Livro Ricardo e Tatyana
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Livro Ricardo e Tatyana
Poemas de Ramon Llull Desconsolo (1295) Canto de Ramon (1300) O Concílio (1311) Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos Poemas de Ramon Llull Desconsolo (1295) Canto de Ramon (1300) O Concílio (1311) Prefácio Alexander Fidora ICREA Research Professor Universitat Autònoma de Barcelona Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (IBFCRL) Angelicvm Instituto Brasileiro de Filosofia e de Estudos Tomistas CEMOrOc Centro de Estudos Medievais – Oriente & Ocidente 2009 2 © 2009, Sétimo Selo Ltda. www.edsetimoselo.com.br – (021) 2242-7634 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicosfotográficos, gravação ou quaisquer outros. Título Original Poemas de Ramon Llull Prefácio Alexander Fidora Imagem da Capa Detalhe da iluminura 4 do Breviculum (Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur: St. Peter perg. 92). Arte BMP Graphic Design & Propaganda ([email protected]) Coordenação Editorial Octacílio Freire e Sidney Silveira ISBN 978-58-99255-10-0 __________________________ CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ L773p Llull, Ramon, ca. 1232-1315 Poemas de Ramon Llull / [traduzidos por] Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos ; prefácio de Alexander Fidora. - Rio de Janeiro : Sérimo Selo, 2009. 87p. Conteúdo: Desconsolo (1295) - Canto de Ramon (1300) - O Concílio (1311) ISBN 978-85-10-0 1. Poesia catalã - Obras anteriores a 1800. 2. Filosofia medieval. I. Costa, Ricardo Luiz Silveira da, 1962-. II. Lemos, Tatyana Nunes. I. Título. II. Título: Desconsolo. III. Título: Canto de Ramon. IV. Título: O Concílio. 09-3514. 16.07.09 23.07.09 CDD: 849.91 013921 CDU: 821.134.3-1 __________________________ 3 Índice Prefácio Alexander Fidora ICREA Research Professor Universitat Autònoma de Barcelona / IBFCRL 05 Apresentação 07 Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos Desconsolo (1295) 10 Canto de Ramon (1300) 55 O Concílio (1311) 60 4 Prefácio O filósofo maiorquino Ramon Llull (1232-1316) foi um pensador crítico avant la lettre. Em suas obras abundaram críticas aos trovadores, aos cavaleiros e a muitos outros segmentos sociais. Com efeito, toda a sua vasta obra pode e deve ser lida como uma apaixonada crítica à Filosofia e Teologia imperante em seus dias. E mais: Llull foi, antes de tudo, um pensador em crise. Com isso, não nos referimos à suposta crise psicológica que sofreu, a chamada Crise de Gênova (1292/1293), da qual o próprio Llull nos contou como se fosse uma enfermidade, e que já foi interpretada como uma profunda depressão. Referimo-nos à própria crise da razão: é dessa que trataram as poesias que aqui foram, pela primeira vez, traduzidas para o português. Ramon Llull acreditava na força da razão como poucos pensadores antes e depois dele. Convencido de que o discurso argumentativo era o único caminho possível para resolver os grandes problemas e conflitos da Humanidade, ele dedicou toda a sua vida à criação e propagação de um sistema racional que pudesse ser aceito por todos os interlocutores possíveis, independente de seu particular contexto cultural ou religioso: a Ars. Com esse sistema, Llull acreditava ter chegado a destilar a essência da própria racionalidade, descobrindo, com isso, o remédio universal para todos os males de seu tempo. Assim pensava Llull. Mas e seus contemporâneos? Aqui se encontra a crise da razão, tanto no tempo de Llull como nos dias de hoje. A razão não é solitária: sempre foi e será, por sua própria natureza, intersubjetiva. Não basta saber (ou crer) que temos razão, é necessário a confirmação por parte dos demais, da comunidade discursiva a qual pertencemos como seres pensantes, pois a verdade não é a descoberta de um só: deve ser validada e reconhecida de maneira intersubjetiva. O Desconsolo (1299) e o Canto de Ramon (1300) tratam precisamente dessa tragédia da razão crítica. Quem aceita de maneira incondicional o veredicto da razão, tal como Llull o fez, se submete simultaneamente à exigência do reconhecimento intersubjetivo, porque não há racionalidade sem intersubjetividade. Em outras palavras: aceitar a razão como instância única e autônoma significa, paradoxalmente, fazer-se dependente, em boa medida, da comunidade discursiva. Por isso, a razão, embora seja a capacidade mais forte de que dispomos – já que só ela pode dar um fundamento sólido às nossas convicções e aos valores que defendemos –, é, por sua vez, infinitamente frágil, e torna o ser racional sumamente vulnerável. Essa fragilidade da razão e a vulnerabilidade de seu portador se encontram no centro poético do Desconsolo e do Canto de Ramon: a falta de apoio e de reconhecimento da Ars que Llull lamenta nesses versos é, portanto, muito mais que uma simples decepção pessoal de quem presencia a 5 frustração de suas propostas e projetos intelectuais. Mais que o inegável elemento biográfico que contêm, essas obras são a sublime e comovedora expressão poética do próprio sofrimento da razão, uma experiência humana universal que não perdeu nada de sua vigência. Contudo, Llull não se desesperou diante de tal condição, pelo contrário, mostrou-nos como aceitar o desafio da crise da razão, isto é, contrapondo-o com a virtude da paciência e a confiança na força da argumentação. Assim, Llull reiterou, mais de uma vez, suas propostas de reforma racional, como o demonstra a terceira poesia contida nesse livro, O Concílio, peça escrita para o Concílio de Vienne (1311) durante os últimos anos de sua vida, onde, finalmente, foram aprovadas algumas de suas propostas, como, por exemplo, a fundação de studia linguarum para ensinar os idiomas dos “infiéis”. Ao traduzirem pela primeira vez essas obras para o português, Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos não somente fizeram um importantíssimo trabalho de difusão da riquíssima obra poética luliana, até então pouco conhecida fora dos Países Catalães, mas também colocaram nas mãos do leitor brasileiro um conjunto de textos que transmitem uma mensagem de uma atualidade tremenda: a importância de cultivar a confiança nesse bem tão frágil e vulnerável que é a razão, mesmo que a conjuntura histórica e política possa às vezes nos fazer duvidar de nossa missão humanizadora nesse mundo, e de armar-nos de paciência – e poesia! – para defendermos essa razão crítica diante de todos aqueles que a instrumentalizem, ou mesmo cheguem a negá-la. Alexander Fidora ICREA Research Professor Universitat Autònoma de Barcelona / IBFCRL 6 Apresentação Desconsolo (1295) – Canto de Ramon (1300) – O Concílio (1311) Há muitos séculos, em sua obra Poética, Aristóteles afirmou que a Poesia, por se referir ao universal, era mais filosófica e séria que a História, pois esta dizia respeito apenas ao particular (1451b). Universal versus particular: para o filósofo, os pensamentos e ações de um indivíduo, de um poeta, que expressavam poeticamente a natureza universal da humanidade, ultrapassavam o seu tempo e tornavam a poesia uma expressão transcedental, quase divina. Como historiador, sempre reli essa passagem da Poética com certo desdém. Afinal, concordar com o Estagirita era reconhecer o caráter inferior dessa “ciência” humana que sempre me foi tão cara. Vários anos se passaram até pôr à prova o gênio do filósofo grego. Em 2003, a Providência colocou a Poesia em meu caminho. O filósofo que estudava desde 1999, Raimundo Lúlio (em catalão Ramon Llull, 1232-1316) também dedicou-se a ela. Descobri, fascinado, a tradição poética do Ocidente Medieval. Solicitado pelas circunstâncias, debrucei-me sobre ela com afinco, e ganhei uma parceira: a aluna, hoje professora, sempre amiga, Tatyana Nunes Lemos. Educada em colégio de freiras, a menina tinha a Língua na língua. Recordou-me a Gramática, suas normas, poliu minha rudeza estilística. Com o apoio de Ramon. Quase seis anos depois, concluímos nossa proposta: traduzir três textos do filósofo catalão: O Desconsolo (1295), O Canto de Ramon (1300) e O Concílio (1311), que hoje apresentamos pela primeira vez em língua portuguesa. O Desconsolo é a principal obra rimada de Ramon Llull (1232-1316), com o tom mais pessoal. É composto por sessenta e nove estrofes dodecásticas, isto é, com doze versos, e isométricos (com a mesma medida), totalizando oitocentos e vinte e oito versos. Llull utilizou versos alexandrinos, isto é, com doze sílabas métricas. No fim do poema, o filósofo nos informa que o Desconsolo deveria ser cantado ao som do poema épico carolíngio Berart de Montdidier. Escrito em sua velhice, após passar uma vida e presenciar a rejeição de sua Arte, dada por Deus, o Desconsolo reflete o desencanto diante de seu aparente fracasso no projeto que se propôs após sua conversão. O poema começa com um relato biográfico (até a quinta estrofe): Ramon está melancólico porque faz trinta anos que se dedica sem êxito à causa da conversão dos infiéis e da exaltação da fé. Após a sexta estrofe, começa o diálogo com um eremita, que incentiva Ramon a fazer um exame de consciência para ver se sua Arte é efetivamente uma boa causa. 7 Ramon pensa que está livre de pecado, limpo da culpa de negligência, indiscrição, avareza ou vanglória porque tem o amor a Deus e um autêntico impulso de caridade. As reticências do eremita não consolam Ramon, o incomodam. Após um momento de controlada ira, Ramon passa a discutir questões importantes, como as relações entre fé e razão, a base da demonstrabilidade da fé nos termos da Arte, e a necessidade de trabalhar para converter os infiéis. Finalmente, o eremita é tocado pela imagem do lutador que abandonou tudo por seu ideal, “considera que Ramon dizia a verdade”, e reconhe que a obra que ele iniciara é boa e agradável a Deus. O texto termina com uma emotiva despedida e uma nova dose de esperança, nascida do comprometimento do, até então, crítico de Llull com sua causa. O texto tem um conteúdo que mescla desânimo, pelo desencorajamento recebido ao longo de sua vida, e esperança, posta nas futuras redações da nova Arte. A inesperada e apaixonada conversão final do eremita é uma amostra dessa esperança. O eremita que debate com Ramon não é um personagem com personalidade própria, mas a voz de um antagonista domesticável, que o instiga com perguntas que mostrem ao leitor o drama da incompreensão do qual o poeta é objeto e que lhe dê a possibilidade de fazer todas as justificativas morais que pensou. *** O Canto de Ramon foi escrito em 1300 e divide com o Desconsolo a categoria de lírica autobiográfica luliana. É uma versão sintética do Desconsolo, sem o traço dialético. É formado por quatorze estrofes hexásticas (com seis versos) monorrimas de versos octossílabos, totalizando oitenta e quatro versos. Possui momentos muito emotivos que parecem indicar que Llull encontrou uma nova função para a poesia trovadoresca, renegada em sua juventude. É uma composição com uma elevada força lírica. Começa com a conversão de Ramon e repassa os principais acontecimentos de sua vida, da fundação de Miramar à redação da Arte. Remonta, ainda, à sua vontade missionária e rememora algumas de suas frustrações. Redigido em primeira pessoa, contém queixas sobre o pouco êxito do seu trabalho e pedidos de proteção a Deus. Além disso, Ramon pede que Deus lhe conceda companheiros conscientes que lhe ajudem a levar adiante o seu projeto. *** 8 O Concílio foi redigido em Vienne, França, em 1311, possivelmente motivado pela realização do qüinquagésimo Concílio Ecumênico (Vienne, França, 16 de outubro de 1311 a 6 de maio de 1312). Trata-se da última obra versificada escrita por Ramon. É formado por oitocentos e nove versos heterométricos, ou seja, que não possuem a mesma medida. Do primeiro ao setingentésimo, encontram-se cem estrofes heptásticas (com sete versos) com os quatro primeiros versos octossílabos rimando entre si, e os três últimos divididos em dois tetrassílabos (o primeiro e o terceiro) e um octossílabo, também rimando entre si (a8, a8, a8, a8, b4, b8, b4). Do setingentésimo primeiro ao octogentésimo nono encontra-se a seguinte formação: um estribilho monorrimo trístico (com três versos) de versos tetrassílabos, mais quinze estrofes tetrásticas de versos octossílabos monorrimos, alternadas e sempre seguidas da repetição do refrão (A4, A4, A4 // b8, b8, b8, b8 // A4, A4, A4). Tem ecos do ‘sirventès de croada’, um gênero poético trovadoresco de temática denunciadora diversa (moral, política, bélica, satírica) escrito em um estilo muito vivo e animado, até mesmo agressivo e violento, que admitia diversas modalidades formais e genéricas. Era cantado com a melodia de uma canção preexistente. Entrelaçou sugestões procedentes da literatura escrita para incitar os cruzados com elementos da poesia popular. Mostra-se menos iludido que em outros tempos e parece ansiar justificar sua vida e trabalho diante de Deus. Porém, mesmo velho e sem muitas ilusões sobre obtenção de êxito nesse Concílio, é possível vislumbrar um Ramon tão decidido e enérgico quanto nos tempos de sua plenitude quando seu espírito ardoroso se inflama ao dirigir-se ao papa e aos altos dignitários eclesiásticos, ameaçando-os e admoestando-os. No texto, o poeta-filósofo atribui importantes funções ao papa, aos cardeais, aos príncipes, aos prelados, aos religiosos, e elencou algumas qualidades que julgava fundamentais para a realização do Concílio, tais como a contrição e a devoção. *** Nossa tradução Nossa tradução utilizou como base três edições: Josep Batalla (RAMON LLULL. Lo Desconhort. Cant de Ramon. Barcelona: Obrador Edèndum, 2004), RAMON LLULL. Obres Selectes I [OE]. Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 1308-1328 e RAMON LLULL. Poesies. Barcelona: Editorial Barcino, 1928. Há algumas divergências nas edições, devido aos diferentes manuscritos. Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos 9 Desconsolo (1295) 10 Desconsolo (1295) Ramon Llull (1232-1316) Trad. e revisão: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes) I Déus, ab vostra vertut començ est desconhort, lo qual fas en xantant, per ço que me’n conhort, e que ab ell reconte lo falliment e el tort que hom fa envers vós, qui ens jutjats en la mort. E on mais mi conhort, e menys hai lo cor fort, car d’ira e dolor fa mon coratge port; per què el conhort me torna en molt gran desconhort. Per açò estaig en treball e en deport, e no hai null amic qui negun gauig m’aport, mas tan solament vós; per què eu lo faix en port en caent e llevant, e són çai en tal sort que res no veig ni auig d’on me venga confort. II Quan fui gran e sentí del món sa vanitat, comencei a far mal e entrí en pecat, oblidant lo Deus glorios, seguent carnalitat; mas plac a Jesucrist, per sa gran pietat, que es presentà a mi cinc vets crucificat per ço que el remembràs e en fos 1 2 I Deus, com Vossa virtude começa este Desconsolo, o qual faço em canto, para que me console e com ele narre a falta e o dano que o homem faz contra Vós, que nos julgastes na morte. E quanto mais me consolo, menos o coração está forte, pois de ira e dor meu coração é porto, por isso, o consolo retorna como um grave desconsolo. Por isso, estou em trabalho e distração1, e não há nenhum amigo que alguma alegria me traga, mas tão somente Vós, para que eu O torne um porto, na queda e na ascensão. E estou assim em tal sorte que nada vejo ou escuto que me traga conforto. II Quando cresci e senti a vaidade do mundo, comecei a fazer mal e entrei em pecado, esquecendo o Deus glorioso2 e seguindo o que é carnal. Mas agradou a Jesus Cristo, por Sua grande piedade, apresentar-Se a mim cinco vezes crucificado, para que O relembrasse e me 05 10 15 Isto é, distração com o sentido de sair mentalmente. Ver Llibre d’Evast e de Blaquerna, 98 (OE I, 259). Em OE, “Deus glorioso”; na de Batalla “Deus verdadeiro”. 11 enamorat e que eu procuràs com ell fos preïcat per tot lo món, e que fos dita veritat de sa gran Trinitat e com fo Encarnat. Per què eu fui espirat en tan gran volentat, que res àls no amé mas que ell fos honrat; e adoncs comencé com lo servís de grat. III Quan pris a consirar del món son estament, com són paucs crestians e molt li descreent, adoncs en mon coratge hac tal concebiment que anàs a prelats e a reis eixament, e a religioses, ab tal ordenament, que se,’n seguís passatge e tal preïcament que ab ferre e fust e ab ver argument se dés a nostra fe tan gran exalçament que els infeels venguessen a ver convertiment. Ez eu hai ço tractat, trenta anys ha, verament; no n’hai res obtengut, per què n’estic dolent tant, que en plore sovent e en són en llanguiment. 3 4 enamorasse, e fizesse que Ele fosse predicado por todo o mundo, e que fosse dita a verdade de Sua Trindade, e como encarnou. Porque fui inspirado em tão grande vontade, que nada amei mais do que Ele fosse honrado e, então, comecei a servi-Lo de bom grado. III Quando me pus a considerar do mundo o seu estado, quão são poucos os cristãos e muitos os descrentes, então, em meu coração tive tal concepção que fosse a prelados e a reis, igualmente, e a religiosos, com tal ordenamento, para que ocorresse a Passagem3, e com tal pregação que com ferro e fogo, e verdadeira argumentação, se desse à nossa fé tão grande exaltação que os infiéis viessem à conversão. E isso tenho tratado, verdadeiramente, há trinta anos, mas não obtive nada, pelo que estou doente4, tanto, que choro freqüentemente, e estou em languidez. 20 25 30 35 Na Idade Média não existia o termo “Cruzada”; os textos citam “Passagem” (com o sentido de peregrinação, caminho com ascensão espiritual, elevação). “Estou doente” – Doente de paixão, de sofrimento. 12 IV Dementre que enaixí estava en tristor e consirant sovent en la gran deshonor que Déus pren en lo món per sofratxa d’amor, com a home irat que fuig a mal senyor, me n’aní al boscatge, on estava ab plor, tant fort desconhortat, que el cor n’haic gran dolor; mas per ço car plorava e sentia dolçor, e car a Déu parlava faent a ell clamor, con tant pauc exoeix li just e el pecador, quan l’aoren e el creuen tractar sa honor; car si mais los donava d’ajuda e fervor tost convertirien lo món a sa valor. V Enaixí com estava ab malencolia, a lluny guardí e viu un hom qui venia, un bastó en sa mà e gran barba havia, e en son dors cilici portec, pauc valia. Segons son captener ermità paria. E quan fo pres de mi, dix-me què havia, ne lo dol que eu menava, e d’on me venia, ni si ell per nulla res aidar-me podia. 5 6 IV Enquanto estava assim, em tristeza, considerando freqüentemente a grande desonra que Deus recebe do mundo por falta de amor, como um homem irado, que foge do mal senhor, fui a um bosque, onde estive em pranto, tão fortemente desconsolado, que o coração estava em dor. Mas como chorava, sentia doçura5, e a Deus falava fazendo-Lhe clamor, como tão pouco escuta o justo e o pecador quando Lhe adoram e crêem tratar Sua honra, pois se lhes desse mais ajuda e fervor, todos converteriam o mundo ao Seu valor. V Assim, enquanto estava em melancolia ao longe observei e vi que vinha um homem. Tinha um bastão em sua mão e uma grande barba, em seu dorso cilício trazia, e pouco vestia.6 Parecia eremita, segundo seu comportamento. E quando chegou a mim, perguntou-me o que tinha e de onde vinha a dor que eu trazia, 40 45 50 55 e se ele de alguma forma poderia me Nessa passagem seguimos a edição OE; na de Batalla, o sentido é de ação simultânea: “mas per ço car plorava e sentia dolçor”. Na edição de Batalla, “...e en son dors cilici portec, pauc valia”, isto é, o homem valia pouco – ao contrário de OE, que seguimos. 13 Ez eu, las, respòs-li que tal mal sentia, que per ell ni per altre no em consolaria; car, segons que hom perd, creix la fellonia. E ço que eu perdut hai, e dar qui ho poria? VI – Ramon, dix l’eremità, vós, què havets perdut? Per què no us consolats en lo Rei de salut, qui abasta a tot ço qui per ell és vengut? Mas aquell qui el perd no pot haver vertut en ésser consolat, car trop és abatut. ajudar. E eu respondi, ai, que tal ira sentia7 que nem por ele nem por outro consolar-me-ia, pois, conforme o que o homem perde, cresce a felonia. E o que eu havia perdido, dizê-lo quem poderia?8 bé poria ésser que us fos acorregut per la mia doctrina, tant que si sóts vençut que us mostrarà a vençre vostre cor combatut de ira e dolor, ab que Déus hi ajut. VI – Ramon, disse o eremita, o que haveis perdido?9 Por que não vos consolais no Rei da salvação, que basta a tudo o que Dele vem? Mas aquele que O perde não pode ter virtude para ser consolado, pois está muito abatido. E se vós não tendes nenhum amigo que vos ajude, dizei-me vosso coração o que houve, pois, se tiverdes coração fraco ou estiverdes decepcionado, bem poderia ser que fôsseis socorrido pela minha doutrina, tanto, que se estiverdes vencido, mostrar-vos-ei como vencer vosso coração combalido de ira e dor, para que Deus vos ajude. VII – N’ermità, si eu pogués portar a compliment la honor que eu tracté por Déu tan llongament, VII – Dom eremita, se eu pudesse levar a cumprimento a honra que por Deus tratei por tanto tempo, E si vós no havets null amic qui us ajut digats-me vostre cor e què havets haüt; car si flac cor havets ne si sóts decebut, 7 8 9 10 60 65 70 Batalla: “Ez eu, las, respòs-li que tal mal sentia”. Em Batalla: “E o que eu havia perdido, quem o poderia dar?”. Seguimos a edição OE. Aqui inicia-se o diálogo entre Ramon e o eremita. “...para que eu perca por eles toda a procuração” – Llull se autodenomina “procurador dos infiéis”. 14 no hagra re perdut ni en fera clamament, ans guasanyara tant que a convertiment ne véngron li errat, e lo Sant Moniment hagren los crestians. Mas per defalliment d’aquells a qui Déus ha donat mais d’honrament, qui no em volon ausir, ans tenen a nient mi e mes paraules, com hom qui follament parla, e res no fa segons enteniment; per què eu per ells perd tot lo procurament que fas per honrar Déu e d’hòmens salvament. VIII Encara us dic que port un art general, que novament és dada per do espirital, per qui hom pot saber tota res natural segons que enteniment ateny lo sensual. A dret e medicina e a tot saber val, e a teologia, la qual m’és mais coral; a soure qüestions nulla art tant no val, ne errors destruir per raó natural; e tenc-la per perduda, car quaix a hom no cal. Per què eu en planc e en plor, e n’hai ira mortal: car null home qui perdés tan preciós cabal, no poria haver gauig mai de res terrenal. IX – Ramon, si vós faits ço que a vós se não haveria nada perdido nem faria clamor, e sim ganharia tanto que à conversão viriam os errados, e o Santo Sepulcro teriam os cristãos. Mas, por falta daqueles a quem Deus tem dado mais honramento, que não desejam ouvir e não consideram nem a mim nem minhas palavras, como homem que loucamente fala e nada faz segundo o entendimento; para que eu perca por eles toda a procuração10 que faço para honrar a Deus e ter dos homens a salvação. VIII Ainda vos digo que trago uma Arte Geral, que me foi dada, recentemente, por dom espiritual para que o homem possa saber toda coisa natural, conforme o entendimento atinge o sensual. Vale para o Direito, para a Medicina e todo o saber, e para a Teologia, a qual me é mais cara, nenhuma arte vale tanto para resolver questões e para destruir os erros através da razão natural. E a tenho por perdida, porque ao homem quase não interessa. Por isso, estou em pranto, em lágrimas e em ira mortal: pois nenhum homem que perdesse tão precioso cabedal poderia ter novamente gozo de coisa terrenal. IX – Ramon, se vós fazeis o que vos 15 75 80 85 90 95 cové, en procurar honor a Déu e far gran bé, e no sóts escoltat ni ajuda no us ve d’aquells qui han lo poder, ges per ço no us cové que en siats despagat, car Cell qui tot ho ve, vos n’ha aitant de grat, com si es complís dessé tot ço que demanats; car hom qui bé es capté a tractar sa honor, aconsegueix en se mérit e esmenda, do, pietat, mercè. Per què fa gran pecat qui en son cor reté ira ni desconhort, faent Déus a ell bé qui es concorda ab gauig, esperança e fe. X Ramon, de vostra art no siats consirós, ans en siats alegre e estats-ne joiós; car, pus Déus la us ha dada, justícia e valors la multiplicaran en lleials amadors. E si vos en est temps ne’n sentits amargors, en altre temps mellor haurets ajudadors tals qui lens apendran, e en vençran les errors d’aquets món, e en faran molt bon fait cabalós. Per què us prec, mon amic, que conhort sia ab vós, e d’hui mai no plorets contra fait virtuós; convém, procurar honra para Deus e fazer grande bem, e não sois escutado nem a ajuda vos vem daqueles que têm poder, por tudo isso não convém que estejais descontente, pois Deus, que tudo vê, vos é tão grato como se cumprísseis imediatamente tudo o que pedistes, pois o homem que bem se porta para tratar Sua honra, conseguirá, para si mérito e correção, dom, piedade, mercê. Por isso, comete grande pecado quem em seu coração retém ira e desconsolo, fazendo Deus a ele bem que concorda com gozo, esperança e fé. X – Ramon, com vossa Arte não fiqueis preocupado, e sim, estejais alegre e jubiloso, pois já que vos foi dada por Deus, justiça e valores multiplicá-la-ão em leais amantes. E se vós sentirdes amargor nestes tempos, em outro tempo tereis melhores ajudantes que lentamente a aprenderão, vencerão os erros deste mundo e farão muitos bons feitos importantes. Por isso, vos rogo, meu amigo, que o consolo esteja convosco, e de agora em diante não choreis por 16 100 105 110 115 enans vos alegrats contra fait viciós, e de Déu esperats gràcia e secors. XI Ramon, per què plorats e no faits bell semblant, e com no us conhortats del vostre mal talant? Per aquesta raó, mi faits ésser duptant, que estiats en pecat mortal, tan malestant; per què siats indigne a far res benestant; car Déus no es vol servir per null home enpecant. E si no ve a fi ço que desirats tant no és culpa d’aquells de qui us anats clamant, car no vol Déus que vostre fait vaja gens avant si estats en pecat, car de bé tant ni quant no pot hom pecador d’ell ésser començant, car lo bé e el pecat en res no han semblant. XII ― N’ermità, no m’escús que no haja pecat mortalment mantes vets, de què me són confessat; mas, depús Jesucrist a mi es fo revelat en la crots, segons que dessús vos hai contat, e hagui en sa amor mon voler confermat, 11 feitos virtuosos, mas alegrai-vos contra feitos viciosos,11 e de Deus esperais graça e socorro. 120 XI – Ramon, por que chorais e não fazeis belo semblante? E como não vos consolais de vosso mal talante? Por essa razão, fazeis-me duvidar que estejais em pecado mortal, tão grave, que sois indigno de fazer algo bom, pois Deus não deseja ser servido por nenhum homem pecador. E se não chega ao fim o que tanto desejais, não é por culpa daqueles a quem fostes clamar, pois Deus não deseja que vosso feito vá adiante se estais em pecado, pois de nenhum tipo de bem o homem pecador pode ser princípio, 125 130 pois o bem e o pecado em nada são semelhantes. XII – Dom eremita, não me escuso de ter pecado mortalmente muitas vezes, do que sou confesso, mas depois que Jesus Cristo a mim foi revelado na cruz, conforme o que antes vos contei, e tive em Seu amor meu desejo 135 “...mas alegrai-vos contra feitos viciosos”, alegrai-vos com o sentido de manter o espírito alerta contra os vícios. 17 no pequí a cient en null mortal pecat. Mas poria ésser, en ço qui és passat quan era serf del món amant sa vanitat, que non sia per Cristo en far bé ajudat; emperò, si no ho era, tort faria e pecat si ell no me aidava depús que l’hac amat e per la sua amor lo món desemparat. XIII – Ramon, hom negligent no sap bé procurar estant si negligent, car molt no vol membrar ço que entén acabar. Per què em faits molt duptar que lo públic negoci que volets acabar ab los molts grans senyors qui no us volon aidar, no es perda, per ço car molt no ho volets amar; car ab pauca amor gran fait no es pot menar. E si ets pererós de tu et deus rancurar, e de ton falliment no deus altre encolpar, ne tu, estant ociós, no et deus desconhortar per altre, mas per tu, qui no et vols esforçar en far tot ton poder con Déus pusques honrar. 12 confirmado, não pequei ciente em nenhum mortal pecado. Mas poderia ser que no passado, quando era servo do mundo, amando sua vaidade, não estivesse bem ajudado por Cristo em fazer o bem. Contudo, se não o fosse, faria dano e pecado se Ele não me ajudasse depois de tê-Lo amado e, por Seu amor, o mundo desamparado. XIII – Ramon, o homem negligente não sabe o bem procurar e, estando negligente, não deseja muito lembrar o que tenta acabar. Por isso, me fazeis muito duvidar que o negócio público que desejais acabar com os muito grandes senhores que não vos querem ajudar não se perca, porque muitos não o desejam amar, pois, com pouco amor, um grande feito não se pode encaminhar. E se és preguiçoso, de tudo deves te queixar, 12 e de tua falta não deves a outro culpar, nem tu, estando ocioso, deves te desconsolar por outro, mas por ti, que não desejas te esforçar em fazer todo o teu poder para a Deus poder honrar. Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita. 18 140 145 150 155 XIV – N’ermità, vós vejats si eu són ociós en tractar públic bé de justs e pecadors, car muller n’hai lleixada, fills e possessiós e trenta anys n’hai estat en treball e llangors, e cinc vets a la cort ab mies messiós n’hai estat, e encara ab los Preïcadors a generals capítols tres, e als Menors a altres tres generals capítols; e si vós sabíets què n’hai dit a reis e a senyors, ne con hai treballat, no seríets duptós en mi que sia estat en est fait pererós, ans n’hauríets pietat, si sóts hom piadós. XV – Ramon, tot hom qui vol adur a compliment algun fait qui sia de molt gran estament cové que ell sàpia tractar discretament; mas si vós no sóts hom discret ni entenent segons que al fait cové, e en faits rancurament rancurats-vos a tort e sóts-ne reprendent d’aquells qui són discrets e fan sàviament ço qui a fait bo es cové, e a l’exauçament de la fe crestiana. Per què us consell breument que estiats consolat en vostre falliment, 13 14 XIV – Dom eremita, vedes vós se estou ocioso em tratar o bem público, de justos e pecadores, pois deixei mulher, filhos e possessões, por trinta anos estive em trabalho e langor, e cinco vezes na corte, com minhas despesas,13 estive. E mais: com os Pregadores em três capítulos gerais, e, ainda, com os Menores em outros três capítulos gerais. E se vós soubésseis o que falei a reis e a senhores, e como trabalhei, não estaríeis duvidoso de mim, que neste feito fui preguiçoso, e sim teríeis piedade, se fôsseis um homem piedoso. XV – Ramon, a todo homem que deseja dar cumprimento a algum feito que seja de grande estamento convém que saiba tratar discretamente. Mas se vós14 não sois um homem discreto, nem entendeis segundo o que convém ao feito, fazeis recriminação, amargurando-vos erradamente se repreendeis aqueles que são discretos e fazem sabiamente o que convém ao bom feito a à exaltação da fé cristã. Por isso, vos aconselho brevemente que fiqueis consolado de vossa falta, “e cinco vezes na corte”, isto é, na corte pontifícia. Mudança da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita. 19 160 165 170 175 consirant que no sóts a lo fait convinent, estats enfre vós humil e pacient. XVI – N’ermità, si eu no só de tal discreció que en fait tan cabalós abastàs ma raó; e si eu, ignorant, ves ell fas fallió per sofratxa d’entendre e car discret no só, segons que el fait és gran, per ço vull companyó qui el m’ajut a complir; mas no em val pauc ni pro requerir companyia, ans són sol a bandó; quan los guard en la cara e els vull dir ma raó, no em volon escoltar, ans dien que fat só los de més, per ço car los dic aital sermó. Però parrà al judici qui haurà discreció, e qui de sos pecats atrobarà perdó. XVII – Ramon, l’hom qui és avar e vol algun fait far, ço que vol no ho pot complir ni acabar. On, si vós sóts avar e no volets donar del vostre, per ço que Deus ne façats honrar, de vostra cobeitat vos deuríets clamar car ella vos empatxa lo bo fait procurar. considerando que não sois conveniente ao feito, estejais assim entre nós humilde e paciente. 180 XVI – Dom eremita, se eu não tenho tal discrição, em feito tão importante bastaria minha razão. E se eu, ignorante, cometo falta contra ele por falta de entendimento e de discrição pelo feito ser grande, desejo companhia que me ajude a cumpri-lo, mas não me adianta nada requerer companhia, e sim estou só e abandonado. E quando os olho cara-a-cara e desejo lhes dizer minha razão, eles não querem me escutar. Diz que sou louco, a maioria, porque digo tal sermão. Porém, aparecerá no Juízo quem tiver discrição e quem dos seus pecados encontrar perdão. XVII – Ramon, o homem que é avaro e deseja fazer algum feito não pode cumprir nem terminar o que deseja. Logo, se vós sois avaro e não desejais dar do que é vosso para que a Deus façais honrar, de vossa cobiça deveríeis se queixar, pois ela vos impede do bom feito procurar. 20 185 190 195 O, si dar no podets, paupertat pot estar contra vostre negoci, e deuríets pensar que els senyors mais se clinen per dar que per preicar a los precs que hom los fa. Per què us vull consellar que, si donar podets, pensats tost de l’anar, car per donar porets tota res acabar. XVIII – N’ermità, certs siats que anc mais cobeitat de diners ni d’honors en mi no ha habitat, e en aquest negoci de mon patrimonat hai tota vets despès e aitant llarguejat, que tuit li meu infant n’estan en paupertat; d’on d’avarícia no dec ésser reptat; ni donar eu no pusc a los hòmens de grat, car no só home ric ni senyor de ciutat; per què no m’encolpets, ans m’hajats excusat. Bé us dic, si eu fos senyor d’emperi o regnat, tant del meu hi donara tro que fos acabat; mas home qui pauc dóna no és bé escoltat. XIX – Ramon, glòria vana fa hom a si amar, per ço que hom faça de si les gents parlar, Ou, se não podeis dar, a pobreza deve estar contra vosso negócio, e deveríeis pensar que os senhores mais se inclinam a dar que a predicar aos pedidos que os homens lhes fazem. Por isso, quero vos aconselhar que, se pudéreis, pensais rapidamente em dar, pois, ao dar, podereis todo o resto terminar. XVIII – Dom eremita, estejais certo que nunca mais a cobiça de dinheiro ou de honras em mim habitou, e, neste negócio, de meu patrimônio tenho tantas vezes despendido, e tão largamente, que todos os meus filhos estão em pobreza. Logo, de avareza não devo ser acusado nem posso dar aos homens de bomgrado, pois não sou um homem rico, nem senhor de cidade. Por isso, não me culpais, mas me desculpais. E bem vos digo: se fosse senhor de império ou reino, daria tanto do meu até que acabasse, mas o homem que dá pouco não é bem escutado. XIX – Ramon, a vanglória faz o homem se amar para que de si faça as gentes falarem, 21 200 205 210 215 dient de hom llausors, per ço que els sia car e que l’amen e l’honren en sovint nomenar. On, si vós treballats per vós meteix llausar, ergull, glòria vana vos fan tant menysprear a cells ab qui volets vostre fait acabar que no us dényen veser ni us volon escoltar, car null fait tan honrat, vil hom no deu menar, e tot home és vil e està en pecar qui mais que no li tany se vulla far honrar. Per què de vostre tort vullats null encolpar. XX – N’ermità, eu no sai per qual entenció vós havets de mi tanta mala estimació; car ans deu hom haver bona presumpció d’home qui no coneix que mala opinió. E per què no us pensats que a fait qui és tan bo se pusca tot donar home qui pauc ni pro no valla en lo fait? Car, si eu tot mal só, segons que ho requer natura e raó, tractara lo contrari; e, si Déus me perdó, anc mais en mon coratge entenció no fo que per haver llausors parlàs d’aital sermó; car en hom pecador null llaus pot ésser bo. dizendo dele louvores, para que seja estimado e que o amem e honrem-no ao ser nomeado freqüentemente. Logo, se trabalhais para louvar a vós mesmos, orgulho e vanglória vos fazem menosprezado por aqueles com que desejais vosso feito terminar, e eles nem desejam vos ver nem vos escutar, pois nenhum feito tão honrado, um homem vil deve fazer, e todo homem é vil e está em pecado se deseja se fazer honrar mais do que lhe pertence. Por isso, de vossos erros desejais alguém culpar. XX – Dom eremita, eu não sei por qual intenção tendes de mim tão má reputação, pois antes o homem deve ter boa presunção de quem não conhece, que má opinião. E por que vós pensais que a um feito tão bom se possa dar um homem que nada valha ao feito? Pois, se em tudo sou mau, segundo o que requer a natureza e a razão, trataria o contrário. Mas se Deus me perdoou, nunca mais existiu intenção em meu coração de obter louvores ao falar tal sermão, pois no homem pecador nenhum louvor pode ser bom. 22 220 225 230 235 240 XXI – Ramon, per aventura vós no sóts conegut, e per ço podets ésser en lo fait decebut; car null tresor qui sia en terra abscondut no es cové que sia desirat ni volgut. On, si vostre saber no és apercebut, co us pensats que per ço ne siats creegut? Mas mostrats què sabets, per ço que vos ajut vostra art e saber; car hom desconegut no ha, per ignorar, honrament ni vertut. E si vós, mon amic, amats d’hòmens salut e de Déu honrament, e no sia perdut faits que vostre saber sia bé conegut. XXII – N’ermità, co us pensats que eu tal saber celàs, ab lo qual nostra fe tan fortment se provàs a los hòmens errats, per ço que los salvàs Déus, lo qual tant desir que tot home l’amàs? Ans siats ben segur que en demostrar són las. Mas si hom en mos llibres fortment estudiàs e per altre saber en res no els oblidàs, jo en fora conegut; mas com gat qui passàs tost per brases los lligen, per què ab ells XXI – Ramon, porventura vós não sois conhecido, e por isso podeis, no feito, estar decepcionado, pois a nenhum tesouro que na terra esteja escondido convém que seja desejado ou apetecido. Logo, se vosso saber não é percebido, como pensais ser reconhecido? Mostrais que sabeis, para que vos ajudem vossa Arte e saber, pois o homem desconhecido não tem, por ignorar, honramento ou virtude. E se vós, meu amigo, amais a salvação dos homens, o honramento de Deus, e que não seja perdido o feito, que vosso saber seja bem conhecido. XXII – Dom eremita, como vós pensastes que tal saber eu ocultaria com o qual nossa fé tão fortemente se provaria aos homens errados, pelo qual salvá-losia Deus, O qual tanto desejo que todo homem ame? Estejais bem seguro que estou cansado de demonstrá-lo. Mas se o homem estudasse fortemente meus livros, e por outro saber eles não fossem esquecidos, eu seria conhecido. Mas, como gato que passa rapidamente por brasas, lêem-nos, pois 23 245 250 255 260 no fas quaix res de mon negoci. Mas, si fos qui els membràs, e qui bé els entesés e en res dubtàs, pogra hom per mos llibres metre lo món en bon cas. XXIII – Ramon, ço que dic fas per vos aconhortar; mas per què no us volets abstenir de plorar, porà ésser ben lleu que me’n vulla utjar. com eles não fazem quase nada de meu negócio. Mas, se existisse alguém que os lembrasse, os entendesse bem, e deles não duvidasse, poderia, por meus livros, colocar o mundo em bom estado. On per açò, amic, no us devets meravellar, si el Papa e els cardenals no us volon atorgar ço que les demanats, pus que no si pot far. XXIII – Ramon, o que digo, faço para vos consolar, mas como não desejais abster-vos de chorar, poderíeis rapidamente desejar me desgostar. Mas escutais e vejais se podeis tratar o que vós pedistes ao Papa, pois não me parece que seja possível a nossa fé provar, nem que o homem pudesse tais homens encontrar que dessem a si mesmos para um doloroso martírio aos malvados sarracenos, para lhes predicar. Por isso, amigo, não vos deveis maravilhar se o Papa e os cardeais não desejam vos outorgar o que lhes pedis, posto que não se pode realizar. XXIV – N’ermità, si la fe hom no pogués provar, doncs Déus als crestians no pogra encolpar si a los infeels no la vòlon mostrar, e els infeels se pogren de Déu per dret clamar, car major veritat no lleix argumentar. XXIV – Dom eremita, se a fé o homem não pudesse provar, então Deus não poderia aos cristãos culpar se aos infiéis não a desejassem mostrar, e os infiéis poderiam, por direito, de Deus se queixar, pois a maior verdade não se deixa Emperò escoltats e vejats si es pot far ço que vos demanats al Papa; car no par que sia possible la nostra fe provar, ni que home pogués aitals hòmens atrobar qui si mateixs donésson a greu marturiar als malvats sarraïns, per ells a preïcar. 24 265 270 275 280 Per què l’enteniment ajut a nostre amar, com mais am Trinitat e de Déu l’Encarnar, e a la falsetat mais pusca contrastar. Escrit hai lo Passatge on hai mostrat tot clar, com lo sant Sepulcre se pusca recobrar e com hom atrob hòmens qui vagen preïcar la fe sens paor de mort e qui ho sabran far. XXV – Ramon, si hom pogués demostrar nostra fe, hom perdria mèrit; e per ço no es cové que es pusca demostrar, pus que se’n perdés bé; car, en perdre lo bé, fora lo mal dessé causa al demostrar, qui contra el mèrit ve, lo qual hom ha per creure veritat que no es ve per força d’argument, ans solament per fe. Encara, que l’ humà entendre no conté tota vertut de Déu, qui infinida es manté tant que causa finida tota ella no té. Per què vostra raó no par que valla re, e car no us consolats, faits ço que es descové. argumentar. Porque o entendimento ajuda o nosso amar quanto mais ama a Trindade e de Deus o Encarnar e à falsidade mais pode contrastar. Escrevi a Passagem para com clareza mostrar como o Santo Sepulcro se pode retomar, e como encontrar homens que irão predicar a fé sem pavor da morte, e que saibam atuar. XXV – Ramon, se pudéssemos demonstrar nossa fé, perder-se-ia o mérito e, por isso não convém que se possa demonstrá-la, pois se perderia o bem, e ao se perder o bem, o mal imediatamente seria causa da demonstração contra o mérito que existe no homem que crê na verdade que não se vê por força do argumento, somente pela fé. E mais: o entendimento humano não compreende toda a virtude de Deus, que se mantém infinita, tanto que ela não tem causa finita. Por isso, vossa razão não parece valer nada, e como não vos consolais, fazeis o que não convém. 25 285 290 295 300 XVI – N’ermità, si hom fos a si meteix creat, ço que entenets provar contengra veritat; mas, car Déus creà home, perquè en sia honrat, qui és pus noble fi e ha mais d’altetat que la fi que hom ha en ésser gloriat, no val vostra raó; e ja és damunt provat, que la fe es pot provar, si bé havets membrat; e, si bé es pot provar, no es segueix que creat contenga e comprena trastot l’ens increat, mas que n’entén aitant, con a ell se n’és dat, per ço que hom haja de Déu plena bontat, son membrar e entendre, poder e volentat. XXVII – Ramon, com vos pensats que hom, per preïcar, pogués los sarraïns adur a batejar? Car, segons que Mafumet ha volgut ordenar, qui diu mal de sa llei no pusca escapar e que aitals raons no vullen disputar; per qué a mi no par utilitat lo anar. 15 16 17 XXVI – Dom eremita, se o homem tivesse se criado, o que tentais provar conteria a verdade, mas como Deus criou o homem para que fosse honrado, que é um fim mais nobre e mais elevado que o fim que o homem tem em ser glorificado, não vale vossa razão. E já foi acima provado que a fé se pode provar, se estais bem recordado. E se bem se pode provar, não segue que algo criado contenha e compreenda todo o ente incriado, mas que entenda tanto quanto a ele é dado, para que o homem tenha de Deus sua vontade, sua lembrança, entendimento, poder e bondade.15 XXVII – Ramon, como pensais que o homem, por predicar, pudesse levar os sarracenos a se batizar? Pois, segundo o que Maomé desejou ordenar, aquele que falar mal de sua lei16 não poderá escapar, e tais razões não desejará disputar.17 Por isso, não me parece útil viajar.18 305 310 315 A edição de Batalla altera a ordem dessa seqüência: “...para que o homem tenha de Deus sua bondade / sua lembrança, entendimento, poder e vontade”. No entanto, adotamos a ordem exposta em OE, que coloca a vontade em primeiro lugar – o que, de resto, é a seqüência costumeiramente adotada pelo filósofo. Veja, por exemplo, a Árvore da Ciência, 5, 3 (OE 1, 617). Em OE, não há “...de sua lei”. Em OE, “escutar” ao invés de “disputar”. 26 Encar que hom no sabria la llur llengua parlar, qui és llenguatge aràbic, e per enterpretar no poria ab ells negun bé enançar; e si el lenguatge aprèn, porà-hi trop trigar. Per què us do de consell que anets Déu pregar, en una alta montanya ab mi Déu contemplar. E mais: o homem não saberia falar, XXVIII – N’ermità, els sarraïns son en tal estament, que cells qui són savis, per força d’argument no creen en Mafumet; ans tenen a nient l’Alcorà, per ço car no visc honestament. E en pendre llur llenguatge hom no està llongament, ne no cal que hom blastom Mafumet mantinent. E qui fa ço que pot, lo Sant Espirament fa ço que a ell cové, donant lo compliment. XXVIII – Dom eremita, os sarracenos estão em tal estamento que aqueles que são sábios, por força do argumento, não crêem em Maomé, antes desprezam o Corão, porque ele não viveu honestamente. Assim, eles viriam à conversão rapidamente se estivessem com eles em grande disputa, e lhes mostrassem a fé por força do argumento, e aqueles, convertidos, converteriam as gentes. Não precisa muito tempo para aprender sua linguagem, nem é preciso blasfemar Maomé imediatamente. E quem faz o que pode, o Espírito Santo faz o que a ele convém, dando o cumprimento. XXIX – Ramon, quan Deus volrà que el món sia convertit, adoncs darà llenguages per lo Sant XXIX – Ramon, quando Deus desejar que o mundo seja convertido, dará linguagens pelo Espírito Santo Per què aquells venrien tost a convertiment, si hom ab ells estava en gran disputament, e la fe los mostrava per força d’argument, e aquells convertits, convertrien la gent. 18 a língua árabe, e por interpretar não poderia com eles nada avançar, e se a língua aprendesse, muito poderia demorar. Por isso, vos aconselho que vades a Deus pregar, em uma alta montanha comigo Deus contemplar. No original “anar” (ir). 27 320 325 330 335 Espirit a convertir lo món, segons que havets ausit de Crist e dels apòstols, d’on és fait mant escrit; e aquell convertiment serà pel món sentit tant, que en un ovili seran li hom unit, lo qual mais no serà en est món departit. Aquell serà nostre e per Déu estabilit, e ja mai null pecat no hi serà consentit. Encar que en aquest temps cascun hom ha fallit tan fortment que no vol que sia exausit Déus a far miracles, pus que tant l’han aunit! XXX – N’ermità, en tots temps ama Déus veritat, e vol ésser per home conegut e amat; e per ço en tots temps ha home libertat en far bé e no mal; e seria forçat si, en est temps on som, no havia potestat en tractar honrament a Déu, e caritat a son proïsme haver. Per què eu no són pagat de ço que dit havets, d’on havets gran pecat en ço que afermats, que «tot ens és lligat; en est temps hom no pot convertir li errat para converter o mundo, segundo o que haveis ouvido de Cristo e dos apóstolos, de quem foram feitos muitos escritos; e aquela conversão será sentida pelo mundo, tanto, que em um rebanho os homens serão unidos e este mundo nunca mais estará dividido. Aquele será nosso e por Deus estabelecido, e jamais qualquer pecado será consentido. Mas como nestes tempos cada homem tem falhado tão fortemente que não deseja ser escutado Deus para fazer milagres, já que tanto O tem afrontado! XXX – Dom eremita, em todos os tempos Deus ama a verdade e deseja ser conhecido e amado pelo homem. Por isso, em todos os tempos o homem tem liberdade de fazer o bem e não o mal, e seria forçado se nos tempos em que estamos não houvesse poder em tratar o honramento de Deus e caridade a Seu próximo ter. Por isso, eu não estou satisfeito com o que haveis dito e tendes grande pecado quando afirmais que «todo ente é ligado; nestes tempos ninguém pode converter o errado, 28 340 345 350 355 ni per Déu no pot ésser a sa honor ajudat». Per què en vostre parlar estaig desconsolat. nem por Deus pode ser em sua honra ajudado». Por isso, em vosso falar estais desconsolado. XXXI – Ramon, molt mellor seny és qui sab retenir ço que ha guasanyat, que anar convertir los sarraïns malvats, pus no vólon ausir; XXXI – Ramon, é muito mais sensato reter per què als crestians deu hom tant de bé dir de Déu en preïcant, que els faça Déus servir. Encara que hom no sab si bé se pot seguir d’anar als sarraïns; car poria-hi fallir en tant que ells volguessen hom així destruir; e, açò que mais és, no poden devenir null temps bons crestians, car no es poden partir de ço que han costumat. Per què us plaça jaquir vostra ira e mudats allor vostre desir. XXXII – N’ermità, si fossen pauc li preïcador, e li clergue seglar e li frare menor, e encara li monge, tant abat e prior, ço que vos havets dits fóra consell mellor. Mas car en nostra fe ha mant hom de valor 19 20 o que se ganhou, que ir converter os malvados sarracenos, pois não desejam ouvir. Por isso, deve-se dizer aos cristãos tão bem de Deus na prédica, que lhes faça serviLo. Além disso, o homem não sabe se algum bem pode conseguir ao ir aos sarracenos, pois poderia falhar a tal ponto que desejariam matá-lo, e mais, não poderiam se tornar nunca bons cristãos, pois não podem deixar o que estão acostumados. Por isso, vos agradaria deixar vossa ira e mudar, a partir de agora, vosso desejo. XXXII – Dom eremita, se fossem poucos os pregadores, os clérigos seculares e os frades menores, e, além disso, os monges, tanto abades quanto priores, o que vós dissestes seria o melhor conselho. Mas como ainda há em nossa fé muitos homens de valor Isto é, os sarracenos. Em OE, “amor à fé”. 29 360 365 370 375 qui desiren morir per far a Déu honor, e qui poden bastar e a tuit nós e a llor, per ço hai desplaer, car cells qui són major no fan ço que deuen en dar de Déu llausor. Si els paires convertits no han a la fe en cor, hauran-la llurs infants; e disets gran follor, car null hom no perd, si mor pel Creador. XXXIII – Ramon, segons que auig dir, mant hom és anat preïcar als sarraïns e pauc han enançat, e encara als tartres, d’on són maravellat can així estats forts en vostra volentat; car de tot fait on hom se sia fadigat, e majorment con veets que tants l’han assajat, se deu hom departir, pus que sia assenyat, e, si no se’n parteix, fa’s hom tenir per fat. Per què us consell, germà, que hajats pietat de vostre cor mateix, que tant havets ujat, e estats en un lloc on sia reposat, e dels vostres damnatges estiats consolat. que desejam morrer para fazer a Deus honor, e que podem bastar a todos nós e a eles,19 tenho desprazer, pois aqueles que são maiores não fazem o que devem para dar a Deus louvor. E se os padres convertidos não têm fé no coração,20 tenham-na suas crianças. E dissestes grande loucura, pois nenhum homem perde se morre pelo Criador. XXXIII – Ramon, segundo o que ouvi dizer, muitos homens têm ido predicar aos sarracenos e poucos têm progredido, e também aos tártaros. Por isso estou maravilhado de como estais forte em vossa vontade, pois de todo o feito do qual se esteja fatigado, principalmente quando se vê que tantos o têm tentado, deve-se abandonar, ainda mais se for sensato; e, se não abandona, faz com que o tenham por louco. Por isso, vos aconselho, irmão, que tenhais piedade de vosso próprio coração, que tanto haveis afligido, e ides para um lugar onde fiqueis repousado e dos vossos danos estejais consolado. 30 380 385 390 395 XXXIV – N’ermità, cell qui vol molt servir e honrar son bon senyor no el deu per nulla res lleixar, ni d’ell bé a servir no es deu mai enutjar. Mas car en vostre cor ha fretura d’amar, no sabets vós meteix ni altre consellar; car si hom en un temps no pot fait acabar en altre ho porà far, si bé lo sab menar; e qui bon fait comença no l’ha a començar, e si els primers fan pauc, altres poran molt far. Per qué us prec, per mercè, que mi lleixets estar, car no em par que ab vós pogués res guasanyar, ans on mais me disets, mais me faits entristar. XXXV Ramon s’enfelloní, e no volia ausir l’ermità, qui el pregava con se degués jaquir del gan dol que menava, e començà a dir: «Senyor Déus gloriós! Ha al món tal martir com aquest que sostenc, con tu no pusc servir? Car no hai qui m’ajut, com pusca romanir esta art que m’has dada, d’on tant de bé 21 XXXIV – Dom eremita, aquele que muito deseja servir e honrar seu bom Senhor não deve por nada deixar, nem de servi-Lo bem deve se enfadar. Mas como em vosso coração há ausência de amar, não sabeis a vós mesmo nem a outro aconselhar; pois se um homem em um tempo não pode seu feito acabar em outro o poderá terminar, se bem o souber guiar; e quem um bom feito começa, não o consegue principiar.21 E se os primeiros fazem pouco, os outros poderão completar. Por isso, vos peço, por mercê, que me deixeis estar, pois não me parece que convosco possa algo ganhar, pelo contrário, quanto mais me dizeis, mais me fazeis contristar. XXXV Ramon se enfureceu, e não desejava mais escutar o eremita, que lhe pregava como deveria deixar a grande dor que trazia, e começou a falar: «– Senhor Deus glorioso! Há no mundo tal martírio como este que suporto quando a Ti não posso servir? Pois não há quem me ajude para que possa continuar essa Arte que me foi dada, de onde tanto Isto é, não é necessariamente quem inicia um feito que o termina. 31 400 405 410 415 es pot seguir, la qual tem que es perdrá, aprés lo meu fenir, car null hom no la sab bé, segons mon albir, ni eu no pusc forçar null hom d’ella ausir. Ai las! Si ella es perd, a tu què porai dir qui la m’has donada per ella enantir?» XXXVI – Ramon, li filosof qui foren antigament, d’esta art, que tu has, no agren coneixent; per què apar no sia de gran profitament; e, si ella fos vera, fóra al començament per ells atrobada, car llur enteniment fo pus alt que lo teu. Emperò si eu ment e que l’hages haüda de Déu, fas falliment com tems que aprés ta mort ella vinga a nient, car tot ço que Déus dóna ve a bo compliment. Encara, que els antics, dementre eren vivent, les arts que faïen no hagren estament, enans són exalçades per li altre següent. 22 23 24 bem se pode seguir, a qual temo que se perderá após meu fim, pois nenhum homem a sabe bem, segundo meu arbítrio, nem eu posso forçar ninguém a escutá-la. Ai de mim! Se ela se perde, o que Te poderia dizer, que a deu a mim para ela enaltecer? » XXXVI – Ramon, os filósofos que existiram antigamente, desta Arte, que tu22 tens, não tiveram conhecimento; porque parece que não seja de grande aproveitamento. E se ela fosse verdadeira, seria no princípio por eles23 encontrada, pois seu entendimento foi mais elevado que o teu. Contudo, se eu minto, e tiveste a ajuda de Deus, cometes falta quando temes que após tua morte ela acabe, pois tudo o que Deus dá chega a um bom cumprimento. Além disso, os antigos, enquanto eram vivos, nas artes que fizeram não tiveram exaltação24, mas foram exaltados por seus sucessores. 420 425 430 Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita. Em OE, “...pelos filósofos”. Na edição de Batalla, “...não tiveram estamento”. Contudo, optamos pelo texto de OE, pois nos parece que é esse o sentido proposto por Ramon. 32 XXXVII Consolar-se volc Ramon, emperò felló fo, quan ve que l’ermità havia opinió que els fìlosofs antics, en los quals fe no fo, sien estats començ de tot ço qui és bo li fllosof antic hagren mais de visió en llur enteniment, que aquells que aprés són, qui han llig e creença de resurrecció? XXXVII Ramon desejou consolar-se, mas se irritou quando viu que o eremita tinha opinião que os filósofos antigos, nos quais a fé não existia, tinham sido o princípio de tudo que é bom, conhecendo a Trindade e Encarnação,25 pois estes filósofos antigos não tinham opinião que Deus fosse Trindade, nem com o homem união, nem a obra que Deus tem em Si por produção26 amavam ou conheciam. Então, por qual razão os filósofos antigos tiveram mais visão em seu entendimento que aqueles que vieram depois, que têm lei e crença na ressurreição?27 XXXVIII – Ramon, no pusc dir res d’on sies consolat. Entén esta raó e no sies irat: en què n’és Déus si el món no és en bo estat? XXXVIII – Ramon, nada posso dizer para que fiqueis28 consolado.29 Entende esta razão e não fiqueis irado: em que Deus é afetado se o mundo não está em bom estado?30 coneixent Trinitat e Encarnació; car filosof antic no hac opinió que en Déu fos trinitat, ni ab hom unió, ni l’obra que ha en si Déus per producció no amà ni conec. E dons, per qual raó 25 26 27 28 29 30 31 435 440 445 Em OE, “...conhecendo Deus, a Trindade e a Encarnação”. Na teologia cristã a produção divina (ou procissão) é a determinação interna do Ser divino pela qual Sua bondade não deixa de fazer o bem, isto é, produzir o bem em Si mesma e de Si mesma. Veja, por exemplo, o Livro das Maravilhas 1,4 (OE I, 327). Assim, o Filho procede do Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Em OE, “...que têm lei e crença e esperam a ressurreição”. Mudança da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita. Em OE, “– Ramon, será que não posso fazer nada para consolar-vos?”. A passagem explica um ponto muito importante na relação entre Deus e o mundo: a constatação da existência do mal no mundo não anula a força de Deus, tampouco a abala, pois os atos dos seres criados por Deus não interferem em Sua grandeza, já que Ele é Deus por Si, e não porque fazem d’Ele Deus. Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita. 33 car no lleva ni baixa a ell quant és creat, con sia en si complit, no havent necessitat de nullla creatura. D’on deus ésser pagat del compliment que Déus ha en si per sa bontat, e tu, foll, estàs trist, quaix si Déus fos mirvat per lo mal estament en què el mon és trobat. Foll! Com no t’alegres en plena deïtat? E git a no cura tot ço qui és creat, per ço que a ton cor bast Déus complit, no mermat? XXXIX – N’ermità, mal me fa lo vostre consolar. Que fo fort aquell punt on vos poguí trobar! E si no fos que tem vergonya e mal estar, de hui mais en avant no volgra ab vós parlar. E, doncs, com podets dir que em pusca consolar en veer Déus aunir, no servir ni membrar, ni conèixer ne amar? E, si bé pot bastar tot Déus per si mateix, a mon cor per amar no em basta, car no el vei molt fortment 32 Pois nada do que foi criado O eleva ou O rebaixa, já que Ele é em Si completo, e não tem necessidade de nenhuma criatura. Logo, deveis ser grato do cumprimento que Deus tem em Si por Sua bondade; e tu31, louco, estás triste, quase como se Deus fosse diminuído pelo mal estado em que o mundo se encontra.32 Louco! Como não te alegras com a plenitude da deidade? Despreocupa-te com tudo que foi criado, para que a teu coração baste Deus completo, não minguado. XXXIX – Dom eremita, mal me faz o vosso consolo. Quão forte foi o momento em que vos encontrei! E se não temesse a vergonha e o mal estar, de hoje em diante não desejaria mais convosco falar. Então, como podeis dizer que possa me consolar ao ver Deus ultrajado, não servido, nem lembrado, nem conhecido, nem amado? E se bem pode bastar Deus por Si mesmo, ao meu coração, por amar, não basta, pois não O vejo muito 450 455 460 465 Ramon exprime nessa passagem a visão agostiniana do mal, que não existe como substância objetiva, e sim como mal moral existente em decorrência da livre escolha da criatura humana, que opta livremente pelo pecado e nega a Deus (ou, na terminologia agostiniana, “tem aversão a Deus e amor ao pecado”). Agradecemos a explicação dada pelo Prof. Dr. Jorge Augusto da Silva Santos (Ufes). 34 bé honrar; e car per tan vils causes lo veig tant menysprear, estaig en desconhort, e no em pusc alegrar; mas en ço que Déus és estaig en confortar. fortemente honrado; e como por tão vis coisas O vejo tão menosprezado, estou em desconsolo, e não posso me alegrar, mas, no que Deus é, estou confortado. XL – Ramon, tot quant Déus fa, tot ho fa justament, e, si met en infern li malvat descreent, XL – Ramon, tudo o que Deus faz, fá-lo justamente, e se coloca no Inferno o malvado descrente, não deveis33 por isso ter desolamento; mas como estais irado com o que Deus faz justamente, vossa ira é pecado, e falhais mortalmente contra Deus, e amais aqueles que falsamente crêem contra o verdadeiro Deus, e são desobedientes. E se vós fôsseis bom e leal amante, seríeis grato, pois Deus dá tormento àqueles que todos os dias fazem faltas; pois o homem que bem ama não cria rancor do que faz o Amado, porque Ele o faz retamente. no devets per tot ço haver desolament; e, car vos sóts irat car Déus fa jutjament, vostra ira és pecat, e fallits malament contra Déu, e amats aquells qui falsament créon contra ver Déu e estan desobeent. E, si en vós fos bo e lleial amament, vos seíets pagat; car Déus dóna turment a cells qui tot dia fan ves el falliment; car home qui bé am no fa rancurament de ço que fa l’amat, pus que ho fa dretamet. XLI – N’ermità, eu no em dull per ço que fa el Senyor, ans en tot ço que fa lo llou e lo aor; mas, per ço cal volria que hom li faés honor, e que sobre quant és hom li hagués amor, me dull e mi complanc, e n’estic en 33 470 475 480 XLI – Dom eremita, não me queixo do que faz o Senhor, mas em tudo o que Ele faz, O louvo e O adoro; e por isso, desejaria que o homem Lhe honrasse, e acima de tudo, que Lhe amasse. Assim, dói-me muito, me lamento e 485 Mudança de tratamento: da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita. 35 tristor; e car vós no sabets d’on ve ma greu dolor, no em sabets conhortar ni donar negun secor. Per què és bo que em llexets estar en ira e plor, e aprenets com siats millor consolador, car fort pauc ne sabets; e ja li pecador per vós mais no valran, car no havets ves llor caritat, con Déus sia d’ells gran perdonador. estou em tristeza; e como vós não sabeis de onde vem minha grave dor, não sabeis me consolar nem me dar qualquer socorro. Por isso, é bom que me deixeis estar em ira e choro, e aprendais a ser melhor consolador, pois muito pouco sabeis, e os pecadores por vós não valerão, já que não terão vossa caridade, pois Deus é deles grande redentor. XLII – Ramon, per ço car am que en gauig estiats, e que ira e dolor en nulla res hajats, vos vull bé consolar e prec-vos que aujats: Déus sofer que lo món sia així malvats, XLII – Ramon, como amo que estejais em gozo, e que ira e dor nunca tenhais, desejo vos consolar bem e vos peço que escuteis: Deus suporta que o mundo esteja assim malvado para que Ele melhor possa perdoar por todos os lados, pois quanto mais Ele perdoa, mais existe piedade, e mais Lhe convém gratidão. Por isso, estejais seguro que Deus tem tão alta caridade por Seu povo, que quase todos os homens do mundo serão salvos; pois, se não fossem mais os salvos que os danados, existiria Sua mercê sem grande caridade: por isso consolai-vos na grande mercê de Deus. per ço que ell mills pusca perdonar a tots llats; car, on mais ell perdona, mais ha de pietats, e mais li’n cové grat. Per què segur siats que Déus ha a son poble tan alta caritats, que quaix tots los hòmens del món seran salvats; car, si mais non eren li salvats que els damnats, seria sa mercè senes gran caritats: per què en la gran mercè de Déu vos consolats. 36 490 495 500 XLIII – N’ermità, tot dia em tenits en parlament, e no em lleixats membrar mon angoixós turment, e faits-ho per ço que git a oblidament l’ira e el desconhort d’on me ve llanguiment; mas res no acabats, e faits advocament mais de gran pietat que de gran jutjament. Per què en açò errats, car en Déu egalment són jutjar e perdonar, segons ordenament de les sues vertuts; car nulla no consent que en sa justícia sia null minvament; per què deu pecador haver gran espavent; e és ço per què eu plor, car no ha honrament. XLIV – Ramon, aquells hòmens qui son predestinat cové per gran força que els sion salvat, car, si no ho eron, poria ésser mudat lo saber que Déus ha en contrarietat en lo qual mundament no està 34 35 36 XLIII – Dom eremita, conversastes comigo todo o dia e não me deixastes lembrar meu angustioso tormento, e o fizestes para que lançasse ao esquecimento a ira e o desconsolo de onde me vem o abatimento; mas não acabastes nada, e fizestes defesa mais da grande piedade que do grande julgamento. Por isso, errastes, pois em Deus igualmente estão o julgar e o perdoar, segundo o ordenamento de Suas virtudes, pois Ele nunca consente que em Sua justiça haja alguma diminuição. Assim, o pecador deve ter grande horror, 505 510 515 e é por isso que eu choro, pois não há em Deus honramento.34 XLIV – Ramon, àqueles homens que são predestinados convém, por grande força35, que sejam salvos, pois, se não o fossem, poderia ser alterado contrariamente o saber que Deus tem, e tal mudança não é possível, 520 Nessa última frase optamos em seguir o texto de OE, pois na edição de Batalla a frase não tem Deus como complemento nominal “...pois não há honramento”, o que dificulta o entendimento da idéia. Em OE, “...convém, por fina força”. O sentido da frase é particularmente teológico: a verdade humana se equivoca, a divina, nunca. E mais: esta pode conferir veracidade àquela. Por exemplo, veja o Livro das Maravilhas (OE I, p. 439441). 37 possibilitat, car, si estar hi podia, no seria acabat lo saber que Déus ha, ans seria mermat; e, car està complit, siats, doncs, consolat en lo seu compliment contra el qual faits pecat, en quant no us conhortats en ço qui és ja jutjat e, per la voler de Déu, enaixí autrejat, com ho sab son saber e ho fa ver veritat. XLV – N’ermità, si fóssets home prou bem lletrat mills sabrerets parlar d’home predestinat, ne hàgrets en oblit de Déu sa llibertat la qual ha en si lex e en quant ha creat, per la qual ha a home donada llibertat co’l vulla molt servir, no que sia forçat, con Déus sia tan bo que es deu servir de grat; lo qual servir no pot si, de necessitat, per hom predestinat fos servit e amat, e fóra hom salvat e no fóra jutjat; car judici no pot ésser sens llibertat, ni llibertat costreny prescits predestinat. 37 38 ni pois, se assim fosse, não seria perfeito o saber que Deus tem, mas diminuído. Mas como ele é perfeito, estejais, então, consolado em Sua completude, contra a qual cometeis pecado quando não vos confortais no que já foi julgado, e, pela vontade de Deus, assim outorgado, como o sabe Seu saber, e o faz a verdadeira verdade.36 XLV – Dom eremita, se fôsseis um homem muito bem letrado, saberíeis falar melhor sobre o homem predestinado, nem esqueceríeis a liberdade de Deus, a qual tem em Si mesmo e no que criou. Essa liberdade Ele deu ao homem para que desejasse servi-Lo sem que fosse forçado, pois Deus é tão bom que deve ser servido de bom grado, o qual servir não pode existir por necessidade, nem Deus ser servido e amado pelo homem predestinado, pois o homem seria salvo sem ser julgado, e não pode existir juízo sem liberdade, nem a liberdade constranger precitos37 ou predestinados.38 525 530 535 540 Precito (do latim praescito) – sabido de antemão, isto é, os réprobos (que se acham de antemão condenados). Ou seja, os precitos sabem que serão condenados, enquanto os predestinados podem exercer o livrearbítrio – se optam pela salvação ou pela danação. 38 XLVI – Ramon, si en vós fos molt gran esperança, si tot lo món està en molt greu balança, del seu mal estament no hàgrets malanança; car Déus, qui es tot ple de gran pietança, aportarà lo món en breu en bonança tant que cascun home n’haurà alegrança. E que açò sia ver hajats-hi fiança per ço car Déus donà a hom començança, ab mercè e bontat qui há en sa semblança; e si vós per açò no lleixats tristança, no haurets ab bontat ni mercè ni fiança, e serets contra Déu e la sua amistança. XLVII – N’ermità, ans que el món sia en bon estament, serà fait a Déu molt gran avilament; encara que no veig far null ordenament con lo temps sia prop, car ço que en cort present lo Papa e els cardenals no ho prénon mantinent, 39 XLVI – Ramon, se em vós a esperança fosse muito grande, e se todo o mundo está num grave desequilíbrio, do seu mal estado, não teríeis desventura; pois Deus, que é pleno de grande piedade, em breve trará ao mundo uma bonança tão grande, que cada homem terá alegria. E para que isso seja verdade, tenhais confiança, porque Deus deu ao homem princípio com mercê e bondade que tem em Sua semelhança.39 E se vós, por isso, não deixardes a tristeza, não tereis bondade, mercê nem confiança, e sereis contra Deus e a Sua amizade. XLVII – Dom eremita, antes que o mundo esteja em bom estado será feito grande vitupério ao verdadeiro Deus. E mais: não vejo fazerem nenhum ordenamento para que os tempos sejam próprios, pois o que apresento na Corte, ao Papa e os cardeais, eles não o fazem rapidamente, 545 550 555 No princípio, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27). Assim, a passagem tem o seguinte significado metafísico-transcendental: a bondade e misericórdia presentes em Deus no instante da criação são os fundamentos da fé que o homem deve ter n’Ele para que o mundo seja salvo ou, nas próprias palavras de Ramon, “...para que o mundo esteja em paz”, isto é, para que a paz chegue ao mundo – e isso deve principiar nos corações dos homens bondosos que estão atormentados pela miséria do mundo. 39 ans ho van allongant; d’on hai marriment tant, que no en pusc haver negun consolament; car ço que eu los present mostra tot clarament l’ordenament del món, qui es pot far molt breument, e no ho tenen a re, ans se’n fan gabament com si eu fos home fat qui parlàs follament; per què d’aitals hòmens hai desesperament. XLVIII Consirà l’ermità si per res poria aconhortar Ramon, qui tan fort planyia; per ço dix a Ramon:– Que sancta Maria, e ab ella ensems cascuna jerarquia dels àngels e los sants, prégon nit e dia a Jesurist, son fill, que per mercè sia que en breu do al món ordenament e via, en ell onrar, servir. Per què açò us deuria consolar, Ramon, car Crist toda via fa ço d’on és pregat per sa maire pia, per los àngels e els sants; per què us prec ço sia conhort vostre, e gauig ab vós d’hui mai estia. 40 pelo contrário, o vão protelando. Por isso, tenho grande langor, tanto que não posso ter nenhum consolo, pois o que os apresento mostra tão claramente o ordenamento do mundo, que se poderia fazer brevemente, e não o consideram, e fazem escárnio como se eu fosse um homem louco que falasse loucamente, por isso, de tais homens tenho desespero. XLVIII O eremita considerou se de algum modo poderia consolar Ramon, que tão forte lamentava; e disse a Ramon: – Que Santa Maria, e juntamente com ela cada hierarquia dos anjos e dos santos40, pedia noite e dia a Jesus Cristo, Seu filho, que por Sua mercê desse ao mundo, em breve, ordenamento e caminho para honrá-Lo e servi-Lo. Por isso, vós deveríeis vos consolar, Ramon, pois Cristo sempre faz o que é pedido por Sua piedosa mãe, pelos anjos e santos; pelo que vos peço que tenhais vosso consolo, e que o gozo esteja convosco. 560 565 570 575 O tema da hierarquia dos anjos (angelologia) foi tratado pelo Pseudo-Dionísio, o Areopagita, em sua obra Da Hierarquia Celeste (séc. V), e amplamente adotado na Idade Média. Portanto, ele é recorrente em Ramon Llull, que inclusive escreveu uma obra dedicada aos anjos (Livro dos Anjos, c. 1274). Ver também LLINÀS, Carles. Ars angelica. La gnoseologia de Ramon Llull. Barcelona: Institut d’Estudis Catalans, 2000. 40 XLIX – N’ermità, can consir que la Dona d’amor, e Dona de valor, de just, de pecador, e cascú dels sants préguen nostre Senyor con tot lo món faça a Jesucrist honor, e veig , que lo món li fa tanta de deshonor, adoncs en cuit morir d’ira e dolor, e car són tan indigne li malvat peccador, que Déus quaix no sosté que hom prec per llor; e enaixí lo món roman en sa error, e quaix no és qui de Déu vulla donar llausor, ans llausa si mateix, son fill e son austor; doncs, qui deuria haver null gauig sinó tristor. L – Ramon, a mi no par siats hom pacient, per ço car per re volets consolament. E com no membrats Job, qui tant fo perdent e qui en sa persona sostenc tant de turment, e esdevenc tan paubre que en si no hac nient? 41 42 XLIX – Dom eremita, quando considero que a Senhora do amor e Senhora do valor, do justo e do pecador, e cada um dos santos pedem a Nosso Senhor para que todo o mundo faça a Jesus Cristo honor, e vejo que o mundo Lhe faz tanta desonra, então penso em morrer de ira e dor, pois são tão indignos os malvados pecadores, que Deus quase não suporta que o homem peça por ele, e assim o mundo permanece em seu erro, e quase não existe quem a Deus queira dar louvor, e sim, louvam a si mesmos, seus filhos e seu açor.41 Portanto, quem deveria ter gozo e não tristeza? L – Ramon, não me parece que sejais um homem paciente, e por isso não tereis consolo por nada. E por que não lembrais de Jó, que perdeu tanto, suportou tantos tormentos 580 585 590 e se tornou tão pobre que não tinha nada para si?42 Açor (do latim accetore). Designação às aves de rapina do gênero accipter, acciptrídeas, que têm hábitos diurnos, se assemelham ao falcão. Interessante passagem em que Ramon assinala a ordem social receptora do seu poema: a nobreza (a que poderia, de fato, iniciar a mudança do estado de coisas do mundo). Jo 1, 13. 41 Emperò consolà’s, e vos per res vivent no us volets consolar, e estats sanament, e havets heretat, diners e vestiment, infants e d’altres causes d’on hom ha pagament; e car a Déu no plau home impacient, no sosté que per vos vengua a compliment lo seu fait que menats que haja honrament. LI – N’ermità, no és molt si hom és consolat en perdre sos infants, diners ou heretat, e en estar malalt, pus que a Déus ve de grat. Mas, qui es consolarà que Déus sia oblidat, menyspreat, blastomat, e tan fort ignorat, com de tot ço sia Déus fortment despagat? Encar que no sabets con eu sui menyspreat per Déu, ferit, maldit e greument blastomat, e en perill de mort, e per barba tirat, e per vertut de Déu pacient sui estat; mas que Déus sia al món tan pauc graït, honrat, no és hom en lo món qui me’n fes conhortat. Contudo, consolou-se, e vós, por nada vivo desejais vos consolar, e estais são, e tendes herdade, dinheiro e vestimentas, filhos e outras coisas nas quais o homem tem satisfação. E como a Deus não apraz um homem impaciente, não suporta que por vós tenha cumprimento o feito que conduzes, nem que tenhais honramento. LI – Dom eremita, não é muito se o homem está consolado em perder seus filhos, dinheiro ou herdades, e em estar doente, pois isso agrada a Deus. Mas, quem pode se consolar por Deus ser esquecido, menosprezado, blasfemado e tão fortemente ignorado, e que Deus com tudo isso esteja fortemente descontente? E mais, não sabeis como eu fui menosprezado por Deus, ferido, amaldiçoado, e gravemente blasfemado, em perigo de morte e a barba cortada, e por virtude de Deus fui paciente; mas por Deus ser tão pouco agradecido e honrado pelo mundo, não existe homem no mundo que me deixe consolado. 42 595 600 605 610 LII – Ramon, segons que em par, tu fas tot ton poder con Déus per tot lo món honor poguès haver; per què Déus just te’n deu aitant de grat haver, con si el fait se complia. Per què et deurà valer aiçò a consolar e ton dol remaner; car mèrit n’haràs gran, e pots n’haver esper de molt gran guasardó; e gita a noncaler lo falliment dels folls que a Déu fan desplaer, e alegra’t en tu e en ton captener, e no sies trop forts en ço que vols haver, ni en ço car fos altres no fan a ton voler; e a tu abast Déus per amar e témer. LIII – N’ermità, no és hom creat principalment per ço que haja gran gloriejament: ans és per ço que Déus haja gran honrament en el món per son poble. Per què eu no sui jausent si hai gran guasardó, ni no estaig dolent si n’hai pauc, car no és ço món començament; ans és tota ma ira, mon dol, e marriment, 43 44 45 LII – Ramon, segundo me parece, tu fazes43 tudo o que podes para que Deus possa ser honrado por todo o mundo. Por isso, Deus deve ter por ti grande gratidão como se tivesses cumprido o feito. Isso deverá valer para te consolar, embora tua dor deva permanecer, pois terás grande mérito, e poderás ter esperança de uma grande recompensa. Assim, expulsa com indiferença as faltas dos loucos44 que a Deus causam desprazer, alegra-te em ti e em teu comportamento, e não fiques muito inquieto com o que desejas ter, nem porque os outros não fazem tua vontade. Para ti, que baste amar e temer a Deus. LIII – Dom eremita, não existe homem criado principalmente para ter mérito e glória,45 mas sim para que Deus tenha grande honramento no mundo por Seu povo. Por isso, não estou contente se tenho grande recompensa, nem estou doente se tenho pouco, pois não é meu princípio. Mas toda a minha ira, minha dor e Mudança de tratamento na fala do eremita, da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular. Em OE, “...as faltas dos outros” (“lo falliment dels altres”). Em OE, “...para ter grande glória” (“per ço que haja gran gloriejament”). 43 615 620 625 630 car no és en lo món fait tal ordenament con Déus fos mais amat e honrat per tota gent, e que tot home fos en fe de salvament. E, car vós me volets dar consolament d’açò d’on no es pot dar, parlats-me per nient. LIV – Ramon, qual és lo fait que vós tant desirats, per lo qual en lo món fos Déus tant fort honrats? car poria ésser que en lo fait no siats, e que altre sia al fait que procurats, per lo qual lo món sia a bona fi menats. Car, si altre es lo fait, per nient treballats, e podets treballar, si mil anys viviats, e no vendrets a fi dáçò on treballats; car hom no pot complir fait on és desviats. Per què us prec que lo fait clarament me digats, e que ambdòs vejam si el fait on vós estats és aquell per què Déus pot ésser mais amats. 46 47 melancolia existem porque não foi feito no mundo tal ordenamento para que Deus fosse mais amado e honrado por toda a gente, e que todos os homens tivessem fé na salvação. E, como vós desejais me dar consolação do que não se pode dar, falai-me em vão. LIV – Ramon, qual é o feito que vós46 tanto desejais, e pelo qual Deus será no mundo tão fortemente honrado? Pois poderia ser que ao feito vós não fôsseis adequado, e que outro ao feito fosse melhor indicado, através do qual o mundo seria a um bom fim levado. Pois, se de outro é o feito, por nada tendes trabalhado, e poderíeis trabalhar, se mil anos vivêsseis, mas não veríeis o fim desejado,47 pois o homem não pode cumprir um feito do qual está desviado. Por isso, vos peço que me digais claramente o feito, e que ambos vejamos se o feito onde vós estais é aquele pelo qual Deus pode ser mais amado. Mudança de tratamento na fala do eremita, da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural. Em Batalla, “...não veríeis o fim daquilo que trabalhais”. Optamos por OE. 44 635 640 645 LV – N’ermità, la manera con Déus fos mais amat, ja la vos hai contada, si bé ho havets membrat: ço és, que el Papa hagués mant valent hom lletrat, qui volguésson per Déu ésser marturiat, per ço que en tot lo món fos entès e honrat; e a cascú d’aquells llenguatge fos mostrat, segons que a Miramar ha estat ordenat, - e conciència n’haja qui ho ha afollat! e que al passatge fos lo deè donat de tot quant posseeixen li clergue e el prelat; e que açò tant duràs tro que fos conquistat lo Sepulcre. E d’açò llibre n’hai ordenat. LVI N’ermità, és encara altre ordenament lo qual serà al passatge gran enantament, e a destruir l’error de la gent: que lo Papa feés que a son uniment venguésson cismàtics per gran disputament, del qual bon disputar havem fait 48 49 50 51 LV – Dom eremita, a maneira como Deus pode ser mais amado já vos contei, se bem o lembrais, isto é, que o Papa tivesse muitos homens letrados48 que, por Deus49, desejassem ser martirizados, para que, em todo o mundo, Ele fosse entendido e honrado. E que a todos eles a linguagem fosse mostrada50, conforme o que em Miramar tem sido ordenado, – e que tenha consciência quem o malogrou! E mais: que à Passagem fosse dado o dízimo de tudo o que possuíssem o clérigo e o prelado, e que isso durasse até que fosse conquistado o Sepulcro. Sobre isso, um livro foi ordenado. LVI – Dom eremita, ainda existe outro ordenamento, que daria à Passagem um grande avanço para destruir o erro de tanta gente: que o Papa fizesse que a ele viessem os cismáticos para uma disputa, 650 655 660 665 sobre isso fiz um tratado. Em Batalla, “...que o Papa tivesse muitos valentes homens letrados”. Optamos por OE e suprimimos a palavra “valente”. Em OE, “...por Jesus”, significativa diferença entre os manuscritos! “...a linguagem fosse mostrada”, isto é, a língua árabe. Isto é, o Santo Sepulcro. 45 tractament; e els cismàtics cobrats, qui són mant hom vivent, no és hom qui pogués contrastar malament a l’Esgleia, per ferre ni per null argument; e del Temple e Espital fos fait un uniment, e que llur major fos rei del Sant Muniment; per què a honrar Déus no sai tal tractament. LVII Consirà l’ermità si Ramon deia veritat, e enfre si mateix estec molt apensat, e no poc atrobar pus profitós tractat que cell que diu Ramon; d’on li pres pietat, e penedí’s molt fort con tant l’hac treballat; ab Ramon volc ésser trist e desconsolat, e pregá’l carament que li fos perdonat, en plorant, sospirant, e dix:– Ah, veritat, devoció, caritat! E ves on és anat lo bom grat que a Déu deuria ésser donat? Quan Ramon l’ermità viu ab el acordat, adoncs lo va baisar: Ensems han molt plorat. 52 E com os cismáticos, que são muitos, recuperados, não haveria quem pudesse contrastar maldosamente a Igreja, nem por ferro, nem por nenhum argumento. E que do Templo e do Hospital fosse feita uma união, e que seu maior fosse rei do Santo Monumento51; pois, para honrar a Deus, não existe mais elevado tratamento. LVII O eremita considerou se dizia a verdade; e esteve muito pensativo, sem poder encontrar mais proveitosa solução que aquela que disse Ramon. Por isso, apiedou-se52, e arrependeu-se muito fortemente pelo tanto que o fatigou, e com Ramon desejou estar triste e desconsolado. Pediu-lhe ternamente que o perdoasse chorando e suspirando, e disse: – “Ah, verdade, devoção e caridade! Onde está a gratidão que a Deus deveria ser dada?” Quando Ramon viu que com ele o eremita concordava, beijou-o. E juntos choraram muito. Nesse momento, por piedade, o eremita muda sua posição em relação às propostas lulianas. 46 670 675 680 LVIII – Ramon, dix l’ermità, con poríem mover lo Papa e els cardenals, e lo fait obtener? car en tan noble fait vull tots temps romaner, e a ell a tractar vull far tot mon poder car fait és per què l’hom porà molt mais valer; e car abans no el ví, hai-ne molt gran despler, car si ans l’hagués vist res no em pogra tener que eu prengués aràbic e lo vostre saber, per anar als sarraïns per la fe mantener senes paor de mort, e gran plaer haver en morir, per Jesús honrar e cartener, mais val per ell morir que per si vida haver. LIX – N’ermità, eu són las d’aquest fait amenar en la cort, pus no hi puis nulla re acabar; e si vos volíets en la cort procurar est fait de Jesucrist e vostre poder far en la cort llongament, bé poria estar que el fait vengués a fi si us volon escoltar lo Papa e els cardenals; si no que quaix joglar vos féssets en la cort e los Cent noms cantar, 53 54 LVIII – Ramon, disse o eremita, como poderíamos mover o Papa e os cardeais, e o feito obter? Pois em tão nobre feito desejo sempre permanecer, e para tratá-lo, quero fazê-lo com todo o meu poder pois se o feito estiver no mundo, mais ele poderá valer.53 E por não tê-lo visto antes, tive muito desprazer,54 pois se o tivesse visto antes, nada poderia deter que eu aprendesse árabe e o vosso saber, para ir aos sarracenos para a fé manter sem pavor da morte, e ter grande prazer em morrer para a Jesus honrar e querer, pois mais vale por Ele morrer que para si mesmo viver. LIX – Dom eremita, eu estou cansado desse feito explicar na corte, pois não há mais nada a acabar. E se vós desejais na corte procurar este feito de Jesus Cristo e vosso poder realizar longamente na corte, bem poderíeis tentar o feito terminar, se vos desejassem escutar o Papa e os cardeais, ainda que jogral 685 690 695 700 precisasse fazer na corte, e os Cem Nomes cantar,55 Em Batalla, “pois com o feito o homem poderá mais valer”. Optamos por OE, já que o objetivo da Arte de Llull é converter muçulmanos e judeus ao cristianismo e, assim, unificar o mundo. O eremita se refere à missão maior de Llull, que é, além do estudo de sua Arte, a propagação de escolas para missionários aprenderem o árabe e saírem pelo mundo difundindo o cristianismo. 47 los quals hai faits de Déu e posats en rimar per ço que els hi cantàs e parlàs sens duptar; mas no ho hai de consell, per ço que menysprear no faça los meus libres que Déus m’ha faits trobar. o qual fiz sobre Deus, de forma a rimar LX – Ramon, s’eu en la cort estaig, vós on irets? Ne per què llai ab mi vós no procurarets lo fait de Jesucrist, pus que mogut l’havets? Ne, si hom vos escarneix, e vós en què en serets? Vós manats a mi far ço que far no volets! LX – Ramon, se eu estiver na corte, onde vós estareis? Por que não procurais comigo o feito de Jesus Cristo, já que o começastes? E se de vós escarnecerem, onde estareis? Per què em par que en est fait ni en altre no valets. Mas anem a la cort, e en res no dubtets, e no siats d’aquells qui díon: «Senyors, fèts!» ço que ells no farion. Per què d’açò devets ésser envergonyit, e escusa no havets, ans faits hipocrisia, de què pecat havets, e lo bé que havets fait per vergonya perdets. LXI – N’ermità, eu prepòs als sarraïns tornar per ço que a la fe los pusca aportar; 55 705 para que eles o cantassem e falassem sem duvidar, mas isso não é aconselhável, para ninguém menosprezar os meus livros que Deus me fez criar. Vós me mandais fazer o que não desejais! Porque me parece que nem neste feito nem em outro valeis. Mas vamos à corte e de nada duvideis, e não sejais daqueles que dizem: «Senhor, fazei! » o que eles não fariam. Porque disso deveis envergonhar-vos, e desculpa não tereis, e sim fazeis hipocrisia, e por isso pecais, e, por vergonha, perdeis o bem que tendes feito. 710 715 720 LXI – Dom eremita, eu proponho aos sarracenos voltar para que a fé possa lhes mostrar. Trata-se da obra Os Cem Nomes de Deus (Cent noms de Déu, Liber de centum nominibus Dei), escrita em Roma em 1288. O livro aspirava ser uma refutação da tese islâmica da inimitabilidade do Corão. No prólogo, Ramon propôs que seus versos fossem recitados nas igrejas da mesma forma que as suras do Corão são recitadas nas mequitas. HAMAMOUCHE, Fatma Ben. “Ramon Llull y el mundo islamico: una relacion apasionada”. In: Revue d’Histoire Maghrebine, 77-78, 1985. 48 e vaig sens por de mort, que fa pus lleu portar, que vergonya sofrir, per Jesucrist honrar, la qual en res no tem, ans la deu hom amar. Mas per ço que ma art no fassa menysprear en tenir la manera que ténon li joglar, encar que en altre lloc crei mais de bé a far, per què adés no prepós a la cort retornar. E car vos tan forment me volets encolpar, pot ésser que ho façats per vós a escusar a anar a la cort; per què ho lleixem estar. LXII Penedí’s l’ermita con hac Ramon reprès, e dix-li que per ço que ab ell en cort estés, l’havia tan fortment enaixí escomès. – Ramon, dix l’ermità, dos anys prepòs o tres a estar en la cort, sotsposat que no res hi faça; mas aprés prepòs que eu tengués per lo món ça e lla, a prelats e marquès, religioses e reis, e fer ço que pogués en menar aquest fait d’on me havets escomès. Mas volgra que en mon lloc altre en cort estegués, e que tot enaixí un tal clergue se’n fes, tro que aquest fait en la cort se presés. 56 E vou sem medo da morte, que é mais leve suportar que sofrer vergonha por Jesus Cristo honrar, e não temo nada, e sim devo amar. Mas para que minha Arte não possam menosprezar por ter a forma que usam os jograis, ainda que creia fazer melhor em outro lugar, agora não desejo à corte retornar. E como vós tão fortemente desejais me culpar talvez o façais para vos desculpar por irdes à corte. Por isso, é melhor nos separarmos. LXII O eremita se arrependeu por ter repreendido Ramon, e lhe disse que, para que fosse com ele à corte, havia tão fortemente assim lhe atacado. – Ramon, disse o eremita, proponho dois anos ou três estardes na corte, supondo que nada ali façais, mas proponho que eu vá pelo mundo, a prelados e marqueses, religiosos e reis, e fazer o que posso para acabar esse feito que me haveis encomendado. Mas desejaria que em meu lugar outro na corte estivesse e que um clérigo se encarregasse56 até que esse feito na corte fosse realizado. 725 730 735 740 Em OE, “E que assim um tal círculo fosse feito”, isto é, um círculo de instigadores dedicados à empresa luliana. 49 LXIII – N’ermità, dix Ramon, bé havets consirat, car per aital clergue pot ésser acabat lo fait qui és bo e gran a la crestianitat. E digats ça e lla, a reis e a prelat, que si el fait tost no es pren, que ja és ordenat per sarraïns que els tartres a ells síon girat, e ja n’han convertits una gran quantitat; e els tartres, convertits en sarraïnitat lleu poran destruir quaix tota crestiantat, en tant que no serà cristià ab regnat, ne null prelat haurà cavall gras, sejornat. Vejats, doncs, n’ermità, lo món a què és tornat. LXIV – Ramon, dix l’ermità, fort volria saber per qual raó se vol Déus així captener del món, qui és seu, e gita al noncaler de la sua bontat; com ho pot sostener que tants pecadors vagen en infern mal haver. Per què us prec, Ramon, que me’n digats lo ver, car on mais me direts, mais sabrai retener, e lo fait que em lliurats mills porai mantener. Car, pus que elmón fo fait tro ara, a mon 57 LXIII – Dom eremita, disse Ramon, bem haveis considerado pois por tal clérigo pode ser terminado o feito que é bom e grande para a Cristandade. E digais aqui e ali, a reis e a prelados, que se o feito não começa rapidamente, que já está ordenado pelos sarracenos que os tártaros a eles sejam convertidos, e que já converteram uma grande quantidade, e os tártaros convertidos em sarracenos logo poderão destruir quase toda a Cristandade, a tal ponto que não existirá cristão com reinado, e nenhum prelado terá cavalo descansado. Vejais, pois, eremita, no que se tornou o mundo. LXIV – Ramon, disse o eremita, muito desejaria saber por qual razão Deus deseja assim se comportar com o mundo, que é Seu, e é indiferente à Sua bondade. E como pode suportar que tantos pecadores vão ter o mal no Inferno. Por isso, vos peço, Ramon, que me digais a verdade57, pois quanto mais me disserdes, mais saberei reter, e o feito que me entregais, melhor poderei manter. Pois desde que o mundo foi feito até Em OE, “Que me digais vosso saber”. 50 745 750 755 760 765 parer, si és un home salvat, mil ne són en doler en infern per totstemps. E açó, co es pot fer que l’Esgleia ne hom no en fa son poder? agora, a meu parecer, se um homem é salvo, mil estão em dor no Inferno por todos os tempos. E como isso pode ocorrer sem que a Igreja nem os homens façam todo o seu poder? LXV – N’ermità, ja us hai dit, si bé vos pot membrar, que Déus mais creà hom per si servir, honrar que per ço que en hom hagués gloriejar. E car hom no està en la fi de crear, LXV – Dom eremita, já vos disse, se bem podeis lembrar, que Deus criou o homem mais para servi-Lo e honrá-Lo que para que ele pudesse ser vangloriado. E como o homem não está no fim para o qual foi criado, e mais deseja para si procurar a salvação, que a Deus honrar e o Seu bem-estar, ele não pode em graça estar, e sim está em pecado, e sentado à beira do abismo. Por isso o mundo se perde e não deseja despertar, e não me maravilho se Deus não o deseja amar ou se deixa o demônio fazer tanto mal no mundo para que dos erros que recebe possa fortemente se vingar. en quant mais desira per si procurar salvació que a Déu honrar e benestar, per açò aital hom no pot en grat estar, ans està en pecat, assís en l’abissar. Per què lo món se perd e no es vol despertar, e gens no em meravell si Déus no el vol amar ni si lleixa el demoni en lo món tant mal far, per què del tort que pren se pusca fort venjar. LXVI L’ermità e Ramon presseren comiat e són-se, en plorant, baisat e abraçat, e cascú dix a l’altre que a Déu fos comanat e en oració l’u per l’autre membrat. Al partir s’eguarderon ab molt gran caritat, pietat e dolor e, ab lo genoll ficat, e cascú senyà l’altre e pus, agraciat, LXVI O eremita e Ramon se despediram, e, chorando, beijaram-se e abraçaram-se, e um disse ao outro que a Deus fosse confiado e em oração um pelo outro fosse lembrado. Ao partirem, olharam-se com grande caridade, piedade e dor, e ajoelhados abençoaram-se e agraciaram-se, 51 770 775 780 785 lo u es partí de l’altre ab mant suspir gitat, car mais no preposaven que fossen assemblat en est món, mas en l’altre, si a Déu ve de grat. E quan l’u de l’autre se fo un petit llunyat, tantost foron cascú per l’altre desirat. e um partiu do outro com muitos suspiros, pois não acreditavam que iriam mais se encontrar neste mundo, mas no outro, se a Deus agradasse. Tão logo estiveram um pouco afastados um do outro, um foi pelo outro fortemente desejado. LXVII L’ermità remembrà lo treball e l’afan – Oh Déus gran, piados, per mercè vos deman que ab vos sia Ramon e que el guardets de dan! A vós, Déus poderós, amic Ramon coman, e al món trametets hòmens que hagen talant de mort per vostra amor, e qui vagen mostrant veritat de la fe, per lo món preïcant, segons que ja Ramon ho va bé començant. LXVII O eremita relembrou o trabalho e o esforço que Ramon havia feito por muitos anos, e, além disso, expunha-se a muitos perigos. Levantou seus olhos aos céus, uniu suas mãos, ajoelhou-se, e com grande zelo58 e amor, a Deus disse em prantos: – Oh Deus grande59, piedoso, por mercê Vos peço que convosco esteja Ramon e que o protejais dos danos! A Vós, Deus poderoso, confio meu amigo Ramon, e ao mundo enviai homens que tenham disposição para morrer por Vosso amor, e que mostrem a verdade da fé, pelo mundo pregando, segundo o que Ramon muito bem começou. LXVIII Quan Ramon remembrà la molt gran tempestat en la qual llongament hac estat tabuixat LXVIII Quando Ramon relembrou a grande tempestade sob a qual por longo tempo esteve en què Ramon havia estat en mant an, e encar que es metia en perill qui és molt gran. Al cel llevà sos ulls, mans juntes, genollant, ab gran zel e amor a Déu dix en plorant: 58 59 Em OE, “piedade”. Em OE, “humilde”. 52 790 795 800 805 e membrà l’ermità que a ella s’era dat, adoncs plorà molt fort e hac d’ell pietat, e dix a Jesucrist, mans juntes, genollat: – Oh vós, ver Déus e hom, per qui eu hai treballat con fóssets per lo món conegut e amat! Si a dretura plau que vós me n’hajats grat, plàcia-us que l’ermità sia remunerat, pus que s’és mès tan fort en ma societat, e faits per ell complir ço on ay pauc enançat, e a mi ajudats a enançar crestiantat. LXIX Fenit lo desconhort que Ramon ha escrit; en lo qual del món l’ordenament ha dit e en rimes posat, per ço que no s’oblit; car poria ésser que mant home ardit se metra en lo fait, tro que sia complit ço que tant ha Ramon al Papa requerit. Car si per lo Papa lo fait és establit e que li cardenal hi hagen consentit, poran ésser del món tot li mal departit, e tot lo món serà a Déu tant abellit que a la fe crestiana no serà contradit. 60 transtornado, e lembrou-se do eremita que a ela se lançou, então chorou muito e teve piedade dele, e, mãos juntas, ajoelhado, disse a Jesus Cristo: – Oh Vós, verdadeiro Deus e homem, por quem eu trabalhei para que fôsseis conhecido e amado pelo mundo! Se ao direito apraz que por mim vós tenhais gratidão, peço-vos que o eremita seja recompensado, pois ele se pôs tão forte em minha companhia, e façais com que ele cumpra o que pouco avancei, e me ajudeis a expandir a Cristandade. LXIX Findo está o Desconsolo que Ramon escreveu, no qual disse o ordenamento do mundo, e em rimas pôs para que não seja esquecido, pois poderia ser que muitos homens corajosos ponham-se no feito, até que seja cumprido o que tanto Ramon requereu ao Papa. Pois se pelo Papa o feito fosse estabelecido e os cardeais60 o consentissem, poderiam do mundo fazer todo o mal partir, e todo o mundo seria tão atraído para Deus que a fé cristã61 não seria refutada. Em OE, “e cada um dos seus freires tenham consentidos”. 53 810 815 820 825 Aquest bell desconhort do al Sant Espirit. Este Desconsolo confio ao Espírito Santo Aquest desconhort canta’s en lo so de Berart Este Desconsolo canta-se ao som de Berart. 61 Em OE, “a fé romana”. 54 Canto de Ramon (1300) 55 Canto de Ramon (1300) Ramon Llull (1232-1316) Trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes) 62 Som creat e ésser m’és dat a servir Déu que fos honrat, e som caüt en mant pecat e’n ira de Déu fui pausat. Jesús me venc crucificat, volc que Déus fos per mi amat. Fui criado e o existir me foi dado para servir a Deus e ser honrado, mas caí em muitos pecados, e na ira de Deus fui colocado. Jesus veio a mim crucificado, E quis que Deus fosse por mim amado. Matí ané querre perdó a Déu, e pris confessió ab dolor e contrició. De caritat, oració, esperança, devoció, Déus me fé conservació. De manhã fui pedir perdão a Deus, e fiz confissão com dor e contrição De caridade, oração, Esperança, devoção, Deus me fez conservação. Lo monestir de Miramar fiu a frares Menors donar, per sarraïns a preïcar. Enfre la vinya e’l fenollar amor me pres, fé’m Déus amar, e’nfre sospirs e plors estar. O Mosteiro de Miramar fiz aos frades Menores dar para aos sarracenos predicar. Entre a vinha e o funchal62 o amor me tomou e me fez a Deus amar, e entre suspiros e lágrimas estar. 05 10 15 Planta umbelífera medicinal. Ademais “entre a vinha e o funchal” era o locus amoenus da poesia medieval: “O tema da natureza paradisíaca é muito recorrente tanto na literatura medieval como um todo quanto nos escritos lulianos. Ele possui um título: locus amoenus. O ambiente paradisíaco é tão belamente descrito no Livro do gentio que ultrapassa o próprio sentido de cenário que serve de ambiente para o futuro debate e passa a ser mais um personagem. Os conceitos de “flor”, “fruto” e “árvore” remetem a coisas agradáveis, belas, boas, e que predispõem os protagonistas e o próprio leitor a uma felicidade dialética e amorosa graças à força poética do ambiente. Essa é uma característica cultural do século XIV: a jardinagem, isto é, a jardinagem com um sentido metafísico e transcendental. O tema do jardim como refúgio do mundo e local ideal para a discussão intelectual (ou mesmo a procura do amor), mais do que remontar à tradição clássica de Virgílio (70-19 a.C.), possuía então uma forte influência da estética islâmica.” – COSTA, Ricardo da, e PARDO PASTOR, Jordi. “Ramon Llull e o diálogo inter-religioso: cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: o Livro do gentio e dos três sábios (c.1274) e a Vikuah (c. 1264) de Nahmânides sobre a Disputa de Barcelona de 1263”. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes e LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro: UERJ, 2004 (cd-room). 56 63 64 65 66 67 Déus Paire, Fil, Déus Espirat, de qui és Santa Trinitat, tracté com fossen demonstrat. Déus Fill del cel és davallat; de una verge està nat, Déu e home, Crist apellat. Deus Pai, Filho, Deus Espirado63, que é Santa Trindade, tratei como fosse demonstrada.64 Deus Filho, que desceu do céu, nasceu de uma Virgem, Deus e homem, chamado Cristo. 20 Lo món era’n damnació; morí per dar salvació Jesús, per qui’l món creat fo. Jesús pujà al cel sobre’l tro; venrà jutjar li mal e e’l bo no valran plors querre perdó. O mundo estava em danação, morreu para dar a salvação Jesus, por quem o mundo foi criado. Jesus subiu ao céu sobre o trono, virá para julgar o mau e o bom, não valerão prantos pedindo perdão. 25 Novell saber hai atrobat; pot n’hom conèixer veritat e destruir la falsetat. Sarraïns seran batejat, tartres, jueus e mant errat, per lo saber que Déus m’ha dat. Novo saber encontrei, por ele se pode conhecer a verdade e destruir a falsidade. Sarracenos serão batizados, tártaros,65 judeus e todos os errados, pelo saber que por Deus me foi dado. Pres hai la crots; tramet amors a la Dona de pecadors que d’ella m’aport gran secors. Mon cor està casa d’amors e mos ulls fontanes de plors. Entre gauig estaig e dolors. Tomei a cruz66, envio amores à Senhora67 dos pecadores que d’Ela me venham grandes socorros. Meu coração é casa de amores e meus olhos fontes de lágrimas entre gozo, retalhes e dores. 30 35 40 O verbo espirar em catalão medieval – e especificamente na filosofia luliana – se refere ao ato de amor divino de criar o Filho e o Espírito Santo, mas também o ato do Espírito Santo de iluminar a criatura humana (ver GGL, vol. II, 1983, p. 355). Portanto, ultrapassa e muito o sentido em português, que é o de exalar, desprender, emanar, emitir sopro. A demonstração (prova) da Santíssima Trindade aos incrédulos dar-se-ia por meio de sua Arte. A palavra tártaro deriva de Ta-ta (ou Dada), tribo mongol que habitava a Tartária, região ao noroeste da atual Mongólia no século V. Foi utilizada pela primeira vez no século XIII para designar os povos que dominaram partes da Ásia e Europa sob a liderança mongol. Contudo, Ramon Llull distingue mongóis de tártaros. Veja a Doutrina para crianças, LXXII, 3. Para a questão mongol na filosofia luliana, ver GAYÀ, Jordi. “Ramon Llull en Oriente (1301-1302): circunstancias de un viaje”. In: SL 93, 1997, p. 25-78. Nos anos seguintes, Llull viajou a Chipre, Armênia e provavelmente Jerusalém. “Dona”, denominação medieval de Santa Maria 57 Som hom vell, paubre, menyspreat, e hai trop gran fait emparat. Grans res hai de lo món cercat; mant bon exempli hai donat: poc som conegut e amat. Sou um homem velho, pobre, menosprezado, não tenho ajuda de nenhum homem nascido, mas comecei um grande feito. Grande coisa do mundo tenho buscado, ótimo exemplo tenho dado, mas sou pouco conhecido e amado. Vull morir en pèlag d’amor. Per ésser gran no hai paor de mal príncep ne mal pastor. Tots jorns consir la desonor que fan a Déu li gran senyor qui meten lo món en error. Desejo morrer em um pélago de amor68 Por ser grande não tenho pavor nem de mau príncipe, nem de mau pastor. Todos os dias considero a desonra que faz a Deus o grande senhor, ao colocar o mundo em error. Prec Déus trameta missatgers devots, cients e vertaders a conèixer que Déus hom és. La Verge on Déus hom se fés e tots los sants d’ella sotsmès prec que’n infern no sia mès. Peço a Deus que envie mensageiros devotos, cientes e verdadeiros para conhecer que Deus se fez homem. A Virgem, onde Deus se fez homem e todos os santos a Ela submetidos. Peço que no Inferno não seja colocado. Laus, honor al major Senyor, al qual tramet la mia amor que d’ell reeba resplendor. No som digne de far honor a Déu: tan fort som pecador, e som de libres trobador! Louvores, honra ao maior Senhor, ao qual envio o meu amor, que d’Ele receba resplendor.69 Não sou digno de fazer honor a Deus, pois tão fortemente sou pecador e sou de livros trovador! On que vage cuit gran bé far, e a la fi res no hi pusc far; per què n’hai ira e pesar. Ab contrició e plorar vull tant a Déu mercè clamar que mos libres vulla exalçar. Aonde vou penso grande bem fazer, Mas no fim, nada posso fazer, pelo que tenho ira e pesar. Com contrição e pranto, desejo tanto a Deus mercê clamar que meus livros quero exaltar. no hai ajuda d’home nat 68 69 Fl 1, 23. Em Llull, o desejo de morrer de amor é o martírio. Nova alusão ao martírio. 58 45 50 55 60 65 70 70 Santetat, vida, sanitat, gauig me do Déus e libertat, e guard-me de mal e pecat. A Déu me som tot comanat: mal esperit ne hom irat no hagen en mi potestat. Santidade, vida, sanidade,70 gozo me dá Deus e liberdade, e guarda-me do mal e do pecado. A Deus estou totalmente confiado, nem mau espírito, nem homem irado não tenham em mim potestade. Man Déus als cels e’ls elements, plantes e totes res vivents que no’m facen mal ni torments. Dó’m Déus companyons coneixents, devots, leials, humils, tements, a procurar sos honraments. Ordene Deus aos céus e aos elementos, plantas e todas as coisas viventes que não me façam mal nem tormentos. Dá-me Deus companheiros conhecedores, devotos, leais, humildes e tementes, para procurar seus honramentos. A edição de Batalla não possui as duas últimas estrofes. 59 75 80 O Concílio (1311) 60 O Concílio (1311) Ramon Llull (1232-1316) Trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes) I I Un concili vull començar en mon coratge, a xantar per ço que faça enamorar tots cells qui ho poden far per Déu servir e lo Sepulcre conquerir: molt ho desir! Um Concílio desejo começar71 em meu coração, e cantar para que faça enamorar todos aqueles que o podem fazer para a Deus servir e o Sepulcro conquistar: muito o desejo! En concili tan gran siats e tan bellament ordenats que Déu ne sia molt honrats e mant hom ne si salvats. E tot lo món en llong e ample e en pregon n’haja aon. No Concílio estareis tão grandes e tão belamente ordenados, que Deus será muito honrado e muitos homens serão salvos, e todo o mundo em sua longitude, amplitude e profundidade será abarcado.72 En concili no façats for per argent, castell ne per or; temets-ho com seny sí que mor, car si havets bo e gran cor, ah, què diran juseu, sarraí, cristian tartres e mant! No Concílio, não façais lei por prata, castelo ou por ouro, temei-o como um sinal de amor, pois se tiverdes bom e grande coração, ah, o que dirão judeus, sarracenos e cristãos, tártaros e outros! En concili no siats dubtós, avar, ni trist, ne pererós; tan forts siats complits d’amors, de sospirs, llàgremes e plors, per bon amar, que Déus vos faça acabar lo seu honrar. No Concílio, não sejais duvidosos, avaros, tristes ou preguiçosos, sejais tão fortes e completos de amor, de suspiros, lágrimas e prantos pelo bom amor, que Deus vos faça acabar o Seu honrar. 71 72 05 10 15 20 25 O Concílio de Vienne ocorreu do dia 16 de outubro de 1311 ao dia 06 de maio de 1312 (sua convocatória citava o tema da passagem a Ultramar, isto é, a cruzada). At 1, 8. 61 En concili hajats consell ab hom ardit e no volpell, a consellar per bon cabdell, e si no havets serets molt bell; car hom vestit de vicis e mal esperit és mal garnit. No Concílio, tenhais conselho com um homem corajoso, não covarde, recebeis conselho de um bom líder. E se assim fizerdes, sereis muito belo, pois o homem vestido de vícios e mau espírito é mal guarnecido. En concili qui us diu de no. de no diu al Senyor del tro, qui per amor en la creu fo. Si ell lo lleixa a bandó al diable, infern serà son estable turmentable. No Concílio quem vos diz não, diz não ao Senhor do trono, que, por amor, na cruz esteve. E se Ele o abandona ao diabo, no Inferno estará firmemente atormentado. En concili Déus vos ajut, tem-me no siats descebut, car mant home ha lleu volgut alcun bé far qui és recregut al començar. Prec Déus que us vulla amparar ab bo amar. No Concílio, que Deus vos ajude, espero que não sejais enganado, pois muitos homens têm desejado algum bem fazer, mas renunciam ao começar. Peço a Deus que vos ampare com bom amor. En concili ans que parlets guardats en quals començarets, en tots hómens no vos fiets car mant home no està drets. Ah, bon amic, savi és qui por altre es castic e tem destric! No Concílio, antes que faleis, guardais por onde principiareis: em todos os homens não vos fieis, pois muitos homens não estão direitos. Ah, bom amigo, sábio é aquele quem por outro é castigado e sofre dano!73 En concili lo pec moltó engana el llop e lo lleó a la volp engana al capó e mant hoc és pijor que no. Si no us guardats per mant hom serets enganats e menyspreats. No Concílio, o ignorante carneiro engana o lobo e o leão, e a raposa engana o capão,74 e muito sim é pior que o não. Se não vos guardais, por muitos homens sereis enganados e menosprezados. 73 Provável referência ao martírio. 62 30 35 40 45 50 55 60 En concili guardats la fi de Déu, qui està lo camí de paradís, verai fi; e si hi anats vespre e matí segur irets, barat ne tort, mal no tembrets, perfait serets. No Concílio, guardais o fim de Deus, quem está no caminho do Paraíso, verá o fim. E se aí fordes, pela véspera75 e manhã, ireis seguro, fraude nem erro, mal não temereis, e perfeito sereis. II Del Papa II Do Papa Sènyer en Papa quint Clement, qui estats senyor de tanta gent, faits que el concili sia breument si trop hi faits d’allongament parrà barat, e Dèus vos en haurà desgrat: serets jutjat. Senhor Dom Papa Clemente Quinto76, que sois senhor de tanta gente, fazeis que o Concílio ocorra rapidamente, se o prolongardes longamente parecerá fraude, e Deus vos terá em desgraça: sereis julgado. Sènyer en Papa, què farets? Vostre concili honrar l’hets. Si no hi faits tot quanto porets per tot lo món blasmat serets, e, mal volgut, mostrarets siats recresut, e és perdut. Senhor Dom Papa, o que fareis? Vosso Concilio havereis de honrar. Se não fizerdes tudo quanto podeis por todo o mundo blasfemado sereis e mal querido, mostrareis que sois fracassado e estareis perdido. Sènyer En Papa, que farà lo gran poder qui en vós està? Si no li faits far quant porà, a Jesucrist se’n clamarà fortment de vós, e car no vol sia occiós, e és raisós. Senhor Dom Papa, que fará o grande poder que em vós está? Se não fazeis o quanto podeis, Jesus Cristo clamará fortemente de vós, pois não deseja que sejais ocioso, e tem razão. 74 75 76 65 70 75 80 85 90 Capão – qualquer animal castrado. No poema, faz-se menção à docilidade do animal castrado e sua menor agressividade. Vésperas – uma das horas canônicas (Matinas [meia-noite], laudes [três da manhã], primas [primeiras horas do dia, ao nascer do Sol ou cerca de seis da manhã), vésperas [seis da tarde] e completas [(hora de dormir]). Trata-se do papa Clemente V (1305-1314). 63 Sènyer En Papa, tal vos riu que volria no fóssets viu! Guardats que no siats altiu al concili, qui està riu e bon camí per què hom va a bona fi ab voler fi. Senhor Dom Papa, sois tão generoso que desejaria que não fôsseis vil! Resguardai-vos para não serdes altivo no Concílio, que é rio e bom caminho para chegar a um bom fim com vontade. Sènyer En Papa, per lo món en llong, ample e pregon vostre poder hi és entorn; perquè sent Pere n’ha sojorn hajats-lo vós; no siats avar, pererós, mas llarg e pros. Senhor Dom Papa, pelo mundo em sua longitude, amplitude e profundidade vosso poder está ao redor. Pois São Pedro não tem descanso, tende-o vós, não sejais avaro e preguiçoso, mas largo e virtuoso. Sènyer En Papa, faits preïcar la santa fe e mostrar clar perquè véngon a batejar tuit l’infesel e per salvar; e eu sai raisons contra què no val llurs sermons; dats-hi perdons. Senhor Dom Papa, fazei predicar a santa fé, e claramente mostrá-la, para que sejam batizados todos o infiéis, e sejam salvos.77 E eu sei razões contra as quais não valem seus sermões,78 dai-lhes perdões. Sènyer En Papa, eu m’escús al bon rei, salvaire Jesús, que eu vos n’he pregat ça jus que el concili pujets en sus. Al jutjament dirai que al Papa Climent ho fui dient. Senhor Dom Papa, eu me escuso ao Bom Rei, Salvador Jesus, a quem roguei aqui embaixo, para que o Concílio seja elevado. No dia do Julgamento, direi que ao Papa Clemente eu recorri. Si el concili no és ni val paor hai que n’isca gran mal e qui dirà: Res no me’n cal, crei que irà en mal hostal tots mals sofrir, pena e dan sen penedir, Se o Concílio não existir nem valer, tenho pavor que nasça um grande mal, e quem dirá: “Nada me cabe”, creio que irá para uma má morada sofrer todos os males, pena e dano, sem arrependimento 77 78 95 100 105 110 115 120 125 Llull repete a tradição católica: fora da Igreja não há salvação. Isto é, a razão luliana é superior, para a conversão, aos argumentos baseados exclusivamente na fé. 64 e sens eixir. e sem saída.79 Sènyer En Papa, Déus pregats que en est pas siats aidats pel Sant Esperit espirats, per Nostra Dona remebrats; e el Déu d’amor ajut a la cuita major per sa honor. Senhor Dom Papa, a Deus rogais que neste caminho sejais ajudado, pelo Espírito Santo inspirado, por Nossa Senhora relembrado, e que o Deus do amor ajude a essa dificuldade maior por Sua honra. III Dels Cardenals III Dos Cardeais Cardenal és bo cardenil de gran porta bona, humil, per la qual entra hom gentil que ço que fa tot va a fil. Ah, gran nom ha, cardenal, lo poder que ha! Ah, què en farà? Cardeal é boa fechadura de uma grande porta boa e humilde, pela qual entra o homem gentio e que tudo o que faz vai ao Filho. Ah, grande nome tendes, cardeal, e o poder! Ah, o que fará? Cardenal és lo conseller del Papa, e ha lo poder que ha el Papa en son mester, e ço que ensems poden fer. Ah, qual punir, si ells no volen Déu servir! Ah, qui el pot dir? Cardeal é o conselheiro do Papa, e tem o poder que o Papa tem em seu ofício, e ao mesmo tempo podem fazer. Ah, como punir se eles não desejam a Deus servir! Ah, quem o pode dizer? Si els cardenals han bon consell que el concili sia bo e bell, cascun ab gran gauig s’aparell, car Déus serà tots temps ab ell, sus en lo cel, Querubin, Querafin e Miquel e Gabriel. Se os cardeais têm bom conselho que o Concílio seja bom e belo, que cada um com grande gozo se prepare, pois Deus estará com eles todos os tempos, acima no céu, querubim, serafim, Miguel e Gabriel. 79 130 135 140 145 150 Quem não fizer todo o possível para que o Concílio chegue a um bom termo, isto é, para que a cruzada seja efetivada e as propostas lulianas de criação de escolas sejam implementadas, será severamente julgado no dia do Juízo Final! 65 Cardenal que vol destrobar que el concili no es pusca far, lo concili s’irà clamar a Déu, qui el venjará ben car. Las! Què es farà car no li en valdrà puig ne pla ne tot quant ha! Cardeal que desejar perturbar para que não se possa fazer o Concílio, o Concílio irá clamar a Deus, que o vingará bem caro. Ai! O que se fará? Pois não lhe valerá monte, nem plano, nem tudo quanto há! Senyores cardenals, ordenats que cavaller sia triats, religiosos, e si los dats ço del Temple e les potestats d’altres maisós de les altres religiós cavallers bos. Senhores cardeais, ordenais que cavaleiros sejam escolhidos, religiosos, e lhes sejam dados do Templo e os poderes de outras casas, de outras religiões bons cavaleiros. Tal cavaller vaja estar per tot temps mai en Ultramar, la dècima li faits donar per lo Sepulcre a cobrar; lo gran poder qui haurà, qui lo pot saber? Vullats-ho fer! Tal cavaleiro deve estar por todos os tempos em Ultramar. O dízimo lhe façais dar para o Sepulcro recuperar. O grande poder que terá, quem o poderá saber? Desejais fazê-lo! Cell qui no fa el bé que porà sàpia que Déus se’n venjarà e en far bé null mal farà; car en no far bé mal farà; e, doncs, senyors, puis que el poder està en vós, estiats bos! Aquele que não faz o bem que poderia saiba que Deus se vingará, e ao fazer o bem, nenhum mal fará, porque ao não fazer o bem, mal fará. Portanto, senhores, já que o poder está em vós, sejais bons! Senyors cardenals, dats a Déu lo vostre poder qui és seu, si no ho faits serà-li greu, poria’us en venir mal lleu. Ah, bé us guardats que son poder no li tollats, car és venjats! Senhores cardeais, dais a Deus o vosso poder que é Seu, se não o fizerdes, será grave, poderia vos vir rapidamente o mal. Ah, bem vos guardais para que Seu poder não vos oprima, pois é vingativo! 66 155 160 165 170 175 180 185 Senyors cardenals, ab voler podets tot lo món conquerer ab què donets vostre poder a Déu, e podets-ho lleu fer, pus que us vullats: si no ho faits serà car comprats. Ah, bé us guardats! Senhores cardeais, com vontade podeis todo o mundo conquistar, dais o vosso poder a Deus, e podeis rapidamente fazer, assim que desejardes: se não o fizerdes, será porque fostes comprados. Ah, bem vos protegeis! Senyors cardenals, lo concilí faits pervenir a bona fi, que val mais que argent ni cosí, ne sejorn, vespre ne matí. Ha Déus amat a son orde cardenalat que en sia honrat. Senhores cardeais, o Concílio fazeis chegar a um bom fim, pois vale mais que prata, primo, descanso, véspera ou manhã. Ah, Deus amado, que à Sua ordem o consistório seja honrado. IV Dels Prínceps IV Dos Príncipes Senyors prínceps, duc e marquès, sapiats gran maravella és si el concili no és fa adés e lo millor qui poria més, tan bo que no fo; cascú meta son ganfanó per gran perdó. Senhores príncipes, duques e marqueses saibais que é uma grande maravilha se o Concílio não é feito rapidamente e o melhor que possa. Tão bom seria que cada um colocasse seu estandarte para um grande perdão. Cavaller qui bé sap amar en conquerir tot Ultramar en nulla res no deu dubtar; pensar pot que Déus vol aidar a sa honor; vagen, doncs, rei, emperador, ab gran vigor. Cavaleiro que bem sabe amar conquistar todo o Ultramar de nada deve duvidar, e pode pensar que Deus deseja ajudar Sua honra. Ides, então, rei, imperador com grande vigor. Rei, empaire e baró, cras veirem si seran bo, ne de raisó fan ganfanó e de l’amor de Déu gonilló; e que als prelats Rei, imperador e barão, néscios verão se sereis bons, se de razão fareis estandarte e do amor de Deus túnica. E que aos prelados 67 190 195 200 205 210 215 220 diguen: nós som aparellats, senyors, anats! digais: nós estamos preparados. Senhores, ides! Al cavaller tany cavalcar; escut e sella, e brocar espasa e llança, e colps dar e tany-li atressí amar per conquerir lo Sepulcre, per Déu servir, pecats delir. Ao cavaleiro cabe cavalgar, escudo, sela e esporear, espada e lança, e golpes dar. E lhe cabe, ademais, amar para conquistar o Sepulcro, para a Deus servir e os pecados aniquilar. Senyors prínceps, si prometets al Papa que trastuit irets e que hi farets tot quant porets en gran vergonya lo metrets. Si no us vol dar per lo Sepulcre a cobrar, vets-lo’n pregar. Senhores príncipes, se prometerdes ao Papa que todos ireis e que fareis tudo quanto puderdes, em grande vergonha metê-lo-eis se não desejar vos dar para o Sepulcro reconquistar. Ides pregar.80 Cavaller no tinc per cortès se Déus no ama més que res; no sap fer colps a manés d’amor, si gran pecador és. Ah, cavaller, en Déu servir fai ton poder e volenter! Cavaleiro não pode ser cortês se não ama a Deus mais que tudo. Não sabe dar golpes seguidos de amor, se é grande pecador. Ah, cavaleiro, para Deus servir, faça todo o teu poder e vontade! Cavaller que és servidor de Déu no ha de res paor, car conforta’s en son senyor e en força de bona amor. Ah, cavaller, si tu vols ésser bon guerrer, ama bé fer! Cavaleiro que é servidor de Deus, não tem nenhum pavor, pois se conforta em seu Senhor e na força do bom amor. Ah, cavaleiro, se tu desejas ser um bom guerreiro, ama fazer o bem. Null cavaller està ardit se de virtuts no és complit, e falsa amor sia en son llit, Nenhum cavaleiro é ousado se de virtudes não está completo, o falso amor está em seu leito, 80 225 230 235 240 245 250 255 Nessa passagem, Llull incita os príncipes a se comprometerem com o fim do domínio mouro sobre as terras de Jerusalém. 68 e que l’honor de Déu l’oblit. Ah, gran baró, mit tota ta entenció que sies bo! e a honra de Deus está esquecida. Ah, grande barão, coloque toda a tua intenção para seres bom! Cavaller és per dret servir e que lo mal faça fugir, e que lo bé pusca venir e que lo dó per obeir al Déu d’amar, ab què vaja en Ultramar bé exalçar. Cavaleiro existe para o direito servir e o mal fazer fugir para que o bem possa vir, e ser dado para obedecer ao Deus de amor, com O qual irá à Ultramar para o bem exaltar. Mai val cavaller pecejats per tal que Déus sia honrats, que malvat viu e desamats per Déu, e no plor sos pecats. Ah, cavallers, cras veirem quals són primers e bons guerrers! Mais vale um cavaleiro despedaçado para que Deus seja honrado que um malvado vivo e desamado por Deus, e que não chore seus pecados. Ah, cavaleiros, néscios verão quais são os primeiros e bons guerreiros! V Dels Prelats V Dos Prelados Remembrar vull a los prelats qui per Déu estan tan bastats, que no sien trop sejornats e que donen ço que els és donats a conquistar tota la terra d’Ultramar, pus que es pot far. Relembrar desejo aos prelados que, por Deus, estão tão abastados, que não estejam muito descansados, e dêem isso que lhes é dado para conquistar toda a terra de Ultramar, pois se pode fazê-lo. 69 260 265 270 275 280 Prelat tant quant ha de poder en far lo bé li quer que dó a Déu de son haver; e lo donar és son bé fer en son bon lloc; sinó de llai no els parrà joc. Ah, fort los toc! Prelado tem tanto poder em fazer o Bem81 lhe querer, que dá a Deus do seu haver. E o dar é seu bem fazer82 em seu bom lugar, senão, o Além não lhes parecerá um alívio. Ah, que isso os sensibilize! Prelat, guarda quant est honrat per Jeuscrist, molt deshonrat, quan per tu està tan pauc amat e pel Sepulcre no cobrat. Ah, vai l’honrar per lo concili emparar sens cor avar! Prelado, considera o quanto és honrado por Jesus Cristo, que é muito desonrado quando por ti é pouco amado e o Sepulcro não é reconquistado. Ah, vais Lhe honrar para o Concílio defender, sem coração avaro!83 Senyors prelats, e què farets de lo gran poder que havets? A Déu honrar dar lo volrets? Si no ho faits, ah, què direts al jutjament quan Déus dirà: Mon malvolent, vai al turment! Senhores prelados, o que fareis com o grande poder que haveis? Para Deus honrar, desejareis dá-lo? Se não o fizerdes, ah, que direis no Julgamento, quando Deus dirá: “Mundo mau, vá ao tormento!” 81 82 83 285 290 295 300 Trata-se do Bem Supremo, ou Sumo Bem, noção filosófica aristotélica que indica aquilo que é desejado por si mesmo, não em vista de outro bem. É necessário que haja um Bem Supremo para evitar o processo ao infinito (Ética a Nicômaco, I, 2, 1094-18). Os medievais empregaram essa expressão para indicar o próprio Deus. O “dar sem esperar nada em troca” é o conceito cristão de amor (caritas), considerado o amor mais perfeito jamais pensado (ver, por exemplo, Hannah Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho, Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 35). A Avareza era um dos sete pecados mortais diretamente associado aos cavaleiros, que, durante o feudalismo, endividavam-se constantemente para adquirir e atualizar seu armamento. O cavaleiro avaro é, ainda, largamente representado na iconografia medieval e moderna. Em uma iluminura do Livro das Horas (c.1475) de Robinet Testard, um cavaleiro monta um lobo voraz, que simboliza o apetite do avaro pelo dinheiro, enquanto exibe e despeja uma bolsa vermelha repleta de moedas (há ainda outra bolsa, preta e igualmente cheia, em sua cintura). O diabo o acompanha. Ver COSTA, Ricardo da. “A noção de pecado e os sete pecados capitais no Livro das Maravilhas (1288-1289) de Ramon Llull”. In: FILHO, Ruy de Oliveira Andrade (org.). Relações de poder, educação e cultura na Antigüidade e Idade Média. Estudos em Homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro – I CIEAM – VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005, p. 425-432. 70 Prelat, no pots Déus enganar ne en res no lo pots forçar, e si de seu no li vols dar de tu es porà fortment venjar! Si no est bo no haurats excusació: dir-t’ha de no. Prelado, não podes a Deus enganar, nem a nada O podes forçar. E se do teu, não Lhe desejas dar, de ti poderá fortemente se vingar! Se não és bom, não poderás se desculpar: dir-te-á não. Senyors prelats, bé en són certà que si lo concili no es fa vós hi metrets la vostra mà; ¿Aquella mà on fugirà a greu dolor perpetual, per qui el Senyor ha deshonor? Senhores prelados, estejais bem certos que se o Concílio não for feito, é porque vós tereis colocado a vossa mão. E esta mão, para onde fugirá da grande dor perpétua, para quem ao Senhor desonra? Senyors prelats, tal mal me sent car vei alcú ensenyament que el concili no sia nient; e si ho és ha falliment, pena e mal de qui serets perpetual malvat hostal. Senhores prelados, tão mal me sinto, pois vejo alguns ensinamentos que dizem que o Concílio não será nada. E se assim for, há falta, pena e mal dos quais sereis perpétuo e malvado abrigo. Senyors prelats, bé us és vengut se faits concili erebut; si no el faits mal vos és cresut, lo concili no fos sabut ne nomenats; per mant home serets blasmats e menyspreats. Senyors prelats, no és lleó qui no faça tembre el moltó; e diets hoc e puis diu no; 84 Senhores prelados, o bem vos virá se fizerdes o Concílio ser recebido. Se não o fizerdes, o mal crescerá se o Concílio não for conhecido nem nomeado, por muitos homens sereis blasfemados e menosprezados. Senhores prelados, não existe leão que não faça o carneiro temer.84 Dizeis sim, e depois dizeis não, 305 310 315 320 325 330 Trata-se da segunda vez que o filósofo se vale da metáfora do bestiário, e com os mesmos animais (o carneiro e o leão): na primeira, o ignorante carneiro engana o lobo e o leão; aqui, todo leão faz o carneiro tremer. 71 de ço en qui ha gran raisó pauc és temut; bo li fora que estés mut, no recreüt. do que tem grande razão pouco serdes temido.85 Bom seria que fôsseis mudos, desacreditados. Senyors prelats, no val anell ne gran cavall, ne bell mantell ne gran flota de mant donzell si en sos faits no ha cabdell discreció, e que sia ardit e pro quan és raisó. Senhores prelados, não vale anel, nem grande cavalo, nem belo mantel, nem multidão de donzéis, se em seus feitos não há liderança, discrição, e que sejais corajosos e proveitosos quando existe razão. VI Dels Religiosos VI Dos Religiosos Religiós, faits monestir per tal que hi puscats Déu servir: si en Ultramar l’anats bastir, pel concili podets venir e preïcar, e per lo papa a pregar e consellar. Religiosos, façais monastérios para que possais servir a Deus: se em Ultramar fordes construir, pelo Concílio podeis vir e predicar, e pelo papa rogar e aconselhar. Religiós bo se sotsmet a servir Déu quan ell va dret; e si contra el concili es met sots hàbit està nelet, habit de mal sots lo qual hàbit no val ni és lleial. Bom religioso se submete a servir a Deus quando caminha retamente. E se contra o Concílio se coloca, o seu hábito está em culpa, mau hábito, sob o qual hábito não vale nem é leal.86 85 86 335 340 345 350 355 O temor é a base da sabedoria cristã. O exterior do homem medieval manifestava seu interior, sua intenção. Por sua vez, o vestuário designava a categoria social (e, por esse motivo, as regras monásticas fixavam cuidadosamente o hábito de seus monges. Ver COSTA, Ricardo da. Ramón Llull y la Orden del Temple (Siglos XIII-XIV). Barcelona: Universitat Internacional de Catalunya (tese pós-doutoral), 2003, p. 113. Assim, portar um vestuário que simbolizasse uma condição diferente da sua correspondia a cometer o pecado capital da ambição ou da degradação. Ver também LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 123. 72 Religiós contemplatiu, temor ds Déu està son niu, no tem menaces ne null briu ne no vol ésser sejorniu. Vai preïcar que anem tuit en Ultramar per Déus honrar! Religioso contemplativo traz o temor de Deus em seu ninho, não teme ameaças nem qualquer brio, nem deseja estar descansado. Ide predicar que todos vão para Ultramar para Deus honrar! Religiós, entin-me bé: si contra Déu fai nulla re, molt pus gran pena te cové car fenys-te que faces mais bé que altre, e par que mais que altre et deus guardar en lo mal far. Religiosos, entendam-me bem: se contra Deus fizeres algo, muito maior pena te convém, porque finges que fazes mais bem que outro, e parece que deves te guardar mais que outro em fazer o mal. Religiós, si vols servir molt Déu, vai per sa amor morir, e de la santa fe ver dir als infeels, per convertir, car gran plaer ha Déu d’home que vol sostener molt per dir ver. Religiosos, se desejais servir muito a Deus, ides por Seu amor morrer, e da santa fé verdadeira dizer aos infiéis, para converter, pois grande prazer Deus tem do homem que deseja sofrer a morte para a verdade dizer. Religiós, oració fai a Déu molt gran, que Ell nos dó concili verdarder e bo e que el papa dó gran perdó ab gran tresor, cal l’un e l’altre han lo for, e mal hi mor. Religiosos, oração muito grande façais a Deus, para que Ele nos dê um Concílio verdadeiro e bom, e que o Papa dê grande perdão com um grande tesouro,87 pois um e outro tem a força, e o mal ali morre. Religiós, bo és presic que fas a l’hom que se castic e que dó a cell qui té ric; e pus que t’és mès en oblit vai presicar lo Papa, que vulla passar Religiosos, boa é a prédica que faz com que o homem se castigue, e que dê àqueles quem tem riqueza. E para que não caias em esquecimento, ides predicar ao Papa, que desejais passar 87 Absolvição dos pecados para quem fosse à Cruzada. 73 360 365 370 375 380 385 390 en Ultramar. para Ultramar. Religiós, si el Papa va en Ultramar, tot hom irà, tota la terra conquerrà. Religiós, si en tu ha gran ardiment, crida, preïca valentment e mantinent. Religiosos, se o Papa for a Ultramar, todos os homens irão e todas as terras conquistarão. Religiosos, se em ti há grande coragem, grita, predica valente e imediatamente. Religiós, tu saps que el ca tant lladra que hom se’n despertà e fuig lo mal e lo bé fa. ¿Qual de nosaltres lladrarà per despertar aquells qui poden gran bé far en Ultramar? Religiosos, tu sabes que o cão ladra tanto que o homem desperta,88 o mal foge e faz o bem. Qual de nós ladrará para despertar aqueles que podem fazer um grande bem em Ultramar? Religiós, lo teu habit deu ésser de molts bens complit e de bons exemples guarnit, per ver amor ésser ardit; e sens paor deu ésser gran preïcador per lo Senyor. Religiosos, o teu hábito deve ser completo de muitos bens, guarnecido de bons exemplos, e ser corajoso pelo verdadeiro amor; e sem pavor deves ser grande predicador pelo Senhor. VII De Contricció VII Da Contrição89 Contricció, a mon albir trop vos deliats en dormir; ¿per què no anats cor ferir del qual façats amor eixir e gran amar dolors, sospirs e molt plorar per satisfar? Contrição, ao meu juízo muito vos deleitais em dormir.90 Por que não ides o coração ferir, para que façais o amor sair em grande amar, dores, suspiros e muito choro para satisfazer? 88 395 400 405 410 415 420 No bestiário maravilhoso luliano, o cão freqüentemente estava associado à luxúria. Contudo, nessa passagem, o cão não corresponde a essa representação, e sim à imagem tradicional da fidelidade. 74 Contricció, cell qui no us vol sens fina amor està tot sol, e si lo cor contrit no es dol de tot en tot serets en sol. Ja gras capó no us valdrà a dampnació precs ni perdó. Contrição, aquele que vos deseja sem o fino amor91 está totalmente só, e se o coração contrito não tem dor sempre estareis em solidão. Pois um gordo capão de nada vos valerá contra a danação92, preces nem perdão. Contricció, lo nom perdrets si dels pecats dol no havets e que els pecats tant no plorets com sabets que gran escarn fets. Si no els mundats, pelan estarets de barats e falsetats. Contrição, o nome perdereis se dos pecados dó não tiverdes, e os pecados tanto não chorardes quanto souberdes que grande escárnio fizestes. Caso não mudeis, cheia estareis de fraudes e de falsidades. Contricció, hipocrità, vos va en torn, e si no es fa Contrição, hipócrita vos circunda, e se não fizerdes 89 90 91 92 425 430 435 Após se dirigir aos poderes laicos e religiosos, o filósofo passa aos sentimentos necessários à boa execução do Concílio (a contrição, a satisfação, a oração e a devoção). A contrição é o sentimento pungente de arrependimento por pecados cometidos e pela ofensa a Deus, menos pelo receio do castigo do que pelo amor e gratidão à divindade. Em Llull, a penitência é “...a contrição do coração e a amargura da alma pelos pecados que fazes, dos quais se arrependes ou propões nunca mais fazê-los. Isso dá aflição ao corpo do homem, com jejuns, orações, peregrinações e outras coisas semelhantes a essas.” (Doutrina para crianças, XXVI, 1). E no Livro dos Mil Provérbios: “1. Quem tem contrição está próximo da satisfação; 2. A consciência com contrição dá paixão à vontade; 3. Quem tem contrição não ri; 4. Quem conta seus pecados com risos não tem contrição; 5. Sem contrição não podes ter perdão; 6. A contrição dispõe o pecador a desejar o perdão; 7. Que a contrição te faça chorar para que possas rir no Paraíso; 8. Uma paixão por contrição vale mais que todas as bem-aventuranças por risos; 9. A contrição é a mensagem que o pecador envia à piedade de Deus; 10. A contrição sem esperança não tem forma; 11. A contrição e a graça de Deus são vizinhas no homem pecador; 12. Quem chora com contrição chora com doces lágrimas; 13. Se freqüentemente pecas, freqüentemente tens de ter contrição; 14. Quanto maior o pecado, maior a contrição; 15. Quem tem lenta contrição ou quem a enfraquece é vizinho do demônio; 16. Tua contrição está mais viva pelo amor que tens a Deus que pelo pavor que tens d’Ele; 17. Em todos os tempos a contrição é amiga leal; 18. A contrição é fonte de suspiros; 19. Quando com a contrição choras, a tua alma engorda; 20. A contrição por amor e contrição por pavor são vizinhas; 21. O tesouro de Davi e a sabedoria de Salomão não valem mais que a contrição, XX. Da Contrição”. Fino amor (fina amor), isto é, o amor cortês. Isto é, o vício da glutonia, dos excessos alimentares que, além de se oporem ao delicado amor da verdadeira contrição, ainda dificultavam a dor sincera do coração contrito. 75 lo concili, vostra llanà de falsetat mant hom vestrà; per destruir lo concili, fa jaquir Déus a servir. o Concílio, vossa lã vestirá a muitos de falsidade; para destruir o Concílio, deixe de a Deus servir. Contricció, vostre penó alcuna vets és tració, çar ço que defores par bo de dins és mal e fallió, e gran pecat, perquè havets lo nom mudat per gran barat. Contrição, vosso pendão algumas vezes é a traição, porque o que externamente parece bom internamente é mal e falta e grande pecado; porque haveis o nome mudado por uma grande fraude. Contricció, cota e mantell fan de vós mant hom gran e bell, e si vós sots bon cabdell Déus vol que hajats mant donzell e man cavall a destruir mal en vall, d’on mal trasall. Contrição, cota e manto fazem de vós grande e bela. E se vós sois de bom novelo, Deus deseja que tenhais um manto puro, e um grande cavalo para destruir o mal no vale onde ele fenece. Contricció, no us vull mentir: no em plai ab vós en llur dormir. D’on faits devoció eixir si el concili faits er jaquir? E car plorats, per ço que façats grans barats mal vos n’és dats. Contrição, não vos desejo mentir, vós não me agrada em vosso dormir. De onde fazeis a devoção sair se o Concílio fazeis abandonar? E como chorais para que façais grandes fraudes, mal vos é dado. Contricció, a vós me dó ab què amets devoció e far concili gran e bo fora de tota tració, e mal pensar. Ab vós irai en Ultramar bé exalçar. Contrição, a vós me dou para que ameis a devoção e façais um Concílio grande e bom, fora de toda traição e mal pensar. Com vós irei a Ultramar para o bem exaltar. Contricció, qui bé es penet tantost és eixir de nelet e en tot ço qui és ha dret Contrição, quem bem se arrepende, rapidamente sai da culpa, em tudo o que existe tem direito, 76 440 445 450 455 460 465 470 e per tot va cap eret, e és ardit pus que està de mal eixit, per vós guarnit. por tudo vai de cabeça erguida e é corajoso, já que está livre do mal e por vós guarnecido. Contricció, lo dejunar que faits, e el sospir e el plorar, oració e lo cantar, tot se coneix al satisfar de qual part ve, car lluny està lo mal al bé: ço lleu hom ve. Contrição, o jejuar que fazes, e o suspirar e o chorar, a oração e o cantar, tudo se conhece para satisfazer de qual parte vem, porque distante está o mal do bem: isso logo se vê. VIII De satisfacció VIII Da Satisfação93 Satisfacció és hostal en qui no està negú mal ne tem menaces ne destral, car satisfer és son cabal; perquè Déus ha que li ajuda ça e lla, segur està. Satisfação é casa na qual não está qualquer mal, nem ameaças, nem maledicências, pois satisfazer é sua prioridade, porque Deus tem quem Lhe ajude aqui e ali, seguro lá está. Satisfaràs a ton voler del mal que n’has fait, ab bé fer; satisfaràs a ton saber, Satisfarás a tua vontade do mal que tens feito, com o bem que fará. Satisfarás o teu saber, 93 475 480 485 490 A satisfação a qual Llull se refere é a do sentido teológico: uma reparação do mal causado a alguém ou da injúria feita ao próximo, ou a Deus pelo pecado. No Livro dos Mil Provérbios: “1. Cumpre a satisfação de acordo com o que tens pecado; 2. Se tiveres comido muito, satisfaz comendo pouco; 3. Se tens pecado por nobres vestimentas, satisfaz com humildes vestes; 4. Se com pouco amor pecas, cumpre a satisfação com grande amor; 5. Do tempo perdido não podes fazer satisfação; 6. Se com a mão não podes fazer satisfação, fá-la com a vontade; 7. A satisfação, a justiça, a penitência e a contrição são primas; 8. Se estiveres tentado contra a expiação, ajuda-te com suas parentes; 9. A misericórdia satisfaz com a justiça, sua irmã; 10. A satisfação com dinheiro não vale tanto quanto a penitência; 11. Se tens pecado por ver e falar, satisfaz com o chorar; 12. Quanto maior a satisfação, maior a paixão; 13. Se tiveres feito pecado em tudo, satisfaz tu de tudo com a penitência; 14. Quem pratica a satisfação bem pede o perdão; 15. Se pecas com mau exemplo, satisfaz com bom exemplo; 16. Se pecas contra a caridade, satisfaz com ela; 17. Para tal pecado, tal satisfação, por contrário; 18. Não podes fazer tão grande satisfação quanto o for teu pecado; 19. Pede perdão do que com satisfação não podes cumprir; 20. Satisfaz a Deus porque tudo o que existe em ti é d’Ele, XXIV. Da Satisfação”. 77 a ton membrar e a ton poder, que els dons a Déu per ço que trastot sia seu ab tot son feu. o teu lembrar e o teu poder ao dá-los a Deus para que tudo seja teu com todo o seu feudo. Satisfaràs a ton sentir a imaginar e consir e en ço que Déus tenir ab cor contrit e ab sospir, de lo mal far, e gran sia desirar en Déus honrar. Satisfarás o teu sentir, o teu imaginar e o teu considerar nisso que não deves ter com o coração contrito e com suspiros, do mal fazer, e que grande seja o desejo de honrar a Deus. Satisfé concili a Déu en tot ço que hi sia seu: si no ho fas, mal te’n vendrà lleu en tot quant has, e sera’t greu. Oh concíli, no et valdrà tresor ne cosí a mala fi! Satisfarás o Concílio a Deus em tudo o que aí seja Seu: se não o fazes, mal te virá rapidamente em tudo o que tens, e te será grave. Oh, Concílio, não te valerá tesouro nem primo para um mau fim! Si lo concili bo no et sap de santedat te faràs gap, null bé menjaràs en ton map, l’ira de Déu serà en ton cap. Ah, robador, no faces a Déu deshonor, lo teu Senyor! Se o Concílio bom não é sábio de santidade, tornar-te-á vanglória, nenhum bem comerá em tua toalha, a ira do Senhor estará em tua cabeça. Ah, ladrão, não faças desonra a Deus, o teu Senhor! Consira quant t’ha Déus donat e com te fa estar bastat e quant és ço que l’has emblat; si no ho saps, mala fuist nat, hages consell ab virtuts, no et dons del coltell, hages cabdell. Considera o quanto Deus te deu, como te fez estar abastecido e o quanto te foi roubado; Se não o sabes, foste mau nascido. Tenhas conselho com virtudes, não és dono do cutelo, tenhas liderança. Si no satisfàs en aquest món en infern iràs tan pregon que de tot mal hauràs aon e null bé no et serà entorn. Se não satisfizeres neste mundo, no Inferno irás tão profundamente que de todo o mal terás abundância e nenhum bem estará à tua volta. 78 495 500 505 510 515 520 525 Ah, cavaller, sies bo e valent guerrer e va-hi primer! Ah, cavaleiro, sejas bom, valente guerreiro e vá primeiro! Qui no satisfàs a ton parente d’aiçò en què no has nient, no satisfàs, mas fentament; sabràs-ho al traspassament, can Déus dirà: Qui no satisfà ço que ha damnat serà! Quem não satisfizer o teu parente no que ele não tem, não o satisfará, só fingidamente; sabê-lo-ás no traspassamento94 quando Deus dirá: Quem não satisfaz com o que tem, danado estará! Si satisfàs a ta honor mais que a Déu, car és millor; si a ell satisfàs amor, ell te darà lo do major de salvament, on estaràs eternament, alegrement. Se satisfazes a tua honra, mais a Deus, porque é melhor; se a Ele satisfaz com o amor, Ele te dará o dom maior da salvação, onde estarás eternamente alegre. Qui satisfà si ha raó, no està pec, ne és moltó; si al concili diu de no no estarà verai ne bo. E tot lo mal qui li vendrà, serà hostal e mal cabal. Quem satisfaz, se tem razão, não é estúpido, nem carneiro. Se ao Concílio diz não, não será verdadeiro nem bom. E todo o mal que lhe advier será casa e mal principal. IX De Devoció IX Da Devoção95 Devoció, e on estats? Poríem saber si vendriats a est concili, se l’amats, e que al papa tost digats e al cardenal què dona sots de llur hostal per fair cabal? Devoção, onde estais? Poderíamos saber se virás a este Concílio, se o amais, e que ao papa logo direis, e ao cardeal, quem dará sua casa para ganhar? 94 530 535 540 545 550 555 560 Em português, a palavra traspassamento tem o mesmo sentido que a do catalão do século XIII (traspassament): morte, passagem dessa vida (efêmera) para a outra (eterna). 79 Devoció, de volentat siats cosina, de bontat, d’enteniment e do bon grat, e que no hi sia null barat ne dir de no al concili, com sia bo de gran perdó. Devoção, da vontade sejais prima, e da bondade, do entendimento e do bom grato, e que ninguém seja fraudado nem diga não ao Concílio, porque é bom, de grande perdão. Devoció, lo conirar e li sospir e li plorar requeren a vós gran amar. Prelats, barons, a escalfar cascú vos port en Ultramar, e siats port de bon conhort. Devoção, o considerar, o suspirar e o chorar requerem de vós um grande amar. Prelados, barões, se inflamem; que cada um vos porte em Ultramar, e sejais porto de bom consolo. Devoció, tot quant havets, sia amor, llausor e prets, e si no faits quant far porets fals e debades planyerets. Vostre plorar e els sospirs faits per enganar contra bé far. Devoção, que tudo quanto haveis seja amor, louvor e preces; e se não fazeis o quanto podeis, falsa e inutilmente chorareis. Vosso chorar e suspiros, fazeis para enganar contra o bem fazer. Devoció, ara es parrà si lo vostre plorar valrà, e si no val, ah, qui creirà vós e Ramon per paraulà Devoção, agora parecerá se o vosso chorar valerá, e se não valer, ah, quem acreditará em vós e em Ramon pela palavra 95 565 570 575 580 585 “1. Se desejares ter grande devoção lembra, entende e ama freqüentemente as grandes nobrezas e perfeições que Deus possui por essência e por obras; 2. Sem a santidade não podes ter devoção; 3. Podes ter maior devoção contemplando do que falando; 4. A contemplação é a fonte de onde nascem devotas palavras; 5. A devoção faz os olhos chorarem e o coração se alegrar; 6. A devoção satisfaz, engorda a alma e debilita o corpo; 7. Com a devoção falas e participas com Deus; 8. Com a devoção saberás se estás na graça de Deus; 9. Com a devoção pedes a Deus amor e com devoção Deus o dá; 10. A devoção te faz suspirar e o suspirar te faz amar; 11. Quem tem devoção possui todos os bens; 12. Tudo que precisas te é trazido por Deus pela devoção; 13. Com a devoção foge da tentação e terás paz; 14. Tem devoção e terás Deus; 15. O maior inimigo que tem o pecado é a devoção; 16. O homem devoto freqüentemente chora e tardiamente ri; 17. A devoção é filha da caridade e da piedade; 18. Quem pede perdão com devoção não se fadiga; 19. Não podes ter melhor amigo que a devoção; 20. A amizade sem devoção não dura; 21. Tem devoção e não terás pavor, Livro dos Mil Provérbios, XXIX. Da Devoção”. 80 e per plorar! Anats los altres enganar e baratar! e pelo chorar! Ide aos outros para enganar e fraudar! Devoció, ara és temps que per vós sia tal começ e per lo Papa quint Clements tot lo món ne sia jausents. E si fallits, qui us creirà per plors ne per crits vostres bells dits? Devoção, agora é tempo que por vós seja tal começo e pelo papa Clemente Quinto todo o mundo fique contente. E se falhares, quem vos acreditará por choro e por gritos, vossos belos ditos? Ah, e què val gran caperó en cap sens devoció? ne què val menjar gras capó emblat a son bon companyó, per Déus honrat, qui ab hom s’és aparentat per amistat? Ah, de que vale um grande barrete na cabeça sem devoção? E de que vale comer um grande capão ao lado de seu bom companheiro por Deus honrado, com o qual seja aparentado pela amizade? Devoció, irai plorar e al concili predicar als senyors qui lo poden far; e si vós hi volets anar e m’ajudats, cridarem tro sia alterats, bé ordenats. Devoção, ide chorar e o Concílio pregar aos senhores que podem fazer. E se vós desejais ir e me ajudar, gritaremos até que sejamos ouvidos e bem ordenados. Devoció sens ardiment, discreció, bo estament e sens manera d’ardiment, no valrà el concili nient. Què nós farem? de bons faits nos aparellem quan hi irem. Devoção sem coragem, discrição, bom estamento e sem maneira de coragem de nada valerá o Concílio. O que faremos? De bons feitos nos preparemos quando para lá formos. Qui bé ama, no ha paor, ne res no es té a deshonor. Pus que Déus és servidor al nostro hostal lleixem paor; e ardiment Quem bem ama, não tem pavor, nem a nada que existe tem desonor. Pois de Deus é servidor, em nossa casa deixemos o pavor; e coragem 81 590 595 600 605 610 615 620 sia nostre pa e piment, e bon talent. seja nosso pão, pimenta e bom talento. X D’oració X Da Oração96 Oració, venits ab nós e que siam bons companyós. Vós, preïrets Déus qui és bos que ajut a faire sa honors, per si honrar e lo concili acabar per Ultramar. Oração, venhais conosco e sejais boa companheira. Peçais vós a Deus, que é bom, que ajude a fazer Sua honra para honrá-Lo e o Concílio terminar para Ultramar. Oració, a Déu pregats que al Papa dó volentats com és lo poder que els ha dats, als cardenals e als prelats, e los barons, e a totes religions per faits bons. Oração, a Deus rogais que ao papa dê vontade com o poder que lhe foi dado, aos cardeais, aos prelados, aos barões e a todas as religiões97 para fazerem feitos bons. Oració, qui prega Déu que li perdó los pecats lleu e el dó e no vol ésser seu, lo concili li és molt greu; va per camí a hostal greu de mala fi, vespre e matí. Oração, para quem roga a Deus que rapidamente lhe perdoe os pecados e dá o que não deseja ser seu, o Concílio é muito importante. Ide pelo caminho para a importante casa do mau fim, véspera e manhã. 96 97 625 630 635 640 “1. A oração sem a devoção não é verdadeira; 2. A oração edifica-se na devoção; 3. Não faças a Deus oração contra a razão; 4. Se estiveres em pecado não faças a Deus oração sem contrição; 5. Cometes perjúrio a Deus com a louca oração; 6. Mais freqüentemente prega a Deus por sua honra que pelo teu bem; 7. A oração coletiva pode ser melhor que a individual; 8. A ira move Deus se falsamente pedes perdão; 9. Quem prega e se desculpa acusa a si mesmo; 10. A oração no pensamento faz sua filha a oração que sai da boca; 11. Com a pregação não esquecerás de Deus; 12. A oração sem amor não tem valor; 13. Prega com esperança e espera com oração; 14. Quem cedo se cansa de pregar, cedo se cansa de amar; 15. A paixão que tu tens quando começas a orar é vizinha do pecado; 16. Na oração usa todas as forças de tua alma; 17. A oração é a consolação do homem pecador; 18. Todos os bens terrenos não valem uma boa oração; 19. Não vendas oração por dinheiro; 20. Todos os demônios não têm tão grande poder quanto uma boa oração, Livro dos Mil Provérbios, XXX. Da Oração”. “Todas as religiões” são as diversas ordens da Igreja. 82 Oració, en mant hom sots qui Déus prega, per ço dessots plora, sospira al sanglots, e de Déu no el cal una nots; perquè fallits, car est en hòmens mal nuirits de bon faits dits. Oração, muitos são os homens que rogam a Deus, por suas desgraças choram, suspiram com soluços e a Deus não dão uma nota; por isso, erram, porque os homens estão mal educados de bom feitos ditos. Oració, si com pregats ço que en boca vós formats, en vostre cor mal pensats com lo façats greument errats. Res no valets, car no faits lo bé que parlets, e mal volets. Oração, se pregais o que em vossa boca formais, em vosso coração mal pensais, como fazeis, gravemente errais. De nada valeis, porque não fazeis o bem que falardes e mal desejais. Oració, Déus diu de no a qui prega ab tració, ab sacrifici qui és bo mala lo met en son mentó. Anats dormir, mantes vets m’havets fait fallir, Déus escarnir. Oração, Deus diz não a quem prega com traição, com sacrifício, que é bom, coloca o mal em seu queixo. Ide dormir, muitas vezes me fizestes errar e a Deus escarnecer. Oració, a l’hom pec diu hom «tàvec bavec» e còm vos estats fals alberg! Bé us fai qui us diu qui és famec! Oració, lo mal puja e lo bé no, Déu vos perdó! Oração, ao homem pecador diz-se homem ambíguo e convosco está em falso albergue! Bem faz quem vos diz que sois famélico! Oração, o mal afaste e o bem não, que Deus vos dê perdão! Los apòstols predicaven, Déus los dava que volien, los infeels convertien e per amar ells morien, e per honrar; trop vos havets venuda car per obligar. Os apóstolos pregavam, Deus lhes dava o que desejavam. Os infiéis convertiam e, por amar, eles morriam, e para honrar. Haveis vos vendido muito caro para esquecer. 83 645 650 655 660 665 670 675 Oració, veig-vos xantar molt e petits miracles far, ab petit vos vei destorbar, par que no hajats gran amar mais en cosí, en sejornar e en bon vi e en aur fi. Oração, vejo-vos cantar muito, e pequenos milagres fazer, por pouco vejo vos perturbar para que não tenhais grande amar como um primo, e em descansar, em bom vinho e em ouro, o fim. Oració, ja no anets al concili si no volets, car Déus hi perdrà sos drets, e si vós molt amar volets, Déas vós valrà: per vós lo concili es farà e el bé en vendrà. Oração, já não ides ao Concílio se não desejais, porque Deus aí perderá Seus direitos. E se vós desejais muito amar, Deus vos valerá; por vós o Concílio se fará e o bem virá. Ramon, tot ço que pot far per bon concili ordenar ab la senyera, e preïcar aquells qui el poden ordenar per gran amor, e qui han força major per lo Senyor. Ramon, faz tudo o que puder para o bom Concílio ordenar com o pendão, e pregar àqueles que o podem ordenar por grande amor, e que têm a força maior pelo Senhor. XI XI Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Senyor, tal pluja donats que en amor, Papa, prelats, el Sepulcre sia cobrats e lo gran nom vostre honrats. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! 98 680 685 690 695 700 Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! 98 Senhor, dai tal chuva, que enamore o papa e os prelados, o Sepulcro seja recuperado, e o Vosso grande nome seja honrado. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! 705 710 Segundo Josep Romeu i Figueras, estes versos parecem ter sido inspirados em um canto popular, uma espécie de súplica para que venha a chuva. 84 Quan el concili er justats, ver Déus, justícia donats per conseller a los prelats, car no hi serà null barats. Al concili, ver Déus, aidats. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Quando o Concílio estiver reunido,99 verdadeiro Deus, dai justiça para aconselhar os prelados, porque ali ninguém será fraudado. Ao Concílio, verdadeiro Deus, ajudai. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Prudència sia conseller, que consella fait verdader; a lo concili és mester, sens ella no valrà diner. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Prudência, sejais conselheira que aconselha o feito verdadeiro, ao Concílio é necessária, sem ela, de nada valerá dinheiro. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Fortitudo de gran confort de lo concili sia port, si no ho és, ja me’n desconhort, car lo bé hi perdrà son sort. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Fortaleza, dai grande conforto, do Concílio sejais porto, se não fordes, sereis meu desconsolo porque o bem perderá sua sorte. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Si lo concili ha son for, temprança gran serà el tresor car tot serà vestiti d’or e de virtuts e de bon cor. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Se o Concílio tem sua força, grande temperança será o seu tesouro e tudo será vestido de ouro, de virtudes e de bom coração. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Si la fe grans amics no ha a lo cancili, què farà? Lo concili es clamarà a Déu car la fe no hi valrà. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, Se a fé não tem grandes amigos, ao Concílio, o que fará? O Concílio clamará a Deus, porque a fé de nada valerá. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, 99 Única estrofe do poema composta por oito versos. 85 715 720 725 730 735 740 745 car pecat puja! pois o pecado aumenta! Qui el concili volrà honrar esperança vulla menar, car ab ella es porà acabar; fals hom no hi porà contrastar. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Quem o Concílio desejar honrar, a esperança pretenderá guiar, porque com ela poderá acabar e o falso homem não lhe oporá. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Caritat, venits aidar al concili per lo bé far e el Papa enamorar e cardenals aconsellar. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Caridade, vinde ajudar o Concílio, para o bem fazer, o papa enamorar e os cardeais aconselhar. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Avarícia és camí per qui hom va a mala fi, si és ella al concilí ell no valrá un peitaví. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Avareza é caminho para que o homem vá ao mau fim. Se ela está no Concílio, ele não valerá nada. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Glotonia és destral ab colp mortal, si al concili ha hostal lo concili en res no val. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Glutonia é um machado de golpe mortal. Se no Concílio tem casa, ele de nada vale. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Luxúria és pecat per tot lo món escampat; del concili sia gitat e tot hom d’ella enamorat. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Luxúria é pecado por todo o mundo disseminado; que do Concílio seja expulsa e de todo o homem dela enamorado. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! 86 750 755 760 765 770 775 780 Si al concili va ergull ab null hom, ne en ell l’acull tot hi serà de mal escull: no hi cal anar Ramon Llull! Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Se ao Concílio vai o orgulho com alguém, e nele é acolhido, tudo aí será de mau estorvo: não deve ir Ramon Llull! Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Accídia e neclijar de far bé e destrobar si al concili pot entrar no hi cal null hom bo anar. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Acídia é negligenciar fazer o bem, e perturbar. Se no Concílio ela pode entrar, nenhum homem bom deve ir. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Enveja és desijament de fembra, castell e argent; si lo concili és son parent tot serà vestit de nient. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Inveja é desejo de fêmea, castelo e prata. Se o Concílio é seu parente, tudo será vestido de nada. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! Ira és trista passió, d’ella no ve consell bo; si al concili ha maisó lo concili no serà bo. Senyor Déus, pluja, per què el mal fuja, car pecat puja! Ira é triste paixão, dela não vem conselho bom; se no Concílio tem casa, ele não será bom. Senhor Deus, chova, para que o mal fuja, pois o pecado aumenta! 87 785 790 795 800 805