Baixar PDF

Transcrição

Baixar PDF
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
CONCEPÇÕES E PERCEPÇÕES SOBRE NATUREZA DA CIÊNCIA E
IMAGEM DO CIENTISTA NA PERSPECTIVA DE ESTUDANTES DA
ILHA DE MARÉ, SALVADOR (BA)
Marsílvio Gonçalves Pereira (DME/CE/UFPB; PPGEFHC/UFBA-UEFS; PPGE-FE-USP)
Marcos Antonio de Jesus Lima (Professor da Educação Básica/Secretaria de Educação do
Estado da Bahia)
Rosiléia Oliveira de Almeida (FACED/UFBA; PPGEFHC/UFBA-UEFS)
Resumo:
O objetivo desta investigação é analisar concepções e percepções acerca da natureza da
ciência e da imagem do cientista entre estudantes da Ilha da Maré, em Salvador-Bahia,
constituída por uma comunidade quilombola. Os dados foram coletados entre estudantes do 9º
ano do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio, do Colégio Estadual Marcílio
Dias,provenientes em sua grande maioria da comunidade citada acima. Os resultados
mostram algumas concepções e percepções inadequadas de natureza da ciência e distorções
sobre a imagem do cientista, com o predomínio de uma concepção empírico-indutivista e
ateórica da ciência. Isto pode constituir-se em obstáculo para o processo de enculturação
científica e para uma educação científica sócio-culturalmente contextualizada.
Palavras-chave: Natureza da Ciência; Imagens do Cientista; Estudantes Quilombolas; Cultura
Científica; Análise de conteúdo.
Introdução
No processo de enculturação científica um desafio na atualidade é promover uma
melhor compreensão da natureza da ciência (NdC) e suas interações com a sociedade e a
tecnologia, não só atuando em uma melhor aprendizagem da ciência e seus métodos, mas
também impulsionando uma visão mais humanista da instituição científica (VILDÓSOLATIBAUD, 2009).
A inserção da natureza da ciência como objetivo explícito tem lugar de destaque no
campo da Didática das Ciências (ACEVEDO, 2008; LEDERMAN, 2007; ADÚRIZ-BRAVO,
2005).
Segundo Petrucci e Dibar-Ure (2001), um dos fins básicos da educação científica é
garantir que os estudantes adquiram uma compreensão adequada da NdC, que, por sua vez, é
um pré-requisito para ensinar uma “ciência para todos” (LIU; LEDERMAN, 2007). Em vista
disso, explica-se a importância de conhecer as concepções de ciência apresentadas por
5742
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
estudantes e professores, em busca de uma possível melhoria na qualidade do ensino
científico (SCHEID; PERSICH; KRAUSE, 2009).
A Natureza da Ciência (NdC) emerge nos anos oitenta como uma fértil e promissora
linha de pesquisa diante da necessidade da aproximação da Didática das Ciências com a
Epistemologia. Segundo Lederman (1992), as primeiras pesquisas agrupavam-se em quatro
dimensões: avaliar as concepções dos estudantes acerca da natureza da ciência; desenvolver,
implementar e avaliar propostas curriculares para melhorar as concepções dos estudantes;
avaliar as concepções dos professores de Ciências e tentar melhorá-las; e identificar as
relações entre as concepções dos professores, com a prática em sala de aula e com as
concepções dos estudantes.
O presente trabalho enquadra-se na primeira dimensão, tendo como objetivo investigar
as concepções acerca da natureza da ciência entre estudantes do 9º ano do ensino fundamental
e 3º ano do ensino médio de uma escola pública estadual baiana, localizada no município de
Salvador, atendendo em sua grande maioria estudantes provenientes de uma comunidade
quilombola (Ilha de Maré). Adicionalmente, são investigadas as percepções que eles têm
acerca da imagem do cientista e procura-se avaliar como as concepções e percepções dos
estudantes acerca da natureza da ciência e da imagem do cientista estão relacionadas com suas
atitudes em relação à ciência.
Procedimentos metodológicos
A pesquisa foi desenvolvida no Colégio Estadual Marcílio Dias, localizado na Base
Naval, em São Thomé de Paripe, no município de Salvador – Bahia. Os estudantes deslocamse da ilha até a escola através de barcos de moradores da própria comunidade, sendo
financiados pela Prefeitura de Salvador (ARGOLOet.al., 2012).
A Ilha de Maré situa-se na Baía de Todos os Santos, constando como uma comunidade
quilombola do município de Salvador, BA, e não disponibiliza escolas que atendam as séries
finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) e o Ensino Médio, por isso os alunos ali
residentes necessitam percorrer cerca de 50 km da Ilha até a localidade da escola.
Participaram desta pesquisa 22 alunos do 9º ano do ensino fundamental pertencentes a
duas turmas – turma A (11 alunos) e turma B (11 alunos), respectivamente, sendo 12 do sexo
feminino e 10 do sexo masculino; e 14 alunos do 3º ano do ensino médio, sendo 12 do sexo
feminino e 02 do sexo masculino.
Para o acesso à escola, que fica no continente, eles enfrentam algumas dificuldades: a
viagem às vezes é interrompida, principalmente em períodos chuvosos e/ou com ventos
5743
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
intensos, devido aos riscos para a segurança e paraa vida dos estudantes, então eles não
podem ir à escola. Muitos deles têm dificuldade de ler, escrever e calcular até no 3º ano do
ensino médio.
Para o presente estudo, utilizou-se uma abordagem múltiplo-instrumental que consistiu
em duas etapas. As atividades utilizadas na primeira etapa da pesquisa foram: responder um
questionário aberto sobre a ciência; escrever uma carta sobre o cientista (CASTELFRANCHI
et al., 2008); e o tradicional Draw-a-Scientist-Test (DAST), desenvolvido por Chambers
(1983), que consiste em desenhar um cientista em seu local de trabalho. A segunda etapa
consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas, as quais foram gravadas em áudio e
posteriormente transcritas.
As respostas individuais para questões abertas em um questionário ou uma entrevista
em geral contribuem para a pesquisa em natureza da ciência por gerar temas em maior detalhe
do que os normalmente obtidos em estudos desta área (NEUENDORF, 2002; WALLS, 2012).
Os indivíduos foram convidados a redigir uma carta como a utilizada no estudo de
Castelfranchi et al. (2008). Segundo Barata (2004), a redação deste tipo de carta consiste em
pedir que o aluno escreva o que conhece a respeito do cientista e suas atividades no intuito de
informar alguém. Desta forma, esse procedimento pode detectar várias dimensões da ciência.
No nosso estudo, a carta deveria contar como é o cientista, o que ele faz, como é o local onde
ele trabalha e como é a sua vida. A carta seria supostamente destinada a crianças e a jovens de
uma comunidade isolada que não conhecem e nunca viram um cientista e desconhecem suas
atividades. A carta deveria ainda conter um desenho de um cientista em seu local de trabalho,
consistindo o Draw-a-Scientist-Test (DAST), ferramenta desenvolvida por Chambers (1983)
que tem sido tradicionalmente utilizada em diversos estudos para revelar imagens acerca do
cientista.
Em um segundo momento, realizou-se entrevistas semiestruturadas com alguns
estudantes visando esclarecer alguns aspectos referentes aos demais instrumentos utilizados e
refinar a interpretação dos dados.
As respostas às questões, cartas, entrevistas e desenhos foram submetidas à Análise de
Conteúdo (BARDIN, 2008) com o auxílio do software livre Weft QDA versão 1.0.1. Este tipo
de análise é definido por Krippendorff (2004) como “análise do conteúdo manifesto e latente
de um corpo de material comunicado (como um livro ou filme) através da classificação,
tabulação e avaliação de seus símbolos e temas-chave a fim de determinar o seu significado e
provável efeito”, tendo se mostrado o mais apropriado para este tipo de estudo (WALLS,
2012).
5744
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
Para a construção de categorias temáticas foram utilizados critérios semânticos. A
categoria temática “compreensão de natureza da ciência” foi definida a priori (apresentada a
seguir), outras foram construídas durante o processo de análise dos dados, tais como “como é
o trabalho da ciência”, “qualidades do cientista (como ele é)”, “o que ele faz”, seu “local de
trabalho” e “como é sua vida”.
Para analisar a “compreensão de natureza da ciência” dos estudantes, as respostas do
questionário foram categorizadas segundo a rede conceitual proposta por Wang e Marsh
(2002) (quadro 1), também utilizada por Ravanal e Quintanilla (2010), trabalhando com
professores de Biologia em exercício, e por PEREIRA et al. (2012), trabalhando com
estudantes de um curso de licenciatura em ciências biológicas.
Quadro 1 - Rede conceitual de Wang e Marsh (2002).
Enriquecimento da apresentação do conhecimento
científico;
Compreensão conceitual
Ênfase em como a ciência foi construída;
Ênfase na natureza provisória do conhecimento
científico.
Ênfase nos processos de desenho de experimentos;
Compreensão procedimental
de investigação;
e de conclusão e inferência.
Fatores psicológicos;
Compreensão contextual
sociais;
e culturais.
As imagens acerca da natureza da ciência expressas pelos alunos também foram
analisadas quali-quantitativamente. Para isto, foram utilizadas as sete imagens mais
frequentes transmitidas pelo ensino de ciências relatadas na literatura (GIL-PÉREZ et al.,
2001; FERNÁNDEZ et al., 2002): visão empírico-indutivista e ateórica da ciência; visão
rígida da ciência; visão aproblemática e ahistórica da ciência; visão exclusivamente analítica
da ciência; visão acumulativa da ciência; visão individualista e elitista da ciência; visão
descontextualizada da ciência.
5745
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
Resultados e Discussão
Como é o trabalho da ciência e compreensão acerca da natureza da ciência
A análise de conteúdo realizada a partir do conjunto de todos os instrumentos
utilizados nesta pesquisa nos permitiu formar duas categorias acerca da natureza da ciência,
conforme exibido nas tabelas 1 e 2, sendo elas: “como é o trabalho da ciência” e
“compreensão de natureza da ciência”.
Na categoria “como é o trabalho da ciência”, predominou entre os estudantes do 9º ano
do ensino fundamental uma imagem de ciência associada à invenção e inovação tecnológica
(36,4% dos estudantes), conforme mostrado na tabela 1. Outros 31,8%apresentaram uma
imagem de ciência relacionada à descoberta e compreensão da realidade, com ideias
fortemente empiristas. Alguns desses estudantes (18,2%) também associaram o trabalho
científico com a experimentação, indicando uma associação da ciência com descobertas,
embora se saiba que as descobertas não decorrem exclusivamente de práticas experimentais,
nem tampouco a experimentação resulta sempre em descobertas.
Entre os estudantes do 3º ano do ensino médio, na categoria “como é o trabalho da
ciência”, houve o predomínio de uma visão de ciência associada à descoberta e compreensão
da realidade (92,9%), seguida de experimentação (42,9%), conforme demonstrado na tabela 2.
Quanto à categoria compreensão de NdC, os estudantes do 9º ano apresentaram uma
concepção de ciência descontextualizada, não sendo considerados os fatores sociais, culturais
ou psicológicos envolvidos na atividade científica. Predominou entre esses estudantes uma
compreensão conceitual e procedimental (45,5%). No entanto, os estudantes do 3º ano do
ensino médio apresentaram uma concepção de ciência mais procedimental (92,9%) em
relação às dimensões contextual (35,7%) e conceitual (28,6%) de NdC.
Nascimento e Pereira (2013), trabalhando com estudantes do 1º ano do ensino médio
na disciplina Biologia, mostraram que estes também assinalaram maior importância aos
aspectos conceituais e procedimentais da NdC. Ravanal e Quintanilla (2010), trabalhando
com professores de Biologia chilenos em atividade, mostraram que estes também deram
maior importância aos aspectos procedimentais e conceituais, em relação aos aspectos
contextuais, prevalecendo uma noção empirista da construção do conhecimento.
Percebe-se que as concepções de ciência e imagens de cientistas são configuradas e
estão relacionadas com subjetividades pessoais e coletivas (SANTOS, 2010), influenciadas
por práticas da cultura escolar, que independentemente do grupo cultural a que atende tem
promovido um ensino de ciências e de Biologia dogmático e que obedece a um padrão da
5746
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
ciência ocidental/tradicional. Apesar da importância que tem sido dada na educação científica
à pluralidade de saberes na sala de aula, e que se apoia numa base epistemológica que defende
a ciência como uma produção cultural bem demarcada em relação aos demais saberes
(COBERN; LOVING, 2001), percebe-se que a escola e os professores, em suas aulas de
Ciências e Biologia, não têm conseguido promover uma relação dialógica entre esses
territórios demarcados de modo a se ter uma articulação entre diferentes padrões culturais e
modelos cognitivos (TURA, 2002), o que reforça “em maior ou menor intensidade, o
distanciamento da escola em relação ao contexto social mais amplo” (ALMEIDA, 2014).
Tabela 1 – Temas emergentes da análise de conteúdo a respeito das concepções de natureza da ciência (a
partir da análise de respostas a um questionário acerca da natureza da ciência, cartas sobre o cientista e
entrevistas semi-estruturadas) de estudantes do 9º ano do ensino fundamental do Colégio Estadual Marcílio
Dias, no município de Salvador, Bahia (total de 22 estudantes).
Categoria
Como é o trabalho da ciência
Temas
Invenção e inovação tecnológica
Descoberta e compreensão da realidade
Não explicitado ou sem sentido
Experimentação
Divulgação e ensino
Compreensão de NdC*
Conceitual
Procedimental
Contextual
N**
8
7
6
4
1
%
36,4
31,8
27,3
18,2
4,5
10
10
4
45,5
45,5
18,2
* Segundo a rede conceitual proposta por Wang &Marsh (2002)
** Número de estudantes que se enquadram em cada tema.
Tabela 2 – Temas emergentes da análise de conteúdo a respeito das concepções de natureza da ciência (a
partir da análise de respostas a um questionário acerca da natureza da ciência, cartas sobre o cientista e
entrevistas semi-estruturadas) de estudantes do 3º ano do ensino médio do Colégio Estadual Marcílio Dias,
no município de Salvador, Bahia (total de 14 estudantes).
Categoria
Como é o trabalho da ciência
Temas
Descoberta e compreensão da realidade
Experimentação
Divulgação e ensino
Invenção e inovação tecnológica
N
13
6
2
2
%
92,9
42,9
14,3
14,3
Compreensão de NdC*
Procedimental
Contextual
Conceitual
13 92,9
5 35,7
4 28,6
* Segundo a rede conceitual proposta por Wang &Marsh (2002)
5747
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
Deformações da natureza da ciência
Na análise das deformações da natureza da ciência e do trabalho científico expressas
pelos estudantes, de acordo com a tabela 3, predominou uma visão aproblemática e ahistórica
(90,9%) entre os alunos do 9º ano do ensino fundamental e predominaram as visões
aproblemática eahistóricae descontextualizada (85,7%), entre os alunos do 3º ano do ensino
médio.
Os trabalhos de Oki e Moradillo (2008) e Teixeira, Freire-Júnior e El-Hani (2009) são
bons exemplos do uso de abordagens histórico-filosóficas na modificação das concepções de
estudantes de cursos de Química e Física, respectivamente, acerca da NdC, durante
disciplinas da graduação. Os autores detectaram um amadurecimento na compreensão de NdC
entre os estudantes, entretanto, relataram resistências a mudanças, tais como a permanência de
concepções realistas ingênuas e concepções empírico-indutivistas.
Em outro estudo, Ibañes-Orcajo e Martínez-Aznar (2007), analisando a mudança
conceitual acerca da NdC entre estudantes da educação secundária durante o ensino de
genética através de uma unidade baseada em uma metodologia de resolução de problemas,
verificaram mudanças na imagem de cientista no grupo experimental em relação ao grupo
controle, revelando uma mudança para uma imagem menos individualista e elitista da ciência.
Tabela 3 - Porcentagens de concepções deformadas acerca da Natureza da Ciência (a partir das cartas sobre o
cientista) entre estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental e do 3º ano do ensino médio do Colégio Estadual
Marcílio Dias, no município de Salvador, Bahia (total de 22 e 14 estudantes, respectivamente).
9º ano
Visões distorcidas da NdC*
N
3º ano
Aproblemática e ahistórica
20
%
90,9
N
%
12
85,7
Descontextualizada
18
81,8
12
85,7
Empírico-indutivista e ateórica
11
50,0
10
71,4
Individualista e elitista
10
45,5
8
57,1
Acumulativa
1
4,5
2
14,3
Rígida, exata e infalível
1
4,5
0
0,0
Exclusivamente analítica
0
0.0
0
0,0
Nenhuma distorção
0
0,0
0
0,0
* Segundo Gil-Pérez et al. (2001) e Fernández et al. (2002).
5748
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
Imagens do cientista - Análise de conteúdo
A análise de conteúdo a partir da redação de cartas sobre o cientista, desenhos e
realização de entrevistas semi-estruturadas com os estudantes do 3º ano do ensino médio
permitiu formar quatro categorias, conforme a tabela 4, sendo elas: “qualidades (como ele é)”,
“o que ele faz”, “local de trabalho” e “como é sua vida”.
No que se refere às qualidades do cientista, as características mais comuns atribuídas
pelos estudantes foram “curioso” (21,4 %), seguida de “muito capacitado” (21,4%). Walls
(2012) considerou as características “estudioso” e “inteligente”, atribuídas pelos estudantes
com que trabalhou (de oito anos de idade), como positivas.
De acordo com este grupo de estudantes, os cientistas são estudiosos, atentos,
criativos, inteligentes e gostam de ajudar as pessoas e tem quem associe a figura do cientista a
um louco, como uma característica negativa.
Também é importante destacar a importância dada à qualidade “curioso”. Neste
sentido, Maturana (2001, p. 133) argumenta que “a emoção fundamental que especifica o
domínio de ações no qual a ciência acontece como uma atividade humana é a curiosidade, sob
a forma do desejo ou paixão pelo explicar”.
Ibañes-Orcajo e Martínez-Aznar (2007), analisando a mudança conceitual acerca da
natureza da ciência em estudantes de educação secundária (15 anos de idade), os quais
participaram de uma unidade de ensino em genética baseada em uma metodologia de
resolução de problemas abertos, verificaram uma imagem do cientista no grupo experimental
expressa da seguinte maneira: “Eles devem ser inteligentes, criativos, com facilidade para
selecionar as melhores coisas, com uma mente muito aberta e chegar a conclusões por eles
mesmos”. No grupo controle, entretanto, observou-se uma imagem de cientista “persistente,
inteligente, paciente, solitário, perfeccionista, exigente consigo mesmo, interessado no atual”.
Quanto às atividades do cientista, 78,6% dos alunos associaram-nas à realização de
experimentos e pesquisa, reforçando uma concepção empirista e indutivista do trabalho
científico. Também houve associação com a descoberta e produção de conhecimento (50,0%),
com o estudo (21,4%), com invenções e desenvolvimento de produtos (14,3%).
Walls (2012) reportou uma maior ligação dos cientistas com atividades relacionadas
com a solução de problemas (70%) especificamente ligados à aprendizagem sobre o mundo.
5749
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
De forma semelhante, no grupo experimental do estudo de Ibañes-Orcajo e Martínez-Aznar
(2007), o trabalho científico foi assumido como um processo de solução de problemas.
Tabela 4 - Temas emergentes na análise de conteúdo a respeito das imagens do cientista (a partir da
análise de cartas sobre o cientista, desenhos e entrevistas semi-estruturadas) entre estudantes do 3º ano
do Ensino Médio do Colégio Estadual Marcílio Dias, no município de Salvador, Bahia (total de 14
estudantes).
Categorias
Qualidades (Como ele é)
Temas
Curioso
Muito capacitado
Estudioso
Gosta de ajudar as pessoas
Não mencionado
Atento
Criativo
Inteligente
Louco
N
3
3
2
2
2
1
1
1
1
%
21,4
21,4
14,3
14,3
14,3
7,1
7,1
7,1
7,1
O que ele faz
Realiza experimentos / pesquisa
Descobre / produz conhecimento
Estuda
Cria invenções / Desenvolve produtos
11
7
3
2
78,6
50,0
21,4
14,3
Local de trabalho
Laboratório
Campo (ambiente natural e florestas)
Não mencionado
Diversos locais
Em casa
11
3
3
2
1
78,6
21,4
21,4
14,3
7,1
Como é sua vida
Em constante busca por conhecimentos
Vida difícil
Não mencionado
Normal
Corrida, sem tempo para nada
Vive em sociedade
3
3
2
2
1
1
21,4
21,4
14,3
14,3
7,1
7,1
Quanto ao local de trabalho do cientista, predominou o laboratório (78,6%), que há
muito tempo é relatado como o local de trabalho estereotipado e icônico dos cientistas
(WALLS, 2012).
Considerações finais
Diante dos resultados, consideramos relevante a abertura de espaços para um maior
enfoque da Natureza da Ciência, daHistória, Filosofia e Sociologia da Ciência, das relações
5750
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
CTSA e das abordagens multiculturais na educação científica e na formação de seus
professores. Ainda são escassos os trabalhos de pesquisa nesse contexto.
De acordo com a epistemologia atual e do contexto pesquisado, esse trabalho aponta
uma série de concepções inadequadas de NdC entre os estudantes, predominando uma
concepção descontextualizada e socialmente neutra da ciência, em que são desconsideradas as
complexas relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente.
Verificou-se também uma forte presença de concepções empírico-indutivistas e
ateóricas da ciência, em que é esquecido o papel essencial das hipóteses e teorias na
orientação da investigação. Não se percebe quase nenhuma diferença entre as concepções e
percepções de natureza da ciência e imagens de cientista entre os estudantes do 9º ano do
ensino fundamental e 3º anodo ensinomédio, o que sinaliza para a pouca influência
daeducação científica escolar, no modelo em que está sendo trabalhada,nos processos de
formação e enculturação científica desses estudantes.
Referências
ACEVEDO, J. Reflexiones sobre las finalidades de laenseñanza de lasciencias: Educación
científica para laciudadanía.Revista Eureka sobre Enseñanza y Divulgación de lasCiencias, v.
1, n. 1, p. 3-16, 2008. Disponível em: <http://www.apaceureka.org/revista/Larevista.htm>
Acesso em: 04 fev. 2013.
ADÚRIZ-BRAVO,
A.
Una
introducción
a
lanaturaleza
de
laciencia.
La
epistemologíaenlaenseñanza de lascienciasnaturales. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2005.
ALMEIDA, R. O. O entendimento do conceito de superfície específica por professores e
estudantes: abordagens de pesquisa ao longo da trajetória de uma professora-pesquisadora.
Ciência & Ensino, v. 3, n. 1 (Especial 18 anos gepCE), p. 95-112, 2014.
ARGOLO, M. J. S. et al. Ensinando Ciências Naturais a partir do cotidiano dos alunos do
Colégio Estadual Marcílio Dias, Salvador-BA. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE ENSINO DE
CIÊNCIA E TECNOLOGIA (III SINECT), 3., 2012, Ponta Grossa. Anais... Ponta Grossa,
PR: UTFPR, 2012.
BARATA, G. Crianças refletem o imaginário social. Ciência e Cultura, São Paulo, v.56, n.2,
p.18-19, 2004.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. 19. ed. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2008.
5751
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
CASTELFRANCHI, Y.et al. O cientista é um bruxo? Talvez não: ciência e cientistas no olhar
das crianças. In: MASSARANI, L. Ciência e criança: a divulgação científica para o público
infanto-juvenil. Rio de Janeiro: Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2008. p. 3-19.
CHAMBERS, D. Stereotypic images of the scientist: the Draw-a-scientist Test. Science
Education, New York, v. 67, p.255-265, 1983.
COBERN, W. W.; LOVING, C. C. Defining ‘‘science’’ in a multicultural world: Implications
for science education. Science Education, v. 85, n. 1, p. 50-67, 2001.
FERNÁNDEZ, I.et al. Visiones deformadas de laciencia transmitidas por laenseñanza.
Enseñanza de lasCiencias, n.20, p.477-488, 2002.
GIL-PÉREZ, D. et al.Para uma imagem não-deformada do trabalho científico. Ciência e
Educação, v.7, n.2, p.125-153, 2001.
IBAÑES-ORCAJO, M.T.; MARTÍNEZ-AZNAR, M.M. Solving problems in genetics, part
III: change in the view of the nature of science. International Journal of Science Education,
v.29, n.6, p.747-769, 2007.
KRIPPENDORFF, K. Content analysis: an introduction to its methodology. Thousand Oaks,
CA: Sage, 2004.
LEDERMAN, N.G. Nature of science: past, present, and future. In: ABELL, S.;
LEDERMAN, N. Handbook of research on science education. Mahwah, NJ: Lawrence
Erlbaum Associates, 2007. p. 831-880.
LEDERMAN, N.G. Students’ and teachers’ conceptions of the nature of science: a review of
the research. Journal of Research in Science Teaching, New York, v. 29, n. 4, p. 331-359,
1992.
LIU, S.Y.; LEDERMAN, N.G. Exploring prospective teachers’ worldviews and conceptions
of nature of science. InternationalJournalof Science Education, v.29, n.10, p.1281-1307,
2007.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
NASCIMENTO, C. V. C.; PEREIRA, M. G. Concepções de natureza da ciência entre
estudantes do primeiro ano do ensino médio de uma escola pública de Mamanguape
(Paraíba). In: ENCONTRO REGIONAL DE BIOLOGIA DO NORDESTE – REGIONAL 5
DA SBENBIO, 5., Natal, 2013. Anais... Natal: UFRN, 2013.
NEUENDORF, K.A. The content analysis guidebook. Thousand Oaks, CA: Sage, 2002.
OGAWA, M. Science education in a multi-science perspective. Science Education, v. 79, n.
5, p. 583- 593, 1995.
5752
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
OKI, M. C.M.; MORADILLO, E.F. O ensino de história da química: contribuindo para a
compreensão da natureza da ciência. Ciência e Educação, v.14, n.1, p.67-88, 2008.
PEREIRA, M.G.et al. Concepções e percepções de natureza da ciência e de cientista entre
estudantes de um curso de licenciatura em ciências biológicas: alguns obstáculos na educação
científica. In: ENCUENTRO IBEROAMERICANO SOBRE INVESTIGACIÓN EN
ENSEÑANZA DE LAS CIENCIAS,4., 2012, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS,
2012.
PETRUCCI, D.; DIBAR-URE, M.C. Imagen de lacienciaenalumnosuniversitarios: uma
revisión y resultados. Enseñanza de las Ciências, v.19, n.2, p.217-229, 2001.
RAVANAL,
E.M.;
QUINTANILLA,
M.G.
Caracterización
de
lasconcepciones
epistemológicas delprofesorado de Biologíaenejercicio sobre lanaturaleza de la ciência.
Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciências, v.9, n.1, p.111-124, 2010.
SANTOS, J. B. Ciência, saber local e construção de valores. Fênix – Revista de História e
Estudos Culturais, v. 7, n. 2, p. 1-22, 2010.
SCHEID, N. M. J.; PERSICH, G. D. O.; KRAUSE, J. C. Concepção de natureza da ciência e
a educação científica na formação inicial. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM
ENSINO DE CIÊNCIAS, 7., 2009, Belo Horizonte. Anais...Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2009.
TEIXEIRA, E.S.; FREIRE-JÚNIOR, O.; EL-HANI, C.N. A influência de uma abordagem
contextual sobre as concepções acerca da natureza da ciência de estudantes de física. Ciência
e Educação, v.15, n.3, p.529-556, 2009.
TURA, Maria de Lourdes Rangel. Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas.
In:
LOPES,
Alice
Casimiro;
MACEDO,
Elizabeth
(Org.).
Currículo:
debates
contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2002. p. 150-173.
VILDÓSOLA-TIMBAUD, X. Lasactitudes de profesores y estudiantes, y lainfluencia de
factores
de
aula
enlatransmisión
de
lanaturaleza
de
lacienciaenlaenseñanza
secundaria.2009. Tesisdoctoral, Universidad de Barcelona, Barcelona, 2009.
WALLS, L. Third grade africanamerican students’ views of the nature of science. Journal of
Research in Science Teaching, v.49, n.1, p.1–37, 2012.
WANG, H.; MARSH, D. Science instruction with a humanistic twist: teacher´s perception
and the practice in using the history of science in their classrooms. Science and Education,
Dordrecht, v. 11, p. 169-189, 2002.
WEFT. WEFT QDA. Versão 1.0.1, 2006. Disponível em: <http://www.pressure.to/qda>.
Acesso em: 04 fev. 2013.
5753
SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia