Alguém dirá que isso seria arriscado demais num país católico como o Brasil. A Itália e a Espanha também eram. Outros dirão que a agenda libertária é coisa para país nórdico. Concordo, nórdico, como o Uruguai. CONTARDO CALLIGARIS é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. Universidades em defesa da democracia (MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER) O CONSELHO Pleno da Andifes, representação oficial das universidades federais brasileiras, reunido no dia 17 de março, manifestou preocupação com o agravamento da crise política e econômica no país e suas ameaças à ordem constitucional e aos direitos civis, políticos e sociais do povo brasileiro. Os reitores das universidades federais repudiam argumentos pseudo-jurídicos utilizados para encobrir interesses político-partidários e a busca pelo poder, com a divulgação seletiva de elementos processuais antes da conclusão dos processos, ignorando o princípio da presunção de inocência. Igualmente, reprovam o uso de interpretações políticas parciais em substituição aos preceitos constitucionais que, necessariamente, devem fundamentar qualquer processo de impedimento de mandato legitimamente conquistado. Ao se propor o impeachment sem cumprir os requisitos constitucionais de mérito, não se estará apenas afastando injustamente uma presidente legitimamente eleita mas sim cassando o voto livre de 54 milhões de brasileiros. Também preocupa o ataque agressivo, com fins desmoralizantes e deslegitimadores, desferidos contra a política, os políticos e os partidos políticos em geral. Se nessas searas habitam personagens desacreditados, muitas vezes com protagonismo, ainda que efêmeros, entendemos que a depuração será alcançada pelo repetido exercício de eleições e do contraditório civilizado, pois a alternativa é se curvar ao domínio dos espertos ou das hordas atiçadas. Os homens públicos de responsabilidade - e eles existem em todos os partidos -, as instituições e a sociedade civil, em especial a academia, não podem se submeter aos interesses inconfessáveis daqueles que apostam no "quanto pior, melhor". Estamos falando de uma das maiores economias do mundo, referência democrática para todo o continente. A ninguém trabalhadores, empresários, intelectuais, instituições- interessa um país com economia estagnada, com instituições e lideranças políticas debilitadas, uma sociedade fracionada e beligerante. Por isso mesmo, a situação requer, mais do que nunca, a obediência aos preceitos constitucionais e espírito público na defesa da democracia e do Estado de Direito. As universidades federais, pautadas pelo rigor científico, pela criatividade acadêmica, pela liberdade de pensamento e pela pluralidade de ideias, estão comprometidas com o fortalecimento das instituições públicas em defesa da democracia, da justiça social e da paz. A política e o ambiente democrático são os melhores remédios para superar as controvérsias naturais da sociedade. A lei é para todos, inclusive para os operadores do direito. As regras devem ser seguidas. O combate à corrupção e a disputa pelo poder só serão legítimos, legais e virtuosos sob a égide dos preceitos constitucionais. Expressamos a nossa expectativa de rigorosa apuração de todas as denúncias de corrupção e defendemos intransigentemente os princípios republicanos presentes na Constituição Federal. MARIA LÚCIA CAVALLI NEDER, reitora da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), é presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Abril de 2016. ————————————————————————————————————————————— 22 Tasaday - Afinal, quem são? (ÁTILA SOARES COSTA FILHO) A estranha saga da tribo que desconhecia a religião e a guerra NEM MESMO a mais densa floresta tropical do mundo seria obstáculo para os olhares curiosos da mídia internacional naqueles meses quentes de 1972. Sendo o estilo "documentário televisivo" ainda uma novidade - e muito apreciada nos lares, sobretudo americanos e europeus -, a bola da vez da imprensa planeta afora era a ilha filipina de Mindanao, no Sudeste Asiático. O motivo? Teria sido descoberta, no ano anterior, a comunidade humana mais primitiva de todos os tempos, se comportando e sobrevivendo de maneira exata a dos ancestrais na Pré-História. Tudo se deu por conta das informações passadas por um caçador ao diretor da agência governamental de apoio e preservação às minorias culturais daquele país a PANAMIN -, Manuel Elizalde (este, um amigo íntimo do ditador filipino Ferdinando Marcos). O rústico caçador confessara a Elizalde seus raros contatos com alguns habitantes na "intocada" região. Estes encontros teriam posto um fim de, pelo menos, mil anos de isolamento total daquela pequena comunidade, desde seu assentamento ali. Não demorou para que o Ocidente sempre ávido por curiosidades exóticas - tomasse conhecimento daquele furo excepcional de reportagem. Afinal, nossa cultura passou a ser herdeira da trilha iniciada pelo antropólogo britânico Bronislaw Malinowski (1884-1942), pioneiro da Antropologia Funcionalista. Esta corrente defendia as instituições sociais como dependentes da cultura, onde esta e o indivíduo se integram e interagem. Assim, Malinowski entendia o animal humano como um organismo vivo que gostava de fabricar todas as ferramentas que o conduzissem à realização de suas vontades. A princípio tudo aquilo, de fato, remetia a uma genuína viagem no tempo: os habitantes, de aspecto muito primitivo, e andando seminus, viviam de forma extremamente minimalista, se valendo de uma tecnologia arcaica ao máximo. Sem a menor dúvida, não haveria espaço para grandes realizações na produção artística, de utensílios, ou na fabricação de armas, e muito menos arquitetônica (já que a vida era em cavernas). A escrita, completamente ignorada. Também chamava a atenção o caráter pacífico daquela gente que, ao que tudo indicava, ignorava em seu vocabulário termos para "arma", "guerra" ou "inimigo", e não praticavam religião ou rito algum. Apesar do pouco número de integrantes, as junções consanguíneas também eram proibidas - assim como a traição conjugal. O primeiro encontro de Elizalde com os tasaday aconteceu em junho de 1971, em uma clareira montada na borda da floresta. Para ali havia se dirigido com um grupo que incluíam um piloto de helicóptero, um médico, seu guarda-costas, alguns nativos (que ajudassem na comunicação) e Edith Terry, uma estudante da Universidade de Yale. No ano seguinte, foi a vez de Elizalde trazer consigo a Associated Press e a National Geographic Society para um novo encontro - agora, no ————————————————————————————————————————————— 23 interior de uma "autêntica" caverna pré-histórica. Eram muitas as matérias que iam para a mídia impressa e eletrônica, além de documentários na TV e entrevistas. O tema fervilhava em todas as grandes capitais do planeta, provando que os tasaday gozavam de uma imensa popularidade. "O primeiro encontro de Manuel El izalde com os tasaday aconteceu em junho de 1971, em uma clareira montada na borda da floresta" Porém, em 1976, o presidente Ferdinando Marcos manda fechar o acesso à então proclamada reserva. Na verdade, desde 1972 que ela tinha tido sua acessibilidade muito limitada pelas autoridades, em uma política de preservação cada vez mais obscura. Àquela altura iniciava-se por parte da imprensa e opinião pública uma série de desconfianças sobre aquela insólita história. A razão foi uma série de incompatibilidades que naturalmente iam se apresentando, como o fato de jamais alguém ter achado restos de defuntos dentre a comunidade, nem mesmo traços de rejeitos ou resíduos, naturais em qualquer grupo humano - pré-histórico ou não. Também a honestidade de Elizalde foi posta em dúvidas depois ter informado sobre a dieta de 24 remanescentes na aldeia, como composta por frutas silvestres, miolos de palma, inhame (que se achava em escassez na época), raízes, larvas e girinos. Entretanto - como foi posteriormente comprovado -, tal hábito alimentar viria a compor somente menos de 30% das necessidades energéticas daquele resto de povo, o que se constituía em uma inviabilidade total. "Eram muitas as matérias que iam para a mídia impressa e eletrônica, além de documentários na TV e entrevistas. O tema fervilhava no mundo" De fato, a fama de Elizalde nunca tinha sido das melhores: volta e meia envolvido em escândalos, o muito ambicioso bon vivant às vezes podia parecer, à vista de todos, querer se aproveitar da causa para se apropriar dos hectares da reserva e tocar seus projetos na política. Este playboy não hesitaria em proibir terminantemente o acesso de nutricionistas e agentes de saúde desejosos de aprofundarem suas pesquisas em torno da aparentemente malnutrida tribo... e foi o que fez. Aos poucos, o mundo ia se esquecendo dos exóticos tasaday. ————————————————————————————————————————————— 24 Eis que, após o misterioso assassinato em 1983 de Benigno Aquino Jr. - líder da oposição ao governo de Marcos -, Elizalde foge do país, vindo a ser acusado de levar 35 milhões de dólares da fundação. Ainda retornaria às Filipinas em 1987, mas viria a falecer de leucemia na Costa Rica dez anos mais tarde, viciado e completamente falido. As fontes informavam que o motivo da falência foram o vício, seu gosto exacerbado por bebida e mulheres - para sua residência na Costa Rica, havia até trazido algumas jovens filipinas. Seja como for, com a deposição de Ferdinando Marcos em 1986, finalmente, o caminho parecia estar livre para a imprensa e os pesquisadores... e foi aí que a chocante realidade veio à tona. Oswald Iten, um antropólogo e jornalista suíço vai às cavernas e passa juntamente com auxiliares, incluindo o repórter filipino Joey Lozano - cerca de duas horas com seis membros tasaday. O depoimento de Iten revela que as cavernas, no instante de sua chegada, estavam todas desertas e que, simplesmente, aquela comunidade supostamente paleolítica - agora vestida de jeans e t-shirts - era nada mais que integrantes de conhecidas tribos locais que, sob pressão de Elizalde, passaram a se comportar, diante das lentes, como da Idade da Pedra em troca de benesses assistencialistas. Diria Iten: "A fraude parecia óbvia já há tempos. Alguns queriam saber por que as cavernas eram tão limpas. Mesmo uma tribo da Idade da Pedra teria produzido lixo - como cascas de caranguejo ou restos de comida. E como uma pequena tribo poderia evitar a consanguinidade? Além de tudo, estes indígenas também se posicionavam a apenas três horas a pé de uma vila moderna. Parece estranho não terem encontrado a aldeia enquanto procuravam por comida". "A fraude parecia óbvia já há tempos. Alguns queriam saber por que as cavernas eram tão limpas. Mesmo uma tribo da Idade da Pedra teria produzido lixo" Em outro episódio, a revista alemã Stern, em 1986, enviou jornalistas para algumas entrevistas com o grupo. Logo a seguir, aqueles alemães declararam ter notado partes de roupas de tecido por baixo das folhagens com as quais os nativos tentavam se fazer passar por primitivos. Claramente, foram pegos de surpresa pelos jornalistas e, desesperados, rapidamente se "ajeitaram" na forma que puderam... ————————————————————————————————————————————— 25 Seja como for, mais interrogações se somariam a tantas mal explicadas questões, como o porquê dos membros da tribo serem tão resistentes a doenças (pois o isolamento absoluto deveria lhes atribuir o efeito contrário), e da razão de tantos de seus instrumentos e utensílios parecerem cortados com uso de facas de aço, se todos ali deveriam desconhecer o metal. Agora, todo o cenário parecia revelar um grande embuste montado para gerar mais dinheiro, assim como desviar a atenção dos excessos totalitaristas nas Filipinas. A ideia seria maquiar o país como mantenedor de um Éden pacífico onde a inocência e a paz fossem ali soberanas. Mas os eventos de então, parecendo conduzir ao sepultamento do caso, também traziam algumas revelações em sentido oposto. Ainda em 1986, durante o segmento intitulado para o programa 20/20 da ABC, dois jovens tasaday disseram ao entrevistador, por meio de Galang, um tradutor contratado, que eles realmente não eram tasaday. Dois anos depois, os mesmos tasaday - de nomes Lobo e Adug - vieram a público confessar que, na verdade, haviam mentido na entrevista encorajados pelo tradutor, que lhes prometera cigarros e roupas caso topassem entrar na farsa. Galang ainda confirmaria a declaração de ambos. Posteriormente foi a vez de um acadêmico de Linguística da Universidade do Havaí, o Professor Lawrence A. Reid, trazer mais elementos de grande relevância após ter passado 10 meses com a tribo e mais alguns grupos linguísticos vizinhos entre 1993 e 1996. O professor concluiu que provavelmente eram tão primitivos quanto aparentavam de quando surgiram para o mundo, e que sua língua era um dialeto diverso daquele do grupo mais próximo. Entretanto, ele viria a publicar no periódico Linguistic Archaeology que, após uma análise pormenorizada, verificou-se que, na verdade, havia cerca de 300 variações do dialeto tasaday no Kulaman (parte do Manobo). Reid ainda declarou que os tasaday tinham se espalhado fora da comunidade do Cotabato há não mais de dois séculos - provavelmente em razão de algum surto de doença. Mais uma vez a versão do embuste ganhava força, já que a impressão era que se esculpia a imagem da tribo como do "bom selvagem"; e seu mundo, o idílico símbolo de uma nação notoriamente opressora. "O cenário parecia revelar um grande embuste montado para gerar mais dinheiro, assim como desviar a atenção dos excessos totalitaristas nas Filipinas" Mas Elizalde estava longe de se render. Empenhou-se em defesa dos tasaday quando o congresso ia a fundo na história para descobrir alguma provável farsa. Em 1988 leva membros da aldeia para Manila a fim de abrir um processo contra os "caluniosos" professores filipinos. E, apesar das desconfianças de que um dos redatores dos discursos da presidente Corazon Aquino fosse um amigo do mesmo, naquele ano, a própria declara que os tasaday eram uma "legítima tribo da Idade da Pedra." Afinal, os tasaday eram, sim, muito rudimentares, mas não levavam, propriamente, uma vida ao estilo paleolítico. Estudos antropológicos apontaram, além do fato de pertencerem ao grupo Lumad, que estes seminômades adotavam a economia de subsistência de forrageamento. Sua dieta consistia de alimentos silvestres e caseiros, extraídos de ————————————————————————————————————————————— 26 pequenos jardins, onde a maior parte era obtida com o esescambo de produtos florestais com os agricultores manobo - a não mais que 40 quilômetros de distância. Quanto às cavernas, apenas as procuravam para se abrigar à noite em razão de suas idas atrás de comida. Na verdade, eles viviam em cabanas simples. Assim, mantinham certo contato com outros grupos manobo do Cotabato do Sul, especialmente o povo de Blit (distando a apenas 4 quilômetros dos tasaday). "Os tasaday viviam em cabanas simples. Assim, mantinham certo contato com outros grupos manobo do Cotabato do Sul, especialmente o povo de Blit" Hoje os tasaday, obviamente, cederam à imperiosa força da Nova Ordem, da evolução cultural e tecnológica de um mundo geopoliticamente muito transformado, e se encontram em situação de pobreza - a exemplo do que ocorre com os povos indígenas no continente americano. A farsa, tida como a maior na Antropologia depois do capítulo "Homem de Piltdown", foi um fato. Porém, mesmo os catedráticos mais exigentes concordam que a descoberta trouxe alguma novidade para o cenário da Antropologia, além da sensação de espanto geral. Lembremos que a Humanidade conquistara o espaço havia pouco mais de uma década, e que a Guerra do Vietnã expunha o que havia de pior em nossa natureza. Um retorno ao Éden pacífico, ainda que inconsciente, talvez fosse o sonho de muito bicho-homem naqueles dias tão singulares na História. SAIBA + NANCE, John. The Gentle Tasaday: A Stone Age People in the Philippine Rain Forest. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975. HEMLEY, Robin. Invented Eden: The Elusive, Disputed History of the Tasaday. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2003. HEADLAND, Thomas N. (ed.). The Tasaday controversy: Assessing the evidence. American Anthropological Association Scholarly Series, 28. Washington, D.C.: American Anthropological Association, 1992. ITEN, Oswald. Die Tasaday: Ein Philippinischer Steinzeitschwindel. Neue Zurcher Zeitung: Zurich, 12 abr. 1986, p. 7789. Átila Soares da Costa Filho é designer, especialista em História da Arte, Filosofia e Sociologia. Também é autor de A Jovem Mona Lisa e outras questões curiosas na História da Arte (Ed.Multifoco, Rio). ÁTILA SOARES COSTA FILHO é designer, especialista em História da Arte, Filosofia e Sociologia. Também é autor de A Jovem Mona Lisa e outras questões curiosas na História da Arte (Ed.Multifoco, Rio). Revista LEITURAS DA HISTÓRIA, Abril de 2016. ————————————————————————————————————————————— 27