Livro Ricardo e Tatyana

Transcrição

Livro Ricardo e Tatyana
Poemas de Ramon Llull
Desconsolo (1295)
Canto de Ramon (1300)
O Concílio (1311)
Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos
Poemas de Ramon Llull
Desconsolo (1295)
Canto de Ramon (1300)
O Concílio (1311)
Prefácio
Alexander Fidora
ICREA Research Professor
Universitat Autònoma de Barcelona
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (IBFCRL)
Angelicvm
Instituto Brasileiro de Filosofia e de Estudos Tomistas
CEMOrOc
Centro de Estudos Medievais – Oriente & Ocidente
2009
2
© 2009, Sétimo Selo Ltda.
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Título Original
Poemas de Ramon Llull
Prefácio
Alexander Fidora
Imagem da Capa
Detalhe da iluminura 4 do Breviculum (Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum Handschrift der Badischen
Landesbibliothek Karlsruhe aus der Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur: St. Peter perg. 92).
Arte
BMP Graphic Design & Propaganda ([email protected])
Coordenação Editorial
Octacílio Freire e Sidney Silveira
ISBN
978-58-99255-10-0
__________________________
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
L773p
Llull, Ramon, ca. 1232-1315
Poemas de Ramon Llull / [traduzidos por] Ricardo da Costa e Tatyana
Nunes Lemos ; prefácio de Alexander Fidora. - Rio de Janeiro : Sérimo
Selo, 2009.
87p.
Conteúdo: Desconsolo (1295) - Canto de Ramon (1300) - O Concílio
(1311)
ISBN 978-85-10-0
1. Poesia catalã - Obras anteriores a 1800. 2. Filosofia medieval.
I. Costa, Ricardo Luiz Silveira da, 1962-. II. Lemos, Tatyana Nunes. I.
Título. II. Título: Desconsolo. III. Título: Canto de Ramon. IV. Título:
O Concílio.
09-3514.
16.07.09
23.07.09
CDD: 849.91
013921
CDU: 821.134.3-1
__________________________
3
Índice
Prefácio
Alexander Fidora
ICREA Research Professor
Universitat Autònoma de Barcelona / IBFCRL
05
Apresentação
07
Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos
Desconsolo (1295)
10
Canto de Ramon (1300)
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O Concílio (1311)
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Prefácio
O filósofo maiorquino Ramon Llull (1232-1316) foi um pensador crítico avant la lettre. Em suas
obras abundaram críticas aos trovadores, aos cavaleiros e a muitos outros segmentos sociais.
Com efeito, toda a sua vasta obra pode e deve ser lida como uma apaixonada crítica à Filosofia e
Teologia imperante em seus dias.
E mais: Llull foi, antes de tudo, um pensador em crise. Com isso, não nos referimos à suposta
crise psicológica que sofreu, a chamada Crise de Gênova (1292/1293), da qual o próprio Llull nos
contou como se fosse uma enfermidade, e que já foi interpretada como uma profunda
depressão. Referimo-nos à própria crise da razão: é dessa que trataram as poesias que aqui
foram, pela primeira vez, traduzidas para o português.
Ramon Llull acreditava na força da razão como poucos pensadores antes e depois dele.
Convencido de que o discurso argumentativo era o único caminho possível para resolver os
grandes problemas e conflitos da Humanidade, ele dedicou toda a sua vida à criação e
propagação de um sistema racional que pudesse ser aceito por todos os interlocutores possíveis,
independente de seu particular contexto cultural ou religioso: a Ars. Com esse sistema, Llull
acreditava ter chegado a destilar a essência da própria racionalidade, descobrindo, com isso, o
remédio universal para todos os males de seu tempo. Assim pensava Llull. Mas e seus
contemporâneos? Aqui se encontra a crise da razão, tanto no tempo de Llull como nos dias de
hoje.
A razão não é solitária: sempre foi e será, por sua própria natureza, intersubjetiva. Não basta
saber (ou crer) que temos razão, é necessário a confirmação por parte dos demais, da
comunidade discursiva a qual pertencemos como seres pensantes, pois a verdade não é a
descoberta de um só: deve ser validada e reconhecida de maneira intersubjetiva.
O Desconsolo (1299) e o Canto de Ramon (1300) tratam precisamente dessa tragédia da razão crítica.
Quem aceita de maneira incondicional o veredicto da razão, tal como Llull o fez, se submete
simultaneamente à exigência do reconhecimento intersubjetivo, porque não há racionalidade
sem intersubjetividade. Em outras palavras: aceitar a razão como instância única e autônoma
significa, paradoxalmente, fazer-se dependente, em boa medida, da comunidade discursiva. Por
isso, a razão, embora seja a capacidade mais forte de que dispomos – já que só ela pode dar um
fundamento sólido às nossas convicções e aos valores que defendemos –, é, por sua vez,
infinitamente frágil, e torna o ser racional sumamente vulnerável.
Essa fragilidade da razão e a vulnerabilidade de seu portador se encontram no centro poético do
Desconsolo e do Canto de Ramon: a falta de apoio e de reconhecimento da Ars que Llull lamenta
nesses versos é, portanto, muito mais que uma simples decepção pessoal de quem presencia a
5
frustração de suas propostas e projetos intelectuais. Mais que o inegável elemento biográfico que
contêm, essas obras são a sublime e comovedora expressão poética do próprio sofrimento da
razão, uma experiência humana universal que não perdeu nada de sua vigência.
Contudo, Llull não se desesperou diante de tal condição, pelo contrário, mostrou-nos como
aceitar o desafio da crise da razão, isto é, contrapondo-o com a virtude da paciência e a
confiança na força da argumentação. Assim, Llull reiterou, mais de uma vez, suas propostas de
reforma racional, como o demonstra a terceira poesia contida nesse livro, O Concílio, peça escrita
para o Concílio de Vienne (1311) durante os últimos anos de sua vida, onde, finalmente, foram
aprovadas algumas de suas propostas, como, por exemplo, a fundação de studia linguarum para
ensinar os idiomas dos “infiéis”.
Ao traduzirem pela primeira vez essas obras para o português, Ricardo da Costa e Tatyana
Nunes Lemos não somente fizeram um importantíssimo trabalho de difusão da riquíssima obra
poética luliana, até então pouco conhecida fora dos Países Catalães, mas também colocaram nas
mãos do leitor brasileiro um conjunto de textos que transmitem uma mensagem de uma
atualidade tremenda: a importância de cultivar a confiança nesse bem tão frágil e vulnerável que
é a razão, mesmo que a conjuntura histórica e política possa às vezes nos fazer duvidar de nossa
missão humanizadora nesse mundo, e de armar-nos de paciência – e poesia! – para defendermos
essa razão crítica diante de todos aqueles que a instrumentalizem, ou mesmo cheguem a negá-la.
Alexander Fidora
ICREA Research Professor
Universitat Autònoma de Barcelona / IBFCRL
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Apresentação
Desconsolo (1295) – Canto de Ramon (1300) – O Concílio (1311)
Há muitos séculos, em sua obra Poética, Aristóteles afirmou que a Poesia, por se referir ao
universal, era mais filosófica e séria que a História, pois esta dizia respeito apenas ao particular
(1451b). Universal versus particular: para o filósofo, os pensamentos e ações de um indivíduo, de
um poeta, que expressavam poeticamente a natureza universal da humanidade, ultrapassavam o
seu tempo e tornavam a poesia uma expressão transcedental, quase divina.
Como historiador, sempre reli essa passagem da Poética com certo desdém. Afinal, concordar
com o Estagirita era reconhecer o caráter inferior dessa “ciência” humana que sempre me foi tão
cara.
Vários anos se passaram até pôr à prova o gênio do filósofo grego. Em 2003, a Providência
colocou a Poesia em meu caminho. O filósofo que estudava desde 1999, Raimundo Lúlio (em
catalão Ramon Llull, 1232-1316) também dedicou-se a ela. Descobri, fascinado, a tradição
poética do Ocidente Medieval. Solicitado pelas circunstâncias, debrucei-me sobre ela com
afinco, e ganhei uma parceira: a aluna, hoje professora, sempre amiga, Tatyana Nunes Lemos.
Educada em colégio de freiras, a menina tinha a Língua na língua. Recordou-me a Gramática,
suas normas, poliu minha rudeza estilística. Com o apoio de Ramon.
Quase seis anos depois, concluímos nossa proposta: traduzir três textos do filósofo catalão: O
Desconsolo (1295), O Canto de Ramon (1300) e O Concílio (1311), que hoje apresentamos pela
primeira vez em língua portuguesa.
O Desconsolo é a principal obra rimada de Ramon Llull (1232-1316), com o tom mais pessoal. É
composto por sessenta e nove estrofes dodecásticas, isto é, com doze versos, e isométricos (com
a mesma medida), totalizando oitocentos e vinte e oito versos. Llull utilizou versos alexandrinos,
isto é, com doze sílabas métricas. No fim do poema, o filósofo nos informa que o Desconsolo
deveria ser cantado ao som do poema épico carolíngio Berart de Montdidier.
Escrito em sua velhice, após passar uma vida e presenciar a rejeição de sua Arte, dada por Deus,
o Desconsolo reflete o desencanto diante de seu aparente fracasso no projeto que se propôs após
sua conversão.
O poema começa com um relato biográfico (até a quinta estrofe): Ramon está melancólico
porque faz trinta anos que se dedica sem êxito à causa da conversão dos infiéis e da exaltação da
fé. Após a sexta estrofe, começa o diálogo com um eremita, que incentiva Ramon a fazer um
exame de consciência para ver se sua Arte é efetivamente uma boa causa.
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Ramon pensa que está livre de pecado, limpo da culpa de negligência, indiscrição, avareza ou
vanglória porque tem o amor a Deus e um autêntico impulso de caridade. As reticências do
eremita não consolam Ramon, o incomodam. Após um momento de controlada ira, Ramon
passa a discutir questões importantes, como as relações entre fé e razão, a base da
demonstrabilidade da fé nos termos da Arte, e a necessidade de trabalhar para converter os
infiéis.
Finalmente, o eremita é tocado pela imagem do lutador que abandonou tudo por seu ideal,
“considera que Ramon dizia a verdade”, e reconhe que a obra que ele iniciara é boa e agradável a
Deus. O texto termina com uma emotiva despedida e uma nova dose de esperança, nascida do
comprometimento do, até então, crítico de Llull com sua causa.
O texto tem um conteúdo que mescla desânimo, pelo desencorajamento recebido ao longo de
sua vida, e esperança, posta nas futuras redações da nova Arte. A inesperada e apaixonada
conversão final do eremita é uma amostra dessa esperança.
O eremita que debate com Ramon não é um personagem com personalidade própria, mas a voz
de um antagonista domesticável, que o instiga com perguntas que mostrem ao leitor o drama da
incompreensão do qual o poeta é objeto e que lhe dê a possibilidade de fazer todas as
justificativas morais que pensou.
***
O Canto de Ramon foi escrito em 1300 e divide com o Desconsolo a categoria de lírica
autobiográfica luliana. É uma versão sintética do Desconsolo, sem o traço dialético.
É formado por quatorze estrofes hexásticas (com seis versos) monorrimas de versos
octossílabos, totalizando oitenta e quatro versos. Possui momentos muito emotivos que
parecem indicar que Llull encontrou uma nova função para a poesia trovadoresca, renegada em
sua juventude.
É uma composição com uma elevada força lírica. Começa com a conversão de Ramon e repassa
os principais acontecimentos de sua vida, da fundação de Miramar à redação da Arte. Remonta,
ainda, à sua vontade missionária e rememora algumas de suas frustrações.
Redigido em primeira pessoa, contém queixas sobre o pouco êxito do seu trabalho e pedidos de
proteção a Deus. Além disso, Ramon pede que Deus lhe conceda companheiros conscientes que
lhe ajudem a levar adiante o seu projeto.
***
8
O Concílio foi redigido em Vienne, França, em 1311, possivelmente motivado pela realização do
qüinquagésimo Concílio Ecumênico (Vienne, França, 16 de outubro de 1311 a 6 de maio de
1312). Trata-se da última obra versificada escrita por Ramon.
É formado por oitocentos e nove versos heterométricos, ou seja, que não possuem a mesma
medida. Do primeiro ao setingentésimo, encontram-se cem estrofes heptásticas (com sete
versos) com os quatro primeiros versos octossílabos rimando entre si, e os três últimos divididos
em dois tetrassílabos (o primeiro e o terceiro) e um octossílabo, também rimando entre si (a8, a8,
a8, a8, b4, b8, b4). Do setingentésimo primeiro ao octogentésimo nono encontra-se a seguinte
formação: um estribilho monorrimo trístico (com três versos) de versos tetrassílabos, mais
quinze estrofes tetrásticas de versos octossílabos monorrimos, alternadas e sempre seguidas da
repetição do refrão (A4, A4, A4 // b8, b8, b8, b8 // A4, A4, A4).
Tem ecos do ‘sirventès de croada’, um gênero poético trovadoresco de temática denunciadora
diversa (moral, política, bélica, satírica) escrito em um estilo muito vivo e animado, até mesmo
agressivo e violento, que admitia diversas modalidades formais e genéricas. Era cantado com a
melodia de uma canção preexistente. Entrelaçou sugestões procedentes da literatura escrita para
incitar os cruzados com elementos da poesia popular.
Mostra-se menos iludido que em outros tempos e parece ansiar justificar sua vida e trabalho
diante de Deus. Porém, mesmo velho e sem muitas ilusões sobre obtenção de êxito nesse
Concílio, é possível vislumbrar um Ramon tão decidido e enérgico quanto nos tempos de sua
plenitude quando seu espírito ardoroso se inflama ao dirigir-se ao papa e aos altos dignitários
eclesiásticos, ameaçando-os e admoestando-os.
No texto, o poeta-filósofo atribui importantes funções ao papa, aos cardeais, aos príncipes, aos
prelados, aos religiosos, e elencou algumas qualidades que julgava fundamentais para a realização
do Concílio, tais como a contrição e a devoção.
***
Nossa tradução
Nossa tradução utilizou como base três edições: Josep Batalla (RAMON LLULL. Lo Desconhort.
Cant de Ramon. Barcelona: Obrador Edèndum, 2004), RAMON LLULL. Obres Selectes I [OE].
Barcelona: Editorial Selecta, 1957, p. 1308-1328 e RAMON LLULL. Poesies. Barcelona: Editorial
Barcino, 1928. Há algumas divergências nas edições, devido aos diferentes manuscritos.
Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos
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Desconsolo (1295)
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Desconsolo (1295)
Ramon Llull (1232-1316)
Trad. e revisão: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes)
I
Déus, ab vostra vertut començ est
desconhort,
lo qual fas en xantant, per ço que me’n
conhort,
e que ab ell reconte lo falliment e el tort
que hom fa envers vós, qui ens jutjats en
la mort.
E on mais mi conhort, e menys hai lo
cor fort,
car d’ira e dolor fa mon coratge port;
per què el conhort me torna en molt
gran desconhort.
Per açò estaig en treball e en deport,
e no hai null amic qui negun gauig
m’aport,
mas tan solament vós; per què eu lo faix
en port
en caent e llevant, e són çai en tal sort
que res no veig ni auig d’on me venga
confort.
II
Quan fui gran e sentí del món sa vanitat,
comencei a far mal e entrí en pecat,
oblidant lo Deus glorios, seguent
carnalitat;
mas plac a Jesucrist, per sa gran pietat,
que es presentà a mi cinc vets crucificat
per ço que el remembràs e en fos
1
2
I
Deus, com Vossa virtude começa este
Desconsolo,
o qual faço em canto, para que me
console
e com ele narre a falta e o dano
que o homem faz contra Vós, que nos
julgastes na morte.
E quanto mais me consolo, menos o
coração está forte,
pois de ira e dor meu coração é porto,
por isso, o consolo retorna como um
grave desconsolo.
Por isso, estou em trabalho e distração1,
e não há nenhum amigo que alguma
alegria me traga,
mas tão somente Vós, para que eu O
torne um porto,
na queda e na ascensão. E estou assim
em tal sorte
que nada vejo ou escuto que me traga
conforto.
II
Quando cresci e senti a vaidade do
mundo,
comecei a fazer mal e entrei em pecado,
esquecendo o Deus glorioso2 e seguindo
o que é carnal.
Mas agradou a Jesus Cristo, por Sua
grande piedade,
apresentar-Se a mim cinco vezes
crucificado,
para que O relembrasse e me
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Isto é, distração com o sentido de sair mentalmente. Ver Llibre d’Evast e de Blaquerna, 98 (OE I, 259).
Em OE, “Deus glorioso”; na de Batalla “Deus verdadeiro”.
11
enamorat
e que eu procuràs com ell fos preïcat
per tot lo món, e que fos dita veritat
de sa gran Trinitat e com fo Encarnat.
Per què eu fui espirat en tan gran
volentat,
que res àls no amé mas que ell fos
honrat;
e adoncs comencé com lo servís de grat.
III
Quan pris a consirar del món son
estament,
com són paucs crestians e molt li
descreent,
adoncs en mon coratge hac tal
concebiment
que anàs a prelats e a reis eixament,
e a religioses, ab tal ordenament,
que se,’n seguís passatge e tal preïcament
que ab ferre e fust e ab ver argument
se dés a nostra fe tan gran exalçament
que els infeels venguessen a ver
convertiment.
Ez eu hai ço tractat, trenta anys ha,
verament;
no n’hai res obtengut, per què n’estic
dolent
tant, que en plore sovent e en són en
llanguiment.
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4
enamorasse,
e fizesse que Ele fosse predicado
por todo o mundo, e que fosse dita a
verdade
de Sua Trindade, e como encarnou.
Porque fui inspirado em tão grande
vontade,
que nada amei mais do que Ele fosse
honrado
e, então, comecei a servi-Lo de bom
grado.
III
Quando me pus a considerar do mundo
o seu estado,
quão são poucos os cristãos e muitos os
descrentes,
então, em meu coração tive tal
concepção
que fosse a prelados e a reis, igualmente,
e a religiosos, com tal ordenamento,
para que ocorresse a Passagem3, e com
tal pregação
que com ferro e fogo, e verdadeira
argumentação,
se desse à nossa fé tão grande exaltação
que os infiéis viessem à conversão.
E isso tenho tratado, verdadeiramente,
há trinta anos,
mas não obtive nada, pelo que estou
doente4,
tanto, que choro freqüentemente, e estou
em languidez.
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Na Idade Média não existia o termo “Cruzada”; os textos citam “Passagem” (com o sentido de
peregrinação, caminho com ascensão espiritual, elevação).
“Estou doente” – Doente de paixão, de sofrimento.
12
IV
Dementre que enaixí estava en tristor
e consirant sovent en la gran deshonor
que Déus pren en lo món per sofratxa
d’amor,
com a home irat que fuig a mal senyor,
me n’aní al boscatge, on estava ab plor,
tant fort desconhortat, que el cor n’haic
gran dolor;
mas per ço car plorava e sentia dolçor,
e car a Déu parlava faent a ell clamor,
con tant pauc exoeix li just e el pecador,
quan l’aoren e el creuen tractar sa honor;
car si mais los donava d’ajuda e fervor
tost convertirien lo món a sa valor.
V
Enaixí com estava ab malencolia,
a lluny guardí e viu un hom qui venia,
un bastó en sa mà e gran barba havia,
e en son dors cilici portec, pauc valia.
Segons son captener ermità paria.
E quan fo pres de mi, dix-me què havia,
ne lo dol que eu menava, e d’on me
venia,
ni si ell per nulla res aidar-me podia.
5
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IV
Enquanto estava assim, em tristeza,
considerando freqüentemente a grande
desonra
que Deus recebe do mundo por falta de
amor,
como um homem irado, que foge do mal
senhor,
fui a um bosque, onde estive em pranto,
tão fortemente desconsolado, que o
coração estava em dor.
Mas como chorava, sentia doçura5,
e a Deus falava fazendo-Lhe clamor,
como tão pouco escuta o justo e o
pecador
quando Lhe adoram e crêem tratar Sua
honra,
pois se lhes desse mais ajuda e fervor,
todos converteriam o mundo ao Seu
valor.
V
Assim, enquanto estava em melancolia
ao longe observei e vi que vinha um
homem.
Tinha um bastão em sua mão e uma
grande barba,
em seu dorso cilício trazia, e pouco
vestia.6
Parecia
eremita,
segundo
seu
comportamento.
E quando chegou a mim, perguntou-me
o que tinha
e de onde vinha a dor que eu trazia,
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e se ele de alguma forma poderia me
Nessa passagem seguimos a edição OE; na de Batalla, o sentido é de ação simultânea: “mas per ço car
plorava e sentia dolçor”.
Na edição de Batalla, “...e en son dors cilici portec, pauc valia”, isto é, o homem valia pouco – ao
contrário de OE, que seguimos.
13
Ez eu, las, respòs-li que tal mal sentia,
que per ell ni per altre no em consolaria;
car, segons que hom perd, creix la
fellonia.
E ço que eu perdut hai, e dar qui ho
poria?
VI
– Ramon, dix l’eremità, vós, què havets
perdut?
Per què no us consolats en lo Rei de
salut,
qui abasta a tot ço qui per ell és vengut?
Mas aquell qui el perd no pot haver
vertut
en ésser consolat, car trop és abatut.
ajudar.
E eu respondi, ai, que tal ira sentia7
que nem por ele nem por outro
consolar-me-ia,
pois, conforme o que o homem perde,
cresce a felonia.
E o que eu havia perdido, dizê-lo quem
poderia?8
bé poria ésser que us fos acorregut
per la mia doctrina, tant que si sóts
vençut
que us mostrarà a vençre vostre cor
combatut
de ira e dolor, ab que Déus hi ajut.
VI
– Ramon, disse o eremita, o que haveis
perdido?9
Por que não vos consolais no Rei da
salvação,
que basta a tudo o que Dele vem?
Mas aquele que O perde não pode ter
virtude
para ser consolado, pois está muito
abatido.
E se vós não tendes nenhum amigo que
vos ajude,
dizei-me vosso coração o que houve,
pois, se tiverdes coração fraco ou
estiverdes decepcionado,
bem poderia ser que fôsseis socorrido
pela minha doutrina, tanto, que se
estiverdes vencido,
mostrar-vos-ei como vencer vosso
coração combalido
de ira e dor, para que Deus vos ajude.
VII
– N’ermità, si eu pogués portar a
compliment
la honor que eu tracté por Déu tan
llongament,
VII
– Dom eremita, se eu pudesse levar a
cumprimento
a honra que por Deus tratei por tanto
tempo,
E si vós no havets null amic qui us ajut
digats-me vostre cor e què havets haüt;
car si flac cor havets ne si sóts decebut,
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70
Batalla: “Ez eu, las, respòs-li que tal mal sentia”.
Em Batalla: “E o que eu havia perdido, quem o poderia dar?”. Seguimos a edição OE.
Aqui inicia-se o diálogo entre Ramon e o eremita.
“...para que eu perca por eles toda a procuração” – Llull se autodenomina “procurador dos infiéis”.
14
no hagra re perdut ni en fera clamament,
ans guasanyara tant que a convertiment
ne véngron li errat, e lo Sant Moniment
hagren los crestians. Mas per defalliment
d’aquells a qui Déus ha donat mais
d’honrament,
qui no em volon ausir, ans tenen a nient
mi e mes paraules, com hom qui
follament
parla, e res no fa segons enteniment;
per què eu per ells perd tot lo
procurament
que fas per honrar Déu e d’hòmens
salvament.
VIII
Encara us dic que port un art general,
que novament és dada per do espirital,
per qui hom pot saber tota res natural
segons que enteniment ateny lo sensual.
A dret e medicina e a tot saber val,
e a teologia, la qual m’és mais coral;
a soure qüestions nulla art tant no val,
ne errors destruir per raó natural;
e tenc-la per perduda, car quaix a hom
no cal.
Per què eu en planc e en plor, e n’hai ira
mortal:
car null home qui perdés tan preciós
cabal,
no poria haver gauig mai de res terrenal.
IX
– Ramon, si vós faits ço que a vós se
não haveria nada perdido nem faria
clamor,
e sim ganharia tanto que à conversão
viriam os errados, e o Santo Sepulcro
teriam os cristãos. Mas, por falta
daqueles a quem Deus tem dado mais
honramento,
que não desejam ouvir e não consideram
nem a mim nem minhas palavras, como
homem que loucamente
fala e nada faz segundo o entendimento;
para que eu perca por eles toda a
procuração10
que faço para honrar a Deus e ter dos
homens a salvação.
VIII
Ainda vos digo que trago uma Arte Geral,
que me foi dada, recentemente, por dom
espiritual
para que o homem possa saber toda
coisa natural,
conforme o entendimento atinge o
sensual.
Vale para o Direito, para a Medicina e
todo o saber,
e para a Teologia, a qual me é mais cara,
nenhuma arte vale tanto para resolver
questões
e para destruir os erros através da razão
natural.
E a tenho por perdida, porque ao
homem quase não interessa.
Por isso, estou em pranto, em lágrimas e
em ira mortal:
pois nenhum homem que perdesse tão
precioso cabedal
poderia ter novamente gozo de coisa
terrenal.
IX
– Ramon, se vós fazeis o que vos
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cové,
en procurar honor a Déu e far gran bé,
e no sóts escoltat ni ajuda no us ve
d’aquells qui han lo poder, ges per ço no
us cové
que en siats despagat, car Cell qui tot ho
ve,
vos n’ha aitant de grat, com si es complís
dessé
tot ço que demanats; car hom qui bé es
capté
a tractar sa honor, aconsegueix en se
mérit e esmenda, do, pietat, mercè.
Per què fa gran pecat qui en son cor reté
ira ni desconhort, faent Déus a ell bé
qui es concorda ab gauig, esperança e fe.
X
Ramon, de vostra art no siats consirós,
ans en siats alegre e estats-ne joiós;
car, pus Déus la us ha dada, justícia e
valors
la multiplicaran en lleials amadors.
E si vos en est temps ne’n sentits
amargors,
en altre temps mellor haurets ajudadors
tals qui lens apendran, e en vençran les
errors
d’aquets món, e en faran molt bon fait
cabalós.
Per què us prec, mon amic, que conhort
sia ab vós,
e d’hui mai no plorets contra fait virtuós;
convém,
procurar honra para Deus e fazer grande
bem,
e não sois escutado nem a ajuda vos vem
daqueles que têm poder, por tudo isso
não convém
que estejais descontente, pois Deus, que
tudo vê,
vos é tão grato como se cumprísseis
imediatamente
tudo o que pedistes, pois o homem que
bem se porta
para tratar Sua honra, conseguirá, para si
mérito e correção, dom, piedade, mercê.
Por isso, comete grande pecado quem
em seu coração retém
ira e desconsolo, fazendo Deus a ele bem
que concorda com gozo, esperança e fé.
X
– Ramon, com vossa Arte não fiqueis
preocupado,
e sim, estejais alegre e jubiloso,
pois já que vos foi dada por Deus, justiça
e valores
multiplicá-la-ão em leais amantes.
E se vós sentirdes amargor nestes
tempos,
em outro tempo tereis melhores
ajudantes
que lentamente a aprenderão, vencerão
os erros
deste mundo e farão muitos bons feitos
importantes.
Por isso, vos rogo, meu amigo, que o
consolo esteja convosco,
e de agora em diante não choreis por
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115
enans vos alegrats contra fait viciós,
e de Déu esperats gràcia e secors.
XI
Ramon, per què plorats e no faits bell
semblant,
e com no us conhortats del vostre mal
talant?
Per aquesta raó, mi faits ésser duptant,
que estiats en pecat mortal, tan
malestant;
per què siats indigne a far res benestant;
car Déus no es vol servir per null home
enpecant.
E si no ve a fi ço que desirats tant
no és culpa d’aquells de qui us anats
clamant,
car no vol Déus que vostre fait vaja gens
avant
si estats en pecat, car de bé tant ni quant
no pot hom pecador d’ell ésser
començant,
car lo bé e el pecat en res no han
semblant.
XII
― N’ermità, no m’escús que no haja
pecat
mortalment mantes vets, de què me són
confessat;
mas, depús Jesucrist a mi es fo revelat
en la crots, segons que dessús vos hai
contat,
e hagui en sa amor mon voler confermat,
11
feitos virtuosos,
mas alegrai-vos contra feitos viciosos,11
e de Deus esperais graça e socorro.
120
XI
– Ramon, por que chorais e não fazeis
belo semblante?
E como não vos consolais de vosso mal
talante?
Por essa razão, fazeis-me duvidar
que estejais em pecado mortal, tão grave,
que sois indigno de fazer algo bom,
pois Deus não deseja ser servido por
nenhum homem pecador.
E se não chega ao fim o que tanto
desejais,
não é por culpa daqueles a quem fostes
clamar,
pois Deus não deseja que vosso feito vá
adiante
se estais em pecado, pois de nenhum
tipo de bem
o homem pecador pode ser princípio,
125
130
pois o bem e o pecado em nada são
semelhantes.
XII
– Dom eremita, não me escuso de ter
pecado
mortalmente muitas vezes, do que sou
confesso,
mas depois que Jesus Cristo a mim foi
revelado
na cruz, conforme o que antes vos
contei,
e tive em Seu amor meu desejo
135
“...mas alegrai-vos contra feitos viciosos”, alegrai-vos com o sentido de manter o espírito alerta contra os
vícios.
17
no pequí a cient en null mortal pecat.
Mas poria ésser, en ço qui és passat
quan era serf del món amant sa vanitat,
que non sia per Cristo en far bé ajudat;
emperò, si no ho era, tort faria e pecat
si ell no me aidava depús que l’hac amat
e per la sua amor lo món desemparat.
XIII
– Ramon, hom negligent no sap bé
procurar
estant si negligent, car molt no vol
membrar
ço que entén acabar. Per què em faits
molt duptar
que lo públic negoci que volets acabar
ab los molts grans senyors qui no us
volon aidar,
no es perda, per ço car molt no ho volets
amar;
car ab pauca amor gran fait no es pot
menar.
E si ets pererós de tu et deus rancurar,
e de ton falliment no deus altre encolpar,
ne tu, estant ociós, no et deus
desconhortar
per altre, mas per tu, qui no et vols
esforçar
en far tot ton poder con Déus pusques
honrar.
12
confirmado,
não pequei ciente em nenhum mortal
pecado.
Mas poderia ser que no passado,
quando era servo do mundo, amando
sua vaidade,
não estivesse bem ajudado por Cristo em
fazer o bem.
Contudo, se não o fosse, faria dano e
pecado
se Ele não me ajudasse depois de tê-Lo
amado
e, por Seu amor, o mundo desamparado.
XIII
– Ramon, o homem negligente não sabe
o bem procurar
e, estando negligente, não deseja muito
lembrar
o que tenta acabar. Por isso, me fazeis
muito duvidar
que o negócio público que desejais
acabar
com os muito grandes senhores que não
vos querem ajudar
não se perca, porque muitos não o
desejam amar,
pois, com pouco amor, um grande feito
não se pode encaminhar.
E se és preguiçoso, de tudo deves te
queixar, 12
e de tua falta não deves a outro culpar,
nem tu, estando ocioso, deves te
desconsolar
por outro, mas por ti, que não desejas te
esforçar
em fazer todo o teu poder para a Deus
poder honrar.
Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita.
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155
XIV
– N’ermità, vós vejats si eu són ociós
en tractar públic bé de justs e pecadors,
car muller n’hai lleixada, fills e possessiós
e trenta anys n’hai estat en treball e
llangors,
e cinc vets a la cort ab mies messiós
n’hai estat, e encara ab los Preïcadors
a generals capítols tres, e als Menors
a altres tres generals capítols; e si vós
sabíets què n’hai dit a reis e a senyors,
ne con hai treballat, no seríets duptós
en mi que sia estat en est fait pererós,
ans n’hauríets pietat, si sóts hom piadós.
XV
– Ramon, tot hom qui vol adur a
compliment
algun fait qui sia de molt gran estament
cové que ell sàpia tractar discretament;
mas si vós no sóts hom discret ni
entenent
segons que al fait cové, e en faits
rancurament
rancurats-vos a tort e sóts-ne reprendent
d’aquells qui són discrets e fan sàviament
ço qui a fait bo es cové, e a l’exauçament
de la fe crestiana. Per què us consell
breument
que estiats consolat en vostre falliment,
13
14
XIV
– Dom eremita, vedes vós se estou
ocioso
em tratar o bem público, de justos e
pecadores,
pois deixei mulher, filhos e possessões,
por trinta anos estive em trabalho e
langor,
e cinco vezes na corte, com minhas
despesas,13
estive. E mais: com os Pregadores
em três capítulos gerais, e, ainda, com os
Menores
em outros três capítulos gerais. E se vós
soubésseis o que falei a reis e a senhores,
e como trabalhei, não estaríeis duvidoso
de mim, que neste feito fui preguiçoso,
e sim teríeis piedade, se fôsseis um
homem piedoso.
XV
– Ramon, a todo homem que deseja dar
cumprimento
a algum feito que seja de grande
estamento
convém que saiba tratar discretamente.
Mas se vós14 não sois um homem
discreto, nem entendeis
segundo o que convém ao feito, fazeis
recriminação,
amargurando-vos
erradamente
se
repreendeis
aqueles que são discretos e fazem
sabiamente
o que convém ao bom feito a à exaltação
da fé cristã. Por isso, vos aconselho
brevemente
que fiqueis consolado de vossa falta,
“e cinco vezes na corte”, isto é, na corte pontifícia.
Mudança da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita.
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consirant que no sóts a lo fait convinent,
estats enfre vós humil e pacient.
XVI
– N’ermità, si eu no só de tal discreció
que en fait tan cabalós abastàs ma raó;
e si eu, ignorant, ves ell fas fallió
per sofratxa d’entendre e car discret no
só,
segons que el fait és gran, per ço vull
companyó
qui el m’ajut a complir; mas no em val
pauc ni pro
requerir companyia, ans són sol a bandó;
quan los guard en la cara e els vull dir ma
raó,
no em volon escoltar, ans dien que fat só
los de més, per ço car los dic aital sermó.
Però parrà al judici qui haurà discreció,
e qui de sos pecats atrobarà perdó.
XVII
– Ramon, l’hom qui és avar e vol algun
fait far,
ço que vol no ho pot complir ni acabar.
On, si vós sóts avar e no volets donar
del vostre, per ço que Deus ne façats
honrar,
de vostra cobeitat vos deuríets clamar
car ella vos empatxa lo bo fait procurar.
considerando que não sois conveniente
ao feito,
estejais assim entre nós humilde e
paciente.
180
XVI
– Dom eremita, se eu não tenho tal
discrição,
em feito tão importante bastaria minha
razão.
E se eu, ignorante, cometo falta contra
ele
por falta de entendimento e de discrição
pelo feito ser grande, desejo companhia
que me ajude a cumpri-lo, mas não me
adianta nada
requerer companhia, e sim estou só e
abandonado.
E quando os olho cara-a-cara e desejo
lhes dizer minha razão,
eles não querem me escutar. Diz que sou
louco,
a maioria, porque digo tal sermão.
Porém, aparecerá no Juízo quem tiver
discrição
e quem dos seus pecados encontrar
perdão.
XVII
– Ramon, o homem que é avaro e deseja
fazer algum feito
não pode cumprir nem terminar o que
deseja.
Logo, se vós sois avaro e não desejais dar
do que é vosso para que a Deus façais
honrar,
de vossa cobiça deveríeis se queixar,
pois ela vos impede do bom feito
procurar.
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195
O, si dar no podets, paupertat pot estar
contra vostre negoci, e deuríets pensar
que els senyors mais se clinen per dar
que per preicar
a los precs que hom los fa. Per què us
vull consellar
que, si donar podets, pensats tost de
l’anar,
car per donar porets tota res acabar.
XVIII
– N’ermità, certs siats que anc mais
cobeitat
de diners ni d’honors en mi no ha
habitat,
e en aquest negoci de mon patrimonat
hai tota vets despès e aitant llarguejat,
que tuit li meu infant n’estan en
paupertat;
d’on d’avarícia no dec ésser reptat;
ni donar eu no pusc a los hòmens de
grat,
car no só home ric ni senyor de ciutat;
per què no m’encolpets, ans m’hajats
excusat.
Bé us dic, si eu fos senyor d’emperi o
regnat,
tant del meu hi donara tro que fos
acabat;
mas home qui pauc dóna no és bé
escoltat.
XIX
– Ramon, glòria vana fa hom a si amar,
per ço que hom faça de si les gents
parlar,
Ou, se não podeis dar, a pobreza deve
estar
contra vosso negócio, e deveríeis pensar
que os senhores mais se inclinam a dar
que a predicar
aos pedidos que os homens lhes fazem.
Por isso, quero vos aconselhar
que, se pudéreis, pensais rapidamente em
dar,
pois, ao dar, podereis todo o resto
terminar.
XVIII
– Dom eremita, estejais certo que nunca
mais a cobiça
de dinheiro ou de honras em mim
habitou,
e, neste negócio, de meu patrimônio
tenho tantas vezes despendido, e tão
largamente,
que todos os meus filhos estão em
pobreza.
Logo, de avareza não devo ser acusado
nem posso dar aos homens de bomgrado,
pois não sou um homem rico, nem
senhor de cidade.
Por isso, não me culpais, mas me
desculpais.
E bem vos digo: se fosse senhor de
império ou reino,
daria tanto do meu até que acabasse,
mas o homem que dá pouco não é bem
escutado.
XIX
– Ramon, a vanglória faz o homem se
amar
para que de si faça as gentes falarem,
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dient de hom llausors, per ço que els sia
car
e que l’amen e l’honren en sovint
nomenar.
On, si vós treballats per vós meteix
llausar,
ergull, glòria vana vos fan tant
menysprear
a cells ab qui volets vostre fait acabar
que no us dényen veser ni us volon
escoltar,
car null fait tan honrat, vil hom no deu
menar,
e tot home és vil e està en pecar
qui mais que no li tany se vulla far
honrar.
Per què de vostre tort vullats null
encolpar.
XX
– N’ermità, eu no sai per qual entenció
vós havets de mi tanta mala estimació;
car ans deu hom haver bona presumpció
d’home qui no coneix que mala opinió.
E per què no us pensats que a fait qui és
tan bo
se pusca tot donar home qui pauc ni pro
no valla en lo fait? Car, si eu tot mal só,
segons que ho requer natura e raó,
tractara lo contrari; e, si Déus me perdó,
anc mais en mon coratge entenció no fo
que per haver llausors parlàs d’aital
sermó;
car en hom pecador null llaus pot ésser
bo.
dizendo dele louvores, para que seja
estimado
e que o amem e honrem-no ao ser
nomeado freqüentemente.
Logo, se trabalhais para louvar a vós
mesmos,
orgulho e vanglória vos fazem
menosprezado
por aqueles com que desejais vosso feito
terminar,
e eles nem desejam vos ver nem vos
escutar,
pois nenhum feito tão honrado, um
homem vil deve fazer,
e todo homem é vil e está em pecado
se deseja se fazer honrar mais do que lhe
pertence.
Por isso, de vossos erros desejais alguém
culpar.
XX
– Dom eremita, eu não sei por qual
intenção
tendes de mim tão má reputação,
pois antes o homem deve ter boa
presunção
de quem não conhece, que má opinião.
E por que vós pensais que a um feito tão
bom
se possa dar um homem que nada
valha ao feito? Pois, se em tudo sou mau,
segundo o que requer a natureza e a
razão,
trataria o contrário. Mas se Deus me
perdoou,
nunca mais existiu intenção em meu
coração
de obter louvores ao falar tal sermão,
pois no homem pecador nenhum louvor
pode ser bom.
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XXI
– Ramon, per aventura vós no sóts
conegut,
e per ço podets ésser en lo fait decebut;
car null tresor qui sia en terra abscondut
no es cové que sia desirat ni volgut.
On, si vostre saber no és apercebut,
co us pensats que per ço ne siats creegut?
Mas mostrats què sabets, per ço que vos
ajut
vostra art e saber; car hom desconegut
no ha, per ignorar, honrament ni vertut.
E si vós, mon amic, amats d’hòmens
salut
e de Déu honrament, e no sia perdut
faits que vostre saber sia bé conegut.
XXII
– N’ermità, co us pensats que eu tal
saber celàs,
ab lo qual nostra fe tan fortment se
provàs
a los hòmens errats, per ço que los salvàs
Déus, lo qual tant desir que tot home
l’amàs?
Ans siats ben segur que en demostrar
són las.
Mas si hom en mos llibres fortment
estudiàs
e per altre saber en res no els oblidàs,
jo en fora conegut; mas com gat qui
passàs
tost per brases los lligen, per què ab ells
XXI
– Ramon, porventura vós não sois
conhecido,
e por isso podeis, no feito, estar
decepcionado,
pois a nenhum tesouro que na terra
esteja escondido
convém que seja desejado ou apetecido.
Logo, se vosso saber não é percebido,
como pensais ser reconhecido?
Mostrais que sabeis, para que vos ajudem
vossa Arte e saber, pois o homem
desconhecido
não tem, por ignorar, honramento ou
virtude.
E se vós, meu amigo, amais a salvação
dos homens,
o honramento de Deus, e que não seja
perdido
o feito, que vosso saber seja bem
conhecido.
XXII
– Dom eremita, como vós pensastes que
tal saber eu ocultaria
com o qual nossa fé tão fortemente se
provaria
aos homens errados, pelo qual salvá-losia
Deus, O qual tanto desejo que todo
homem ame?
Estejais bem seguro que estou cansado
de demonstrá-lo.
Mas se o homem estudasse fortemente
meus livros,
e por outro saber eles não fossem
esquecidos,
eu seria conhecido. Mas, como gato que
passa
rapidamente por brasas, lêem-nos, pois
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260
no fas
quaix res de mon negoci. Mas, si fos qui
els membràs,
e qui bé els entesés e en res dubtàs,
pogra hom per mos llibres metre lo món
en bon cas.
XXIII
– Ramon, ço que dic fas per vos
aconhortar;
mas per què no us volets abstenir de
plorar,
porà ésser ben lleu que me’n vulla utjar.
com eles não fazem
quase nada de meu negócio. Mas, se
existisse alguém que os lembrasse,
os entendesse bem, e deles não
duvidasse,
poderia, por meus livros, colocar o
mundo em bom estado.
On per açò, amic, no us devets
meravellar,
si el Papa e els cardenals no us volon
atorgar
ço que les demanats, pus que no si pot
far.
XXIII
– Ramon, o que digo, faço para vos
consolar,
mas como não desejais abster-vos de
chorar,
poderíeis rapidamente desejar me
desgostar.
Mas escutais e vejais se podeis tratar
o que vós pedistes ao Papa, pois não me
parece
que seja possível a nossa fé provar,
nem que o homem pudesse tais homens
encontrar
que dessem a si mesmos para um
doloroso martírio
aos malvados sarracenos, para lhes
predicar.
Por isso, amigo, não vos deveis
maravilhar
se o Papa e os cardeais não desejam vos
outorgar
o que lhes pedis, posto que não se pode
realizar.
XXIV
– N’ermità, si la fe hom no pogués
provar,
doncs Déus als crestians no pogra
encolpar
si a los infeels no la vòlon mostrar,
e els infeels se pogren de Déu per dret
clamar,
car major veritat no lleix argumentar.
XXIV
– Dom eremita, se a fé o homem não
pudesse provar,
então Deus não poderia aos cristãos
culpar
se aos infiéis não a desejassem mostrar,
e os infiéis poderiam, por direito, de
Deus se queixar,
pois a maior verdade não se deixa
Emperò escoltats e vejats si es pot far
ço que vos demanats al Papa; car no par
que sia possible la nostra fe provar,
ni que home pogués aitals hòmens
atrobar
qui si mateixs donésson a greu marturiar
als malvats sarraïns, per ells a preïcar.
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280
Per què l’enteniment ajut a nostre amar,
com mais am Trinitat e de Déu
l’Encarnar,
e a la falsetat mais pusca contrastar.
Escrit hai lo Passatge on hai mostrat tot
clar,
com lo sant Sepulcre se pusca recobrar
e com hom atrob hòmens qui vagen
preïcar
la fe sens paor de mort e qui ho sabran
far.
XXV
– Ramon, si hom pogués demostrar
nostra fe,
hom perdria mèrit; e per ço no es cové
que es pusca demostrar, pus que se’n
perdés bé;
car, en perdre lo bé, fora lo mal dessé
causa al demostrar, qui contra el mèrit
ve,
lo qual hom ha per creure veritat que no
es ve
per força d’argument, ans solament per
fe.
Encara, que l’ humà entendre no conté
tota vertut de Déu, qui infinida es manté
tant que causa finida tota ella no té.
Per què vostra raó no par que valla re,
e car no us consolats, faits ço que es
descové.
argumentar.
Porque o entendimento ajuda o nosso
amar
quanto mais ama a Trindade e de Deus o
Encarnar
e à falsidade mais pode contrastar.
Escrevi a Passagem para com clareza
mostrar
como o Santo Sepulcro se pode retomar,
e como encontrar homens que irão
predicar
a fé sem pavor da morte, e que saibam
atuar.
XXV
– Ramon, se pudéssemos demonstrar
nossa fé,
perder-se-ia o mérito e, por isso não
convém
que se possa demonstrá-la, pois se
perderia o bem,
e ao se perder o bem, o mal
imediatamente seria
causa da demonstração contra o mérito
que existe no homem que crê na verdade
que não se vê
por força do argumento, somente pela
fé.
E mais: o entendimento humano não
compreende
toda a virtude de Deus, que se mantém
infinita,
tanto que ela não tem causa finita.
Por isso, vossa razão não parece valer
nada,
e como não vos consolais, fazeis o que
não convém.
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XVI
– N’ermità, si hom fos a si meteix creat,
ço que entenets provar contengra veritat;
mas, car Déus creà home, perquè en sia
honrat,
qui és pus noble fi e ha mais d’altetat
que la fi que hom ha en ésser gloriat,
no val vostra raó; e ja és damunt provat,
que la fe es pot provar, si bé havets
membrat;
e, si bé es pot provar, no es segueix que
creat
contenga e comprena trastot l’ens
increat,
mas que n’entén aitant, con a ell se n’és
dat,
per ço que hom haja de Déu plena
bontat,
son membrar e entendre, poder e
volentat.
XXVII
– Ramon, com vos pensats que hom, per
preïcar,
pogués los sarraïns adur a batejar?
Car, segons que Mafumet ha volgut
ordenar,
qui diu mal de sa llei no pusca escapar
e que aitals raons no vullen disputar;
per qué a mi no par utilitat lo anar.
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XXVI
– Dom eremita, se o homem tivesse se
criado,
o que tentais provar conteria a verdade,
mas como Deus criou o homem para
que fosse honrado,
que é um fim mais nobre e mais elevado
que o fim que o homem tem em ser
glorificado,
não vale vossa razão. E já foi acima
provado
que a fé se pode provar, se estais bem
recordado.
E se bem se pode provar, não segue que
algo criado
contenha e compreenda todo o ente
incriado,
mas que entenda tanto quanto a ele é
dado,
para que o homem tenha de Deus sua
vontade,
sua lembrança, entendimento, poder e
bondade.15
XXVII
– Ramon, como pensais que o homem,
por predicar,
pudesse levar os sarracenos a se batizar?
Pois, segundo o que Maomé desejou
ordenar,
aquele que falar mal de sua lei16 não
poderá escapar,
e tais razões não desejará disputar.17
Por isso, não me parece útil viajar.18
305
310
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A edição de Batalla altera a ordem dessa seqüência: “...para que o homem tenha de Deus sua bondade
/ sua lembrança, entendimento, poder e vontade”. No entanto, adotamos a ordem exposta em OE,
que coloca a vontade em primeiro lugar – o que, de resto, é a seqüência costumeiramente adotada
pelo filósofo. Veja, por exemplo, a Árvore da Ciência, 5, 3 (OE 1, 617).
Em OE, não há “...de sua lei”.
Em OE, “escutar” ao invés de “disputar”.
26
Encar que hom no sabria la llur llengua
parlar,
qui és llenguatge aràbic, e per enterpretar
no poria ab ells negun bé enançar;
e si el lenguatge aprèn, porà-hi trop
trigar.
Per què us do de consell que anets Déu
pregar,
en una alta montanya ab mi Déu
contemplar.
E mais: o homem não saberia falar,
XXVIII
– N’ermità, els sarraïns son en tal
estament,
que cells qui són savis, per força
d’argument
no creen en Mafumet; ans tenen a nient
l’Alcorà, per ço car no visc honestament.
E en pendre llur llenguatge hom no està
llongament,
ne no cal que hom blastom Mafumet
mantinent.
E qui fa ço que pot, lo Sant Espirament
fa ço que a ell cové, donant lo
compliment.
XXVIII
– Dom eremita, os sarracenos estão em
tal estamento
que aqueles que são sábios, por força do
argumento,
não crêem em Maomé, antes desprezam
o Corão, porque ele não viveu
honestamente.
Assim, eles viriam à conversão
rapidamente
se estivessem com eles em grande
disputa,
e lhes mostrassem a fé por força do
argumento,
e aqueles, convertidos, converteriam as
gentes.
Não precisa muito tempo para aprender
sua linguagem,
nem é preciso blasfemar Maomé
imediatamente.
E quem faz o que pode, o Espírito Santo
faz o que a ele convém, dando o
cumprimento.
XXIX
– Ramon, quan Deus volrà que el món
sia convertit,
adoncs darà llenguages per lo Sant
XXIX
– Ramon, quando Deus desejar que o
mundo seja convertido,
dará linguagens pelo Espírito Santo
Per què aquells venrien tost a
convertiment,
si hom ab ells estava en gran
disputament,
e la fe los mostrava per força
d’argument,
e aquells convertits, convertrien la gent.
18
a língua árabe, e por interpretar
não poderia com eles nada avançar,
e se a língua aprendesse, muito poderia
demorar.
Por isso, vos aconselho que vades a
Deus pregar,
em uma alta montanha comigo Deus
contemplar.
No original “anar” (ir).
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Espirit
a convertir lo món, segons que havets
ausit
de Crist e dels apòstols, d’on és fait mant
escrit;
e aquell convertiment serà pel món sentit
tant, que en un ovili seran li hom unit,
lo qual mais no serà en est món departit.
Aquell serà nostre e per Déu estabilit,
e ja mai null pecat no hi serà consentit.
Encar que en aquest temps cascun hom
ha fallit
tan fortment que no vol que sia exausit
Déus a far miracles, pus que tant l’han
aunit!
XXX
– N’ermità, en tots temps ama Déus
veritat,
e vol ésser per home conegut e amat;
e per ço en tots temps ha home libertat
en far bé e no mal; e seria forçat
si, en est temps on som, no havia
potestat
en tractar honrament a Déu, e caritat
a son proïsme haver. Per què eu no són
pagat
de ço que dit havets, d’on havets gran
pecat
en ço que afermats, que «tot ens és lligat;
en est temps hom no pot convertir li
errat
para converter o mundo, segundo o que
haveis ouvido
de Cristo e dos apóstolos, de quem
foram feitos muitos escritos;
e aquela conversão será sentida pelo
mundo,
tanto, que em um rebanho os homens
serão unidos
e este mundo nunca mais estará dividido.
Aquele será nosso e por Deus
estabelecido,
e jamais qualquer pecado será
consentido.
Mas como nestes tempos cada homem
tem falhado
tão fortemente que não deseja ser
escutado
Deus para fazer milagres, já que tanto O
tem afrontado!
XXX
– Dom eremita, em todos os tempos
Deus ama a verdade
e deseja ser conhecido e amado pelo
homem.
Por isso, em todos os tempos o homem
tem liberdade
de fazer o bem e não o mal, e seria
forçado
se nos tempos em que estamos não
houvesse poder
em tratar o honramento de Deus e
caridade
a Seu próximo ter. Por isso, eu não estou
satisfeito
com o que haveis dito e tendes grande
pecado
quando afirmais que «todo ente é ligado;
nestes tempos ninguém pode converter o
errado,
28
340
345
350
355
ni per Déu no pot ésser a sa honor
ajudat».
Per què en vostre parlar estaig
desconsolat.
nem por Deus pode ser em sua honra
ajudado».
Por isso, em vosso falar estais
desconsolado.
XXXI
– Ramon, molt mellor seny és qui sab
retenir
ço que ha guasanyat, que anar convertir
los sarraïns malvats, pus no vólon ausir;
XXXI
– Ramon, é muito mais sensato reter
per què als crestians deu hom tant de bé
dir
de Déu en preïcant, que els faça Déus
servir.
Encara que hom no sab si bé se pot
seguir
d’anar als sarraïns; car poria-hi fallir
en tant que ells volguessen hom així
destruir;
e, açò que mais és, no poden devenir
null temps bons crestians, car no es
poden partir
de ço que han costumat. Per què us plaça
jaquir
vostra ira e mudats allor vostre desir.
XXXII
– N’ermità, si fossen pauc li preïcador,
e li clergue seglar e li frare menor,
e encara li monge, tant abat e prior,
ço que vos havets dits fóra consell
mellor.
Mas car en nostra fe ha mant hom de
valor
19
20
o que se ganhou, que ir converter
os malvados sarracenos, pois não
desejam ouvir.
Por isso, deve-se dizer aos cristãos tão
bem
de Deus na prédica, que lhes faça serviLo.
Além disso, o homem não sabe se algum
bem pode conseguir
ao ir aos sarracenos, pois poderia falhar
a tal ponto que desejariam matá-lo,
e mais, não poderiam se tornar
nunca bons cristãos, pois não podem
deixar
o que estão acostumados. Por isso, vos
agradaria deixar
vossa ira e mudar, a partir de agora,
vosso desejo.
XXXII
– Dom eremita, se fossem poucos os
pregadores,
os clérigos seculares e os frades menores,
e, além disso, os monges, tanto abades
quanto priores,
o que vós dissestes seria o melhor
conselho.
Mas como ainda há em nossa fé muitos
homens de valor
Isto é, os sarracenos.
Em OE, “amor à fé”.
29
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365
370
375
qui desiren morir per far a Déu honor,
e qui poden bastar e a tuit nós e a llor,
per ço hai desplaer, car cells qui són
major
no fan ço que deuen en dar de Déu
llausor.
Si els paires convertits no han a la fe en
cor,
hauran-la llurs infants; e disets gran
follor,
car null hom no perd, si mor pel
Creador.
XXXIII
– Ramon, segons que auig dir, mant hom
és anat
preïcar als sarraïns e pauc han enançat,
e encara als tartres, d’on són maravellat
can així estats forts en vostra volentat;
car de tot fait on hom se sia fadigat,
e majorment con veets que tants l’han
assajat,
se deu hom departir, pus que sia
assenyat,
e, si no se’n parteix, fa’s hom tenir per
fat.
Per què us consell, germà, que hajats
pietat
de vostre cor mateix, que tant havets
ujat,
e estats en un lloc on sia reposat,
e dels vostres damnatges estiats consolat.
que desejam morrer para fazer a Deus
honor,
e que podem bastar a todos nós e a
eles,19
tenho desprazer, pois aqueles que são
maiores
não fazem o que devem para dar a Deus
louvor.
E se os padres convertidos não têm fé
no coração,20
tenham-na suas crianças. E dissestes
grande loucura,
pois nenhum homem perde se morre
pelo Criador.
XXXIII
– Ramon, segundo o que ouvi dizer,
muitos homens têm ido
predicar aos sarracenos e poucos têm
progredido,
e também aos tártaros. Por isso estou
maravilhado
de como estais forte em vossa vontade,
pois de todo o feito do qual se esteja
fatigado,
principalmente quando se vê que tantos
o têm tentado,
deve-se abandonar, ainda mais se for
sensato;
e, se não abandona, faz com que o
tenham por louco.
Por isso, vos aconselho, irmão, que
tenhais piedade
de vosso próprio coração, que tanto
haveis afligido,
e ides para um lugar onde fiqueis
repousado
e dos vossos danos estejais consolado.
30
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385
390
395
XXXIV
– N’ermità, cell qui vol molt servir e
honrar
son bon senyor no el deu per nulla res
lleixar,
ni d’ell bé a servir no es deu mai enutjar.
Mas car en vostre cor ha fretura d’amar,
no sabets vós meteix ni altre consellar;
car si hom en un temps no pot fait
acabar
en altre ho porà far, si bé lo sab menar;
e qui bon fait comença no l’ha a
començar,
e si els primers fan pauc, altres poran
molt far.
Per qué us prec, per mercè, que mi
lleixets estar,
car no em par que ab vós pogués res
guasanyar,
ans on mais me disets, mais me faits
entristar.
XXXV
Ramon s’enfelloní, e no volia ausir
l’ermità, qui el pregava con se degués
jaquir
del gan dol que menava, e començà a dir:
«Senyor Déus gloriós! Ha al món tal
martir
com aquest que sostenc, con tu no pusc
servir?
Car no hai qui m’ajut, com pusca
romanir
esta art que m’has dada, d’on tant de bé
21
XXXIV
– Dom eremita, aquele que muito deseja
servir e honrar
seu bom Senhor não deve por nada
deixar,
nem de servi-Lo bem deve se enfadar.
Mas como em vosso coração há ausência
de amar,
não sabeis a vós mesmo nem a outro
aconselhar;
pois se um homem em um tempo não
pode seu feito acabar
em outro o poderá terminar, se bem o
souber guiar;
e quem um bom feito começa, não o
consegue principiar.21
E se os primeiros fazem pouco, os
outros poderão completar.
Por isso, vos peço, por mercê, que me
deixeis estar,
pois não me parece que convosco possa
algo ganhar,
pelo contrário, quanto mais me dizeis,
mais me fazeis contristar.
XXXV
Ramon se enfureceu, e não desejava mais
escutar
o eremita, que lhe pregava como deveria
deixar
a grande dor que trazia, e começou a
falar:
«– Senhor Deus glorioso! Há no mundo
tal martírio
como este que suporto quando a Ti não
posso servir?
Pois não há quem me ajude para que
possa continuar
essa Arte que me foi dada, de onde tanto
Isto é, não é necessariamente quem inicia um feito que o termina.
31
400
405
410
415
es pot seguir,
la qual tem que es perdrá, aprés lo meu
fenir,
car null hom no la sab bé, segons mon
albir,
ni eu no pusc forçar null hom d’ella
ausir.
Ai las! Si ella es perd, a tu què porai dir
qui la m’has donada per ella enantir?»
XXXVI
– Ramon, li filosof qui foren antigament,
d’esta art, que tu has, no agren coneixent;
per què apar no sia de gran profitament;
e, si ella fos vera, fóra al començament
per ells atrobada, car llur enteniment
fo pus alt que lo teu. Emperò si eu ment
e que l’hages haüda de Déu, fas falliment
com tems que aprés ta mort ella vinga a
nient,
car tot ço que Déus dóna ve a bo
compliment.
Encara, que els antics, dementre eren
vivent,
les arts que faïen no hagren estament,
enans són exalçades per li altre següent.
22
23
24
bem se pode seguir,
a qual temo que se perderá após meu
fim,
pois nenhum homem a sabe bem,
segundo meu arbítrio,
nem eu posso forçar ninguém a escutá-la.
Ai de mim! Se ela se perde, o que Te
poderia dizer,
que a deu a mim para ela enaltecer? »
XXXVI
– Ramon, os filósofos que existiram
antigamente,
desta Arte, que tu22 tens, não tiveram
conhecimento;
porque parece que não seja de grande
aproveitamento.
E se ela fosse verdadeira, seria no
princípio
por eles23 encontrada, pois seu
entendimento
foi mais elevado que o teu. Contudo, se
eu minto,
e tiveste a ajuda de Deus, cometes falta
quando temes que após tua morte ela
acabe,
pois tudo o que Deus dá chega a um
bom cumprimento.
Além disso, os antigos, enquanto eram
vivos,
nas artes que fizeram não tiveram
exaltação24,
mas foram exaltados por seus sucessores.
420
425
430
Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita.
Em OE, “...pelos filósofos”.
Na edição de Batalla, “...não tiveram estamento”. Contudo, optamos pelo texto de OE, pois nos
parece que é esse o sentido proposto por Ramon.
32
XXXVII
Consolar-se volc Ramon, emperò felló
fo,
quan ve que l’ermità havia opinió
que els fìlosofs antics, en los quals fe no
fo,
sien estats començ de tot ço qui és bo
li fllosof antic hagren mais de visió
en llur enteniment, que aquells que aprés
són,
qui han llig e creença de resurrecció?
XXXVII
Ramon desejou consolar-se, mas se
irritou
quando viu que o eremita tinha opinião
que os filósofos antigos, nos quais a fé
não existia,
tinham sido o princípio de tudo que é
bom,
conhecendo a Trindade e Encarnação,25
pois estes filósofos antigos não tinham
opinião
que Deus fosse Trindade, nem com o
homem união,
nem a obra que Deus tem em Si por
produção26
amavam ou conheciam. Então, por qual
razão
os filósofos antigos tiveram mais visão
em seu entendimento que aqueles que
vieram depois,
que têm lei e crença na ressurreição?27
XXXVIII
– Ramon, no pusc dir res d’on sies
consolat.
Entén esta raó e no sies irat:
en què n’és Déus si el món no és en bo
estat?
XXXVIII
– Ramon, nada posso dizer para que
fiqueis28 consolado.29
Entende esta razão e não fiqueis irado:
em que Deus é afetado se o mundo não
está em bom estado?30
coneixent Trinitat e Encarnació;
car filosof antic no hac opinió
que en Déu fos trinitat, ni ab hom unió,
ni l’obra que ha en si Déus per producció
no amà ni conec. E dons, per qual raó
25
26
27
28
29
30
31
435
440
445
Em OE, “...conhecendo Deus, a Trindade e a Encarnação”.
Na teologia cristã a produção divina (ou procissão) é a determinação interna do Ser divino pela qual Sua
bondade não deixa de fazer o bem, isto é, produzir o bem em Si mesma e de Si mesma. Veja, por
exemplo, o Livro das Maravilhas 1,4 (OE I, 327). Assim, o Filho procede do Pai, e o Espírito procede
do Pai e do Filho.
Em OE, “...que têm lei e crença e esperam a ressurreição”.
Mudança da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita.
Em OE, “– Ramon, será que não posso fazer nada para consolar-vos?”.
A passagem explica um ponto muito importante na relação entre Deus e o mundo: a constatação da
existência do mal no mundo não anula a força de Deus, tampouco a abala, pois os atos dos seres
criados por Deus não interferem em Sua grandeza, já que Ele é Deus por Si, e não porque fazem
d’Ele Deus.
Mudança da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular, na fala do eremita.
33
car no lleva ni baixa a ell quant és creat,
con sia en si complit, no havent
necessitat
de nullla creatura. D’on deus ésser pagat
del compliment que Déus ha en si per sa
bontat,
e tu, foll, estàs trist, quaix si Déus fos
mirvat
per lo mal estament en què el mon és
trobat.
Foll! Com no t’alegres en plena deïtat?
E git a no cura tot ço qui és creat,
per ço que a ton cor bast Déus complit,
no mermat?
XXXIX
– N’ermità, mal me fa lo vostre consolar.
Que fo fort aquell punt on vos poguí
trobar!
E si no fos que tem vergonya e mal estar,
de hui mais en avant no volgra ab vós
parlar.
E, doncs, com podets dir que em pusca
consolar
en veer Déus aunir, no servir ni
membrar,
ni conèixer ne amar? E, si bé pot bastar
tot Déus per si mateix, a mon cor per
amar
no em basta, car no el vei molt fortment
32
Pois nada do que foi criado O eleva ou
O rebaixa,
já que Ele é em Si completo, e não tem
necessidade
de nenhuma criatura. Logo, deveis ser
grato
do cumprimento que Deus tem em Si
por Sua bondade;
e tu31, louco, estás triste, quase como se
Deus fosse diminuído
pelo mal estado em que o mundo se
encontra.32
Louco! Como não te alegras com a
plenitude da deidade?
Despreocupa-te com tudo que foi criado,
para que a teu coração baste Deus
completo, não minguado.
XXXIX
– Dom eremita, mal me faz o vosso
consolo.
Quão forte foi o momento em que vos
encontrei!
E se não temesse a vergonha e o mal
estar,
de hoje em diante não desejaria mais
convosco falar.
Então, como podeis dizer que possa me
consolar
ao ver Deus ultrajado, não servido, nem
lembrado,
nem conhecido, nem amado? E se bem
pode bastar
Deus por Si mesmo, ao meu coração,
por amar,
não basta, pois não O vejo muito
450
455
460
465
Ramon exprime nessa passagem a visão agostiniana do mal, que não existe como substância objetiva, e
sim como mal moral existente em decorrência da livre escolha da criatura humana, que opta
livremente pelo pecado e nega a Deus (ou, na terminologia agostiniana, “tem aversão a Deus e amor
ao pecado”). Agradecemos a explicação dada pelo Prof. Dr. Jorge Augusto da Silva Santos (Ufes).
34
bé honrar;
e car per tan vils causes lo veig tant
menysprear,
estaig en desconhort, e no em pusc
alegrar;
mas en ço que Déus és estaig en
confortar.
fortemente honrado;
e como por tão vis coisas O vejo tão
menosprezado,
estou em desconsolo, e não posso me
alegrar,
mas, no que Deus é, estou confortado.
XL
– Ramon, tot quant Déus fa, tot ho fa
justament,
e, si met en infern li malvat descreent,
XL
– Ramon, tudo o que Deus faz, fá-lo
justamente,
e se coloca no Inferno o malvado
descrente,
não deveis33 por isso ter desolamento;
mas como estais irado com o que Deus
faz justamente,
vossa ira é pecado, e falhais mortalmente
contra Deus, e amais aqueles que
falsamente
crêem contra o verdadeiro Deus, e são
desobedientes.
E se vós fôsseis bom e leal amante,
seríeis grato, pois Deus dá tormento
àqueles que todos os dias fazem faltas;
pois o homem que bem ama não cria
rancor
do que faz o Amado, porque Ele o faz
retamente.
no devets per tot ço haver desolament;
e, car vos sóts irat car Déus fa jutjament,
vostra ira és pecat, e fallits malament
contra Déu, e amats aquells qui
falsament
créon contra ver Déu e estan desobeent.
E, si en vós fos bo e lleial amament,
vos seíets pagat; car Déus dóna turment
a cells qui tot dia fan ves el falliment;
car home qui bé am no fa rancurament
de ço que fa l’amat, pus que ho fa
dretamet.
XLI
– N’ermità, eu no em dull per ço que fa
el Senyor,
ans en tot ço que fa lo llou e lo aor;
mas, per ço cal volria que hom li faés
honor,
e que sobre quant és hom li hagués
amor,
me dull e mi complanc, e n’estic en
33
470
475
480
XLI
– Dom eremita, não me queixo do que
faz o Senhor,
mas em tudo o que Ele faz, O louvo e O
adoro;
e por isso, desejaria que o homem Lhe
honrasse,
e acima de tudo, que Lhe amasse.
Assim, dói-me muito, me lamento e
485
Mudança de tratamento: da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural, na fala do eremita.
35
tristor;
e car vós no sabets d’on ve ma greu
dolor,
no em sabets conhortar ni donar negun
secor.
Per què és bo que em llexets estar en ira
e plor,
e aprenets com siats millor consolador,
car fort pauc ne sabets; e ja li pecador
per vós mais no valran, car no havets ves
llor
caritat, con Déus sia d’ells gran
perdonador.
estou em tristeza;
e como vós não sabeis de onde vem
minha grave dor,
não sabeis me consolar nem me dar
qualquer socorro.
Por isso, é bom que me deixeis estar em
ira e choro,
e aprendais a ser melhor consolador,
pois muito pouco sabeis, e os pecadores
por vós não valerão, já que não terão
vossa
caridade, pois Deus é deles grande
redentor.
XLII
– Ramon, per ço car am que en gauig
estiats,
e que ira e dolor en nulla res hajats,
vos vull bé consolar e prec-vos que
aujats:
Déus sofer que lo món sia així malvats,
XLII
– Ramon, como amo que estejais em
gozo,
e que ira e dor nunca tenhais,
desejo vos consolar bem e vos peço que
escuteis:
Deus suporta que o mundo esteja assim
malvado
para que Ele melhor possa perdoar por
todos os lados,
pois quanto mais Ele perdoa, mais existe
piedade,
e mais Lhe convém gratidão. Por isso,
estejais seguro
que Deus tem tão alta caridade por Seu
povo,
que quase todos os homens do mundo
serão salvos;
pois, se não fossem mais os salvos que
os danados,
existiria Sua mercê sem grande caridade:
por isso consolai-vos na grande mercê de
Deus.
per ço que ell mills pusca perdonar a tots
llats;
car, on mais ell perdona, mais ha de
pietats,
e mais li’n cové grat. Per què segur siats
que Déus ha a son poble tan alta caritats,
que quaix tots los hòmens del món seran
salvats;
car, si mais non eren li salvats que els
damnats,
seria sa mercè senes gran caritats:
per què en la gran mercè de Déu vos
consolats.
36
490
495
500
XLIII
– N’ermità, tot dia em tenits en
parlament,
e no em lleixats membrar mon angoixós
turment,
e faits-ho per ço que git a oblidament
l’ira e el desconhort d’on me ve
llanguiment;
mas res no acabats, e faits advocament
mais de gran pietat que de gran
jutjament.
Per què en açò errats, car en Déu
egalment
són jutjar e perdonar, segons
ordenament
de les sues vertuts; car nulla no consent
que en sa justícia sia null minvament;
per què deu pecador haver gran
espavent;
e és ço per què eu plor, car no ha
honrament.
XLIV
– Ramon, aquells hòmens qui son
predestinat
cové per gran força que els sion salvat,
car, si no ho eron, poria ésser mudat
lo saber que Déus ha en contrarietat
en lo qual mundament no està
34
35
36
XLIII
– Dom eremita, conversastes comigo
todo o dia
e não me deixastes lembrar meu
angustioso tormento,
e o fizestes para que lançasse ao
esquecimento
a ira e o desconsolo de onde me vem o
abatimento;
mas não acabastes nada, e fizestes defesa
mais da grande piedade que do grande
julgamento.
Por isso, errastes, pois em Deus
igualmente
estão o julgar e o perdoar, segundo o
ordenamento
de Suas virtudes, pois Ele nunca
consente
que em Sua justiça haja alguma
diminuição.
Assim, o pecador deve ter grande horror,
505
510
515
e é por isso que eu choro, pois não há
em Deus honramento.34
XLIV
– Ramon, àqueles homens que são
predestinados
convém, por grande força35, que sejam
salvos,
pois, se não o fossem, poderia ser
alterado
contrariamente o saber que Deus tem,
e tal mudança não é possível,
520
Nessa última frase optamos em seguir o texto de OE, pois na edição de Batalla a frase não tem Deus
como complemento nominal “...pois não há honramento”, o que dificulta o entendimento da idéia.
Em OE, “...convém, por fina força”.
O sentido da frase é particularmente teológico: a verdade humana se equivoca, a divina, nunca. E
mais: esta pode conferir veracidade àquela. Por exemplo, veja o Livro das Maravilhas (OE I, p. 439441).
37
possibilitat,
car, si estar hi podia, no seria acabat
lo saber que Déus ha, ans seria mermat;
e, car està complit, siats, doncs, consolat
en lo seu compliment contra el qual faits
pecat,
en quant no us conhortats en ço qui és ja
jutjat
e, per la voler de Déu, enaixí autrejat,
com ho sab son saber e ho fa ver veritat.
XLV
– N’ermità, si fóssets home prou bem
lletrat
mills sabrerets parlar d’home predestinat,
ne hàgrets en oblit de Déu sa llibertat
la qual ha en si lex e en quant ha creat,
per la qual ha a home donada llibertat
co’l vulla molt servir, no que sia forçat,
con Déus sia tan bo que es deu servir de
grat;
lo qual servir no pot si, de necessitat,
per hom predestinat fos servit e amat,
e fóra hom salvat e no fóra jutjat;
car judici no pot ésser sens llibertat,
ni llibertat costreny prescits
predestinat.
37
38
ni
pois, se assim fosse, não seria perfeito
o saber que Deus tem, mas diminuído.
Mas como ele é perfeito, estejais, então,
consolado
em Sua completude, contra a qual
cometeis pecado
quando não vos confortais no que já foi
julgado,
e, pela vontade de Deus, assim
outorgado,
como o sabe Seu saber, e o faz a
verdadeira verdade.36
XLV
– Dom eremita, se fôsseis um homem
muito bem letrado,
saberíeis falar melhor sobre o homem
predestinado,
nem esqueceríeis a liberdade de Deus,
a qual tem em Si mesmo e no que criou.
Essa liberdade Ele deu ao homem
para que desejasse servi-Lo sem que
fosse forçado,
pois Deus é tão bom que deve ser
servido de bom grado,
o qual servir não pode existir por
necessidade,
nem Deus ser servido e amado pelo
homem predestinado,
pois o homem seria salvo sem ser
julgado,
e não pode existir juízo sem liberdade,
nem a liberdade constranger precitos37
ou predestinados.38
525
530
535
540
Precito (do latim praescito) – sabido de antemão, isto é, os réprobos (que se acham de antemão
condenados).
Ou seja, os precitos sabem que serão condenados, enquanto os predestinados podem exercer o livrearbítrio – se optam pela salvação ou pela danação.
38
XLVI
– Ramon, si en vós fos molt gran
esperança,
si tot lo món està en molt greu balança,
del seu mal estament no hàgrets
malanança;
car Déus, qui es tot ple de gran pietança,
aportarà lo món en breu en bonança
tant que cascun home n’haurà alegrança.
E que açò sia ver hajats-hi fiança
per ço car Déus donà a hom
començança,
ab mercè e bontat qui há en sa
semblança;
e si vós per açò no lleixats tristança,
no haurets ab bontat ni mercè ni fiança,
e serets contra Déu e la sua amistança.
XLVII
– N’ermità, ans que el món sia en bon
estament,
serà fait a Déu molt gran avilament;
encara que no veig far null ordenament
con lo temps sia prop, car ço que en cort
present
lo Papa e els cardenals no ho prénon
mantinent,
39
XLVI
– Ramon, se em vós a esperança fosse
muito grande,
e se todo o mundo está num grave
desequilíbrio,
do seu mal estado, não teríeis desventura;
pois Deus, que é pleno de grande
piedade,
em breve trará ao mundo uma bonança
tão grande, que cada homem terá alegria.
E para que isso seja verdade, tenhais
confiança,
porque Deus deu ao homem princípio
com mercê e bondade que tem em Sua
semelhança.39
E se vós, por isso, não deixardes a
tristeza,
não tereis bondade, mercê nem
confiança,
e sereis contra Deus e a Sua amizade.
XLVII
– Dom eremita, antes que o mundo
esteja em bom estado
será feito grande vitupério ao verdadeiro
Deus.
E mais: não vejo fazerem nenhum
ordenamento
para que os tempos sejam próprios, pois
o que apresento na Corte,
ao Papa e os cardeais, eles não o fazem
rapidamente,
545
550
555
No princípio, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27). Assim, a passagem
tem o seguinte significado metafísico-transcendental: a bondade e misericórdia presentes em Deus no
instante da criação são os fundamentos da fé que o homem deve ter n’Ele para que o mundo seja
salvo ou, nas próprias palavras de Ramon, “...para que o mundo esteja em paz”, isto é, para que a paz
chegue ao mundo – e isso deve principiar nos corações dos homens bondosos que estão
atormentados pela miséria do mundo.
39
ans ho van allongant; d’on hai marriment
tant, que no en pusc haver negun
consolament;
car ço que eu los present mostra tot
clarament
l’ordenament del món, qui es pot far
molt breument,
e no ho tenen a re, ans se’n fan gabament
com si eu fos home fat qui parlàs
follament;
per
què
d’aitals
hòmens
hai
desesperament.
XLVIII
Consirà l’ermità si per res poria
aconhortar Ramon, qui tan fort planyia;
per ço dix a Ramon:– Que sancta Maria,
e ab ella ensems cascuna jerarquia
dels àngels e los sants, prégon nit e dia
a Jesurist, son fill, que per mercè sia
que en breu do al món ordenament e via,
en ell onrar, servir. Per què açò us deuria
consolar, Ramon, car Crist toda via
fa ço d’on és pregat per sa maire pia,
per los àngels e els sants; per què us prec
ço sia
conhort vostre, e gauig ab vós d’hui mai
estia.
40
pelo contrário, o vão protelando. Por
isso, tenho grande langor,
tanto que não posso ter nenhum
consolo,
pois o que os apresento mostra tão
claramente
o ordenamento do mundo, que se
poderia fazer brevemente,
e não o consideram, e fazem escárnio
como se eu fosse um homem louco que
falasse loucamente,
por isso, de tais homens tenho
desespero.
XLVIII
O eremita considerou se de algum modo
poderia
consolar Ramon, que tão forte
lamentava;
e disse a Ramon: – Que Santa Maria,
e juntamente com ela cada hierarquia
dos anjos e dos santos40, pedia noite e
dia
a Jesus Cristo, Seu filho, que por Sua
mercê
desse ao mundo, em breve, ordenamento
e caminho
para honrá-Lo e servi-Lo. Por isso, vós
deveríeis
vos consolar, Ramon, pois Cristo sempre
faz o que é pedido por Sua piedosa mãe,
pelos anjos e santos; pelo que vos peço
que tenhais
vosso consolo, e que o gozo esteja
convosco.
560
565
570
575
O tema da hierarquia dos anjos (angelologia) foi tratado pelo Pseudo-Dionísio, o Areopagita, em sua
obra Da Hierarquia Celeste (séc. V), e amplamente adotado na Idade Média. Portanto, ele é recorrente
em Ramon Llull, que inclusive escreveu uma obra dedicada aos anjos (Livro dos Anjos, c. 1274). Ver
também LLINÀS, Carles. Ars angelica. La gnoseologia de Ramon Llull. Barcelona: Institut d’Estudis
Catalans, 2000.
40
XLIX
– N’ermità, can consir que la Dona
d’amor,
e Dona de valor, de just, de pecador,
e cascú dels sants préguen nostre Senyor
con tot lo món faça a Jesucrist honor,
e veig , que lo món li fa tanta de
deshonor,
adoncs en cuit morir d’ira e dolor,
e car són tan indigne li malvat peccador,
que Déus quaix no sosté que hom prec
per llor;
e enaixí lo món roman en sa error,
e quaix no és qui de Déu vulla donar
llausor,
ans llausa si mateix, son fill e son austor;
doncs, qui deuria haver null gauig sinó
tristor.
L
– Ramon, a mi no par siats hom pacient,
per ço car per re volets consolament.
E com no membrats Job, qui tant fo
perdent
e qui en sa persona sostenc tant de
turment,
e esdevenc tan paubre que en si no hac
nient?
41
42
XLIX
– Dom eremita, quando considero que a
Senhora do amor
e Senhora do valor, do justo e do
pecador,
e cada um dos santos pedem a Nosso
Senhor
para que todo o mundo faça a Jesus
Cristo honor,
e vejo que o mundo Lhe faz tanta
desonra,
então penso em morrer de ira e dor,
pois são tão indignos os malvados
pecadores,
que Deus quase não suporta que o
homem peça por ele,
e assim o mundo permanece em seu
erro,
e quase não existe quem a Deus queira
dar louvor,
e sim, louvam a si mesmos, seus filhos e
seu açor.41
Portanto, quem deveria ter gozo e não
tristeza?
L
– Ramon, não me parece que sejais um
homem paciente,
e por isso não tereis consolo por nada.
E por que não lembrais de Jó, que
perdeu tanto,
suportou tantos tormentos
580
585
590
e se tornou tão pobre que não tinha nada
para si?42
Açor (do latim accetore). Designação às aves de rapina do gênero accipter, acciptrídeas, que têm hábitos
diurnos, se assemelham ao falcão. Interessante passagem em que Ramon assinala a ordem social
receptora do seu poema: a nobreza (a que poderia, de fato, iniciar a mudança do estado de coisas do
mundo).
Jo 1, 13.
41
Emperò consolà’s, e vos per res vivent
no us volets consolar, e estats sanament,
e havets heretat, diners e vestiment,
infants e d’altres causes d’on hom ha
pagament;
e car a Déu no plau home impacient,
no sosté que per vos vengua a
compliment
lo seu fait que menats que haja
honrament.
LI
– N’ermità, no és molt si hom és
consolat
en perdre sos infants, diners ou heretat,
e en estar malalt, pus que a Déus ve de
grat.
Mas, qui es consolarà que Déus sia
oblidat,
menyspreat, blastomat, e tan fort ignorat,
com de tot ço sia Déus fortment
despagat?
Encar que no sabets con eu sui
menyspreat
per Déu, ferit, maldit e greument
blastomat,
e en perill de mort, e per barba tirat,
e per vertut de Déu pacient sui estat;
mas que Déus sia al món tan pauc graït,
honrat,
no és hom en lo món qui me’n fes
conhortat.
Contudo, consolou-se, e vós, por nada
vivo
desejais vos consolar, e estais são,
e tendes herdade, dinheiro e vestimentas,
filhos e outras coisas nas quais o homem
tem satisfação.
E como a Deus não apraz um homem
impaciente,
não suporta que por vós tenha
cumprimento
o feito que conduzes, nem que tenhais
honramento.
LI
– Dom eremita, não é muito se o
homem está consolado
em perder seus filhos, dinheiro ou
herdades,
e em estar doente, pois isso agrada a
Deus.
Mas, quem pode se consolar por Deus
ser esquecido,
menosprezado, blasfemado e tão
fortemente ignorado,
e que Deus com tudo isso esteja
fortemente descontente?
E mais, não sabeis como eu fui
menosprezado
por Deus, ferido, amaldiçoado, e
gravemente blasfemado,
em perigo de morte e a barba cortada,
e por virtude de Deus fui paciente;
mas por Deus ser tão pouco agradecido
e honrado pelo mundo,
não existe homem no mundo que me
deixe consolado.
42
595
600
605
610
LII
– Ramon, segons que em par, tu fas tot
ton poder
con Déus per tot lo món honor poguès
haver;
per què Déus just te’n deu aitant de grat
haver,
con si el fait se complia. Per què et deurà
valer
aiçò a consolar e ton dol remaner;
car mèrit n’haràs gran, e pots n’haver
esper
de molt gran guasardó; e gita a noncaler
lo falliment dels folls que a Déu fan
desplaer,
e alegra’t en tu e en ton captener,
e no sies trop forts en ço que vols haver,
ni en ço car fos altres no fan a ton voler;
e a tu abast Déus per amar e témer.
LIII
– N’ermità, no és hom creat
principalment
per ço que haja gran gloriejament:
ans és per ço que Déus haja gran
honrament
en el món per son poble. Per què eu no
sui jausent
si hai gran guasardó, ni no estaig dolent
si n’hai pauc, car no és ço món
començament;
ans és tota ma ira, mon dol, e marriment,
43
44
45
LII
– Ramon, segundo me parece, tu fazes43
tudo o que podes
para que Deus possa ser honrado por
todo o mundo.
Por isso, Deus deve ter por ti grande
gratidão
como se tivesses cumprido o feito. Isso
deverá valer
para te consolar, embora tua dor deva
permanecer,
pois terás grande mérito, e poderás ter
esperança
de uma grande recompensa. Assim,
expulsa com indiferença
as faltas dos loucos44 que a Deus causam
desprazer,
alegra-te em ti e em teu comportamento,
e não fiques muito inquieto com o que
desejas ter,
nem porque os outros não fazem tua
vontade.
Para ti, que baste amar e temer a Deus.
LIII
– Dom eremita, não existe homem
criado principalmente
para ter mérito e glória,45
mas sim para que Deus tenha grande
honramento
no mundo por Seu povo. Por isso, não
estou contente
se tenho grande recompensa, nem estou
doente
se tenho pouco, pois não é meu
princípio.
Mas toda a minha ira, minha dor e
Mudança de tratamento na fala do eremita, da 2ª pessoa do plural para a 2ª pessoa do singular.
Em OE, “...as faltas dos outros” (“lo falliment dels altres”).
Em OE, “...para ter grande glória” (“per ço que haja gran gloriejament”).
43
615
620
625
630
car no és en lo món fait tal ordenament
con Déus fos mais amat e honrat per
tota gent,
e que tot home fos en fe de salvament.
E, car vós me volets dar consolament
d’açò d’on no es pot dar, parlats-me per
nient.
LIV
– Ramon, qual és lo fait que vós tant
desirats,
per lo qual en lo món fos Déus tant fort
honrats?
car poria ésser que en lo fait no siats,
e que altre sia al fait que procurats,
per lo qual lo món sia a bona fi menats.
Car, si altre es lo fait, per nient treballats,
e podets treballar, si mil anys viviats,
e no vendrets a fi dáçò on treballats;
car hom no pot complir fait on és
desviats.
Per què us prec que lo fait clarament me
digats,
e que ambdòs vejam si el fait on vós
estats
és aquell per què Déus pot ésser mais
amats.
46
47
melancolia existem
porque não foi feito no mundo tal
ordenamento
para que Deus fosse mais amado e
honrado por toda a gente,
e que todos os homens tivessem fé na
salvação.
E, como vós desejais me dar consolação
do que não se pode dar, falai-me em vão.
LIV
– Ramon, qual é o feito que vós46 tanto
desejais,
e pelo qual Deus será no mundo tão
fortemente honrado?
Pois poderia ser que ao feito vós não
fôsseis adequado,
e que outro ao feito fosse melhor
indicado,
através do qual o mundo seria a um bom
fim levado.
Pois, se de outro é o feito, por nada
tendes trabalhado,
e poderíeis trabalhar, se mil anos
vivêsseis,
mas não veríeis o fim desejado,47
pois o homem não pode cumprir um
feito do qual está desviado.
Por isso, vos peço que me digais
claramente o feito,
e que ambos vejamos se o feito onde vós
estais
é aquele pelo qual Deus pode ser mais
amado.
Mudança de tratamento na fala do eremita, da 2ª pessoa do singular para a 2ª pessoa do plural.
Em Batalla, “...não veríeis o fim daquilo que trabalhais”. Optamos por OE.
44
635
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645
LV
– N’ermità, la manera con Déus fos mais
amat,
ja la vos hai contada, si bé ho havets
membrat:
ço és, que el Papa hagués mant valent
hom lletrat,
qui volguésson per Déu ésser marturiat,
per ço que en tot lo món fos entès e
honrat;
e a cascú d’aquells llenguatge fos
mostrat,
segons que a Miramar ha estat ordenat,
- e conciència n’haja qui ho ha afollat! e que al passatge fos lo deè donat
de tot quant posseeixen li clergue e el
prelat;
e que açò tant duràs tro que fos
conquistat
lo Sepulcre. E d’açò llibre n’hai ordenat.
LVI
N’ermità, és encara altre ordenament
lo qual serà al passatge gran enantament,
e a destruir l’error de la gent:
que lo Papa feés que a son uniment
venguésson
cismàtics
per
gran
disputament,
del qual bon disputar havem fait
48
49
50
51
LV
– Dom eremita, a maneira como Deus
pode ser mais amado
já vos contei, se bem o lembrais,
isto é, que o Papa tivesse muitos homens
letrados48
que, por Deus49, desejassem ser
martirizados,
para que, em todo o mundo, Ele fosse
entendido e honrado.
E que a todos eles a linguagem fosse
mostrada50,
conforme o que em Miramar tem sido
ordenado,
– e que tenha consciência quem o
malogrou!
E mais: que à Passagem fosse dado o
dízimo
de tudo o que possuíssem o clérigo e o
prelado,
e que isso durasse até que fosse
conquistado
o Sepulcro. Sobre isso, um livro foi
ordenado.
LVI
– Dom eremita, ainda existe outro
ordenamento,
que daria à Passagem um grande avanço
para destruir o erro de tanta gente:
que o Papa fizesse que a ele
viessem os cismáticos para uma disputa,
650
655
660
665
sobre isso fiz um tratado.
Em Batalla, “...que o Papa tivesse muitos valentes homens letrados”. Optamos por OE e suprimimos
a palavra “valente”.
Em OE, “...por Jesus”, significativa diferença entre os manuscritos!
“...a linguagem fosse mostrada”, isto é, a língua árabe.
Isto é, o Santo Sepulcro.
45
tractament;
e els cismàtics cobrats, qui són mant
hom vivent,
no és hom qui pogués contrastar
malament
a l’Esgleia, per ferre ni per null argument;
e del Temple e Espital fos fait un
uniment,
e que llur major fos rei del Sant
Muniment;
per què a honrar Déus no sai tal
tractament.
LVII
Consirà l’ermità si Ramon deia veritat,
e enfre si mateix estec molt apensat,
e no poc atrobar pus profitós tractat
que cell que diu Ramon; d’on li pres
pietat,
e penedí’s molt fort con tant l’hac
treballat;
ab Ramon volc ésser trist e desconsolat,
e pregá’l carament que li fos perdonat,
en plorant, sospirant, e dix:– Ah, veritat,
devoció, caritat! E ves on és anat
lo bom grat que a Déu deuria ésser
donat?
Quan Ramon l’ermità viu ab el acordat,
adoncs lo va baisar: Ensems han molt
plorat.
52
E com os cismáticos, que são muitos,
recuperados,
não haveria quem pudesse contrastar
maldosamente
a Igreja, nem por ferro, nem por nenhum
argumento.
E que do Templo e do Hospital fosse
feita uma união,
e que seu maior fosse rei do Santo
Monumento51;
pois, para honrar a Deus, não existe mais
elevado tratamento.
LVII
O eremita considerou se dizia a verdade;
e esteve muito pensativo,
sem poder encontrar mais proveitosa
solução
que aquela que disse Ramon. Por isso,
apiedou-se52,
e arrependeu-se muito fortemente pelo
tanto que o fatigou,
e com Ramon desejou estar triste e
desconsolado.
Pediu-lhe ternamente que o perdoasse
chorando e suspirando, e disse: – “Ah,
verdade,
devoção e caridade! Onde está
a gratidão que a Deus deveria ser dada?”
Quando Ramon viu que com ele o
eremita concordava,
beijou-o. E juntos choraram muito.
Nesse momento, por piedade, o eremita muda sua posição em relação às propostas lulianas.
46
670
675
680
LVIII
– Ramon, dix l’ermità, con poríem
mover
lo Papa e els cardenals, e lo fait obtener?
car en tan noble fait vull tots temps
romaner,
e a ell a tractar vull far tot mon poder
car fait és per què l’hom porà molt mais
valer;
e car abans no el ví, hai-ne molt gran
despler,
car si ans l’hagués vist res no em pogra
tener
que eu prengués aràbic e lo vostre saber,
per anar als sarraïns per la fe mantener
senes paor de mort, e gran plaer haver
en morir, per Jesús honrar e cartener,
mais val per ell morir que per si vida
haver.
LIX
– N’ermità, eu són las d’aquest fait
amenar
en la cort, pus no hi puis nulla re acabar;
e si vos volíets en la cort procurar
est fait de Jesucrist e vostre poder far
en la cort llongament, bé poria estar
que el fait vengués a fi si us volon
escoltar
lo Papa e els cardenals; si no que quaix
joglar
vos féssets en la cort e los Cent noms
cantar,
53
54
LVIII
– Ramon, disse o eremita, como
poderíamos mover
o Papa e os cardeais, e o feito obter?
Pois em tão nobre feito desejo sempre
permanecer,
e para tratá-lo, quero fazê-lo com todo o
meu poder
pois se o feito estiver no mundo, mais
ele poderá valer.53
E por não tê-lo visto antes, tive muito
desprazer,54
pois se o tivesse visto antes, nada poderia
deter
que eu aprendesse árabe e o vosso saber,
para ir aos sarracenos para a fé manter
sem pavor da morte, e ter grande prazer
em morrer para a Jesus honrar e querer,
pois mais vale por Ele morrer que para si
mesmo viver.
LIX
– Dom eremita, eu estou cansado desse
feito explicar
na corte, pois não há mais nada a acabar.
E se vós desejais na corte procurar
este feito de Jesus Cristo e vosso poder
realizar
longamente na corte, bem poderíeis
tentar
o feito terminar, se vos desejassem
escutar
o Papa e os cardeais, ainda que jogral
685
690
695
700
precisasse fazer na corte, e os Cem Nomes
cantar,55
Em Batalla, “pois com o feito o homem poderá mais valer”. Optamos por OE, já que o objetivo da
Arte de Llull é converter muçulmanos e judeus ao cristianismo e, assim, unificar o mundo.
O eremita se refere à missão maior de Llull, que é, além do estudo de sua Arte, a propagação de
escolas para missionários aprenderem o árabe e saírem pelo mundo difundindo o cristianismo.
47
los quals hai faits de Déu e posats en
rimar
per ço que els hi cantàs e parlàs sens
duptar;
mas no ho hai de consell, per ço que
menysprear
no faça los meus libres que Déus m’ha
faits trobar.
o qual fiz sobre Deus, de forma a rimar
LX
– Ramon, s’eu en la cort estaig, vós on
irets?
Ne per què llai ab mi vós no procurarets
lo fait de Jesucrist, pus que mogut
l’havets?
Ne, si hom vos escarneix, e vós en què
en serets?
Vós manats a mi far ço que far no volets!
LX
– Ramon, se eu estiver na corte, onde
vós estareis?
Por que não procurais comigo
o feito de Jesus Cristo, já que o
começastes?
E se de vós escarnecerem, onde estareis?
Per què em par que en est fait ni en altre
no valets.
Mas anem a la cort, e en res no dubtets,
e no siats d’aquells qui díon: «Senyors,
fèts!»
ço que ells no farion. Per què d’açò
devets
ésser envergonyit, e escusa no havets,
ans faits hipocrisia, de què pecat havets,
e lo bé que havets fait per vergonya
perdets.
LXI
– N’ermità, eu prepòs als sarraïns tornar
per ço que a la fe los pusca aportar;
55
705
para que eles o cantassem e falassem sem
duvidar,
mas isso não é aconselhável, para
ninguém menosprezar
os meus livros que Deus me fez criar.
Vós me mandais fazer o que não
desejais!
Porque me parece que nem neste feito
nem em outro valeis.
Mas vamos à corte e de nada duvideis,
e não sejais daqueles que dizem: «Senhor,
fazei! »
o que eles não fariam. Porque disso
deveis
envergonhar-vos, e desculpa não tereis,
e sim fazeis hipocrisia, e por isso pecais,
e, por vergonha, perdeis o bem que
tendes feito.
710
715
720
LXI
– Dom eremita, eu proponho aos
sarracenos voltar
para que a fé possa lhes mostrar.
Trata-se da obra Os Cem Nomes de Deus (Cent noms de Déu, Liber de centum nominibus Dei), escrita em
Roma em 1288. O livro aspirava ser uma refutação da tese islâmica da inimitabilidade do Corão. No
prólogo, Ramon propôs que seus versos fossem recitados nas igrejas da mesma forma que as suras do
Corão são recitadas nas mequitas. HAMAMOUCHE, Fatma Ben. “Ramon Llull y el mundo islamico:
una relacion apasionada”. In: Revue d’Histoire Maghrebine, 77-78, 1985.
48
e vaig sens por de mort, que fa pus lleu
portar,
que vergonya sofrir, per Jesucrist honrar,
la qual en res no tem, ans la deu hom
amar.
Mas per ço que ma art no fassa
menysprear
en tenir la manera que ténon li joglar,
encar que en altre lloc crei mais de bé a
far,
per què adés no prepós a la cort retornar.
E car vos tan forment me volets
encolpar,
pot ésser que ho façats per vós a escusar
a anar a la cort; per què ho lleixem estar.
LXII
Penedí’s l’ermita con hac Ramon reprès,
e dix-li que per ço que ab ell en cort
estés,
l’havia tan fortment enaixí escomès.
– Ramon, dix l’ermità, dos anys prepòs o
tres
a estar en la cort, sotsposat que no res
hi faça; mas aprés prepòs que eu tengués
per lo món ça e lla, a prelats e marquès,
religioses e reis, e fer ço que pogués
en menar aquest fait d’on me havets
escomès.
Mas volgra que en mon lloc altre en cort
estegués,
e que tot enaixí un tal clergue se’n fes,
tro que aquest fait en la cort se presés.
56
E vou sem medo da morte, que é mais
leve suportar
que sofrer vergonha por Jesus Cristo
honrar,
e não temo nada, e sim devo amar.
Mas para que minha Arte não possam
menosprezar
por ter a forma que usam os jograis,
ainda que creia fazer melhor em outro
lugar,
agora não desejo à corte retornar.
E como vós tão fortemente desejais me
culpar
talvez o façais para vos desculpar
por irdes à corte. Por isso, é melhor nos
separarmos.
LXII
O eremita se arrependeu por ter
repreendido Ramon,
e lhe disse que, para que fosse com ele à
corte,
havia tão fortemente assim lhe atacado.
– Ramon, disse o eremita, proponho dois
anos ou três
estardes na corte, supondo que nada
ali façais, mas proponho que eu vá
pelo mundo, a prelados e marqueses,
religiosos e reis, e fazer o que posso
para acabar esse feito que me haveis
encomendado.
Mas desejaria que em meu lugar outro na
corte estivesse
e que um clérigo se encarregasse56
até que esse feito na corte fosse
realizado.
725
730
735
740
Em OE, “E que assim um tal círculo fosse feito”, isto é, um círculo de instigadores dedicados à
empresa luliana.
49
LXIII
– N’ermità, dix Ramon, bé havets
consirat,
car per aital clergue pot ésser acabat
lo fait qui és bo e gran a la crestianitat.
E digats ça e lla, a reis e a prelat,
que si el fait tost no es pren, que ja és
ordenat
per sarraïns que els tartres a ells síon
girat,
e ja n’han convertits una gran quantitat;
e els tartres, convertits en sarraïnitat
lleu poran destruir quaix tota crestiantat,
en tant que no serà cristià ab regnat,
ne null prelat haurà cavall gras, sejornat.
Vejats, doncs, n’ermità, lo món a què és
tornat.
LXIV
– Ramon, dix l’ermità, fort volria saber
per qual raó se vol Déus així captener
del món, qui és seu, e gita al noncaler
de la sua bontat; com ho pot sostener
que tants pecadors vagen en infern mal
haver.
Per què us prec, Ramon, que me’n digats
lo ver,
car on mais me direts, mais sabrai
retener,
e lo fait que em lliurats mills porai
mantener.
Car, pus que elmón fo fait tro ara, a mon
57
LXIII
– Dom eremita, disse Ramon, bem
haveis considerado
pois por tal clérigo pode ser terminado
o feito que é bom e grande para a
Cristandade.
E digais aqui e ali, a reis e a prelados,
que se o feito não começa rapidamente,
que já está ordenado
pelos sarracenos que os tártaros a eles
sejam convertidos,
e que já converteram uma grande
quantidade,
e os tártaros convertidos em sarracenos
logo poderão destruir quase toda a
Cristandade,
a tal ponto que não existirá cristão com
reinado,
e nenhum prelado terá cavalo
descansado.
Vejais, pois, eremita, no que se tornou o
mundo.
LXIV
– Ramon, disse o eremita, muito
desejaria saber
por qual razão Deus deseja assim se
comportar
com o mundo, que é Seu, e é indiferente
à Sua bondade. E como pode suportar
que tantos pecadores vão ter o mal no
Inferno.
Por isso, vos peço, Ramon, que me
digais a verdade57,
pois quanto mais me disserdes, mais
saberei reter,
e o feito que me entregais, melhor
poderei manter.
Pois desde que o mundo foi feito até
Em OE, “Que me digais vosso saber”.
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760
765
parer,
si és un home salvat, mil ne són en doler
en infern per totstemps. E açó, co es pot
fer
que l’Esgleia ne hom no en fa son poder?
agora, a meu parecer,
se um homem é salvo, mil estão em dor
no Inferno por todos os tempos. E
como isso pode ocorrer
sem que a Igreja nem os homens façam
todo o seu poder?
LXV
– N’ermità, ja us hai dit, si bé vos pot
membrar,
que Déus mais creà hom per si servir,
honrar
que per ço que en hom hagués gloriejar.
E car hom no està en la fi de crear,
LXV
– Dom eremita, já vos disse, se bem
podeis lembrar,
que Deus criou o homem mais para
servi-Lo e honrá-Lo
que para que ele pudesse ser vangloriado.
E como o homem não está no fim para o
qual foi criado,
e mais deseja para si procurar
a salvação, que a Deus honrar e o Seu
bem-estar,
ele não pode em graça estar,
e sim está em pecado, e sentado à beira
do abismo.
Por isso o mundo se perde e não deseja
despertar,
e não me maravilho se Deus não o deseja
amar
ou se deixa o demônio fazer tanto mal
no mundo
para que dos erros que recebe possa
fortemente se vingar.
en quant mais desira per si procurar
salvació que a Déu honrar e benestar,
per açò aital hom no pot en grat estar,
ans està en pecat, assís en l’abissar.
Per què lo món se perd e no es vol
despertar,
e gens no em meravell si Déus no el vol
amar
ni si lleixa el demoni en lo món tant mal
far,
per què del tort que pren se pusca fort
venjar.
LXVI
L’ermità e Ramon presseren comiat
e són-se, en plorant, baisat e abraçat,
e cascú dix a l’altre que a Déu fos
comanat
e en oració l’u per l’autre membrat.
Al partir s’eguarderon ab molt gran
caritat,
pietat e dolor e, ab lo genoll ficat,
e cascú senyà l’altre e pus, agraciat,
LXVI
O eremita e Ramon se despediram,
e, chorando, beijaram-se e abraçaram-se,
e um disse ao outro que a Deus fosse
confiado
e em oração um pelo outro fosse
lembrado.
Ao partirem, olharam-se com grande
caridade,
piedade e dor, e ajoelhados
abençoaram-se e agraciaram-se,
51
770
775
780
785
lo u es partí de l’altre ab mant suspir
gitat,
car mais no preposaven que fossen
assemblat
en est món, mas en l’altre, si a Déu ve de
grat.
E quan l’u de l’autre se fo un petit
llunyat,
tantost foron cascú per l’altre desirat.
e um partiu do outro com muitos
suspiros,
pois não acreditavam que iriam mais se
encontrar
neste mundo, mas no outro, se a Deus
agradasse.
Tão logo estiveram um pouco afastados
um do outro,
um foi pelo outro fortemente desejado.
LXVII
L’ermità remembrà lo treball e l’afan
– Oh Déus gran, piados, per mercè vos
deman
que ab vos sia Ramon e que el guardets
de dan!
A vós, Déus poderós, amic Ramon
coman,
e al món trametets hòmens que hagen
talant
de mort per vostra amor, e qui vagen
mostrant
veritat de la fe, per lo món preïcant,
segons que ja Ramon ho va bé
començant.
LXVII
O eremita relembrou o trabalho e o
esforço
que Ramon havia feito por muitos anos,
e, além disso, expunha-se a muitos
perigos.
Levantou seus olhos aos céus, uniu suas
mãos, ajoelhou-se,
e com grande zelo58 e amor, a Deus disse
em prantos:
– Oh Deus grande59, piedoso, por mercê
Vos peço
que convosco esteja Ramon e que o
protejais dos danos!
A Vós, Deus poderoso, confio meu
amigo Ramon,
e ao mundo enviai homens que tenham
disposição
para morrer por Vosso amor, e que
mostrem
a verdade da fé, pelo mundo pregando,
segundo o que Ramon muito bem
começou.
LXVIII
Quan Ramon remembrà la molt gran
tempestat
en la qual llongament hac estat tabuixat
LXVIII
Quando Ramon relembrou a grande
tempestade
sob a qual por longo tempo esteve
en què Ramon havia estat en mant an,
e encar que es metia en perill qui és molt
gran.
Al cel llevà sos ulls, mans juntes,
genollant,
ab gran zel e amor a Déu dix en plorant:
58
59
Em OE, “piedade”.
Em OE, “humilde”.
52
790
795
800
805
e membrà l’ermità que a ella s’era dat,
adoncs plorà molt fort e hac d’ell pietat,
e dix a Jesucrist, mans juntes, genollat:
– Oh vós, ver Déus e hom, per qui eu
hai treballat
con fóssets per lo món conegut e amat!
Si a dretura plau que vós me n’hajats
grat,
plàcia-us que l’ermità sia remunerat,
pus que s’és mès tan fort en ma societat,
e faits per ell complir ço on ay pauc
enançat,
e a mi ajudats a enançar crestiantat.
LXIX
Fenit lo desconhort que Ramon ha escrit;
en lo qual del món l’ordenament ha dit
e en rimes posat, per ço que no s’oblit;
car poria ésser que mant home ardit
se metra en lo fait, tro que sia complit
ço que tant ha Ramon al Papa requerit.
Car si per lo Papa lo fait és establit
e que li cardenal hi hagen consentit,
poran ésser del món tot li mal departit,
e tot lo món serà a Déu tant abellit
que a la fe crestiana no serà contradit.
60
transtornado,
e lembrou-se do eremita que a ela se
lançou,
então chorou muito e teve piedade dele,
e, mãos juntas, ajoelhado, disse a Jesus
Cristo:
– Oh Vós, verdadeiro Deus e homem,
por quem eu trabalhei
para que fôsseis conhecido e amado pelo
mundo!
Se ao direito apraz que por mim vós
tenhais gratidão,
peço-vos
que
o
eremita
seja
recompensado,
pois ele se pôs tão forte em minha
companhia,
e façais com que ele cumpra o que pouco
avancei,
e me ajudeis a expandir a Cristandade.
LXIX
Findo está o Desconsolo que Ramon
escreveu,
no qual disse o ordenamento do mundo,
e em rimas pôs para que não seja
esquecido,
pois poderia ser que muitos homens
corajosos
ponham-se no feito, até que seja
cumprido
o que tanto Ramon requereu ao Papa.
Pois se pelo Papa o feito fosse
estabelecido
e os cardeais60 o consentissem,
poderiam do mundo fazer todo o mal
partir,
e todo o mundo seria tão atraído para
Deus
que a fé cristã61 não seria refutada.
Em OE, “e cada um dos seus freires tenham consentidos”.
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825
Aquest bell desconhort do al Sant
Espirit.
Este Desconsolo confio ao Espírito Santo
Aquest desconhort canta’s en lo so de
Berart
Este Desconsolo canta-se ao som de Berart.
61
Em OE, “a fé romana”.
54
Canto de Ramon (1300)
55
Canto de Ramon (1300)
Ramon Llull (1232-1316)
Trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes)
62
Som creat e ésser m’és dat
a servir Déu que fos honrat,
e som caüt en mant pecat
e’n ira de Déu fui pausat.
Jesús me venc crucificat,
volc que Déus fos per mi amat.
Fui criado e o existir me foi dado
para servir a Deus e ser honrado,
mas caí em muitos pecados,
e na ira de Deus fui colocado.
Jesus veio a mim crucificado,
E quis que Deus fosse por mim amado.
Matí ané querre perdó
a Déu, e pris confessió
ab dolor e contrició.
De caritat, oració,
esperança, devoció,
Déus me fé conservació.
De manhã fui pedir perdão
a Deus, e fiz confissão
com dor e contrição
De caridade, oração,
Esperança, devoção,
Deus me fez conservação.
Lo monestir de Miramar
fiu a frares Menors donar,
per sarraïns a preïcar.
Enfre la vinya e’l fenollar
amor me pres, fé’m Déus amar,
e’nfre sospirs e plors estar.
O Mosteiro de Miramar
fiz aos frades Menores dar
para aos sarracenos predicar.
Entre a vinha e o funchal62
o amor me tomou e me fez a Deus amar,
e entre suspiros e lágrimas estar.
05
10
15
Planta umbelífera medicinal. Ademais “entre a vinha e o funchal” era o locus amoenus da poesia
medieval: “O tema da natureza paradisíaca é muito recorrente tanto na literatura medieval como um
todo quanto nos escritos lulianos. Ele possui um título: locus amoenus. O ambiente paradisíaco é tão
belamente descrito no Livro do gentio que ultrapassa o próprio sentido de cenário que serve de
ambiente para o futuro debate e passa a ser mais um personagem. Os conceitos de “flor”, “fruto” e
“árvore” remetem a coisas agradáveis, belas, boas, e que predispõem os protagonistas e o próprio
leitor a uma felicidade dialética e amorosa graças à força poética do ambiente. Essa é uma característica
cultural do século XIV: a jardinagem, isto é, a jardinagem com um sentido metafísico e transcendental. O
tema do jardim como refúgio do mundo e local ideal para a discussão intelectual (ou mesmo a
procura do amor), mais do que remontar à tradição clássica de Virgílio (70-19 a.C.), possuía então
uma forte influência da estética islâmica.” – COSTA, Ricardo da, e PARDO PASTOR, Jordi.
“Ramon Llull e o diálogo inter-religioso: cristãos, judeus e muçulmanos na cultura ibérica medieval: o
Livro do gentio e dos três sábios (c.1274) e a Vikuah (c. 1264) de Nahmânides sobre a Disputa de
Barcelona de 1263”. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes e LAURIA, Ronaldo Martins (org.). A
integração da diversidade racial e cultural do Novo Mundo. Rio de Janeiro: UERJ, 2004 (cd-room).
56
63
64
65
66
67
Déus Paire, Fil, Déus Espirat,
de qui és Santa Trinitat,
tracté com fossen demonstrat.
Déus Fill del cel és davallat;
de una verge està nat,
Déu e home, Crist apellat.
Deus Pai, Filho, Deus Espirado63,
que é Santa Trindade,
tratei como fosse demonstrada.64
Deus Filho, que desceu do céu,
nasceu de uma Virgem,
Deus e homem, chamado Cristo.
20
Lo món era’n damnació;
morí per dar salvació
Jesús, per qui’l món creat fo.
Jesús pujà al cel sobre’l tro;
venrà jutjar li mal e e’l bo
no valran plors querre perdó.
O mundo estava em danação,
morreu para dar a salvação
Jesus, por quem o mundo foi criado.
Jesus subiu ao céu sobre o trono,
virá para julgar o mau e o bom,
não valerão prantos pedindo perdão.
25
Novell saber hai atrobat;
pot n’hom conèixer veritat
e destruir la falsetat.
Sarraïns seran batejat,
tartres, jueus e mant errat,
per lo saber que Déus m’ha dat.
Novo saber encontrei,
por ele se pode conhecer a verdade
e destruir a falsidade.
Sarracenos serão batizados,
tártaros,65 judeus e todos os errados,
pelo saber que por Deus me foi dado.
Pres hai la crots; tramet amors
a la Dona de pecadors
que d’ella m’aport gran secors.
Mon cor està casa d’amors
e mos ulls fontanes de plors.
Entre gauig estaig e dolors.
Tomei a cruz66, envio amores
à Senhora67 dos pecadores
que d’Ela me venham grandes socorros.
Meu coração é casa de amores
e meus olhos fontes de lágrimas
entre gozo, retalhes e dores.
30
35
40
O verbo espirar em catalão medieval – e especificamente na filosofia luliana – se refere ao ato de amor
divino de criar o Filho e o Espírito Santo, mas também o ato do Espírito Santo de iluminar a criatura
humana (ver GGL, vol. II, 1983, p. 355). Portanto, ultrapassa e muito o sentido em português, que é
o de exalar, desprender, emanar, emitir sopro.
A demonstração (prova) da Santíssima Trindade aos incrédulos dar-se-ia por meio de sua Arte.
A palavra tártaro deriva de Ta-ta (ou Dada), tribo mongol que habitava a Tartária, região ao noroeste
da atual Mongólia no século V. Foi utilizada pela primeira vez no século XIII para designar os povos
que dominaram partes da Ásia e Europa sob a liderança mongol. Contudo, Ramon Llull distingue
mongóis de tártaros. Veja a Doutrina para crianças, LXXII, 3. Para a questão mongol na filosofia
luliana, ver GAYÀ, Jordi. “Ramon Llull en Oriente (1301-1302): circunstancias de un viaje”. In: SL
93, 1997, p. 25-78.
Nos anos seguintes, Llull viajou a Chipre, Armênia e provavelmente Jerusalém.
“Dona”, denominação medieval de Santa Maria
57
Som hom vell, paubre, menyspreat,
e hai trop gran fait emparat.
Grans res hai de lo món cercat;
mant bon exempli hai donat:
poc som conegut e amat.
Sou um homem velho, pobre,
menosprezado,
não tenho ajuda de nenhum homem
nascido,
mas comecei um grande feito.
Grande coisa do mundo tenho buscado,
ótimo exemplo tenho dado,
mas sou pouco conhecido e amado.
Vull morir en pèlag d’amor.
Per ésser gran no hai paor
de mal príncep ne mal pastor.
Tots jorns consir la desonor
que fan a Déu li gran senyor
qui meten lo món en error.
Desejo morrer em um pélago de amor68
Por ser grande não tenho pavor
nem de mau príncipe, nem de mau pastor.
Todos os dias considero a desonra
que faz a Deus o grande senhor,
ao colocar o mundo em error.
Prec Déus trameta missatgers
devots, cients e vertaders
a conèixer que Déus hom és.
La Verge on Déus hom se fés
e tots los sants d’ella sotsmès
prec que’n infern no sia mès.
Peço a Deus que envie mensageiros
devotos, cientes e verdadeiros
para conhecer que Deus se fez homem.
A Virgem, onde Deus se fez homem
e todos os santos a Ela submetidos.
Peço que no Inferno não seja colocado.
Laus, honor al major Senyor,
al qual tramet la mia amor
que d’ell reeba resplendor.
No som digne de far honor
a Déu: tan fort som pecador,
e som de libres trobador!
Louvores, honra ao maior Senhor,
ao qual envio o meu amor,
que d’Ele receba resplendor.69
Não sou digno de fazer honor
a Deus, pois tão fortemente sou pecador
e sou de livros trovador!
On que vage cuit gran bé far,
e a la fi res no hi pusc far;
per què n’hai ira e pesar.
Ab contrició e plorar
vull tant a Déu mercè clamar
que mos libres vulla exalçar.
Aonde vou penso grande bem fazer,
Mas no fim, nada posso fazer,
pelo que tenho ira e pesar.
Com contrição e pranto,
desejo tanto a Deus mercê clamar
que meus livros quero exaltar.
no hai ajuda d’home nat
68
69
Fl 1, 23. Em Llull, o desejo de morrer de amor é o martírio.
Nova alusão ao martírio.
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65
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70
Santetat, vida, sanitat,
gauig me do Déus e libertat,
e guard-me de mal e pecat.
A Déu me som tot comanat:
mal esperit ne hom irat
no hagen en mi potestat.
Santidade, vida, sanidade,70
gozo me dá Deus e liberdade,
e guarda-me do mal e do pecado.
A Deus estou totalmente confiado,
nem mau espírito, nem homem irado
não tenham em mim potestade.
Man Déus als cels e’ls elements,
plantes e totes res vivents
que no’m facen mal ni torments.
Dó’m Déus companyons
coneixents,
devots, leials, humils, tements,
a procurar sos honraments.
Ordene Deus aos céus e aos elementos,
plantas e todas as coisas viventes
que não me façam mal nem tormentos.
Dá-me Deus companheiros conhecedores,
devotos, leais, humildes e tementes,
para procurar seus honramentos.
A edição de Batalla não possui as duas últimas estrofes.
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O Concílio (1311)
60
O Concílio (1311)
Ramon Llull (1232-1316)
Trad.: Tatyana Nunes Lemos e Ricardo da Costa (Ufes)
I
I
Un concili vull començar
en mon coratge, a xantar
per ço que faça enamorar
tots cells qui ho poden far
per Déu servir
e lo Sepulcre conquerir:
molt ho desir!
Um Concílio desejo começar71
em meu coração, e cantar
para que faça enamorar
todos aqueles que o podem fazer
para a Deus servir
e o Sepulcro conquistar:
muito o desejo!
En concili tan gran siats
e tan bellament ordenats
que Déu ne sia molt honrats
e mant hom ne si salvats.
E tot lo món
en llong e ample e en pregon
n’haja aon.
No Concílio estareis tão grandes
e tão belamente ordenados,
que Deus será muito honrado
e muitos homens serão salvos,
e todo o mundo
em sua longitude, amplitude e profundidade
será abarcado.72
En concili no façats for
per argent, castell ne per or;
temets-ho com seny sí que mor,
car si havets bo e gran cor,
ah, què diran
juseu, sarraí, cristian
tartres e mant!
No Concílio, não façais lei
por prata, castelo ou por ouro,
temei-o como um sinal de amor,
pois se tiverdes bom e grande coração,
ah, o que dirão
judeus, sarracenos e cristãos,
tártaros e outros!
En concili no siats dubtós,
avar, ni trist, ne pererós;
tan forts siats complits d’amors,
de sospirs, llàgremes e plors,
per bon amar,
que Déus vos faça acabar
lo seu honrar.
No Concílio, não sejais duvidosos,
avaros, tristes ou preguiçosos,
sejais tão fortes e completos de amor,
de suspiros, lágrimas e prantos
pelo bom amor,
que Deus vos faça acabar
o Seu honrar.
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25
O Concílio de Vienne ocorreu do dia 16 de outubro de 1311 ao dia 06 de maio de 1312 (sua
convocatória citava o tema da passagem a Ultramar, isto é, a cruzada).
At 1, 8.
61
En concili hajats consell
ab hom ardit e no volpell,
a consellar per bon cabdell,
e si no havets serets molt bell;
car hom vestit
de vicis e mal esperit
és mal garnit.
No Concílio, tenhais conselho
com um homem corajoso, não covarde,
recebeis conselho de um bom líder.
E se assim fizerdes, sereis muito belo,
pois o homem vestido
de vícios e mau espírito
é mal guarnecido.
En concili qui us diu de no.
de no diu al Senyor del tro,
qui per amor en la creu fo.
Si ell lo lleixa a bandó
al diable,
infern serà son estable
turmentable.
No Concílio quem vos diz não,
diz não ao Senhor do trono,
que, por amor, na cruz esteve.
E se Ele o abandona
ao diabo,
no Inferno estará firmemente
atormentado.
En concili Déus vos ajut,
tem-me no siats descebut,
car mant home ha lleu volgut
alcun bé far qui és recregut
al començar.
Prec Déus que us vulla amparar
ab bo amar.
No Concílio, que Deus vos ajude,
espero que não sejais enganado,
pois muitos homens têm desejado
algum bem fazer, mas renunciam
ao começar.
Peço a Deus que vos ampare
com bom amor.
En concili ans que parlets
guardats en quals començarets,
en tots hómens no vos fiets
car mant home no està drets.
Ah, bon amic,
savi és qui por altre es castic
e tem destric!
No Concílio, antes que faleis,
guardais por onde principiareis:
em todos os homens não vos fieis,
pois muitos homens não estão direitos.
Ah, bom amigo,
sábio é aquele quem por outro é castigado
e sofre dano!73
En concili lo pec moltó
engana el llop e lo lleó
a la volp engana al capó
e mant hoc és pijor que no.
Si no us guardats
per mant hom serets enganats
e menyspreats.
No Concílio, o ignorante carneiro
engana o lobo e o leão,
e a raposa engana o capão,74
e muito sim é pior que o não.
Se não vos guardais,
por muitos homens sereis enganados
e menosprezados.
73
Provável referência ao martírio.
62
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60
En concili guardats la fi
de Déu, qui està lo camí
de paradís, verai fi;
e si hi anats vespre e matí
segur irets,
barat ne tort, mal no tembrets,
perfait serets.
No Concílio, guardais o fim
de Deus, quem está no caminho
do Paraíso, verá o fim.
E se aí fordes, pela véspera75 e manhã,
ireis seguro,
fraude nem erro, mal não temereis,
e perfeito sereis.
II
Del Papa
II
Do Papa
Sènyer en Papa quint Clement,
qui estats senyor de tanta gent,
faits que el concili sia breument
si trop hi faits d’allongament
parrà barat,
e Dèus vos en haurà desgrat:
serets jutjat.
Senhor Dom Papa Clemente Quinto76,
que sois senhor de tanta gente,
fazeis que o Concílio ocorra rapidamente,
se o prolongardes longamente
parecerá fraude,
e Deus vos terá em desgraça:
sereis julgado.
Sènyer en Papa, què farets?
Vostre concili honrar l’hets.
Si no hi faits tot quanto porets
per tot lo món blasmat serets,
e, mal volgut,
mostrarets siats recresut,
e és perdut.
Senhor Dom Papa, o que fareis?
Vosso Concilio havereis de honrar.
Se não fizerdes tudo quanto podeis
por todo o mundo blasfemado sereis
e mal querido,
mostrareis que sois fracassado
e estareis perdido.
Sènyer En Papa, que farà
lo gran poder qui en vós està?
Si no li faits far quant porà,
a Jesucrist se’n clamarà
fortment de vós,
e car no vol sia occiós,
e és raisós.
Senhor Dom Papa, que fará
o grande poder que em vós está?
Se não fazeis o quanto podeis,
Jesus Cristo clamará
fortemente de vós,
pois não deseja que sejais ocioso,
e tem razão.
74
75
76
65
70
75
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85
90
Capão – qualquer animal castrado. No poema, faz-se menção à docilidade do animal castrado e sua
menor agressividade.
Vésperas – uma das horas canônicas (Matinas [meia-noite], laudes [três da manhã], primas [primeiras
horas do dia, ao nascer do Sol ou cerca de seis da manhã), vésperas [seis da tarde] e completas [(hora de
dormir]).
Trata-se do papa Clemente V (1305-1314).
63
Sènyer En Papa, tal vos riu
que volria no fóssets viu!
Guardats que no siats altiu
al concili, qui està riu
e bon camí
per què hom va a bona fi
ab voler fi.
Senhor Dom Papa, sois tão generoso
que desejaria que não fôsseis vil!
Resguardai-vos para não serdes altivo
no Concílio, que é rio
e bom caminho
para chegar a um bom fim
com vontade.
Sènyer En Papa, per lo món
en llong, ample e pregon
vostre poder hi és entorn;
perquè sent Pere n’ha sojorn
hajats-lo vós;
no siats avar, pererós,
mas llarg e pros.
Senhor Dom Papa, pelo mundo
em sua longitude, amplitude e profundidade
vosso poder está ao redor.
Pois São Pedro não tem descanso,
tende-o vós,
não sejais avaro e preguiçoso,
mas largo e virtuoso.
Sènyer En Papa, faits preïcar
la santa fe e mostrar clar
perquè véngon a batejar
tuit l’infesel e per salvar;
e eu sai raisons
contra què no val llurs sermons;
dats-hi perdons.
Senhor Dom Papa, fazei predicar
a santa fé, e claramente mostrá-la,
para que sejam batizados
todos o infiéis, e sejam salvos.77
E eu sei razões
contra as quais não valem seus sermões,78
dai-lhes perdões.
Sènyer En Papa, eu m’escús
al bon rei, salvaire Jesús,
que eu vos n’he pregat ça jus
que el concili pujets en sus.
Al jutjament
dirai que al Papa Climent
ho fui dient.
Senhor Dom Papa, eu me escuso
ao Bom Rei, Salvador Jesus,
a quem roguei aqui embaixo,
para que o Concílio seja elevado.
No dia do Julgamento,
direi que ao Papa Clemente
eu recorri.
Si el concili no és ni val
paor hai que n’isca gran mal
e qui dirà: Res no me’n cal,
crei que irà en mal hostal
tots mals sofrir,
pena e dan sen penedir,
Se o Concílio não existir nem valer,
tenho pavor que nasça um grande mal,
e quem dirá: “Nada me cabe”,
creio que irá para uma má morada
sofrer todos os males,
pena e dano, sem arrependimento
77
78
95
100
105
110
115
120
125
Llull repete a tradição católica: fora da Igreja não há salvação.
Isto é, a razão luliana é superior, para a conversão, aos argumentos baseados exclusivamente na fé.
64
e sens eixir.
e sem saída.79
Sènyer En Papa, Déus pregats
que en est pas siats aidats
pel Sant Esperit espirats,
per Nostra Dona remebrats;
e el Déu d’amor
ajut a la cuita major
per sa honor.
Senhor Dom Papa, a Deus rogais
que neste caminho sejais ajudado,
pelo Espírito Santo inspirado,
por Nossa Senhora relembrado,
e que o Deus do amor
ajude a essa dificuldade maior
por Sua honra.
III
Dels Cardenals
III
Dos Cardeais
Cardenal és bo cardenil
de gran porta bona, humil,
per la qual entra hom gentil
que ço que fa tot va a fil.
Ah, gran nom ha,
cardenal, lo poder que ha!
Ah, què en farà?
Cardeal é boa fechadura
de uma grande porta boa e humilde,
pela qual entra o homem gentio
e que tudo o que faz vai ao Filho.
Ah, grande nome tendes,
cardeal, e o poder!
Ah, o que fará?
Cardenal és lo conseller
del Papa, e ha lo poder
que ha el Papa en son mester,
e ço que ensems poden fer.
Ah, qual punir,
si ells no volen Déu servir!
Ah, qui el pot dir?
Cardeal é o conselheiro
do Papa, e tem o poder
que o Papa tem em seu ofício,
e ao mesmo tempo podem fazer.
Ah, como punir
se eles não desejam a Deus servir!
Ah, quem o pode dizer?
Si els cardenals han bon consell
que el concili sia bo e bell,
cascun ab gran gauig s’aparell,
car Déus serà tots temps ab ell,
sus en lo cel,
Querubin, Querafin e Miquel
e Gabriel.
Se os cardeais têm bom conselho
que o Concílio seja bom e belo,
que cada um com grande gozo se prepare,
pois Deus estará com eles todos os tempos,
acima no céu,
querubim, serafim, Miguel
e Gabriel.
79
130
135
140
145
150
Quem não fizer todo o possível para que o Concílio chegue a um bom termo, isto é, para que a
cruzada seja efetivada e as propostas lulianas de criação de escolas sejam implementadas, será
severamente julgado no dia do Juízo Final!
65
Cardenal que vol destrobar
que el concili no es pusca far,
lo concili s’irà clamar
a Déu, qui el venjará ben car.
Las! Què es farà
car no li en valdrà puig ne pla
ne tot quant ha!
Cardeal que desejar perturbar
para que não se possa fazer o Concílio,
o Concílio irá clamar
a Deus, que o vingará bem caro.
Ai! O que se fará?
Pois não lhe valerá monte, nem plano,
nem tudo quanto há!
Senyores cardenals, ordenats
que cavaller sia triats,
religiosos, e si los dats
ço del Temple e les potestats
d’altres maisós
de les altres religiós
cavallers bos.
Senhores cardeais, ordenais
que cavaleiros sejam escolhidos,
religiosos, e lhes sejam dados
do Templo e os poderes
de outras casas,
de outras religiões
bons cavaleiros.
Tal cavaller vaja estar
per tot temps mai en Ultramar,
la dècima li faits donar
per lo Sepulcre a cobrar;
lo gran poder
qui haurà, qui lo pot saber?
Vullats-ho fer!
Tal cavaleiro deve estar
por todos os tempos em Ultramar.
O dízimo lhe façais dar
para o Sepulcro recuperar.
O grande poder
que terá, quem o poderá saber?
Desejais fazê-lo!
Cell qui no fa el bé que porà
sàpia que Déus se’n venjarà
e en far bé null mal farà;
car en no far bé mal farà;
e, doncs, senyors,
puis que el poder està en vós,
estiats bos!
Aquele que não faz o bem que poderia
saiba que Deus se vingará,
e ao fazer o bem, nenhum mal fará,
porque ao não fazer o bem, mal fará.
Portanto, senhores,
já que o poder está em vós,
sejais bons!
Senyors cardenals, dats a Déu
lo vostre poder qui és seu,
si no ho faits serà-li greu,
poria’us en venir mal lleu.
Ah, bé us guardats
que son poder no li tollats,
car és venjats!
Senhores cardeais, dais a Deus
o vosso poder que é Seu,
se não o fizerdes, será grave,
poderia vos vir rapidamente o mal.
Ah, bem vos guardais
para que Seu poder não vos oprima,
pois é vingativo!
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Senyors cardenals, ab voler
podets tot lo món conquerer
ab què donets vostre poder
a Déu, e podets-ho lleu fer,
pus que us vullats:
si no ho faits serà car comprats.
Ah, bé us guardats!
Senhores cardeais, com vontade
podeis todo o mundo conquistar,
dais o vosso poder
a Deus, e podeis rapidamente fazer,
assim que desejardes:
se não o fizerdes, será porque fostes
comprados.
Ah, bem vos protegeis!
Senyors cardenals, lo concilí
faits pervenir a bona fi,
que val mais que argent ni cosí,
ne sejorn, vespre ne matí.
Ha Déus amat
a son orde cardenalat
que en sia honrat.
Senhores cardeais, o Concílio
fazeis chegar a um bom fim,
pois vale mais que prata, primo,
descanso, véspera ou manhã.
Ah, Deus amado,
que à Sua ordem o consistório
seja honrado.
IV
Dels Prínceps
IV
Dos Príncipes
Senyors prínceps, duc e marquès,
sapiats gran maravella és
si el concili no és fa adés
e lo millor qui poria més,
tan bo que no fo;
cascú meta son ganfanó
per gran perdó.
Senhores príncipes, duques e marqueses
saibais que é uma grande maravilha
se o Concílio não é feito rapidamente
e o melhor que possa.
Tão bom seria
que cada um colocasse seu estandarte
para um grande perdão.
Cavaller qui bé sap amar
en conquerir tot Ultramar
en nulla res no deu dubtar;
pensar pot que Déus vol aidar
a sa honor;
vagen, doncs, rei, emperador,
ab gran vigor.
Cavaleiro que bem sabe amar
conquistar todo o Ultramar
de nada deve duvidar,
e pode pensar que Deus deseja ajudar
Sua honra.
Ides, então, rei, imperador
com grande vigor.
Rei, empaire e baró,
cras veirem si seran bo,
ne de raisó fan ganfanó
e de l’amor de Déu gonilló;
e que als prelats
Rei, imperador e barão,
néscios verão se sereis bons,
se de razão fareis estandarte
e do amor de Deus túnica.
E que aos prelados
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diguen: nós som aparellats,
senyors, anats!
digais: nós estamos preparados.
Senhores, ides!
Al cavaller tany cavalcar;
escut e sella, e brocar
espasa e llança, e colps dar
e tany-li atressí amar
per conquerir
lo Sepulcre, per Déu servir,
pecats delir.
Ao cavaleiro cabe cavalgar,
escudo, sela e esporear,
espada e lança, e golpes dar.
E lhe cabe, ademais, amar
para conquistar
o Sepulcro, para a Deus servir
e os pecados aniquilar.
Senyors prínceps, si prometets
al Papa que trastuit irets
e que hi farets tot quant porets
en gran vergonya lo metrets.
Si no us vol dar
per lo Sepulcre a cobrar,
vets-lo’n pregar.
Senhores príncipes, se prometerdes
ao Papa que todos ireis
e que fareis tudo quanto puderdes,
em grande vergonha metê-lo-eis
se não desejar vos dar
para o Sepulcro reconquistar.
Ides pregar.80
Cavaller no tinc per cortès
se Déus no ama més que res;
no sap fer colps a manés
d’amor, si gran pecador és.
Ah, cavaller,
en Déu servir fai ton poder
e volenter!
Cavaleiro não pode ser cortês
se não ama a Deus mais que tudo.
Não sabe dar golpes seguidos
de amor, se é grande pecador.
Ah, cavaleiro,
para Deus servir, faça todo o teu poder
e vontade!
Cavaller que és servidor
de Déu no ha de res paor,
car conforta’s en son senyor
e en força de bona amor.
Ah, cavaller,
si tu vols ésser bon guerrer,
ama bé fer!
Cavaleiro que é servidor
de Deus, não tem nenhum pavor,
pois se conforta em seu Senhor
e na força do bom amor.
Ah, cavaleiro,
se tu desejas ser um bom guerreiro,
ama fazer o bem.
Null cavaller està ardit
se de virtuts no és complit,
e falsa amor sia en son llit,
Nenhum cavaleiro é ousado
se de virtudes não está completo,
o falso amor está em seu leito,
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Nessa passagem, Llull incita os príncipes a se comprometerem com o fim do domínio mouro sobre as
terras de Jerusalém.
68
e que l’honor de Déu l’oblit.
Ah, gran baró,
mit tota ta entenció
que sies bo!
e a honra de Deus está esquecida.
Ah, grande barão,
coloque toda a tua intenção
para seres bom!
Cavaller és per dret servir
e que lo mal faça fugir,
e que lo bé pusca venir
e que lo dó per obeir
al Déu d’amar,
ab què vaja en Ultramar
bé exalçar.
Cavaleiro existe para o direito servir
e o mal fazer fugir
para que o bem possa vir,
e ser dado para obedecer
ao Deus de amor,
com O qual irá à Ultramar
para o bem exaltar.
Mai val cavaller pecejats
per tal que Déus sia honrats,
que malvat viu e desamats
per Déu, e no plor sos pecats.
Ah, cavallers,
cras veirem quals són primers
e bons guerrers!
Mais vale um cavaleiro despedaçado
para que Deus seja honrado
que um malvado vivo e desamado
por Deus, e que não chore seus pecados.
Ah, cavaleiros,
néscios verão quais são os primeiros
e bons guerreiros!
V
Dels Prelats
V
Dos Prelados
Remembrar vull a los prelats
qui per Déu estan tan bastats,
que no sien trop sejornats
e que donen ço que els és donats
a conquistar
tota la terra d’Ultramar,
pus que es pot far.
Relembrar desejo aos prelados
que, por Deus, estão tão abastados,
que não estejam muito descansados,
e dêem isso que lhes é dado
para conquistar
toda a terra de Ultramar,
pois se pode fazê-lo.
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Prelat tant quant ha de poder
en far lo bé li quer
que dó a Déu de son haver;
e lo donar és son bé fer
en son bon lloc;
sinó de llai no els parrà joc.
Ah, fort los toc!
Prelado tem tanto poder
em fazer o Bem81 lhe querer,
que dá a Deus do seu haver.
E o dar é seu bem fazer82
em seu bom lugar,
senão, o Além não lhes parecerá um alívio.
Ah, que isso os sensibilize!
Prelat, guarda quant est honrat
per Jeuscrist, molt deshonrat,
quan per tu està tan pauc amat
e pel Sepulcre no cobrat.
Ah, vai l’honrar
per lo concili emparar
sens cor avar!
Prelado, considera o quanto és honrado
por Jesus Cristo, que é muito desonrado
quando por ti é pouco amado
e o Sepulcro não é reconquistado.
Ah, vais Lhe honrar
para o Concílio defender,
sem coração avaro!83
Senyors prelats, e què farets
de lo gran poder que havets?
A Déu honrar dar lo volrets?
Si no ho faits, ah, què direts
al jutjament
quan Déus dirà: Mon malvolent,
vai al turment!
Senhores prelados, o que fareis
com o grande poder que haveis?
Para Deus honrar, desejareis dá-lo?
Se não o fizerdes, ah, que direis
no Julgamento,
quando Deus dirá: “Mundo mau,
vá ao tormento!”
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Trata-se do Bem Supremo, ou Sumo Bem, noção filosófica aristotélica que indica aquilo que é desejado
por si mesmo, não em vista de outro bem. É necessário que haja um Bem Supremo para evitar o
processo ao infinito (Ética a Nicômaco, I, 2, 1094-18). Os medievais empregaram essa expressão para
indicar o próprio Deus.
O “dar sem esperar nada em troca” é o conceito cristão de amor (caritas), considerado o amor mais
perfeito jamais pensado (ver, por exemplo, Hannah Arendt, O conceito de amor em Santo Agostinho,
Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 35).
A Avareza era um dos sete pecados mortais diretamente associado aos cavaleiros, que, durante o
feudalismo, endividavam-se constantemente para adquirir e atualizar seu armamento. O cavaleiro avaro
é, ainda, largamente representado na iconografia medieval e moderna. Em uma iluminura do Livro das
Horas (c.1475) de Robinet Testard, um cavaleiro monta um lobo voraz, que simboliza o apetite do
avaro pelo dinheiro, enquanto exibe e despeja uma bolsa vermelha repleta de moedas (há ainda outra
bolsa, preta e igualmente cheia, em sua cintura). O diabo o acompanha. Ver COSTA, Ricardo da. “A
noção de pecado e os sete pecados capitais no Livro das Maravilhas (1288-1289) de Ramon Llull”. In:
FILHO, Ruy de Oliveira Andrade (org.). Relações de poder, educação e cultura na Antigüidade e Idade Média.
Estudos em Homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro – I CIEAM – VII CEAM. Santana de Parnaíba,
SP: Editora Solis, 2005, p. 425-432.
70
Prelat, no pots Déus enganar
ne en res no lo pots forçar,
e si de seu no li vols dar
de tu es porà fortment venjar!
Si no est bo
no haurats excusació:
dir-t’ha de no.
Prelado, não podes a Deus enganar,
nem a nada O podes forçar.
E se do teu, não Lhe desejas dar,
de ti poderá fortemente se vingar!
Se não és bom,
não poderás se desculpar:
dir-te-á não.
Senyors prelats, bé en són certà
que si lo concili no es fa
vós hi metrets la vostra mà;
¿Aquella mà on fugirà
a greu dolor
perpetual, per qui el Senyor
ha deshonor?
Senhores prelados, estejais bem certos
que se o Concílio não for feito,
é porque vós tereis colocado a vossa mão.
E esta mão, para onde fugirá
da grande dor
perpétua, para quem ao Senhor
desonra?
Senyors prelats, tal mal me sent
car vei alcú ensenyament
que el concili no sia nient;
e si ho és ha falliment,
pena e mal
de qui serets perpetual
malvat hostal.
Senhores prelados, tão mal me sinto,
pois vejo alguns ensinamentos
que dizem que o Concílio não será nada.
E se assim for, há falta,
pena e mal
dos quais sereis perpétuo
e malvado abrigo.
Senyors prelats, bé us és vengut
se faits concili erebut;
si no el faits mal vos és cresut,
lo concili no fos sabut
ne nomenats;
per mant home serets blasmats
e menyspreats.
Senyors prelats, no és lleó
qui no faça tembre el moltó;
e diets hoc e puis diu no;
84
Senhores prelados, o bem vos virá
se fizerdes o Concílio ser recebido.
Se não o fizerdes, o mal crescerá
se o Concílio não for conhecido
nem nomeado,
por muitos homens sereis blasfemados
e menosprezados.
Senhores prelados, não existe leão
que não faça o carneiro temer.84
Dizeis sim, e depois dizeis não,
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315
320
325
330
Trata-se da segunda vez que o filósofo se vale da metáfora do bestiário, e com os mesmos animais (o
carneiro e o leão): na primeira, o ignorante carneiro engana o lobo e o leão; aqui, todo leão faz o
carneiro tremer.
71
de ço en qui ha gran raisó
pauc és temut;
bo li fora que estés mut,
no recreüt.
do que tem grande razão
pouco serdes temido.85
Bom seria que fôsseis mudos,
desacreditados.
Senyors prelats, no val anell
ne gran cavall, ne bell mantell
ne gran flota de mant donzell
si en sos faits no ha cabdell
discreció,
e que sia ardit e pro
quan és raisó.
Senhores prelados, não vale anel,
nem grande cavalo, nem belo mantel,
nem multidão de donzéis,
se em seus feitos não há liderança,
discrição,
e que sejais corajosos e proveitosos
quando existe razão.
VI
Dels Religiosos
VI
Dos Religiosos
Religiós, faits monestir
per tal que hi puscats Déu servir:
si en Ultramar l’anats bastir,
pel concili podets venir
e preïcar,
e per lo papa a pregar
e consellar.
Religiosos, façais monastérios
para que possais servir a Deus:
se em Ultramar fordes construir,
pelo Concílio podeis vir
e predicar,
e pelo papa rogar
e aconselhar.
Religiós bo se sotsmet
a servir Déu quan ell va dret;
e si contra el concili es met
sots hàbit està nelet,
habit de mal
sots lo qual hàbit no val
ni és lleial.
Bom religioso se submete
a servir a Deus quando caminha retamente.
E se contra o Concílio se coloca,
o seu hábito está em culpa,
mau hábito,
sob o qual hábito não vale
nem é leal.86
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355
O temor é a base da sabedoria cristã.
O exterior do homem medieval manifestava seu interior, sua intenção. Por sua vez, o vestuário
designava a categoria social (e, por esse motivo, as regras monásticas fixavam cuidadosamente o
hábito de seus monges. Ver COSTA, Ricardo da. Ramón Llull y la Orden del Temple (Siglos XIII-XIV).
Barcelona: Universitat Internacional de Catalunya (tese pós-doutoral), 2003, p. 113. Assim, portar um
vestuário que simbolizasse uma condição diferente da sua correspondia a cometer o pecado capital da
ambição ou da degradação. Ver também LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa:
Editorial Estampa, 1984, vol. II, p. 123.
72
Religiós contemplatiu,
temor ds Déu està son niu,
no tem menaces ne null briu
ne no vol ésser sejorniu.
Vai preïcar
que anem tuit en Ultramar
per Déus honrar!
Religioso contemplativo
traz o temor de Deus em seu ninho,
não teme ameaças nem qualquer brio,
nem deseja estar descansado.
Ide predicar
que todos vão para Ultramar
para Deus honrar!
Religiós, entin-me bé:
si contra Déu fai nulla re,
molt pus gran pena te cové
car fenys-te que faces mais bé
que altre, e par
que mais que altre et deus guardar
en lo mal far.
Religiosos, entendam-me bem:
se contra Deus fizeres algo,
muito maior pena te convém,
porque finges que fazes mais bem
que outro, e parece
que deves te guardar mais que outro
em fazer o mal.
Religiós, si vols servir
molt Déu, vai per sa amor morir,
e de la santa fe ver dir
als infeels, per convertir,
car gran plaer
ha Déu d’home que vol sostener
molt per dir ver.
Religiosos, se desejais servir
muito a Deus, ides por Seu amor morrer,
e da santa fé verdadeira dizer
aos infiéis, para converter,
pois grande prazer
Deus tem do homem que deseja sofrer
a morte para a verdade dizer.
Religiós, oració
fai a Déu molt gran, que Ell nos dó
concili verdarder e bo
e que el papa dó gran perdó
ab gran tresor,
cal l’un e l’altre han lo for,
e mal hi mor.
Religiosos, oração
muito grande façais a Deus, para que Ele nos
dê
um Concílio verdadeiro e bom,
e que o Papa dê grande perdão
com um grande tesouro,87
pois um e outro tem a força,
e o mal ali morre.
Religiós, bo és presic
que fas a l’hom que se castic
e que dó a cell qui té ric;
e pus que t’és mès en oblit
vai presicar
lo Papa, que vulla passar
Religiosos, boa é a prédica
que faz com que o homem se castigue,
e que dê àqueles quem tem riqueza.
E para que não caias em esquecimento,
ides predicar
ao Papa, que desejais passar
87
Absolvição dos pecados para quem fosse à Cruzada.
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en Ultramar.
para Ultramar.
Religiós, si el Papa va
en Ultramar, tot hom irà,
tota la terra conquerrà.
Religiós, si en tu ha
gran ardiment,
crida, preïca valentment
e mantinent.
Religiosos, se o Papa for
a Ultramar, todos os homens irão
e todas as terras conquistarão.
Religiosos, se em ti há
grande coragem,
grita, predica valente
e imediatamente.
Religiós, tu saps que el ca
tant lladra que hom se’n despertà
e fuig lo mal e lo bé fa.
¿Qual de nosaltres lladrarà
per despertar
aquells qui poden gran bé far
en Ultramar?
Religiosos, tu sabes que o cão
ladra tanto que o homem desperta,88
o mal foge e faz o bem.
Qual de nós ladrará
para despertar
aqueles que podem fazer um grande bem
em Ultramar?
Religiós, lo teu habit
deu ésser de molts bens complit
e de bons exemples guarnit,
per ver amor ésser ardit;
e sens paor
deu ésser gran preïcador
per lo Senyor.
Religiosos, o teu hábito
deve ser completo de muitos bens,
guarnecido de bons exemplos,
e ser corajoso pelo verdadeiro amor;
e sem pavor
deves ser grande predicador
pelo Senhor.
VII
De Contricció
VII
Da Contrição89
Contricció, a mon albir
trop vos deliats en dormir;
¿per què no anats cor ferir
del qual façats amor eixir
e gran amar
dolors, sospirs e molt plorar
per satisfar?
Contrição, ao meu juízo
muito vos deleitais em dormir.90
Por que não ides o coração ferir,
para que façais o amor sair
em grande amar,
dores, suspiros e muito choro
para satisfazer?
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No bestiário maravilhoso luliano, o cão freqüentemente estava associado à luxúria. Contudo, nessa
passagem, o cão não corresponde a essa representação, e sim à imagem tradicional da fidelidade.
74
Contricció, cell qui no us vol
sens fina amor està tot sol,
e si lo cor contrit no es dol
de tot en tot serets en sol.
Ja gras capó
no us valdrà a dampnació
precs ni perdó.
Contrição, aquele que vos deseja
sem o fino amor91 está totalmente só,
e se o coração contrito não tem dor
sempre estareis em solidão.
Pois um gordo capão
de nada vos valerá contra a danação92,
preces nem perdão.
Contricció, lo nom perdrets
si dels pecats dol no havets
e que els pecats tant no plorets
com sabets que gran escarn fets.
Si no els mundats,
pelan estarets de barats
e falsetats.
Contrição, o nome perdereis
se dos pecados dó não tiverdes,
e os pecados tanto não chorardes
quanto souberdes que grande escárnio
fizestes.
Caso não mudeis,
cheia estareis de fraudes
e de falsidades.
Contricció, hipocrità,
vos va en torn, e si no es fa
Contrição, hipócrita
vos circunda, e se não fizerdes
89
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435
Após se dirigir aos poderes laicos e religiosos, o filósofo passa aos sentimentos necessários à boa
execução do Concílio (a contrição, a satisfação, a oração e a devoção).
A contrição é o sentimento pungente de arrependimento por pecados cometidos e pela ofensa a
Deus, menos pelo receio do castigo do que pelo amor e gratidão à divindade. Em Llull, a penitência é
“...a contrição do coração e a amargura da alma pelos pecados que fazes, dos quais se arrependes ou
propões nunca mais fazê-los. Isso dá aflição ao corpo do homem, com jejuns, orações, peregrinações
e outras coisas semelhantes a essas.” (Doutrina para crianças, XXVI, 1). E no Livro dos Mil Provérbios: “1.
Quem tem contrição está próximo da satisfação; 2. A consciência com contrição dá paixão à vontade;
3. Quem tem contrição não ri; 4. Quem conta seus pecados com risos não tem contrição; 5. Sem
contrição não podes ter perdão; 6. A contrição dispõe o pecador a desejar o perdão; 7. Que a
contrição te faça chorar para que possas rir no Paraíso; 8. Uma paixão por contrição vale mais que
todas as bem-aventuranças por risos; 9. A contrição é a mensagem que o pecador envia à piedade de
Deus; 10. A contrição sem esperança não tem forma; 11. A contrição e a graça de Deus são vizinhas
no homem pecador; 12. Quem chora com contrição chora com doces lágrimas; 13. Se freqüentemente
pecas, freqüentemente tens de ter contrição; 14. Quanto maior o pecado, maior a contrição; 15. Quem
tem lenta contrição ou quem a enfraquece é vizinho do demônio; 16. Tua contrição está mais viva
pelo amor que tens a Deus que pelo pavor que tens d’Ele; 17. Em todos os tempos a contrição é
amiga leal; 18. A contrição é fonte de suspiros; 19. Quando com a contrição choras, a tua alma
engorda; 20. A contrição por amor e contrição por pavor são vizinhas; 21. O tesouro de Davi e a
sabedoria de Salomão não valem mais que a contrição, XX. Da Contrição”.
Fino amor (fina amor), isto é, o amor cortês.
Isto é, o vício da glutonia, dos excessos alimentares que, além de se oporem ao delicado amor da
verdadeira contrição, ainda dificultavam a dor sincera do coração contrito.
75
lo concili, vostra llanà
de falsetat mant hom vestrà;
per destruir
lo concili, fa jaquir
Déus a servir.
o Concílio, vossa lã
vestirá a muitos de falsidade;
para destruir
o Concílio, deixe de
a Deus servir.
Contricció, vostre penó
alcuna vets és tració,
çar ço que defores par bo
de dins és mal e fallió,
e gran pecat,
perquè havets lo nom mudat
per gran barat.
Contrição, vosso pendão
algumas vezes é a traição,
porque o que externamente parece bom
internamente é mal e falta
e grande pecado;
porque haveis o nome mudado
por uma grande fraude.
Contricció, cota e mantell
fan de vós mant hom gran e bell,
e si vós sots bon cabdell
Déus vol que hajats mant donzell
e man cavall
a destruir mal en vall,
d’on mal trasall.
Contrição, cota e manto
fazem de vós grande e bela.
E se vós sois de bom novelo,
Deus deseja que tenhais um manto puro,
e um grande cavalo
para destruir o mal no vale
onde ele fenece.
Contricció, no us vull mentir:
no em plai ab vós en llur dormir.
D’on faits devoció eixir
si el concili faits er jaquir?
E car plorats,
per ço que façats grans barats
mal vos n’és dats.
Contrição, não vos desejo mentir,
vós não me agrada em vosso dormir.
De onde fazeis a devoção sair
se o Concílio fazeis abandonar?
E como chorais
para que façais grandes fraudes,
mal vos é dado.
Contricció, a vós me dó
ab què amets devoció
e far concili gran e bo
fora de tota tració,
e mal pensar.
Ab vós irai en Ultramar
bé exalçar.
Contrição, a vós me dou
para que ameis a devoção
e façais um Concílio grande e bom,
fora de toda traição
e mal pensar.
Com vós irei a Ultramar
para o bem exaltar.
Contricció, qui bé es penet
tantost és eixir de nelet
e en tot ço qui és ha dret
Contrição, quem bem se arrepende,
rapidamente sai da culpa,
em tudo o que existe tem direito,
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455
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470
e per tot va cap eret,
e és ardit
pus que està de mal eixit,
per vós guarnit.
por tudo vai de cabeça erguida
e é corajoso,
já que está livre do mal
e por vós guarnecido.
Contricció, lo dejunar
que faits, e el sospir e el plorar,
oració e lo cantar,
tot se coneix al satisfar
de qual part ve,
car lluny està lo mal al bé:
ço lleu hom ve.
Contrição, o jejuar
que fazes, e o suspirar e o chorar,
a oração e o cantar,
tudo se conhece para satisfazer
de qual parte vem,
porque distante está o mal do bem:
isso logo se vê.
VIII
De satisfacció
VIII
Da Satisfação93
Satisfacció és hostal
en qui no està negú mal
ne tem menaces ne destral,
car satisfer és son cabal;
perquè Déus ha
que li ajuda ça e lla,
segur està.
Satisfação é casa
na qual não está qualquer mal,
nem ameaças, nem maledicências,
pois satisfazer é sua prioridade,
porque Deus tem
quem Lhe ajude aqui e ali,
seguro lá está.
Satisfaràs a ton voler
del mal que n’has fait, ab bé fer;
satisfaràs a ton saber,
Satisfarás a tua vontade
do mal que tens feito, com o bem que fará.
Satisfarás o teu saber,
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490
A satisfação a qual Llull se refere é a do sentido teológico: uma reparação do mal causado a alguém ou
da injúria feita ao próximo, ou a Deus pelo pecado. No Livro dos Mil Provérbios: “1. Cumpre a satisfação
de acordo com o que tens pecado; 2. Se tiveres comido muito, satisfaz comendo pouco; 3. Se tens
pecado por nobres vestimentas, satisfaz com humildes vestes; 4. Se com pouco amor pecas, cumpre a
satisfação com grande amor; 5. Do tempo perdido não podes fazer satisfação; 6. Se com a mão não
podes fazer satisfação, fá-la com a vontade; 7. A satisfação, a justiça, a penitência e a contrição são
primas; 8. Se estiveres tentado contra a expiação, ajuda-te com suas parentes; 9. A misericórdia satisfaz
com a justiça, sua irmã; 10. A satisfação com dinheiro não vale tanto quanto a penitência; 11. Se tens
pecado por ver e falar, satisfaz com o chorar; 12. Quanto maior a satisfação, maior a paixão; 13. Se
tiveres feito pecado em tudo, satisfaz tu de tudo com a penitência; 14. Quem pratica a satisfação bem
pede o perdão; 15. Se pecas com mau exemplo, satisfaz com bom exemplo; 16. Se pecas contra a
caridade, satisfaz com ela; 17. Para tal pecado, tal satisfação, por contrário; 18. Não podes fazer tão
grande satisfação quanto o for teu pecado; 19. Pede perdão do que com satisfação não podes cumprir;
20. Satisfaz a Deus porque tudo o que existe em ti é d’Ele, XXIV. Da Satisfação”.
77
a ton membrar e a ton poder,
que els dons a Déu
per ço que trastot sia seu
ab tot son feu.
o teu lembrar e o teu poder
ao dá-los a Deus
para que tudo seja teu
com todo o seu feudo.
Satisfaràs a ton sentir
a imaginar e consir
e en ço que Déus tenir
ab cor contrit e ab sospir,
de lo mal far,
e gran sia desirar
en Déus honrar.
Satisfarás o teu sentir,
o teu imaginar e o teu considerar
nisso que não deves ter
com o coração contrito e com suspiros,
do mal fazer,
e que grande seja o desejo
de honrar a Deus.
Satisfé concili a Déu
en tot ço que hi sia seu:
si no ho fas, mal te’n vendrà lleu
en tot quant has, e sera’t greu.
Oh concíli,
no et valdrà tresor ne cosí
a mala fi!
Satisfarás o Concílio a Deus
em tudo o que aí seja Seu:
se não o fazes, mal te virá rapidamente
em tudo o que tens, e te será grave.
Oh, Concílio,
não te valerá tesouro nem primo
para um mau fim!
Si lo concili bo no et sap
de santedat te faràs gap,
null bé menjaràs en ton map,
l’ira de Déu serà en ton cap.
Ah, robador,
no faces a Déu deshonor,
lo teu Senyor!
Se o Concílio bom não é sábio
de santidade, tornar-te-á vanglória,
nenhum bem comerá em tua toalha,
a ira do Senhor estará em tua cabeça.
Ah, ladrão,
não faças desonra a Deus,
o teu Senhor!
Consira quant t’ha Déus donat
e com te fa estar bastat
e quant és ço que l’has emblat;
si no ho saps, mala fuist nat,
hages consell
ab virtuts, no et dons del coltell,
hages cabdell.
Considera o quanto Deus te deu,
como te fez estar abastecido
e o quanto te foi roubado;
Se não o sabes, foste mau nascido.
Tenhas conselho
com virtudes, não és dono do cutelo,
tenhas liderança.
Si no satisfàs en aquest món
en infern iràs tan pregon
que de tot mal hauràs aon
e null bé no et serà entorn.
Se não satisfizeres neste mundo,
no Inferno irás tão profundamente
que de todo o mal terás abundância
e nenhum bem estará à tua volta.
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Ah, cavaller,
sies bo e valent guerrer
e va-hi primer!
Ah, cavaleiro,
sejas bom, valente guerreiro
e vá primeiro!
Qui no satisfàs a ton parente
d’aiçò en què no has nient,
no satisfàs, mas fentament;
sabràs-ho al traspassament,
can Déus dirà:
Qui no satisfà ço que ha
damnat serà!
Quem não satisfizer o teu parente
no que ele não tem,
não o satisfará, só fingidamente;
sabê-lo-ás no traspassamento94
quando Deus dirá:
Quem não satisfaz com o que tem,
danado estará!
Si satisfàs a ta honor
mais que a Déu, car és millor;
si a ell satisfàs amor,
ell te darà lo do major
de salvament,
on estaràs eternament,
alegrement.
Se satisfazes a tua honra,
mais a Deus, porque é melhor;
se a Ele satisfaz com o amor,
Ele te dará o dom maior
da salvação,
onde estarás eternamente
alegre.
Qui satisfà si ha raó,
no està pec, ne és moltó;
si al concili diu de no
no estarà verai ne bo.
E tot lo mal
qui li vendrà, serà hostal
e mal cabal.
Quem satisfaz, se tem razão,
não é estúpido, nem carneiro.
Se ao Concílio diz não,
não será verdadeiro nem bom.
E todo o mal
que lhe advier será casa
e mal principal.
IX
De Devoció
IX
Da Devoção95
Devoció, e on estats?
Poríem saber si vendriats
a est concili, se l’amats,
e que al papa tost digats
e al cardenal
què dona sots de llur hostal
per fair cabal?
Devoção, onde estais?
Poderíamos saber se virás
a este Concílio, se o amais,
e que ao papa logo direis,
e ao cardeal,
quem dará sua casa
para ganhar?
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Em português, a palavra traspassamento tem o mesmo sentido que a do catalão do século XIII
(traspassament): morte, passagem dessa vida (efêmera) para a outra (eterna).
79
Devoció, de volentat
siats cosina, de bontat,
d’enteniment e do bon grat,
e que no hi sia null barat
ne dir de no
al concili, com sia bo
de gran perdó.
Devoção, da vontade
sejais prima, e da bondade,
do entendimento e do bom grato,
e que ninguém seja fraudado
nem diga não
ao Concílio, porque é bom,
de grande perdão.
Devoció, lo conirar
e li sospir e li plorar
requeren a vós gran amar.
Prelats, barons, a escalfar
cascú vos port
en Ultramar, e siats port
de bon conhort.
Devoção, o considerar,
o suspirar e o chorar
requerem de vós um grande amar.
Prelados, barões, se inflamem;
que cada um vos porte
em Ultramar, e sejais porto
de bom consolo.
Devoció, tot quant havets,
sia amor, llausor e prets,
e si no faits quant far porets
fals e debades planyerets.
Vostre plorar
e els sospirs faits per enganar
contra bé far.
Devoção, que tudo quanto haveis
seja amor, louvor e preces;
e se não fazeis o quanto podeis,
falsa e inutilmente chorareis.
Vosso chorar
e suspiros, fazeis para enganar
contra o bem fazer.
Devoció, ara es parrà
si lo vostre plorar valrà,
e si no val, ah, qui creirà
vós e Ramon per paraulà
Devoção, agora parecerá
se o vosso chorar valerá,
e se não valer, ah, quem acreditará
em vós e em Ramon pela palavra
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“1. Se desejares ter grande devoção lembra, entende e ama freqüentemente as grandes nobrezas e
perfeições que Deus possui por essência e por obras; 2. Sem a santidade não podes ter devoção; 3.
Podes ter maior devoção contemplando do que falando; 4. A contemplação é a fonte de onde nascem
devotas palavras; 5. A devoção faz os olhos chorarem e o coração se alegrar; 6. A devoção satisfaz,
engorda a alma e debilita o corpo; 7. Com a devoção falas e participas com Deus; 8. Com a devoção
saberás se estás na graça de Deus; 9. Com a devoção pedes a Deus amor e com devoção Deus o dá;
10. A devoção te faz suspirar e o suspirar te faz amar; 11. Quem tem devoção possui todos os bens;
12. Tudo que precisas te é trazido por Deus pela devoção; 13. Com a devoção foge da tentação e terás
paz; 14. Tem devoção e terás Deus; 15. O maior inimigo que tem o pecado é a devoção; 16. O homem
devoto freqüentemente chora e tardiamente ri; 17. A devoção é filha da caridade e da piedade; 18.
Quem pede perdão com devoção não se fadiga; 19. Não podes ter melhor amigo que a devoção; 20. A
amizade sem devoção não dura; 21. Tem devoção e não terás pavor, Livro dos Mil Provérbios, XXIX. Da
Devoção”.
80
e per plorar!
Anats los altres enganar
e baratar!
e pelo chorar!
Ide aos outros para enganar
e fraudar!
Devoció, ara és temps
que per vós sia tal começ
e per lo Papa quint Clements
tot lo món ne sia jausents.
E si fallits,
qui us creirà per plors ne per crits
vostres bells dits?
Devoção, agora é tempo
que por vós seja tal começo
e pelo papa Clemente Quinto
todo o mundo fique contente.
E se falhares,
quem vos acreditará por choro e por gritos,
vossos belos ditos?
Ah, e què val gran caperó
en cap sens devoció?
ne què val menjar gras capó
emblat a son bon companyó,
per Déus honrat,
qui ab hom s’és aparentat
per amistat?
Ah, de que vale um grande barrete
na cabeça sem devoção?
E de que vale comer um grande capão
ao lado de seu bom companheiro
por Deus honrado,
com o qual seja aparentado
pela amizade?
Devoció, irai plorar
e al concili predicar
als senyors qui lo poden far;
e si vós hi volets anar
e m’ajudats,
cridarem tro sia alterats,
bé ordenats.
Devoção, ide chorar
e o Concílio pregar
aos senhores que podem fazer.
E se vós desejais ir
e me ajudar,
gritaremos até que sejamos ouvidos
e bem ordenados.
Devoció sens ardiment,
discreció, bo estament
e sens manera d’ardiment,
no valrà el concili nient.
Què nós farem?
de bons faits nos aparellem
quan hi irem.
Devoção sem coragem,
discrição, bom estamento
e sem maneira de coragem
de nada valerá o Concílio.
O que faremos?
De bons feitos nos preparemos
quando para lá formos.
Qui bé ama, no ha paor,
ne res no es té a deshonor.
Pus que Déus és servidor
al nostro hostal lleixem paor;
e ardiment
Quem bem ama, não tem pavor,
nem a nada que existe tem desonor.
Pois de Deus é servidor,
em nossa casa deixemos o pavor;
e coragem
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sia nostre pa e piment,
e bon talent.
seja nosso pão, pimenta
e bom talento.
X
D’oració
X
Da Oração96
Oració, venits ab nós
e que siam bons companyós.
Vós, preïrets Déus qui és bos
que ajut a faire sa honors,
per si honrar
e lo concili acabar
per Ultramar.
Oração, venhais conosco
e sejais boa companheira.
Peçais vós a Deus, que é bom,
que ajude a fazer Sua honra
para honrá-Lo
e o Concílio terminar
para Ultramar.
Oració, a Déu pregats
que al Papa dó volentats
com és lo poder que els ha dats,
als cardenals e als prelats,
e los barons,
e a totes religions
per faits bons.
Oração, a Deus rogais
que ao papa dê vontade
com o poder que lhe foi dado,
aos cardeais, aos prelados,
aos barões
e a todas as religiões97
para fazerem feitos bons.
Oració, qui prega Déu
que li perdó los pecats lleu
e el dó e no vol ésser seu,
lo concili li és molt greu;
va per camí
a hostal greu de mala fi,
vespre e matí.
Oração, para quem roga a Deus
que rapidamente lhe perdoe os pecados
e dá o que não deseja ser seu,
o Concílio é muito importante.
Ide pelo caminho
para a importante casa do mau fim,
véspera e manhã.
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“1. A oração sem a devoção não é verdadeira; 2. A oração edifica-se na devoção; 3. Não faças a Deus
oração contra a razão; 4. Se estiveres em pecado não faças a Deus oração sem contrição; 5. Cometes
perjúrio a Deus com a louca oração; 6. Mais freqüentemente prega a Deus por sua honra que pelo teu
bem; 7. A oração coletiva pode ser melhor que a individual; 8. A ira move Deus se falsamente pedes
perdão; 9. Quem prega e se desculpa acusa a si mesmo; 10. A oração no pensamento faz sua filha a
oração que sai da boca; 11. Com a pregação não esquecerás de Deus; 12. A oração sem amor não tem
valor; 13. Prega com esperança e espera com oração; 14. Quem cedo se cansa de pregar, cedo se cansa
de amar; 15. A paixão que tu tens quando começas a orar é vizinha do pecado; 16. Na oração usa
todas as forças de tua alma; 17. A oração é a consolação do homem pecador; 18. Todos os bens
terrenos não valem uma boa oração; 19. Não vendas oração por dinheiro; 20. Todos os demônios não
têm tão grande poder quanto uma boa oração, Livro dos Mil Provérbios, XXX. Da Oração”.
“Todas as religiões” são as diversas ordens da Igreja.
82
Oració, en mant hom sots
qui Déus prega, per ço dessots
plora, sospira al sanglots,
e de Déu no el cal una nots;
perquè fallits,
car est en hòmens mal nuirits
de bon faits dits.
Oração, muitos são os homens
que rogam a Deus, por suas desgraças
choram, suspiram com soluços
e a Deus não dão uma nota;
por isso, erram,
porque os homens estão mal educados
de bom feitos ditos.
Oració, si com pregats
ço que en boca vós formats,
en vostre cor mal pensats
com lo façats greument errats.
Res no valets,
car no faits lo bé que parlets,
e mal volets.
Oração, se pregais
o que em vossa boca formais,
em vosso coração mal pensais,
como fazeis, gravemente errais.
De nada valeis,
porque não fazeis o bem que falardes
e mal desejais.
Oració, Déus diu de no
a qui prega ab tració,
ab sacrifici qui és bo
mala lo met en son mentó.
Anats dormir,
mantes vets m’havets fait fallir,
Déus escarnir.
Oração, Deus diz não
a quem prega com traição,
com sacrifício, que é bom,
coloca o mal em seu queixo.
Ide dormir,
muitas vezes me fizestes errar
e a Deus escarnecer.
Oració, a l’hom pec
diu hom «tàvec bavec»
e còm vos estats fals alberg!
Bé us fai qui us diu qui és famec!
Oració,
lo mal puja e lo bé no,
Déu vos perdó!
Oração, ao homem pecador
diz-se homem ambíguo
e convosco está em falso albergue!
Bem faz quem vos diz que sois famélico!
Oração,
o mal afaste e o bem não,
que Deus vos dê perdão!
Los apòstols predicaven,
Déus los dava que volien,
los infeels convertien
e per amar ells morien,
e per honrar;
trop vos havets venuda car
per obligar.
Os apóstolos pregavam,
Deus lhes dava o que desejavam.
Os infiéis convertiam
e, por amar, eles morriam,
e para honrar.
Haveis vos vendido muito caro
para esquecer.
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Oració, veig-vos xantar
molt e petits miracles far,
ab petit vos vei destorbar,
par que no hajats gran amar
mais en cosí,
en sejornar e en bon vi
e en aur fi.
Oração, vejo-vos cantar
muito, e pequenos milagres fazer,
por pouco vejo vos perturbar
para que não tenhais grande amar
como um primo,
e em descansar, em bom vinho
e em ouro, o fim.
Oració, ja no anets
al concili si no volets,
car Déus hi perdrà sos drets,
e si vós molt amar volets,
Déas vós valrà:
per vós lo concili es farà
e el bé en vendrà.
Oração, já não ides
ao Concílio se não desejais,
porque Deus aí perderá Seus direitos.
E se vós desejais muito amar,
Deus vos valerá;
por vós o Concílio se fará
e o bem virá.
Ramon, tot ço que pot far
per bon concili ordenar
ab la senyera, e preïcar
aquells qui el poden ordenar
per gran amor,
e qui han força major
per lo Senyor.
Ramon, faz tudo o que puder
para o bom Concílio ordenar
com o pendão, e pregar
àqueles que o podem ordenar
por grande amor,
e que têm a força maior
pelo Senhor.
XI
XI
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Senyor, tal pluja donats
que en amor, Papa, prelats,
el Sepulcre sia cobrats
e lo gran nom vostre honrats.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
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Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta! 98
Senhor, dai tal chuva,
que enamore o papa e os prelados,
o Sepulcro seja recuperado,
e o Vosso grande nome seja honrado.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
705
710
Segundo Josep Romeu i Figueras, estes versos parecem ter sido inspirados em um canto popular, uma
espécie de súplica para que venha a chuva.
84
Quan el concili er justats,
ver Déus, justícia donats
per conseller a los prelats,
car no hi serà null barats.
Al concili, ver Déus, aidats.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Quando o Concílio estiver reunido,99
verdadeiro Deus, dai justiça
para aconselhar os prelados,
porque ali ninguém será fraudado.
Ao Concílio, verdadeiro Deus, ajudai.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Prudència sia conseller,
que consella fait verdader;
a lo concili és mester,
sens ella no valrà diner.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Prudência, sejais conselheira
que aconselha o feito verdadeiro,
ao Concílio é necessária,
sem ela, de nada valerá dinheiro.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Fortitudo de gran confort
de lo concili sia port,
si no ho és, ja me’n desconhort,
car lo bé hi perdrà son sort.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Fortaleza, dai grande conforto,
do Concílio sejais porto,
se não fordes, sereis meu desconsolo
porque o bem perderá sua sorte.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Si lo concili ha son for,
temprança gran serà el tresor
car tot serà vestiti d’or
e de virtuts e de bon cor.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Se o Concílio tem sua força,
grande temperança será o seu tesouro
e tudo será vestido de ouro,
de virtudes e de bom coração.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Si la fe grans amics no ha
a lo cancili, què farà?
Lo concili es clamarà
a Déu car la fe no hi valrà.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
Se a fé não tem grandes amigos,
ao Concílio, o que fará?
O Concílio clamará
a Deus, porque a fé de nada valerá.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
99
Única estrofe do poema composta por oito versos.
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car pecat puja!
pois o pecado aumenta!
Qui el concili volrà honrar
esperança vulla menar,
car ab ella es porà acabar;
fals hom no hi porà contrastar.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Quem o Concílio desejar honrar,
a esperança pretenderá guiar,
porque com ela poderá acabar
e o falso homem não lhe oporá.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Caritat, venits aidar
al concili per lo bé far
e el Papa enamorar
e cardenals aconsellar.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Caridade, vinde ajudar
o Concílio, para o bem fazer,
o papa enamorar
e os cardeais aconselhar.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Avarícia és camí
per qui hom va a mala fi,
si és ella al concilí
ell no valrá un peitaví.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Avareza é caminho
para que o homem vá ao mau fim.
Se ela está no Concílio,
ele não valerá nada.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Glotonia és destral
ab colp mortal,
si al concili ha hostal
lo concili en res no val.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Glutonia é um machado
de golpe mortal.
Se no Concílio tem casa,
ele de nada vale.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Luxúria és pecat
per tot lo món escampat;
del concili sia gitat
e tot hom d’ella enamorat.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Luxúria é pecado
por todo o mundo disseminado;
que do Concílio seja expulsa
e de todo o homem dela enamorado.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
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Si al concili va ergull
ab null hom, ne en ell l’acull
tot hi serà de mal escull:
no hi cal anar Ramon Llull!
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Se ao Concílio vai o orgulho
com alguém, e nele é acolhido,
tudo aí será de mau estorvo:
não deve ir Ramon Llull!
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Accídia e neclijar
de far bé e destrobar
si al concili pot entrar
no hi cal null hom bo anar.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Acídia é negligenciar
fazer o bem, e perturbar.
Se no Concílio ela pode entrar,
nenhum homem bom deve ir.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Enveja és desijament
de fembra, castell e argent;
si lo concili és son parent
tot serà vestit de nient.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Inveja é desejo
de fêmea, castelo e prata.
Se o Concílio é seu parente,
tudo será vestido de nada.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
Ira és trista passió,
d’ella no ve consell bo;
si al concili ha maisó
lo concili no serà bo.
Senyor Déus, pluja,
per què el mal fuja,
car pecat puja!
Ira é triste paixão,
dela não vem conselho bom;
se no Concílio tem casa,
ele não será bom.
Senhor Deus, chova,
para que o mal fuja,
pois o pecado aumenta!
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