Tese Elio final - GEDMMA
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Tese Elio final - GEDMMA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ELIO DE JESUS PANTOJA ALVES REPERTÓRIOS E ARGUMENTOS DA MOBILIZAÇÃO POLÍTICA: um estudo sobre o Movimento Reage São Luís em São Luís-MA Rio de Janeiro Outubro de 2014 ELIO DE JESUS PANTOJA ALVES REPERTÓRIOS E ARGUMENTOS DA MOBILIZAÇÃO POLÍTICA: um estudo sobre o Movimento Reage São Luís em São Luís-MA Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Orientadora: Profa. Dra. Neide Esterci Rio de Janeiro Outubro de 2014 Alves, Elio de Jesus Pantoja. Repertórios e argumentos da mobilização política: um estudo sobre o Movimento Reage São Luís em São Luís-MA. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2014. xviii, 190f.:il.; 31cm. Orientador: Neide Esterci Tese (Doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2014. Referências Bibliográficas: f. 207-218. 1. Conflitos Socioambientais. 2. Povoados Rurais. 3. Territorialização. 4. Reage São Luis. I. Alves, Elio de Jesus Pantoja. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Antropologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia. III.Título. ELIO DE JESUS PANTOJA ALVES REPERTÓRIOS E ARGUMENTOS DA MOBILIZAÇÃO POLÍTICA: um estudo sobre o Movimento Reage São Luís em São Luís-MA Orientadora: Profa. Dra. Neide Esterci Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Sociologia). Aprovada em: Banca Examinadora: ______________________________________________ Profa. Dra. Neide Esterci (Orientadora) – PPGSA/UFRJ ___________________________________________________ Prof. Dr. José Ricardo Garcia Pereira Ramalho – PPGSA/UFRJ ____________________________________________________ Prof. Dr. Horácio Antunes de Sant`Ana Júnior – PPGCS/UFMA ____________________________________________________ Prof. Dra. Annelise Caetano Fraga Fernandez – PPGCS/UFRRJ ____________________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Salles Pereira dos Santos – UFRJ ______________________________________ Prof. Dr. André Botelho – PPGSA/UFRJ (Suplente) _________________________________________ Profa. Dra. Eliane Cantarino Odwyer – PPGA/UFF (Suplente) Rio de Janeiro Outubro de 2014 Aos meus pais, Antonio Lino (in memoriam) e à minha mãe Zuleide Pantoja, por tudo que tem me ensinando. AGRADECIMENTOS Agradeço à Deus e aos guias espirituais que me ajudaram a trilhar este caminho. À minha orientadora, Prof. Dra. Neide Esterci que desde os primeiros momentos de minha inserção no PPGSA aceitou-me como orientando. Durante estes anos de pesquisa tive a oportunidade ímpar de lhe ouvir e de aprender com suas experiências e suas orientações sempre muito preciosas durante nossos encontros e na escrita da tese. Muito obrigado Professora Neide! Agradeço também aos Professores do PPGSA, em especial, ao Prof. Dr. José Ricardo Ramalho, Prof. Dr. André Botelho, Prof. Dr. Michel Misse, Prof. Dr. Luiz Antonio Machado, e também aos professores Dr. Alexandre Werneck, Dra. Joana Vargas e Dr. Bernardo Ricupero. Durante as disciplinas ministradas por estes professores com temáticas diferentes da temática de minha tese tive a oportunidade de aprofundar no conhecimento sociológico e também de conhecer importantes autores e de participar das discussões de sala de aula que só enriqueceram a minha formação. Agradeço também aos funcionários da Secretaria do Programa do PPGSA, obrigado Angela, Verônica, e em especial, a Cláudia pela simpatia, pela receptividade e simplicidade em resolver os problemas nos momentos de dificuldades. Ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica - Novas Fronteiras (PROCADNF 21/2009), por meio do Projeto de Pesquisa: Territórios Emergentes da Ação Pública Local e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia Brasileira, coordenado pela Profa. Dra. Neide Esterci e pelo Prof. Dr. Horácio Antunes. Por meio das atividades deste programa, pude expor meu projeto e obter valiosas contribuições, realizando também “Missões de Estudo” contando com apoio financeiro para viagens de estudos e de pesquisa de campo. Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo financiamento da Bolsa Prodoutoral durante os primeiros 18 meses de estudo e também, à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA, pela Bolsa de Doutorado Fora do Estado do Maranhão que me possibilitou permanecer por mais tempo no Rio de Janeiro para cursar disciplinas do PPGSA como ouvinte até o primeiro semestre de 2013, permitindo também encontros mais frequentes com minha orientadora. Ao Professor Dr. Rafael Lima que no Rio de Janeiro me passou vários documentos de pesquisa sobre o Movimento Reage São Luís. Desse material obtive importantes informações oficiais do Governo do Maranhão sobre a instalação do polo siderúrgico. Agradeço também à Prof. Dra. Annelise Fernandez da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ pelas contribuições a esta pesquisa durante a Qualificação e nas reuniões de estudos no IFCS. Ao Advogado e militante do Reage São Luís José Guilherme Zagallo, por ter me recebido em seu escritório e me prestado riquíssimas informações, além de todo material que me passou de seus arquivos pessoais sobre o Reage São Luís. Aos colegas do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão – GEDMMA. Agradeço ao Professor e amigo Bartolomeu Rodrigues, por me incentivar na pesquisa sobre a situação dos moradores da Zona Rural II de São Luís, à Maiâna, ao Josemiro e ao Magno pela ajuda e pela agradável companhia na pesquisa de campo. Foi por meio do GEDMMA que pude elaborar minha proposta de pesquisa resultando nesta tese. Em especial agradeço ao amigo e Professor Dr. Horácio Antunes pela ajuda na pesquisa, pela sua disponibilidade mesmo com tantas atividades acadêmicas a cumprir. Agradeço suas sugestões, críticas, além de sua paciência e o seu apoio nos momentos de dificuldades. Depois da tese, junto com este Grupo terei novos desafios de pesquisa pela frente, e eles serão bem vindos. Muito obrigado professor Horácio e todos os amigos do GEDMMA! À Universidade Federal do Maranhão (UFMA), especialmente ao Departamento de Sociologia e Antropologia pelo empenho para que o meu processo de afastamento fosse possível durante o doutorado. À todos os colegas professores do Departamento e à UFMA agradeço pela oportunidade que me foi dada. Agradeço aos líderes dos povoados da Zona Rural II de São Luís, ao Alberto Cantanhede, o “Beto do Taim”, à D. Maria Máxima, ao Cloves, ao Jean e à Rosana pela receptividade, disposição e gentileza em ajudar na pesquisa. Agradeço também à todas as lideranças que entrevistei. Espero que este trabalho possa ser um instrumento de luta política em busca da dignidade e da justiça social. À Carolina, minha companheira e amiga, ao Angelo, meu filhote pela paciência e companheirismo. Peço desculpas pela minha “distância” em alguns momentos. Sempre juntinhos, na alegria e nos momentos de dificuldades que a vida nos apresenta. Obrigado Sheyla, Cláudio, D. Marlene, seu Nonato, Pirão, Silvana, Marlene e Fernandes pela força em São Luís. Aos amigos Rafael Gaspar pela leitura e crítica aos primeiros capítulos da tese, à Mariana Teixeira e à Lícia e à Roberta pelas “intervenções pedagógicas” com o Angelo. Não tem jeito, agora vocês são “tias” dele para sempre! Ao meu irmão Zeca por tudo que fez para que ficássemos bem no Rio. À Carina, à Isabelle e ao seu Heitor. Obrigado pelos momentos agradáveis dos fins de semana com vocês. Ao Igor e à Natália, pela companhia e pelas “conversas socioantropológicas” em casa e nos botecos da Lapa. Ao primo querido Abinael que reencontrei depois de anos, pela companhia e pelas longas e prazerosas conversas sobre literatura brasileira e claro, sempre relembrando de nossa infância e de nosso “modo de vida” lá da Barreira, a “terrinha” querida e jamais esquecida. Agradeço também ao Chico e à Ana, grandes amigos e ao André, à Jéssica, à Jeane. À Liduína pela gentileza e ajuda no processo de aluguel do agradável apartamento em que moramos no Rio. Por tudo que vocês fizeram por mim, muito obrigado! À minha grande e querida família maranhense. Minha mãe, Zuleide Pantoja, meu maior exemplo de educação, respeito, tolerância e principalmente meu exemplo de compreensão da “diferença”. Sempre iluminando meus ideais, minhas dúvidas e minhas convicções sobre a vida. Às minhas irmãs agradeço em especial à Mirian, pelos anos e anos de ajuda durante a minha vida acadêmica quando estudante na saudosa Belém do Pará. Obrigado pelo estímulo e pela credibilidade. À Socorro, Cleide e Regina e à Maria Amélia pelas energias positivas para que eu concluísse este trabalho. Aos meus irmãos Zé Luís, Luís Antonio, Pedro Jorge e Antonio Jorge, obrigado pelo afeto. Aos sobrinhos Fábio e Júnior, Naná e Rafaela pela força em São Luís. À minha queridíssima sobrinha Lorena, a antropóloga da família, sempre estimulando meu trabalho, ao Diego e ao Fabrício. Obrigado por fazerem parte de minha vida. Agradeço também ao Fábio meu cunhado e ao amigo Márcio Cordeiro pelos pelas estadias durante minhas vindas à São Luís para realização da pesquisa de campo. Ao Jonilton que está sempre atento aos acontecimentos da “Família Pantoja Alves” para reinventá-las e nos divertir. Todos vocês são muito importantes na minha vida. A todos sou muito grato. Elio Pantoja São Luís, MA Outubro de 2014. [...] Todo campo, o campo científico, por exemplo, é um campo de forças e um campo de lutas para conservar ou transformar esse campo de forças [...] Pierre Bourdieu RESUMO Esta tese está inserida na temática dos conflitos socioambientais e tem como objeto a experiência de mobilização política de povoados rurais localizados na Zona Rural II do município de São Luís do Maranhão, nas proximidades do Complexo Portuário de São Luís. Analisa o movimento de reação política de dois dos doze povoados rurais afetados em 2004 e 2005 pelo processo de tentativa de instalação do Polo Siderúrgico de São Luís, iniciativa do governo estadual, em parceria com a Companhia VALE. Focaliza especialmente as experiências dos povoados do Taim e do Rio dos Cachorros como unidades de observação, identificando lideranças que tomaram a iniciativa no sentido de contraposição ao projeto e protagonizaram a reação política que transcendeu o âmbito local. Neste sentido, o estudo reconstrói o processo de “dessingularização” que gerou a reação política descrevendo as alianças com organizações da sociedade civil: movimentos, entidades e Igrejas, enfatizando também a interlocução com órgãos governamentais ligados à esfera ambiental. A análise se volta para o processo de territorialização, permeado por relações de poder sobre o território em disputa, tendo como exemplo, a proposta de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. Considera os repertórios de ações coletivas, acumulados desde os anos de 1980, que contribuíram para a formação do Movimento Reage São Luís e descreve as formas de ação e os argumentos a partir de três campos: “político”, “científico” e “ jurídico”. Foram analisadas 19 entrevistas prestadas por membros do Reage São Luís, com líderes comunitários e com outros atores políticos importantes. Foram analisadas também Atas de Audiências Públicas, documentos diversos e matérias de jornais sobre a instalação do polo siderúrgico e sobre as ações do Reage São Luís. Procurou-se dar visibilidade às formas de mobilização política dos atores locais e suas intervenções que revelam a importância crucial que tem a experiência do Movimento Reage São Luís na constituição de espaços públicos de participação política e no debate socioambiental. Palavras-chave: Conflitos Socioambientais, Povoados Rurais, Territorialização, Ações Coletivas, Mobilização Política, Polo Siderúrgico, Reage São Luís. Résumé Cette thèse est ancrée dans une thématique des conflits socio-environnementale et a comme objet l’expérience de la mobilisation politique des villages ruraux qui vit dans la Zona Rural II du municipe de São Luís, à la proximité du complexe portuaire de São Luís du Maranhão. Nous analysons le mouvement de réaction politique des deux parmi douze villages ruraux affectés en 2004 et 2005 par le procès d’installation sidérurgique de São Luís, chantier du gouvernement de l’état, en partenariat, avec la compagnie Vale. Nous focalisons spécialement à des expériences du Taim et Rios dos Cachorros comme unités d’observation, en identifiant des forts dirigeants qui ont pris l’initiative dans le sens de contraposition au projet et mis en scène la réaction politique qui transcende le niveau local. En ce sens, l’étude reconstitue la « désingularisation » qui a généré la réaction politique décrivant les alliances entre les organisations de la société civile : mouvements sociaux, organisations civiles et églises, soulignant également le dialogue avec les organismes gouvernementaux liés à la sphère environnementale. L’analyse se tourne vers le processus de territorialisation, traversée par de relation de pouvoir sur le territoire en confrontation, en prenant comme exemple, la proposition d’installation de la Réserve extractive de Taua-Mirim. Nous considérons les répertoires d’actions collectives, accumulés depuis les années 1980, qui ont contribué à la formation du Mouvement Reage São Luís et décrit les formes d’action et des arguments de trois domaines : « politique », « scientifique » et « juridique ». Nous avons 19 interviews données par les membres de Reage São Luís, avec les dirigeants de la communauté et d’autres acteurs politiques importants. Nous avons aussi analysé de procès-verbal, divers documents et coupure de presse au sujet d’installation dans pole sidérurgique et des actions du groupe Reage São Luís. Nous essayons donner visibilité aux manières de mobilisation politique des acteurs locaux et leurs interventions qui témoignent de l’importance cruciale de l’expérience du mouvement Reage São Luís dans les constitutions des espaces publics pour la participation politique et le débat socio-environnemental. Mots-clés : Conflits, socio-environnementaux, villages ruraux, territorialisation, les recours collectifs, la mobilisation politique Polo acier, Reage São Luís. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 “Besta Fera”: imagem usada como símbolo de contestação pelo Comitê de Defesa da Ilha nos anos 1980 50 Esquema 1 “Campos” acionados pelo Reage São Luís 114 Gráfico 1 Público mensal das atividades do Movimento Reage São Luís 123 Figura 2 Protesto pela anulação da Audiência Pública em dezembro de 2004 no povoado Vila Maranhão Figura 3 Associação de Bostrychia, Caloglossa e Catenella crescendo sobre Rizóforos de Rhizophora Mangle Figura 4 131 142 Manifestação dos povoados rurais e do Reage São Luís em Audiência Pública na Vila Maranhão em 13 de dezembro de 2004 161 LISTA DE MAPAS Mapa 1 Localização do Complexo Portuário de São Luís-MA e sua integração com as minas de ferro no sudeste do Estado do Pará através da Estrada de Ferro CarajásItaqui da Companhia Vale Mapa 2 16 Localização da área para instalação do polo siderúrgico de São Luís, em destaque as Áreas de Influência Direta (AID) do empreendimento siderúrgico 59 Mapa 3 Planta Geral de Locação do Polo Siderúrgico de São Luís 61 Mapa 4 Limites das áreas sob influência das usinas do polo siderúrgico de São Luís 140 Mapa 5 Área proposta para a criação da RESEX de Tauá-Mirim (São Luís-MA) 189 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Lista de entrevistados 32 Quadro 2 10 maiores siderurgias do mundo em 2003 56 Quadro 3 Reformulações no ordenamento territorial do Distrito Industrial de São Luís – DISAL, entre 1974 e 2004 92 Quadro 4 Campo Sociopolítico: atores singulares 118 Quadro 5 Campo Sociopolítico: atores coletivos que compuseram o Movimento Reage São Luís 120 Quadro 6 Público das atividades do Reage São Luís entre outubro de 2004 e julho de 2006 122 Quadro 7 Atividades de mobilização do Reage São Luís entre dezembro de 2005 e julho de 2006 126 Quadro 8 Cronograma de Ações Estatais 128 Quadro 9 Cronograma de Resistência 129 Quadro 10 Povoados rurais que seriam deslocados para instalação do Polo Siderúrgico de São Luís-MA (2004) 146 Quadro 11 Perfil da formação profissional da coordenação do Reage São Luís em 2004 148 Quadro 12 Comparação de impactos sociais e ambientais de projetos siderúrgicos entre Vitória (ES) e São Luís (MA) 151 Quadro 13 Audiência Pública sobre Alteração do Zoneamento de São Luís (2004-2005) 162 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABAS Associação Brasileira de Águas Subterrâneas ABDIB Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústria de Base ADA Área Diretamente Afetada AGEMA Associação dos Geólogos do Maranhão AI-5 Ato Institucional Número 5 AID Área de Influência Direta Alcoa Companhia Americana de Alumínio AMAVIDA Associação Maranhense para a Conservação da Natureza AMZA Amazônia Mineração S/A ASSACRE Associação Agrícola do Cristo Redentor BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAEMA Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão CEBs Comunidades Eclesiais de Base CEMOP Central de Movimentos Populares (CEMOP CNPT Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais COPAMA Cooperativa de Pescadores Artesanais do Maranhão CPT Comissão Pastoral da Terra CUT Central Única dos Trabalhadores DhESCA Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais DISAL Distrito industrial de São Luís EIA-RIMAS Estudos e Relatório de Impacto Ambiental EIV Estudo de Impacto de Vizinhança EMAP Empresa Maranhense de Administração Portuária Funasa Fundação Nacional de Saúde GEDMMA Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente GEIP Grupo Executivo para Implantação do Polo Siderúrgico GTA Grupo de Trabalho Amazônico IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IIRSA Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana IMARH Instituto Maranhense de Recursos Hídricos IMCBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ITERMA Instituto de Terra do Maranhão MONAPE Movimento Nacional de Pescadores MST Movimento Sem Terra NIMBY Not in my backyard OAB Ordem dos Advogados do Brasil ONGs Organizações Não-Governamentais PAC Programa de Aceleração do Crescimento Econômico PFC Projeto Ferro Carajás PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados PT Partido dos Trabalhadores RBJA Rede Brasileira de Justiça Ambiental RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentável RESEX Reserva Extrativista SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SMDH Sociedade Maranhense de Direitos Humanos SNUC Sistema Nacional de Unidade de Unidade de Conservação UEMA Universidade Estadual do Maranhão UFMA Universidade Federal do Maranhão UNMP União Nacional por Moradia Popular (UNMP) USIMAR Usina Siderúrgica do Maranhão SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 16 1 O “MEIO AMBIENTE” COMO QUESTÃO SOCIAL: trajetórias e experiências de movimentos sociais de resistência à instalação de projetos industriais em São Luís-MA ................................................................................. 40 1.1 Papel político das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e do Comitê de Defesa da Ilha .............................................................................. 44 2 DA “BESTA FERA” À PRETENSÃO DE “GIGANTES”: atores comerciais globais e a instalação de uma siderúrgica em São Luís-MA ............................. 53 2.1 Polo Siderúrgico de São Luís: contexto e descrição do projeto ........................ 53 2.2 Atores sociais globais na disputa territorial para construção do polo siderúrgico de São Luís ......................................................................................... 55 3 AÇÕES COLETIVAS DE CONTESTAÇÕES ACERCA DO POLO SIDERÚRGICO DE SÃO LUÍS-MA .................................................................. 66 3.1 “Dessingularização”: elementos teóricos sobre o viés pragmatista das ações coletivas .................................................................................................................. 68 3.2 Ações Coletivas: marcos teóricos e experiências de contestações acerca do polo siderúrgico de São Luís (2004 e 2005) ......................................................... 73 3.3 O “Zoneamento” como processo de territorialização: o debate mobilizador acerca do polo siderúrgico de São Luís ............................................................... 78 3.4 Link na formação de um movimento de contestação ......................................... 85 3.5 O papel político do Conselho da Cidade de São Luís na contestação à proposta de alteração da Lei de Zoneamento de São Luís para viabilização do polo siderúrgico ................................................................................................ 87 3.5.1 Entendendo o caso ................................................................................................. 90 3.6 O papel político da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) ................ 93 3.7 O papel político das associações de moradores da Zona Rural de São Luís: das unidades básicas de organização à formação de atores coletivos ............... 96 3.8 A “dessingularização” do Taim e do Rio dos Cachorros ................................... 97 4 O MOVIMENTO REAGE SÃO LUÍS: um perfil de um movimento social contemporâneo....................................................................................................... 104 4.1 Caracterizando o Reage São Luís: repertórios da mobilização política, argumentos científicos e jurídicos ........................................................................ 108 4.1.1 O “Campo” sociopolítico: repertórios da mobilização política............................... 114 4.1.1.1 “Vaias e protestos marcaram a reunião para tratar da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo da Zona Rural”: a Audiência Pública de 13 de dezembro de 2004 ......................................................................................................................... 129 4.1.2 O “Campo” Científico: argumentos técnico-científicos na disputa política envolvendo a instalação do polo siderúrgico de São Luís....................................... 134 4.1.2.1 Os estudos preliminares do Governo do Maranhão e da Companhia Vale do Rio Doce......................................................................................................................... 137 4.1.2.2 Reage São Luís - argumentos científicos de contestação ao polo siderúrgico ....... 144 4.1.3 O Campo Jurídico.................................................................................................... 153 4.1.3.1 As ações estatais ...................................................................................................... 154 4.1.3.2 Ações do Reage São Luís......................................................................................... 155 4.1.3.3 Relatos de intervenções em audiências públicas .................................................... 159 5 PROPOSTAS ANTAGÔNICAS: a Reserva Extrativista de Tauá-Mirim versus Polo Siderúrgico ......................................................................................... 176 5.1 A RESEX de Tauá-Mirim: reviravolta na arena política local do meio ambiente? ............................................................................................................... 180 6 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 193 REFERÊNCIAS .................................................................................................... 207 16 INTRODUÇÃO Este trabalho analisa o processo de reação política por parte de moradores da Zona Rural do município de São Luís-MA que, em 2004, organizados em suas associações se aliaram a outras organizações sociais de São Luís compondo um movimento mais amplo de resistência à instalação de um polo siderúrgico, de iniciativa da Companhia Vale 1 e do Governo do Maranhão, a ser implantado no entorno do Complexo Portuário de São Luís2 (ver Mapa 1), em área definida legalmente, segundo o Plano Diretor do município de São Luís, como Zona Rural II. Mapa 1 – Localização do Complexo Portuário de São Luís-MA e sua integração com as minas de ferro no sudeste do Estado do Pará através da Estrada de Ferro Carajás-Itaqui da Companhia Vale. Fonte: http://appweb2.antt.gov.br/concessaofer/efc/mapa_efc.asp Trata-se de uma análise da reação política de atores locais em confronto com forças econômicas e políticas de agentes econômicos e políticos externos muito mais poderosos e com poder de manobra desproporcional ao dos habitantes daqueles pequenos “povoados rurais”. 1 A Vale é uma empresa brasileira privada de capital aberto desde 1997, quando foi privatizada. É a maior produtora de minério de ferro do mundo e a segunda maior de níquel, produzindo também cobre, carvão, manganês, ferro-liga, fertilizantes, cobalto e metais do grupo da platina. Atua também no setor de Logística, Siderurgia, Energia e Fertilizantes. Está presente em 37 países, possui acionistas distribuídos em todos os continentes e tem ações nas bolsas de São Paulo, Nova York, Hong Kong, Paris e Madrid. Até 2008 era denominada Companhia Vale do Rio Doce quando passou a usar o nome Vale; é a maior empresa do Brasil em volume de exportações. Foi criada em 1942, no governo Getúlio Vargas. (VALE, c2012). 2 O Complexo Portuário de São Luís é formado por três portos: Porto de Itaqui (administrado pela estatal estadual Empresa Maranhense de Administração Portuária – EMAP), Ponta da Madeira (pertencente à Cia. Vale) e Porto da Alumar (pertencente ao Consórcio de Alumínio do Maranhão, formado pelas empresas Alcoa, BHP Billiton e Rio Tinto Alcan). Está localizado na baía de São Marcos, a 11 km do centro de São Luís, capital do Maranhão. 17 Entre estes agentes externos estão, para citar apenas os principais, a Companhia Vale, em parceria com a maior siderúrgica chinesa, a Baosteel Shanghai Group Corporation, além de empresas como a siderúrgica francesa Arcelor, a sul-coreana Pohang Steel Company-Posco, a alemã ThyssenKrupp, até então em processo de negociação, além do próprio governo brasileiro, interessado na viabilidade do projeto. O presente trabalho está centrado na análise dos seguintes pontos: os repertórios de mobilização de lideranças e das organizações comunitárias da Zona Rural de São Luís, as estratégias e as alianças construídas com outras entidades de São Luís. Procura analisar, assim, a constituição do movimento, seus mecanismos de compartilhamento de interesses, as alianças e coalizões que se formaram no confronto aos agentes representantes do empreendimento siderúrgico e as forças que se aliaram aos povoados rurais. Procura também mostrar que, entre as reivindicações do movimento de resistência ao polo, encontram-se reivindicações de outras formas de uso social dos territórios. A primeira destas reivindicações foi o pedido de instalação de uma reserva extrativista - a RESEX de TauáMirim, na mesma região onde o polo seria instalado. A reivindicação da instalação da RESEX, entretanto, é anterior ao debate sobre o polo siderúrgico e, com a perspectiva de o empreendimento ser viabilizado, a mobilização em defesa da RESEX foi retomada. De fato, desde 1996, já havia um acúmulo de discussões sobre o projeto da RESEX, sendo que a solicitação oficial para sua instalação foi feita em agosto de 2003. Era, portanto, uma discussão anterior ao debate sobre a instalação do polo siderúrgico e que foi incorporada ao processo de resistência. Uma segunda reivindicação surgiu mais recentemente, em 2012, encampada pelo Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais: trata-se do Projeto de Lei de Iniciativa Popular Sobre Território Pesqueiro (MOVIMENTO DOS PESCADORES E PESCADORAS ARTESANAIS, 2002). As reivindicações de uso social dos territórios se constituem como instrumentos de luta política e estratégia de ação política na busca de reconhecimento da população local no sentido de garantir direitos de permanência nas áreas que têm sido alvo de políticas de zoneamento industrial. A pesquisa documental refere-se principalmente às atividades desenvolvidas pelo movimento de resistência, o Reage São Luís contra à instalação do polo siderúrgico entre 2004 e 2005, notando-se a adesão de pelo menos 40 entidades de São Luís e de outras organizações nacionais conectadas à rede de Movimentos e de instituições nacionais e internacionais. Considera, entretanto, também as experiências dos movimentos de resistência dos anos de 1980, principalmente, movimentos que se constituíram para resistir à instalação de uma grande fábrica de alumínio da Companhia Americana de Alumínio (Alcoa). Esses movimentos do passado 18 serão analisados como parte dos repertórios de mobilização acionados no debate sobre polo siderúrgico, pois, nas mobilizações contra o polo siderúrgico, em 2004, os testemunhos dos anos de 1980 se fizeram presentes, trazendo ao público a memória daquela época quanto às consequências sociais e ambientais da instalação do polo para a cidade de São Luís. As lutas dos anos de 1980 tiveram forte influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e do Comitê em Defesa da Ilha, atores coletivos fundamentais nas mobilizações daquele período. Desenvolvimento da temática e construção do objeto É ainda restrita, embora crescente, a produção acadêmica sobre as maneiras pelas quais os grupos sociais locais reagem às forças econômicas que vêm se instalar na Amazônia e os constrangem, em vários sentidos econômicos, sociais e políticos. No contexto da expansão do desenvolvimento capitalista recente, em que grandes empreendimentos se instalam nos territórios ocupados historicamente por estes grupos sociais. É, portanto, na perspectiva de compreender e dar visibilidade às formas de “confrontação” como diria (OLIVIER DE SARDAN, 1997), destes grupos com os novos ocupantes, que o objeto e a problemática deste estudo estão situados. Procuro mostrar, no entanto, que este processo de confrontação, não pode ser compreendido sem que se leve em conta as circunstâncias e as conjunturas que se configuram como estruturas de oportunidades que resultaram de enfrentamentos políticos anteriores, sobretudo, dos chamados “ciclos de protestos pela redemocratização” (DOIMO, 1995; ALONSO; COSTA; MACIEL, 2008), que dinamizaram e descentralizaram, em alguma medida, os processos de tomada de decisão política. Os “ciclos de protestos” (exemplificados pelas diferentes formas de manifestação, tais como as passeatas, teatro popular, etc.), não raro, reprimidos fortemente pelo aparelho repressivo estatal, trouxeram à cena política, segmentos sociais da sociedade brasileira historicamente excluídos e referidos na literatura como “movimentos populares” (DOIMO, 2005) e pensados como representativos de “novos sujeitos coletivos”. Neste cenário foi construída uma série de canais e instrumentos institucionais de participação das pessoas, grupos sociais, organizações, e de novos canais de interlocução entre a esfera estatal e da sociedade, ampliando os espaços públicos de debate e confronto. Numa visão panorâmica, esse processo transcorre num longo período que se inicia nos anos de 1970 com os “movimentos populares” (DOIMO, 1995) e prossegue após os anos de 1990, trazendo ao centro da cena da “sociedade civil” brasileira, novas experiências democráticas, por meio 19 das manifestações e da construção de “consciências reivindicativas” (TELLES, 1994). Um dos exemplos importantes destes dispositivos institucionais criados após a Constituição Federal de 1988 é o Estatuto da Cidade3, acionado pelas organizações da sociedade civil de São Luís, como um instrumento importante de questionamento à viabilização legal do polo siderúrgico. A temática da tese se insere, portanto, no debate socioambiental, e remete à compreensão desse debate por duas vias processuais: a primeira, compreendendo este termo, como indicativo de um processo de inserção da problemática ambiental nas rotinas de mobilizações de associações surgidas concomitantes às lutas pela redemocratização nos anos de 1970, como sugerem Alonso, Costa e Maciel (2008, p. 29) “[...] quando a definição do problema ambiental passa das ciências naturais para as ciências humanas, com ênfase na relação entre processos sociais e naturais”; a segunda via, remete às preocupações ambientais que levaram os estudiosos a denominarem o processo de incorporação do meio ambiente na política, como “ambientalização”, “[...] um neologismo semelhante a alguns outros que têm sido usados nas ciências sociais para designar novos fenômenos, ou novas percepções dos fenômenos” (LOPES, 2004, p. 17). Tal como os termos “industrialização” e “proletarização”, enquanto fenômenos surgidos no Século XIX, a “ambientalização”, seria também, para Lopes (2004), um novo fenômeno da atualidade. A questão ambiental como problemática sociológica tem sido pensada a partir de dois acontecimentos importantes: a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, ocorrida em Estocolmo em 1972, que indica um primeiro recorte temporal no processo de consideração do “meio ambiente” como uma “questão global”, incorporada pelos governos e pelas instituições internacionais (LOPES, 2004) e a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992, 20 anos após a Conferência de Estocolmo, que resultou na elaboração da “Agenda 21”, um documento assinado por representantes de 170 países, propondo formulações e diretrizes para o “desenvolvimento sustentável”. (MELLO, 2006). No Brasil, este último evento ganhou uma importância significativa pelo fato de ter gerado um processo de mobilização dos governos estaduais e municipais quanto às orientações e diretrizes da “Agenda 21”. O processo histórico de “ambientalização” implicou, simultaneamente, transformações importantes no âmbito das agências institucionais do meio ambiente, entre os anos de 1970 e o final do século XX. As instituições resultantes dessas transformações se “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. (BRASIL, 1988). 3 20 consolidaram principalmente a partir de meados dos anos de 1980, quando ocorreram mudanças significativas também no comportamento das pessoas com relação aos problemas ambientais, a exemplo das iniciativas de educação ambiental e de participação política ambiental. Ainda com relação ao “fenômeno da ambientalização”, a literatura sobre o tema considera que no Brasil ele é gerador de novas formas de conflito - os “conflitos ambientais”, que podem ser produzidos quando pelo menos um dos grupos em questão tem a continuidade das suas formas sociais de produção e de apropriação do meio, ameaçada. Quer dizer, remetem mais diretamente aos impactos indesejáveis provocados por processos de industrialização que, no caso deste estudo, estão ligados à cadeia de produção mínero-metalúrgica. Configuram-se, portanto, situações em que o desenvolvimento destas práticas compromete, por seus efeitos, a manutenção de práticas de reprodução de outros setores sociais (ACSELRAD, 2004). Conforme aponta Acselrad (2004, p. 26), esse tipo de conflito, frequentemente, envolve: [...] Grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem, ameaçada por impactos indesejáveis [...] decorrentes do exercício de práticas de outros grupos. O conflito pode derivar da disputa por apropriação de uma mesma base de recursos ou de bases distintas, mas interconectadas por interações ecossistêmicas mediadas pela atmosfera, pelo solo, pelas águas etc. Tais conflitos têm sido classificados podem ser classificados da seguinte forma: “conflitos ambientais distributivos” - indicando as graves desigualdades sociais no acesso e uso de recursos naturais; e “conflitos ambientais espaciais” – referentes a efeitos ou impactos ambientais que atingem os territórios de outros agentes ou grupos sociais, como são, por exemplo, aqueles causados pelas emissões gasosas e poluição das águas; e “conflitos ambientais territoriais” – que é o caso em que há “sobreposição de reivindicações” por seguimentos sociais distintos sobre um mesmo recorte espacial (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010). Os conflitos assinalados são também fruto da percepção e da interpretação dos atores sociais sobre a conjuntura na qual estão imersos na medida em que eles os transformam em problemas e os formulam publicamente. Leite Lopes (2004), baseado em estudos de caso no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Argentina, sugere analisar as percepções da poluição como “processo social” partindo de três momentos ou dimensões. Um primeiro momento seria de “naturalização”, ou seja, de incorporação no cotidiano dos efeitos da poluição sendo tais efeitos atribuídos a uma funcionalidade da “ideologia desenvolvimentista” (LEITE LOPES, 2004). Neste momento a coletividade afetada não problematiza a situação. Um segundo momento seria de “desnaturalização”, quando os afetados apresentam algum nível de “estranhamento” e se 21 manifestam com relação aos riscos e perigos de contaminação. Num terceiro momento, os afetados “reelaboram” a funcionalidade da poluição e nesta situação, com um nível maior de organização, estabelecem acordos e parcerias com os poluidores. Nesses estudos, verifica-se frequentemente a relação entre a percepção da poluição e a proximidade da fonte poluidora. Em certas circunstâncias, são os moradores vizinhos de indústrias que percebem de imediato, os efeitos da poluição: sensações de incômodos, doenças. São identificados como consequências da poluição industrial. Entretanto, como chama atenção este autor, não se deve interpretar esses “momentos” segundo uma lógica progressiva ou etapas sucessivas. Importa destacar também que nem sempre o sofrimento das pessoas resultante dos efeitos da poluição é uma condição para despertar o interesse público. Nesse sentido, “poluição”, “risco’ e “perigo”, diz este autor. “[...] são categorias construídas social e culturalmente dentro de cada realidade local” (LOPES, 2004, p. 228). Conforme propõe Lenoir (1996, p. 97): [...] aparecimento de um problema social resulta de duas séries de fatores das transformações que afetam a vida cotidiana dos indivíduos na sequência de diversas reviravoltas sociais e cujos efeitos diferem segundo os grupos sociais; no entanto, essas condições objetivas apenas darão origem a um problema social quando este chegar a receber uma formulação pública. As evidências e sugestões propostas por Lopes (2004) e a formulação de Lenoir (1996) convergem para um ponto fundamental de interesse desta pesquisa: a formulação pública da questão social, em grande medida é uma das questões estruturante desta tese e que tratarei de descrever e analisar ao longo dos capítulos seguintes. A reação dos povoados do Taim e Rio dos Cachorros ao projeto do polo siderúrgico de São Luís Em 2004, tomei conhecimento do projeto de instalação do polo siderúrgico no município de São Luís, proposto pela Companhia Vale e pelo Governo do Estado do Maranhão, para o qual medidas administrativas já estavam sendo providenciadas4. Inicialmente, tive acesso às informações divulgadas por entidades da sociedade civil e por profissionais liberais inseridos 4 Em 2001 foi assinado o Primeiro Protocolo de Intenções entre o Governo do Maranhão e a Companhia Vale com vista à instalação de três usinas siderúrgicas (CONCEIÇÃO, 2009); em novembro de 2004, foi assinado o Protocolo de Intenções pela Prefeitura de São Luís, porém, a administração municipal ainda teria que realizar alterações no seu Plano Diretor para que a área pretendida pelo projeto fosse classificada como Zona Industrial (ZAGALLO et al., 2004). 22 no Movimento Reage São Luís e que divulgavam as notícias por meio de informativos e panfletos nos ambientes de debate5, a exemplo do trecho abaixo. [...] a Companhia Vale do Rio Doce, o Governo do Estado do Maranhão e a Prefeitura de São Luís anunciaram a pretensão de instalar um Pólo Siderúrgico composto por 3 usinas siderúrgicas com capacidade de produção de 7,5 milhões de toneladas anuais de placas de aço na Ilha de São Luís, voltadas à exportação, totalizando 22,5 milhões de toneladas/ano, e duas gusarias, em uma área de 2.471,71 hectares localizada na Ilha de São Luís, próximo ao Porto do Itaqui (ZAGALLO et al., 2004). Os dados sobre os “Impactos sociais e ambientais” a que tive acesso inicialmente, diziam respeito às três usinas siderúrgicas que seriam instaladas em uma área de 2.471,71 ha, instalações que implicavam no “deslocamento compulsório”6 de 14.400 pessoas residentes em 12 povoados. O empreendimento, segundo informativo dos membros do Movimento Reage São Luís, seria “a maior agressão ambiental já realizada no Maranhão” (ZAGALLO, 2004). Na pesquisa bibliográfica e documental relativa a situações de impactos sociais e ambientais provocados por projetos industriais em São Luís, no primeiro momento tive acesso a três importantes obras que me ajudaram a compreender o cenário mais amplo dos processos tomados para observação. Na lista de referência sobre o assunto, tive acesso aos seguintes trabalhos: “Alcoa na Ilha” (EGLISH, 1984), “Carajás, usinas e favelas” (GISTELINK, 1988) e “Terra Prometida: as Comunidades Eclesiais de Base e os conflitos rurais” (ADRIANCE, 1996). Os registros elaborados por estes autores refletem o contexto dos conflitos que surgiram nos anos de 1980, sendo, portanto, trabalhos importantes para ajudar a compreender as ações reativas de organizações e de movimentos de resistência locais que inclusive ganharam 5 Entre o final de 2004 e 2006, coletei informativos, notas, panfletos, dentre os quais cito alguns exemplos: Considerações preliminares sobre a implantação de um polo siderúrgico na Ilha de São Luís (ZAGALLO, 2004), documento em cuja folha de rosto eram listadas as seguintes entidades parceiras ou aliadas: Associação dos Geólogos do Maranhão (AGEMA); Instituto Maranhense de Recursos Hídricos (IMRH); Associação Maranhense para a Conservação da Natureza (AMAVIDA); Central de Movimentos Populares; Forum de Saneamento Ambiental; Forum Maranhense das Cidades; Sindicato dos Urbanitários do Maranhão; União por Moradia Popular;. Além deste, há um documento mais denso sobre os “impactos sociais” e “ambientais” intitulado Considerações sobre o risco geológico associado à implantação de um polo siderúrgico em um ambiente insular, elaborado pela AGEMA e IMRH (2004). Há outros inúmeros documentos de conteúdos informativos sobre o polo que também tivemos acesso nesse período: Que Cidade Queremos? (ABAS-MA; AGEMA, 2004); Comunicado: 1. Impactos ambientais urbanos no Brasil; 2. Impactos ambientais em São Luís (Fórum Maranhense de Organizações da Sociedade Civil – FMOSC, s/d); Nota Técnica – Jun/2004/CS Polo siderúrgico em São Luís (José de Ribamar Costa e Silva, Geógrafo - Brasília); Polo Siderúrgico em São Luís: Impacto Social e Riscos Ambientais (José Guilherme Zagallo, Advogado; São Luís, 2004). Comunidade do Taim rejeita Polo Siderúrgico (Ed Wilson, Jornalista; São Luís, s/d). 6 Conforme Magalhães (2007, p. 14), “deslocamento compulsório” designa “o processo pelo qual determinados grupos sociais, em circunstâncias sobre as quais não dispõem de poder de deliberação, são obrigados a deixar ou a transferir-se de suas casas e/ou de suas terras. Há, portanto, um conteúdo de cerceamento do poder decisório no interior do próprio grupo social, advindo de uma intervenção externa”. Almeida (1996, p. 30), também define “deslocamento compulsório” como “o conjunto de realidades factuais em que pessoas, grupos domésticos, segmentos sociais e/ou etnias são obrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares históricos de ocupação imemorial ou datada, mediante constrangimentos, inclusive físicos, sem qualquer opção de se contrapor e reverter os efeitos de tal decisão, ditada por interesses circunstancialmente mais poderosos”. 23 visibilidade em jornais de outros países. Sobre as questões ambientais, tirei bastante proveito do trabalho de Eglish (1984), uma vez que esta autora registrou a ação política dos movimentos sociais contra a instalação da fábrica da Alcoa em São Luís. Este trabalho inspirou a elaboração do capítulo no qual procuro tratar da trajetória do processo de resistência das organizações comunitárias da Zona Rural de São Luís. Posteriormente, tomei conhecimento do fato de que a autora do trabalho, conhecida como Irmã Bárbara Eglish, por ser uma missionária, membro da Congregação Irmãs de Notre Dame que havia chegado a São Luís em, 1960, tendo tido importante atuação na formação de lideranças comunitárias e na organização das CEB’s da Igreja Católica. No final de 2004, fomos convidados eu e o Professor Horácio Antunes (Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão – UFMA), a discutir com os alunos do Curso de Ciências Sociais da UFMA, a questão do polo siderúrgico, focalizando a situação dos moradores de “povoados rurais” a serem deslocados, em função da instalação da planta siderúrgica. Na condição de professores deste Departamento, formamos com os estudantes o Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA), no qual procuramos aliar o debate sobre a situação dos povoados, com discussões acerca de projetos de desenvolvimento e do processo de modernização do Complexo Portuário de São Luís. Entendíamos que, para compreender o que ocorria em termos locais, era necessário considerar as políticas de desenvolvimento do Governo Federal para a Amazônia Oriental7, que desde os anos de 1960 e 1970, tinham como meta a “integração” da região à econômica nacional. Iniciamos então, junto com os componentes do grupo, um conjunto de atividades de pesquisa, envolvendo trabalho de campo na Zona Rural de São Luís, incidindo principalmente na área portuária onde o polo siderúrgico seria instalado. Entre as primeiras pesquisas exploratórias de campo e leituras sobre as questões ambientais discutimos os chamados “Grandes Projetos de Desenvolvimento da Amazônia”, em especial o Projeto Ferro Carajás (PFC), dadas as importantes repercussões políticas e sociais do mesmo, e aos seus impactos na sociedade local. Em seguida, passei a coletar, informações sobre a questão do polo siderúrgico, a realizar levantamento bibliográfico específico sobre este tema8. A partir desta iniciativa obtive grande parte da documentação, que serviu de base para a formulação deste projeto de pesquisa. 7 A Amazônia Oriental é composta pelos Estados do Pará, Amapá, Tocantins e parte do Estado de Mato Grosso e parte do Estado do Maranhão. 8 As atividades do GEDMMA iniciaram em 2005 quando elaboramos o Projeto de Pesquisa “Modernidade, Desenvolvimento e Consequências Sócio-Ambientais: a Implantação do polo siderúrgico na Ilha de São LuísMA”, aprovado pelo Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Nesse mesmo período, o GEDMMA foi cadastrado no Diretório de Pesquisa do CNPq. O projeto buscou investigar a implantação do projeto do polo 24 Na época, os jornais locais chamavam atenção para a magnitude do projeto do polo siderúrgico, em termos de investimentos e de projeção de produção: o “Maranhão vai ser o maior produtor de aço”, destacava o “Jornal O Imparcial” do dia 27 de maio de 2004, após a viagem do Governador do Maranhão, à época, José Reinaldo Tavares, à China com a comitiva do Presidente Lula (MARANHÃO..., 2004). De fato, o governo maranhense mostrava-se bastante convicto da viabilidade do projeto. A Vale ajudará junto com a Baosteel na formação dos operários, dos engenheiros, de todos que vão trabalhar nesse grande projeto siderúrgico que vai realmente mudar a face industrial do Maranhão [...] O projeto avançou muito e não há mais o que duvidar. O Maranhão está entrando numa nova era de industrialização em que virão muitos parceiros. E, com isso, quem vai ganhar é a população do Estado, porque vai haver muito crescimento e a geração de emprego (TAVARES, 2004 apud MARANHÃO..., 2004). Com relação aos informativos produzidos pelas entidades, o que chamava atenção era o número expressivo de entidades envolvidas e a pluralidade das mesmas. O engajamento e a mobilização de entidades profissionais, associação de moradores, sindicatos, fóruns diversos, além de profissionais liberais (médicos, advogados, jornalistas, sociólogos, geólogos), intelectuais, pesquisadores de universidades, professores e funcionários públicos, convergindo em um movimento mais amplo que uniu diversos atores sociais, contrários à instalação do polo siderúrgico. Inicialmente procurei identificar a complexa rede de entidades que compunha a base do Movimento Reage São Luís, unindo as associações de moradores dos povoados da Zona Rural que seriam atingidos pelo projeto do polo siderúrgico. As entidades, tão distintas, como, por exemplo, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MA), Sindicatos dos Ferroviários, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e Instituto Maranhense de Recursos Hídricos (IMRH). Isto são, apenas algumas das entidades que ilustram a pluralidade na base de formação do movimento. Da leitura desse material empírico sobre a mobilização que ocorria em São Luís, passei a conhecer a situação dos moradores da Zona Rural e dar mais atenção, em especial, as organizações daqueles povoados. Em 2012, a imprensa local, divulgava o projeto de instalação do polo. As localidades afetadas eram em geral designadas por “povoados”, enquanto, as lideranças a elas se referiam usando o termo “comunidades”. O uso dos termos “povoado” e “comunidade” ajudaram a conferir identidade distintiva a esses territórios historicamente ocupados pela população local e à fazer reconhecer a noção de que neles havia um “modo de siderúrgico no município de São Luís-MA, suas consequências socioambientais e sua relação com a demanda de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. 25 vida” a ser defendido. Além disso, esses termos revelaram também as distinções, sobretudo quanto ao histórico do processo de ocupação, de uso da terra e na forma de sociabilidade e coesão interna, assim como, as relações entre os diferentes núcleos de povoamento 9. Esses termos foram muito utilizados pela imprensa e na própria dinâmica de mobilização dos movimentos de resistência ao polo siderúrgico, de modo que, posteriormente, com o avanço da pesquisa documental, me interessei em explorar o nexo político na dinâmica de mobilização entre as organizações, principalmente as associações de moradores, fóruns e Organizações NãoGovernamentais (ONG’s) além dos órgãos de governo que mantiveram um canal de diálogo permanente com as lideranças destes povoados. Na prática, passei a questionar: como as associações de moradores do Taim e do Rio dos Cachorros haviam conseguido dar visibilidade política à sua situação. Havia uma variedade muito grande de organizações envolvidas naquele debate, tornando difícil no debate entender o emaranhado de relações políticas entre elas. Em 2011, sistematizei o conjunto das principais entidades por meio de uma listagem, na qual ainda precisei fazer muitos recortes em função da complexidade da teia de relações do movimento. Fui percebendo a evolução e a dinâmica da mobilização, notando nos registros, as ações coletivas e as alianças com as ONGs, sindicatos e além de outras instituições como universidades, órgãos do governo e parlamentares, construídas pelas lideranças. Entre leituras do material de campanha das entidades que compuseram o movimento, conversas informais e entrevistas com ativistas ligados ao movimento contra o polo siderúrgico, chamaram minha atenção a riqueza de dados dos informativos de divulgação sobre os “impactos ambientais” e “sociais”, estes sistematicamente elaborados e tecnicamente qualificados. Ao me interessar pela produção desses informativos, passei a me preocupar mais com a composição da “base social” e o perfil desse movimento que contava com um grupo de experts ou algo como um “núcleo” de direção com qualificação técnico-científica. Esta característica ganhou relevância na comparação com outros movimentos sociais atuais, pois, colocou a resistência num outro patamar de disputa. Havia uma disputa, por assim dizer, no âmbito discursivo, cuja crítica se fazia pela via política, quer dizer, dos interesses políticos e econômicos em jogo, aliada ao ativismo, assim como, pela crítica fundamentada no conhecimento científico e, também, no âmbito jurídico, deste modo, questionava-se a legalidade das decisões referentes às questões ambientais. A compreensão era de que haveria “impactos socioambientais incalculáveis”. O movimento, ao produzir crítica ao projeto, levou 9 Sobre o processo de ocupação e sociabilidade entre os povoados mais antigos dessa área de São Luís, ver a Dissertação Mestrado de Sislene Costa da Silva, intitulada “Filhos do Taim: estratégias para defesa e uso de um território”. (SILVA, 2009). 26 seus militantes a atuar também no sentido de recolher, no “campo científico”, as evidências, constatações e provas de experiências passadas e atuais de impactos ambientais e sociais em São Luís, e em outras cidades brasileiras, produzidos por empreendimentos siderúrgicos. Os exemplos mais recorrentemente acionados de poluição ambiental, eram associados à situação de saúde pública de cidades como Cubatão-SP e Vitória-ES e Volta Redonda-RJ. A produção da crítica, entretanto, era traduzida em linguagem que pudesse ser acessível ao público em geral. Fui me interessando pelo diálogo entre as lideranças comunitárias dos povoados afetados e outros setores engajados no debate ambiental, a partir da cidade de São Luís. Terei oportunidade de mais adiante discorrer, detalhadamente sobre os documentos, mas adianto um trecho desses registros para ilustrar o teor dos informativos produzidos pelo movimento: [...] Além dos riscos ambientais, caso sejam implantadas uma ou mais siderúrgicas em são Luís, o impacto social também será muito forte. De fato, seriam removidas 14.400 pessoas de 11 comunidades rurais hoje existentes na área, que perderiam ao mesmo tempo seus empregos e moradias, e em contra partida seriam gerados somente 10.500 empregos diretos com a operação das usinas, e mesmo assim, grande parte destes empregos seria ocupada por pessoas de outros Estados (ZAGALLO, 2004). Coletei inúmeros informativos, panfletos, alguns sem identificação de sua origem, mas relativos ao debate do polo siderúrgico, além disso, textos com trechos publicados em jornais, assim como fotocópias de artigos publicados, desde jornais de menos circulação e jornais de maior circulação, até informativos de circulação mais restrita em São Luís. Do acúmulo de leituras, selecionei aquelas mais relevantes, que apresentavam informações mais consistentes, utilizando o argumento ambiental, entremeado de referências aos impactos sociais, principalmente relacionados à situação da população a ser deslocada. A partir dessa leitura, relacionada tanto ao polo siderúrgico, em si, quanto à história da associação do polo com os projetos da Vale e da Alcoa que vem desde os anos 80, percebi que estes discursos teriam que ser incluídos como parte do material empírico a ser analisado com vistas a compor o “repertório de contestação” (TILLY, 1978; 1996), ou seja, repertórios da argumentação usados para contestar a viabilidade de um projeto. O aumento populacional e a falta de infraestrutura urbana, a baixa capacidade de abastecimento de água e o aumento do consumo implicado pela presença da siderúrgica, entre outros questionamentos foram levantados pelas entidades que compuseram o Reage São Luís. A leitura dos informativos foi importante para que eu pudesse compreender inicialmente a dinâmica de mobilização do movimento, sobretudo no que se refere ao embasamento em estudos científicos, que municiavam seu discurso no debate público. 27 As notícias sobre o projeto do polo siderúrgico tiveram maior visibilidade a partir de 2004, quando as lideranças dos povoados criaram vários canais de discussão e debates, tanto institucionais, no âmbito governamental, quanto através de canais constituídos por ONGs. Buscaram também apoio em órgãos governamentais na esfera federal. Na época, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT)10 tiveram um papel político importante na interlocução entre as várias instâncias de governo e os movimentos sociais11. A manutenção permanente de uma relação dialógica com a esfera governamental conferiu importância ao movimento, sendo uma variável relevante para explicar o desempenho e a eficácia de suas ações. Outro argumento de contestação se referiu à reduzida quantidade de empregos gerados, em relação aos vultosos impactos sociais e ambientais a serem causados: seriam remanejados pelo menos 12 povoados localizados na Zona Rural II do município de São Luís, sendo eles, Vila Maranhão, Taim, Cajueiro, Rio dos Cachorros, Porto Grande, Limoeiro, São Benedito, Vila Conceição, Anandiba, Parnuaçu, Camboa dos Frades e Vila Madureira. Embora estes povoados fossem parte do município de São Luís e se localizassem relativamente próximos ao Complexo Portuário de São Luís e do centro da cidade de São Luís, é importante enfatizar que a base dos meios de vida da população permanece sendo a pesca artesanal, o extrativismo mineral (areia e pedra) e a pequena agricultura. Essas atividades articuladas com o uso da mão-de-obra familiar permitem caracterizar essa população como camponesa, cujo modo de vida se distingue, pois, do modo de vida urbano (SANT`ANA JÚNIOR; ALVES; MENDONÇA, 2007). Em 2004, os moradores afetados totalizavam 14.400 pessoas, 10 O atualmente denominado Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT) é um órgão que integra o Instituto Chico Mendes, tendo como objetivos: “promover pesquisa científica em manejo e conservação de ambientes e territórios utilizados por povos e comunidades tradicionais, seus conhecimentos e modos de organização social; e estudos sobre formas de gestão dos recursos naturais, em apoio ao manejo das Unidades de Conservação federais”. Foi criado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) em 1992. Após a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2007, o CNPT passou a fazer parte de sua estrutura, sendo renomeado e reestruturado em 2009 (portaria ICMBio 078/2009), possuindo sede na cidade de São Luís-MA. (CENTRO NACIONAL DE PESQUISA E CONSERVAÇÃO DA SOCIOBIODIVERSIDADE ASSOCIADA A POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS, c2014). 11 Segundo o depoimento de Alberto Cantanhede, liderança comunitária do povoado do Taim, os representantes dos povoados do Taim e Rio dos Cachorros, após pressionarem o governo estadual conseguiram agendar duas reuniões com o Secretário de Indústria e Comércio, colocando em questão a situação de ameaça dos moradores da área. Nessas reuniões não houve acordo, mas os representantes dos povoados deixaram claro ao governo que não estavam dispostos a negociar e que iriam recorrer a outras instâncias no sentido de resistir ao deslocamento dos povoados (Entrevista com Alberto Cantanhede em 11 jan. 2012). 28 distribuídas nos povoados a serem deslocados; em contrapartida, o empreendimento prometia a geração de apenas 10.500 empregos diretos. O que levou a uma maior mobilização, não somente pelas associações da Zona Rural, mas também por parte das organizações e entidades da sociedade civil de São Luís, como um todo, foi de fato a tentativa do governo municipal de converter 2.471,71 ha de terras da Zona Rural em Zona Industrial. Em 2005, a contestação ao polo siderúrgico ganhou reforço com a presença dos relatores da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DhESCA)12, em São Luís. Atendendo à solicitação do Movimento Reage São Luís, os relatores visitaram a área e denunciaram que a situação dos moradores consistia numa “violação de direitos humanos”, mediante a ameaça de deslocamento pela instalação do polo siderúrgico (DHESCA, 2006). Foram realizadas 13 audiências públicas, das quais selecionei trechos de intervenções registradas em atas, que incorporei como parte do material de análise sobre o Reage São Luís. A partir de 2011, com acesso a novos documentos e com as primeiras entrevistas realizadas, direcionei as observações e a pesquisa documental, para a situação do Taim e do Rio dos Cachorros, e passei a ressaltar esses casos no roteiro de entrevistas. Não podia afirmar que era unânime a resistência nestes dois povoados, pois havia conflitos internos, e diferentes interesses estavam em jogo. Por parte dos moradores havia incertezas quanto à instalação do polo siderúrgico na área e, mesmo, o local para onde as famílias seriam reassentadas. As posições dos moradores desses povoados se alteravam com a abertura de possibilidade de barganha oportunizadas pelas propostas de indenização das benfeitorias. Em síntese, a situação pode ser ilustrada da seguinte forma, como mostram Alves, Sant’Ana Júnior e Mendonça (2007, p. 6): [...] visando viabilizar o deslocamento daqueles que atualmente ocupam a área destinada ao polo, o Governo do Estado e a Companhia Vale do Rio Doce contrataram a empresa paulista Diagonal Urbana Consultoria LTDA para fazer o Diagnóstico Sócio-Organizativo da área [...] A Diagonal entrou em contato direto com os moradores, levantou dados e chegou a marcar com tinta preta e numeração as casas das famílias que deveriam ser deslocadas (com exceção de parte das casas de Rio dos Cachorros e do povoado do Taim, onde os moradores resistiram e impediram esta marcação). 12 Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil) foi criada em 2001 e é uma rede formada por organizações da sociedade civil que atua na reparação de violação de direitos humanos. Colabora com o Estado no cumprimento de suas obrigações e exercício democrático do poder institucionalizado. Tem como referência a Constituição Federal e os tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos, seguindo as recomendações das missões das Relatorias Especiais da Organização das Nações Unidas (ONU). (FAUSTINO; FURTADO, 2013). 29 A resistência por parte do Taim e do Rio dos Cachorros foi um fato notório, havendo relativo consenso entre as lideranças e a direção das associações de moradores sobre a importância de permanecerem na área. Eles fortaleceram as associações de moradores e passaram a mobilizar os moradores dos povoados vizinhos. Entretanto, não raramente, as reuniões entre os povoados foram tensas, com práticas que poderiam ser identificadas como tentativas de cooptação de lideranças por parte de agentes privados e de órgãos do governo empenhados na viabilização do remanejamento. Analisarei, no Capítulo 3, estes povoados, como unidades de observação desta pesquisa, estão situados em uma área que historicamente tem apresentado conflitos ambientais e territoriais (ZHOURI; LACHEFSKI, 2010), assim como também há um “processo de territorialização” que implica em relações de poder e de dominação pelo controle do espaço (SOUZA, 1995). A luta política historicamente configurada por parte destes povoados informa em grande medida o sentimento que as lideranças e grande parte de seus moradores têm ao falarem do “lugar”, remetendo ao sentimento de pertencerem às gerações passadas de grupos familiares que ali se constituíram, onde se formam as novas famílias e onde conseguiram obter patrimônios, tais como suas casas e seus terrenos, suas plantações, remetendo também à uma memória coletiva de seus ancestrais. Este conjunto de elementos materiais e simbólicos serve de referências à uma noção de comunidade, tal como assinalada por diferentes estudiosos de comunidades rurais em processo de mudanças sociais, cujas relações são caracterizadas pelas noções de “ambientes de vida” (HÉBETTE, 2004), “meios de vida”(CÂNDIDO, 1978), podendo ser sintetizadas na definição de Meyer (1979, p. 16) em seu estudo sobre “uma comunidade rural nordestina” quando diz: “a configuração de uma comunidade no espaço só ganha significado quando percebida à luz de um sistema de relações sociais que articula não só os elementos internos à comunidade, mas também, esses elementos àqueles que são externos”. Minha intenção é considerar os dois povoados, Taim e Rio dos Cachorros, não como abstrações ou nomeações genéricas, mas como dois universos, nos quais atores sociais determinados e lideranças identificadas, tomaram iniciativas no sentido de se contraporem ao projeto, defendendo não somente o território, mas todo o conjunto de elementos que permeiam esta noção de comunidade, uma vez que as relações estabelecidas pelos moradores estão historicamente e socialmente estruturadas. Por outro lado, importa no caso descrever o processo de reação iniciado pelas lideranças e observar como o movimento foi transcendendo o nível local na medida em que ganhava força com os aliados conquistados. De todo modo, a motivação que levou à proposta desta tese foi o processo de reação local ao polo siderúrgico. Conforme ilustra o trecho supracitado, as lideranças comunitárias do Taim e do Rio dos Cachorros, não 30 somente reagiram à ação da empresa de consultoria quando esta tentou marcar as casas – suas reações já indicavam o início de um processo de resistência mais amplo. Em 2011, após a revisão bibliográfica passei a dar mais atenção na questão da resistência, tendo como ponto de partida, a reação dos povoados do Taim e Rio dos Cachorros, pois eles seriam o locus “ideal” para analisar o processo de organização e indagar sobre a forma como se deu a inserção destes no movimento mais amplo de contestação - o Movimento Reage São Luís. Algumas contribuições teóricas foram fundamentais para a formulação do projeto e serviram de inspiração para definir o objeto de investigação e as hipóteses centrais deste estudo. Destaco a proposição de Olivier de Sardan (1997) de uma “socio-anthropologie du changement social”. A socio-antropologia tal como propõe este autor, resulta de uma espécie de fusão entre a tradição da sociologia empírica, a exemplo da Escola de Chicago (sociologie du terrain) e a antropologia empírica (ethnographie) e, é definida por este autor como “l’ étude empirique multidimensionnelle des groupes sociaux contemporains et de leurs interations, dans une perspective diachronique, et combinant l’analyse des pratiques et celle des représentations” (OLIVIER DE SARDAN, 1997, p. 10). Mais adiante, ele esclarece: [...] Le développement est clairement un lieu d’affrontement “politique”, mais dans um tout autre sens que celui que l’on donne habituellement à cette expression. Je n’entends en effet faire allusion ni à la politique nationale ni à politique internationale, espaces où circulent politiciens et hauts fonctionnaires [...] Je me situe à un autre niveau, celui par exemple d’une opération de développement rural, qui met en rapport direct ou indirect une série d’acteurs relevant des catégories variées. (OLIVIER DE SARDAN, 1997, p.173). Esse autor se interessa pela “confrontation des logiques sociales variées” entre categorias, tais como: camponeses com posições diferenciadas, jovens desempregados, representantes governamentais, mulheres, agentes de desenvolvimento, técnicos, membros de ONG’s, que apresentam interesses diversos e estabelecem estratégias e manobras políticas para defendê-los. O desenvolvimento ocorre por meio de um complexo jogo de interesses, configurando-se como uma “arena”. Por esse prisma, a “arène” do desenvolvimento aparece como um “sistema de recurso e de oportunidade” no qual, cada ator social tenta se apropriar à sua maneira (OLIVIER DE SARDAN, 1997, p. 173). Em suma, o desenvolvimento é assim pensado não como um conceito abstrato, mas como um “jogo” entre atores sociais com poderes políticos diferenciados segundo as formas de capital que eles detêm. Foi por este viés que procurei em linhas gerais compreender e descrever o ambiente de disputa e os atores sociais na situação criada em torno do polo siderúrgico, considerando a capacidade destes atores locais em construírem estratégias de resistência. 31 Na medida em que avançava o levantamento documental sobre o debate em torno do polo siderúrgico, fui selecionando também uma bibliografia que me ajudasse olhar teoricamente o problema da pesquisa e mais especificamente o objeto de estudo. O processo de formulação da problemática da pesquisa e definição do objeto coincidiu naquele momento com a leitura exploratória da obra “El Amor y la Justicia como competências: tres ensayos de sociologia de la acción”, de Boltanski (1990). Interessei-me pelo terceiro capítulo intitulado “La denuncia pública”. Aqui, o autor apresenta um modelo de análise a partir de pesquisa documental sobre cartas enviadas por “pessoas comuns”, vítimas de injustiças, encontradas nos arquivos do jornal francês “Le monde”. O modelo de análise proposto suscitou uma série de questões e de ideias sobre o meu projeto, sobretudo a partir da noção de “dessingularização”, utilizada pelo autor. Resumidamente, tal noção se refere à capacidade de um determinado ator tornar a sua reivindicação particular, nesse sentido “singular”, em uma reivindicação ampliada a outros atores. A essa noção, associei uma série de eventos (de que tratarei de analisar mais adiante) ocorridos entre 2004 e 2005, tendo como ponto de partida as experiências dos povoados de Taim e do Rio dos Cachorros, e a formação do Movimento Reage São Luís. Nesta perspectiva, busquei dar visibilidade às estratégias políticas, às alianças feitas com os demais povoados e ao trabalho realizado pelas lideranças no sentido de convencerem outros grupos e povoados, vivendo a mesma situação de ameaça, a se aliarem com eles em torno das mesmas reivindicações contra o polo siderúrgico. Com a ampliação das reivindicações, este movimento inicial foi ganhando força política tendo apoio e assessoria de profissionais liberais engajados em movimentos sociais e conhecedores da questão ambiental. A eles também vieram dar apoio estudantes engajados em movimentos sociais, professores, pesquisadores das universidades públicas (UFMA e UEMA). Ao ampliarem a base do movimento, as lideranças da Zona Rural de São Luís puseram em questão interesses de outros setores, que também passaram se identificar com as reivindicações e passaram a se interessar por discutir a situação da cidade de São Luís. Dessa forma, potencializaram suas organizações e qualificaram seus discursos de contestação levados às audiências públicas, algumas das quais, inclusive aconteceram como resultado da pressão do movimento de resistência. Após as primeiras entrevistas passei a conhecer melhor a base social do movimento e percebi a importância do aprendizado, considerando o acúmulo de experiências compartilhadas. Nesta perspectiva, o próprio perfil dos entrevistados membros do movimento diz muito sobre a composição de um movimento cuja base social se caracteriza pela diversidade e pluralidade da origem social de seus integrantes e de suas representações. 32 Com o andamento da pesquisa de campo, a leitura de material que vinha pesquisando sobre o processo de formação do Reage São Luís, precisei fazer uma seleção de informantes-chave. Essa seleção obedeceu ao critério de participação conforme indicação dos primeiros entrevistados, mas também em função da dificuldade em agendar encontros com os ex. membros do Reage para entrevistá-los. Após anos da experiência do Reage São Luís, ou seja, entre 2005 e até o início do primeiro semestre de 2014, muitos daqueles militantes se encontravam agora envolvido em outras atividades, sendo difícil retomar o contato. Razão pela qual fiz uma seleção bastante criteriosa das pessoas que foram indicadas por membros do Reage São Luís, por meio dos quais pude fazer contatos e realizar as entrevistas. Diante dessa dificuldade, procurei, então, levantar o máximo de documentação para obtenção de informações qualitativas sobre o movimento. Quanto aos entrevistados (Quadro 1), realizei também uma entrevista com o Sr. José Reinaldo Tavares, Governador do Maranhão em 2004, ator político importante na defesa do polo siderúrgico. Procurei fazer contatos com vereadores e deputados, assim como outros atores relevantes na defesa do polo siderúrgico, mas não obtive resposta positiva para o agendamento. A exceção do Ex-Governador. Todos entrevistados tiveram participação direta no debate sobre o polo siderúrgico e defendendo a posição contrária ao empreendimento. No procedimento de entrevista, elaborei um roteiro padrão, de acordo com o perfil e trajetória do entrevistado, além do seu histórico de engajamento em movimentos sociais e, especificamente, no Movimento Reage São Luís, procurei fazer adaptações. Nas primeiras entrevistas, observando os relatos dos entrevistados sobre sua trajetória e experiências em movimentos sociais, percebi que eles destacavam a questão da aprendizagem sobre a organização e participação política que haviam acumulado nessas experiências anteriores. Passei a explorar mais este aspecto no roteiro de entrevista, e incorporei as contribuições de Charles Tilly (1978; 1996), entre estas, a noção de “repertórios” e também, o conceito de “ação coletiva” a partir dos quais tirei bastante proveito para inspirar na estruturação e na descrição das formas de contestação do Reage São Luís. Esta leitura abriu uma nova perspectiva no sentido de considerar que a resistência política ocorreu num quadro mais amplo de contestação desde os anos de 1980. Quadro 1 – Lista de entrevistados Entrevistados Maria Máxima Instituição Lider Comunitária/ Ass. Moradores Rio dos Cachorros Data 24.05.2008 José Alcântara Sociólogo, Prof. UFMA, membro do Reage São Luís 15.12.2011 Edilea Pereira Geóloga, Prof. UFMA, membro do Reage São Luís 16.12.2011 33 Cont. Quadro 1 – Lista de entrevistados Alberto Cantanhede 11.01.2012 Rosana Mesquita Pescador/Lider comunitário do povoado do Taim, membro do GTA Lider comunitária do povoado Taim Jean Carlos Lider comunitário do povoado do Taim 31.01.2012 Maria Roxa Moradora do Taim 31.01.2012 18.01.2012 Irmã Anne Missionária da Congregação Irmãs de Notre Dame 17.09.2012 Maria Emília Lider comunitária do povoado Porto Grande 22.10.2012 Itajacira da Luz Silva Presidente Ass. Moradores Porto Grande 24.10 2012 Nair Barbosa Sociedade Maranhense de Direitos Humanos 06.12.2013 Creuzamar Pinho Coordenação do Movimento Nacional de Moradia Popular 26.11.2012 José Raimundo Coordenação do Movimento Nacional de Moradia Popular 26.11.2012 Maria do Espírito Santo Lider comunitária do povoado Vila Maranhão 07.12.2012 Cloves Amorim Silva Pescador/Lider Comunitário do povoado de Cajueiro 20.03.2013 Marluze Pastor Gerente Executiva do IBAMA em 2004 06.12.2013 Nair Barbosa Sociedade Maranhense de Direitos Humanos 06.12.2013 José Reinaldo Tavares Governador do MA em 2004 18.03.2013 Guilherme Zagallo Fonte: Dados da pesquisa. Advogado coordenador do Movimento Reage São Luís 21.10.2013 Nas entrevistas não gravadas, procurei anotar informações mais importantes, sem prejuízo das respostas que foram dadas às questões levantadas pelo roteiro. Destaco que utilizei de uma entrevista realizada por integrantes do GEDMMA (UFMA) com a Sra. Maria Máxima, liderança comunitária do povoado de Rio dos Cachorros em maio de 2008, cujo conteúdo retrata a sua participação no processo de resistência ao polo siderúrgico13. Quanto aos depoimentos de Alberto Cantanhede14, líder comunitário do Taim e do movimento de pescadores, utilizei de duas entrevistas. Sendo a primeira delas realizada também por membros GEDMMA (UFMA), e outra entrevista por mim realizada. Todas as entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2011 e outubro de 2013. Posteriormente, no segundo semestre de 2012 e 2013, durante um encontro com o advogado e ex-militante do Reage São Luís, Guilherme Zagallo, este que gentilmente me concedeu uma entrevista informal e permitiu o acesso aos seus arquivos pessoais sobre o Reage ao São Luís. Nestes arquivos encontrei várias matérias publicadas em jornais locais e 13 Entrevista com Maria Máxima realizada por Ana Maria pereira dos Santos e Elizângela Maria Barbosa, integrantes do GEDMMA. Esta entrevista foi publicada posteriormente no Livro Eco dos Conflitos Socioambientais: a Resex do Tauá Mirim (organizado por Horácio Antunes de Sant`Ana Júnior, Madian Pereira, Elio de J. P Alves, Carla R. Pereira, 2009). 14 Alberto Cantanhede, conhecido também como Beto do Taim, é um pescador artesanal e líder comunitário que desde jovem se engajou no movimento de pescadores artesanais do Maranhão. É integrante do Movimento Nacional de Pescadores (MONAPE) e do GTA. 34 organizadas por data pela assessoria de comunicação da OAB-MA, encontrei também as listas de atividades do Reage São Luís entre 2004 e 2006, além de inúmeros arquivos com informações importantes, entre estes, vários documentos governamentais, imagens da planta industrial do projeto do polo siderúrgico e os estudos encomendados pela Companhia Vale e pelo Governo do Maranhão para subsidiarem a elaboração dos Estudos e Relatório de Impacto Ambiental do polo Siderúrgico (EIA-RIMAS). O material empírico ajudou a ampliar esse entendimento, pois, as lutas políticas dos atores locais remetem aos processos de modernização desencadeados pelos Grandes Projetos de desenvolvimento na Amazônia em oposição às formas de usos sociais locais e os seus respectivos “ambientes de vida” (HÉBETTE, 2004). Nesta perspectiva, o PFC, através do qual São Luís se insere na cadeia produtiva via estrutura ferroviária e portuária, guarda um histórico de conflitos devido aos impactos de várias ordens, sob o “guarda-chuva” conceitual de “impactos socioambientais”. No caso da Amazônia, está em questão a situação das populações e seus territórios ocupados historicamente. De fato, nesse amplo contexto de políticas de desenvolvimento para a Amazônia de forma mais definida a partir dos anos de 1970 e com “expansão da geografia do setor produtivo” sobre as populações locais (povos indígenas, seringueiros, quebradeiras de côco babaçu, ribeirinhos, pescadores) em seus territórios, é que estes seguimentos da sociedade local emergem com mais evidência política como atores políticos, construindo identidades coletivas e formas próprias de resistência e de confrontação aos outros atores políticos do setor produtivo capitalista. (FERRETTI; ESTERCI; RAMALHO, 2009). Passadas três décadas, a luta política desses povos foi importante no processo de “ambientalização” das políticas de desenvolvimento na Amazônia, na medida em que passaram a exigir do Estado uma política nacional que incorporasse as preocupações ambientais. Como observaram Ferretti, Esterci e Ramalho (2009, p. 8), [...] de fato a Amazônia passa hoje por outro momento, com uma avaliação mais clara das consequências sociais, políticas e econômicas de uma orientação anterior que fez tabula rasa das formas tradicionais e locais de apropriação. Em especial, a introdução do fator ambiental no debate sobre desenvolvimento [...] A emergência dos seguimentos sociais locais como atores políticos e a inserção do debate ambiental nas agências de desenvolvimento trouxeram à tona a explicitação dos diferentes modelos de desenvolvimento que pode ser sintetizado em duas linhas de orientação: um modelo desenvolvimentista e predador de exploração dos recursos naturais, e outro modelo, que visa “[...] a preservação dos ecossistemas e à exploração sustentada das riquezas”. (FERRETTI; ESTERCI; RAMALHO, 2009, p. 8). 35 No caso da Ilha do Maranhão15, foi bastante significativa a movimentação política durante os anos de 1980 conforme ilustrada pelas manifestações públicas organizadas e aglutinadas em torno do Comitê em Defesa da Ilha, uma espécie de núcleo catalisador de energias políticas para contestar a viabilidade social e ambiental da instalação da fábrica de alumínio da Alcoa. O Comitê de Defesa da Ilha é um “exemplo” do Reage São Luís, como disseram os membros do movimento durante suas intervenções em Audiências Públicas. Analogamente, o Reage buscou a mobilização pela base, tal como se deu no processo de mobilização pelo Comitê de Defesa da Ilha em conjunto com as Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs nos anos de 1980, buscando aglutinar energia política para a resistência contra deslocamentos compulsórios. Na experiência do Reage São Luís em 2004, os “repertórios” de mobilização acionados se deram tanto pelas vias dos movimentos preexistentes, a exemplo das associações de moradores e de Pastorais da Igreja Católica, ainda resultante do trabalho de base das CEBs, mas também, por meio de formas inovadoras e contextualizadas de mobilização por meio das “redes” e “links” sociais regionais e nacionais. Esse histórico das experiências anteriores serviu de inspiração, inclusive a própria designação de Reage São Luís ao movimento de reação ao polo siderúrgico e ocorreu no momento em que as lideranças se deram conta de que era necessário buscar aliados e denunciar a situação, analogamente como ocorrera “na época do professor Nascimento de Moraes”, líder do Comitê de Defesa da Ilha nos anos de 1980. A hipótese aqui levantada é de que na “formulação pública” do problema social (LENOIR, 1996) evidenciada na experiência do Reage São Luís, há uma série de elementos que levam ao questionamento do espaço público e ao fortalecimento da sociedade civil no âmbito das políticas sobre meio ambiente e, por consequência, uma abertura dos canais de participação nos processos decisórios. A situação das disputas deflagradas envolvendo o polo siderúrgico e a defesa do território e dos usos sociais historicamente construídos levou a pensála pelo viés da “confrontação” na “arena política” do “campo político” ambiental. Quer dizer, no interior da “arena” há múltiplos interesses, inclusive aqueles movidos por agentes econômicos que atuam em escala global (OLIVIER DE SARDAN, 1997). 15 Ilha do Maranhão é o nome oficial da ilha onde se situa o município de São Luís. É também chamada de UpaonAçú (Ilha Grande), nome que seria designado pelos povos indígenas antes do período colonial. A Ilha do Maranhão é constituída por um arquipélago com mais de cinquenta ilhas com variadas origens e dimensões. A maior delas é a Ilha de São Luís, onde se localiza a capital do Maranhão. Na Ilha do Maranhão estão localizados os municípios de São Luís, Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar (MARANHÃO, 2004a). 36 Importante fonte de inspiração neste trabalho, encontrei também em Bourdieu (1997) em sua análise na obra “O uso social da ciência” (BOURDIEU, 1997)16 onde destaca o conhecimento científico como um “campo” em disputa. No caso do Reage São Luís, o “uso social” deste conhecimento como instrumento de contestação é uma de suas características marcantes. Neste sentido procuro mostrar como um movimento de contestação se apropria do conhecimento científico e o instrumentaliza como crítica social. Da leitura sobre a teoria de “campo” de Bourdieu, alarguei este conceito em três “campos” acionados pelo Reage São Luís: o “campo” sociopolítico, o “campo” científico e o “campo” jurídico. Uma forma de descrever e caracterizar as ações e os argumentos acionados pelo movimento. A contestação do Reage São Luís, entretanto, como veremos, não se limitou à reação ao polo siderúrgico. Incorporou, também na construção dos argumentos de resistência outra forma de uso social dos recursos e dos territórios por meio da proposta de instalação de uma Reserva Extrativista, a RESEX de Tauá-Mirim, ainda em processo de tramitação no Ministério do Meio Ambiente. Incluir essa discussão no projeto interessou pela relevância sociológica dessa questão, pois, se insere na lógica do conflito de que trato, ou seja, o debate sobre a RESEX foi potencializado no processo de discussão da instalação do polo siderúrgico e é interpretada no contexto da pesquisa como parte da resistência local. O problema de que trata a pesquisa, começa, portanto a se colocar, com a indagação sobre a reação a uma decisão que implicaria profundas mudanças sociais. Quer dizer, como se deu esse “deslocamento” dos interesses singulares e localizados, para um interesse que se tornou comum a outros grupos e entidades, formando um movimento mais amplo de reação política, o Reage São Luís, cujas ações em grande medida resultaram na inviabilização da instalação do polo siderúrgico de São Luís. A tese, portanto, discute a configuração de uma arena no processo conflitivo, enfatizando o papel da sociedade civil nas decisões políticas que, no caso analisado, afetariam diretamente o interesse dos povoados rurais da Zona Rural II de São Luís. Ao mencionar esta noção de “uso social” de Bourdieu, me oriento pela compreensão do conceito de Champ (campo), quer dizer, a ciência é também um “campo”, (como é o caso do campo econômico, por exemplo) formado por rapports de forces (relações de forças) (BOURDIEU, 1997, p. 21). Na arena de debates sobre o polo siderúrgico, de forma geral o conhecimento científico foi utilizado por membros do Reage São Luís, como forma de contestação aos argumentos “científicos” que preconizavam a viabilização do polo siderúrgico. Neste sentido me utilizo aqui desta noção para descrever os argumentos de contestação a partir do “campo científico”. 16 37 A organização da tese por capítulos A tese está dividida em 5 capítulos. No primeiro capítulo, “‘Meio ambiente’ como questão social trajetórias e experiências de movimentos sociais de resistência à instalação de projetos industriais em São Luís-MA”, procuro apresentar um panorama dos movimentos de resistência aos projetos industriais nos anos de 1980, considerando que a resistência política na cidade de São Luís está associada ao processo de expansão da economia capitalista na Amazônia, em destaque o Programa Grande Carajás. Naquele contexto os movimentos sociais tiveram grande influência das Comunidades Eclesias de Base – CEBs - da igreja Católica que em conjunto com outras organizações como o Comitê de Defesa da Ilha, deram apoio aos povoados que resistiram ao deslocamento para instalação da fábrica de Alumínio da Alcoa. A questão ambiental foi uma das preocupações centrais naquela época, sendo, portanto, uma referência às experiências de resistência nos anos 2000. Nesse sentido, procuro situar o debate do projeto do polo siderúrgico no contexto dos conflitos sociais na Amazônia e a emergência de novos atores políticos locais. (FERRETTI; ESTERCI; RAMALHO, 2009). No segundo capítulo, Da 'Besta Fera’ à pretensão de ‘Gigantes’: atores comerciais globais e a instalação de uma siderúrgica em São Luís-MA, descrevo alguns aspectos do projeto siderúrgico e a posição das multinacionais no mercado siderúrgico. Enfatizo brevemente os atores comerciais globais e suas articulações político-administrativas com as agências do governo estadual e também no âmbito federal. Procuro também descrever o cenário do mercado mais amplo e as medidas político-administrativas governamentais para viabilização do projeto do polo siderúrgico. No terceiro capítulo, “Ações Coletivas de contestações acerca do polo siderúrgico de São Luís-MA”, apresento discussões teóricas que deram suporte à descrição e análise nas formas de mobilização contrárias à instalação do polo siderúrgico. Discorro sobre a proposta teórica da “sociologia pragmatista” (NASCHI, 2002), referida também como uma “sociologia da crítica” (BOLTANSKI, 1990, THEVENOT, 2006). Abordo, também, o conceito de ação coletiva tendo por base os elementos que estruturam e caracterizam as ações assim definidas por Tilly (1978; 1996). Neste capítulo procuro aliar estes conceitos básicos às leituras de autores que tratam dos movimentos sociais no Brasil (CARDOSO, 1984; GOHN, 1995; 2012; ADRIANCE, 1996). Especificamente, sobre o movimento ambientalista contemporâneo no Brasil, enfatizo a contribuição de Alonso, Costa e Maciel (2008) que à luz das contribuições teóricas de Tilly se utilizam do conceito de “estruturas de oportunidades”. Para estes autores, o movimento ambientalista se confunde aos demais movimentos sociais no Brasil que ganharam 38 força no contexto político de 1970 e, posteriormente, com a aprovação da Constituição de 1988 quando vários canais institucionais ligados ao meio ambiente foram criados no âmbito governamental (LOPES, 2004). Neste capítulo faço uma explanação teórica acerca da noção de território, uma vez que o debate sobre a instalação do polo siderúrgico foi antecedido de um longo período de discussões entre 2001 e 2006 sobre a proposta da Prefeitura de São Luís de alterar a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992). A discussão sobre territorialidade reflete as disputas no processo de zoneamento nas quais estão subjacentes, de um lado, os interesses de agentes estatais e privados e, por outro, a concepção de território enquanto um “ambiente de vida” reivindicado pelos atores locais. Dessa forma, o território é (antes de qualquer acepção de caráter natural) fundamentalmente constituído por atores cujas formas de usos e de percepção lhe imprimem significados políticos, econômicos, sociais e também, significados de ordem cultural, distintamente, atribuídos. A disputa pelo controle territorial entre atores políticos com lógicas distintas de apropriação é indicada aqui também pela experiência de mobilização em defesa da instalação da RESEX de Tauá-Mirim que irei analisar no Capítulo 5. Descrevo o desdobramento da disputa territorial envolvendo a proposta da RESEX e abordo este processo à luz das contribuições da socioantropologia do desenvolvimento proposta por Olivier de Sardan (1997). No quarto capítulo, “O Movimento Reage São Luís: perfil de um movimento social contemporâneo”, faço uma introdução no subcapítulo 4.1 no qual retomo o referencial teórico sobre movimento social e abordo a formação do Reage São Luís como um movimento social contemporâneo. Procuro descrever o seu surgimento e o processo de formação de sua “base social”, bem como seus “repertórios de mobilização”. Descrevo suas estratégias de ação, suas alianças e seus argumentos a partir da noção de “campo” de Bourdieu (1997) interpretando o Reage São Luís a partir de três “campos”, que correspondem a três itens: 4.1.1 - “Campo” sociopolítico, 4.1.2 - “Campo científico” e 4.1.3 - “Campo jurídico”. No “Campo” sociopolítico enfatizo a composição do Reage São Luís, suas atividades e estratégias políticas. No “Campo” científico, procuro descrever os argumentos utilizados a partir da produção científica de integrantes do movimento, enfatizando a inserção de experts na coordenação do movimento e como estes experts foram cruciais para a formação de um quadro argumentativo de contestação em audiências públicas e na produção de textos informativos. No “Campo” jurídico, descrevo os argumentos jurídicos construídos por assessores da área jurídica junto à base do Reage São Luís, entre os instrumentos jurídicos de contestação destacam-se: o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor de São Luís e a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano de São Luís. 39 No Capítulo cinco, apresento o projeto de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. Esta RESEX foi discutida pelos moradores e lideranças dos povoados da Zona Rural II de São Luís ainda nos anos de 1990, entre estes líderes do Taim e Rio dos Cachorros que protagonizaram a mobilização contra o deslocamento compulsório para instalação do polo siderúrgico. O Reage São Luís incorporou parcialmente a instalação como ponto de pauta de suas reivindicações, entretanto, após a inviabilização do polo siderúrgico e a desarticulação do Reage São Luís, os povoados deram continuidade nas mobilizações defendendo a proposta de instalação da RESEX. Neste sentido, alguns desdobramentos são importantes. Procuro então fazer um balanço crítico do processo. Nas Conclusões procuro sintetizar em linhas gerais os argumentos da tese e também levanto alguns aspectos sobre a experiência do Reage São Luís quanto a sua importância para a sociedade civil local e para o debate socioambiental e seus efeitos no âmbito da esfera pública e nas políticas de desenvolvimento. Apresento também algumas considerações sobre as possibilidades e limites do Reage São Luís enquanto um movimento social contemporâneo. 40 1 O “MEIO AMBIENTE” COMO QUESTÃO SOCIAL: trajetórias e experiências de movimentos sociais de resistência à instalação de projetos industriais em São Luís-MA A emergência do debate socioambiental em São Luís remete aos chamados Grandes Projetos na Amazônia (HÉBETTE, 2004) instalados no decorrer da década de 1970, e mais diretamente, ao Programa Grande Carajás (PGC), que se estendeu em toda a Amazônia oriental, incluindo importantes investimentos para extração de minerais para exportação e para as atividades industriais correlatas, estendendo-se também a atividades agropecuárias e florestais (HALL, 1989). O PGC foi institucionalizado pelo Presidente da República, João Figueiredo, através Decreto Lei 1813, de 24 de novembro de 1980 (SANT'ANA JÚNIOR, 2014). No início da década de 1980, o município de São Luís-MA foi estrategicamente incluído nos projetos de infraestrutura e de exploração mínero-metalúrgicos do PGC. Conforme observam Sant'Ana Júnior, Alves e Mendonça (2007, p. 31), a instalação do Complexo Portuário de São Luís e de grandes empreendimentos industriais está articulada a um conjunto de medidas governamentais de desenvolvimento para essa região. Sant'Ana Júnior, Alves e Mendonça (2007, p. 31) lembram que: [...] O Programa Grande Carajás surgiu a partir das investidas do regime ditatorial, instalado a partir de 1964, no sentido da industrialização e, consequente modernização do país e que previa, concomitante e associadamente, a integração da Amazônia à dinâmica econômica do país [...] O Governo Federal planejou a instalação de infraestrutura básica (construção de grandes estradas de rodagem que cruzassem toda a região, algumas ferrovias, portos, aeroportos, usinas hidroelétricas) que permitisse a rápida ocupação da região, entendida, então, como um grande vazio demográfico e, poderíamos falar mesmo, como um “vazio cultural”. A integração à economia nacional e internacional dar-se-ia principalmente através da instalação de grandes projetos de desenvolvimento destinados à exploração mineral, florestal, agrícola e pecuária. O primeiro desses empreendimentos foi o PFC, efetivado em 1985 pela estatal Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale S.A). O projeto se conectou com o Maranhão por meio de seu moderno sistema mina-ferrovia-porto (minas de ferro no sudeste do Pará, Estrada de Ferro Carajás, Porto de Itaqui e Porto Ponta da Madeira), sendo considerado a “espinha dorsal” do Programa Grande Carajás. A construção da Estrada de Ferro Carajás ligando a serra de Carajás no Pará, ao Complexo Portuário de São Luís-MA, foi iniciada em 1979. Com 890 km de extensão construídos, esta ferrovia teve suas operações de transporte de minério iniciadas em 1985 (ver Mapa 1). De início, a Vale passou a ocupar em São Luís uma área de 2.221,35 ha (GISTELINK, 1988). 41 A inclusão estratégica de São Luís na trilha dos grandes projetos, tendo em vista a viabilidade econômica do complexo “mina-ferrovia-porto” foi justificada pela “conveniência”, devido à profundidade dos portos que permitem a atracação de grandes navios17 e o transporte do minério por ferrovia (TETSUJI, 1986). A partir das atividades desenvolvidas na mina de ferro de Carajás, foram desmembrados dois importantes projetos integrados de produção de alumínio que refletiram a disputa entre empresários japoneses e americanos do setor de mineração.18 O Complexo de Alumínio Albrás / Alunorte em Barcarena, às margens do Rio Tocantins, próximo da cidade de Belém-PA, na época ficou sobre o controle da Companhia Vale do Rio Doce (Companhia VALE), com a participação de empresas estrangeiras como a Royal Dutch Shell-Billiton e Reynolds, tendo suas operações iniciadas em 1983. Um segundo projeto já vinha sendo idealizado no âmbito do Projeto Carajás, a ser construído na cidade de São Luís, levando em conta a localização geográfica, do ponto de vista da logística portuária para o escoamento da produção para o mercado internacional. Trata-se do complexo de alumina-alumínio construído no município de São Luís que, naquele momento, era o maior financiamento privado investido no Brasil e controlado exclusivamente por multinacionais estrangeiras: a Aluminian Company of American (Alcoa) que tornou-se a principal beneficiária no projeto, assim como, também a grande consumidora de energia gerada pela Hidrelétrica de Tucuruí (PA) e beneficiaria da utilização da estrutura de transporte viabilizada pelo governo brasileiro (PINTO, 1982). Em 1980, a Alcoa19 chegou ao Maranhão com o nome de Alcominas (Companhia Mineira de Alumínio), uma subsidiária da Alcoa Alumínio S.A. (Aluminum Company of America). Em 1981, mediante o consórcio com a Billiton Metais, a empresa mudou seu nome para ALUMAR - Alumínio do Maranhão (CÁRITAS BRASILEIRA, 1983). Para a instalação 17 Segundo informa o site da Companhia Vale, o Terminal Marítimo Ponta da Madeira é o único porto do Brasil capaz de carregar o maior navio graneleiro do mundo, Berg Stahl com capacidade para transportar 355,767 toneladas e foi construído especialmente para a rota São Luís-MA - Roterdã (Holanda). (VALE, c2009). 18 Vale ressaltar que, antes de esses projetos serem implantados, o governo brasileiro já vinha desenvolvendo pesquisas sobre o potencial hídrico da região para os futuros projetos, assim como viabilizando a implantação das vias de escoamento da produção mineral. A concretização se deu com a construção das ferrovias, entre as quais a Estrada de Ferro de Carajás (Carajás-São Luís-MA). O aproveitamento energético, voltado para atender a demanda dos projetos, foi decidido em 1974, quando foi concebida a construção da Hidrelétrica de Tucuruí (Rio Tocantins, no Pará), sob a alegação do governo brasileiro de que a barragem “[...] era necessária para romper um ciclo vicioso que impedia a instalação de indústrias na Amazônia, por causa da falta de energia, mas também inviabilizava as hidrelétricas devido à inexistência de indústrias altamente consumidoras de energia na região” (PINTO, 1982, p. 16). 19 O Consórcio de Alumínio do Maranhão (ALUMAR) atua na produção de alumínio primário e alumina e foi inaugurado em Julho de 1984; é formado pelas empresas Alcoa, BHP Billiton e RioTinto Alcan. (ALUMAR, c2010). 42 da fábrica de alumínio da Alcoa foi concedida inicialmente uma área de 3.500 ha por meio de um acordo entre a empresa e o governo estadual. Posteriormente, a empresa requereu do governo estadual, o aumento de 10.000 ha, o que correspondia, a 12% do território da Ilha do Maranhão e a 50% do Distrito Industrial de São Luís (CÁRITAS BRASILEIRA, 1983). A fábrica da ALUMAR, desde então, passou a receber, em São Luís, o minério trazido por navios, vindo dos municípios de Oriximiná e Juriti, ambos localizados no oeste do Estado do Pará, região de Trombetas, onde o consórcio até hoje, explora as minas de bauxita. Durante o trabalho de terraplanagem e desocupação da área para instalação da fábrica de alumínio da Alcoa surgiram vários protestos contra “danos ambientais” e, em julho de 1980, num ato simbólico, como uma forma de resposta a essas manifestações, a empresa plantou uma muda de pau d’arco amarelo, nas margens da BR-135, na área do Distrito Industrial, marcando o início da construção da obra (CÁRITAS BRASILEIRA, 1983). Evidentemente, a ocupação pelos projetos governamentais e da iniciativa privada, de tão significativa porção territorial da Ilha do Maranhão, em grande parte, já ocupada por famílias de trabalhadores rurais e de pescadores, teve sérias consequências: gerou conflitos pela posse da terra e causou fortes impactos ambientais – o que já vinha acontecendo desde o final dos anos de 1970. Os conflitos se acirraram nos anos de 1980 com a resistência posta aos deslocamentos por organizações comunitárias e através de manifestações e denúncias públicas que mostravam evidências da destruição ambiental provocada pela instalação das empresas. As críticas sociais mais diretas aos efeitos da industrialização e que trouxeram à tona o debate socioambiental em São Luís, podem ser exemplificadas nas seguintes obras, já citadas na Introdução: “Alcoa na Ilha: um documento acerca das implicações sociais, econômicas e ambientais da implantação de uma indústria de alumínio em São Luís, Maranhão”, de Bárbara Eglish (1984) e “Carajás, usinas e favelas”, de Frans Gistelink (1988). Vale destacar um breve comentário sobre estes autores pela vivência que eles tiveram com as populações afetadas diretamente pelo programa Grande Carajás e, em especial, em São Luís. Ann Bárbara Eglish, também conhecida como Irmã Bárbara é uma missionária americana, membro da Congregação Irmãs de Notre Dame de Namur que chegou a São Luís em meados dos anos de 1960. Juntou-se aos padres missionários da Ordem Redentorista dos EUA que haviam criado a uma paróquia na parte sul da Ilha do Maranhão, cujo nome original era Cristo Redentor. Com estes missionários, Irmã Bárbara atuou entre 1969 e 1978 nesta Paróquia. Com a saída dos Padres da Ordem Redentoristas as Irmãs de Notre Dame ficaram fragilizadas politicamente, pois, o bispo de São Luís, Dom Mota, enviou um padre com intuito de combater a ação política das CEBs, uma vez que as atividades das CEBs foram consideradas 43 por ele como “subversivas” e “anti-religiosas”. Entretanto, o trabalho das CEBs, desde os anos de 1970, havia fortalecido as organizações populares, pois, além das atividades litúrgicas, “[...] haviam também desenvolvido um sistema de redes regionais de apoio mútuo” (ADRIANCE, 1996). Em 1985 Irmã Bárbara teve um papel político importante na organização política dos povoados rurais para a resistência contra a instalação da fábrica de alumínio da Alcoa. (ADRIANCE, 1996). Para as lideranças dos movimentos populares de São Luís, Irmã Bárbara deixou um importante legado quanto à autonomia das organizações dos povoados. Frans Gistelink começou seus primeiros contatos com a realidade da população rural do Maranhão por meio de suas experiências de trabalho eclesial como padre e, posteriormente, como funcionário do Instituto de Terra do Maranhão (ITERMA). Em dezembro de 1974, participou de um encontro das Comunidades Eclesiais da área rural de São Luís, no Centro Paroquial Cristo Redentor, na qual se discutia “o dragão de Carajás”, nome dado, pelos movimentos de resistência, à Amazônia Mineração S/A (AMZA)20, em função do impacto de suas obras nas proximidades do povoado de pescadores do Boqueirão e do Bairro Anjo da Guarda. A sua participação nesse evento levou Gistelink a dar mais atenção à situação das famílias deslocadas e às formas de organização política dos povoados rurais que naquele momento resistiam contra os empreendimentos industriais. Relatando seu contato inicial “com a problemática de Carajás”, Gistelink (1988, p. 7) descreve o seguinte sobre o bairro Anjo da Guarda próximo as instalações da Companhia Vale: [...] A população em torno de duas mil famílias tinha chegado a esta área cinco anos antes, transferida do centro da cidade pelo governo estadual, em condições difíceis e com muitas promessas não cumpridas, e já enfrentava de novo a ameaça de ser expulsa. No Anjo da Guarda este autor destacou o surgimento de “áreas de invasão” e a situação de famílias de migrantes, a exemplo da área denominada de “Mauro Fecuri” e registrou também a chegada de famílias remanejadas de outras áreas ocupadas pela Vale, famílias de migrantes do interior do estado atraídas pelas promessas de empregos e de famílias oriundas de bairros populares de São Luís pressionadas pela especulação imobiliária. No livro “Terra Prometida: as Comunidades Eclesiais de Base e os Conflitos Rurais” de Adriance (1996), esta autora diz descreve o seguinte [...] cada CEB já tinha criado uma variedade de serviços sociais e religiosos: extensão comunitária, cuidado das pessoas, doentes, preparação catequética de adultos e crianças para os sacramentos, reflexão bíblica e celebração litúrgicas. Juntas haviam 20 A AMZA foi criada em 1970 pelo governo brasileiro por meio da Companhia Vale do Rio Doce como resultado de uma negociação durante três anos com a empresa estrangeira US Steel. Sendo 51% do capital acionário em poder da CVRD e 49% sob o controle da US Steel (HALL, 1991). 44 também desenvolvido um sistema de redes regionais de apoio mútuo. (Adriance 1996, p. 84). Estes registros são de suma importância e colocam em relevo o papel político das CBEs. De um lado, pelo trabalho de base que fortaleceu politicamente as relações comunitárias já existentes, e também, por outro, ajudando estas organizações a questionarem os efeitos da poluição ambiental gerados com a instalação de projetos industriais nos anos de 1980. E o que de fato interessa ao debate socioambiental no que diz respeito à experiência de instalação desses empreendimentos no Maranhão é o modelo de ocupação econômica que traz como consequência imediata o desmantelamento da pequena produção camponesa em boa parte do estado e, especificamente na Ilha do Maranhão, a desarticulação do modo de vida de inúmeras comunidades de pescadores, agricultores e extrativistas (GISTELINK, 1988; ADRIENCE, 1996). Por outro lado, como observa Hébette (2004), considerando o sentido da expressão “o cerco está se fechando” para caracterizar a chegada e penetração do “grande capital” na Amazônia, vê-se que é necessário levar em conta a resistência e a busca de autonomia das populações locais. Nos anos de 1980, os movimentos sociais tiveram um papel muito importante na crítica aos efeitos causados pelos resíduos industriais ao ambiente no município de São Luís. Destacaram-se nesses movimentos, as organizações comunitárias de povoados da Zona Rural aliados aos setores progressistas da Igreja Católica, a parlamentares e profissionais liberais sensíveis aos danos ambientais. Nesse contexto, a preocupação ambiental tomou um rumo político, indo muito além de uma questão de controle técnico da poluição. Os movimentos de contestação levaram a questão ambiental ao debate público, pois, implicaram, sobretudo, em decisões políticas e mudanças sociais significativas que afetavam a população de toda a ilha. 1.1 Papel político das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e do Comitê de Defesa da Ilha. A emergência dos movimentos de contestação no início dos anos de 1980 em São Luís de fato está associada aos projetos industriais, entretanto, tal emergência encontra um terreno fértil na conjuntura mais ampla dos movimentos sociais no Brasil, sob a nova designação de “movimentos populares”. É fundamental considerar esse histórico de resistência nos anos de 1980 em São Luís e os processos pelos quais estas experiências produziram importantes repertórios de mobilização, que foram atualizados no contexto recente a partir de 2000, quando os projetos de desenvolvimento foram retomados. 45 Em primeiro lugar, é importante dizer que o “Movimento Popular” no Brasil passou a ser percebido por acadêmicos e intelectuais ligados às universidades brasileiras pela ótica da valorização da capacidade cognitiva de ação e de agenciamento do “povo” na vida política. Entre os principais atores que potencializaram as “lutas populares”, está a Igreja Católica através de seus setores progressistas. A inserção desses setores da Igreja nos movimentos populares se deveu em grande parte ao impulso propiciado pelas mudanças de sua atuação após a aprovação das diretrizes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Em linhas gerais, as diretrizes deste evento buscaram adaptar as ações da Igreja às novas realidades políticas e sociais contemporâneas que, no Brasil, foram marcadas pelo processo de luta política pela redemocratização do país. Destaca-se, entre outras organizações que surgiram nesse contexto, a Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP, 2010) que teve um papel relevante na proteção aos perseguidos políticos, sobretudo, após a institucionalização do Ato Institucional Número 5 (AI-5) em 1968 pelo regime ditatorial. Na mesma época, a atuação dos setores progressistas da Igreja Católica no Brasil foi marcada pela presença das CEBs, surgidas também entre os anos de 1960 e 1970, sob a orientação da Teologia da Libertação, que impulsionou decididamente a participação de “leigos”, e de pessoas de setores marginalizados da sociedade brasileira na vida política. A atuação das CEBs, comungando com as orientações da Teologia da Libertação e com o método de educação popular de Paulo Freire, apoiadas por “intelectuais orgânicos”21 das universidades e de classes populares, reflete a proposta que considera “o povo como sujeito de sua própria história” (DOIMO, 1995). Esta redescoberta do “povo” trouxe uma série questões sociologicamente importantes. Dentre elas o sentido de “comunidade”, assim como a noção de “classe popular”, que haviam ambas sido renegadas, por grande parte da intelectualidade acadêmica, sobretudo, os intelectuais de esquerda. Em São Luís, desde o final dos anos de 1960, as CEBs tiveram um papel importante. Padres missionários Redentoristas e Irmãs da Congregação Missionárias de Notre Dame de Namur, chegados a São Luís ainda nos anos de 1960, visitavam regularmente os povoados rurais de São Luís. Nos “festejos de santos padroeiros”, celebravam missas, faziam batizados e O conceito de “intelectuais orgânicos” foi elaborado por A. Gramsci (1995) ao referir-se ao papel desempenhado por intelectuais “especializados” e originados de seus respectivos grupos sociais ou de sua classe. Diz Gramsci (1995, p. 3): “[...]cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político [...]”. Organizar e expandir os interesses da própria classe, eis uma das funções elementares desse tipo de intelectual que, nesse sentido, deve reunir não somente habilidades intelectuais de sua atividade restrita no desempenho de suas funções econômicas, mas uma capacidade de “organizar a sociedade em geral” visando criar condições para expandir os interesses de sua classe. 21 46 casamentos, ao mesmo tempo em que aproveitavam a “oportunidade para começar a oferecer às pessoas um modo diferente de expressar sua fé” e de assumirem a responsabilidade pela organização de sua própria vida religiosa (ADRIANCE, 1996, p. 82). É nesse período que se registra presença de um trabalho de “educação popular”. O trabalho dos missionários tinha um caráter político pedagógico, pois, eles estimulavam, a partir das leituras bíblicas, a reflexão-ação sobre a realidade dos povoados e da vida das pessoas. Os problemas que atingiam os povoados rurais na Zona Rural de São Luís na época eram por um lado, a chegada dos “grileiros”22 e, por outro lado, a integração por parte do governo estadual, das terras dos pequenos produtores, em áreas do cinturão industrial. Para Adriance (1996), a questão fundiária em São Luís se tornou, na época, o principal problema discutido pelas CEBs e as preocupações ambientais também foram se aprofundando nos anos de 1980 com a instalação de indústrias na cidade. Veja-se, abaixo, um trecho do depoimento de Irmã Bárbara extraído de Adriance (1996, p. 83), referente ao método de trabalho das CEBs: [...] começamos com um método de reflexão-ação: a vida e o evangelho. Prestamos atenção à Palavra, à palavra viva na vida das pessoas. Então usamos a Palavra bíblica para trazer à luz aquela realidade e para motivar as pessoas a reagir a ela. Elas começaram ver as implicações das reflexões que faziam sobre a Bíblia e começaram a agir de modo a melhorar a própria vida. No início dos anos de 1980, iniciaram-se as obras de terraplanagem para instalação da Alcoa. Com o processo de desapropriação de terras, duas organizações populares tiveram importante papel nas ações de resistência. A Associação Agrícola do Cristo Redentor (ASSACRE), fundada em 1976 e que difundia técnicas de manejo e incentivava a realização de hortas comunitárias, e o Comitê de Defesa da Ilha, fundado em 1980 e formado por um grupo de militantes e intelectuais, entre estes, advogados, jornalistas, parlamentares de esquerda, funcionários públicos e religiosos ligados ao setor progressista da Igreja Católica. Na mesma época o Comitê de Defesa da Ilha, em conjunto com as organizações comunitárias e com as Pastorais da Igreja Católica, protagonizou a luta política em defesa dos povoados rurais e das causas ambientais, tendo como objeto de contestação a instalação da fábrica da Alcoa em São Luís. Segundo Eglish (1984, p. 28-29): [...] Ao mesmo tempo em que os moradores do interior da ilha estavam tentando se organizar, na cidade, o poeta e escritor, José Nascimento Moraes Filho, já reagia energicamente contra a Alcoa. Logo um grupo de pessoas de diversas profissões, preocupadas com a ecologia e com o prejuízo social reuniu-se com o professor Conforme Asselim (2009), a “grilagem” de terras consiste na falsificação de documentos visando à obtenção de escrituras de terra em cartórios, garantindo a titulação da propriedade privada das mesmas. “Grileiros” são aqueles que detêm títulos de propriedade de terras por meio destes procedimentos. 22 47 Nascimento, e juntos fundaram o Comitê de Defesa da Ilha de São Luís no dia 10 de agosto de 1980, data comemorativa de Gonçalves Dias, poeta da natureza. Esse Comitê com grande aceitação na comunidade, tem sido até agora o principal sustentáculo da luta popular contra a Alcoa. Através de um forte programa de comunicação nas ruas, nos jornais, no rádio e na TV, o Comitê prossegue em seu propósito de manter informada a população de São Luís, e de, assim, contribuir a seu senso crítico a respeito da Alcoa e do “progresso” trazido por essa companhia transnacional. Também lança-se sempre em ações concretas de apoio à população do interior da ilha à sua luta contra a Alcoa promovendo, na cidade, debates e manifestações sobre a ecologia e a conservação do meio-ambiente. E ainda, conforme relata Adriance (1996, p. 87), referindo-se as ações do Comitê: [...] em agosto de 1980, organizaram o Comitê para Defesa da Ilha, que iniciou uma campanha de esclarecimento ao público, por meio da imprensa nacional e internacional, sobre os perigos de uma refinaria de alumínio naquele local. O comitê providenciou amparo jurídico para os moradores dos povoados, desafiou judicialmente três vezes a Alcoa por ações ilegais, promoveu debates na televisão, estimulou o debate em programas de rádio e trabalhou em solidariedade com organizações ambientalistas internacionais.. Sobre os atores que integraram o Comitê de Defesa da Ilha, vale descrever o seu perfil e algumas ações importantes que caracterizaram o movimento de resistência naquela época. Destaco o papel político de um de seus fundadores, o Jornalista e poeta maranhense Nascimento de Moraes Filho, militante das causas sociais. Em um de seus poemas mais conhecidos, Clamor da Hora Presente, publicado em uma Edição do Bem-Te-Vi, Informativo do Comitê de Defesa da Ilha, em 200123, nota-se a crítica social deste poeta aos efeitos sociais e ambientais da Alcoa em São Luís. Abaixo dois trechos extraídos do poema: [...] Sou o filho da Miséria e da Injustiça / - Revolução é o meu nome! / Rugem dentro de mim/os desejos recalcados das multidões! / trago dentro em mim a angústia dos mártires / e arrastam-se comigo as vidas mutiladas! / Em cada lágrima de dor soluça uma inocência crucificada e estorcem-se comigo as dores dos séculos! / Na minha boca faminta, / tenho a fome de todos os que morrem sem comida! / Empunho a destruição das castas [...] / Vinde a mim! /Vinde a mim, jovens de todo o mundo! / Jovens, / A Liberdade é sol! [...] - Rebelai-vos! Rebelai-vos / Quebrai, ó almas acorrentadas, quebrai /as Pesadas Cadeias da Opressão! / Destruí os Monstros Sagrados,/ que vos devoram no Holocausto Social!…/ A Lei Servil – Capanga dos Potentados – /queimai-a! queimai-a! / A Toga Corrupta rasgai-a em praça pública,/rasgai-a! / E entronizai na Liberdade o Povo destronado! / Em vez das profanadas imagens das igrejas colocai uma letra do alfabeto em cada altar! [...]. (MORAES FILHO, 2001, p. 2). No trecho seguinte Nascimento de Moraes atribui ao consórcio da Alcoa (ALUMAR) os termos “Alu-mata” e “Besta Fera”, que foram utilizados como símbolos nas manifestações de resistência contra a fábrica de alumínio. Vós que fostes Jesus, há dois mil anos, / expulsai do Sagrado Templo da Humanidade, / As malditas Alcoas / - Bestas-Feras,/que, fantasiadas de ilusões douradas, / acenam23 Texto publicado na Edição Especial do Bem-Te-Vi, Informativo do Comitê de Defesa da Ilha de São Luís (set. 2001, p. 2). 48 vos com Esmeraldas da Esperança!… / - ALUMAR de Três Cabeças / (Billiton, Alcoa, Shell)! / Besta-Fera,/que, mascarada de Progresso, / Alu-mata A Terra!/ as Águas! / o Ar! / Alu-mata / O Verde!/ o Azul! / Alu-mata a Vida / Expulsai as Malditas Alcoas! / - Alcoas, que alu-matam o corpo! / - Alcoas, que alu-matam a alma! / Expulsai-as/com o látego de vossa cólera divina / - Expulsai-as! Expulsai-as! / Jovens,/O Novo Dia vos chama! /- Marchai! Marchai! / Condores,/O Infinito vos espera! /- Voai! (MORAES FILHO, 2001, p. 2). No Comitê de Defesa da Ilha participaram também, figuras importantes da política ambiental nacional como Raul Ximenes Galvão, químico e ambientalista que teve experiência como consultor da ONU para assuntos ambientais e, também, como assessor do Ministério do Planejamento. Em um trecho da entrevista publicada na “Revista de Ensino de Ciências”, n. 18, 1987, Raul Ximenes diz o seguinte: [...] Do meu ponto de vista o maior atentado ao meio ambiente é o que se faz no Golfão Maranhense, formado pelas baías de São Marcos e de São José. Esse estuário, um dos maiores lares de reprodução e alimentação de fauna marinha do litoral norte do Brasil, é integro, até os anos 80 passou a sofrer as consequências da construção do Porto da Madeira da Companhia Vale do Rio Doce e da instalação da ALCOA, multinacional do alumínio a que foi entregue 1/5 da ilha de São Luís [...] São Luís recebe cerca de 76 toneladas por dia de dióxido de enxofre e de fluoretos proveniente dessa indústria. (XIMENES, 1987) Em 1980, os representantes da Alcoa no Brasil estiveram em diferentes momentos na cidade de São Luís para tratar da viabilidade da indústria de alumínio. Como foi registrado pelo “Jornal Pequeno” do dia 5 de junho de 1980, enquanto os representantes da Alcoa ressaltavam “os reflexos (positivos) da implantação da indústria do Alumínio no Maranhão” e negavam “efeitos nocivos do impacto ecológico”, por outro lado, parlamentares oposicionistas e os movimentos sociais questionavam o “modelo de industrialização” em curso. O trecho abaixo, registrado pelo referido Jornal, sintetiza o conteúdo do discurso de intervenção do Deputado Haroldo Sabóia, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e membro do Comitê em Defesa da Ilha: [...] O deputado Haroldo Sabóia denunciou ontem da tribuna da Assembleia Legislativa a instalação de uma usina de produção de alumínio e alumina [...] A usina “transformará São Luis num lixeiro da produção capitalista [...] A multinacional precisará de 400 mil metros cúbicos de água e o Estado é que será o responsável por esse fornecimento através do Projeto Italuís [...] Haroldo assinala que “enquanto a Alcoa receberá quase de graça a bauxita, energia, transporte, água, terreno, São Luís receberá o lixo como resultado imediato dessa implantação. Esse lixo é formado pelas emissões de resíduos apelidado de lama vermelha, constituído de proporção quase igual a dos produtos exportados [...]. (JORNAL PEQUENO, 1980). A situação dos povoados impactados pela fábrica da Alcoa repercutiu também no âmbito da Câmara Federal e no Senado. Por meio dos contatos com as irmãs de Notre Dame, a notícia foi divulgada na imprensa internacional. Em 29 de junho de 1983, apareceu no Jornal Inglês Guardian Third World Report; em 15 de agosto de 1983 no Jornal World Environment 49 Report; em 22 de agosto de 1983 no Jornal of Commerce - todos repercutindo notícias sobre a resistência popular em São Luís (EGLISH, 1984). Ainda, é importante mencionar o papel das irmãs de Notre Dame de Namur quanto ao auxílio prestado ao Comitê de Defesa da Ilha. Além de Irmã Bárbara, mencionada acima, importa destacar a pessoa de Irmã Anne outra personagem importante no processo de educação popular em São Luís. Irmã Anne Caroline Wihbey, natal da cidade de Waterbury, Connecticut, nos Estados Unidos, e também da Congregação Irmãs de Notre Dame de Namur, chegou a São Luís no início dos anos 1970. Entre 1970 e 1980, atuou na área da saúde, sobretudo, com as mulheres da zona rural de São Luís. Junto com Irmã Bárbara, participou da resistência à implantação da Alcoa. Entre 1984 e 1998 permaneceu na Nicarágua a pedido de sua congregação e procurou aproximar as experiências nos dois países. Ao retornar em 1999, compartilhou suas experiências de participação nas reuniões da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas (ONU), cujos canais pode divulgar a situação das comunidades quilombolas do município de Alcântara-MA, onde desenvolve atividades de educação popular na área de saúde com as mulheres dessas comunidades e também passou a fazer parte da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luís. Em 2004 participou ativamente do Movimento Reage São Luís e, em 2006, recebeu o título de Cidadã Maranhense pela Assembleia Legislativa do Maranhão (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA. c2014). A contribuição de Irmã Anne nas discussões sobre ambiente em São Luís foi fundamental pela sua experiência em outros países, sobretudo pelo seu ativismo nas organizações internacionais, a exemplo da Organização Mundial da Saúde, e o compartilhamento dessas experiências com os membros do Comitê de Defesa da Ilha nos anos de 1980 e, posteriormente, nos anos de 2000, na resistência ao polo siderúrgico enquanto membro do Movimento Reage São Luís.24 Importa considerar que nesses registros de ações e discursos a colocação dos problemas ambientais nos anos de 1980. Seguindo os relatos de Eglish (1984), é possível considerar que as CEBs nesse momento, atuando em conjunto com as organizações, entre elas o Comitê, vinham incorporando, em seus trabalhos de “educação popular”, as reivindicações relativas a defesa do meio do meio ambiente. A situação mais emblemática no início de 1980 ocorreu com relação ao povoado de Igaraú, que sofreu fortes impactos ambientais e perda de grande parte de suas terras para instalação da fábrica de alumínio da Alcoa. As famílias que resistiram tiveram apoio do Comitê 24 Notas de depoimentos de Irmã Anne Caroline Wihbey, membro da Congregação Irmãs de Notre Dame em São Luis, em entrevista em 17 set. 2012. 50 de Defesa da Ilha, por meio de orientação e ações jurídicas. Na resistência conjunta com o Comitê, contestaram a concessão do terreno para instalação da fábrica pelo governo estadual, assim como, contestaram também, a construção de lagos de tratamento de resíduos químicos, os chamados “lagos vermelhos”. As famílias de Igaraú que resistiram passaram a denunciar as ameaças dos seguranças das empresas e de policiais militares aos moradores e, ao mesmo tempo, alegavam também haver riscos de contaminação pelos resíduos químicos depositados nos lagos. A imagem da Alcoa criada pelos movimentos nos anos de 1980, em especial, pelo Comitê em Defesa da Ilha foi representada através do desenho de um dragão apelidado de “besta fera”, imagem publicada em destaque no Informativo do Comitê de Defesa da Ilha, “contra a instalação da Alcoa no interior do capital maranhense”. Figura 1 – “Besta Fera”: imagem usada como símbolo de contestação pelo Comitê de Defesa da Ilha nos anos 1980. . Fonte: Edição Especial do Bem Te Vi, Informativo do Comitê de Defesa da Ilha de São Luís (Setembro de 2001, p.01) Na página 4 deste Informativo a imagem da “Besta Fera” está acompanhada de um trecho do poema “Clamor da Hora Presente”, do poeta Nascimento de Moraes Filho, que diz: “[...] ALUMAR de três cabeças, De três carrancas de incréu! Três desgraças num só corpo Biliton, Alcoa, Shel!!! / Fora, Alcoa! Fora Alcoa! / Credo em Cruz! Monstro infernal!! / Fora, Alcoa! Fora, Alcoa! / Fora, por bem ou por mal!!" 51 E os editores relatam ainda na mesma página uma matéria sobre a visita do Presidente da República, João Batista Figueiredo, à cidade de São Luís às vésperas das eleições de 15 de novembro de 1982. Durante a visita, em pronunciamento público, o general havia apelidado os membros do Comitê de “Profetas do Pessimismo”. Na mesma matéria, os membros do Comitê de Defesa da Ilha declaram o seguinte: [...] Profetas do Pessimismo por, prevermos em 1980, as desgraças que acontecem hoje![...] por lutarmos, desde 1980, contra as desgraças que acontecerão amanhã! E prega o presidente João Batista Figueiredo política de mão estendida para as multinacionais, para os poderosos e a mão esquerda, a sinistra, estendida para o povo...para puxá-lo para o abismo25. Além das denúncias contra o governo, do confronto com as corporações multinacionais, Shell, Billiton e Alcoa, o Comitê de Defesa da Ilha promoveu importantes debates nas rádios, denunciando a situação do povoado de Igaraú. A metáfora da “Besta Fera” foi a forma mais direta para chamar a atenção da população de São Luís sobre o poder destrutivo daquelas empresas. Tratava-se de um momento importante de mudanças sociais, de discussões e de formação deste “senso crítico” sobre o “progresso”, de que fala Eglish (1984). Projetar as duas imagens, de um lado, a da “besta fera” e, de outro, a dos “profetas do pessimismo”, é uma forma de traduzir a lógica dos conflitos, explicitando, inclusive, o cunho fortemente ideológico das noções de progresso e desenvolvimento, num momento significativo, em que ocorrem mudanças sociais importantes, como a chegada de empreendimentos industriais em São Luís no início dos anos de 1980. Na Edição Especial do “Bem Te Vi”, Informativo do Comitê de Defesa da Ilha de São Luís (O BEM TE VI, 2001, p. 3), os editores publicaram o conteúdo de um processo judicial, um “Recurso Especial” demandado por Nascimento de Moraes Filho, enquanto representante do Comitê de Defesa da Ilha que foi enviado ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE em 08 de agosto de 2000 e assinado pelo advogado Altamir Bastos Carvalho, membro do Comitê. O texto, “Razões do Recurso Especial” (BEM TE VI, 2001, p. 3), expunha as razões que levaram o Comitê em Defesa da Ilha a pedir a impugnação da candidatura de João Castelo a prefeito de São Luís, sob alegação de ser ele judicialmente responsável pelos danos ambientais provocados pela instalação da fábrica da Alcoa: [...] São Luís, rodeada de aririzais (palmeiras), juçarais, babaçuais, manguezais, região estuarina, com lâminas de água potável e lençóis freáticos, irremediavelmente comprometidos e destroçados com a instalação dessa fábrica de dura tecnologia, a qual emite gases de fluoreto, tem contaminado com vazamento as áreas de cobertura vegetal, motivo de inquérito civil público e propositura de ação civil pública pela 25 Ibdem. 52 Curadoria do Meio Ambiente, praticamente comprovando as alegações sustentadas na ação popular [...]. Em 2005, antigos membros do Comitê de Defesa da Ilha estiveram presentes nas Audiências Públicas para consulta da população de São Luís sobre a alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. As experiências de resistência e as consequências sociais e ambientais em decorrência da instalação da fábrica de alumínio da Alcoa (ALUMAR) foram lembradas para alertar sobre a possibilidade de instalação do polo siderúrgico anunciado pelo Governo do Maranhão e pela Companhia Vale. [...] Eu queria aqui dar o testemunho da chama que o Professor Nascimento (Nascimento de Moraes Filho) plantou quando da resistência contra a implantação aqui da ALUMAR. Ela germinou e ainda tem muita gente aqui resistindo contra essa implantação que não é mais uma ALUMAR, são três ALUMAR juntas. É preciso a gente dizer e dar o testemunho aqui e agradecer que ao Sr com os demais da época, foi importante para que esta chama continue viva em toda alma que está aqui presente, que ela vai ecoar no Maranhão todo [...]. (Raimundo Martins, morador da Zona Rural de São Luís)26 Entre 2004 e 2005, os povoados que se depararam com a ameaça de deslocamento para dar lugar ao projeto de instalação do polo siderúrgico, deram continuidade à experiência de mobilização dos anos de 1980 e, frequentemente, mencionaram em seus relatos o exemplo de organização política e de resistência dos moradores atingidos pela Companhia Vale do Rio Doce e pela ALUMAR, comparando-os à sua situação de ameaça atual. 26 Ata de Audiência Pública sobre a alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Luís, realizada em 8 mar. 2005 no povoado de Vila Maranhão em São Luís-MA. 53 2 DA “BESTA FERA” À PRETENSÃO DE “GIGANTES”: atores comerciais globais e a instalação de uma siderúrgica em São Luís-MA 2.1 Polo Siderúrgico de São Luís: contexto e descrição do projeto Após duas décadas da instalação da fábrica da Alcoa, foi planejado um grande projeto minero-metalúrgico para ser instalado em São Luís. O contexto era de crescente expansão mundial da economia de commodities e inserção da economia brasileira no processo de transnacionalização dos mercados de mineração (COELHO et al, 2010) envolvendo atores comerciais globais. Por outro lado, entretanto, havia que considerar que, para a concretização da expansão dos mercados globalizados, haveria a incorporação de territórios e alterações importantes na vida social das populações locais. Por outro lado, as populações locais inseridas nesses processos de expansão têm se mobilizado em vários sentidos: na perspectiva de obtenção de ganhos com novas oportunidades e também exigindo a permanência nos territórios buscando melhorias nos povoados tais como, asfaltamento das vias de acesso ao local de moradia, melhoria no transporte público, instalação de postos de saúde e de escolas, buscam do Estado as políticas sociais e, com as empresas buscam parceria por meio de projetos sociais. Assim, elas buscam canais institucionais de participação que, embora sendo restritos, abrem possibilidades de questionamento das tomadas decisão. Como comentei na introdução da tese, noções como “confronto” e “arena”, a partir da “socioantropologia” de Olivier de Sardan (1997), são elementos importantes neste estudo e informam a descrição do campo empírico. Para Olivier de Sardan (1997, p. 178), a ideia de Arena guarda aproximações com duas noções: a noção anglo-saxônica de social-field “espace transversal où coexistante des institutions et des rôles multiples” e a noção de champ usada por Bourdieu, considerando que se trata um “concept ouvert” e suscetível de variações e não unívoco. O champ é um espaço de relações de força e de poder. Esta perspectiva é adotada por Oliver de Sardan para formular um novo conceito que é o de “Arena”. Arène, entretanto, como propõe este autor, é um conceito mais pragmático e tem um conteúdo mais descritivo da ação, se comparado à ideia de champ. Notemos que o propósito de Olivier de Sardan (1997, p. 178179) é ampliar a noção de champ, uma vez que, na perspectiva de Bourdieu, se trata de uma “estrutura social autonomizada” com instituições, agentes especializados, hierarquia de posições, linguagens interiorizadas pelos agentes por meio do “habitus”. A noção de Arène é definida da seguinte forma: 54 Arène est une notion d`ordre plus interaccionniste, et aussi plus “politique” (au sens qu’à ce terme pour la sociologie des organisations) [...] au sens où nous l’entendons, est un lieu de confrontations concrètes d’acteurs sociaux en interaction autour d’enjeux communs. Elle relève d’un espace “local”. Un projet de développement est une arène. Le pouvoir villageois est une arène. Une coopérative est une arène. Arène a un contenu descriptif plus fort que champ. (OLIVIER DE SARDAN, 1997, p. 179). A noção de Arena será retomada mais adiante. Neste capítulo, começo descrevendo os atores sociais relevantes que, por assim dizer, compuseram a Arena pública da disputa em torno da proposta de instalação do polo siderúrgico. Pode-se dizer que nesta experiência do polo siderúrgico há múltiplas lógicas em processo de “confrontação” informadas pelas diferentes formas de uso social dos territórios e de seus recursos em questão, entretanto, destaco duas lógicas de confronto como sendo as mais expressivas. De um lado, a luta por parte dos povoados rurais que historicamente resistem ao deslocamento para instalação de empreendimentos industriais e seus aliados. Por outro, as investidas contínuas por parte do Estado e da iniciativa privada em converter as áreas rurais em áreas industriais para efetivar a instalação de indústrias. Relevante também é o papel da imprensa como ator social no processo de formação da opinião pública. A imprensa tem um papel crucial, pois a produção da informação sobre o andamento das negociações entre o governo maranhense com a Companhia Vale e os investidores estrangeiros reflete seus interesses assumidos com os grupos políticos em disputa no âmbito local. O exemplo desse reflexo está nas posições assumidas se não declaradamente, mas pelo menos indiretamente. Nas circunstâncias do debate sobre o polo siderúrgico entre 2004 e 2005, é possível identificar a posição dos órgãos de imprensa com relação à decisão do governo estadual. Em 2004, o Maranhão estava sendo governado por um grupo político de oposição ao grupo político do Senador José Sarney que embora sendo eleito pelo Estado do Amapá, mantém vínculos políticos no Maranhão. De fato, um dos Jornais de maior circulação no Maranhão, o “Jornal O Estado do Maranhão”, durante o período em que se discutiu o projeto siderúrgico entre 2004 e 2005, apresentou várias matérias apontando e reforçando os entraves para viabilizar o projeto siderúrgico. Ao mesmo tempo, este jornal deu destaque à pressão dos movimentos de resistência nas audiências públicas. Em posição oposta, o Jornal Pequeno, coordenado por um grupo de jornalistas de oposição ao grupo do Senador Sarney, publicava notícias positivas quanto ao polo e minimizando as notícias sobre a pressão ao movimento e os seus argumentos ambientais. Há inúmeras matérias destes dois jornais cujos conteúdos a cerca do debate do polo siderúrgico permite identificar a posição. Mostro um exemplo abaixo. 55 Sobre a cobertura da votação da Lei nº. 63 de 27 de abril de 2005 na 37ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de São Luís. O “Jornal O Estado do Maranhão” enfatiza a posição dos vereadores contrários ao Projeto de Lei para alterar o zoneamento de São Luís, Abdom Murad criticou a urgência na votação alegando desconhecer o parecer do presidente da Comissão de Orçamento e Finanças [...] O vereador Joberval Bertoldo (PCB) disse que o projeto não poderia ser votado em regime de urgência, pois o plenário havia acordado que manteria a tramitação normal de todas as matérias. Ele também pediu vista do projeto, mas foi negado [...] A vereadora Marília Mendonça (PDT) também criticou o trabalho da Mesa Diretora. “Fico triste com o que está acontecendo aqui. Nesse momento, estão desrespeitando o regime interno da Casa. Além disso, há falta de respeito com a sociedade que votou em cada um de nós e que participou das 11 audiências públicas realizadas pelo legislativo [...]. (JORNAL O ESTADO DO MARANHÃO, 2005). O “Jornal Pequeno” sobre o mesmo evento não deu vozes à posição contrária ao projeto e enfocou o seguinte: Cerca de 10 pessoas tentaram impedir ontem a votação da emenda na Lei de Zoneamento na Câmara [...] A manifestação não foi aceita por populares que se encontravam no local [...] a votação seguiu sem maiores problemas [...] O grupo que promoveu o tumulto [...] era formado por militantes do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), já conhecido por suas manifestações agressivas. (JORNAL PEQUENO, 2005). A composição da “Arena” que se constituiu em torno do polo siderúrgico, é aqui compreendida, substancialmente, na perspectiva da “ambientalização” dos conflitos sociais como processo histórico (LOPES, 2004) ou, mais especificamente, pela ótica dos “conflitos ambientais”, ou seja, aqueles tipos de conflitos gerados quando pelo menos um dos grupos em questão tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio ameaçada. E, ainda, se remetem mais diretamente aos impactos indesejáveis provocados por processos de industrialização e quando estes comprometem, por seus efeitos, a manutenção de práticas de outros setores sociais (ACSELRAD, 2004). Pode-se dizer que essa é a motivação para a ação coletiva que no geral circunscreve os conflitos em torno do polo siderúrgico. A configuração da arena política em torno do polo siderúrgico, se constituiu de uma complexa, ampla e diversificada rede de atores políticos locais (a formação do Reage São Luís como veremos adiante) e de agentes políticos e econômicos locais e internacionais. 2.2 Atores sociais globais na disputa territorial para construção do polo siderúrgico de São Luís Recorrendo ao site da Companhia Vale (VALE, c.2009) em seus arquivos disponibilizados em “Vale na Imprensa”, constatei que destacam o crescimento da empresa no 56 mercado internacional nos anos de 2000. No ranking das empresas brasileiras, a Vale, em 2003, ficava atrás da Petrobrás e ultrapassava a Embraer no comércio exterior, pois saltara de US$ 1,790 bilhões, em 2002, para US$ 2,033 em exportações, em 2003, segundo o Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (EXPORTAÇÃO..., 2004). Em 2003 a economia brasileira encontrava-se em alta nas operações de exportação e a Companhia Vale havia se tornado um ator comercial importante no mercado internacional de commodities (VALE..., 2004). Acompanhando o crescimento da economia nacional e da imagem do Brasil nas relações comerciais, a Vale ampliou seus negócios e ao mesmo tempo consolidou acordos e contratos de longo prazo com parceiros internacionais, reajustando em cerca de 18% os preços dos insumos, em dólar. A Vale, então, se tornou a maior produtora mundial de minério de ferro (VELLOSO, 2004), sendo este produto responsável por 65% de sua receita. Enquanto que a China, em 2003, tornou-se o maior importador de aço do Brasil (MAGNAVITA, 2004). Foi nesse cenário que se abriu um canal de diálogo por iniciativa da Companhia Vale, com a maior siderúrgica chinesa, a Baosteel Shanghai Group Corporation, com a siderúrgica francesa Arcelor (maior siderúrgica do mundo que também mantém acordos comerciais com a Vale) e com o Governo do Maranhão, visando à instalação de uma usina siderúrgica integrada, ou seja, uma modalidade de usina que opera nas três fases do processo produtivo siderúrgico: redução, refino e laminação - na área do Complexo Portuário de São Luís. No Quadro 2, podemos visualizar no ranking mundial de produção de aço as 10 maiores siderúrgicas. Entre estas, a posição das quatro empresas incluídas no polo siderúrgico de São Luís: a Arcelor, Posco, Shangai Baosteele a Thyssenkrupp. Quadro 2 – 10 maiores siderurgias do mundo em 2003 Posição 1ª Siderúrgica ARCELOR Produção/2003 Milhões/Ton 42,8 2ª LMN 35,3 3ª NIPPON STEEL 31,3 4ª JFE 30,2 5ª POSCO 28,8 6ª SHANGAI BAOSTEEL 19,9 7ª CORUS GROUP 19,1 8ª US STEEL 17,9 9ª THYSSENKRUPP 16,1 10ª NUCOR Co 15,8 TOTAL Fonte: IISI (International Iron and Steel Institute, 2003 apud ZAGALLO, 2004). 257,3 57 O consórcio que estava sendo formado na ocasião seria representado principalmente pela Baosteel como acionista majoritária e a Companhia Vale como sócia minoritária, além de outras empresas do ramo siderúrgico cujas parcerias estavam sendo anunciadas, tais como a sul-coreana Posco e a alemã ThyssenKrupp. A instalação do empreendimento siderúrgico composto de três usinas estava prevista para 2006 e o início das operações a partir de 2007. Em termos de produção, a projeção dos sócios era produzir na primeira fase 3,7 milhões de toneladas de placas de aço/ano. Com a construção da segunda unidade, havia a previsão de aumento para 7,5 milhões de toneladas/ano e, por último, a projeção de atingir a produção de 24 milhões de toneladas anuais com as três unidades nas fases subsequentes (DAMÉ, 2004). Em termos comparativos, observar-se os seguintes dados: a produção de aço do Brasil, em 2003, havia sido registrada com 31 milhões de toneladas, enquanto a produção mundial foi de 965 milhões de toneladas de aço (International Iron and Steel Institute, 2003 apud ZAGALLO, 2004). Assim, a produção pretendida pela Companhia Vale do Rio Doce equivaleria a 80% da produção brasileira e 2,5% da produção mundial de 2003. Se concretizada a pretensão da Vale e do Governo do Estado, a Ilha de São Luís seria o 11º maior produtor mundial de aço, à frente de países como França, Inglaterra e Espanha (ZAGALLO, 2004)27. Ainda sobre as projeções de produção de placas de aço pelo projeto siderúrgico, em maio de 2004, a Vale e o Governo do Maranhão anunciavam à imprensa que havia interesse dos sócios do empreendimento de, em dez anos, atingir 30 milhões de toneladas/ano de placas de aço. Com esta projeção, a siderúrgica de São Luís produziria sozinha aproximadamente a mesma quantidade de produção de aço produzida no país, como um todo (MA..., 2004). No primeiro semestre de 2004, a Vale anunciava que os sócios do empreendimento já haviam feito acordo de prestação de serviço de engenharia básica e estudo de viabilidade econômica do projeto com as empresas: Ferrostaal, alemã, e CISDE Engineering, chinesa (MAGNAVITA, 2004). O projeto tinha como previsão de investimentos US$ 1,5 bilhão, na primeira etapa, sendo que 40% seriam divididos pelos três principais acionistas (Baosteel, Vale e Arcelor) e 60% dos investimentos viriam de bancos de fomento, tais como, o banco alemão KfWBankengrouppe, o banco japonês Eximbanke, e também, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). 27 Polo Siderúrgico em São Luís: impactos sociais e riscos ambientais. Informativo de 2 páginas, elaborado pelo advogado José Guilherme Zagallo (ZAGALLO, 2004). 58 A mobilização e envolvimento de atores econômicos internacionais no projeto siderúrgico de São Luís se deu a partir do envolvimento dos seguintes atores: a empresa brasileira Companhia Vale, a empresa chinesa Baosteel Shanghai Group Corporation, a francesa Arcelor, a sul-coreana Posco e a alemã ThyssenKrupp; empresas de engenharia e de estudos de viabilidade econômica: Ferrostaal (Alemanha), CISDE Engineering (China); bancos: KfWBankengrouppe (Alemão), Eximbanke (Japão), BNDES (Brasil). O então Governador do Maranhão, Sr. José Reinaldo Tavares, relata a ideia inicial do projeto em São Luís em entrevista: [...] A ideia da siderurgia não partiu do estado - partiu da Vale. Ela tinha uma política naquela época de não fazer siderurgia para não competir com os compradores de minério, mas ela tinha uma política de se associar para aumentar o consumo de minério através da edificação de siderúrgicas e chegou a primeira vez um estudo de localização que a Vale havia feito de uma usina siderúrgica para aproveitar o minério do Carajás e ela cotejou Belém, porto de Santarém se não me engano e outro porto do Pará, Barcarena e São Luís. E o estudo que foi feito mostrou que uma localização aqui era muito mais econômica para um projeto de competição externa, ele diminuía muito os custos de transporte interno e (o estudo) recomendava que fosse aqui em São Luís e a própria Vale me procurou, me mostrou e nós começamos a trabalhar juntos. E a Vale fez vários estudos e em sequência, escolheu um parceiro internacional que era a Baosteel de Shanghai e os chineses queriam muito fazer esse projeto e nós fizemos alguns estudos aqui junto com a Vale. E eu estive em Shanghai por duas vezes nesse ano de 2004 em que nós conversamos com toda a cúpula da Baosteel, o presidente e o encarregado do projeto daqui. A Baosteel contratou alguns projetos que faltavam. A Vale estava desenvolvendo um projeto ambiental, inclusive com um sistema de aviso de emissão acima de um determinado nível e a Baosteel contratou uns projetos mais afetos a construção da usina que era o projeto de engenharia da usina. O processo de viabilidade e de financiamento de uma usina daquele tamanho e os estudos deram um resultado muito bom e aí nós contratamos um estudo de uma empresa mineira [...] um estudo de impacto que ocorreria na região metropolitana em São Luís. A quantidade de empregos que seriam criados, a exigência de infraestrutura urbana e habitações. Enfim, um estudo grande sobre o impacto de uma siderúrgica desse tamanho e também o tipo de treinamento e capacitação que teria que ser iniciado no estado para que os maranhenses pudessem ter acesso aos empregos. (José Reinaldo Tavares, Ex. Governados do Maranhão. Entrevista realizada em 18.03.2013). Lima (2009, p. 233), observou que o projeto do polo siderúrgico despertou enorme interesse dos estados do Maranhão e do Pará, uma vez que, siderúrgicas desse porte no Brasil só existiam quatros: Companhia Siderúrgica Nacional (RJ), Usiminas (MG), Cosipa (SP) e Companhia Siderúrgica de Tubarão (SC). Considerando as vantagens comparativas advindas da instalação em São Luís, pode-se destacar que a Vale teria o benefício de manutenção de sua própria logística integrada: mina-ferrovia-porto, a mina na Serra dos Carajás no Pará, a Estrada de Ferro de Carajás, ligando a mina ao Terminal Marítimo de Ponta da Madeira em São Luís, cuja localização é mais próxima aos mercados norte-americanos e europeus (VALE, c2009). Outro fator importante seria a proximidade do local da siderúrgica com a Hidrelétrica de Estreito (MA) na divisa do Maranhão com o Tocantins, no rio Tocantins, de onde a siderúrgica 59 receberia energia. Esses fatores representavam uma redução considerável de custos operacionais de produção e aumentariam o grau de competitividade diante dos demais concorrentes globais. O projeto contava com o apoio político e institucional por parte do governo brasileiro, por meio do Ministro do Desenvolvimento e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, “articulador” das negociações com o Ministério da Fazenda e com Ministério do Meio Ambiente visando respectivamente reduzir a carga tributária e minimizar os condicionantes ambientais, vistos como empecilhos do projeto (MONTELES, 2005a). Mapa 2 – Localização da área para instalação do polo siderúrgico de São Luís, em destaque as Áreas de Influência Direta (AID) do empreendimento siderúrgico. Fonte: Maranhão (2004b). O Governo do Maranhão agilizou os pactos de aliança e unidade política (POLO..., 2005), bem como as medidas políticas e administrativas no âmbito de sua competência estadual para que o projeto fosse implementado, promovendo encontros com empresários e convocando as instituições governamentais e não-governamentais no âmbito regional para discussão e envolvimento com o projeto. O Governo Estadual, mediante a presença dos executivos da Companhia Vale e da Baosteel em visita técnica em São Luís em agosto de 2004, procurou demonstrar que haveria possibilidade de ampliação da capacidade de abastecimento de água da Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (CAEMA) visando atender a demanda do polo siderúrgico. Conforme foi destacado pelo “Jornal Gazeta Mecantil” sobre uma das visitas técnicas em 8 de abril de 2004 em São Luís: 60 [...] Objetivo é obter do governo a garantia de abastecimento de água e energia para a usina, avaliada em US$ 1,5 bilhão, que vai produzir placas de aço a partir de 2007 com destino a exportação. Depois de uma extensa programação de reuniões técnicas e visita a obras de ampliação do abastecimento de água na Ilha durante o dia de ontem, os executivos das duas empresas visitam hoje uma subestação da Eletronorte, no Distrito Industrial de São Luís. O consumo de água estimado da usina é de 500 litros por segundo (0,5 metros cúbicos por segundo) na primeira fase (2007) e 1000 litros por segundo na segunda fase (2010) [...] Em uma reunião técnica com o presidente da Companhia de Águas e Esgoto do Maranhão (Caema), Ronaldo Braga, na sede da empresa em São Luís, os executivos obtiveram detalhes do projeto de duplicação do sistema produtor do Itapecuru, denominado Italuís, que prevê a garantia de abastecimento para o setor industrial. Também fizeram uma visita técnica ao Sistema Italuís e aos rios Munim e Mearim. "O processo siderúrgico é intenso em água, que não pode faltar. Estamos afirmando algumas informações que já haviam sido repassadas antes para que os investidores possam sentir segurança no governo", observou Ronaldo Braga. O projeto de ampliação de abastecimento de água prevê a disponibilidade para a indústria. Para isso, a Caema pretende construir elevatória de água decantada e adutoras para abastecer as zonas industriais. "A disponibilidade de água às indústrias é aquela que for necessária", disse Ronaldo Braga, ao ressaltar a capacidade do Maranhão em oferecer infra-estrutura básica às indústrias que queiram se instalar no Estado. "Temos as três maiores bacias hidrográficas do Nordeste que são os rios Mearim, Munim e Itapecuru, todas próximas à Ilha", disse Ronaldo Braga, destacando que o Maranhão tem condições de atender mais 10 projetos como o da Baosteel. (MONTELES, 2005a). Sobre a questão do abastecimento de água para atender o polo siderúrgico, é importante destacar que foi um forte argumento de contestação do Reage São Luís com base em dados científicos (ver item 4.1.2). Outra preocupação levantada no encontro do governo estadual com os executivos foi quanto ao fornecimento de energia. Na ocasião dessa visita, o governo maranhense estava viabilizando medidas para o fornecimento de energia através da Hidrelétrica de Estreito e da Eletronorte, pois o consumo de energia previsto seria de 200 MW (MONTELES, 2004). Mediante as condições de logísticas, conforme declarou na imprensa o presidente da Vale, Roger Agnelli, a cidade de São Luís “é o melhor lugar do mundo para siderurgia” (JORNAL O IMPARCIAL, 2004). Entre as pendências a serem resolvidas por parte do Governo do Maranhão e da Prefeitura de São Luís, estavam a urgência na alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano do Município de São Luís (Lei Municipal nº. 3.253/92), em vigor desde 1992, para então criar as condições para o estabelecimento do Subdistrito Siderúrgico (ver Mapa 2) para instalação das usinas e os estudos de impacto ambiental. O Governo do Maranhão ainda não havia definido legalmente o local para onde as famílias seriam reassentadas. Neste mapa se nota a existência de um “reassentamento provável” e distante das áreas pesqueiras, onde grande parte das famílias tradicionalmente desenvolve atividades de subsistência. A tentativa de converter a Zona Rural II de São Luís em área industrial, entretanto, já vinha gerando discussões desde 2001, com os debates sobre a revisão do Plano Diretor de 61 São Luís (CONCEIÇÃO, 2009). De modo que, com a proposta da siderurgia esse debate foi precipitado, sendo objeto de intensa discussão pela sociedade civil de São Luís. Mapa 3 – Planta Geral de Locação do Polo Siderúrgico de São Luís Fonte: Maranhão (2004b) A Prefeitura de São Luís, na época por meio do Prefeito Tadeu Palácio, mobilizou as forças políticas e as ações administrativas em conjunto com o governo estadual, propondo alteração da referida Lei visando à viabilidade legal da siderurgia28. Em reunião no Rio de Janeiro com o Presidente da Vale, em 28 de março de 2005, o governador do Maranhão José Reinaldo Tavares declarou à imprensa que “a conversa foi franca e muito boa. Embora ainda não tenha uma posição definitiva por parte do investidor” (MONTELES, 2005b). Na mesma ocasião, o Governador mencionava os entraves: os altos impostos exigidos aos investidores pelo governo brasileiro e a negociação com o IBAMA quanto à questão da licença ambiental; neste caso, sob a responsabilidade do governo federal. O Governo do Maranhão encomendou, através da empresa de consultoria ERM LTDA, um estudo técnico para subsidiar a elaboração do EIA-RIMA e para, em seguida, instaurar o processo de licenciamento ambiental prévio do Subdistrito Industrial Siderúrgico de São Luís, em cumprimento aos artigos 241, VIII e 242, § 28 A disputa política envolvendo o poder executivo municipal, o poder legislativo, o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal e as entidades e movimentos sociais para alteração da Lei de Zoneamento apresenta desdobramentos importantes para análise deste trabalho, razão pela qual merece um capítulo à parte mais adiante. 62 1o, da Constituição do Estado do Maranhão e às Resoluções do Conama nº 001/86 e nº. 237/97 (MARANHÃO, 2004b). A Companhia Vale, por sua vez, apresentou um “Diagnóstico do Meio Biótico para o Licenciamento Ambiental da Usina Siderúrgica,” realizado pela Golder Associates Brasil, Consultoria e Projetos LTDA, mostrando que a região escolhida para a instalação do projeto, apresenta “[...] maior desenvolvimento econômico do Estado e dotada de melhores condições de logística e de infraestrutura”. Este mesmo estudo adverte que se trata de uma região que “[...] apresenta área ocupada por manguezais e outras fisionomias vegetais importantes e fauna associada [...]” (VALE..., 2004, p. 1). Notemos que, a previsão de início das obras da siderurgia de São Luís era para 2006. Entretanto, em março de 2005, estas pendências não estavam resolvidas. A partir do ano de 2005, a Companhia Vale passou a pressionar o Governo do Maranhão quanto às providências administrativas, conforme se lê em trecho da Carta enviada pelo então presidente da Vale Jorge Agnelli ao Governador do Maranhão, José Reinaldo Tavares, em 09 de agosto de 2005, e publicada pelo Jornal Pequeno, em 28 de agosto de 2005: [...] Ao longo do corrente ano, assistimos um processo crescente de descredenciamento do projeto do Governo do Estado do Maranhão de promover a instalação do Subdistrito Siderúrgico no qual vêm sendo utilizados argumentos inconsistentes, mas que serviram ao propósito de alguns segmentos organizados da sociedade maranhense de obstaculizar o estabelecimento do projeto. Uma das consequências práticas mais evidentes das dificuldades de materialização do subdistrito é explicitada nos trâmites do processo de modificação da Lei de Zoneamento, Uso e ocupação do Solo, até hoje, inconclusivo, o que determina a inviabilidade da instalação de empreendimento siderúrgico em São Luís [...] listamos de forma clara as condições necessárias para que o projeto pudesse ser instalado. Infelizmente, nenhuma das mesmas foi realizada, o que vem colocando a CVRD, em seu papel de indutora do projeto, numa situação difícil e desgastante junto aos parceiros Baosteel e Arcelor, e também junto ao governo federal [...] A menos que novos fatos, tais como acesso livre e desimpedido do terreno, aprovação do zoneamento, e as concessões das licenças ambientais venham a ocorrer, iremos, nos próximos dias, comunicar formalmente aos nossos parceiros a total inviabilidade da instalação do projeto, deixando a critério dos mesmos a decisão sobre o cancelamento ou relocação da usina [...] (A VALE..., 2005). Entre o final de 2005 e início de 2006, houve uma tentativa de renegociação, pois, devido aos entraves legais e à pressão dos movimentos de reação, os investidores começaram anunciar o desinteresse pelo Maranhão. Nesta ameaça de mudança de rumo das negociações, estava o fato de que, em 2005, o Governo do Maranhão já não concordava com instalação da siderurgia na cidade de São Luís e pretendia que ela fosse instalada no continente, sugerindo para tanto o município de Bacabeira, a 66 quilômetros de São Luís. Segundo avaliação do governo do estado, Bacabeira apresentava condições ambientais e logísticas mais adequadas e, no continente, era o município mais próximo do Complexo Portuário de São Luís. Essa sugestão do Governo Estadual, motivada pela pressão do movimento de indicar a siderúrgica para o 63 continente, mudava consideravelmente o plano inicial quanto à infraestrutura. A siderurgia tinha um orçamento inicial estimado de no máximo em US$ 4 bilhões, com a mudança da localização, este valor seria acrescido em mais US$ 600 milhões, o que desagradava os investidores. Em segundo lugar, havia aquilo que na visão dos planejadores do polo siderúrgico era considerado como “intransigência do IBAMA” quanto à liberação do licenciamento ambiental (QUEIROZ, 2005). Além dessas medidas, o projeto ainda teria que tramitar por pelo menos três processos de licenciamento ambiental: do Subdistrito Siderúrgico (no qual seriam alocadas as três unidades de usinas siderúrgicas e duas guseiras), da ampliação do Porto de Itaqui e das obras de ampliação do sistema de captação de água, pois, havia uma estimativa do consumo de 2.400 litros de água por segundo, correspondente aproximadamente ao total do consumo da população de São Luís. A água seria captada do Rio Itapecuru, que passa por estado adiantado de assoreamento e poluição. Ademais, o processo de licenciamento exige audiências públicas, cuja participação e demora no andamento do processo, no entendimento dos investidores, se constituiu como “obstáculos” ao polo siderúrgico. Em 2004, 18 projetos de hidrelétricas estavam paralisados por não terem a licença ambiental liberada pelo IBAMA. O governo brasileiro procurou estabelecer uma “agenda positiva” entre os diferentes ministérios e seus respectivos órgãos, entre os quais o Ministério do Meio Ambiente e o IBAMA foram chamados a manter “diálogo” com os demais ministérios e organizações empresariais como a Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústria de Base (ABDIB). Para os agentes econômicos (estatais e privados), a questão ambiental naquele momento era um “gargalo” do crescimento econômico. Importa lembrar, o Ministério do Meio ambiente em 2004 estava sob o comando da ecologista Marina Silva (2003-2008), cuja gestão não raramente manteve-se na contraposição aos projetos de desenvolvimento de grandes impactos, resultando em fortes pressões políticas para liberação de licenças ambientais e, consequentemente, mais tarde, o pedido de demissão da Ministra Marina Silva (QUEIROZ, 2005). É relevante considerar que os sócios no projeto siderúrgico de São Luís são agentes econômicos que operam em escala global e, no Brasil, encontram fortes incentivos estatais para transitar nos territórios economicamente favoráveis aos seus negócios. Neste caso, trata-se de um tipo de território que pode ser concebido como “espaço sídero-logístico”, ou seja, um território constituído pelo encadeamento produtivo entre os centros logísticos e a infraestrutura ferro-portuária (SANTOS, 2010). Na correlação de forças entre estes agentes comerciais globais e os atores locais, a capacidade de imposição política e econômica dos primeiros é muito maior do que a capacidade destes últimos em exigir do Estado a imposição das regulações para 64 as condições adequadas de operacionalização de suas atividades, sobretudo, quanto aos condicionantes ambientais. Os impasses nas decisões governamentais, entretanto, começaram a gerar por parte dos investidores a ameaça de desistência do empreendimento siderúrgico de São Luís. Essa situação se configurou dessa forma como uma “chantagem locacional”29. Lembramos que a janela de oportunidade criada no mercado internacional para a transferência de produção para os países em desenvolvimento é transitória, e que existem outros países, tais como a Austrália e a Índia, que vêm apresentando uma série de incentivos para atração de projetos semelhantes, concorrendo diretamente com o Brasil. Apesar do anteriormente mencionado e do acima exposto, continuamos nossa tentativa com a Posco, no que refere aos estudos para instalação de sua nova usina no Brasil, mais precisamente no Maranhão [...] Lamentamos que o Estado do Maranhão não tenha conseguido reunir e alinhar todos os segmentos da sociedade num esforço comum para disponibilizar as condições mínimas para a atração de um projeto desta importância e magnitude não somente para o estado, mas também para o Brasil. (A VALE..., 2005). A partir de 2005, os representantes da Vale e da Baosteel já anunciavam o interesse em instalar a siderúrgica em Vitória-ES em decorrência do atraso do cronograma para instalação da siderurgia em São Luís. Outros estados estariam “abrindo as portas e oferecendo vantagens” aos investidores. A Vale diz que o Maranhão é uma de suas opções para a siderúrgica. Mas não é a única, até porque outros estados estão abrindo as portas e oferecendo vantagens [...] Apenas rejeitar um projeto dessa envergadura sem analisar profundamente todas as alternativas e nuances, é um pecado grave do qual, certamente, não será perdoado pela população. O Maranhão não pode ficar novamente apenas como expectador, vendo navios carregados de minério, cruzarem a baía de São Marcos levando a riqueza e deixando o atraso. (JORNAL O IMPARCIAL, 2007). O texto supracitado reflete uma opinião com relação à expectativa traduzida em termos de “oportunidade” e de “alternativa” de emprego e renda com uma siderurgia de proporções como as anunciadas até então pela Vale e pelo Governo do Maranhão. Que outros fatores, entretanto, teriam sido importantes para a desistência dos investidores com relação ao Maranhão? Muitos fatores estão em jogo. Em torno dessa preocupação os movimentos sociais se organizaram tendo um papel político significativo nas discussões sobre a siderurgia. Retomo aqui, trecho da fala acima mencionada do presidente da Companhia Vale que, não sem razão, ao perceber o poder dos movimentos sociais declara que no “processo de descredenciamento”, foram utilizados “argumentos inconsistentes”, mas que “[...] serviram ao propósito de alguns segmentos organizados da sociedade maranhense de obstaculizar o estabelecimento do projeto 29 Esta expressão tem sido utilizada por alguns autores para caracterizar a situação na qual os investidores colocam regiões em competição em torno do interesse despertado pelas oportunidades de criação de empregos para as populações locais e pela geração de divisas e receitas públicas. Quando não conseguem as vantagens fiscais, terrenos para instalação de empreendimentos, flexibilização de normas ambientais, ameaçam a “[...] deslocalização de seus empreendimentos”. (ACSELRAD; BEZERRA, 2010). 65 [...]” (JORNAL O IMPARCIAL, 2007). Nesse trecho, é possível perceber a importância dada por um representante de um ator econômico global importante, inclusive reconhecendo os movimentos organizados do Maranhão. A esses argumentos dos movimentos e desses atores locais é que procuro dar visibilidade nos próximos capítulos. 66 3 AÇÕES COLETIVAS DE CONTESTAÇÕES ACERCA DO POLO SIDERÚRGICO DE SÃO LUÍS-MA Neste capítulo procuro descrever e analisar as formas de mobilização contrárias à instalação do polo siderúrgico de São Luís. Antes, porém, de adentrar na descrição das formas de mobilização, procuro fazer uma discussão introdutória balizada por alguns autores cujas reflexões serviram de base para elaboração deste capítulo. Habermas (2003) assinala que é com a modernidade que se inaugura uma distinção institucional entre “esfera pública”30 e “esfera privada” em decorrência de mudanças estruturais produzidas pelas revoluções burguesas na Europa (a partir da segunda metade do século XVIII, principalmente) e a ascensão do modelo político republicano. O cerne da discussão que aqui interessa é a hipótese de que com o surgimento de uma “esfera pública política” se consolidaram os princípios de universalidade, de racionalidade e de impessoalidade favorecendo a emergência de uma “sociedade civil” cujo poder se tornara independente da vontade pessoal do governante. Este processo marcaria assim uma ruptura importante no modo de governar. Mas a aplicabilidade deste referencial deve ser relativizada considerando as singularidades políticas e institucionais de cada contexto, a exemplo do Brasil. Os críticos de Habermas, ao lançarem mão de suas teorias, procuram reconectar a articulação entre Estado e sociedade dentro da esfera pública para pensar as experiências de participação da sociedade civil nas agendas deliberativas do Brasil, principalmente após o processo de redemocratização a partir de 1988. Algumas experiências localizadas ilustram a busca dessa reconexão considerando as peculiaridades das instituições políticas e dos processos deliberativos no Brasil atual. Como ilustrou Almeida (2008) na experiência dos conselhos de saúde e de educação na cidade de Juiz de Fora–MG, é preciso compreender que os espaços de natureza deliberativa no Brasil articulam sociedade e Estado. Dessa forma, esta autora alerta que, para o caso dos conselhos de políticas públicas, se trata de “experiências que conjugam participação e representação na medida em que os atores são eleitos com o objetivo de exercer o papel de representantes da sociedade civil” (ALMEIDA, 2008, p. 185). Tais representações diferem assim, daquelas exercidas tradicionalmente via experiência parlamentar. Em resumo, está em questão as especificidades dos canais de participação política no Brasil, onde a divisão entre sociedade civil e estado é problematizável, A noção de “esfera pública” é desenvolvida na obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (2003). A análise de Habermas, é também no sentido de um processo de autonomização de várias “esferas”, como é o caso da “esfera pública da arte”, “esfera pública da literatura” e o caso da estruturação da “esfera pública política”. A analogia a esses termos refere-se a “questão ambiental” como uma “esfera” que nas últimas décadas passou a ser preocupação dos governos e uma significativa temática de pesquisa em ciências sociais. 30 67 sobretudo na atual conjuntura em que o Estado incorpora demandas da sociedade pela mediação dos conselhos populares. Por outra via, essa relação entre estado e sociedade, Touraine (1994) assinala que a modernidade implicou num duplo processo contraditório e complementar. Se de um lado, ela gerou um processo de racionalização do mundo, por outro, há que se notar “a emergência do sujeito humano como liberdade e como criação”, ou seja, o sujeito como um processo de subjetivação. Assim, “é a livre produção de si mesmo que leva a afirmar o sujeito e seus direitos em um mundo onde o ser humano é transformado em objeto” (TOURAINE, 1994, p. 248). Isto implica teoricamente uma conexão entre as “estruturas” institucionais do poder estabelecido na figura do Estado e a constituição de “agências” nas quais os atores constroem mecanismos de acessibilidade à política. Segundo Gohn (2012, p. 97), o mérito desta “abordagem acionalista” de Touraine (1994, p. 248) reside na importância conferida aos sujeitos na história “[...] como agentes dinâmicos, produtores de reivindicações e demandas, e não como simples representantes de papéis pré-atribuídos pelo lugar que ocupam no sistema de produção”. No âmbito do campo ambiental é importante considerar seus desdobramentos, sobretudo com relação aos diferentes interesses nos quais os atores sociais estão diretamente e distintamente envolvidos, bem como as organizações político-institucionais que se constituíram no âmbito das agências governamentais. Giddens (1991), por exemplo, chamou atenção em sua obra “As consequências da Modernidade” sobre o potencial destrutivo de larga escala das forças produtivas ao meio ambiente. Originário dos países ocidentais com maior desenvolvimento industrial, o problema dos riscos ambientais, estendeu seus efeitos às demais nações, tornandose uma questão institucional inerente à dinâmica das sociedades modernas. Nesta perspectiva, o “meio ambiente” tornou-se uma “esfera institucional” importante entre os anos de 1970 e o Século XXI, revelando significativos processos e conflitos sociais no Brasil e na América Latina (LOPES, 2004). No Brasil, o processo de redemocratização a partir dos anos de 1980 e a reivindicação dos movimentos sociais nas decisões políticas do país tiveram influências significativas no âmbito do Estado com relação à criação de instâncias públicas que, em graus diferentes possibilitam a participação da sociedade civil. Destacam-se as experiências de “participação popular”: a importância do papel exercido pela Igreja Católica por meio das CEBs, contribuindo decisivamente em ações propositivas que levaram criação dos “Conselhos Populares” (DOIMO, 1995). De fato, é nas experiências localizadas que se destaca a importância desta nova esfera institucional, na qual se insere o papel político dos Conselhos 68 Municipais: Conselho Municipal de Meio Ambiente, Conselho Municipal de Saúde, Conselho da Cidade, entre outros setores da sociedade civil que participam da gestão pública. Na experiência do debate sobre o polo siderúrgico de São Luís em 2004, o Conselho da Cidade de São Luís foi um espaço importante de mobilização da “sociedade civil”, uma vez que, aglutinou segmentos diversos da sociedade local, sobretudo, lideranças de bairros populares e representantes de entidades interessadas em discutir o destino da cidade. As ferramentas institucionais fundamentais de orientação política foram: o documento do Plano Diretor de São Luís e o Estatuto da Cidade que foram utilizadas pelo Conselho da Cidade, do qual fazem parte diversas organizações populares espalhadas pelos bairros: associações de moradores, ONGs ambientalistas, Igreja Católica, Igreja Batista, entre outras organizações, que foram estabelecendo links e formando um mosaico de organizações em torno de um eixo temático a ser discutido: a iminência de impactos ambientais e sociais no município de São Luís em decorrência da instalação de um polo siderúrgico. Aí constituiu-se na prática um espaço público cuja capacidade de agência dos atores locais ganhou relevância. Como ocorreu esse acúmulo de experiências reunindo estratégias de lutas, manobras de engrandecimentos em defesa do meio ambiente mediante um projeto de um polo siderúrgico? Para tratar dessas experiências, busquei inspiração em alguns autores cujas reflexões teóricas foram de suma importância para organizar a descrição e análise do campo empírico deste estudo, ou seja, o processo de mobilização contra a instalação do polo siderúrgico de São Luís. 3.1 “Dessingularização”: elementos teóricos sobre o viés pragmatista das ações coletivas Abordarei as experiências de mobilização local, tendo como inspiração e ponto de partida a “sociologia pragmatista” (NASCHI, 2002), referida também como uma “sociologia da crítica” (BOLTANSKI, 1990; THEVENOT, 2006). Neste aporte busco inspiração teórica para interpretar as ações políticas dos atores locais no processo de mobilização e na formação de um movimento de contestação. Procuro apresentar o conceito de “ação coletiva” tendo por base os elementos que estruturam e caracterizam as ações assim definidas por Tilly (1978; 1996), aliando este conceito às leituras de autores que tratam dos movimentos sociais no Brasil (CARDOSO, 1984; GOHN, 1995; 2012; ADRIANCE, 1996) e especificamente, sobre o movimento ambientalista contemporâneo no Brasil, enfoco a contribuição de Alonso, Costa e Maciel (2008) que à luz de Tilly se utilizam do conceito de “estruturas de oportunidades”. 69 Para Gohn (1995) e Alonso, Costa e Maciel (2008), o movimento ambientalista se confunde com demais movimentos sociais no Brasil que ganharam força no contexto político de 1970 e posteriormente com a aprovação da Constituição de 1988 quando vários canais institucionais ligados ao meio ambiente foram criados no âmbito governamental, oportunizando a emergência de atores políticos inseridos no processo de “ambientalização” dos conflitos. Um pressuposto básico da perspectiva sociológica pragmatista parte do entendimento de que no cotidiano as pessoas têm a capacidade de formular criticamente questões relativas às suas vidas. Assim, elas identificam problemas que devem ser solucionados. Ou seja, produzem um “momento crítico” questionando a ordem das coisas que lhes inquietam. Assim, parte-se do princípio de que todos os membros de uma sociedade são dotados de “capacidade crítica” (BOLTANSKI, 1990) e que, ao defenderem suas causas eles produzem justificações que obedecem a determinadas “regras de aceitabilidade”. A competência atribuída às pessoas para interpretar a realidade, é portanto, mediada por uma forma de linguagem direta com o mundo e dessa forma se pressupõe uma ruptura com a dicotomia que separa o senso comum produzido rotineiramente e o saber produzido academicamente, o conhecimento científico. Aqui a ideia de “simetria” ilustra que nessa interpretação sociológica das ações há uma espécie de “giro” no fundamento explicativo que descentra a produção de conhecimento pautada exclusivamente pelo saber científico (os cientistas não têm acesso privilegiado ao conhecimento). Isto significa que os sujeitos, sejam eles individuais ou coletivos possuem capacidade crítica de questionar a realidade, o que pressupõe também que, em seus diferentes mundos, adquirem saberes que lhes facultam o engajamento em regimes diferenciados de ação. Segundo Nachi (2002), a sociologia na atualidade tem se confrontado com novas ciências, o que exige novos desafios e considera que a sociologia não tem tirado proveito da “revolução cognitiva” que marcou a segunda metade do Século XX, a exemplo da antropologia e da lingüística que ampliaram seus leques de possibilidades dessa “revolução”. Nesta perspectiva, o “estilo” pragmatista considera que os atores são capazes de se manifestar em “situações críticas”. Na pluralidade das condições e dos mundos de cada ator, o pressuposto em questão reconhece a capacidade de manifestação do saber nas distintas linguagens. Os atores produzem formas distintas de engajamentos nas variadas situações da vida social (THEVENOT, 2006). Essa capacidade confere aos atores uma disposição na busca de justiça e na denúncia das injustiças. 70 Na obra “El Amor y la Justicia como competencias: três ensayos de sociologia de la acción” de Boltanski (1990), em especial em seu terceiro capítulo La denuncia pública este autor fornece um quadro analítico bastante inspirador. Seguindo esta linha de interpretação, qualquer pessoa possui uma capacidade para interpretar criticamente a realidade numa situação de injustiça que a atinge. A esta “capacidade crítica” estão associadas as estratégias de ação ou “manobras de engrandecimento”. Conforme Boltanski (1990, p. 72): […] Dotamos a las personas humanas de una capacidad metafísica y consideramos que esa capacidad es esencial para comprender la posibilidad de un lazo social. En efecto, para converger hacía un acordó las personas deben hacer referencia a algo que no son personas y que as trasciende. Es esta referencia común lo que llamamos de principio de equivalencia. Cuando el acuerdo es difícil de establecer, para realizarlo las personas deben aclarar sus posiciones de justicia, adecuarse a un imperativo de justificación y, para justificar deben sustraerse de la situación inmediata y alcanzar un nivel más alto de generalidad. O esquema teórico proposto por Boltanski está representado sinteticamente na construção de dois gráficos bastante complexos que indicam o conjunto das ações de atores envolvidos em casos de denúncia, designados como “sistema actancial” construído a partir da análise de um conjunto de 275 cartas recebidas pelo Jornal francês “Le monde” em 1979, 1980 e 1981. Na pesquisa, as cartas passaram por uma espécie de triagem e classificadas segundo as situações que se configuraram como “denúncia pública”. O que de fato é teórico e metodologicamente sugestivo desta análise para o meu estudo é o processo por meio do qual os casos “singulares” se ampliam. Quer dizer, como um determinado ator singular torna sua denúncia pessoal em uma “denúncia pública” uma vez que envolve um conjunto de outros atores em situação semelhante. De certa forma, esta proposta teórica e metodológica sugere problematizar como as pessoas podem transformar suas inquietações particulares (“singular”) em inquietações coletivas? O curso da ação é, portanto, interpretado por essa ótica como um processo de “dessingularização” que ocorre na medida em que a situação passa a ser reconhecida, legitimada e compartilhada por outros atores. O processo de “dessingularização” está diretamente associado a esta “capacidade crítica” de um determinado ator tornar a sua reivindicação particular em uma reivindicação ampliada a outros atores. O propósito de Boltanski (1990 p. 243) visa “[...] construir um sistema de regras que permitam determinar em quais casos a atitude que consiste em dar voz e protestar publicamente têm possibilidades de ser reconhecida como válida”31. “Dessingularização” é o A “estrutura actancial” é exemplificada por quatro actantes em posições diferentes: 1. Denunciante (a denúncia pode ser classificada como a mais pessoalizada e, portanto, mais singular e particular, até a mais impessoal, mais plural e mais universal.) 2. Vítima (ator individual ou coletivo) 3. Perseguidor (pessoal ou impessoal – “pessoa coletiva”/ “representante autorizado” Ex. um diretor de uma empresa ou uma empresa denunciada por razões diversas.) 4. Juiz. 31 71 termo que talvez sintetize a descrição do processo, ou seja, o “deslocamento” das relações pessoais para relações impessoalizadas e/ou para a universalização de uma situação particular. Este processo ocorre quando uma pessoa motivada por um sentimento de injustiça decide se manifestar, num primeiro momento, uma ação isolada, mas que poderá ser ampliada aos outros que podem estar passando pela mesma situação. Para isso, são necessários os “recursos críticos” que unificam as pessoas e/ou instituições mobilizadas em torno de um “bem comum”. Segundo Boltanski (1990, p. 260): [...] en nuestras sociedades todos los actores disponen, en efecto, de capacidades críticas, y poden movilizar, aunque sin duda de manera desigual según la situación, recursos críticos que ponen en práctica en el curso de sus actividades cotidianas. En ese sentido, estas sociedades pueden ser calificadas como sociedades críticas. A interpretação desse modelo de fato me estimulou na compreensão de um movimento de contestação local, que ganhou adesão de inúmeras entidades, movimentos, pessoas, produzindo uma série de eventos: fóruns, seminários, palestras, oficinas, reuniões, protestos, caminhadas, intervenções nos espaços públicos, participação em programas de rádio divulgando a situação, estando estes eventos acompanhados da produção de uma crítica social por meio de textos, artigos, panfletos, notas de repúdio, etc...O processo que abarcou este conjunto de eventos, ações e trocas de experiências entre diferentes atores individuais e coletivos, me pareceu guardar algumas similitudes com o que o autor interpreta como tendo produzido ações, qualificadas como “dessingularizadas”. E mesmo a definição de actante que embora não encontrando uma tradução correspondente em português, foi uma “luz” para pensar a experiência de mobilização em São Luís. Actância é um termo que remete à ação dos “[...] seres que intervienen en la denuncia con mismo término, ya se trate de personas individuales, de personas colectivas constituidas o en vías de constitución.” (BOLTANSKI, 1990, p. 247). A análise da “Estrutura Actancial” foca esse movimento do singular ao coletivo, notando-se que a capacidade de mobilização está associada ao fato de os actantes se afastarem de seus interesses pessoais em nome de um interesse maior que envolve a coletividade. A grandeza da ação ou as “manobras de engrandecimento” estão associadas a essas condições de “desingularização” que movem o espírito público de cada pessoa membro da “cidade”32. 32 Nesta obra a reflexão teórica de Boltanski tem como pano de fundo a discussão sobre a vida pública na contemporaneidade, inspirada no debate clássico sobre o “bem comum” a partir de a “Política” de Aristóteles. Na “Política”, a cidade relaciona-se à ideia mais geral de república que subjaz a coisa pública e/ou ao bem comum. Assim, diz Aristóteles (1944, p. 09) no primeiro capítulo, “sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma tendo por alvo algum bem; porque o homem só trabalha pelo que ele tem em conta de um bem. Todas as sociedades, pois, se propõem qualquer lucro – sobretudo a mais importante delas, pois que visa um bem maior, envolvendo todas as demais: a cidade [...]”. A esse bem maior que é a vida associativa o 72 Partindo do modelo apresentado por Boltanski é, portanto, num primeiro plano, uma reação política local motivada pelo sentimento de injustiça mediante uma ameaça de deslocamento. Posteriormente, a adesão de outros indivíduos, grupos e/ou entidades à causa em grande parte, está associada à capacidade crítica dos atores em validar ou tornar pública a sua injustiça pessoal. Observando a atuação dos atores, sejam eles pessoas ou grupos sociais organizados em associações e entidades, o exemplo de São Luís se conecta com processos de mobilização de movimentos de reação mais amplos que no Brasil contemporâneo buscam a “dessingularização”. Ou seja, reivindicações localizadas tendem a se constituir em amplas frentes de mobilização nacional e internacional. Essa tendência é percebida pela capacidade de mobilizar “recursos coletivos”, e argumentos fundamentados em dados científicos traduzidos em “crítica social” direcionados às ações de empresas poluidoras. Assim, os atores vítimas de danos socioambientais em diferentes partes do Brasil têm conseguido transformar antigos sentimentos de dor, incômodo e perdas, em reivindicações legitimadas. Objetivamente, a mudança “[...] da percepção individual e de pequenos grupos para tornar-se uma questão coletiva [...]”, para pensarmos o caso do fenômeno da “ambientalização” no Brasil (LOPES, 2004) enquanto um processo análogo ao tipo de ação dessingularizada na medida em que ganha adesão de diferentes indivíduos, grupos e de classes sociais distintas que, por caminhos diferentes, se mobilizam em defesa do ambiente. Como chama atenção Acselrad (2009) referindo-se ao chamado “Memorando Summers”33 há uma lógica planejada na distribuição socialmente desigual da poluição industrial na qual também subjaz a ideia de que o meio ambiente é uma preocupação “estética” típica apenas dos “bem de vida”. Países e regiões subpoluídos deveriam naturalmente alocar indústrias poluidoras. Tal imposição conforme a Declaração de fundação da Rede Brasileira de Justiça Ambiental se configura como “Injustiça Ambiental”, que é definida como “um fenômeno de imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais”. Do contrário, a “Justiça Ambiental” é o homem como “animal político” deve submeter-se. O que o distingue dos demais animais é que o homem “sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto”. A cité tal como utilizado por Boltanski, refere-se à “ordem de grandeza” ou um “Princípio de Equivalência”, para onde convergem os interesses que transcendem o âmbito particular. É no “Princípio de Equivalência” que os interesses universais estão representados. É nesse sentido que se deve buscar compreender o processo de deslocamento no curso de uma ação particular ao universal, notando-se que na universalidade as especificidades que o motivaram na situação singular estão contempladas. Pensar a noção de “cidade” por essa ótica suscita uma série de questões relevantes sobre os eventos de mobilização registrados durante a discussão sobre o polo siderúrgico em São Luís. 33 Trata-se de um memorando de circulação restrita do Banco Mundial de autoria de Lawrence Summers, economista chefe do Banco que dizia o seguinte: “Cá entre nós, o Banco não deveria incentivar mais a migração de indústrias poluentes para os países menos desenvolvidos?”. (ACSELRAD, 2009, p.7). 73 conjunto de princípios e práticas que asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas. (BRASIL, c2014c). Mais adiante, meu propósito é demonstrar que essa noção de dessingularização apresenta um potencial explicativo importante de experiências de contestações locais e como elas se conectam aos processos mais amplos de mobilização no âmbito do ambientalismo brasileiro e internacional. A conexão da Rede Brasileira de Justiça Ambiental com as experiências de mobilização regional em defesa do meio ambiente e das populações vítimas de “injustiça ambiental” é um exemplo que ilustra essa tendência dos movimentos socioambientais contemporâneos no Brasil. Dentro desse panorama, me sirvo da perspectiva da “sociologia da crítica” para pensar as ações coletivas e o conjunto de argumentos: científicos e jurídicos utilizados pelo movimento como instrumento de contestação à viabilização política e ambiental do polo siderúrgico. 3.2 Ações Coletivas: marcos teóricos e experiências de contestação acerca ao polo siderúrgico de São Luís (2004 e 2005) O segundo pressuposto teórico que orienta a análise do processo de mobilização das reações locais tem como ponto de partida o conceito de Ação Coletiva. O conceito implica perspectivas diferenciadas, referentes à “lógica” da ação coletiva (OLSON, 1998) e à estrutura (TILLY, 1978; 1996). O ponto comum, entretanto, reside na noção de que os grupos perseguem “interesses”. São estes que movem suas ações, conforme sua dinâmica e o seu alcance. Olson (1998) analisa a capacidade que cada grupo tem de compatibilizar o uso da racionalidade na concretização de interesses individuais e do grupo. A busca de combinação de interesses é para este autor, análoga a um mercado competitivo. Mas para Olson “não é de fato verdade, que a ideia de que os grupos agindo em seu próprio interesse seja uma consequência lógica da premissa do comportamento individual e racional e em benefício próprio” (OLSON, 1998, p. 2). Há outros fatores que devem ser levados em conta. Embora o autor discorra sobre experiências de empresas e sindicatos norte-americanos, a análise apresenta aspectos importantes para meu estudo. Olson reconhece a importância dos “incentivos sociais” (amizade, prestígio, respeito) suscetíveis de mobilização (há outros tipos como: incentivos eróticos, psicológicos e morais) e mais recorrentes entre pequenos grupos onde o contato pessoal é maior 74 do que em grandes empresas. Ele destaca também a importância dos “grupos de pressão” formados por especialistas que possuem competências para fazer campanhas, buscar apoio no meio político e com poder de influência nos órgãos dos governos visando os interesses dos grupos. Os exemplos são os interesses de grandes empresas quando lutam para a manutenção do preço dos produtos evitando o prejuízo dos grupos empresariais organizados e de sindicatos que lutam por melhores salários. O “Grupo de Pressão” abre uma chave explicativa importante para compreender as estratégias e os recursos mobilizados nas ações coletivas. Outro viés importante na teoria da ação coletiva é apresentado por Charles Tilly. Sua premissa inicial da ação coletiva pressupõe a existência de dois importantes elementos dialeticamente associados: a ação de grupos de interesses e os processos de coerção. Os processos coercitivos acompanharam a formação e a consolidação do Estado em fases historicamente distintas (TILLY, 1996). Por este viés, o Estado é historicamente visto como uma forma de combinação entre o “capital” e “coerção”. Antes e durante a chamada era moderna, assim como na contemporaneidade, a cidade e seus respectivos territórios têm sido as bases sobre as quais essa combinação se dinamizou. Coerção, segundo Tilly (1996, p. 67): [...] compreende toda aplicação combinada – ameaçada ou real – de uma ação que comumente causa perda ou danos às pessoas ou às posses de indivíduos ou grupos, os quais estão conscientes tanto da ação quanto do possível dano [...] onde o capital define um domínio de exploração, a coerção define um campo de dominação. O pressuposto é de que os grupos sociais em situações de constrangimentos políticos e econômicos aprendem a desenvolver formas de cooperação e de solidariedade. Eles constroem estratégias para a organização política visando reagir a esses constrangimentos. Entre os estudiosos de movimentos sociais no Brasil e mais especificamente, sobre os movimentos ambientalistas, há um relativo consenso de que a sua emergência está diretamente relacionada pelo menos a dois fatores convergentes. Alguns autores analisam que esta emergência está relacionada ao processo de redemocratização do Brasil entre os anos de 1970 e 1980 quando surge uma “estrutura de oportunidades políticas” por meio da mobilização política, num momento de crise interna à coalizão do regime militar (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2008). Um segundo fator que diz respeito à transição de paradigmas da ação coletiva, quando surgem novas formas de ação política que favoreceram a eclosão de lutas sociais fortalecida pela conjuntura internacional, em destaque a questão dos direitos humanos. Conforme Gohn (1995, p. 202), “[...] os novos direitos sociais brasileiros, ou a nova cidadania [...] foram frutos da articulação entre a democracia institucional representativa e a democracia direta, advinda das bases dos movimentos sociais”. Se antes, o paradigma da ação se caracterizava pela ação sindical e pela mediação dos partidos entre as bases e o Estado, o 75 “novo”, embora não tenha criado novos valores, mas apenas redefinindo e resgatando aqueles valores consagrados e originados de diferentes matrizes epistemológicas, tais como, liberdade de expressão, autonomia,) trouxe à tona a “figura do comunitário”, ou seja, [...] uma figura híbrida que não se situa nem no setor público nem no privado. Tratase de uma espécie de privado público/não estatal, porque as ações partem de setores privados, organizados na sociedade civil, mas os suportes financeiros e de infraestrutura são públicos estatais. (GOHN, 1995, p. 202). A ideia de “comunidade” nesse cenário é redefinida, passando a adquirir o sentido de intervenção na realidade, de certo modo abandonando a postura de esperar pela ação do Estado e ao mesmo tempo, apresentando rupturas com a tradição oligárquica e patrimonialista (GOHN, 1995. p. 203). A análise de Cardoso (1984) procura destacar a emergência destes novos atores e sugere que ainda durante ditadura, os cientistas sociais latino-americanos descobriram a força dos movimentos, entretanto, descolando relativamente suas interpretações das abordagens tendencialmente estruturantes que em sua grande maioria, subsumia a capacidade de agência das organizações populares à ideologia, à dominação econômica e aos aparelhos repressivos do Estado (CARDOSO, 1984). Seguindo a crítica desta autora, aquelas abordagens ao privilegiarem “apenas o ângulo das relações de produção, não viram a unidade da consciência reivindicativa que se manifestava ao mesmo tempo no comício e no protesto contra a precariedade das condições de moradia” (CARDOSO, 1984 p. 222). Chama atenção na avaliação de Cardoso (1984) a importância dada à capacidade de ação dos atores sociais, e menos ênfase atribuída aos condicionantes estruturais. No caso dos chamados “ciclos de protestos” (para citar dois exemplos do campo ambiental: a Campanha em Defesa da Amazônia em 1978 contra os contratos firmados entre o Governo Federal e empresas internacionais para explorar madeira da floresta e a campanha “Adeus Sete Quedas” contra a Hidrelétrica de Itaipu em 1982) eles forçaram o Estado a instituir importantes rearranjos políticos e institucionais garantindo pelas vias institucionais a participação de amplos setores da sociedade nas decisões relativas à política ambiental brasileira. As conquistas que resultaram desses protestos foram incorporadas aos novos processos de institucionalização da política participativa, sobretudo, após a Constituição Brasileira de 1988. Ações coletivas dessa natureza, entretanto, estão circunscritas a uma “estrutura de oportunidades políticas” que favoreceram um maior diálogo dos movimentos com a governança e uma relativa influência nos processos decisórios. Ao mesmo tempo, fortaleceram o campo, o ativismo e a agenda socioambiental no Brasil (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2008). 76 Concordando com Cardoso (1984, p. 236) que a análise de movimentos não pode ser restrita “à mera recomposição cronológica das mobilizações”, e tem que se basear “na leitura da inscrição dos movimentos sociais em um processo que lhes dá significação histórica [...]”, penso, no entanto, que é preciso considerar que a formação de uma “consciência reivindicativa” é também, fruto da experiências de ações compartilhadas entre as diferentes gerações de grupos sociais historicamente excluídos dos processos de decisão política que os afeta diretamente. No caso de São Luís, os conflitos de caráter socioambiental, remontam aos anos de 1980, justamente num momento em que os movimentos sociais no país passaram a incorporar em suas agendas os problemas ambientais articulados às questões sociais. A experiência do Comitê de Defesa da Ilha pode ser um exemplo importante dessa “consciência reivindicativa”, conforme o registro de Adriance (1996, p. 87): [...] em agosto de 1980 [...] o Comitê para Defesa da Ilha, que iniciou uma campanha de esclarecimento ao público, por meio da imprensa nacional e internacional, sobre os perigos de uma refinaria de alumínio naquele local. O comitê providenciou amparo jurídico para os moradores dos povoados, desafiou judicialmente três vezes a Alcoa por ações ilegais, promoveu debates na televisão, estimulou o debate em programas de rádio e trabalhou em solidariedade com organizações ambientalistas internacionais. Ao mesmo tempo em que o Comitê instava os habitantes das vilas a resistir à expulsão. Na prática o efeito das lutas travadas pelos movimentos sociais no Brasil, ainda sob o regime militar levou a criação e institucionalização dos Conselhos Populares e posteriormente, após a Constituição de 1988, os movimentos ganharam maior autonomia, uma vez que as suas ações passam por meio de instrumentos de operacionalização tais como: plenárias, fóruns, audiências públicas e orçamento participativo. A análise do movimento de contestação objeto de meu estudo, de fato leva a uma compreensão de que o movimento contra um empreendimento industrial se forma entremeado pela capacidade de agência de um conjunto de atores sociais, mas esta capacidade não tomaria uma dimensão pública sem contar também com as estruturas de oportunidades que facultaram tais ações. Com o novo cenário a partir da Constituição de 1988, ganham destaque os instrumentos de participação, que embora “restritos”, são produtores de efeitos políticos contrários a esta restrição da participação política (LIMA, 2009). Durante as audiências públicas entre 2004 e 2005 para discutir o projeto de alteração da Lei de Zoneamento em São Luís, o Reage São Luís forçou o governo municipal não somente a anular uma das audiências públicas, mas também, pressionou a Câmara dos Vereadores a modificar o Projeto de Lei original, reduzindo a área a ser convertida em Zona Industrial (sobre este processo irei tratar no item 4.1.3.3 “Campo” Jurídico). Chamo atenção ao fato de que as intervenções dos movimentos 77 sociais nestes espaços institucionais extrapolam as instâncias e canais formalmente estabelecidos na medida em que modificam, sob certas circunstâncias e estruturas de oportunidade o sentido das tomadas de decisão. Esta é uma questão importante por dois motivos que estão entrelaçados. Em primeiro lugar, pelo fortalecimento dos canais de participação, ainda que estes canais institucionais sejam questionáveis quanto à sua forma “de cima para baixo”, apresentam motivações importantes. Em segundo lugar, pelos seus efeitos e desdobramentos quanto ao estímulo à busca de reconhecimento e de direitos. No caso em questão, os povoados localizados na Zona Rural II de São Luís que buscam nestas novas “estruturas de oportunidades” institucionais, o direito de permanecerem nos territórios por eles ocupados historicamente. Ao longo do debate sobre o Plano Diretor de São Luís (entre 2003 e 2005), o foco centra-se justamente no questionamento das organizações populares à Prefeitura de São Luís sobre a conversão de áreas rurais em áreas industriais. Tal pretensão do poder executivo municipal trouxe à tona o interesse pelo debate por parte dos moradores da Zona Rural de São Luís, e em especial, a Zona Rural Rio dos Cachorros, naquele momento em litígio em função do projeto polo siderúrgico. É, portanto, na busca de entender as alianças entre as organizações envolvidas no debate sobre o Plano Diretor e conversão de áreas rurais em áreas industriais que passo a me interessar pelas formas de engajamento das entidades no debate sobre o polo siderúrgico. Considerar as experiências de mobilização do passado, não é necessariamente fazer uma “recomposição cronológica” das ações coletivas para compreender as lutas políticas do presente, mas enfatizar que a resistência política dos grupos sociais quanto à permanência nos territórios é uma luta política contínua e historicamente delineada com a instalação de projetos industriais e com a expansão das atividades portuárias. É neste processo contínuo de luta pela permanência que os “repertórios” de mobilização são continuamente recriados, atualizados e acionados. Nesse sentido, as bases políticas das ações e suas referências se alinham, por exemplo, no debate do desenvolvimento acoplado ao processo de “ambientalização” (LOPES, 2004). Surgiram novas estruturas de mobilização que inovaram as ações coletivas, mas foi dos anos de 1980, que “brotou”, em grande parte a força dos movimentos de contestação ao polo siderúrgico (LIMA, 2009). 78 3.3 O “Zoneamento” como processo de territorialização: o debate mobilizador acerca do polo siderúrgico de São Luís Neste item farei uma breve explanação acerca da noção de território, uma vez que o debate sobre a instalação do polo siderúrgico foi antecedido de um longo período de discussões desde 2001, sobre a proposta da Prefeitura de São Luís de alterar a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992). A solicitação do Prefeito de São Luís encaminhada à Câmara dos Vereadores para aprovar o projeto de alteração da Lei, está diretamente relacionado ao propósito do Governo do Maranhão e da Companhia Vale em instalar o polo siderúrgico. Procuro então mostrar que esta ação do poder público municipal serviu de dispositivo de ações coletivas (fóruns, seminários, Audiências Públicas) referentes ao Plano Diretor de São Luís no qual a Lei de Zoneamento está inserida. Como analisei anteriormente, em São Luís, desde o final dos anos de 1970, registrase um quadro histórico de conflitos sociais que está diretamente atrelado ao processo de industrialização e de expansão da estrutura portuária. Este duplo processo, industrialização e expansão portuária, entretanto, ocorre concomitantemente por meio de uma série de alterações na legislação e de procedimentos administrativos visando mudanças no zoneamento para adequar a “compatibilidade” de usos industriais nas áreas próximas ao Complexo Portuário de São Luís. Tenho como ponto de partida a compreensão de que a política estatal de zoneamento pressupõe uma concepção funcional do uso social dos territórios, à qual devem estar subjacentes aos interesses de agentes estatais e privados com grande poder político e econômico de defini-la. Dessa forma, o território é (antes de qualquer acepção de caráter natural) fundamentalmente constituído por relações de poder. Assim, o território é pensado pelas diferentes formas de usos e de percepção e dos diferentes significados políticos, econômicos, sociais, e também, significados de ordem cultural que lhes são distintamente, atribuídos. É na medida em que as ações de ocupação e de apropriação capitalista avançam sobre outras formas de uso social que se pode perceber a dinâmica das relações de poder entre os atores que disputam os recursos e os territórios. Estes possuem capacidade desigual quanto ao acionamento dos recursos institucionais e políticos para fazer valer seus interesses, processo que não tem ocorrido sem a produção de conflitos. 79 A compreensão de que o espaço não se limita à noção fisiográfica é fundamental, sobretudo pelo fato de que nos distancia da noção de “vazio demográfico”34 com a qual operou e continua operando a “ideologia desenvolvimentista”35 no Brasil. Essa visão remonta aos anos de 1950, quando a Amazônia Oriental passou a ser concebida pelos planejadores estatais como “fronteira econômica” ainda não explorada, ou seja, um conjunto de “áreas novas de incorporação à economia” segundo as atividades lucrativas do sistema de produção capitalista (HÉBETTE, 2004; COELHO et al, 2010). Nesse sentido, a política de zoneamento é delineada no âmbito dos projetos de desenvolvimento e de atividades econômicas e ganha relevância sociológica na medida em que produz significativas mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais na estrutura organizacional de grupos sociais que atuam numa base material concreta. Inúmeras medidas legais e administrativas foram tomadas pelos governos após a construção do Porto de Itaqui entre 1966 e 1972 (PORTO DO ITAQUI, c2014) e foram direcionadas aos planos de desenvolvimento regional, integradas às ações e medidas de desenvolvimento econômico das demais regiões do país, mas principalmente, na Amazônia Oriental, com a construção dos projetos de desenvolvimento, a exemplo do Programa Ferro Carajás (PFC). As medidas, entretanto, nem sempre são consensuais entre as diferentes esferas governamentais. Vejamos por exemplo, que nos anos de 1970 a Gerência Regional da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) situa por meio de decretos (Decreto Federal nº. 66.227 de 18 de fevereiro de 1970 e Decreto Federal nº. 78.129 de 29 de julho de 1976) as áreas de ItaquiBacanga e Tibirí-Pedrinhas, na Zona Rural. Após duas décadas, em 2001, por meio de Ofício (Ofício nº. 011 de 12 de janeiro de 2001) a Gerência de Planejamento e Desenvolvimento Econômico do Governo do Maranhão, enviou à Secretaria do Patrimônio da União em Brasília o pedido dessas áreas, cujo conteúdo diz que aqueles decretos trouxeram “[...] inúmeros transtornos para o Estado [...] inibindo a sua política industrial”, uma vez que: [...] A intenção primordial do Estado no recebimento das referidas grandes áreas teve como objetivo a criação do Distrito Industrial de São Luís – DISAL, cujo desiderato maior consiste na geração de emprego e renda, mediante o incentivo à instalação de Importante enfatizar que a gênese da ideologia do “vazio demográfico” remonta a visão dos viajantes naturalistas europeus do Século XIX, ganhando respaldo científico institucional através do uso de critérios fisiográficos. A Amazônia por essa ótica passou a ser considerada como uma região homogênea, ignorando-se, muitas vezes, a diversidade social e cultural de seus habitantes, como também, a sua diversidade ecológica (CONCEIÇÃO, 1996). 35 A noção de desenvolvimentismo abarca um amplo debate teórico sobre as economias dos países periféricos no período pós-Segunda Guerra Mundial. Uma das críticas mais contundentes é a de Andreu Viola (2000) que incide sobre o discurso de posse do Presidente dos EUA, H. Truman em janeiro de 1949, que em seu quarto ponto destaca a concepção de divisão do mundo em desenvolvido e subdesenvolvido, tendo como base a suposta superioridade técnica e científica das sociedades industriais capitalistas; a crítica também é lançada sobre a obra “As etapas do crescimento econômico” de W. Rostow (1960), considerada como emblemática na teoria da modernização (VIOLA, 2000). 34 80 empresas industriais modernas, entre elas, o grande complexo siderúrgico (MARANHÃO, 2001). O Governo do Maranhão como ator político interessado pela instalação do polo siderúrgico em São Luís solicitou mudanças nos Decretos Federais em vigência desde os anos de 1970 referentes à Zona Rural, e ao mesmo tempo, solicitou à Prefeitura de São Luís que fosse modificada a Lei de Zoneamento aprovada em 1992. O “processo de territorialização” efetivamente ocorre por meio de experiências de mobilização de forças antagônicas, podendo ser também percebido pela complexa rede de relações interconectadas e intercaladas às outras redes por meio de nós que podem ser superpostas (SOUZA, 1995)36. De fato, estão em questão, as variadas modalidades de uso das terras tradicionalmente ocupadas por grupos sociais que reivindicam a política de demarcação. Uma vez mobilizados, estes grupos sociais produzem processos criativos de territorialidade. Na Amazônia, tem se constatado que é no enfrentamento às empresas capitalistas que estes grupos passam a ser politicamente reconhecidos (ALMEIDA, 2010; COELHO et al. 2010). Trata-se, portanto, de uma área em conflito constante entre lógicas diferenciadas de apropriação e de uso de recursos naturais. Nesse sentido, envolve múltiplos fatores corroborando com a configuração de conflitos ambientais, já mencionada anteriormente, ou seja, aqueles conflitos gerados quando pelo menos um dos grupos em questão tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio ameaçada, e que se remetem aos impactos provocados pelos efeitos de atividades predatórias: industrialização, agricultura, obras de infraestrutura, etc. Nestes tipos de conflitos o que está em questão, é o fato de que a manutenção das práticas econômicas e sociais de outros grupos sociais fica comprometida (ACSELRAD, 2004). Como mencionei na introdução da tese, baseado em Zhouri e Lachefski (2010, p. 23), os conflitos ambientais podem ser também classificados como: “conflitos ambientais distributivos”: indicando as graves desigualdades sociais no acesso e uso de recursos naturais, “conflitos ambientais espaciais”: causados por efeitos ou impactos ambientais que ultrapassam os limites territoriais de agentes ou grupos sociais, a exemplo de conflitos que são produzidos pelas emissões gasosas e poluição das águas e, por último, os “conflitos ambientais territoriais” 36 Os exemplos de territórios e suas respectivas relações de poder ilustrados por Souza (1995) referem-se às suas experiências de pesquisa de campo sobre os territórios do tráfico de drogas e os conflitos e/ ou alianças entre “facções amigas” ou rivais na cidade do Rio de Janeiro. A forma de abordar o território por este autor é bastante inspiradora neste estudo, sobretudo pelo fato de que se trata de uma abordagem antropológica na qual o território é mediado por relações sociais e relações de poder, permitindo dialogar com a realidade aqui estudada. 81 cuja definição interessa neste estudo pela configuração da situação analisada. Segundo Zhouri e Lachefski (2010, p. 23), “Conflitos ambientais territoriais”: [...] Marcam situações em que existe sobreposição de reivindicações de diversos seguimentos sociais, portadores de identidade e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial – por exemplo, área para implementação de uma hidrelétrica versus territorialidades da população afetada. A diferença em relação aos conflitos sobre a terra é que os grupos envolvidos apresentam modos distintos de produção dos seus territórios, o que reflete nas variadas formas de apropriação daquilo que chamamos de natureza naqueles recortes espaciais. O debate sobre a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Luís (Lei Municipal nº 3.253 de 1992) é indissociável do projeto do polo siderúrgico, uma vez que, para instalar a planta industrial (Mapa 3) era necessária a alteração desta Lei. Segundo a Carta do Prefeito de São Luís enviada à Câmara dos Vereadores de São Luís, a existência de uma área estabelecida legalmente como parte da Zona Rural nas proximidades da Zona Industrial, “criou uma incompatibilidade com características próprias da área, quando sua vocação natural é nitidamente industrial”. E ainda: [...] Tal área [...] denominada Zona Rural Rio dos Cachorros, [...] com vistas à possibilidade de implantação do polo siderúrgico o Governo do Estado solicitou formalmente à prefeitura de São Luís em setembro de 2004, que fosse estudada a reformulação da Lei de Zoneamento [...] Justifica-se ainda a alteração do zoneamento da área pela existência do complexo portuário e da malha ferroviária, o que potencializa a implantação de projetos de média e grande escala, como siderurgia e refinaria de petróleo [...] a prefeitura acompanha junto ao Governo Estadual, a elaboração de propostas relacionadas à habitação, infra-estrutura e inclusão social a ser disponibilizada à população, por ocasião da efetiva instalação de qualquer empreendimento industrial (PREFEITURA DE SÃO LUÍS, 2004). Para as lideranças comunitárias da Zona Rural contrárias ao projeto polo siderúrgico, a percepção do território como sendo de pertencimento, está diretamente associada a esse histórico de conflitos que veio a se configurar com as sequentes ameaças de perda e em 2004, mediante uma iminente possibilidade real de deslocamento das famílias. Dois aspectos parecem ser cruciais na percepção do território. As ameaças de perdas do ambiente e de recursos enquanto meio de vida mediante a instalação de um empreendimento e também das redes de relações de parentesco e de vizinhança. Estas são características importantes que traçam o perfil das relações sociais estabelecidas entre moradores da Zona Rural II de São Luís, como por exemplo, no caso do povoado do Taim. No caso do Taim, este processo de territorialização pode ser indicado pela noção de pertencimento, quando seus moradores recorreram às referências dos pioneiros do lugar e seus descendentes. Os “Filhos do Taim” denominação construída pelos moradores para se 82 distinguirem dos “de fora”, conforme constatou Silva (2009)37 tem sido uma estratégia importante para assegurar a permanência do povoado naquela área. Território neste contexto abarca um conjunto de elementos que estão referidos à identidade cultural com o lugar, incluindo as manifestações religiosas e culturais que unem os moradores. Estes aspectos remetem ao grau de enraizamento das diferentes gerações de um mesmo grupo familiar, que informa, por sua vez, a herança, e a noção de pertencimento à “comunidade Nossa área a gente sabe que ela tem um privilégio porque é uma área portuária e a gente sofre com essas ameaças há muito tempo só que a gente sofria e ouvia tudo calado porque não sabia se defender, e após isso aí não, a gente sabe como se defender [...] Aqui a comunidade é o seguinte, aqui tem as pessoas que são herdeiras não é, pessoas que fundaram aqui o Taim, a comunidade, os filhos ainda moram aqui, os netos, e as pessoas que vieram prá cá há mais tempo, antes até dos que estavam engajados na briga do título da terra aqui, essas pessoas têm direito a um terreno o os filhos têm direito a um terreno aqui no Taim, todos os filhos dela têm direito à um terreno. (Jean Carlos, líder comunitário do Taim. Entrevista em 31 jan. 2012) Com a natureza e na forma de explorar os recursos, os grupos constroem história, criam normas, formas específicas de regulação social e produzem uma série de conhecimentos compartilhados. Quer dizer, o “lugar” é ambiente de experiências significativas, com um grau de enraizamento e conexão com a vida diária (ESCOBAR, 2005, p. 134). O ambiente sobre o qual os grupos sociais atuam não se encerra no seu aspecto ocupacional ou no seu substrato material. Embora se façam referências a um espaço específico delimitado, portador de características físicas e de recursos naturais, o território possui seus “particularismos”, dada a especificidade do ambiente no qual os grupos vivem, suas práticas econômicas, socioculturais e simbólicas (DIEGUES, 1995). O imaginário, as crenças, os mitos e as entidades protetoras e reguladoras, devem ser considerados não como meras crendices, mas como parte das interdições e das regulações sociais de acesso ao ambiente enquanto uma totalidade que constitui o território (GALVÃO, 1976; ALVES, 2003). O processo de territorialização, portanto, implica na construção de sistemas sociais, de domínio material e simbólico (COELHO et al. 2010). Os atores políticos e econômicos hegemônicos do desenvolvimento se deparam com atores sociais e seus “ambientes de vida” (HÉBETTE, 2004), que no enfrentamento aos processos decisórios reinventam criativamente o território, a partir de suas histórias e trajetórias de vida pessoal e coletiva, acionando os aliados, utilizando seus saberes e aparatos cognitivos sobre a história e os recursos. Como observou Hébette (2004, p. 11), sobre as frentes de expansão capitalista na Amazônia; 37 Silva (2009) analisou como os moradores do Taim recorreram à memória coletiva como estratégia de luta política para permanecer no território. A autora mostra que as relações de parentesco, de amizade, de vizinhança e de compadrio, associados às manifestações culturais, a exemplo do Tambor de Crioula, e dos festejos dos santos padroeiros, reforçam o processo de resistência para a permanência da comunidade no território. 83 [...] Na verdade, é uma organização social que é atingida, um ambiente de vida onde a população tinha desenvolvido lentamente seus laços de parentesco, de amizade e vizinhança, plantado seus pomares, criado suas escolas, suas áreas de lazer, seus centros de culto (HÉBETTE, 2004, p. 11) Quando ameaçados pelas forças modernizadoras os grupos sociais locais se projetam politicamente e estabelecem estratégias de resistência política contra as decisões de outros atores e agentes politicamente mais fortes: É tudo isto que é destruído e que deveria, pelo menos, ser restituído nas mesmas condições. Não é substituível por qualquer terra pedregosa e sem água, por qualquer casa [...] O capital não entende a linguagem das relações primárias; sua racionalidade é de lucro, de produtividade, do tempo de trabalho; é a racionalidade das relações mercantis (HÉBETTE, 2004, p. 11). Os homens produzem suas condições de existência material, mas isto não ocorre unilateralmente. “A produção da vida”, como assinala Marx em “A Ideologia Alemã”, aparece numa dupla relação, de um lado como “relação natural”, de outro, como “relação social – social no sentido de que se entende por isso a cooperação de vários indivíduos, quaisquer que sejam as condições, o modo e a finalidade” (MARX, 1999, p. 42). Nessa perspectiva os significados culturais não são simples expressão da base material das formações sociais, são “forças constitutivas que também moldam a história e também afetam a transformação material” (BARRETO FILHO, 2006). Ademais, as transformações não alteram, neste caso, se não coletividades portadoras de formas específicas de sociabilidade e expressão cultural, portanto, são grupos sociais cujos “meios de vida” (CÂNDIDO, 1987)38, estão em processo de confrontação com outras lógicas de produção e de reprodução social. O território sobre o qual trato, portanto, se constitui na dinâmica do conflito, e nesta se circunscrevem as relações de poder, inerentes às mudanças sociais advindas com os processos de modernização de uma área constantemente demandada pela ótica logística da estrutura portuária e requisitada constantemente. É portanto, neste sentido que a noção de “comunidade” aqui inserida deve ser relativizada se tomada pela ótica de alguns autores brasileiros que em grande medida O estudo de Cândido (1987) “O caipira paulista e a transformação de seus meios de vida” pode ajudar de forma significativa a de perceber o meio de vida dos povoados da Zona Rural de São Luís que passam por profundas mudanças desde os anos de 1980 com a instalação de projetos industriais. A resistência política desses povoados, em grande medida é buscada também nas suas formas tradicionais de organização comunitária. É por meio dos vínculos de solidariedade visando a manutenção do controle territorial que eles mantem a coesão organizativa, envolvendo festas, trocas de dias de trabalho, parentesco e reciprocidades. Dessa forma, também se organizam politicamente para dialogar com as instituições políticas da atualidade. As instituições tradicionais são ressignificadas e transformadas em estratégia de mobilização política. A Romaria dos Trabalhadores, por exemplo, realizada no mês de maio é parte do calendário anual dos festejos, é um evento religioso importante, mas também, é um evento de mobilização comunitária para a participação da vida política. Entre 2004 e 2006 durante Romaria, as lideranças comunitárias integrantes do Reage São Luís, mobilizaram os moradores do povoado divulgando a situação de ameaça de deslocamento pela instalação do polo siderúrgico. 38 84 influenciaram decisivamente nas abordagens sociológicas, principalmente em estudos de comunidades rurais no Brasil em situação de transição. Nestes estudos, a figura do comunitário diante dos processos de modernização, se refere principalmente às relações primárias, os contatos pessoais, face-a-face, às relações familiares e de parentesco, de amizade, de vizinhança, de compadrio por meio das quais se estabelecem as redes de contatos com a sociedade mais ampla, com o mercado e com a política. Como descreveu por exemplo, C. Wagley (1957) em seu estudo “Uma Comunidade Amazônica” nos anos de 1940 no interior amazônico, ele analisou uma história de apogeu de uma comunidade com a expansão da economia da borracha, mas com a decadência da produção a comunidade permaneceu embora modificando suas redes de relações sociais. Numa perspectiva que também aponta o caráter comunitário das relações sociais A. Cândido (1975) em seu livro Os Parceiros do Rio Bonito apresenta uma análise sobre as transformações dos “meios de vida” dos caipiras em função da modernização econômica no sudeste brasileiro e mostra como os bairros rurais se modificaram readaptando as relações em novos contextos socioculturais. Os dois autores em diferentes contextos rurais e socioculturais apontam que as relações comunitárias não se circunscrevem pela lógica ocupacional, ambiental ou geográfica, como também não se referem pelas delimitações administrativas de zoneamento. Assinalei acima que a noção de territorialidade aqui discutida não está circunscrita geograficamente, da mesma forma, a existência de uma “comunidade” prescinde de uma base territorial, e de qualquer dimensão ambiental ou ocupacional. Quer dizer, abstraindo a inexistência destes fatores a “comunidade” permanece porque o que une as pessoas são sentimentos de pertencimento, vínculos sociais que que lhes dão substância histórica e sentido. Mas isto não significa ignorar os referenciais materiais importantes para a produção e reprodução social da “comunidade”. As relações com o meio material se concretizam por meio de relações sociais, constituindo-se como “ambiente de vida” (HEBETTE, 2004). O que está em questão são relações sociais em contextos de mudanças provocadas por processos macroeconômicos e sociais nos quais os grupos estão inseridos. Me apoio, portanto, numa breve consideração de Meyer (1979, p. 16) sobre seu estudo de “uma comunidade rural nordestina” que diz o seguinte: Ora, se é verdade que a comunidade não prescinde de uma base territorial, isto não significa que seus limites sejam dados a partir dela. Pelo contrário, a própria delimitação espacial existe enquanto materialização de limites dados a partir de relações sociais. Assim, nem sempre a proximidade física define a existência de uma proximidade social, e, inversamente, nem sempre a distância física determina a distância social. Nesse sentido a configuração da comunidade no espaço só ganha significado quando percebida à luz de um sistema de relações sociais que articula não só os elementos internos à comunidade, mas também, esses elementos àqueles que são externos. Nessa articulação, a partir de um jogo de 85 diferenças e semelhanças, identificações e oposições, são traçados limites que, muito mais do que os limites meramente físicos, existem enquanto limites sociais. Conexões e articulações externas ganham muito sentido se considerarmos o contexto no qual as comunidades aqui analisadas estão situadas. Procuro mostrar no Capítulo 05, que os as comunidades da Zona Rural II de São Luís têm acionado a categoria de “população tradicional” como dispositivo de luta visando a garantia de direitos culturais e territoriais. Nesta acepção, ganha sentido a capacidade de agência e os mecanismos de acessibilidade à política destes atores no novo contexto em que eles emergem enquanto sujeitos políticos, como também, a ideia de “comunidade” nesta perspectiva é redefinida, na medida em que os atores locais interferem por meio de suas organizações nos processos de decisão. Nesta perspectiva, é válido considerar que as relações sociais e políticas no interior das comunidades estão inseridas num processo de articulação política permanente às redes sociais que de certa forma permite identificar por meio das organizações políticas locais uma relativa ruptura com as relações de tradição oligárquica e patrimonialista como aponta Gohn (1995). Por este prisma as “comunidades” rurais no Brasil agora não devem ser referidas somente àquelas formas de relações primárias, como também estas relações não devem ser tomadas como “resquícios” de um passado e serem analisados à luz de um contínuo folk-urbano (OLIVEN, 1996). A perspectiva de comunidade aqui sinalizada é no sentido de perceber a dinâmica das transformações. O sentido atribuído à “comunidade” procura aqui, portanto, captar o nexo entre os processos de organização dos atores locais em confronto aos processos e dinâmicas desencadeadas por atores globais, tais como as corporações capitalistas internacionais que atuam no fluxo dos mercados globais nos territórios. 3.4 Links39 na formação de um movimento de contestação Como procurei discutir anteriormente, a mobilização política é um conceito importante em minha análise, uma vez que envolve o acionamento e aquisição de recursos Link é uma palavra de origem inglesa que pode ser traduzida como “ligação” ou “elo” entre dois elementos. Na língua portuguesa o termo se tornou mais conhecido pelo seu uso na internet como um recurso para conectar textos de sites diferentes, permitindo ao usuário fazer “atalhos” e múltiplas conexões virtuais. O termo Link tem sido incorporado na linguagem cotidiana das pessoas. No caso do Reage São Luís, aparece nas entrevistas como sinônimo de articulação para descrever as alianças, tal como citado recorrentemente na entrevista de uma integrante do Reage São Luís para descrever as alianças estabelecidas entre entidades, pessoas e movimentos em São Luís. O termo serviu de inspiração para descrever a configuração das conexões entre pessoas, grupos sociais e organizações, uma vez que se refere à formação das redes sociais para produzir articulações, interatividade e troca de informações, tanto presencial quanto virtual. 39 86 importantes para tornar a ação coletiva possível. Nas análises a seguir procuro designar de links, as alianças que fizeram parte do processo de mobilização da resistência local. Sobre este aspecto ainda é importante frisar que o acionamento aos recursos, não ocorrem sem um processo de “empoderamento” de lideranças e da organização comunitária. “Empoderamento” é um termo que guarda aproximações com as noções de protagonismo, autonomia e capacidade dos atores em interferir nas decisões que lhes dizem respeito. Na “perspectiva emancipatória”, segundo Horochovski (2008, p. 214): [...] é o processo pelo qual indivíduos, organizações e comunidades angariam recursos que lhes permitem ter voz, visibilidade, influência e capacidade de ação e decisão. Nesse sentido, equivale aos sujeitos terem poder de agenda nos temas que afetam suas vidas. Como o acesso a esses recursos normalmente não é automático nem fácil, ações estratégicas mais ou menos coordenadas são necessárias para sua obtenção. No contexto deste estudo, a noção de “empoderamento” no sentido acima atribuído está referida às práticas das organizações e da mobilização comunitárias ocorridas em grande medida em função da intervenção das CEBs, principalmente nos anos de 1980 como procurei mostrar anteriormente. É justamente esse o termo utilizado por Adriance (1996), ao caracterizar a luta política de bairros populares de São Luís afetados pelos projetos industriais. Esta autora se refere ao trabalho das Paróquias e à formação de lideranças religiosas para o trabalho de base comunitária, o fortalecimento do associativismo e de potencialização da solidariedade comunitária enquanto durou o trabalho dos missionários que levou a um empowerment dos trabalhadores rurais por meio das comunidades de base (ADRIANCE, 1996, p. 94-95). No início dos anos de 2000, é ainda nas bases do trabalho comunitário das paróquias da Igreja Católica, em especial, por meio das Pastorais, que surgem em grande medida as fontes de “energia política” das organizações da Zona Rural de São Luís, principalmente das áreas próximas ao Complexo Portuário que passaram a enfrentar os novos desafios mediante a possibilidade de instalação de um grande empreendimento industrial, materializado no polo siderúrgico. A formação de lideranças comunitárias está diretamente associada às experiências das Pastorais: direção de centros comunitários e de associação de moradores que se confundem com as atividades de catequese e das Pastorais da Igreja Católica (Pastoral da Juventude, Pastoral da Criança, Pastoral da Mulher). Mas estas organizações de base comunitária não teriam força suficiente sem a interação e a formação de coalizões com outros movimentos e entidades, a exemplo do Sindicato dos Urbanitários de São Luís, que por sua vez integra a CUT e das associações de profissionais ligadas ao meio ambiente, a exemplo da Associação dos Geólogos do Maranhão (AGEMA), para citar apenas dois exemplos. Adiante descrevo as demais entidades de forma mais detalhada. 87 3.5 O papel político do Conselho da Cidade de São Luís na contestação à proposta de alteração da Lei de Zoneamento de São Luís para viabilização do polo siderúrgico Os Conselhos fazem parte do aparato organizativo do Estado e não são consensuais uma vez que são constituídos por representantes de diversos setores da sociedade e do Estado, com interesses diferentes. Uma vez regulamentados institucionalmente, eles criam e recriam dinâmicas específicas de participação e de articulações, uma vez que para além da função de controlar e fiscalizar o poder executivo, eles propiciam a constituição de espaços de discussão e de aprendizagem, interagem com setores progressistas do próprio Estado, criando coalizões, alianças e estimulam o fortalecimento da sociedade civil nas decisões políticas. O Conselho da Cidade de São Luís foi instituído em 2006, conforme Lei Municipal nº. 4.611 de 18 de maio de 2006 e definido por esta lei como um órgão colegiado de natureza deliberativa e consultiva, [...] de composição paritária entre o Poder Público e a Sociedade Civil Organizada com área de atuação no setor política de desenvolvimento urbano, com caráter permanente, deliberativo, consultivo e fiscalizador, vinculado à Secretaria Municipal de Planejamento e Desenvolvimento”. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 5). Entretanto, é importante ressaltar que o processo de mobilização para aprovação do Conselho da Cidade e para a revisão do Plano Diretor ganhou força entre 2003 e 2005, ou seja, antes de sua institucionalização oficial pela Prefeitura de São Luís. Conforme Conceição (2009, p. 2): [...] A revisão do Plano Diretor de São Luís foi pautada pelos diversos segmentos sociais muito antes de ser oficializada pela Prefeitura. Exemplo disso são as reivindicações e propostas expressas nas Conferências da Cidade, a primeira realizada em 2003. Naquela oportunidade a plenária aprovou entre diversas resoluções a revisão do Plano Diretor Urbano e da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, a solicitação ao Governo do Estado de apresentação, por ocasião da realização da Conferência Estadual das Cidades de parecer técnico sobre a viabilidade sócioambiental de instalação da Siderúrgica da Companhia Vale do Rio Doce na Ilha de São Luís do Maranhão, assim como, deliberou pela criação de um Grupo de Trabalho com prazo de 120 dias para instalar o Conselho da Cidade. Porém, nenhuma das resoluções foi implementada pelo poder público. Sendo assim, houve um intenso debate que acumulou discussões, trocas de experiências e mesmo a leitura do Estatuto da Cidade por meio de oficinas, antes que o Conselho efetivamente tomasse posse. A Prefeitura entretanto, não somente não acatou as resoluções desta I Conferência, como potencializou a pressão política para alterar a Lei de Zoneamento. Entre os anos de 2003 até 2005, ocorreram vários fóruns, reuniões, oficinas reunindo militantes, conselheiros, organizações. Estes eventos visaram instrumentalizar 88 juridicamente as organizações e exigir dos gestores municipais a implementação das políticas urbanas conforme o que está previsto no Plano Diretor da Cidade de São Luís. Ou seja, desse processo de discussão e mobilização sobre o Plano Diretor de São Luís surgem questionamentos das razões que levam o poder executivo municipal a propor alteração na Lei de Zoneamento em vez de antes fazer a revisão e atualização do Plano Diretor. Vejamos os Artigos 20 e 21 do Capítulo VI do Plano Diretor de São Luís: “Do Uso do Solo Rural”: Art. 20. O uso e ocupação do solo serão regulamentados por lei complementar, que deverá: I - orientar e estimular o desenvolvimento rural sustentável de forma harmônica com as diferentes atividades contidas na zona rural; II - minimizar a existência de conflitos entre as áreas residenciais, rurais, industriais e outras atividades sociais e econômicas existentes na zona rural; III - adequar as zonas industriais, às reais necessidades do parque industrial do Município, analisando e redimensionando os atuais limites que contemplam áreas industriais fixadas anteriormente a elaboração deste Plano Diretor. Art. 21. O planejamento e gestão rural serão realizados pelo órgão municipal responsável pela política de agricultura familiar e desenvolvimento rural sustentável e o Conselho. (SÃO LUÍS, 2006). Com base nessas orientações contidas no Plano Diretor algumas ponderações foram feitas pelos conselheiros, sobretudo quanto à questão da adequação e compatibilidade entre as diferentes Zonas, principalmente relativas àquelas definidas como Zonas Rurais que os gestores municipais e estaduais têm interesse em transformar em industriais. Na composição do Conselho existem tanto aqueles que diretamente representam as organizações da sociedade civil, como também, conselheiros ligados aos empresários de transporte e do ramo imobiliário. Mas, o papel dos conselheiros na experiência inicial de mobilização contra o polo siderúrgico foi crucial não somente no controle e fiscalização do poder executivo, mas também, na divulgação acerca dos procedimentos administrativos para a concessão do terreno para a planta siderúrgica. Naquele momento, o ponto de pauta mais recorrente era o propósito da Prefeitura de São Luís de aprovar a alteração da Lei de Zoneamento40. Esse debate ganha maior relevância a partir de 2004 no processo de mobilização da sociedade civil, sobretudo, pelo fato de que a Prefeitura de São Luís, naquele momento, concentra esforços políticos no sentido de alterar a Lei de Zoneamento do município de 1992 e 40 A Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992) estabelece a divisão do município de São Luís nas seguintes Zonas: Zona Residencial, Zona Turística, Zona Administrativa, Zona Central, Zona de Preservação Histórica, Zona de Proteção Ambiental, Zona de Segurança ao Aeroporto, Zona de Reserva Florestal, Zona de Interesse Social, Zona Industrial, Corredor Primário, Corredor Consolidado, Corredor Secundário e Zona Rural, sendo que cada modalidade de zoneamento e da respectiva forma de uso tem suas subdivisões que resultaram de políticas de zoneamento anteriores e dos conflitos produzidos no próprio processo de institucionalização do zoneamento. 89 deixava claro na Mensagem enviada à Câmara o interesse do Governo do Maranhão pela instalação da siderurgia. A estratégia política do executivo municipal se deu por meio de um pedido formal em Carta enviada pelo Prefeito Tadeu Palácio ao presidente da Câmara dos Vereadores. Reproduzo um trecho do pedido de alteração da Lei de Zoneamento: [...] A proposta refere-se à gleba do Distrito Industrial, cuja classificação como Zona Rural criou uma incompatibilidade com características próprias da área, quando sua vocação natural é nitidamente industrial [...] Tal área localiza-se nos Módulos FNorte, F-Sul e G do Distrito Industrial, inseridas nas glebas Itaquí/Bacanga /Rio Anil/Tibirí/Pedrinhas, que tiveram seu domínio útil cedido ao Estado do Maranhão pelos Decretos Federais nºs 66.227/70 e 78.129/76, denominada Zona Rural Rio dos Cachorros, definida como distrito Industrial pela legislação estadual [...] com vistas à possibilidade de implantação do polo siderúrgico o Governo do Estado solicitou formalmente à prefeitura de São Luís, em setembro de 2004, que fosse estudada a reformulação da Lei de Zoneamento [...] Justifica-se ainda a alteração do zoneamento da área pela existência do complexo portuário e da malha ferroviária, o que potencializa a implantação de projetos de média e grande escala, como siderurgia e refinaria de petróleo [...] Entendendo seu papel na busca de medidas legais para viabilizar o desenvolvimento econômico da cidade, notadamente a promoção e geração de emprego e renda a seus munícipes, a prefeitura acompanha junto ao Governo Estadual, a elaboração de propostas relacionadas à habitação, infra-estrutura e inclusão social a ser disponibilizada à população, por ocasião da efetiva instalação de qualquer empreendimento industrial (SÃO LUÍS, 2004). No entanto, conforme observou Sousa (2009), com a intensificação do debate durante as audiências públicas em 2005, a Prefeitura tentou estrategicamente dissimular sua real intenção por meio de seus representantes que diziam que o pedido de alteração não tinha relação com a instalação do polo siderúrgico. As ações do Poder Executivo motivaram reações políticas por parte dos movimentos sociais, e também por parte do Ministério Público Estadual que moveu uma Ação Civil Pública contra a Prefeitura de São Luís e a Câmara dos Vereadores, resultando numa liminar judicial determinando uma nova sequência de audiências públicas na Câmara dos Vereadores (SOUSA, 2009). Entre 2003 e 2005, a UNMP e os movimentos estaduais por moradia e saneamento juntaram-se aos professores e pesquisadores da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e criaram o Fórum Maranhense das Cidades (CONCEIÇÃO, 2009). Este Fórum se constituiu num elo importante uma vez que potencializou as forças políticas de diferentes grupos sociais. Na II Conferência da Cidade em 2005 que teve como lema “Reforma Urbana: Cidade para todos” e o tema “Construindo a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano”, entre as resoluções do plenário foi a criação de uma campanha para a retirada do projeto de alteração da Lei de Zoneamento, em tramitação na Câmara Municipal de São Luís. Os participantes consideravam que a proposta de alteração do poder executivo municipal estava na contramão do Plano Diretor que em suas diretrizes, conforme a Lei Federal do Estatuto da Cidade (artigos 90 182 e 183) exige a participação da sociedade civil. O que de fato é consensual e que resume o debate naquele contexto é a denúncia da mudança da Lei Municipal de Zoneamento pela prefeitura visando contornar o “empecilho legal” para instalação do polo siderúrgico, ademais, esta mudança não poderia ocorrer sem antes realizar a revisão do Plano Diretor (CONCEIÇÃO, 2006). 3.5.1 Entendendo o caso a) A distribuição do zoneamento urbano, em princípio obedece a critérios técnicos urbanísticos conforme o Plano Diretor de cada cidade41, sendo que este deve ser revisado a cada dez anos conforme a Lei Federal do Estatuto da Cidade42. b) No caso da Zona Rural de São Luís, mais especificamente a subárea denominada de Zona Rural Rio dos Cachorros, localizada nas proximidades do Complexo Portuário de São Luís foi legalmente criado ainda nos anos de 1970, pelos Decretos Federais nºs 66.227/70 e 78.129/76, e incorporados posteriormente em 1992 pela Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992). Mas esta área é também definida como parte do Distrito industrial de São Luís (DISAL), denominada de Área do ItaquiBacanga, segundo Decreto Estadual nº 3.589 de 1974. A adequação do DISAL à legislação ambiental levou à unificação das duas áreas Itaqui-Bacanga e TibiriPedrinhas (Decreto Estadual nº 7.632) com uma área de 19.946,2316 ha. c) O Governo do Maranhão por meio da Gerência de Planejamento e Desenvolvimento Econômico enviou ofício em janeiro de 2001 a SPU solicitando o recebimento das referidas áreas decretadas como Zona Rural (Decretos Federais nºs 66.227/70 e 78.129/76), uma vez que “nessas Glebas estão localizados os Planos Diretores do Distrito Industrial de São Luís, além dos principais portos marítimos do Estado (Itaquí, Ponta da Madeira, Alumar e os Terminais de Ferry Boat e da Marinha), como também, áreas de retroporto” (Estado do Maranhão, 2001). 41 O primeiro Plano Diretor de São Luís foi instituído em 1975 (Lei 2.155, de 26 de junho de 1975) pelo então Prefeito de São Luís Antônio Bayma Júnior. 42 Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 - Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. (BRASIL, 2001). 91 d) O Prefeito de São Luís, a pedido do Governo do Maranhão em dezembro de 2004 enviou por meio de Mensagem à Câmara dos Vereadores um Projeto de Lei propondo a alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992), uma vez que a classificação da área requerida como Zona Rural “criou uma incompatibilidade com as características próprias da área, quando sua vocação natural é nitidamente industrial” (Prefeitura de São Luís, 2004). e) Os membros do Conselho da Cidade de São Luís questionaram os seguintes aspectos: Pelo projeto original do polo siderúrgico a área pretendida era de 2.471,71 ha entre o Porto de Itaqui e povoado de Rio dos Cachorros, situada na Zona Rural do município de São Luís, mas a Constituição do Estado do Maranhão somente autoriza a concessão de terras públicas até o limite de 1.000 hectares. Para utilizar toda a área pretendida, seria necessária uma autorização da Assembleia Legislativa. Que empreendimentos industriais somente poderão ser implantados em Zona Industrial, baseados na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2011 (arts. 182 e 183 do Estatuto da Cidade e Plano Diretor). Por ser definida como Zona Rural, a ZR Rio dos Cachorros fica proibida de receber instalação de empreendimentos industriais e/ou atividades correlatas. Obs. a ZR Rio dos Cachorros localiza-se na área escolhida para a instalação do polo siderúrgico. Como procurei mostrar estes conflitos se configuram historicamente com a expansão do Complexo Portuário de São Luís e com a instalação de indústrias, a exemplo da Alumar e da Companhia Vale do Rio Doce. A política de zoneamento e de ordenamento territorial por meio de medidas legais (ver Quadro 3) reflete portanto, um “processo de territorialização” que mobiliza forças antagônicas (SOUZA, 1995). Observando o panorama do zoneamento acima descrito, há contradições também de ordem jurídica e administrativa nas diferentes esferas quanto ao tipo de uso e à forma de zoneamento em São Luís. Os decretos federais classificam a área em litígio como Zona Rural, e o Governo do Maranhão, por meio de um decreto estadual a define e reivindica como Zona Industrial. O projeto de instalação do polo siderúrgico potencializou a disputa pelo zoneamento sobre a Zona Rural de São Luís quando o Prefeito por meio de um Projeto de Lei pediu que a 92 Câmara aprovasse a alteração do Zoneamento para viabilizar legalmente o projeto. Por outro lado, os moradores dos povoados da Zona Rural II, representados pelas associações de moradores do Taim e Rio dos Cachorros, e por moradores do Cajueiro e Porto Grande, também reivindicam a área para permanecerem propondo a instalação da Reserva Extrativista de TauáMirim. Esta situação vem se configurar analogamente com a definição dos “Conflitos ambientais territoriais” na medida em que há “sobreposição de reivindicações” de diversos seguimentos, atores e agentes, portadores de interesses identidade e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial, envolvendo também, modos distintos de produção e de apropriação da natureza. (ZHOURI; LACHEFSKI, 2010, p. 23). A configuração dos conflitos em torno do projeto do polo siderúrgico se situa também num cenário mais amplo em que o governo brasileiro retoma importantes obras de infraestrutura visando à integração do país de forma competitiva no cenário internacional. Assim, se de um lado, como assinala Carvalho (2011), nesta “fase logística”, a gestão territorial na área portuária de São Luís fica cada vez mais relacionada ao “exercício do poder” de “agentes hegemônicos” integrando elementos da administração de empresas e da governabilidade, por outro lado, é importante considerar que nesta experiência do polo siderúrgico há múltiplas lógicas em processo de “confrontação” informadas pelas diferentes formas de uso social dos territórios. Em linhas gerais, duas lógicas em confronto configuram os conflitos: a luta das comunidades rurais de um lado, e por outro, as agências governamentais promotoras dos projetos e planos de desenvolvimento, articulados à iniciativa privada. Quadro 3 – Reformulações no ordenamento territorial do Distrito Industrial de São Luís – DISAL, entre 1974 e 2004 ANO ATIVIDADE 1974 Delimitação do Distrito Industrial de São Luis (DISAL), área do Itaqui- Bacanga (Decreto Estadual nº 3.589) 1975 Primeiro Plano diretor de São Luís (Lei 2.155, de 26 de junho de 1975); Prefeito Antônio Bayma Júnior 1976 Secretaria de Patrimônio da União define por meio do Decreto Federal 78.129 de 29.07.1976, as áreas de Itaqui-Bacanga e Tibirí-Pedrinhas como Zona Rural. 1977 Decreto Estadual nº 3.840 define a área Tibiri-Pedrinhas como parte da Zona Industrial. 1980 Adequação do DISAL à legislação ambiental levou à unificação das duas áreas Itaqui-Bacanga e Tibiri-Pedrinhas (Decreto Estadual nº 7.632) com uma área de 19.946,2316 ha. 1992 Aprovação do Segundo Plano Diretor de São Luís e surgimento da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Luís (Lei Municipal nº 3.253/92); Prefeito Jackson Lago 2004 Reformulação do DISAL (Decreto estadual nº 20.727). Justificação para implantação do Polo Siderúrgico Fonte: Levantamento documental e pesquisa de campo (2011 e 2012). 93 3.6 O papel político da União Nacional por Moradia Popular (UNMP) A UNMP43 é uma das organizações protagonistas nesse debate específico sobre o Plano Diretor, uma vez que desde 2003 faz parte do Fórum Maranhense das Cidades. Conforme Creuzamar Pinho, coordenadora da UNMP no Maranhão esta entidade se caracteriza da seguinte forma: A União Nacional por Moradia Popular é uma ONG, mas é movimento social e dentro do movimento social nós temos nosso CNPJ que nos resguarda de algumas ações e nos possibilita assinar alguns convênios, a exemplo do Minha Casa Minha Vida44. Então a estrutura da União é exatamente essa. Nós somos um movimento de massa para fora, mas internamente é preciso que haja organicidade, uma pessoa jurídica, inclusive pra poder responder oficialmente na luta de massa. (Creuzamar Pinho, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular. Entrevista realizada em 23 nov. 2012) Pelo fato de lidar diretamente com as questões relativas à política urbana e à moradia popular no âmbito nacional, a coordenação do Movimento por Moradia, teve um papel crucial no debate sobre o polo siderúrgico, uma vez que implicava no “despejo forçado” de famílias de trabalhadores rurais. Mas, também, pelo fato de ser uma ONG que atua diretamente nas políticas públicas, têm acesso aos canais de informação, sendo, portanto uma organização importante no debate sobre os problemas urbanos e, em especial, no que tange à política de moradia popular. Nesse sentido teve papel importante como fornecedora de subsídios institucionais e argumentos legais contra o “despejo” das famílias residentes na área em que seria instalada a planta siderúrgica: O que vai de fato é nome da União por Moradia Popular porque o CNPJ dificulta inclusive as prisões policiais e os processos judiciais também [...] na luta contra o despejo forçado, no caso a luta dos povoados rurais ameaçados pela instalação do polo siderúrgico; ao mesmo tempo, o Movimento atua na via da organização política e formação política das comunidades. (Creuzamar Pinho, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular. Entrevista realizada em 23 nov. 2012). O Estatuto das Cidades foi um instrumento didático importante nas campanhas de mobilização entre as organizações já reunidas em torno do debate sobre o polo siderúrgico. Tinha essa perspectiva de instalação aqui na ilha, e aí nós tínhamos a certeza que nós não éramos contra, como de fato nós não somos contra a vinda de nem um empreendimento prá cá, muito pelo contrário, aqui é um estado fim de linha e que precisa ser desenvolvido. Mas é necessário que se leve em consideração algumas 43 A UNMP iniciou sua articulação em 1989 e consolidou-se a partir do processo de coletas de assinaturas para o primeiro Projeto de Lei de Iniciativa Popular que criou o Sistema, o Fundo e o Conselho Nacional por Moradia Popular no Brasil (Lei 11.124/05). Sua forma de organização tem uma forte influência da metodologia das Comunidades Eclesiais de Base, de onde se origina grande parte de suas lideranças. A UNMP trabalha com grupos de base nas regiões metropolitanas e se articula regionalmente nos principais polos dos estados. Os estados são representados na instância nacional. (UNIÃO POR MORADIA POPULAR DO PARANÁ, c2014). 44 Refere-se ao conjunto habitacional do Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida do Governo Federal. 94 particularidades do Maranhão, é necessário que se olhe com o olhar social, com compromisso social para as comunidades já instaladas em determinados espaços, aquelas áreas são áreas rurais e vários interesses, inclusive comercial tornou-se uma área industrial, mas sem levar em consideração as pessoas que já estavam instaladas ali por muitos anos e com essa discussão do polo siderúrgico, a obrigatoriedade de haver audiências públicas. (Creuzamar Pinho, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular. Entrevista realizada em 23 nov. 2012). A União por Moradia Popular tem articulações políticas com os demais movimentos sociais urbanos. Em São Luís, está articulada às ações da Central de Movimentos Populares (CEMOP)45 que atua em conjunto com outros movimentos e entidades com demandas bastante diversificadas, tais como, o Movimento de Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais no Maranhão (Grupo Gayvota), o Fórum de Regularização Fundiária Metropolitana, o Centro de Cultura Negra e o Fórum de Defesa da Criança e do Adolescente da Vila Luizão. É importante enfatizar que embora esta inserção dos movimentos no debate sobre a elaboração do Plano Diretor não possa ser uma ampla garantia de mudanças significativas no planejamento urbano, dado o seu caráter formal e restritivo da participação, entretanto, a introdução da “participação” tal como é bastante enfática na Lei Federal do Estatuto da Cidade fortaleceu a luta política dos movimentos por dentro do próprio Estado. Uma vez garantida formalmente a participação de representantes de amplos segmentos da sociedade civil no Conselho da Cidade de São Luís, entretanto, a efetiva presença qualitativa nas decisões, depende em grande medida da “capacidade crítica” de pessoas e das organizações da sociedade civil acumularem recursos para ocuparem estes espaços que são sempre objetos de disputa política de grupos sociais com interesses distintos. Mas, caberia aqui continuar indagando, por outro lado, o que de fato levou a uma unificação, ou a formação de links e de uma coalizão tão ampla de organizações articuladas dentro de um movimento de reação política contra a instalação de um projeto? Ora, a hipótese aqui tem pelo menos dois aspectos que podem orientar a sustentação dos argumentos. O primeiro refere-se à ótica dos “novos movimentos sociais” que não se orientam apenas pela referência a uma determinada classe social lutando pelos seus interesses. Um segundo aspecto indissociável do primeiro é o processo de “dessingularização” que irei analisar adiante no Capítulo 3, item 3.8. Atualmente, dentro dos formatos organizativos dos canais de participação, em especial no campo da política ambiental brasileira, Acserald (2006, p. 23) observa que os espaços deliberativos podem ser objeto de manipulação, a exemplo dos Conselhos de Meio 45 A Central de Movimentos Populares é uma organização nacional que surgiu em 1993 e é resultado de vários anos de Encontros, Congressos, Fóruns organizados desde 1989 pela Pró-Central dos Movimentos Populares que reunia militantes do Partido dos Trabalhadores e de líderes sindicais ligados à Central Única dos Trabalhadores – CUT (GOHN, 1995). 95 Ambiente. Nessa condição, a despolitização dessas instâncias pode levar a um freio da “crítica social” e serem transformados em formatos organizativos de mediação e de “resolução de conflitos”, criando o que este autor chamou de “democracia imagética”, ou “democracia de proximidade”, como meio de forjar consensos. A aprovação da alteração da Lei de Zoneamento ocorreu em 2005, mas somente em maio de 2006 o Prefeito Tadeu Palácio deu a posse ao Conselho da Cidade de São Luís46. Para as lideranças dos movimentos, que naquele momento se unificavam em torno do debate sobre a siderurgia da Vale, o adiamento da posse do Conselho da Cidade teve relação com a pressão do Governo Estadual sobre a Prefeitura de São Luís para viabilizar as medidas legais para instalação da siderurgia. Embora a posse do Conselho da Cidade de São Luís tenha ocorrido somente após a alteração da Lei de Zoneamento, é importante considerar que este foi constituído visando à revisão do Plano Diretor. Conforme o Relatório Final da Revisão do Plano Diretor da Cidade de São Luís (2006), foram realizadas 23 reuniões do Conselho da Cidade, sendo 19 extraordinárias e 4 ordinárias, além de uma série de encontros e reuniões entre comitês técnicos e representantes do Conselho, técnicos da prefeitura e observadores. No âmbito das atividades do Conselho da Cidade muitos questionamentos foram feitos. Por exemplo, na reunião do Conselho da Cidade de 10 de julho de 2006, houve várias contestações, dentre elas, a manifestação do representante da OAB pelo fato de que “a análise da leitura técnica apresentada na capacitação (de conselheiros) era inadequada”, seguido pelo representante da Central de Movimentos Populares notando que “não constavam informações sobre a Zona Rural de São Luís” (CONCEIÇÃO, 2006). Sobre a definição das políticas de zoneamento de São Luís, é importante destacar que desde 2001, a Zona Rural estava passando por tensões políticas em função do debate e das pressões para instalação da siderurgia e líderes dos povoados que seriam deslocados também se inseriram nos debates. Tanto as empresas, quanto o Governo do Maranhão e a Prefeitura de São Luís atuavam em conjunto no sentido de agilizar a desocupação da área. No caso do Conselho da Cidade de São Luís, a estratégia do poder executivo municipal de mudar a Lei de Zoneamento para somente depois aprovar a composição do Conselho, levou a um efeito contrário, uma vez que este mesmo espaço foi instrumentalizado no sentido de ter sido transformado numa oportunidade de mobilização política contrária a 46 O Conselho da Cidade ficou então constituído de 62 conselheiros: 31 Titulares e 31 suplentes, representantes da sociedade civil, entre estes membros de entidades populares que integram os movimentos sociais, representantes de empresas e de representantes do poder público. 96 alteração da Lei de Zoneamento. Foram criados canais de diálogo e links que aglutinaram forças políticas em torno de uma questão maior colocada pelos movimentos sociais, isto é, o combate à implantação de um polo siderúrgico capitaneado pela Companhia Vale em parceria com o Governo do Maranhão e a Prefeitura de São Luís, sendo que foi a compreensão de suas consequências sociais e ambientais que motivou a mobilização das entidades. Nessa primeira audiência, um dia antes fizemos uma articulação por telefone com alguns companheiros, inclusive o Zagallo, a Suely Gonçalves e começamos a estudar o Estatuto das Cidades onde trata das questões urbanas e no Estatuto das Cidades tem as condicionantes para a realização de audiências públicas. Então o local não oferecia condições necessárias adequadas para a realização de audiência pública, era uma Igreja pequena, era um local sem banheiro, não cabia todo mundo e nós começamos a ver por aí. Mas só isso não justificaria o pedido de suspensão de audiência, de qualquer forma nos mobilizamos e tínhamos alguns exemplares do Estatuto. Alguns não dominavam essa parte do Estatuto, mas começaram à estudar no domingo, a audiência era na segunda. Fizemos várias articulações no domingo e fomos para lá com essa intenção de tentar suspender essa audiência com base no Estatuto das Cidades. Fizemos as falas, as intervenções, pedimos para suspender a audiência e nada. O Promotor do Meio Ambiente estava lá, Fernando Barreto47. Pressionamos tanto o Marcelo do Espírito Santo48, como também cobramos a posição do Ministério Público que estava na audiência dizendo que era necessário cumprir as condicionantes do Estatuto das Cidades para a realização de Audiências. Exigimos também o Estudo de Impactos de Vizinhança para se instalar o polo, não tinha, e segundo os estudiosos iria causar sérios problemas não somente para aquela população diretamente atingida, mas pra toda ilha. (Creuzamar Pinho, coordenadora do Movimento Nacional por Moradia Popular. Entrevista realizada em 23 nov. 2012). 3.7 O papel político das associações de moradores da Zona Rural de São Luís: das unidades básicas de organização à formação de atores coletivos Os “repertórios da ação coletiva” dos grupos que reivindicam direitos ao Estado são sempre limitados, mas é na prática cotidiana de contestação que aprendem como fazer reivindicações. Assim, a metáfora da “caixa de ferramentas culturais” resultante das experiências acumuladas (TILLY, 1996), é sempre sugestiva para descrever o campo empírico deste estudo. Uma organização com sentido cultural, envolvendo danças tradicionais, pode ser transformada num espaço de mobilização. Este é um bom exemplo, ocorrido no Porto Grande, localidade vizinha do Taim e do Rio dos Cachorros: Foi assim um sonho, comecei com a dança portuguesa e pensava também na dança do boiadeiro [...] e começaram reivindicar o transporte que nessa época era um ônibus por dia, e foram para uma reunião, pois as crianças tinham que pegar o carro das 10 horas para entrar na escola às 13 horas e ficavam preocupados com as crianças e então tiveram reunião na Taguatur (empresa de ônibus), depois teve outra na Vila Maranhão 47 Promotor da Procuradoria de Justiça do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual. Presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento do Município de São Luís, Presidente da Mesa Diretora das Audiência Públicas da Prefeitura de São Luís. 48 97 com toda a área rural [...] até as 11 não apareceu ninguém, somente da Taguatur [...] a reivindicação era integrar o ônibus e melhorar o transporte, mas como a empresa não compareceu, fecharam um ônibus e depois conseguiram integrar [...] eu fui pra uma reunião, conversando com as pessoas de outras comunidades, e me veio na mente, quem faz a comunidade somos nós, os moradores, se a gente se cala, ela não pode melhorar [...] (Itajacira da Luz, 46 anos, Presidente da Associação de Moradores de Porto Grande. Entrevista em 24 out. 2012). Na mesma época, relata esta líder comunitária, que não conseguindo avançar nas negociações, foi realizada uma nova reunião entre os povoados quando decidiram protestar fechando a passagem dos ônibus de Porto Grande e Vila Maranhão. A estratégia era forçar as autoridades virem até os povoados. Foram até a empresa, mas esta alegou não ter disponibilidade de mais ônibus para aquele destino. Então passaram a exigir do órgão municipal para colocar outra empresa. Realizaram abaixo-assinado, tiveram ajuda de um político para mediar a reivindicação na Prefeitura. O governo acatou o pedido e colocou outra empresa, a Primor, por três meses, com dois ônibus diários, depois a antiga empresa voltou a operar, permanecendo dois ônibus para toda a área Itaqui-Bacanga. Há relatos de inúmeras mobilizações como esta, iniciadas por pessoas que se reuniam para tratar de outros assuntos, mas que tiveram suas pautas convertidas em reivindicações de interesse mais geral da comunidade: Mudei, e eu via muito assim que a gente na época da política existe aquelas coisas, existe a liderança comunitária e existe o cabo eleitoral, o cabo eleitoral é aquele que aparece no período político, diz que faz pela comunidade, leva o nome da comunidade, mas não faz nada e daí a gente começou a cobrar, comecei olhar e disse: “olha a gente só apoia um candidato que fizer algo dentro da comunidade, se não ninguém apoia ele, mesmo assim a gente não consegue” [...] a gente começou ter melhoria que nós não tínhamos, ruas era só essa avenida aqui, essas ruas que você vê era só caminho, tipo caminho de roça e aí eu fui à luta. Consegui máquinas para abrir as ruas, fazer as ruas [...] depois a água da comunidade, nós não tínhamos água, conseguimos dois poços. Hoje a iluminação, eu fui atrás e a gente conseguiu e agora vamos construir uma praça lá na Associação, de material reciclado. (Itajacira da Luz, Presidente Associação de Moradores do Porto Grande. Entrevista em 24 out. 2012). 3.8 A “dessingularização” do Taim e do Rio dos Cachorros Como já tive oportunidade de indicar anteriormente, é de interesse deste estudo procurar entender o que designei de link entre as entidades mobilizadas em torno do projeto polo siderúrgico de São Luís. Neste subcapítulo, darei uma atenção especial ao link estabelecido entre as organizações populares de São Luís e as lideranças da Zona Rural. Destaco na análise a experiência de lideranças dos povoados de Taim e Rio dos Cachorros, mas evidentemente que as ações coletivas não são ações isoladas, como já assinalou Tilly (1978), pressupõem interação e compartilhamento de interesses. Cada contexto empírico apresenta formas específicas de ação coletiva. Tilly (1978), por exemplo, apresenta os seguintes componentes: “interesses”, “mobilização” e a 98 “oportunidade”. Mas considera que o contexto orienta os atores quanto às formas e todos os recursos a serem utilizados. Nesse sentido, o caso em análise se caracteriza por uma ação coletiva de caráter reativo, contra um grande projeto industrial que constitui substancialmente o objeto de contestação que, por sua vez, implicou na iminente ameaça de deslocamento de povoados rurais. Para descrever o processo de mobilização me utilizo de algumas narrativas para ilustrar momentos importantes das ações coletivas a partir das quais se constituiu um movimento social mais amplo. Obviamente que a realidade é bem mais complexa do que se pode deixar parecer uma síntese construída pela lógica sequencial proposta pelo pesquisador. Entretanto, acredito que as sínteses e modelos explicativos são importantes como ponto de partida para descrever e tornar inteligível a percepção dos eventos. Dessa forma, assumo aqui o risco em sintetizar a dinâmica do processo principalmente pela narrativa de Alberto Cantanhede, ator político importante do processo de reação política ao polo siderúrgico, e cuja trajetória de experiência está referida a fóruns de discussão mais amplos, a exemplo da inserção que teve no Grupo de Trabalho Amazônico (GTA)49. O critério de escolha para utilização desta narrativa para compor a análise do processo, foi o da representatividade deste líder que narra algumas ações coletivas desencadeadas a partir de suas iniciativas, como líder comunitário que é reconhecido e legitimado pelos moradores do Taim, do Rio dos Cachorros e por parte dos moradores das demais localidades. Ademais, sobre este ator singular, é importante assinalar a sua experiência de militância e de engajamento político nas organizações comunitárias locais e extra-locais, e que portanto, traçam o perfil do próprio líder, ou seja, as suas vivências e experiências de mobilização política no âmbito local se confundem com o próprio trajeto de mobilização da comunidade do Taim em processos de resistência ocorridos anteriormente à reação ao polo siderúrgico. Há outras importantes lideranças que se engajaram na mobilização contra o polo siderúrgico, entre as quais, cito a Senhora Máxima, do povoado de Rio dos Cachorros, que também protagonizou a reação política local ao pedir ajuda de outras lideranças do povoado do Taim mediante a presença dos funcionários da empresa de consultoria que em 2004 fazia o cadastramento das famílias e dos terrenos para fins de desapropriação. Nessa perspectiva me posiciono metodologicamente justificando que as ações coletivas não ocorrem a não ser por 49 A Rede GTA surgiu após a Eco-92 no Rio de Janeiro e é formada por 20 coletivos regionais em nove estados brasileiros que ocupam mais da metade do tamanho do país, envolvendo mais de 600 entidades representativas de agricultores, seringueiros, indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores, ribeirinhos e entidades ambientalistas, de assessoria técnica, de comunicação comunitária e de direitos humanos. (REDE GRUPO DE TRABALHO AMAZÔNICO, c2014). 99 pessoas, como se diz, “de carne e osso” que são afetadas por alguma forma de injustiça. Interessa aqui descrever e analisar a “formulação pública” de uma questão que se tornou um problema social (LENOIR, 1996) evidenciada por pessoas diretamente afetadas. Descrevo a narrativa em diferentes momentos, seguindo uma lógica que se inicia com a mobilização local de atores “singulares” (indivíduos, famílias) afetados diretamente. Na sequência, importante verificar as formas pelas quais estes atores acionam as vias institucionais do governo, questionando a presença de uma empresa de consultoria no local, cujo objetivo era fazer levantamento das famílias, dos terrenos e benfeitorias para fins de desapropriação. Na mesma ocasião, as casas foram marcadas e numeradas com tinta preta, e nas vias de acesso aos povoados foram colocadas estacas com timbre das empresas. Segundo informação dos funcionários da empresa, depois de vistoriadas e numeradas, as casas e seus quintais não poderiam sofrer qualquer alteração, pois seriam indenizadas somente por aquilo que havia sido levantado na vistoria realizada. A reação a essas ações levou a uma série de questionamentos por parte das lideranças que mobilizaram os moradores e unificaram as ações por meio de suas associações. A estratégia inicial do movimento de reação foi impedir a ação da empresa Diagonal Consultoria que havia sido contratada pelo Governo do Maranhão para fazer os primeiros levantamentos e cadastros das famílias que naquele momento estavam sendo notificadas para serem indenizadas. A reação imediata foi impedir a continuidade nas atividades dessa empresa e buscar ajuda de outras organizações. Vejamos o que diz Alberto Cantanhede, sobre o início da reação nos povoados rurais50: a) No primeiro momento, retrata a iniciativa da mobilização inicial como situação de iminente ameaça de deslocamento dos moradores de Vila Maranhão, Cajueiro, Porto Grande, Rio dos Cachorros e a reação contrária do Taim: [...] quando uma consultoria entra na área fazendo entrevistas com as famílias e já dizendo “vocês podem ser remanejados”. Mas eles não afirmavam isso, eles só diziam “podem” ser remanejados, então se forem remanejados nós estamos fazendo um levantamento do potencial de produção de vocês, o que vocês têm enquanto patrimônio. Depois faziam uma foto da família na frente da casa e diziam pra eles que não podia mais investir naquela casa, no terreno, por que se fossem remanejados só ia ser pago aquilo. Então, já diziam para as pessoas que iam perder dinheiro se fizessem investimento na casa. 50 Trechos de entrevista realizada em 11 dez. 2012. 100 b) O segundo momento descreve a iniciativa da ajuda aos moradores do povoado vizinho de Rio dos Cachorros: [...] foi ai que a Máxima51 me ligou, eles ainda não tinham feito52no Taim, eles tinham feito no Cajueiro, parte da Vila Maranhão e entraram no Rio dos Cachorros, no Porto Grande eles entraram. Eles não precisaram conversar com ninguém, eles marcaram pela estrada; eles botaram uma estaca assim, foram botando tudo já com o timbre das empresas que eram a Diagonal e a Vale do Rio Doce, o Governo do Estado, a Secretaria de Indústria e Comércio. Então, no Porto Grande estava dado que saía sem discussão nenhuma, até porque lá já tinha um porto e era investimento do governo federal que estava passando pro Estado. Não deram sinal de que iam conversar com ninguém, só botaram as pedras e marcaram pela estrada, mas não marcaram casa de ninguém. No Rio dos Cachorros eles fizeram casa a casa, quando chegou à casa da Máxima, Máxima me ligou e disse que estava havendo essa entrevista e que ela não entendeu porque eles queriam fazer essa entrevista e aí eu disse para ela que era para ela segurar o pessoal que eu ia lá. Aí eu fui lá no Rio dos Cachorros. c) No terceiro momento a narrativa descreve a reação local, inicialmente contra a ação da empresa de consultoria: [...] quando eu cheguei lá encontrei as consultorias, as pessoas que estavam fazendo as entrevistas. Eu disse que a gente precisava conversar com o Secretário de Indústria e Comércio, que eles não podiam mais fazer aquilo. Até porque nem pode me proibir de mexer no meu terreno enquanto eu não vender; eu tenho que botar à venda, primeiro; assim é mais legítima a venda. Aí, eles disseram: ah mas é só um estudo! E eu disse: ah! É só um estudo? Então por que é que vocês estão colocando condições, se é só um estudo? É só um estudo, então não precisa colocar condições, fazer fotos das pessoas, depois bota um número na casa, aí não, não faz mais nenhuma. E lá no Taim vocês não vão, vocês não vão fazer nenhuma. Aí eu fiz uma reunião às pressas aqui. A gente fez as primeiras reuniões muito sós, muito soltos. Eu, Máxima, a menina do Porto Grande, e mais uma pessoa do Rio dos Cachorros. d) Após as primeiras reuniões locais entre as lideranças comunitárias do Taim, Porto Grande e Rio dos Cachorros eles exigiram uma reunião com o Secretário Estadual de Indústria e Comércio: [...] a gente começou, marcamos uma reunião com o Secretário de Indústria e Comércio. Ele chegou lá dizendo que já tinha hora prá sair. Começamos às 9 horas e ele dizendo que só podia ficar até às 10 h. Nós ficamos até 3 h da tarde e ninguém almoçou nesse dia e não chegamos num acordo e disse: “olha secretário nós não vamos abrir mão do que é nosso porque primeiro, você tem que tirar essa história de marcar casa, não tem negócio de marcação de casa, depois, eu posso sim investir na minha casa mesmo depois de vocês dizerem que a gente vai ser desapropriado, por que não posso valorizar o que é meu?” “Ah porque vai ter especulador”. Sim, vai ter especulador inclusive o estado está especulando, quem tá especulando é o estado não somos nós, por que vocês vão passar essas áreas pro estado, mas quem tá dentro do estado? Você e a governadora”, na época era a Roseana, vão faturar em cima disso também politicamente, economicamente, por que nós não podemos faturar onde nós moramos? E não vai ter mais cadastramento, aí saímos de lá 3 h da tarde não teve acordo. 51 Maria Máxima, liderança comunitária do povoado de Rio dos Cachorros, foi integrante do Movimento Reage São Luís. 52 O entrevistado se refere à marcação das casas com tinta preta. 101 e) Após a reunião com o Secretário Estadual de Indústria e Comércio, sem acordo, houve uma nova reunião, desta vez, convocada pelo próprio Secretário: [...] ele mesmo convocou com ofício para todo mundo. Lá pra dentro, ali na Conceição onde tem um galpão grande ali em frente à oficina, a garagem da Vale. Mas já botando uma observação no documento que não queria imprensa, ia ser lá que era um local isolado que não queria imprensa Aí foi outra reunião (janeiro de 2005) que era para começar as duas da tarde era para terminar as quatro e nós chegamos até 11 h da noite. Mandou53 deixar todo mundo em casa mas não saiu acordo de novo. f) As lideranças recorrem às outras vias, buscando possíveis aliados para apoiar às suas causas: [...] mas nós estamos fracos precisamos procurar apoio. Começamos procurar a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e eles não tinham um advogado com esse perfil. O advogado deles era mais pra questão agrária, de conflito agrário mesmo e ele já tinha ajudado a gente aqui estava com Helena Heluy (Deputada Estadual do Partido dos Trabalhadores) e ela disponibilizou o Marcio Andrews, mas também estava se especializando em legislação agrária, mas aí (Helena disse:) “Beto eu vou indicar Zagallo54, mas Zagallo está trabalhando no Sindicato dos Urbanitários. Tú vais ter que conversar com a direção do Sindicato para disponibilizar o Zagallo, ele é bom nisso inclusive já trabalhou na Vale”. E foi aí que a gente conheceu o Zagallo e pedi uma reunião com a direção do Sindicato e disse que a gente precisava de apoio e fui colocando. g) Cruzando a narrativa de Alberto Cantanhede com as discussões acumuladas entre 2003 e 2005 sobre o Estatuto da Cidade, o que se nota é o acúmulo de experiências das entidades engajadas na discussão sobre o Plano Diretor de São Luís. Se de um lado, há um processo de investimento das consultorias na Zona Rural visando convencer os moradores da inevitabilidade do remanejamento para instalação do polo siderúrgico, por outro, é na busca permanente de novos aliados e de informações, que uma reação mais ampla foi ganhando força política e se constituindo independentemente das instâncias institucionais de participação. 53 O Secretário de Indústria e Comércio viabilizou transporte para os participantes da reunião até suas residências nos povoados. 54 Guilherme Zagallo é ex-Técnico de Manutenção Eletrônica na Companhia Vale do Rio Doce (1983 a 1992) e posteriormente, assessor da Divisão de Comercialização da Estrada de Ferro Carajás desta mesma empresa (1992 a 1994). Graduou-se em direito pela Universidade Federal do Maranhão e como advogado tem atuado na defesa de sindicato de trabalhadores no Maranhão. Entre 2004 e 2005 se dedicou aos estudos dos impactos ambientais provocados com a possível instalação do polo siderúrgico. Como advogado militante e membro fundador do Reage São Luís, defendeu os povoados contra o deslocamento durante o debate em audiências públicas em São Luís e impulsionou a formação do movimento de resistência ministrando palestras e oficinas nos povoados. Foi um ator fundamental neste processo de “dessingularização”. Faz parte da coordenação da Campanha Justiça nos Trilhos, que articula ações de entidades da sociedade civil para se contrapor aos impactos socioambientais ao longo da Estrada de Ferro Carajás. Foi também membro da OAB-MA, relator da Plataforma Dhesca e recebeu o título de Cidadão Maranhense pela Câmara dos Deputados em 2009. (ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA, c2014). 102 Conseguimos falar com a Delegacia do Trabalho na época era o Bira55 que veio pra dentro, porque tinha muito o discurso da geração de emprego e ele como Delegado do Trabalho podia acessar as informações concretas do que ia gerar de emprego. Então a gente foi buscar ele muito mais nessa ótica do que vai ter mesmo de emprego. Ele colocou os números prá gente. Só que o município e o estado insistiam num discurso em que a transformação da área em Zona Industrial não era prá implantar alguma indústria específica, era prá botar qualquer coisa prá incentivar geração de emprego no estado e foi que o pessoal da União por Moradia que tinha uma articulação bem forte com o Ministerio das Cidades informou pra gente, “Olha! vão na Secretaria de Patrimônio da União em Brasília que vocês vão ter outras informações”. E a própria Creuzamar de Pinho que tava na União por Moradia Popular deu os contatos e fomos à Brasília, eu e Zagallo prá conversar com a Paula Santos que na época era a Secretaria de Patrimônio da União em Brasília. Chegamos lá colocamos qual era a situação, as informações que a gente queria sobre São Luís. Nem completamos a informação e ela disse “olha eu tenho um processo aqui pedindo uma área lá prá implantar um polo siderúrgico”. A gente colocou, nós levamos também um relatório dos assentamentos e dissemos: “Olhe essa área aqui tá num conflito”. Era exatamente sobre essa área que a gente queria saber porque o estado criou vários assentamentos aqui dentro e agora tá querendo desapropriar sumariamente sem nenhuma discussão prá colocar esse polo siderúrgico. Aqui tem quatro, cinco comunidades grandes quase 20 mil pessoas. Aí ela na mesma na hora ligou pra cá pro gerente de Patrimônio da União, pediu o processo, (Ela disse:) me devolva o processo que eu tenho uns erros aí prá corrigir [...] O processo já estava aqui pra cessão da área e o estado insistia ainda em dizer que não era prá polo siderúrgico. h) O desaguamento de diferentes forças políticas das entidades da sociedade civil: o impacto seria para todo mundo... [...] agora não era só uma questão nossa das comunidades. Nós íamos ter o primeiro impacto, mas depois esse empreendimento implantado o impacto seria pro todo mundo. Quando o Zagallo viu isso começou a divulgar e foi trazendo mais gente. A gente reuniu o Movimento de Moradia, a Sociedade de Direitos Humanos e reuniu algumas lideranças aqui da comunidade na CUT. Zagallo levou um documento mais completo e disse “olha gente o projeto é esse e o risco não é só das comunidades [...]”. A gente não tinha muito espaço, quando a gente insere aí o Sindicato dos Urbanitários que disponibiliza o Zagallo, a CUT, o próprio Nivaldo (dirigente sindical CUT) vem prá dentro do movimento e começa articular outros sindicatos, também o Sindicato dos Ferroviários, o Sindicato dos Metalúrgicos, o Tijupá (ONG), o Fórum Carajás já tava também dentro. Vem algumas figuras meio que individual. A Helena Heluy (Deputada Estadual do Partido dos Trabalhadores) fortaleceu muito. A gente tem que reagir igual como se fez no período da implantação da Alcoa que houve um movimento mais estruturado que era o Nascimento de Morais, era um outro grupo, mas nós temos que reagir, então a palavra Reage [...] constituiu o Reage São Luís, e passamos a nos reunir todas as segundas lá na sede da Central Única dos Trabalhadores. A CUT também encampou a discussão e passamos a usar a sede da CUT como referência onde nós nos reuníamos todas as segundas feiras. Síntese do processo de “dessingularização”, seguindo os passos da narrativa descrita acima. 55 Ubirajara do Pindaré Sousa, Delegado Regional do Trabalho em 2005/membro do Partido dos Trabalhadores. 103 a) Nos meados de 2004, uma liderança comunitária do Rio dos Cachorros percebe que está sendo ameaçada de deslocamento em função da presença de funcionários da Diagonal Consultoria, da Companhia Vale e do governo estadual que estavam visitando o Rio dos Cachorros e demais povoados e realizando cadastramento das famílias, levantamento de benfeitorias, numerando os terrenos por meio de marcas de tinta spray preta. Motivada pelo sentimento de insegurança e injustiça, imediatamente procura ajuda de outra liderança no povoado vizinho do Taim. b) As duas lideranças juntas são engajados em outras atividades de defesa dos interesses dos dois povoados: Taim e Rio Cachorros. Eles organizaram as primeiras ações convocando um pequeno grupo de pessoas mais próximas, parentes, vizinhos e amigos também inseridos em outras atividades comunitárias. Realizaram as primeiras reuniões na Igreja e nas escolas dos povoados. Mobilizaram os representantes das associações de moradores. Num grupo maior, passaram a difundir a notícia da real situação de ameaça aos povoados, encontraram dificuldade em convencer muitos moradores da necessidade da resistência, mas receberam apoio de muitos. Saem dos pequenos povoados em busca de aliados com capacidade de agência política: na Câmara dos Vereadores de São Luís tiveram apoio de três vereadores que denunciaram à situação dos povoados nas Sessões da Câmara. c) Na Assembleia Legislativa tiveram apoio de uma Deputada Estadual do Partido dos Trabalhadores que indicou uma assessoria jurídica. Acionaram outros canais institucionais importantes como a Delegacia do Trabalho, União por Moradia Popular, Ministério das Cidades, SPU. d) Receberam apoio de ONGs e sindicatos ligados à Central Única dos Trabalhadores do Maranhão (CUT-MA), da OAB-MA, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, do Bispo de São Luís, do Movimento Sem Terra (MST), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Cáritas brasileira, da Congregação Irmãs de Notre Dame, da Paróquia de São Joaquim do Bacanga, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luís, da AGEMA, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência do Maranhão (SBPC-MA), além de vários movimentos e associações de bairros da cidade de São Luís. 104 4 O MOVIMENTO REAGE SÃO LUÍS: um perfil de um movimento social contemporâneo [...] um movimento que foi crescendo, que foi agregando outros movimentos que nem sempre estão juntos, mas que em razão do impacto que esse projeto traria foram se agregando. (Nair Barbosa, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, membro do Reage São Luís) “Movimento social: que categoria controvertida!” Acredito que esta inquietação mencionada por Doimo (1995) ao abordar a temática dos movimentos sociais no Brasil, seja compartilhada por todos que se interessam por este tema e em especial, sobre os movimentos que passaram a ser designados pela literatura contemporânea como “novos movimentos sociais” para distinguir dos “velhos” movimentos sociais. O que seria um movimento social conceitualmente falando? Mesmo os experts neste assunto certamente não teriam uma resposta pronta para a questão. Uma definição generalizada e abstrata talvez não encontre um chão empírico diante da multiplicidade de experiências que se tem hoje de movimentos e também de seus respectivos contextos e cenários: histórico, cultural e político. Acredito que buscar uma mediação entre algumas reflexões teóricas articuladas às experiências contextualizadas de ações coletivas concretas pode lançar algumas luzes neste empreendimento. Como discuti anteriormente, ações coletivas se confundem com movimentos sociais, mas nem toda ação coletiva é movimento social. As pessoas ao compartilharem interesses no sentido de exigir direitos, estão agindo coletivamente em busca da resolução de problemas que afetam diretamente suas vidas, mas isto não implica necessariamente na formação de um movimento social, se tivermos como referências, determinadas correntes teóricas e o contexto no qual este conceito foi instituído. Quer dizer, a noção de movimento social pensada como ações e organizações estruturadas por um grupo social ou uma categoria sócio-profissional, referidas por interesses de classe, que buscam não somente conquistar direitos, mas que também lutam por mudanças estruturais da sociedade, levando adiante e de forma permanente a reivindicação de tais mudanças. Numa ação coletiva, distintamente, os vínculos que unem as pessoas, podem cessar na medida em que suas demandas são atendidas. Ações coletivas como vimos anteriormente, se confundem com movimentos sociais, mas se distinguem quanto à dinâmica de suas ações. Movimento social é um conceito referido tradicionalmente na literatura sociológica àquelas formas de ação e de participação da classe operária europeia por meio de suas associações e sindicatos emergidos com o capitalismo industrial ainda na metade do Século XIX. Esta noção prevaleceu até os anos de 1960 e sob a forte influência dos movimentos 105 operários europeus e de partidos e sindicatos de orientação marxista, ligados à organização racional da classe trabalhadora. Importante frisar que tomada esta noção de movimento social a partir daquele contexto, a mesma guarda aproximações com o surgimento da “classe operária" e de seus interesses, no âmbito das relações de produção do sistema capitalista industrial. Como então operar na atualidade com um conceito construído numa realidade histórica distinta da realidade social e política contemporânea? Seguindo os passos de Doimo (1995, p. 37), uma resposta interessante para compreender os movimentos sociais pode ser buscada na própria dinâmica das transformações estruturais de nossa sociedade. Houve uma “transmutação de significados”, oscilando “entre a determinação econômica e o papel ativo da cultura na constituição de sujeitos históricos, entre o ser racional e sujeitos espontâneos protagonistas da transformação social”. Essa transmutação de significados está associada a uma série de fatores que causaram uma crise ao próprio conceito de movimento social, sobretudo, na tradição marxista. Embora o paradigma marxista apresente um potencial e alcance teóricos importantes, esta autora assinala que este apresenta “sinais de exaustão analítica”. Embora não sendo minha pretensão adentrar no detalhamento dessa crise conceitual, acho pertinente ao menos brevemente levantar alguns aspectos para lançar luzes sobre o Movimento Reage São Luís, considerando o contexto no qual este movimento se insere. Substancialmente, a transmutação de significados está relacionada às mudanças na estrutura produtiva do sistema capitalista no final dos anos de 1960. Mais especificamente, refere-se ao impacto do processo de diferenciação interna da coletividade da classe trabalhadora assalariada provocado pela produção de bens e de serviços fora da estrutura institucional do trabalho. Dois fatores importantes devem ser considerados como decorrência deste processo. A produção de novas formas de conflitos, pois, se antes, os conflitos estavam centralizados na órbita das relações de produção, após essas mudanças estruturais, os conflitos passam a ocorrer com mais intensidade em outros espaços entre mercado, Estado e cultura. Em segundo lugar, este descentramento dos conflitos da órbita das relações de produção provocou uma crise no paradigma predominante sobre os movimentos sociais, trazendo consigo importantes críticas às antinomias recorrentes tais como, reforma-revolução, movimento político-movimento prépolítico e outras dicotomias como sagrado-secular, comunidade-sociedade, tradicionalmoderno. Ademais, a proliferação de novas formas de manifestação: movimentos ligados às questões de gênero, movimentos pacifistas, movimentos ecológicos e nacionalistas não se coadunam aos esquemas interpretativos tidos como “clássicos”, razão pela qual foram 106 concebidos como “espontâneos” em oposição àqueles definidos como “racional” na perspectiva de uma classe lutando pelos seus interesses. O movimento operário, embora resguardando sua importância, deixa de ser o personagem central, assim como o “Grande Partido” deixa de ter o seu papel centralizador, além da crise de sua representatividade mediante as novas formas de participação e de contestação. É preciso considerar a desmistificação e a perda de referência política dos regimes socialistas do Leste Europeu. O “campo cultural torna-se o lócus onde se formam as principais contestações e lutas” (DOIMO, 1995, p. 41). Se de um lado estes “novos movimentos” se colocaram como boas novas, pondo em xeque as teorias e a legitimidade das representações, tais como, partidos e sindicatos, entretanto, não foram poupados de críticas. Conforme Touraine (1981 apud DOIMO, 1995), estes movimentos apresentam uma espécie de “fascínio pelo presente” e dificultam a formação de um projeto ou “uma promessa de futuro” que se contraponha às classes dirigentes. Para isso, seria necessário retomar as representações e as institucionalidades políticas como forças mediadoras para a construção de unidades de propósitos e projetos de mudanças sociais. A retomada dessas institucionalidades pelos “novos movimentos”, entretanto, passa necessariamente pela ajuda dos movimentos socialistas, sindicatos, partidos e outras representações ao invés da recusa das orientações normativas da vida social. Nota-se que, mediante a fragmentação das ações coletivas e dos respectivos movimentos de contestação, a “base social” dos novos movimentos se caracteriza, sobretudo pela dispersão e pela volatilidade de atores. Estes em geral se remetem aos fundos públicos e bens de consumo coletivo e se originam fora dos formatos tradicionais de representação política. Em função da “lógica consensual-solidarística” que via de regra os caracterizam estes movimentos se tornam vulneráveis ao agenciamento de grupos e de instituições. Eles estabelecem diálogos com a cultura da igualdade social, mas também podem produzir “redes sociais perversas pela interação que mantém com a cultura da violência e da intolerância” (DOIMO, 1995, p. 53). Na América Latina, em especial, no caso brasileiro - diferente do escopo do Welfare State europeu que se caracterizou pelo “mercado institucionalmente regulado” – houve uma forte intervenção estatal na reprodução do capital, porém, isentando-se do financiamento da reprodução da força de trabalho. Doimo (1995) explica que esse processo resultou na “desarticulação social” e no aprofundamento crescente da exclusão social. O Estado tornou-se um ator estruturante das relações econômicas, assumindo o papel de gestor do desenvolvimento, mas as políticas públicas resultaram muito mais de decisões de poder dos quais foram 107 conduzidas do que pelo conflito de classe. Ora, isto imprime uma feição peculiar na formação da “base social” dos novos movimentos, e que de certa forma rompem com os sistemas tradicionais de participação levando a uma nova forma de ação e de participação. Eles se caracterizam muito mais pela fragmentação, pela volatilidade e pela “ação direta”, que nas formulações de Doimo (1995) e de Gohn (2012), baseadas em Touraine podem ser designados como “movimentalistas”. Aqui, do ponto de vista analítico, a noção de “movimento social”, enquanto sujeito histórico, de certa forma assume o lugar e a posição que antes estavam centralizados na “classe”. Mas é importante considerar que, os “novos movimentos”, majoritariamente não buscam necessariamente mudanças radicais na estrutura das relações capitalistas de produção, visando construir outra sociedade. Eles buscam muito mais a garantia de direitos e outras reivindicações ligadas à liberdade de escolha e de modo de vida, além de trazer à cena política outros atores e processos de dominação fora da esfera econômica. Daí a ênfase, por exemplo, na relação de gênero, a reivindicação aos direitos territoriais e de respectivos modos de vida de determinados grupos e/ou populações, associada ao direito ao ambiente saudável, além de outros tantos movimentos de natureza diversificada como os movimentos pela paz, movimentos de gays, lésbicas e transexuais, surgidos entre o final do Século XX e início do Século XXI. Considerado este giro na análise sobre os movimentos sociais, minha intenção não é enquadrar a experiência do Reage São Luís dentro desses novos formatos organizativos, embora, como veremos, haja alguns fatores que corroboram para isso. Quer dizer, o Reage São Luís pode ser pensado, portanto, como sendo fruto tanto daqueles formatos institucionais criados pelas agências estatais que resultaram dos “ciclos de protestos” desde os anos de 1970 (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2008), quanto aqueles surgidos posteriormente com a Constituição de 1988, beneficiando-se destas novas estruturas de oportunidade e com uma base social caracterizada pela diversidade de sua composição, tendo seus argumentos focados na política ambiental. Ademais, considerando, o cenário político atual em que o governo brasileiro incorpora em parte a crítica social produzida pelos movimentos sociais, e em especial, dos movimentos socioambientais, tal crítica, não raramente, tem sido em parte, incorporada nas estratégias ideológicas e de ação no sentido de amenizar os conflitos e mitigar o impacto provocado pelos efeitos das políticas de desenvolvimento. A experiência que trato aqui, se alinha aos formatos organizativos destes “novos movimentos”, apresentando um padrão dialógico de organização, com um dinamismo peculiar. Se por um lado se alinha aos novos movimentos, por outro, se articulou por meio de múltiplas alianças e coalizões, contando com apoio de organizações sindicais e de parlamentares. Nesse 108 sentido, acredito que descrever as ações e procurar identificar os atores sociais mais relevantes, ajuda muito mais a traçar o perfil e a dinâmica do movimento, ao invés de buscar categorias e conceitos pré-estabelecidos, assim como, procuro evitar as dicotomias do tipo movimento institucionalizado e/ou não institucionalizado. Em minhas observações e leituras sobre o Reage São Luís, considero um movimento misto que reúne recursos institucionais e não institucionais empiricamente inseparáveis dentro da dinâmica de mobilização, inclusive mantendo interações dialógicas com agências do próprio Estado, por meio das quais se estabeleceram parcerias e contribuições importantes. Entretanto, vale ressaltar que o diálogo com as agências estatais não implicou em menos autonomia ao movimento, procuro mostrar adiante que a confrontação do Reage São Luís se deu mais diretamente com os agentes do Governo do Maranhão e da Prefeitura de São Luís. 4.1 Caracterizando o Reage São Luís: repertórios da mobilização política, argumentos científicos e jurídicos A denominação Reage São Luís, dada ao movimento, surgiu da ação propriamente reativa contra a instalação do polo siderúrgico e a partir do momento em que seus integrantes se deram conta da necessidade de ampliar as redes de mobilização. Como disse Alberto Cantanhede: “[...] reagir como se fez no período da implantação da Alcoa que houve um movimento mais estruturado [...] então a palavra Reage [...] constituiu o Reage São Luís” (Trecho de entrevista realizada em 11 jan. 2012). Como aludimos anteriormente, seguindo a interpretação de Tilly (1978), a “ação coletiva” implica em uma ação conjunta, envolvendo “interesses”, “organização”, “mobilização”, “oportunidade”. Estes componentes referem-se respectivamente, por ganhos e perdas, pela capacidade organizativa na busca de interesses e a aquisição de recursos e de controle coletivo sobre os mesmos. A eficácia das ações, entretanto, está também associada às oportunidades: conjunturas e cenários políticos, culturais e sociais, envolvendo uma série de combinações mutáveis destes componentes (TILLY, 1978). Mas objetivamente, qual a “substância” que mobiliza as pessoas e quais os interesses compartilhados na formação de um movimento mais amplo de reação política? Dada a abrangência dos tipos de organizações envolvidas na contestação ao polo siderúrgico, ao tentar estabelecer uma tipologia padrão ou buscar uma classificação prédefinida, se pode perder de vista as especificidades do movimento ou por outro lado, cair num 109 reducionismo ao querer enxergar o movimento pelo prisma de um ou outro ator ou segmento que o constitui. Procuro, portanto, descrever as características do Movimento Reage São Luís estabelecendo aproximações com o formato organizativo dos chamados “novos movimentos sociais” emergido após os anos de 1970 no Brasil (DOIMO, 1994). Tenho como inspirações teóricas os componentes da ação coletiva e a dinâmica da mobilização (TILLY, 1978), o processo de “dessingularização” (BOLTANSKI,1990) a partir das quais descrevo a ampliação das reivindicações. Utilizo também a teoria do “campo” (BOURDIEU, 1997) para descrever os recursos de ação política e as argumentações do movimento. Doimo (1994) sugere o estabelecimento de cortes analíticos a partir da sobreposição de dois eixos: um “eixo territorializado” e um “eixo temático”. O “eixo territorializado” conecta redes locais às redes nacionais e se caracteriza pela agregação de uma infinidade de pessoas e de diferentes tipos de redes sociais, transversalmente entrelaçadas: estas redes conectaram pessoas e organizações segundo uma multiplicidade de reivindicações, tais como, a “luta” contra o alto custo de vida, por melhorias na saúde, no saneamento básico, na moradia e pela regularização de loteamentos, dentre outras demandas de movimentos que surgiram de norte a sul do Brasil, tendo por base o trabalho político das CEBs e das Pastorais da Igreja Católica, mas também, recebendo apoio de organizações internacionais, sobretudo, de origem europeia. O segundo eixo, o “eixo temático” indica a “especialização de funções”, pautado pela importância da inserção política do “campo científico”, em destaque o papel das ONGs surgidas nas universidades brasileiras e de renomados intelectuais que passaram a atuar fora dos espaços delimitados pela ação do Estado durante o regime militar. Desde os anos de 1980, observa-se, portanto, uma “experiência de deslocamento da produção científica para as ONGS” a serviço dos “movimentos populares” em todas as regiões do Brasil (DOIMO, 1994). Considerando este esquema interpretativo de Doimo (2004), é importante notar pelo prisma do “eixo temático” que o Movimento Reage São Luís em grande parte se articulou a partir das organizações e de movimentos de bairros e com o trabalho das Pastorais da Igreja Católica, e também, obtendo apoio da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Luís. Atores sociais do “campo científico” (professores e pesquisadores universitários, entidades profissionais, funcionários públicos com qualificação técnica na área ambiental), muniram o Movimento Reage São Luís de argumentos respaldados em estudos técnico-científicos. Pelo prisma do “eixo territorializado”, o Movimento Reage São Luís, procurou se articular às redes sociais nacionais (a Rede Brasileira de Justiça Ambiental – RBJA e a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – Plataforma DhESCA, são exemplos importantes) que por sua vez estão conectadas aos organismos internacionais, a 110 exemplo da Organização Não Governamental Justiça Global e a ONU. Além destes atores, o Reage buscou assessoria jurídica, tendo apoio de membros da OAB-MA. A presença destes atores foi relevante no sentido de exigir que o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal-MA se pronunciassem nas audiências públicas. Uma noção importante para sistematizar a estrutura de ação e de argumentação do Reage São Luís é a de “campo”, tomada aqui na acepção de Bourdieu (1997, p. 21) como um “espaço social” intermediário formado por rapports des forces (relações de forças) e relativamente autônomo, com regras específicas. Estes agentes disputam posições dentro de um mesmo campo, assim como entre agentes de campos diferentes. Um campo é também mais autônomo, quando sofre menos intervenção de outro campo. A teoria do “campo” de Bourdieu é, entretanto, muito mais complexa, e não se trata de uma teoria fechada. A própria noção de campo abre amplas possibilidades de aplicabilidade. Para Bourdieu são os “agentes” que em processos de interação mobilizam formas de capitais específicos e distribuídos dentro dos distintos “campos”: educacional, científico, religioso, esportivo, etc, e estes “campos” em interação são abertos às possibilidades de acionamento por estes “agentes”56. Na obra “Les usages sociaux de la Science” (1997), cujo foco de análise é “campo científico”, o autor apresenta os subcampos, que são as disciplinas, por meio das quais seus “agentes” disputam legitimidades discursivas. É a posição que estes ocupam na estrutura que determina as suas posições no processo de decisão. Bourdieu dá o exemplo da noção “d’où il parle”, uma noção, segundo ele vaga, utilizada por volta de 1968 para indicar a posição social na estrutura de relações de poder dentro de um determinado “campo”. A noção de “campo” tem sido um importante instrumento de interpretação na temática socioambiental no Brasil. Ao tomar os “conflitos ambientais” como objeto de análise É na obra “A Distinção: Crítica social do julgamento” (2008) que Bourdieu apresenta a relação entre os “campos” e o processo de distribuição de bens (materiais e simbólicos). Ele mostra, por exemplo, a trajetória de famílias de professores e empresários, notando que a aquisição das respectivas formas de capitais (neste caso, o “capital cultural” e o “capital econômico”) tem relação com a capacidade dos descendentes das famílias se manterem no mesmo nível das gerações passadas. A capacidade dos agentes na manutenção do patrimônio familiar (material e simbólico) pode ser um indicador na análise da permanência, ascensão ou declínio social. Bourdieu descentraliza o conceito de classe social da referência exclusiva da posse e controle dos meios materiais de produção, dessa forma, não há um exclusivismo do capital econômico. A análise de classe é ampliada, incorporando outras dimensões como a cultura a partir da qual ele opera com a ideia de “habitus de classe” como um “princípio unificador das práticas”. Ele se refere também ao “capital herdado” e sua reconversão pelos membros das classes como “forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe”. Trata-se de uma análise tridimensional do “espaço social” que engloba: o “capital cultural”, o “capital econômico” e o “capital social” por meio dos quais os agentes podem manifestar seus diferentes repertórios que estão contidos nas disposições obtidas nos “habitus”. Assim, o “Volume Global do Capital” resulta dessas variadas dimensões. Desse volume global de capitais se estabelecem critérios de “distinção” que Bourdieu apresenta a partir de estatísticas e levantamentos governamentais, assim como de pesquisas empíricas com grupos e pessoas de diferentes posições sociais na França. É este alargamento entre a ação e a estrutura que caracteriza a proposta desta teoria, sem, no entanto, sair da análise estrutural de classe, como elemento de estratificação social. 56 111 sociológica, Acselrad (2004) apontou limites e dificuldades teóricas em três importantes interpretações vigentes na análise deste tipo de conflito e buscou na teoria social de Bourdieu, ampliar os horizontes teóricos sobre a questão. A primeira das interpretações, identificada por este autor como sendo de tradição evolucionista, problematiza os conflitos ambientais pela ótica da adaptação do homem, enquanto espécie animal, ao meio. Ou seja, a questão dos conflitos como centrada na adaptação humana ao mundo natural. Uma segunda abordagem é aquela que considera a dimensão econômica por dois tipos de conflitos: o primeiro, “decorrente da dificuldade dos geradores de impactos externos assumirem a responsabilidade por suas consequências” – este seria o “conflito por distribuição de externalidades”. O segundo tipo de conflito seria pelo “acesso e uso dos recursos naturais, decorrente da dificuldade de se definir a propriedade sobre os recursos”. A ausência de um mercado e de recursos não valorados economicamente e que não são objetos de apropriação privada explicariam esta forma de conflito. Uma vez que os conflitos se justificam neste tipo, pela ausência de um mercado, esta perspectiva, segundo Acselrad (2004) encontra-se aprisionada pela hegemonia das categorias mercantis. Na terceira via os conflitos ambientais são caracterizados por interesses e estratégias diferenciadas de “apropriação e aproveitamento da natureza na era da globalização econômico-ecológica” e é suposto que que a resolução não ocorre unicamente pela lógica do mercado e nem pelos códigos jurídicos do direto privado - reafirmam-se “racionalidades não hegemônicas, que ressignificam conceitos e formas jurídicas de caracterização de territórios étnicos como espaços de reprodução cultural e preservação da capacidade dos povos indígenas usufruírem de seus patrimônios naturais”. Esta abordagem, entretanto, restringe os conflitos a fronteiras definidas por “especificidades espaciais” e não como parte das fronteiras de vigência dos mercados e das relações capitalistas (ACSELRAD, 2004, p.18). Dada a complexidade da caracterização do “conflito ambiental”, Acselrad (2004) pela via da abordagem “estruturalista construtivista” de Bourdieu (1997), se utilizou da noção de “campo” para operar conceitualmente com a noção de conflito ambiental. Nesta perspectiva o “campo dos conflitos ambientais” pode ser pensado como “uma configuração de relações objetivas entre posições na estrutura de distribuição de diferentes espécies de poder”; e também, como espaço de ações coletivas que se manifestam em lutas simbólicas que podem ser questionadas, legitimadas e deslegitimadas de acordo com os “tipos de capital” dos diferentes atores e suas respectivas posições. Além de disputas que envolvem interesses materiais, nesse “campo” deve-se levar em conta a esfera simbólica e as diferentes lógicas e sentidos atribuídos 112 pelos atores sociais, na medida em que cada ator disputa a legitimidade de suas ações. Diz Acselrad (2004, p. 19): Deste ponto de vista se considerarmos o meio ambiente como um terreno contestado material e simbolicamente, sua nomeação, - ou seja, a designação daquilo que é ou não é ambientalmente benigno - redistribui o poder sobre os recursos territorializados, pela legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação da base material das sociedades e/ou de suas localizações. As lutas por recursos ambientais são, assim, lutas por sentidos culturais. Pois o meio ambiente é uma construção variável no tempo e no espaço, um recurso argumentativo a que atores sociais recorrem discursivamente através de estratégias de localização conceitual nas condições específicas da luta social por “mudança ambiental”, ou seja, pela afirmação de certos projetos em contextos de desigualdade sociopolítica. Ora, a substância daquilo que mobiliza as pessoas não pode, portanto, ser reduzida à esfera econômica e à esfera biológica. Dessa forma, há que se levar em conta que o processo de apropriação material de recursos naturais não ocorre sem um processo de apropriação simbólica dos mesmos. Tornar-se-ia até redundante a justificativa de que esses dois processos são indissociáveis. Ademais, como já expus no Capítulo 3, a luta política dos diferentes grupos sociais, varia também, segundo o contexto sociocultural, e segundo o processo histórico dessas lutas. Neste caso, a luta pela permanência nos territórios e pela garantia da manutenção das formas de uso social dos recursos existentes nos mesmos. Esterci (2014) analisando dois casos de política ambiental na Amazônia: o caso da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, no Médio Solimões no Amazonas e a Reserva Extrativista do Alto Juruá (Resex do Alto Juruá) no Acre, entende que as formas de territorialização instituídas nos dois casos refletem também a percepção e a compreensão dos cientistas (antropólogos e biólogos) que contribuíram para a formulação dos respectivos projetos. Segundo a autora, “foram duas grandes extensões de área projetadas de forma inovadora para fins de conservação da biodiversidade e reprodução de vida social e cultural que habitam a região amazônica” (ESTERCI, 2014, p. 23). Interessante notar nos dois casos, as distintas percepções que informam os respectivos projetos de política ambiental adotadas pelos cientistas: no caso do Projeto Mamirauá, a orientação do Biólogo Márcio Ayres e seus parceiros tem um caráter mais conservacionista que embora buscando parcerias da sociedade local e organizações de caráter interdisciplinar, se concretizou numa forma de intervenção que prioriza o “saber científico” sobre o “conhecimento empírico” local. Como contraponto desta perspectiva de intervenção, Esterci (2014) apresenta a experiência da Reserva Extrativista do Alto Juruá, cujo processo de implementação teve a participação expressiva de pesquisadores de Ciências Sociais, entre este o Antropólogo Mauro Almeida, com histórico de engajamento nas 113 lutas políticas dos seringueiros naquele estado e que envolveu sindicalistas e militantes ligados à causa ambiental e expressando mais forte valorização do conhecimento dos seringueiros. Face a tais experiências, ambas com importantes contribuições de cientistas - no primeiro caso, o biólogo preocupado mais com a proteção do meio ambiente; e no segundo caso, o antropólogo, muito comprometido com o combate às desigualdades sociais. Esterci (2014, p. 35) acredita estarmos “[...] diante de espaços inovadores de produção de conhecimento e de formulação de projetos políticos e socioambientais”. Há forças políticas e espaços políticos inovadores e atores sociais diversos que na atualidade imprimem especificidades à esfera das relações com o meio ambiente: empresas privadas, o Estado, as populações alvo de políticas ambientais, as ONGs, os movimentos sociais, etc. A inserção de diferentes atores, a exemplo dos cientistas, nas políticas ambientais, tem corroborado com contribuído para a maior complexidade desse “campo”. Nesse sentido, esses autores constatam que há uma maior complexidade no “campo dos conflitos ambientais” (ACSELRAD, 2004), foco de novos significados e de novas experiências (ESTERCI, 2014). A partir estes pressupostos, proponho discutir as ações coletivas e os argumentos do Reage São Luís segundo um esquema interpretativo estruturado em três “campos”: o político, o científico e o jurídico57 sintetizados no esquema abaixo (ver Esquema 01). Procuro mais adiante, complementar esta análise inserindo os argumentos em defesa do polo siderúrgico. Neste sentido, faço o contra-ponto aos argumentos do movimento a partir de documentos do Governo do Estado do Maranhão e da Companhia Vale, sugerindo que o debate acerca do polo siderúrgico se configura também como uma “arena” no sentido proposto por Olivier de Sardan (1997). 57 A ideia de usar esta estrutura me ocorreu durante a análise das entrevistas e da leitura de documentos produzidos pelo Reage São Luís. Foi reforçada também, após uma entrevista com a Profª. Drª Edilea Dutra Pereira, do Departamento de Geografia da UFMA e membro do Reage São Luís em 16 dez. 2011. Na ocasião ela descreveu a atuação do Reage São Luís mencionando três aspectos: a força política da sociedade civil, enfatizando a organização dos povoados, a ajuda que o movimento teve da assessoria jurídica e o uso do conhecimento científico. Naquela entrevista, ela literalmente falou “a força política”, “a ciência” e “o jurídico”. Além desta entrevista, me baseei também nos depoimentos de outros membros e em documentos coletados nos arquivos digitais do Reage São Luís. A produção textual do Movimento Reage bedece a uma espécie de divisão do trabalho intelectual por meio de “equipes” formadas por experts em cada assunto: por exemplo, o estudo do Estatuto da Cidade ficou a cargo de advogados, sociólogos e de pessoas ligadas ao Movimento Nacional por Moradia Popular com experiência nessa área. Na área ambiental, nota-se a presença de geólogos, médicos e de pesquisadores de áreas diversas com afinidade sobre esse assunto. Nesta área, a argumentação se fundamentou principalmente em estudos e dados científicos sobre outras cidades brasileiras e, mesmo nos estudos geológicos realizados em São Luís por pesquisadores que integraram o Reage São Luís. Foi através da somatória da força dos argumentos de contestação e a mobilização política das bases por meio de oficinas ministradas por estes experts que o Reage se estruturou politicamente. Mas, é importante lembrar que este movimento teve apoio de setores do governo, o que torna o movimento muito mais dialógico e complexo. Há que se considerar nesse sentido, a estrutura de oportunidades: o cenário político em que as agências estatais tiveram maior diálogo com movimentos sociais, fortalecendo os canais de participação em decisões importantes; a presença de funcionários e militantes envolvidos com a questão ambiental motivou as agências estatais a incorporar parcialmente a crítica socioambiental. 114 Esquema 1 – “Campos” acionados pelo Reage São Luís Reage São Luís Campo sociopolítico Campo científico Campo jurídico Fonte: Dados da Pesquisa 4.1.1 O “Campo” sociopolítico: repertórios da mobilização política O estudo das ações coletivas nos leva a muitas direções, por isso, requer o conhecimento das circunstancias particulares em que os participantes se encontram: os problemas enfrentados, os opositores, os meios de ação de que lançam mão e suas definições quanto aos acontecimentos. Quer dizer, uma ação coletiva emerge, em determinadas circunstâncias específicas nas quais os atores sociais estão contextualizados. Já pontuamos acima que segundo a interpretação de Tilly (1978), uma “ação coletiva” emerge do compartilhamento de interesses, e nestes interesses subjaz uma “substância” à qual estes estão referidos. A “substância”, portanto, definirá as razões que levam diferentes atores a aderirem a determinadas ações coletivas, e isto informa no que os grupos estão interessados. Charles Tilly na obra “From mobilization to revolution” (TILLY, 1978) apresenta um tópico denominado “The componentes of colletive action” organizado a partir de registros historiográficos sobre motins, rebeliões e manifestações na Europa e nas colônias inglesas da América do Norte ao longo do Século XVIII. O autor cita exemplos de destruição e rebeliões populares no Condado de Suffolk em 1765 na Inglaterra contra a construção de hospícios para abrigar pobres e indigentes aldeões ingleses originados de diversas paróquias. Esses hospícios também chamados de “casa da indústria” submetiam os pobres à supervisão pública e à administração centralizada que naquele contexto expandiam-se nos territórios. Charles Tilly mostra também outros conflitos surgidos em 1765 como os que ocorreram nas colônias inglesas na América do Norte, por exemplo, a resistência à taxação da chamada Lei do Selo imposta pela Inglaterra. Pelo menos por dez anos, motins, rebeliões, saques e diversas formas de protestos foram intensificados contra as instituições e às propriedades dos agentes do governo 115 nas colônias. As notícias sobre os protestos das colônias repercutiram na metrópole que por sua vez também intensificaram os protestos na metrópole. Neste estudo, Tilly procura mostrar que, o que está por trás das manifestações são formas de ações coletivas num contexto de expansão das relações de propriedade capitalistas e também em decorrência do surgimento do Estado Nacional. O conceito fundamental elaborado pelo autor a partir dos exemplos analisados é o de “mobilização” associado à questão do confronto das diferentes formas de organização social. A mobilização, como categoria analítica é a “mobilização política” (para distinguir do conceito de mobilização social)58 que, na interpretação de Gohn (2012, p. 66) sobre a teoria de Tilly, “[...] envolve os caminhos pelos quais os grupos sociais adquirem recursos suficientes para tornar a ação coletiva possível”. A “colletive action”, portanto, refere-se à ação conjunta em busca de interesses comuns e, no esboço teórico apresentado por Tilly, é constituído dos seguintes componentes: “interesses”, “organização”, “mobilização”, “oportunidade” e a própria “ação coletiva”. a) Os interesses segundo Tilly referem-se aos ganhos e as perdas resultantes da interação de um grupo com outro grupo; b) a organização refere-se à capacidade dos grupos na busca de seus interesses. A organização dos grupos envolve também a importância do compromisso de seus integrantes e a divisão de trabalho; c) a mobilização “[...] é o processo através do qual um grupo adquire controle coletivo sobre os recursos necessários para a ação”. (TILLY, 1978, p. 7). A questão da mobilização suscita grande interesse sociológico. Diz Tilly (1978, p. 7): [...] Às vezes um grupo como, por exemplo, uma comunidade, tem uma estrutura interna complexa, mas poucos recursos compartilhados. Outras vezes um grupo é rico em recursos, mas todos esses recursos encontram-se sob o controle individual. A análise de mobilização trata das maneiras pelas os grupos adquirem recursos e os disponibilizam para a ação coletiva. (TILLY, 1978, p. 7). d) a oportunidade: se refere à relação entre um grupo e “o mundo que o cerca”. É importante considerar as mudanças que podem ameaçar os interesses do grupo, mas também, podem proporcionar novas possibilidades para agir em função de Baseada em Toro (2007), Gohn (2012, p. 66) apresenta o conceito de “mobilização social” como o envolvimento ativo do cidadão, de organização social e de empresas nos rumos dos acontecimentos em sua sociedade. Ela destaca que mobilização social para Toro é uma ferramenta para “convocar vontades”, propondo metodologias e processos participativos locais em “projetos mobilizadores”. Estas características se distinguem da “mobilização política” de militantes de movimentos sociais “que têm suas atuações voltadas para o todo, para o mundo”. 58 116 tais interesses. As circunstâncias e a conjuntura política ganham relevância nesse quadro teórico. e) a ação coletiva consiste de “pessoas agindo conjuntamente em busca de interesses comuns. A ação coletiva resulta de combinações mutáveis de interesses, organização, mobilização e oportunidade”. (TILLY, 1978, p. 7). Alguns elementos complementares ainda nos ajudam a explorar este quadro teórico. Em primeiro lugar, a ação coletiva não se caracteriza por atos isolados de indivíduos ou grupos agindo solitariamente. Antes, pressupõe relações de interação entre indivíduos e/ou grupos, organizações e inclusive agências estatais. Em segundo lugar, uma ação coletiva também implica no compartilhamento de interesses dos diferentes atores envolvidos. Os interesses compartilhados são uma chave explicativa importante para compreensão do que leva indivíduos e grupos a se mobilizarem contra instalação de um projeto industrial, por exemplo. Uma vez que uma “ação coletiva” emerge do compartilhamento de interesses e nestes interesses subjaz uma “substância” à qual estes estão referidos é, portanto, fundamental destacar qual a “substância”, ou seja, o que motiva diferentes atores a aderirem a uma ação coletiva e a se engajarem em movimento de contestação. E um terceiro aspecto é que o estudo das ações coletivas nos leva em muitas direções, por isso, requer o conhecimento das circunstâncias particulares em que os participantes se encontram: os problemas enfrentados, os meios de ação sobre os quais lançam mão e suas definições dos acontecimentos. Quer dizer, uma ação coletiva não surge, a não ser sob as circunstâncias específicas nas quais os atores sociais estão contextualizados. Assim, resumo o esboço teórico da ação coletiva apresentada por Tilly (1978), uma vez que este estudo oferece uma série de elementos analíticos importantes para abordar o processo de mobilização política para reagir contra a instalação de um polo siderúrgico na cidade de São Luís: a) as pessoas não agem por causas abstratas e nem isoladamente, há uma causa concreta que atinge a todos e que precisa ser defendida. Diz Tilly (1978, p. 143): “Real people do not get together and Act Collectively. They meet to petition Parliament, organize telephone campaigns, demonstrat outside of cite hall, attack powerlooms, go on strike” 59 59 Pessoas reais não se juntam para Agir Coletivamente. Elas se juntam para levar petições ao Parlamento, organizar campanhas de telefone, manifestar do lado de fora da prefeitura, atacar teares mecanizados ou entrar em greve. (TILLY, 1978, p. 143). Tradução do autor. 117 b) a ação coletiva implica numa interação envolvendo a persuasão de outros grupos, inclusive os governos. Portanto, raramente se trata de uma performance solitária. c) a ação coletiva não busca questões universais, mas “coisas bem definidas” e contextualizadas dentro de cenários culturais: [...] Collectiv action usually takes well-defined forms already familiar to the participants, in the same sense that most of an era´s art takes on of a small number of established forms. Because of that, neither the search for universal forms (such as those sometimes proposed for crowds or revolutions) nor the assumption of an infinity of means to group ends will take us very far. Because of that, the study of the concrete forms of colletive action immediately draws us into thinking about the cultural settings in which more forms appear. (TILLY, 1978, p, 143)60. Inicialmente a reação dos povoados da Zona Rural de São Luís foi motivada pelo sentimento de injustiça e, aqui, poderia ser mesmo atribuído o sentido da “injustiça ambiental”, que se caracteriza como aquele “[...] fenômeno de imposição desproporcional dos riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, político e informacionais”. Quer dizer, lideranças dos povoados, ao mobilizarem recursos (canais da justiça, pesquisadores de universidades e a própria organização política), exigiram o direito de não arcar e de não ter que suportar “as consequências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas [...]61. A busca desses direitos ocorreu pela pressão e pela mobilização política, motivadas pela defesa da permanência nos territórios, enquanto “ambientes de vida” (HÉBETTE, 2004), desde os anos de 1980, quando os povoados rurais organizados em associações de moradores iniciaram suas primeiras experiências de resistência aos projetos industriais instalados na região. No processo de constituição de um movimento mais amplo, a reação contra o polo siderúrgico já não era mais um problema somente dos moradores da Zona Rural, circunscrito ao âmbito da disputa de um território cuja ameaça de perda, colocou em questão a continuidade dos meios de vida de comunidades rurais, mas era um problema que colocava em questão interesses de outros atores individuais e coletivos representados pela cidade de São Luís. A noção de “cidade”, aqui pensada num duplo sentido: quer dizer, enquanto um símbolo que 60 [...] a ação coletiva geralmente assume formas bem definidas e já conhecidas pelos participantes, no mesmo sentido em que a maioria da produção artística de uma época específica assume uma pequena quantidade de formas estabelecidas. Por isso, nem a busca de formas universais (como as que são por vezes propostas para multidões ou revoluções) nem a pressuposição de uma infinidade de meios para as finalidades de cada grupo nos levará muito longe. Por isso, o estudo de formas concretas para a ação coletiva imediatamente nos obriga a pensar sobre os cenários culturais em que as formas apareceram (TILLY, 1978, p. 143, tradução do autor). 61 Ver Acserald (2009) e também em Brasil (c2014c) 118 encarna e representa diferentes interesses e, no sentido em que é refletido por Boltanski (1990), para caracterizar o “bem comum”. Ou seja, a “cidade” simbolizando uma diversidade de atores ou, para usar um termo de Boltanski, como um “princípio de equivalência”, que tem a referência comum dos diferentes mundos nos quais os atores estão inseridos. O importante nesta análise é indicar as razões pelas quais as pessoas compartilham interesses, e mesmo sendo elas de origens sociais diferentes, suas ações convergem para uma mesma finalidade. Parto, portanto, do pressuposto segundo o qual considera que os atores sociais injustiçados são dotados de capacidade para estabelecer laços sociais. Ações coletivas implicam em interações sociais e relações dialógicas com outros atores: pessoas, organizações e instituições diversas. Nesta perspectiva, segundo Boltanski (1990, p.72): […] Dotamos a las personas humanas de una capacidad metafísica y consideramos que esa capacidad es esencial para comprender la posibilidad de un lazo social. En efecto, para converger hacía un acuerdo las personas deben hacer referencia a algo que no son personas y que as trasciende. Es esta referencia común lo que llamamos de principio de equivalencia. No Quadro 4 procuro ilustrar os diferentes atores singulares que foram acessados inicialmente. Neste caso, são contatos diretos com pessoas com poder de influência nos diferentes “campos”, e que tiveram importância crucial na construção de estratégias de engrandecimento do movimento. Quadro 4 – Campo Sociopolítico: atores singulares ATORES SINGULARES Maria Máxima Pires OCUPAÇÃO/FUNÇÃO/CARGO REFERENTE AOS ANOS DE 2004/2005 Líder Comunitária ENTIDADES/ORGÃO/INSTITUIÇÃO Associação de Moradores Rio dos Cachorros Alberto Cantanhede, “Beto do Taim” Líder Comunitário/Conselho Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) Associação de Moradores do Taim/Movimento Nacional de Pescadores (MONAPE) / GTA Helena Heluy Deputada Estadual/PTMA/advogada/promotora de justiça/membro da Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz Câmara dos Deputados/Partido dos Trabalhadores/MA / Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz Guilherme Zagallo Advogado, membro da OAB – MA, relator da Plataforma DhESCA Ordem dos Advogados do Brasil/MA, Advogado do Sindicato dos Urbanitários-MA Irmã Anne Caroline Wihbey Missionária católica, educadora Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur Creuzamar Pinho Coordenadora da União Nacional por Moradia Popular Gerente Executiva IBAMA (MA) União Nacional por Moradia Popular Delegado Regional do Trabalho em 2005/membro do Partido dos Trabalhadores Delegacia Regional do Trabalho/MA / membro do PT-MA. Marluze Pastor Ubirajara do Pindaré “Bira do Pindaré” IBAMA 119 Cont. Quadro 4 – Campo sociopolítico: atores singulares Paula Santos Abdom Murad Diretora Dep. Ações Descentralizadas da Secretaria Nacional de Patrimônio da União Vereador, médico Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Patrimônio da União Câmara dos Vereadores, PMDB, membro do Conselho Regional de Medicina Joberval Bertoldo Vereador, engenheiro Câmara dos Vereadores/PCB - Partido Comunista Brasileiro Marília Mendonça Vereadora, bacharel em direito Câmara dos Vereadores/PDT - Partido Democrático Trabalhista Edilea Pereira Pesquisadora/Geóloga UFMA Pesquisador/Sociólogo UFMA José Alcântara Fonte: levantamento de pesquisa documental sobre o Reage São Luís e entrevistas com lideranças comunitárias. Este quadro não corresponde quantitativamente à totalidade de atores individuais e/ou instituições que aparecem aleatoriamente em documentos elaborados pelo Reage São Luís aos quais tive acesso. Ou seja, o processo de mobilização em redes de entidades e redes de influência entre as pessoas é muito importante na formação, consolidação e ampliação do movimento, mas torna-se difícil para o pesquisador estabelecer um quadro completo. Nestas interações interessa, portanto, destacar que a capacidade de mobilizar recursos políticos ocorreu processualmente com a formação de uma frente de resistência: a constituição de um poder para influenciar no “campo político” e colocar na pauta da agenda política local a discussão de um polo siderúrgico. Na verdade, eu acho que esse é o diferencial interessante do Reage, porque estava se discutindo normalmente os movimentos de bairro, os problemas internos, os estudantes vão para as ruas para discutir normalmente meia passagem, as greves são para discutir seus problemas específicos. Aquele, não, estava discutindo um problema muito mais amplo, mais do mundo, um problema que hoje está se discutindo, a questão ambiental, as questões das mudanças ambientais. Então isso é interessante de registrar em relação ao Movimento Reage São Luís, e essas diferenças entre os grupos que estavam ali também é interessante, porque você tinha ali o advogado, a pessoa da comunidade, alguns estudantes, pessoas das organizações que de certa forma são sempre os que mais se mobilizam, mas você tinha também outros que estavam discutindo aquele tema. Parece que houve uma aliança em favor, pela proteção da ilha. A gente defendia que o polo siderúrgico estaria destruindo e pelas condições geológicas, pelas condições hídricas, pela quantidade de pessoas que vinha de fora, que ia acontecer um inchamento aqui nessa ilha, frente aquilo que já acontecia, e as próprias comunidades que já estavam lá. Então a aliança daquele momento, as pessoas, esse sentimento de querer, de tesão pela ilha de qualquer forma aflora mais. Talvez, aí tem a ver com a questão macro. A questão ambiental das mudanças também aflorou, mas também a discussão, essa paixão por São Luis, querer proteger o seu, a sua cidade, essa ilha, também aflorou bem que conseguiu juntar essas pessoas e por ser a capital também uma série de interesses de vários grupos estavam ali representados. (Marluze Pastor, Ex. Gerente Executiva do IBAMA-MA. Entrevista realizada em 6 dez. 2013). 120 Se, inicialmente, o processo de mobilização focou a situação dos povoados, num segundo momento, o foco de discussão é ampliado, volta-se também para a cidade de São Luís. A noção de “cidade” é, por assim dizer, substancialmente a “metafísica” de que fala Boltanski, que dá uma substância maior ao movimento. A cidade é este “bem comum” encarnado pelo sentimento de pertencer e defender “o seu”: “essa paixão por São Luis, querer proteger o seu, a sua cidade, essa ilha”. A composição do Reage São Luís é, portanto, o resultado da ação de pessoas que tiveram seus interesses diretamente afetados. Ao buscarem aliados estratégicos, construíram redes de alianças com a inserção de um leque maior de organizações. Mas, é importante destacar que estas alianças não surgiram sem um acúmulo de experiências, que é um dos aspectos fundamentais na estruturação dos repertórios da ação coletiva (TILLY, 1978), pois, entre estes atores coletivos e individuais que compuseram o Reage São Luís, estavam também aqueles que haviam participado de lutas políticas anteriores desde os anos de 1980, como por exemplo os membros do Comitê de Defesa da Ilha que junto com as associações de moradores da Zona Rural de São Luís contestaram a instalação da fábrica de Alumínio da Alcoa (Alumar) e que durante as Audiências Públicas em 2005, deram seus testemunhos do que ocorreu naquela época. Procuro ilustrar o alargamento deste processo no Quadro 5. Quadro 5 – Campo Sociopolítico: atores coletivos que compuseram o Movimento Reage São Luís Atores coletivos que compuseram o Movimento Reage São Luís Associação dos Geólogos do Maranhão – AGEMA Associação Brasileira de Águas Subterrâneas – ABAS-MA Associação Maranhense para a Conservação da Natureza - AMAVIDA Associação dos Professores da Universidade Federal do Maranhão – APRUMA Associação de Saúde da Periferia Associação de Moradores do Taim Associação de Moradores do Rio dos Cachorros Associação de Moradores do Porto Grande Associação Agroecológica Tijupá Cáritas Central Única dos Trabalhadores - CUT-MA Central de Movimentos Populares Centro de Apoio e Pesquisa aos Pescadores Artesanais do Maranhão – CAPAM Centro de Cultura Negra Cepaib – Centro Educacional da Àrea Itaqui-Bacanga Centro Acadêmico 1º de Maio Centro de Defesa Padre Marcos Passerin Comissão Arquidiocesana de Justiça e Paz 121 Cont. Quadro 5 – Campo Sociopolítico: atores coletivos que compuseram o Movimento Reage São Luís Comitê de Defesa da Ilha Comitê Pro-Marcha Zumbi +10 Comissão Pastoral da Terra – CPT Conselho Regional de Medicina- CRM Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão-FETAEMA Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas Fórum de Saneamento Ambiental Fórum Carajás Fórum Maranhense das Cidades Fórum Maranhense de Organizações da Sociedade Civil – FMOSC Instituto do Homem Irmãs de Notre Dame Movimento de Saúde dos Povos Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST Movimento Nacional por Moradia Popular Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Negro Cosme – UFMA Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC-MA Sindicato dos Trabalhadores Ferroviárias do Maranhão, Pará e Tocantins Sindicato dos Urbanitários do Maranhão Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de São Luís Sindicato dos Trabalhadores em Educação do 3 o Grau do Estado do Maranhão Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Luís Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC-MA Talher/MA Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. Quanto ao dinamismo da estrutura organizativa interna do Reage São Luís, destacase a sistemática na divisão do trabalho intelectual da coordenação, cujo papel político guarda algumas aproximações dos membros da coordenação do Movimento Reage com o de “intelectuais orgânicos” (GRAMSCI, 1995). Ao aproximar este conceito da experiência do Reage São Luís, remeto ao trabalho político pedagógico para a formação da base social do movimento, dada a relevância deste fator na organização e na linguagem científica compartilhada. A conversão da linguagem técnico-científica dos estudos, as reuniões e oficinas de base, a produção do material informativo baseado em relatórios, laudos e estudos sobre impactos sociais e ambientais e o engajamento destes intelectuais na base, são fatores que corroboraram para uma maior eficácia das mobilizações. A gente tinha um grupo de estudo que ia lá, pegava esses documentos esmiuçava e transformava em propostas contrárias a ele mesmo. Você pegava o documento [...] do polo siderúrgico, a própria consultoria comparava com o Rio de Janeiro, uma favelona enorme entre o Complexo Portuário e a saída da cidade. Tá no documento isso, esse 122 empreendimento ia atrair tanta gente que íamos ter especulação imobiliária ao longo da BR toda; tudo isso aqui ia ser ocupado não ia sobrar outro lugar. A população daqui quando menos na melhor das hipóteses, ia para o outro lado do Arraial, ali perto do lixeiro da Ribeira [...] então para onde que iam as outras pessoas que iam migrar pra São Luís atrás desses empregos? Iam morar na beirada da estrada aqui para serem expulsos mais tarde ou no Campo de Perizes [...] Ia virar uma baixada fluminense, em pouco tempo [...]. (Alberto Cantanhede, liderança do Taim, membro do Reage São Luís. Entrevista realizada em 11 jan. 2012). Conforme os dados sistematizados e arquivados pelo Reage São Luís, aproximadamente 16.000 pessoas foram mobilizadas entre dezembro de 2004 e julho de 2006 (ver Quadro 6). A primeira reunião de avaliação e de planejamento de ações ocorreu em 13 de dezembro de 2004, na mesma data da primeira Audiência Pública convocada pela Prefeitura de São Luís na Igreja de São Joaquim do Bacanga, no povoado de Rio dos Cachorros, Zona Rural de São Luís. Reuniões regulares e eventuais para debater o assunto do polo siderúrgico ocorreram ao longo desse período e em diferentes espaços e instâncias políticas. No caso das oficinas, o foco era organizar as manifestações no ambiente das audiências, assim como elaborar estratégias de intervenção por meio das inscrições. Neste caso, a intervenção seguia uma orientação quanto à formulação da questão previamente discutida coletivamente. De fato, o que chama atenção nessas atividades é que elas não se restringiram à coordenação do Reage, mas houve uma multiplicação de ações dessa natureza por meio de pequenas redes de pessoas inseridas individualmente em diferentes ambientes e espaços institucionais. Então foi assim, foi se ramificando e as pessoas saíram do seu espaço institucional. Então quando eu passei na Igreja, o vídeo que causou essa discussão, já não era a SMDH; era alguém que trabalhava na Sociedade (SMDH) que levou isso para outros espaços. Assim, foi se congregando um pouco, um movimento, pessoas que iam se agregando e tomando consciência do impacto que esse projeto traria e esse movimento foi crescente e a Sociedade (SMDH) se fez presente em vários momentos. E também foi decisiva a nossa articulação. (Nair Barbosa, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH. Entrevista realizada em 6 dez. 2013). Quadro 6 – Público das atividades do Reage São Luís entre outubro de 2004 e julho de 2006 Atividades Oficinas + reuniões Número de eventos 99 Público mobilizado 8.932 pessoas Audiências Públicas 15 6.892 pessoas Total 114 Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. 15.824 pessoas O gráfico abaixo (Gráfico 1) elaborado pelo Reage São Luís registra o número de participantes entre os meses de outubro de 2004 a maio de 2005. Em dezembro de 2004, o 123 movimento mobilizou um público de 1.365 pessoas para participarem de uma Audiência Pública no povoado de Rio dos Cachorros, planejada para o dia 13 de dezembro. Gráfico 1 – Público mensal das atividades do Movimento Reage São Luís Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. Em março de 2005, a mobilização atingiu um público acumulado de 2.062 pessoas, sendo fator principal de motivação, duas audiências públicas ocorridas, respectivamente, nos dias 8 e 28 de março/2005 no povoado de Vila Maranhão e na Sede do Ministério Público Estadual (ver Quadro 12). Trata-se de um período de decisões importantes para viabilizar o polo siderúrgico e de acirramento dos debates nas audiências. Nas atividades de mobilização entre outubro de 2004 e maio de 2005, o Reage São Luís registrou um público acumulado de 6.232 pessoas. O fator central de mobilização era a contínua discussão da proposta de alteração da Lei de Zoneamento do Município de São Luís pela Prefeitura objetivando converter áreas rurais em áreas industriais. Se, por um lado, os vários níveis de governo e as empresas mobilizaram recursos para a viabilização do polo siderúrgico, por outro lado, por parte do movimento, houve uma instrumentalização do conhecimento científico (“campo” científico”), das ferramentas jurídicas (“campo” jurídico) e das mobilizações políticas (“campo” sociopolítico) como mecanismos de contestação aos argumentos dos representantes do governo e da iniciativa privada. De modo que, por parte do movimento, a realização das oficinas assim como as intervenções públicas contaram com um corpo de experts que alertavam sobre os riscos ambientais, as questões sociais e as implicações jurídicas no âmbito das decisões que vinham sendo tomadas pelo governo municipal e pelo governo estadual visando à viabilidade do polo siderúrgico. 124 Nestas oficinas, discutiam-se assuntos como o Estatuto da Cidade, a Lei de Zoneamento do Município, os impactos ambientais e sociais, a questão do emprego a ser gerado, o custo e o benefício para a população. Importante notar as estratégias do movimento quanto à questão política pedagógica junto à base: “A gente pegava esses documentos e transformava em provocações contrárias ao próprio documento, porque aí eles não se atinham, eles não acreditavam, como o documento era pouco disponível, pouco acessível, linguagem muito técnica a maioria de nós não ia nem compreender” (Alberto Cantanhede, liderança do Taim e membro do Reage São Luís. Entrevista realizada em 11 jan. 2012). Abaixo destaco alguns exemplos de “questões” extraídas dos arquivos digitais do Reage São Luís que foram elaboradas pelos participantes das oficinas e foram utilizadas nas intervenções durante as audiências públicas: a) O Edital de convocação para esta audiência pública fala da criação da Zona Industrial 3. Contudo, além desta zona já existir na Lei nº 3.253 (Lei de Uso do Solo de São Luís), temos uma declaração do Ministério Público Estadual informando que os documentos formalmente disponibilizados para consulta pelo Município para esta audiência pública são os mesmos da audiência designada para o dia 13 de dezembro, que referem-se a criação da zona industrial 4, denominado sub-distrito siderúrgico. Assim, ou edital é nulo por propor uma alteração diferente daquela constante nos documentos disponibilizados para consulta (que falam em ZI 4) ou, se o edital é correto, esta audiência é nula por não terem sido disponibilizados documentos referentes à “criação” da Zona Industrial 3. b) Em 16 de dezembro de 2004 foi protocolado na Prefeitura de São Luís requerimento subscrito por mais de 50 pessoas solicitando a realização de audiências públicas nos demais bairros e região central de São Luís, face à limitação dos meios de transporte público para a Vila Maranhão e o interesse na mudança da lei de zoneamento ser de todos os moradores de São Luís. Contudo, apesar do Decreto nº 27.030 obrigar a solicitação de audiência pública quando solicitado por mais de 50 pessoas, o edital de convocação da audiência pública deveria contemplar a realização de pelo menos mais uma audiência além desta, a ocorrer na região do centro da cidade. 125 c) A alteração da lei de zoneamento e uso do solo não deveria ser precedida da Revisão do Plano Diretor de São Luís, que pelo Estatuto das Cidades deve ocorrer até outubro de 2006? Não é ilegal a revisão parcial da lei de uso do solo? d) Como se justifica a alteração da lei de uso de solo de São Luís para se acrescer mais 2.471 hectares de zona industrial se o nosso Distrito Industrial tem mais de 50% de sua área desocupada? e) Quantos empregos justificam uma morte ou um caso de câncer nas famílias das pessoas que residirão nas proximidades de um distrito industrial habilitado a receber indústrias perigosas e poluentes? E para as famílias do Prefeito, dos Secretários Municipais e técnicos que estão trabalhando na alteração da lei de uso de solo do município de São Luís? Com o objetivo de atingir o público mais geral, algumas estratégias foram adotadas pela coordenação do movimento. Numa lista de 57 reuniões realizadas entre 13 de dezembro de 2004 e 10 de julho de 2006, fiz uma seleção para efeito de ilustração da capacidade de ampliação do movimento em distintos espaços e públicos. Estes eventos de mobilização estão classificados nos arquivos digitais do Movimento Reage São Luís como “outras reuniões realizadas”. Sob este rótulo de “reuniões”, estão registrados outros tipos de ações coletivas mais diretas, como é o caso de intervenções em audiências públicas e em manifestações na Câmara dos Vereadores de São Luís. 126 Quadro 7 – Atividades de mobilização do Reage São Luís entre dezembro de 2005 e julho de 2006 Data do evento 13.10.04 Atividades de participação/mobilização do Reage São Luís Manifestação para cancelamento da Audiência Pública no Rio dos Cachorros 28.10.04 Reunião com o arcebispado de São Luís 28.10.04 Reunião do Reage São Luís na Assembleia Legislativa com parlamentares 27.04.05 Debate promovido pelo Departamento de Economia UFMA 28.04.05 Exposição de Painel na Câmara dos Vereadores de São Luís 01.05.05 Romaria dos Trabalhadores – Zona Rural de São Luís 07.06.05 Debate promovido pelo Curso de Comunicação Social da UFMA 17.06.05 Participação na Sessão “Sexta-Jurídica” da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MA) 22.08.05 Acompanhamento da Relatoria da Plataforma DhESCA na visita aos povoados ameaçados de deslocamento pelo polo siderúrgico 24.08.05 07.09.05 Participação de representantes do Reage São Luís na Jornada de Políticas Públicas na UFMA Participação no “Grito dos Excluídos” 15.09.05 Vigília na Câmara dos Vereadores de São Luís 30.09.05 Manifestação na Câmara dos Vereadores de São Luís 30.09.05 Panfletagem e exibição de vídeos no bairro do Coroadinho 30.09.05 Panfletagem e exibição de vídeos no bairro Vila Embratel 01.10.05 Panfletagem e exibição de vídeos no bairro Vila Nova República 01.10.05 Debate na Semana de Serviço Social – UFMA 01.10.05 Panfletagem e exibição de vídeos no povoado de Rio dos Cachorros 02.10.05 Panfletagem e exibição de vídeos no bairro Vila Maranhão 11.10.05 Passeata e manifestação na Câmara dos Vereadores 11.11.05 Participação no Seminário Internacional de Direito Ambiental 21.03.06 Participação na Mesa Redonda Sociedade e Meio Ambiente 21.06.06 Debate sobre o polo siderúrgico na Escola Miguel Lins 10.07.06 Participação no Seminário Desenvolvimento e Meio Ambiente promovido pelo Grupo de Estudos: Modernidade, Desenvolvimento e Meio Ambiente (GEDMMA/UFMA) Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. Desde o início da mobilização contra o polo siderúrgico, o debate no âmbito das organizações se concentrou em torno da alteração da Lei de Zoneamento, e as implicações jurídicas do Estatuto da Cidade. A estratégia era associar o pedido de alteração da Lei e a sua contradição com o Estatuto da Cidade, sendo este, um dos fortes argumentos acionados em Audiências Públicas (ver também 4.1.3, “Campo Jurídico”). As reuniões na CUT que aconteciam semanalmente eram para “planejar e avaliar o grau de articulação e ampliação que essa luta tinha”; então era planejar e avaliar as estratégias; como eram definidas, quais grupos precisariam ser mobilizados e pensar o material, panfletos, oficinas nas comunidades. Tinha um videozinho que era usado nesse processo de mobilização das comunidades, ou em Igrejas. (Nair Barbosa, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – SMDH. Entrevista realizada em 6 dez. 2013). 127 As estratégias do “jogo” político, entretanto, se desenvolveram não somente por parte do movimento de resistência. Houve um investimento político por parte dos grupos interessados na viabilidade da alteração da Lei de Zoneamento e, consequentemente, da legalização do processo de instalação do polo siderúrgico. Vejamos o que diz Alberto Cantanhede, liderança do Taim e membro do Reage São Luís: As audiências públicas, elas não colocavam os documentos com tempo, nem local acessível. Então, era sempre em local fechado que você não pode nem tirar de lá para fazer uma cópia. Então, a gente tinha que ter estratégia de pegar esses documentos, a gente tinha a Irmã Anne que ajudou bastante nisso na busca de documentos, que ela tinha um certo acesso por causa da Comissão de Justiça e Paz. E Jackson Lago, no período dele, conheceu a irmã e tem certo respeito. Ela conseguia os documentos para a gente, Zagallo conseguia na internet o que era disponibilizado [...]. (Alberto Cantanhede, Liderança comunitária do Taim e membro do Reage São Luís. Entrevista realizada em 11 jan. 2012). A retomada do projeto do polo siderúrgico de São Luís, em 2002, pelo Governo do Maranhão e pela Companhia Vale, entretanto, ocorreu dentro de um novo cenário político no qual a população é inserida formalmente nas decisões políticas, muito embora os militantes do Reage levantassem dúvidas quanto à imparcialidade dos processos de decisão nas audiências. Estratégias políticas eram necessárias. As mobilizações, se não tivessem acontecido? As Audiências, são para cumprir tabela, durante as Audiências a própria Prefeitura articulava ônibus de várias comunidades também na região porque houve uma divisão social na própria comunidade, tinha a turma que reagia contrária à instalação; tinha turma que plantava, que colhia, que vivia dali, que morava ali, e tinha a turma cooptada pelo capitalismo. Isso é um fato e acontece e não é privilégio do Maranhão, há um processo de cooptação muito grande sobre as lideranças, algumas ditas lideranças, e nesse processo havia as comunidades cooptadas pelo governo do Estado, pela Prefeitura e que faziam um discurso favorável à instalação do polo, e isso foi uma coisa que dificultou bastante, porque nas audiências públicas o enfrentamento não era somente com o poder público, mas era também com as comunidades cooptadas pelo capitalismo por essa promessa de emprego, por essa promessa de que as pessoas seriam remanejadas que queriam uma vida melhor. Então de fato, isso foi um enfrentamento muito difícil, e aí com todo esse processo, com esse calendário que foi se esticando mais e a gente inventava novas coisas, a gente inventava um novo parágrafo, e isso foi se alongando e claro, não podiam se instalar. (Creuzamar Pinho, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular. Entrevista realizada em 23 dez. 2012). Nos arquivos digitais do Reage São Luís, encontrei um documento em formato de exposição (Power Point) do qual constavam 24 slides, intitulado: Avaliação do Processo de Implantação do Polo Siderúrgico em São Luís e elaborado pelo advogado Guilherme Zagallo, coordenador do Reage São Luís. O documento apresenta inicialmente a composição do Movimento Reage São Luís com 43 entidades e dados sobre os seguintes aspectos: a “Crise Ambiental Global”, descrição e localização do polo siderúrgico, o “Cronograma de Ações Estatais” e o “Cronograma de Resistência, Descrição do Processo Siderúrgico, Impactos Ambientais, Impactos Sociais”, dados comparativos sobre “Emissão de Poluentes” na 128 atmosfera e os efeitos sobre à saúde pública, em destaque, a relação entre a produção siderúrgica e as estatísticas sobre casos de câncer, a exemplo da cidade de Vitória (ES) e Cubatão (SP). Sobre a descrição e argumentos destes aspectos tratarei mais adiante no subcapítulo “campo científico”. Dois slides deste arquivo são importantes neste “campo político” e apresento abaixo em formato de quadros. No primeiro, com conteúdo apresentado no Quadro 8, organizei as informações que sintetizam as principais ações governamentais tendo em vista a viabilização do polo siderúrgico. O segundo, com conteúdo apresentado no Quadro 9, diz respeito à agenda de ações coletivas do Reage São Luís. Quadro 8 – Cronograma de Ações Estatais 17/07/2002 DATA ATIVIDADE Protocolo de Intenções CVRD/Estado do Maranhão (concessão de 1.000 hectares p 1ª usina ) 30/08/2004 Criação Sub-Distrito Siderúrgico 29/09/2004 Declaração Utilidade Pública Sub-Distrito Siderúrgico 10/12/2004 Remessa e retirada Projeto de Lei para alteração uso do solo 26/04/2005 Criação GEIP – Grupo Executivo de Implantação do Polo (Decreto nº 21.190) Audiências Públicas Poder Executivo 07 e 28/03/2005 29/04/2005 23/06 a 01/09/2005 Remessa Projeto de Lei Executivo para alteração uso do solo à Câmara de Vereadores Audiências Públicas Poder Legislativo 02/09/2005 em diante Tramitação PL nº 063/65 na Câmara de Vereadores Ago a nov/2004 CVRD realiza levantamento propriedades e estudos de impacto urbanísticos e socioambientais Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. Vale ressaltar que a instalação do polo siderúrgico no Maranhão é um projeto que vinha sendo cogitado desde 1987 quando foi criada a Usina Siderúrgica do Maranhão (USIMAR), e que funcionou até 1999, ano em que foi desativada. Em 1999 surgiu a segunda Usimar, empresa privada com a Razão Social USIMAR – Componentes Automotivos LTDA. Esta empresa previa a instalação conjunta de uma usina siderúrgica, mas as obras foram paralisadas. Conforme o Governo do Maranhão por meio de um documento elaborado pelo Grupo Técnico Executivo de Coordenação Geral do Polo Sider – GEP, intitulado Agenda Operacional do Polosider (Governo do Maranhão, 2004): [...] A primeira Usimar funcionou durante 12 anos, até 28 de dezembro de 1998, quando foi extinta no bojo da lei da reforma administrativa do governo estadual. No período de 1987-1998, foram feitos inúmeros contatos e discutidas dezenas de propostas de implantação de diversos projetos siderúrgicos com empresas italianas, chinesas, soviéticas, colombianas, japonesas, entre outras. Embora tenham sido 129 assinados vários Protocolos de Intenções, e aportados recursos da SIDEBRAS para os projetos de engenharia [elaborados pela Cobrapi e Italimpianti; 1988-90]. A 1ª USIMAR foi fechada e liquidada administrativamente [em fevereiro de 1999] sem ter tido os meios de promover a implantação da siderurgia do aço no Maranhão [...] Em meados de 1999 é criada com apoio institucional do governo estadual a segunda USIMAR [...] que previa a implantação conjunta de uma usina siderúrgica e uma fábrica de blocos de motores, ao custo de US$ 1,3 bilhões. A Construção da USIMAR privada é iniciada em 2000, mas as obras foram paralisadas logo depois, após investimentos da ordem de R $ 44 milhões, em função da extinção da SUDAM. Nesse sentido, é importante compreender a forma pela qual os atores locais interferiram no processo decisório, considerando o “Cronograma de Resistência” como o denominaram os coordenadores do movimento. Quadro 9 – Cronograma de Resistência DATA 28/10/2004 ATIVIDADE Seminário Instituto do Homem Dez/2004 Criação Movimento Reage São Luís Fev/2005 a out/2005 Realização de Oficinas (42) e Reuniões (50) com a participação de 13.000 pessoas 04/04/2005 Audiência Movimento Reage São Luís com Governador do MA 28/04/2005 Painel Câmara de Vereadores 24/05/2005 Audiência Pública - Assembleia Legislativa 24 a 26/08/2005 Missão dos Relatores Nacionais em Direitos Humanos (Plataforma DhESCA) 07/09/2005 Grito dos Excluídos (com forte repressão policial) 23/09/2005 Apresentação do relatório preliminar da Missão Relatores Nacionais Fonte: Arquivos Digitais do Movimento Reage São Luís. 4.1.1.1 “Vaias e protestos marcaram a reunião para tratar da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo da Zona Rural”: a Audiência Pública de 13 de dezembro de 200462 Audiências Públicas são espaços públicos, mas também, instrumentos por meio dos quais os governos procuram buscar mecanismos de legitimidades de suas ações. Em grande medida restringem a participação qualitativa dos interessados nas decisões que são tomadas nestes espaços, em função de seus formalismos e o modo como são efetivamente organizadas. No caso das Audiências para tratar da alteração do zoneamento da cidade de São Luís, este espaço foi não somente objeto de questionamento quanto à sua forma de condução do processo decisório, mas também foi questionado o próprio objeto de discussão, ou seja, a conversão de áreas rurais em áreas industriais. O objetivo central era alterar a Lei de Zoneamento, tal como procuro descrever e analisar mais adiante. Entretanto, importante dizer que este espaço, no final das contas acabou sendo importante para o Reage São Luís no sentido de aglutinar e canalizar “Vaias e protestos marcaram a reunião para tratar da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo da Zona Rural” (Jornal O Estado do Maranhão, Geral, 7, São Luís, 14 dez. 2004, p. 7). 62 130 energias políticas para contestar o polo siderúrgico; produzindo, portanto, um efeito contrário desta restrição. A Audiência realizada em 13 de dezembro de 2004 é bastante emblemática quanto a esse aspecto pela intervenção dos movimentos de resistência à proposta de alteração da Lei de Zoneamento pela Prefeitura de São Luís. Como procurei mostrar anteriormente, o debate sobre o zoneamento de São Luís, estava na agenda dos movimentos sociais desde o início de 2000, quando se mobilizaram pela aprovação e posse do Conselho da Cidade. A alteração da Lei de Zoneamento, conforme o Estatuto da Cidade, não poderia ser realizada, sem a revisão do Plano Diretor. Nesse sentido, os movimentos identificaram nas audiências públicas que a intenção do poder executivo era instrumentalizar este espaço tornando consensual o pedido de alteração da Lei, para atender à demanda do polo siderúrgico. Os movimentos, entretanto, interferiram no debate associando a ação da Prefeitura a uma tentativa de dissimular o seu real objetivo que seria converter parte da Zona Rural II em Área Industrial. A Prefeitura de São Luís publicou, em 2 de dezembro de 2004, o Edital de Convocação da audiência Pública na Igreja de São Joaquim do Bacanga na Vila Maranhão, uma das áreas cuja população residente seria diretamente afetada pelo polo siderúrgico. A Prefeitura de São Luís, objetivamente visava criar condições políticas e institucionais convocando a população e em especial os moradores da Zona Rural para “informar e esclarecer a opinião pública sobre as condições gerais do processo de revisão da Legislação Urbanística, bem como, dirimir dúvidas, colher subsídios, sugestões e contribuições de forma ampla, da população, de entidades de classe e da sociedade civil organizada [...]” (Prefeitura de São Luís, 2004). Oficialmente, em seus aspectos técnicos, a audiência objetivava diretamente tratar da proposta de alteração da Lei de Zoneamento, parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano de São Luís (Lei 3.253, de 29.12.1992). Veja-se que o objetivo específico desta audiência era “a redefinição dos limites de parte da Zona Residencial 10 (ZR10), Zona Rural Rio dos Cachorros, e a criação da Zona Industrial 4 (Polo Siderúrgico)” (Prefeitura de São Luís, 2004), atendendo ao pedido do Governo do Estado para instalar o Subdistrito Industrial Siderúrgico de São Luís. Tal objetivo foi o mesmo durante as treze audiências que ocorreram posteriormente (ver item 4.1.3) A matéria publicada no Jornal O Estado do Maranhão em 14 de dezembro de 2004 destacou a Audiência Pública de 13 de dezembro de 2004 na Igreja de São Joaquim na Vila Maranhão coordenada pela Prefeitura e enfatizou também que a sociedade civil organizada foi representada naquela ocasião por 30 instituições sendo representadas pelo Movimento Reage São Luís. Os manifestantes encaminharam requerimento à Mesa Diretora exigindo o 131 cancelamento da Audiência, pedido que foi acatado sob forte pressão das organizações. Este Jornal destacou as seguintes razões para o pedido de cancelamento: a) a inexistência do Estudo de Impacto de Vizinhança, informados pelos artigos 36º e 37º do Estatuto da Cidade; b) a restrita divulgação da data, local e horário da audiência, que havia sido divulgada apenas em um veículo de comunicação, comprometendo o caráter da publicidade da audiência para que os cidadãos da cidade interessados pudessem participar e não somente os moradores da ADA. c) o local escolhido para a audiência foi inadequado, pois, a Igreja estava lotada e havia 400 pessoas na área externa sem poder participar do debate; d) o Edital apresentado pela prefeitura não apresentava a justificativa técnica da alteração da Lei de Zoneamento. (Retomo estes aspectos no item 4.1.3). Figura 2 – Protesto pela anulação da Audiência Pública em dezembro de 2004 no povoado Vila Maranhão Fonte: Reprodução/Jornal O Estado do Maranhão (2004)b. Ainda, conforme registrado pelo “Jornal O Estado do Maranhão” (14 de dezembro de 2004), nesta audiência houve a intervenção do Pároco da Igreja de São Joaquim, Padre 132 Luzimar. Este, temendo a depredação do prédio da Igreja, pediu ao Secretário Municipal de Terras, Urbanismo e Fiscalização que a audiência fosse cancelada. A pressão do movimento social e, sobretudo, dos moradores dos povoados diretamente afetados, que se manifestaram com faixas e pedidos de cancelamento da audiência (além do pedido do padre e de autoridades presentes, entre elas, o Promotor de Proteção ao Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural de São Luís Fernando Barreto e do Advogado Guilherme Zagallo, membro do Reage São Luís), levou à decisão da Mesa Diretora de cancelar a Audiência Pública. O quadro teórico evocado a partir dos componentes da ação coletiva (TILLY, (1978) permite explorar inúmeras formas de ação organizadas pelo Reage São Luís. A pressão exercida pelo movimento não foi uma decisão tomada sem um processo de mobilização anterior. Como procurei mostrar, há um cronograma, uma agenda de mobilizações: reuniões e oficinas envolvendo discussões e planejamento estratégico e público alvo de mobilização. Quanto ao espaço público, este formalmente instituído no formato de Audiência, contando com uma Mesa Diretora definida pela Prefeitura de São Luís, com inscrições e tempo de falas cronometrado, além de outros procedimentos formais, entretanto, gerou um processo contrário a esse caráter restritivo. Em grande medida como veremos adiante no item 4.1.3, este espaço acabou sendo convertido estrategicamente pelo Movimento Reage São Luís como um espaço aglutinador de diferentes forças políticas convergentes de reação à instalação de um polo siderúrgico em São Luís. O exemplo da reação ao modo como foi planejada a Audiência de 13 de dezembro, refletiu desde o início como o Reage São Luís iria atuar ao longo das demais audiências. A busca por aliados que pudessem dar visibilidade à situação dos povoados atingidos e à construção da crítica aos impactos socioambientais que seriam produzidos pela siderúrgica, na cidade de São Luís como um todo. Outras estratégias de visibilidade e de contínua busca pela “dessingularização” pode ser também ilustrada na demanda do Reage São Luís em 2005 pela visita dos Relatores da Plataforma DhESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) em São Luís que relataram o seguinte: [...] a missão foi realizada a pedido do Fórum Reage São Luís, que congrega várias entidades da sociedade civil maranhense e representantes das comunidades contrárias ao empreendimento. Inicialmente, a missão teria um caráter preventivo, mas as visitas in loco permitiram constatar que já estão ocorrendo graves violações dos direitos humanos dos moradores das onze comunidades que seriam diretamente afetadas pela implantação do Polo Siderúrgico de São Luís. Durante a missão, as Relatorias tiveram a oportunidade de visitar algumas comunidades diretamente ameaçadas de remoção (Cajueiro, Vila Maranhão, Rio dos Cachorros e Taim), de manter contatos com autoridades e entidades representativas da sociedade civil maranhense e de dialogar diretamente com os representantes das demais comunidades que serão afetadas, direta ou indiretamente, pela construção do Polo Siderúrgico (Porto Grande, Limoeiro, São 133 Benedito, Vila Conceição, Anandiba, Parna-Açu, Camboa dos Frades e Madureira). Nessas visitas, as Relatorias foram acompanhadas por representantes de diferentes entidades que compõem o Fórum Reage São Luís. A missão foi concluída com uma audiência pública convocada pelas Relatorias em parceria com o Ministério Público Estadual, realizada no auditório da sede do Ministério Público do Estado do Maranhão. A audiência contou com a presença de cerca de 300 pessoas, entre elas representantes das onze comunidades interessadas, representantes de entidades da sociedade civil local e de autoridades municipais, estaduais e federais. Durante a audiência foi apresentada, por entidades, comunidades e autoridades, uma série de documentos relevante às denúncias. (DHESCA, 2006, p. 19). Em síntese, os relatores observaram as seguintes situações: intimidação de moradores; cadastramento ilegal das famílias sem o procedimento de autorização; imposição de restrições arbitrárias sobre o direito dos moradores quanto ao uso pleno de seus direitos de propriedade; ameaças à população de expulsão sair de seus locais de moradia; deficiência no acesso da população às informações sobre o processo de implementação da siderurgia. Ao considerarem como situação de violação dos direitos humanos, foram feitas recomendações ao poder público municipal e, também, o caso foi levado à Casa Civil da Presidência da República, por meio de uma reunião em dezembro de 2005 em Brasília que contou com a participação de representantes do Governo Federal e de representantes dos movimentos sociais. Em função da pressão exercida pelos movimentos sociais e pelos relatores da Plataforma DhESCA, os representantes do governo se comprometeram a consultar a Ministra-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, na ocasião, Dilma Roussef, assim como os ministérios envolvidos (DHESCA, 2006). Na sequência da mobilização política contra o polo siderúrgico temos: a) um processo de mobilização política (“dessingularização”) iniciado pelos povoados Taim e Rio dos Cachorros, buscando apoio de lideranças de demais povoados, na mesma situação de ameaça de deslocamento; b) a mobilização transcendeu o âmbito local, na medida em que, ganhou força de atores singulares, porém, com maior poder de influência no “campo” sociopolítico (Quadro 4); c) o acesso aos atores coletivos produziu um movimento de reação mais amplo, uma “mobilização política” envolvendo uma grande variedade de organizações que aderiu ao movimento (Quadro 5). A seguir procuro apresentar os argumentos científicos acionados pelo Reage São Luís. 134 4.1.2 O “Campo” Científico: argumentos técnico-científicos na disputa política envolvendo a instalação do polo siderúrgico de São Luís. O “campo científico”, segundo a teorização de Bourdieu (1997, p. 16), “[...] est um champ de forces et um champ de luttes pour conserver ou transformer ce champ de forces”. Cumpre dizer que Bourdieu recorrentemente em sua teoria do campo utiliza o termo “agente” referindo aos indivíduos em processo de interação e disputas nos diferentes campos em que se situam. Para Bourdieu (1997) na análise do “campo científico” e o “capital científico”, com o qual os “agentes” operam, alguns fatores devem ser considerados. A distribuição deste capital e o seu acúmulo, o seu reconhecimento, sua legitimidade e o processo de institucionalização dessa forma de capital que se converte em um “habitus” de indivíduos e de grupos. Neste quadro interpretativo procuro situar o debate sobre o polo siderúrgico tomando por base o “campo científico” e suas formas específicas de capital nas ações institucionais de decisão no âmbito da questão ambiental. A literatura sociológica contemporânea tem mostrado que na atualidade a ciência, tem sido um instrumento importante nos processos de decisão político-administrativos concernentes ao campo ambiental. Alguns autores, por meio de abordagens distintas têm chamado atenção para esta temática. Giddens (1991, p. 35) em “As consequências da modernidade” fala de “sistema peritos”, referindo-se aos “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”, desde a consolidação da moderna sociedade, quando os indivíduos passaram a incorporar a noção de “risco” em suas atividades rotineiras. Beck (1998) em “La sociedad del riesgo”, assinala que na modernidade avançada, a produção social da riqueza é sistematicamente acompanhada da produção de riscos e, com estes, a institucionalização da promessa da segurança por meio da “gestão” política e científica de seus “efeitos secundários”. No processo de modernização e de sobredesenvolvimento das forças produtivas em escala global, ficam liberadas as forças destrutivas que trazem, entre outras consequências, a “crise ecológica” que afeta globalmente os indivíduos (BECK, 1998, p. 26).63 A noção de “risco” desenvolvida por Giddens, tanto na obra “As consequências da modernidade” (1991), e principalmente, na obra “Para além da esquerda e da direita” (1996) foi objeto de críticas por autores brasileiros e, especificamente por pesquisadores ligados aos movimentos socioambientais (ver ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). O argumento central é de que na noção de “risco” associada aos problemas ambientais não há distinção social no processo de distribuição dos prejuízos ambientais em escala global. Ou seja, refuta-se a ideia de que os problemas ambientais atingem à todas as nações, sociedades, regiões, indivíduos, grupos étnicos e classes na mesma proporção. A ideia de “crise ecológica”, por exemplo, nesta perspectiva, é uma representação dominante do mundo e nas ciências humanas uma noção “socialmente indiferenciada” (GIDDENS, 1996), a partir da qual, 63 135 Noções como “poluição”, “risco” e “perigo”, entretanto, segundo Lopes (2004, p. 228) são categorias percebidas enquanto processos sociais, ou seja, são categorias construídas social e culturalmente dentro de cada realidade local e apresentam variações segundo as ocupações (pescadores, camponeses, operários industriais), gênero (homens e mulheres) e, também, segundo as posições dos indivíduos. Como comentei na Introdução da tese, Lopes (2004) sugere a análise desse processo social como dimensões ou momentos que seriam a “naturalização” (a poluição é percebida como inerente à funcionalidade do sistema), a “desnaturalização”, quando “estranham” os riscos e perigos de contaminação e, por fim, quando os afetados “reelaboram” a visão funcional e passam a exigir acordos e parcerias com os poluidores. Nesta perspectiva Lopes (2004, p. 230) reconhece o “caráter polissêmico” no uso do termo “meio ambiente”, evitando dessa forma, “o reconhecimento da existência de uma questão ambiental a priori”. Tal compreensão apontada torna-se aqui relevante pelo fato de que o “meio ambiente” enquanto uma construção ou um processo social, uma vez incorporado no discurso dos atores sociais, recoloca preocupações ou “velhas” questões e práticas antes não problematizadas. Vejamos o trecho do relato de Alberto Cantanhede liderança do povoado do Taim, Zona Rural de São Luís: [...] Eu tive oportunidade de estar em vários espaços, aonde se discutiam os Grandes Projetos na Amazônia, e aí estavam incluídos a produção de alumínio, a cadeia de alumínio, a cadeia do aço. Então estávamos discutindo não mais a redução do peixe [...] mas as consequências, as razões disso, a raiz do problema. As comunidades décadas passadas, anos 40, 50, tiveram uma participação muito ativa no deflorestamento do mangue, era para suprir o combustível das fábricas de São Luís. E era tanto a lenha quanto a casca do mangue que deu um impacto negativo no mangue ao entorno da ilha de São Luís. E isso, nós vamos resgatar já aqui nesse período de 2000, de 1999 pra frente. Quando se chega nesses grandes projetos, nós percebemos que as comunidades não viviam mais disso, [porém], o produto continuava diminuindo, o peixe, as terras continuavam fracas e produzindo menos [...] Nós começamos a atribuir a partir de alguns eventos, por exemplo, quando a Alcoa fez seu primeiro lago [lago para tratamento de resíduos] [...] os primeiros foram feitos aqui dentro da planta, então, estão na cabeceira de dois igarapés grandes, que é o igarapé do Andiroba e o igarapé do Ribeira [...] sofreram um impacto enorme, nos anos 87, já para início dos 90 [...] percebíamos a coloração da água do rio mudar, e não conseguíamos atribuir isso a nada [...]64. incute-se nas mentes e corações que todos os seres humanos sofrem potencialmente na mesma proporção a ecotoxidade e o “efeito estufa”, por exemplo. Acselrad, Mello e Bezerra (2009), no bojo dessa crítica enfatizam que é sobre os mais pobres e os grupos étnicos desprovidos de poder que recaí os riscos ambientais socialmente induzidos, seja nos processos de extração dos recursos naturais, seja na disposição de resíduos no ambiente. Para estes autores, a ideia de que a “crise ecológica” atinge a todos indistintamente, encontra suas bases no conceito de “modernização ecológica” que procura conciliar o crescimento econômico com discursos de sustentabilidade ambiental e está amparada nos pressupostos teóricos neoliberais que ganharam força política nos anos de 1990. 64 Entrevista com Alberto Cantanhede, realizada por Ana Carolina P. Miranda, Maiâna Roque e Rafael B. Gaspar. Esta entrevista foi publicada no Livro “Eco dos Conflitos Socioambientais: a Resex do Tauá Mirim” (Orgs. Horácio Antunes de Sant`Ana Júnior, Madian Pereira, Elio de J. P Alves, Carla R. Pereira, 2009). 136 Desde o início desta tese venho argumentando que este é um caso em que está colocada a formulação pública de um problema (LENOIR, 1996). Na problematização do “meio ambiente” enquanto questão social, de fato, as circunstâncias sob as quais o problema ocorre, é um ponto de partida para o enfrentamento da situação. Entretanto, é importante mencionar o papel dos agentes de intermediação na sua constituição, tais como (órgãos e agentes estatais, ONGs, Igrejas, parlamentares, partidos, pesquisadores, etc,), que em grande medida colaboram decisivamente para despertar o interesse coletivo, impulsionam a percepção do problema e ajudam na formulação pública do “meio ambiente”. Sob certas circunstâncias, são os moradores vizinhos de indústrias que percebem de imediato os efeitos da poluição: sensações de incômodos, doenças, etc, identificados como consequências da poluição industrial. Entretanto, como chama atenção Lopes (2004) não se deve interpretar esses “momentos” como uma lógica progressiva ou etapas sucessivas, como também, nem sempre o sofrimento das pessoas como resultado dos efeitos da poluição é uma condição para despertar o interesse público. Categorias tais como “poluição”, “risco’ e “perigo”, também são construções teóricas formuladas por agentes que fazem a mediação. É também resultado de diálogos e de trocas de experiências entre estes agentes e os grupos sociais que, na condição de afetados pelos efeitos da poluição, também constroem alianças com especialistas engajados em movimentos sociais. Dentro deste quadro teórico, insiro o papel político dos cientistas no debate e na disputa política em torno do processo de instalação do projeto do polo siderúrgico em São Luís. Procuro mostrar adiante que tal inserção ocorreu tanto por parte do movimento de resistência ao polo quanto por parte do governo e da Companhia Vale: Sobre o papel do perito na atualidade, Jerónimo (2006, p.1143), diz o seguinte: [...] Não sendo uma posição recente ou exclusiva da sociedade contemporânea — pois encontram-se muitas vezes referências ao desempenho dos savants como conselheiros da elite política na Antiguidade clássica —, o papel do perito reorienta-se hoje em função das encruzilhadas com origem nas áreas industriais, tecnológicas e ambientais. A introdução de organismos geneticamente modificados na agricultura e na alimentação, a BSE (ou “doença das vacas loucas”), o tratamento de resíduos perigosos, as alterações climáticas e os efeitos das dioxinas no ambiente e na saúde pública são apenas algumas das questões para as quais o conhecimento especializado dos peritos é convocado. Esta nova ordem de questões, bem como o caráter inédito de fenômenos que escapam ao repertório do conhecimento existente e impelem as instâncias políticoadministrativas a recorrerem à peritagem científica, sobretudo “animadas pela ideia de que valor e estatuto social da ciência permitirão fundamentar e legitimar as decisões”. É oportuno trazer para o contexto deste estudo as considerações de Jerónimo (2006) pelo fato de que, na experiência de contestação ao polo siderúrgico pelo Movimento Reage São Luís, as ações e os 137 discursos se pautaram em grande medida pelos argumentos científicos, ou para usar a teoria do “campo” de Bourdieu, o movimento contou com argumentos e “agentes” do “campo científico” ou seja experts engajados na causa socioambiental. Veremos a seguir que se por um lado, o Governo do Maranhão e a Companhia Vale em 2004 encomendaram os estudos prévios para o licenciamento ambiental, por outro os membros do Reage São Luís procuraram reunir provas científicas sobre impactos ambientais na cidade de São Luís. Se instrumentalizou também com estudos sobre impactos socioambientais em outras cidades onde existem siderúrgicas. De modo que mediante um conjunto de estudos sobre impactos de siderurgias referentes à saúde pública e ao ambiente, eles contestaram a versão dos estudos encomendados pelo Governo do Maranhão e pela Companhia Vale. Neste sentido, chamo atenção, para o fato de que a disputa em torno da instalação de um polo siderúrgico na ilha do Maranhão, ocorreu também no âmbito do “campo científico”. 4.1.2.1 Os estudos preliminares do Governo do Maranhão e da Companhia Vale do Rio Doce Interessa situar as descrições destes estudos no “campo científico” considerando que os cientistas são inseridos no âmbito da ação institucional e no dinamismo dos processos decisórios. A “peritagem científica” como diz Jeronimo (2006, p.1144) “é uma atividade de interface entre o mundo do conhecimento científico e o mundo da decisão”. Perito é, portanto, “aquele que sabe por experiência” cuja identidade está referida a esse mundo da decisão. Nesse sentido, o conhecimento científico só adquire valor de peritagem quando é convocado para clarificar, justificar ou fundamentar, mesmo que parcialmente, uma decisão. Do mesmo modo, só quando o cientista deixa o laboratório para integrar uma comissão sobre determinado tema solicitado por decisores65 é que passa a situar-se no registro da peritagem, e já não propriamente no âmbito da pesquisa científica. A sua função não é a de fornecer pura e simplesmente um conhecimento, mas um conhecimento que se destina a esclarecer aqueles que têm a responsabilidade de tomar decisões. Trata-se de um conhecimento que serve a decisão, embora não constitua a própria decisão. O início do processo de licenciamento ambiental para instalação do polo siderúrgico de São Luís teve por base dois importantes estudos que acredito serem suficientes para ilustrar as iniciativas do empreendimento. Sendo o primeiro realizado pelo Governo do Maranhão através da empresa ERM LTDA que elaborou um relatório de 608 páginas, intitulado “Subsídios para Elaboração do EIA do Subdistrito Industrial Siderúrgico de São Luís, MA” (MARANHÃO, 2004b). O segundo estudo foi encomendado pela Companhia Vale através da A expressão “decisores” refere-se aos agentes que tomam decisões, ou seja, os tomadores de decisão. O termo tal como utilizada por Jerônimo (2006) não tem um termo equivalente na língua portuguesa utilizada no Brasil, por isso decidi manter a forma utilizada pela autora. 65 138 Golder Associates Brasil Consultoria e Projetos LTDA, contendo 183 páginas, intitulado “Diagnóstico do Meio Biótico para o Licenciamento Ambiental da Usina Siderúrgica de Placas da Companhia Vale do Rio Doce – São Luís, MA – Revisão 1” (CVRD, 2004). Cabe salientar que o licenciamento de um projeto da magnitude do polo siderúrgico, é um prolongado e complexo processo de negociação que iniciou com estes estudos preliminares para subsidiar a elaboração dos Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais para o licenciamento do Sub-distrito Siderúrgico de São Luís e os licenciamentos das três usinas siderúrgicas que estavam sendo planejadas. Os EIA-RIMAS do Subdistrito Siderúrgico, bem como do polo siderúrgico não foram concretizados. Portanto, o processo de licenciamento se limitou a esta fase inicial dos estudos preliminares. Os objetivos dos estudos prévios eram, no caso do primeiro estudo, subsidiar o licenciamento ambiental para conversão de uma área de 2.471,71 ha situada na Zona Rural de São Luís, em área do Subdistrito Industrial Siderúrgico. No estudo elaborado em dezembro de 2004, “Subsídios para Elaboração do EIA do Subdistrito Industrial Siderúrgico de São Luís, MA” (MARANHÃO, 2004b) consta um diagnóstico ambiental de 608 páginas com minuciosas informações sobre fauna, flora, recursos hídricos, dados geológicos, e outros aspectos ambientais mais gerais. Nota-se, entretanto, apenas informações gerais sobre os 12 povoados afetados, constando sobre estes, um item denominado “[...] aglomerações rurais que aparecem em decorrência da localização na área delimitada para o estudo de solo na Área Diretamente Afetada (ADA)” (MARANHÃO, 2004b, p. 438-439). No documento são descritos os seguintes povoados: Vila Conceição, Cajueiro, Limoeiro, Vila Maranhão, Porto Grande, Taim, Sítio Madureira, Sítio São Benedito e Rio dos Cachorros. Destaco trechos das descrições de quatro destes povoados: Vila Maranhão: é a maior aglomeração na região do empreendimento e também a mais urbanizada entre as comunidades situadas na área do Subdistrito. Abrange área de 668,19 ha e faz divisa, entre outros, com os povoados de Limoeiro, Cajueiro e Rio dos Cachorros, além de margear o mangue com distância de 775,25 metros. Possui 1.604 imóveis, 1.099 famílias e 4.173 habitantes. “A Vila Maranhão é composta basicamente por dois tipos de ocupação: uma mais regular e outra mais orgânica. Na parte da ocupação mais regular, entre a BR-135 e a Via Férrea RFFSA, há um conjunto de casas com projeto de parcelamento, em alvenaria estrutural, revestidas e em bom estado de conservação. Essa parte, que se originou de uma Vila Operária, possui vias largas, com a maioria das ruas pavimentadas, água canalizada e uma caixa d’água que atende ao consumo das famílias residentes. Há eletrificação e a maioria das casas possui fossas sépticas.” (Diagonal, 2004). Nesse núcleo localiza-se o Centro de Saúde Yves Pargas, instalado em 1981, tendo ainda uma escola de ensino fundamental e um cemitério. Embora o uso exclusivo das edificações para fim residencial seja de 61,8%, constatou-se que os imóveis destinados a alguma atividade econômica atingem quase 10,0% do universo (147 imóveis) onde funcionam alguns bares e mercadinhos precários. O número de imóveis vagos e em construção juntos somam mais de 20,0% do total. Na Vila Maranhão ocorre feira livre nos finais de 139 semana. As casas são de alvenaria, em sua maioria, sendo que existem pequenos núcleos isolados de casas vernaculares [casas construídas com recursos do ambiente local tais como barro e palha], as construções em alvenaria representam 57,50% do total de imóveis, mas a construção de taipa também alcança a expressiva incidência de 40,0% das edificações. Embora apresente melhor infra-estrutura urbana, na Vila Maranhão 35,30% dos imóveis fazem uso de ligações clandestinas de energia elétrica “gambiarra”; a água proveniente dos poços profundos da administração pública atende 57,40%; existe rede de esgoto ligada a 12,0% dos imóveis, sendo a fossa negra (sintina) o tipo de esgotamento sanitário mais presente (48,8%). A parcela mais estruturada e populosa da Vila Maranhão está estabelecida na área prevista para implantação de um cinturão verde. No lado leste da rodovia encontra-se a igreja mais antiga da região, a Igreja de São Joaquim do Bacanga (Coordenadas: 575560.491E e 9709168.905N) Anexo à igreja existe um cemitério. A outra parte da Vila Maranhão, localizada na sua maior porção, entre o lado oeste da BR-135 e a Via Férrea de Carajás (CVRD), predominam as casas feitas em taipa, com características rurais, onde se pode ver acessos não pavimentados, abastecimento de água através de poços, pequenas plantações e presença de gambiarras. Nesta região há também um cemitério. Porto Grande: ocupa uma área de 88,73 ha. A Diagonal estimou cerca de 150 imóveis. Predominam as edificações simples – de taipa e de alvenaria, contando com infra-estrutura precária. É uma comunidade que já começa a apresentar características urbanas, embora a sua população ainda sobreviva predominantemente de atividades agrícolas, da pecuária e do extrativismo. A principal atividade produtiva deste porto ocorre pela presença da empresa Netuno, de importação e comércio de pescado. Há ainda um pequeno comércio local, com bares e mercearia, igreja evangélica e um Jardim de Infância. Na via de acesso a essa comunidade há uma antiga área de extração de areia, ainda em exploração, consorciada com três ou quatro tanques de criação de peixes, numa atividade de piscicultura comercial de organização familiar; Taim: é uma comunidade pequena, localizada próxima ao rio dos Cachorros, parte dessa comunidade encontra-se fora da ADA, incluída na Área de Estudo Local. Comunidade de características fortemente rurais, ocupa uma área de 86,01 ha, predominantemente de casas de construção artesanal vernacular [casas construídas com recursos locais, tais como barro e palha] com paredes de taipa, coberta de fibras naturais ou de telha. Nela estima-se cerca de 100 imóveis, 72 famílias e 302 habitantes. A infra-estrutura disponível é precária: estrada carroçável de aproximadamente 8 km de extensão ligando o povoado à BR-135, em péssimo estado de conservação; o abastecimento de energia elétrica, feito através de rede trifásica oficial, atende apenas uma parcela da população e a escola pública da rede municipal de ensino. Na localidade há um poço profundo; Rio dos Cachorros: ocupa área de 393,60 ha e possui cerca de 150 domicílios. Este povoado limita-se com o igarapé rio dos Cachorros, a comunidade Limoeiro e a Vila Maranhão. Na localidade há rede de energia elétrica e é atendida por linha de ônibus regular. Predominantemente residencial, as condições das habitações diferem bastante uma das outras, mas o que prevalece são as edificações de alvenaria, sendo as de taipa cerca de 25,0% do total de construções. A comunidade é desprovida de estrutura de saneamento básico. Algumas residências estão associadas a agricultura de subsistência. Foi identificada uma igreja (de São Miguel), 01 Posto de Saúde, 01 Posto Telefônico. (Grifo nosso). O estudo encomendado pela Companhia Vale, “Diagnóstico do Meio Biótico para o Licenciamento Ambiental da Usina Siderúrgica de Placas da Companhia Vale do Rio Doce” (CVRD, 2004) foi elaborado em agosto de 2004 e teve como objetivo a caracterização dos ecossistemas presentes nas áreas de influência do empreendimento. Este diagnóstico se limitou ao levantamento de dados biológicos visando estabelecer parâmetros bioindicadores da qualidade ambiental da área. 140 Conforme indiquei no Capítulo 2, a área total a ser ocupada pelo empreendimento seria aproximadamente 4 km por 2,5 km, totalizando 10 km quadrados, entretanto, o raio de influência das usinas extrapola esta área. Nesse sentido, o diagnóstico apresenta assim 03 áreas distintas em termos de nível de influência, indo do menor ao maior nível de impacto conforme a distância (ver Mapa 4): Mapa 4 – Limites das áreas sob influência das usinas do polo siderúrgico de São Luís Fonte: CVRD (2004) 141 a) A primeira área, definida como ADA, ou seja, o local propriamente de instalação das usinas, é limitada ao norte pelo igarapé Buenos Aires, ao sul pelo igarapé Arapopaí, a leste pela Estrada de Ferro São Luís-Teresina, e a oeste pela Baía de São Marcos; b) A segunda área, a Área de Influência Direta (AID), é traçada nos contornos da ADA, incluindo aqui o “meio aquático”, que no estudo, destaca as “alterações nos fluxos de energia e matéria que afetam diretamente a biota [...]. A AID, ainda segundo o diagnóstico “é determinada em função da maior probabilidade de alteração destes fluxos em função da implementação de um empreendimento [...]”. Nesta área, o estudo inclui as bacias hidrográficas dos igarapés Arapopaí, Buenos Aires e do Rio Bacanga. Sobre estes ambientes, o estudo apontou o seguinte: [...] Quando se compara a flora registrada na década de 90 com aquela mais recente referente aos anos de 2003 e 2004, para as áreas de influência consideradas neste estudo, observa-se acentuada redução no número de espécies, provavelmente devido a impactos antrópicos provenientes do desmatamento, aterros, assoreamento dos manguezais. (CVRD, 2004, p. 17). c) A terceira área, a Área de Influência Indireta (AII), compreende a extensão da ilha de São Luís (observando-se que esta ilha é uma, entre outras, que compõem o arquipélago que forma a ilha maior, a Ilha do Maranhão) inserida no centro do Golfão Maranhense. Nesta área, o relatório enfoca a questão da “agua de lastro”66 retirada dos navios e despejada na Baía de São Marcos, pois, “[...] Sabese que a água de lastro, proveniente dos navios, está sendo considerada atualmente como uma das grandes veiculadoras de espécies exóticas e possivelmente tóxicas”. (CVRD, 2004, p. 11). Na descrição científica visando o diagnóstico do meio biótico, vale a pena considerar os trechos abaixo: [...] o manguezal da região apresenta impactos naturais e de origem humana [...] Dos impactos das atividades humanas, destacam-se, o corte de árvores e o assoreamento dos manguezais e cursos d´água decorrente do deslizamento das encostas adjacentes. “Àgua de Lastro” é a água captada nos portos pelos navios após o descarregamento. Quando os navios retornam a sua origem descarregados, é necessário fazer essa operação, pois, o peso da água visa dar estabilidade aos navios durante o percurso e facilitar as manobras de navegação. Entretanto, a transferência da água implica também na transferência de espécies exóticas gerando mudanças nas condições aquáticas da região invadida, levando à extinção de espécies nativas, transmissão de doenças, proliferação de bactérias. Este tipo de alteração provocado pela água de lastro também é chamado de “bioinvasão”. (ONG ÁGUA DE LASTRO BRASIL, 2009). 66 142 Registra-se, ainda, a ocorrência de películas de óleo proveniente das embarcações que trafegam pela Baía e pelos canais. (CVRD, 2004, p. 38). Veja-se que na área de manguezais, aos impactos ambientais constatados não se atribui a poluição ambiental a um ator social específico, sendo portanto um ator social generalizado, como sendo resultante das “atividades humanas” e “impactos antrópicos”. Figura 3 – Associação de Bostrychia, Caloglossa e Catenella crescendo sobre Rizóforos de Rhizophora Mangle67 Fonte: CVRD (2004) [...] Além da presença de óleo na área de abrangência do Porto do Itaquí, em decorrência de acidentes e lavagem porões. Como consequência, os resíduos são carreados pelas correntezas da Baía de São Marcos, indo aderir aos substratos disponíveis neste ecossistema (troncos, rizóforos, pneumatóforos das árvores do mangue) ou dispersar no meio aquático [...] (CVRD, 2004, p. 17) Entretanto, na medida em que a descrição se volta para as áreas de terra firme ou “áreas mais altas” habitadas por populações humanas, os atores locais são identificados pelas formas de utilização social – “roça”, “capoeira”, “campos agrícolas”, “agricultura de subsistência” – neste caso, a análise leva a conclusão de que estas atividades são as principais responsáveis pelas alterações do meio biótico. Nas áreas mais altas, onde as altitudes podem chegar a 50 metros, são comuns os campos agrícolas, os babaçuais e as capoeiras. Nestas áreas, os estragos causados pelo aumento do número e intensidade são mais evidentes; em consequência, é menor o número de espécies e de indivíduos por espécies no estrato arbóreo [...] As capoeiras nestas faixas de idade confirmam o uso intensivo e continuado da área na implantação de roças e o curto período de pousio dado ao solo local. O uso intensivo para roças limita o desenvolvimento dos indivíduos das espécies de sucessão secundária que, 67 Mantive o título da imagem do texto original. Os moradores dos povoados designam estas substâncias como um “lodo” que aparece nas árvores do manguezal. A essa substância se atribui a contaminação da vegetação do mangue e da água que por sua vez, contribui para o desaparecimento dos recursos pesqueiros tais como: peixe, camarão, caranguejo, ostra, entre outros. 143 frequentemente, não passam de suas fases iniciais de crescimento, sendo eliminados pelo desmatamento e pelas queimadas das roças. A presença humana, nas partes mais altas da área é indicada mais pela presença das roças do que por povoações [...] Nas áreas onde a capoeira jovem é dominante, não existe o estrato de epífetas, devido ao acentuado raleamento da vegetação; os cipós também são reduzidos nessas condições. Nas demais localidades, embora a agricultura de subsistência seja importante como fator de mudança na vegetação, o crescimento populacional assume também um papel importante pela instalação humana com suas derivações de uso e ocupação (CVRD, 2004, p. 55) O que se observa não é o fato de os agentes da pesquisa científica constatarem que a população local também contribui para o desmatamento, mas de omitir que há outros agentes que atuam com um potencial de destruição dos ecossistemas muito mais forte e que não são identificados. A natureza das questões e o contexto em que a peritagem científica é exercida, ou seja, no quadro de decisões políticas, produzem-se transgressões aos limites da ciência, que segundo Jerónimo (1996) podem ser caracterizadas por três ordens de questões. A primeira, é que “[...] os peritos transgridem as fronteiras das suas disciplinas, dando lugar a um espaço de articulação e síntese pluridisciplinar, porque não dispõem de uma resposta imediata à questão que lhes é colocada pelos decisores” (JERÓNIMO, 2006, p. 1148). A segunda é aquela na qual as opiniões expressas pelos peritos tendem a ultrapassar os parâmetros de objetividade de sua atividade (convicções pessoais, e ideologias institucionais entram em jogo). A última indicação assinalada pela autora diz respeito ao fato de que os peritos se dirigem não somente aos seus pares, mas também às audiências, exigindo que eles desenvolvam argumentos sensíveis às expectativas e experiências heterogêneas de um público misto. Nessas condições a peritagem torna-se vulnerável à contestação e conflituosa (JERÓNIMO, 2006). Evoco esta noção de “transgressão” assinalada no contexto apresentado pela autora no sentido de reforçar a descrição empírica do processo de instrumentalização do saber científico no caso do polo siderúrgico. Sobre a área do igarapé de Parna-Açu, por exemplo, localizado na AID do projeto do polo siderúrgico, vejamos como os pesquisadores descrevem os fatores socioeconômicos da comunidade Homônima. Do ponto de vista socioeconômico, sugere-se que os estoques das espécies do manguezal de Parna-Açu não suportariam a exploração comercial. Assim, esse ambiente não deve ser considerado auto-sustentável. Parna-Açu apresenta uma população rural de periferia urbana, voltada para o cultivo e extrativismo das áreas de terra firme, com a presença marcante de pessoas que praticam a pesca ou que mantém algum tipo de relação com o manguezal próximo a elas. [...] Observou-se, na grande maioria das entrevistas, que a população não tem consciência dos benefícios que o manguezal pode lhe trazer. As dificuldades de acesso à localidade, tanto pelos meios de transporte como pela ausência de recursos de educação e saúde, tornam essa comunidade especialmente necessitada dos trabalhos de educação e recuperação 144 ambiental como um caminho para a melhoria de sua qualidade de vida. [...] Quanto aos aspectos sociais, pôde-se observar que 52% da população tem como ocupação principal a pesca, 29% a lavoura, 5% é composta por comerciantes, 5% por agropecuarista, 5% por soldador e 5% por doméstica. A pesca é, assim, a principal fonte de renda para a sobrevivência destas famílias, sendo que suas rendas mensais variam de 0,5 salário mínimo até 3 salários mínimos [...] a relação dos entrevistados mostra que 48% destes utilizam o manguezal para coletar peixe e camarão, 5% coletam caranguejo, 9% não utilizam o manguezal, 38% coletam peixe camarão e madeira. [...] A comunidade de Parna-Açu é, portanto, altamente dependente do manguezal, fonte principal de seu sustento [...] 69% eliminam os dejetos ao ar livre, 29% possuem fossa e 5% é jogado no manguezal, não havendo nenhum recolhimento por parte da Prefeitura (CVRD, 2004, p. 83). Alguns trechos chamam atenção: “[...] o ambiente não deve ser considerado autosustentável”, uma vez que, “a população de Parna-Açú é rural de periferia urbana voltada para o cultivo e extrativismo das áreas de terra firme [...]” com “presença marcante de pessoas que praticam a pesca ou que mantém algum tipo de relação com o com o manguezal”. Em termos quantitativos, 52% da população tem como ocupação principal a pesca, 29% a lavoura. Em contraposição, afirma-se que “a população não tem consciência dos benefícios que o manguezal pode lhe trazer”. A posição do perito, assim como de equipes de cientistas, está referida, portanto, ao “contexto de sua convocação”, i, é, à decisão política e aos “constrangimentos indexados a essa finalidade” (JERÓNIMO, 2006, p. 1144). Como ator social, o cientista cumpre um papel importante na execução de finalidades traçadas antecipadamente, pois, a peritagem em grande medida se situa nestas condições. Neste contexto trata-se de um meio de justificar decisões politicamente planejadas, mas que são passíveis de questionamento. É nesta perspectiva que se situa a contestação ao polo siderúrgico de São Luís. 4.1.2.2 Reage São Luís - argumentos científicos de contestação ao polo siderúrgico. Como procurei mostrar nos capítulos anteriores, a mobilização política contrária à instalação do polo siderúrgico iniciou com a interpelação de lideranças dos povoados do Rio dos Cachorros e do Taim aos funcionários da Diagonal, empresa de consultoria contratada para fazer o levantamento das famílias em 2004, quando também impediram a demarcação da área e a marcação das casas com tinta preta. Posteriormente, estas lideranças buscaram aliados importantes para fortalecer a resistência, produzindo um movimento de reação mais amplo, o Reage São Luís. Desde as primeiras mobilizações no início de 2004 que convergiram na formação do Reage São Luís, um aspecto importante que caracteriza este processo de resistência é a coleta 145 e sistematização de dados como recurso discursivo para refutar nas audiências públicas a versão dos agentes do governo e da Companhia Vale sobre a viabilidade do polo siderúrgico. De imediato era necessário dar visibilidade aos povoados, pois os estudos do Governo do Maranhão e da Companhia Vale realizados até então enfatizavam os fatores bióticos. A visibilidade dos povoados passava pela amostragem numérica e que havia uma população historicamente estabelecida. Conforme Alberto Cantanhede. Nós tínhamos que mostrar números porque nos documentos oficiais do Estado, nós éramos um vazio demográfico, e eles falavam também de ocupações irregulares e davam até um recorte no tempo, as ocupações eram de 15 anos, ou seja, a gente tinha invadido a área nos últimos 15 anos, era o documento oficial da Secretaria de Planejamento. (Entrevista com Alberto Cantanhede realizada em 21 jun. 2014). Importante descrever esta experiência do Taim, pois demonstra a dinâmica deste processo quanto à produção da crítica socioambiental inovadora com o levantamento de dados e com a sistematização e produção de textos informativos e o fluxo de informação entre a coordenação do movimento e as entidades que o compuseram. Este material era analisado e transformado em textos que subsidiavam as discussões nas oficinas e reuniões de mobilização (descrevi estas atividades no item 4.1.1). A coordenação do Reage organizou uma equipe que se dedicou ao levantamento de dados sobre impactos ambientais e sociais provocados por siderúrgicas em outras regiões do Brasil, reunindo também estudos geológicos sobre a área do polo siderúrgico em São Luís, a partir dos quais foram produzidos textos informativos. Esta equipe contou com a participação de pesquisadores da área de geologia, de sociologia e de militantes que a partir dos dados chamaram atenção para os “impactos sociais” e os “riscos ambientais” em decorrência da instalação do polo siderúrgico. Sobre os “impactos sociais”, era necessário para o movimento que as lideranças dos povoados fizessem o que Alberto Cantanhede chamou de “o trabalho de casa”, ou seja, as lideranças mobilizadas contra o polo siderúrgico se deram conta de que era preciso ter dados estatístico sobre sua própria realidade, para dar visibilidade à sua história e ao seu modo de vida. A iniciativa imediata foi a realização de um importante levantamento do número de moradores de cada povoado situado dentro da área de influência do polo siderúrgico. 146 Quadro 10 – Povoados rurais que seriam deslocados para instalação do Polo Siderúrgico de São Luís-MA (2004) COMUNIDADES Cajueiro ÁREA 280 POPULAÇÃO 1.000 Vila Maranhão 800 8.000 Povoado Parnuaçú 320 600 Povoado Rio dos Cachorros 470 1.500 Povoado Taim 490 500 Povoado Porto Grande 120 1.200 Povoado Ananandiba 118 300 Collier ND 800 São Benedito ND 300 Madureira ND 80 Camboa dos Frades ND TOTAL 2.598 Fonte: Levantamento realizado pela Associação de Moradores do Taim (2004) 100 14.380 Este trabalho de levantamento foi coordenado pela Associação de Moradores do Taim e contou com uma equipe de formada por cinco pessoas. Esta equipe inicialmente fez levantamento de dados extraídos do mapa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e, na medida em que estes dados suscitaram dúvidas, foi necessário realizar um levantamento “in loco”. No povoado de Parna-Açu, por exemplo, a população registrada pelos dados levantados da Funasa em 2004 era de 800 pessoas, entretanto, os agentes do governo estadual apresentaram uma estimativa de que naquela localidade havia mais de mil moradores. No levantamento eles observaram que esse aumento se deu em função da especulação de terras e que se tratavam de residências provisórias em áreas que haviam sido ocupadas naquele momento. No caso do Porto Grande, a equipe verificou uma grande oscilação no número de moradores em função das atividades de uma cooperativa de pesca, a Cooperativa de Pescadores Artesanais do Maranhão (COPAMA), que atraiu temporariamente famílias de pescadores para aquele povoado. No Cajueiro e no Parna-Açu a equipe constatou o aumento de “invasões” em função da especulação imobiliária devido à possibilidade de instalação do polo siderúrgico. A oscilação do número de moradores, entretanto, foi verificada em todos os povoados o que exigiu desta equipe que fizesse uma seleção e contagem apenas das famílias que tinham moradia fixa. Neste caso, no levantamento foram desconsideradas as residências temporárias. É importante frisar que este levantamento foi realizado num momento de tensão e de conflito em diferentes níveis, em função dos interesses em jogo. Conflitos dos moradores contra a instalação do polo siderúrgico e também conflitos entre os moradores que se dividiam pelas diferentes opiniões com relação à instalação do polo siderúrgico. O governo estadual 147 através de seus órgãos e agentes de intermediação também precipitou os conflitos internos na medida em que recrutou moradores e lideranças como aliados. Nessa mesma ocasião se tentou criar novas associações, potencializando os conflitos já existentes na área. Na Vila Maranhão por exemplo, sendo numericamente o maior povoado com 8.000 moradores, este é dividido em núcleos de povoamento menores. Nestes núcleos menores também existem associações que foram politicamente divididas durante as audiências públicas. Como relatou uma liderança da área: [...] era o impacto que ia causar nesta área e em toda São Luís, como o governo tinha mais interesse vinha os representantes do governo dizendo que não tinha esse impacto grande que os ambientalistas estavam dizendo, que as pessoas iam ter trabalhos, ia chegar o progresso e ia ter mais trabalho, que moradores da área e também teve aquela importância das indenizações das pessoas que moravam naquele local, porque o que aconteceu na comunidade? Quando surgiu a história do polo siderúrgico, todos nós pensávamos odos nós, que íamos sair da área, isso aí foi a grande preocupação de comunitários, de lideranças [...] o que mais marcou mesmo foi os ambientalistas batendo em cima que não era prá deixar, porque todo mundo sofre com um empreendimento desse [...] o meu filho é técnico em meio ambiente, e ele falou: “mãe a senhora sabia que a nossa área vai aumentar de temperatura de dois graus a mais de temperatura? Eu disse: não”. E ele disse: “então fique sabendo, e todo mundo sofre com isso” [...]. Na Vila Maranhão são mais de 10 associações, aí uns apoiavam outros não, aí dividiu a comunidade, eu não aceito nunca, nunca vou aceitar, eles disseram coisas que a gente pensava que ia acontecer , mas na hora, na verdade nunca aconteceu até hoje [...] você vê que isso aí não é verdade não, essas empresas que estão aí bem poucas pessoas da comunidade trabalham, trabalham assim de ajudante, até porque quando chega não tem uma qualificação, nós maranhenses, nós ludovicenses somos carentes disso. Então, quando eles chegam já trazem seus trabalhadores, na Vila Maranhão tá cheio de gente diferente, gente de outros estados, gente de Pernambuco, da Bahia, daqui mesmo eu trabalho pra eles e os daqui que não tem qualificação, você trabalha de ajudante, ganha um salário mais nada. (Maria do Espírito Santo, líder comunitária da Vila Maranhão. Entrevista realizada em 7 dez. 2012). A presença de agentes do Governo do Maranhão e da Companhia Vale, ambientalistas, as comunidades, suas associações e seus conflitos internos, moradores antigos e moradores recém-chegados formava este amplo leque de atores sociais em torno do projeto do polo siderúrgico. É dentro dessa heterogeneidade de situações e de posições com relação ao projeto do polo que o Reage São Luís busca disputar espaço político. Não raro, dentro dos povoados havia também movimentos articulados por lideranças para apoiar o projeto do polo durante as audiências públicas. Estas alianças ocorreram não somente com lideranças estabelecidas, como também se formaram alianças com aqueles moradores recém-chegados, identificados pelos membros do Reage São Luís como “invasores” e que estavam temporariamente na área para fazerem números nas audiências. Esta situação se colocou como um desafio ao Reage São Luís por meio das lideranças locais para a disputa pela hegemonia interna. As associações de moradores foram o centro dessa disputa, tanto o caso da Vila Maranhão como o caso do povoado de Cajueiro ilustram essa situação. 148 No povoado Cajueiro, o grupo que realizava o levantamento se deparou com o aumento de moradores temporários, mas que estavam participando das mobilizações em favor do polo siderúrgico. Além disso, havia cisões internas no âmbito das instituições dos povoados, a exemplo da divisão política entre católicos e evangélicos. Embora não dispor de dados para analisar a fundo este conflito de cunho religioso, entretanto, é importante mencionar pela recorrência nos relatos das lideranças locais de que essa divisão refletiu na opinião das pessoas durante as reuniões. Relataram também que muitos evangélicos se manifestaram a favor do deslocamento e defenderam a siderurgia, justificando-se pelos benefícios que o empreendimento iria trazer em termos de indenizações e de geração de empregos. Tal situação política narrada pelas lideranças permite ter outras nuances que envolvem os conflitos deflagrados no interior dos povoados. Vale ressaltar que os dados coletados pela Associação de Moradores do Taim foram bastante utilizados pelo Reage São Luís no sentido de contestar os dados populacionais apresentados pelos estudos da Companhia Vale e do Governo do Maranhão. A inserção dos pesquisadores experts em questões ambientais e das instituições ligadas à área ambiental confere um diferencial na sustentação dos argumentos do Reage São Luís. A produção dos textos embasados em dados científicos teve importância crucial na produção da crítica à instalação do polo siderúrgico. Como destacou Alberto Cantanhede, [...] você tinha um grupo de estudiosos por trás das discussões, produzindo documentos para nós, e nós íamos para a prática, havia um estudo que nos baseamos nas consequências do polo Siderúrgico de Camaçarí, do Polo Siderúrgico de Volta Redonda, do Complexo Industrial de São Paulo, e nós começamos a discutir com base nisso, as formas de enfrentamento. Quadro 11 – Perfil da formação profissional da coordenação do Reage São Luís em 2004. NOME Jose G. Zagallo FORMAÇÃO PROFISSIONAL Advogado – membro da OAB-MA Edileia Pereira Geóloga – Prof. UFMA, Drª em Geologia Eduardo Padilha Geólogo – funcionário CAEMA Gilvanda Nunes Química – Prof. UFMA, Drª Química Suely Gonçalves Desenho Industrial/ Esp. Gestão de Cidades, CAEMA José Alcantara Júnior Fonte: levantamento documental sobre Reage São Luís Sociólogo – Prof. UFMA, Dr. Sociologia Neste quadro apresento os nomes recorrentes nos documentos, mas há outros profissionais, como é o caso por exemplo da presença de médicos e de assistentes sociais que fizeram parte do movimento. Considero também importância das instituições de pesquisa e 149 profissionais às quais uma parte desses profissionais estão ligados a exemplo da UFMA, da AGEMA e da ABAS-MA e do IMRH inseridas no processo de mobilização (ver o Quadro 5). Há dois importantes textos elaborados pelas entidades que compuseram o Movimento Reage São Luís. O primeiro, “Considerações sobre o risco geológico associado à implantação de um polo siderúrgico em um ambiente insular” foi produzido pela AGEMA e pelo IMRH (AGEMA; IMRH, 2004). O segundo, “Considerações preliminares sobre a implantação de um polo siderúrgico na Ilha de São Luís” (ZAGALLO et al, 2004), foi produzido pela coordenação do Reage São Luís, incluindo os pesquisadores engajados no movimento. Os dois textos são complementares e foram produzidos no mesmo contexto e serviram de instrumento de contestação à viabilidade social e ambiental do polo siderúrgico em São Luís (sobre o perfil dos pesquisadores ver Quadro 11). Minha intenção aqui, entretanto não é expor todos os fatores apontados nestas “considerações”, mas mostrar o teor dos argumentos apresentados nos textos que subsidiaram o conteúdo, a “substância” da contestação, principalmente sobre o impacto ambiental que não havia sido considerado pelos estudos encomendados pela Companhia Vale e pelo Governo do Maranhão na AID. Nos textos produzidos pelo Reage São Luís, os autores apresentam estudos sobre a dinâmica de “condução hidráulica”, visando dar sustentação à hipótese de que com a instalação do polo siderúrgico haveria “riscos” ambientais, considerando que a área pleiteada para a instalação do polo siderúrgico apresenta alta capacidade de infiltração do solo, e que se tratam de “área de recargas de aquíferos” e há também, as preocupações quanto às emissões de gases na atmosfera resultante da atividade siderúrgica. Essas “considerações preliminares” sobre a instalação do polo siderúrgico em São Luís, em grande parte foram elaboradas também a partir de [...] informações técnicas prestadas por técnicos da Companhia Vale do Rio Doce perante o Ministério Público Federal em audiência ocorrida no dia 5 de outubro de 2004, e pela empresa Phorum Consultoria e Pesquisas em Economia Ltda., em audiência ocorrida na Associação Comercial do Maranhão em 17 de novembro de 2004. (ZAGALLO et al, 2004). No documento “Considerações sobre o risco geológico associado à implantação de um polo siderúrgico em ambiente insular” (AGEMA; IMRH, 2004), foram utilizados os dados climatológicos coletados entre os anos de 1993 e 2002 pelo Departamento de Meteorologia da Aeronáutica do Aeroporto Mal. Cunha Machado de São Luís. A partir destes foram extraídas 150 as informações sobre a direção dos ventos na região em função das “emissões gasosas”68, uma vez que, [...] produção de ferro e aço está baseada fundamentalmente em procedimentos pirometalúrgicos, mediante a redução (retirada do oxigênio de uma combinação química) do minério de ferro, sendo o principal agente redutor o carbono, tanto que a classificação da liga ferro-carbono está baseada no teor de carbono, como exemplos, ferro gusa (1,7 a 6,67 % de teor de carbono) e aço (0,2 a 1,7 % de teor de carbono) [...] Nesse processo a contaminação do ar é o fator mais relevante, por gerar em grande quantidade e por conter numerosas emissões de contaminantes gasosos perigosos (metais pesados, como chumbo, mercúrio e cádmio) e de poeira (material particulado) (AGEMA; IMRH, 2004, p. 8). Com relação à água, o texto detalha informações sobre a chamada “água residuária” que apresenta substancias tóxicas como cianetos, fenóis e amoníaco. Alerta ainda quanto, [...] a utilização de água no sistema de refrigeração e nos sistemas de depuração de gases, surgem problemas de contaminação de águas residuais. Nos processos siderúrgicos também são produzidas escórias (sobras do minério na obtenção do ferro e aço) que devem ser aproveitadas para outros usos. Estes materiais devem ser rapidamente reutilizáveis ou armazenados adequadamente, caso contrário podem gerar acúmulo de poeira e lodo, levando a contaminação do ar, solo e água [...] (AGEMA; IMRH, 2004, p. 8). O Quadro comparativo (Quadro 12) entre a Siderúrgica de Tubarão em Vitória (ES) e a projeção dos impactos do polo siderúrgico de São Luís sintetiza a compreensão do Reage São Luís quanto ao projeto. No Brasil, a Siderúrgica de Tubarão em Vitória (ES) instalou-se na década de 70, na região metropolitana, pertencendo ao mesmo grupo CVRD. Os moradores da cidade sofrem com a poluição atmosférica e com aumento de doenças respiratórias, principalmente em crianças e idosos (AGEMA; IMRH, 2004, p. 11). “Emissões gasosas – compreende o monóxido de carbono, óxido de nitrogênio, dióxido de enxofre e compostos de flúor e em períodos curtos fenol, amoníaco, amina, compostos de cianetos e hidrocarbonetos aromáticos. Estas substâncias têm odor penetrante e efeitos lacrimejantes, causando danos ao sistema respiratório e às mucosas” (AGEMA; IMRH, 2004, p. 10). 68 151 Quadro 12 – Comparação de impactos sociais e ambientais de projetos siderúrgicos entre Vitória (ES) e São Luís (MA) VITÓRIA (ES) SÃO LUÍS (MA) Localização: estuário do Rio Santa Maria Localização: estuário do Rio Bacanga Projeto de Desenvolvimento: Década de 1970 – instalação da indústria siderúrgica na região metropolitana Projeto de desenvolvimento: Década de 1980 – instalação da Alumar; Em 2000 – instalação da usina de pelotização da Companhia Vale Produção de aço: 2003 – 3 milhões ton/ano 2004 – 5 milhões ton/ano 2006 – 7,5 milhões ton/ano IMPACTOS Fluxo migratório da população de baixa renda; Poluição do ar: poeira de carvão e ferro lançada no ar; Aumento de doenças respiratórias em crianças e velhos; Alto consumo de água – 2000 l/seg – para produção de 3 milhões ton/ano de placas de aço; Ocupação desordenada Produção de aço: 2007 – 3,7 milhões ton/ano 2009 – 7 milhões ton/ano IMPACTOS Fluxo migratório da população de baixa renda do interior do Estado; Aumento da densidade demográfica atualmente com 1000 hab/km2 Concentra 20% da população maranhense; Ocupação desordenada de várzeas, encostas. Ex. Bairro Coroadinho; Impermeabilização das áreas de recargas de aquífero; Falta de saneamento básico e poluição dos rios Bacanga, Anil, Paciência, Tibirí; Aumento do consumo de água, considerando que a cidade já sofre com o racionamento nos bairros: Coroadinho, Vinhais, Cohafuma, Lira, Centro Histórico e outros. Fonte: AGEMA; IMRH (2004) Quanto ao questionamento da viabilidade ambiental, vale salientar que o Reage São Luís se utilizou da tese de doutoramento em geociência da Professora Edilea Pereira, do Departamento de Geociências da UFMA69. A inserção desta pesquisa na estrutura de argumentação do Reage São Luís, como também, a própria autora do estudo como ativista no debate público e como expert sobre assuntos geológicos dentro do movimento de resistência contra o polo siderúrgico. Tive oportunidade de entrevistá-la, quando falou que seu objeto de estudo sofreu influência das discussões em torno do polo siderúrgico, uma vez que o estudo tratou da “Vulnerabilidade Natural à Contaminação do Solo e Aquífero”. O local onde foram feitas as amostragens de sua pesquisa, estava inserido na área que seria atingida pelas usinas siderúrgicas. Com o acirramento das discussões sobre as possibilidades ou a inviabilidade do projeto, os dados produzidos no trabalho de campo foram incorporados nas argumentações contra a viabilidade ambiental da siderurgia. Esta autora analisou o “nível de vulnerabilidade 69 Tese de Doutoramento intitulada Avaliação da Vulnerabilidade Natural à Contaminação do Solo e Aquífero do Reservatório Batatã – São Luís-MA (Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas. Rio Claro: SP, 2006). 152 de resíduos” (PEREIRA, 2006)70 no Reservatório do Batatã. A inserção deste estudo teve um duplo papel. Primeiro pela importância para subsidiar na arena argumentativa a contestação ao polo siderúrgico e também como instrumento de contraposição à versão dos estudos do governo e da Companhia Vale. Importância também da inserção da própria autora como conhecedora dos riscos ambientais que seriam gerados pelo polo siderúrgico no solo. O reconhecimento e o renome da instituição é importante, sendo professora de uma universidade que tem peso político local, naquela circunstância de disputa por legitimidade no “campo científico” foi fundamental para agregar força política ao movimento de contestação. O Reservatório do Batatã, onde a pesquisa foi realizada está situado a 4 km da área onde estava sendo planejada a instalação da siderurgia, e é localizado dentro da reserva florestal do Parque Estadual do Bacanga. Este reservatório é uma fonte de distribuição de água potável para uma população estimada em 200.000 habitantes. Nas proximidades da área pretendida para a siderurgia também está localizada a Área de Preservação Ambiental do Maracanã (APA), considerada como “áreas de recarga de aquíferos” com proteção prevista em Lei Estadual (Lei Estadual nº. 8149, de 5 de junho de 2004, cap. II, art 3º, item VIII) (AGEMA; IMRH, 2004). Sendo que os lençóis subterrâneos existentes na região são responsáveis pelo abastecimento de 40% do consumo de água da população de São Luís e o Reage São Luís enfatizou em seu argumento a preocupação com o abastecimento de água, pois, As três usinas pretendidas seriam idênticas em tamanho e processo de produção, demandando, cada uma, área de aproximadamente 700 hectares para implantação. [...] o consumo de água de cada uma destas usinas seria de 0,7 m³ por segundo, basicamente devido a perdas na forma de vapor (o consumo de água é muito superior, mas cerca de 99% da água consumida é reaproveitada). [...] atualmente a produção total de água potável do Sistema Italuís é de 1,6 m³ por segundo (captação no Rio Itapecuru, na altura do Município de Bacabeira-MA), sendo que a demanda de São Luís é de 2,5 m³ por segundo. A demanda excedente à produção do Sistema Italuís é atendida pelo Sistema autônomo do Batatã e por poços artesianos. [...] como a demanda total de água do pólo siderúrgico pretendido é de 2,4 m³ (que são convertidos em vapor), haveria a necessidade de ampliação do Sistema Italuís. (ZAGALLO et al, 2004, p. 15) Os riachos Arapopaí, Buenos Aires, Parna-Açú e Pindoba situados nas áreas de influência do projeto aparecem sob a denominação de “Igarapés” no “Diagnóstico do Meio Biótico para o Licenciamento Ambiental da Usina Siderúrgica de Placas da Companhia Vale do Rio Doce” (CVRD, 2004, p. 8) e embora se tenha dada atenção aos fatores bióticos nestes ecossistemas, os membros do Reage São Luís alegaram que este estudo omitiu informações importantes quanto à função social que estes ecossistemas desempenham para a população de 70 Entende-se por vulnerabilidade o conjunto de características do aquífero que determina o quanto ele poderá ser afetado pela ação de determinado poluente (SILVA, 2004 apud PEREIRA, 2006). 153 São Luís e que se tratam de áreas protegidas legalmente. Em contraposição, no estudo da AGEMA e o IMRH (2004, p. 3), estes riachos se constituem em uma área “característica de recarga de aquíferos”, com proteção prevista em lei (Lei Estadual nº. 8149, de 5 de junho de 2004, cap. II, art. 3°, item VIII). Pelas análises de solo (PEREIRA, 2006), esta área permite grande infiltração de águas pluviais. Há várias drenagens naturais que se conectam com a subbacia do Rio Bacanga (a leste) e pequenos cursos d´água como dos riachos Arapopai, Buenos Aires e Pindoba (a oeste), contribuintes da bacia oceânica (AGEMA; IMRAH, 2004). Uma vez afetados os fluxos de água no subsolo, a população teria um prejuízo ambiental incalculável. Nessa perspectiva o argumento do Reage São Luís concentrou sobre a necessidade de preservar essa área devido à sua importância ambiental para todo o município. A Companhia de Saneamento Ambiental do Maranhão (CAEMA) possui duas fontes de captação de água para abastecer o município de São Luís: os poços artesianos do Reservatório do Batatã localizado no Parque Estadual do Bacanga, (situado dentro da AID da planta siderúrgica), e o rio Itapecurú, através do Sistema Italuís instalado no município de Bacabeira (MA). Estas duas fontes respondem em média por 60 % do total da demanda do abastecimento de água no município de São Luís, enquanto que o restante, ou seja, cerca de 40 % da população utiliza poços artesianos. O consumo de água de São Luís em 2004 era de 2,5 metros cúbicos /segundos e a demanda total de água da siderurgia seria de 2,5 metros cúbicos, ou seja, para atender São Luís e a siderúrgica a ser implantada seria necessário que a CAEMA ampliasse a capacidade de abastecimento de água do Sistema Italuís, entretanto, em 2004, as obras de ampliação desse sistema se encontravam suspensas por determinação do Tribunal de Contas da União e da Justiça por questões de legalidade do contrato e por implicações ambientais (ZAGALLO et al, 2004). Ademais, a população do município de São Luís, em 2004, era de 870.028 pessoas, segundo o Censo Demográfico de 2000 (IBGE, 2000), e correspondia a 20% da população de todo o Estado do Maranhão em uma área que não chega a 0,5% da área do Estado. Com o provável fluxo migratório gerado com o polo siderúrgico, a cidade de São Luís não teria estrutura suficiente para suportar o impacto de um projeto siderúrgico daquela proporção, segundo apontaram a AGEMA e ABAS (2004). 4.1.3 O Campo Jurídico Neste item pretendo levantar os aspectos da contestação jurídica pelo Movimento Reage São Luís. Para isto, retomo o debate que foi suscitado em torno da proposta de alteração 154 da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº. 3.253 de 1992) em 2004. Posteriormente, procuro explorar alguns discursos selecionados das intervenções ocorridas em Audiências Públicas, enfatizando o conteúdo dos questionamentos. 4.1.3.1 As ações estatais A proposta de alteração da Lei de Zoneamento, como enfatizei anteriormente, se constituiu num passo importante das etapas iniciais do processo de negociação da área para instalação do polo siderúrgico e o debate sobre esta proposta foi antecedido de um longo período de discussões que remonta os anos de 2003 a 2005, envolvendo questões relativas ao Plano Diretor de São Luís. Portanto, o debate gerado sobre o pedido de alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de São Luís em 2004, está diretamente vinculado ao projeto de instalação do polo siderúrgico e é por este projeto potencializado. Pela ótica do plano governamental da Prefeitura de São Luís, fazia-se necessária a reformulação da Lei de Zoneamento, uma vez que, segundo o comunicado do Prefeito de São Luís à Câmara dos Vereadores, esta Lei “criou uma incompatibilidade com características próprias da área, quando sua vocação natural é nitidamente industrial”. (Tratei deste aspecto no subcapítulo 3.1). Esta argumentação em defesa da reformulação buscou se respaldar também pelo fato de que a área escolhida para a siderurgia é definida como parte do Distrito industrial de São Luís (DISAL), denominada de Área do Itaqui-Bacanga, segundo Decreto Estadual nº 3.589 de 1974 (SÃO LUÍS, 2004): [...] Acresce registrar que a ação conjunta da Prefeitura com o Governo do Estado realizou extenso estudo sócio-econômico sobre as comunidades que, levadas por pressões sociais as mais diversas, instalaram-se na área ao longo dos últimos quarenta anos. [...] entendendo seu papel na busca de medidas legais para viabilizar o desenvolvimento econômico da cidade, notadamente a promoção e geração de emprego e renda a seus munícipes a Prefeitura acompanha, junto ao Governo Estadual, a elaboração de propostas relacionadas à habitação, infra-estrutura e inclusão social a ser disponibilizada, à população, por ocasião da efetiva instalação de qualquer empreendimento industrial. [...] a alteração proposta para uso da área destinada a atividades industriais não colide com o atual Plano Diretor (Lei Municipal nº 3.253, de 29 de dezembro de 1992), que menciona, em suas Diretrizes Gerais, que a promoção de políticas de desenvolvimento econômico, é um dos itens pretendidos para a elevação do nível de emprego e qualidade de vida da população [...] Este é o objetivo da proposta que ora encaminhamos ao estudo dessa Colenda Casa, visando excluir usos incompatíveis ou indesejáveis próximos às áreas destinadas ao desenvolvimento industrial do Estado do Maranhão, além de reduzir conflitos sociais, promovendo a preservação ambiental da área e seu desenvolvimento econômico. (SÃO LUÍS, 2004, grifo nosso). 155 O Governo do Maranhão em 2001 como um ator político interessado na instalação do projeto siderúrgico, não somente pressionou a Prefeitura de São Luís para alterar a Lei de Zoneamento, como também, solicitou à SPU o recebimento das referidas áreas que foram decretadas como Zona Rural (Decretos Federais nº 66.227/70 e 78.129/76) (MARANHÃO, 2001). 4.1.3.2 Ações do Reage São Luís A remoção de 14.400 pessoas, de onze comunidades tradicionais na região, diminuição de emprego no turismo, na Zona Rural, aumento das doenças em decorrência da Siderurgia e outros impactos ambientais já verificados pelo Governo do Estado, aumento de custo, isso aqui nós resumimos um relatório elaborado pelo Dr. Paulo Hadad da FORUM, Consultoria Econômica que informa, aumento de custo na Construção Civil, ocupação de área de mangue, aumento de palafitas na Ilha, aumento de invasões, criação de uma área semelhante à baixada Fluminense em torno de São Luís, possibilidade de invasões nos Casarões do Centro Histórico e crescimento da população desempregada na nossa cidade. E um paradoxo do empreendimento que gera emprego, aumenta o desemprego, mas o que os Consultores nos dizem, é que o volume de pessoas que vai migrar para a nossa cidade vai ser superior ao volume de pessoas que o empreendimento tem condição, de absorver e empregar. (Guilherme Zagallo, advogado e militante do Movimento Reage São Luís. Trecho de sua intervenção em Audiência Pública em 26 jun. 2005) O Movimento Reage São Luís, como procurei situar anteriormente, é um movimento alinhado aos chamados “novos movimentos sociais”. No Brasil eles emergem dentro de um cenário político em que a sociedade civil brasileira lutava pelo processo de democratização (DOIMO, 1995). Para Gohn (1995) e Alonso, Costa e Maciel (2008), dentre estes “novos movimentos”, o movimento ambientalista ganhou força política com a aprovação da Constituição de 1988 quando vários canais institucionais ligados ao meio ambiente foram criados. Trata-se de um contexto em que se cria uma “estrutura de oportunidades políticas”, ilustrada por um lado, na formação de um “novo arcabouço jurídico” que instituiu o sistema de licenciamento ambiental. Em princípio este arcabouço jurídico garante juridicamente uma maior regulação no âmbito da gestão de impactos sociais e ambientais no setor público e privado. As autoras acima mencionadas assinalaram também que o contexto favoreceu um maior diálogo dos movimentos com a esfera governamental na medida em que a sociedade civil passou a exigir maior participação nos processos decisórios relativos ao meio ambiente. (ALONSO; COSTA; MACIEL, 2008). Com relação a este novo arcabouço jurídico, que pode ser exemplificado entre outros processos, a institucionalização da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6938 de 31 agosto de 1981) e posteriormente, com a Constituição Federal de 1988 (Art. 225, § 1º, Inciso 156 IV) que passou a exigir estudos prévios de impactos ambientais para a instalação de obras/atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente. Conforme informa o site do Ministério do Meio Ambiente: [...] O atual arcabouço jurídico-institucional do sistema de licenciamento ambiental brasileiro reproduz as experiências, reflexões e sistematização de mais de duas décadas consagradas à gestão de impactos ambientais de obras, atividades e projetos, nos setores público e privado. Sua consolidação, no âmbito das instituições e da sociedade, mantém-se como processo em construção, atento às transformações e demandas sociais e ao resguardo do princípio fundamental do meio ambiente ecologicamente equilibrado como patrimônio público, direito e dever de toda a coletividade. (BRASIL, 2014). Entretanto, a despeito deste arcabouço jurídico, é preciso salientar que nos últimos anos o governo brasileiro por meio de suas metas de desenvolvimento econômico visando ampliar sua projeção externa tem adotado medidas de flexibilização jurídica no sentido de atender as expectativas do mercado e de investidores internacionais dentro da lógica do mercado global. Dessa forma, se por um lado, este arcabouço jurídico-institucional pode formalmente representar alguma garantia de participação popular nos processos de decisão, por outro, no caso brasileiro, é o Estado o principal articulador e financiador dos interesses privados por meio de fortes subsídios e incentivos quem promove o “desmonte” dos instrumentos jurídicos de regulação; aqueles que foram garantidos constitucionalmente em grande medida pela pressão exercida dos movimentos e pela sociedade civil como um todo, ainda num período em que o país vivia sob o controle do regime ditatorial. Sobre este cenário de inserção do Brasil no mercado internacional nos últimos anos, Garzon, (2010, p. 91) fornece uma análise sobre as formas como as agências estatais e privadas se conectam no âmbito dos mercados, fazendo com que os governos adotem medidas que flexibilizam os processos regulatórios. O autor diz o seguinte: [...] O empenho do governo brasileiro no G-20 – em sua última versão – para reciclar a governabilidade da globalização e sua meta de tornar factível a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), replicando sua lógica no Programa de Aceleração do Crescimento Econômico (PAC), não deixa nenhuma margem de dúvida sobre a opção que o país adotou acerca de sua projeção externa. O BNDS, ao mesmo tempo que se torna o principal esteio das obras do PAC, vem cumprindo o mesmo papel com relação aos corredores do IIRSA, deslocando o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de sua posição matricial originária. A IIRSSA, não deve ser vista como um pacote de projetos físicos. Mais do que isso, ela é uma ferramenta política do imperialismo que se converte em matriz das políticas de infraestrutura dos Estados nacionais sul-americanos. A IIRSA passa a ser uma coordenação intergovernamental que referencia acordos político-econômicos, para aumentar a escala dos atuais corredores de exportação e criar novos. Na Amazônia, este jogo ainda é mais visível com o desmonte da regulamentação ambiental, com imposição de restrições às territorializações impeditivas (dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos) da territorialização única dos grandes negócios, e com a regularização da grilagem e do latifúndio e de todas as suas práticas e modos criminosos. 157 Este panorama descrito por Garzon (2010) nos ajuda a ter uma visão do contexto político e econômico em que o Reage São Luís foi inserido em 2004. Pela compreensão do processo de negociação entre as diferentes partes envolvidas no projeto do polo siderúrgico, há que se notar a gama de atores comerciais globais, a exemplo da Companhia Vale e a siderúrgica chinesa Baosteel com apoio do governo federal, do Governo do Maranhão e da Prefeitura de São Luís. O cenário permite também lançar uma visão sobre as formas como os processos globais interferem diretamente no interesse público no âmbito local. Ou como os processos políticos e econômicos locais estão conectados aos processos mais amplos cujas decisões dos atores globalizados e agencias do governo podem ter suas decisões modificadas na medida em que os atores locais fazem a confrontação. A mudança da Lei de Zoneamento proposto pela Prefeitura de São Luís que por sua vez estava sendo pressionada pelo governo estadual para atender a demanda dos investidores internacionais, certamente se conecta com este cenário de “desmonte” das regulações jurídicas concretamente vivenciada e enfrentado pelos atores sociais locais sobre os territórios que ocupam historicamente. O Reage São Luís se defrontou diretamente com a ação da Prefeitura de São Luís e principalmente com as agências do Governo do Maranhão. Por outro lado, estas estavam sendo pressionados pela Companhia Vale e seus parceiros internacionais, entre eles a maior siderúrgica chinesa, a Baosteel Shanghai Group Corporation para tomar as medidas administrativas quanto à desocupação da área para o início das obras do projeto siderúrgico. Embora algumas medidas já estivessem sido providenciadas (ver o Quadro 8), estavam pendentes os Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais (EIA-RIMAS) e o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). A inexistência destes estudos também se constituiu em objeto de contestação porque implicava em outros problemas ambientais, como a proximidade da planta do projeto com áreas de preservação. É dentro desse “arcabouço jurídico” que em grande medida o Reage São Luís buscou os fundamentos de sua contestação por meio das intervenções nas audiências públicas. Em linhas gerais, foram questionados os seguintes aspectos: a) O local indicado para instalação da planta siderúrgica (ver Mapa 03) está situado em uma área que é definida legalmente como na Zona Rural (Zona Rural Rio dos Cachorros), conforme a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992). Argumentou-se também que esta definição de Zona Rural, está respaldada pelos Decretos Federais nºs 66.227/70 158 e 78.129/76, incorporados posteriormente na Lei de Zoneamento de 1992. Ou seja, esta área é definida como Zona Rural desde os anos de 1970; b) Devido ao fato do projeto de Lei para alterar a Lei de Zoneamento estar associado à instalação do polo siderúrgico, o movimento exigiu o Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV, informados pelos artigos 36 e 37 do Estatuto da Cidade. Segundo o Estatuto da Cidade (artigos 182 e 183) a alteração da Lei de Zoneamento exige antecipadamente a revisão do Plano Diretor que, por sua vez, é legalmente condicionada à participação da sociedade civil por meio de seus representantes no Conselho da Cidade. Portanto, o pedido de alteração da Lei de Zoneamento sem a revisão do Plano Diretor e sem a participação do Conselho da Cidade se constituiu em objeto de contestação jurídica. c) Outro aspecto recorrente na documentação produzida pelo Reage diz respeito à proximidade do projeto do polo siderúrgico com áreas de preservação ambiental. Nas proximidades da planta siderúrgica estão situadas a Área de Preservação Ambiental do Maracanã – APA, considerada como “área de recarga de aquíferos” (lençóis subterrâneos) com proteção prevista em Lei Estadual (Lei 8149, de 05.06.2004, cap. II, art 3º, item VIII) e também, a 4 km, da área do projeto encontra-se a reserva florestal do Parque Estadual do Bacanga, onde se localiza o reservatório Batatã, fonte de distribuição de água potável para uma população estimada em 200.000 habitantes. Estas observações foram feitas por meio de informativos da AGEMA e pelo IMRH, entidades que fizeram parte do Movimento Reage São Luís e que tiveram participação na elaboração de textos com base em dados geológicos sobre a área (AGEMA; IMRH, 2004). Sendo considerada área de recarga de aquíferos, o Reage São Luís argumentou também que a APA do Maracanã se insere na Convenção de Ramsar71, do qual o Brasil é signatário (ZAGALLO, et al, 2004, p. 33). 71 A Convenção de Ramsar é um tratado intergovernamental de importância internacional que estabelece marcos para ações nacionais e para a cooperação entre países com o objetivo de promover a conservação e o uso racional de zonas úmidas no mundo. Essas ações estão fundamentadas no reconhecimento, pelos países signatários da Convenção, da importância ecológica e do valor social, econômico, cultural, científico e recreativo de tais áreas. Estabelecida em fevereiro de 1971, na cidade iraniana de Ramsar, está em vigor desde 21 de dezembro de 1975, e seu tempo de vigência é indeterminado. O Brasil assinou esta Convenção em setembro de 1993, ratificando-a três anos depois. Conforme a Convenção de Ramsar, essa decisão possibilita ao país ter acesso a benefícios como cooperação técnica e apoio financeiro para promover a utilização dos recursos naturais das zonas úmidas de forma sustentável, favorecendo a implantação, em tais áreas, de um modelo de desenvolvimento que proporcione qualidade de vida aos seus habitantes. (BRASIL, c2014a) 159 4.1.3.3 Relatos de intervenções em audiências públicas Como observou Lima (2009) sobre a experiência do Reage São Luís, o modelo de participação no formato das audiências públicas é restritivo e os conflitos existentes em torno da implantação destes projetos privados são ressignificados e notabilizam-se estratégias de consensos que são forjados pelos agentes politicamente mais dotados de poder. Acserald (2006) em sua análise observa também que: [...] Os manuais que disseminam os novos formatos organizativos para enfrentar as contradições ambientais do desenvolvimento adotam modelos formais de adesão a uma consciência ambiental abstrata, desconectados dos conflitos ambientais concretos que desafiam aqueles atores dispostos a democratizar o meio ambiente. (ACSERALD, 2006, p. 23). O que de fato interessa “resgatar” neste “campo jurídico” é a dimensão política, e isto, implica em trazer à cena da “arena” a dimensão do conflito socioambiental. A proposta de alteração da Lei de Zoneamento é uma decisão política, que no processo de discussão o poder executivo procurou estrategicamente aprovar com o apoio da Câmara Municipal, como sendo uma mudança somente técnico-jurídica do processo de zoneamento, e que a “questão social” seria também uma questão de planejamento técnico e de gestão. Dessa forma, a análise deste processo deve ser pensada pela perspectiva da conflitualidade, na qual os sujeitos atingidos são protagonistas: comunidades mobilizadas politicamente e suas respectivas formas de ação e canais de participação que são criados no quadro de oportunidades, considerando o caráter restritivo destes espaços públicos, sejam eles de caráter consultivos, no caso das audiências públicas, sejam eles de caráter deliberativos, no caso da Sessão da Câmara Municipal de São Luís que aprovou o Projeto de Lei de alteração do Zoneamento de São Luís para aumentar a área industrial e reduzir a Zona Rural. A realização das audiências públicas no processo de revisão da Legislação Urbanística, do Plano Diretor, e Lei de Zoneamento inicia por meio de Decretos do Prefeito Municipal, instituídos por Regimento Interno, dentro das diretrizes da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade e inciso VI do artigo 3º da Lei Orgânica do Município de São Luís. Segundo, o Estatuto da Cidade, a realização de uma audiência está condicionada à sua publicidade por meio de editais, o que permite garantir a participação da população nas decisões. Observando o Decreto nº 27.030 de 1 de dezembro de 2004 (SÃO LUÍS, 2004), se lê o seguinte: Art. 2º – Toda Audiência Pública é aberta a qualquer pessoa ou entidade interessada, tendo por objetivo dar conhecimento, informar e esclarecer a opinião pública sobre as condições gerais do processo de revisão da Legislação Urbanística do Município de 160 São Luís, bem como dirimir dúvidas, colher subsídios, sugestões e contribuições de forma ampla de toda a sociedade. Art. 3º – Datas, Calendários e Horários de cada Audiência Pública deverão ser alvo de Edital próprio, publicados nos meios de comunicação locais, com a antecedência mínima de 5 (cinco) dias ao dia de sua realização. Para a realização das Audiências Públicas coordenadas pela Prefeitura de São Luís, constam nos Editais de Convocação as seguintes informações, conforme o trecho abaixo extraído do Edital do dia 2 de dezembro de 2004: [...] O Prefeito Municipal de São Luís, no uso de suas atribuições legais, com o objetivo de dar conhecimento, informar e esclarecer a opinião pública sobre as condições gerais do processo de revisão da Legislação [...] bem como dirimir dúvidas, colher subsídios, sugestões, contribuições de forma ampla da população, entidades de classe e da sociedade civil organizada [...]. As audiências foram coordenadas por uma Mesa Diretora nomeada pelo Prefeito Municipal, composta pelo quadro técnico do município. Seguindo as orientações do Decreto acima mencionado, a Mesa Diretora foi formada pelo Presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento do Município de São Luís (IPLAM), o urbanista Marcelo Espírito Santo, pelo Secretário de Terras, Habitação Urbanismo e Fiscalização Urbana, Roberto Furtado e o Chefe de Assessoria Especial, João Rebelo. Já nas audiências públicas da Câmara dos Vereadores os trabalhos foram conduzidos pelo Presidente da Câmara em conjunto com as Comissões da Câmara compostas por vereadores, conforme o seu regimento interno. Nos arquivos do Reage São Luís, estão registradas 13 audiências públicas entre 08 de março e 01 de setembro de 2005. Entretanto, enfatizo a audiência planejada pela Prefeitura de São Luís para o dia 13 de dezembro de 2004 no povoado de Vila Maranhão. Embora não tenha tido acesso à ata, esta Audiência é emblemática uma vez que foi cancelada pela pressão do movimento (conforme descrevi no item 4.1.1). Consta nos arquivos do Reage São Luís que nesta primeira audiência o movimento mobilizou cerca de 570 pessoas e conforme registrou o “Jornal O Estado do Maranhão”, em 14 de dezembro de 2004, o cancelamento resultou da pressão de lideranças dos povoados rurais e do Reage São Luís, uma vez que mais de 400 pessoas ficaram do lado de fora do prédio da Igreja de São Joaquim do Bacanga na Vila Maranhão. Tal situação levou os manifestantes e membros do Reage São Luís a questionarem as condições de realização da audiência num espaço que comprometera a participação dos moradores, neste caso, o não cumprimento dos regulamentos acima mencionados. Forçar o adiamento das audiências, questionando o não cumprimento do que prevê os regulamentos (decretos e editais) foi uma das importantes estratégias dos representantes do Reage São Luís, sobretudo, aqueles membros com formação na área jurídica, que orientavam a base social do movimento nas inscrições, a exemplo das intervenções do advogado Guilherme 161 Zagallo e de Creuzamar Pinho, conhecedora do Estatuto da Cidade pela experiência no Movimento de Moradia Popular em São Luís. Então, [...] foi um enfrentamento muito difícil, e aí com todo esse processo, com esse calendário que foi se esticando mais que elástico e a gente inventava novas coisas, a gente inventava um novo parágrafo, e aí isso foi se alongando [...] havia um calendário de audiência pré-estabelecido, o que não estava previsto era o processo de organização, de articulação da sociedade civil para estar nessas audiências, porque aí nós montamos uma agenda paralela de acordo com as audiências já previstas, uma agenda de articulação e mobilização, então nas audiências só dava nós, então não tinha como acontecer audiência e eram diversos movimentos. Toda audiência dava logo um jeito de se inscrever, bom, mas segundo o estatuto, o parágrafo tal, essa audiência não pode acontecer, por isso, por isso... (Creuzamar Pinho, Movimento Nacional por Moradia Popular, membro do Reage São Luís. Entrevista em 23 dez. 2012) José Raimundo72 do Movimento Nacional por Moradia Popular, sobre esta experiência diz que “[...] andava com o Estatuto debaixo do braço, virou bíblia nessa época [...]”, porque era necessário intervir num processo que segundo ele estava dado certo de que seria irreversível barrar a instalação do polo siderúrgico no Maranhão, face os poderes que estavam envolvidos. Uma das estratégias era “atrasar o processo e ganhar tempo” para “desgastar” a força política da proposta de conversão das áreas rurais em áreas industriais. Figura 4 – Manifestação dos povoados rurais e do Reage São Luís em Audiência Pública na Vila Maranhão em 13 de dezembro de 2004 Fonte: Reprodução/ Jornal o Estado do Maranhão (2004b). 72 Membro do Reage São Luís e da coordenação do Movimento Nacional de Moradia Popular. Entrevista em 23 dez. 2012. 162 Vejamos os depoimentos registrados pelo “Jornal O Estado do Maranhão” (2004a) nesta Audiência de 13 de dezembro de 2004: [...] De acordo com Creuzamar Pinho, coordenadora da União pela Moradia Popular, a convocação para a audiência fere os artigos do Estatuto das Cidades que tratam do Estudo de Impacto de Vizinhança. “Prefeitura também infringiu os aspectos da divulgação e publicidade da audiência que foi restrita à veiculação do edital em um único dia e num só veículo de comunicação. [...] para o Promotor Fernando Barreto que encaminhou um documento ao Prefeito Tadeu palácio com uma série de procedimentos referentes sobre uma pontual alteração na lei de Zoneamento, disse que o município demonstrou na audiência que não tem habilidade para dialogar com a população. “Não souberam conversar e acabaram por contribuir para um problema imenso. Para o Promotor de Proteção ao Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural de São Luís, além das mobilizações das comunidades, o Estatuto da Cidade impôs ao município essa derrota. “A Legislação do estatuto das Cidades é clara, a população terá que ser ouvida, não tem outro jeito” (JORNAL O ESTADO DO MARANHÃO, 2004b). Quadro 13 – Audiência Pública sobre Alteração do Zoneamento de São Luís (2004-2005) Data 13.12.04. Obs. Audiência cancelada Local Vila Maranhão Assunto Alteração da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Órgão Responsável Prefeitura de São Luís 08.03.05 Vila Maranhão “ Prefeitura de São Luís 28.03.05 Min. Pub. Estadual “ Prefeitura de São Luís 23.06.05 Câm. Vereadores “ Câm. Vereadores 24.06.05 Câm. Vereadores “ Câm. Vereadores 27.06.05 Câm. Vereadores “ Câm. Vereadores 28.06.05 Câm. Vereadores “ Câm. Vereadores 30.06.05 Câm. Vereadores “ Câm. Vereadores 25.08.05 Rio dos Cachorros “ Prefeitura de São Luís 26.08.05 Bairro São Francisco “ Prefeitura de São Luís 29.08.05 UFMA “ Prefeitura de São Luís 30.08.05 Vila Maranhão “ Prefeitura de São Luís 31.08.05 Povoado Maracanã “ Prefeitura de São Luís “ Prefeitura de São Luís 01.09.05 Seminário Santo Antonio Fonte: Levantamento documental/Arquivos do Reage São Luís Das 13 audiências efetivamente realizadas entre 08 de março e 01 de setembro de 2005, tive acesso apenas a 07 atas a partir das quais fiz um mapeamento das intervenções e selecionei alguns trechos que considerei como mais significativos. Outro documento importante que tive acesso foi a ata da Sessão na Câmara Municipal de São Luís (37ª Sessão Ordinária) realizada em 30 de novembro de 2005. Nesta Sessão foi discutido e aprovado o Projeto de Lei 163 para alterar a Lei de Zoneamento. Dada a repercussão desta Sessão, farei uma síntese sobre a mesma mais adiante. O objetivo das audiências públicas foi consultar a população sobre o pedido de alteração da Lei de Zoneamento pelo prefeito de São Luís. No entanto, com as intervenções o debate foi direcionado para a instalação do polo siderúrgico. Como procuro mostrar adiante uma das estratégias discursivas do Reage foi associar as audiências públicas aos objetivos da Prefeitura de São Luís para converter a Zona Rural em Zona Industrial. Ao serem questionados, a Mesa Diretora e os representantes do governo estadual justificaram que o pedido de alteração do prefeito atendia a uma demanda legal e técnica do zoneamento municipal em função da ampliação dos usos, pois, a existência de Zona Rural e Residencial naquela área havia gerado um problema de “incompatibilidade de usos”. Na verdade esse foi o tom das discussões que no geral caracterizaram as audiências públicas. É válido assinalar que entre o final de 2004 e ao longo do ano de 2005 já havia uma crítica social bastante consistente quanto às repercussões negativas do polo siderúrgico dentro do Movimento Reage São Luís que foi difundida ao público em geral. Para aqueles cidadãos interessados no debate sobre a revisão do Plano Diretor de São Luís, a proposta de alteração da Lei de Zoneamento e de instalação de um polo siderúrgico são fatores indissociáveis, pois: a) A área destinada às instalações de três usinas siderúrgicas previstas seria de 2.471,71 hectares, localizados entre o Porto do Itaqui e o povoado de Rio dos Cachorros, na região administrativa municipal do Itaqui/Bacanga e que, em 2004, foi declarada como de utilidade pública para fins de desapropriação pelo governo do Estado do Maranhão (Decretos nº 20.727-DO, de 30 de agosto de 2004, e nº 20.781-DO, de 29 de setembro de 2004); b) Pelo projeto original do polo siderúrgico a área pretendida era de 2.471,71 ha entre o Porto de Itaqui e povoado de Rio dos Cachorros, situada na Zona Rural do município de São Luís, mas a Constituição do Estado do Maranhão somente autoriza a concessão de terras públicas até o limite de 1.000 hectares. Para utilizar toda a área pretendida, seria necessária uma autorização da Assembleia Legislativa. (DHESCA, 2006, p. 19). c) Havia o pedido formal em Carta enviada pelo Prefeito Tadeu Palácio ao presidente da Câmara dos Vereadores em 2004 “[...] com vistas à possibilidade de implantação do polo siderúrgico o Governo do Estado solicitou formalmente 164 à Prefeitura de São Luís, em setembro de 2004, que fosse estudada a reformulação da Lei de Zoneamento [...]”. (SÃO LUÍS, 2004). Interessante notar que, mesmo diante dos documentos em mãos pelos membros do Reage São Luís, o representante da prefeitura explica as razões do pedido de alteração pelo critério técnico e jurídico, tal como na Audiência do dia 08 de março de 2004 na Vila Maranhão, quando inicia seu discurso dizendo que “A Lei 3.253 [...] de Zoneamento acabou causando um problema jurídico ao lançar sobre as áreas do Distrito Industrial de São Luís, trechos de uma Zona Residencial, trechos da chamada Zona Rural”. O que justifica, portanto, segundo o Projeto de Lei 063/05 de 27 de abril de 2005 e a explanação do Presidente da Mesa Diretora da Audiência do dia 08 de março de 2005, são os seguintes aspectos73: a) “[...] ampliação das possibilidades de desenvolvimento socio-econômico da cidade incentivando a questão industrial”, pois, “[...] a correção de um erro político causado pela legislação de 1992, que lançou sobre determinadas áreas do sul da ilha um zoneamento rural [...]”. b) “[...] a proposta de alteração que a prefeitura apresenta neste momento é a transformação da Zona Rural, a chamada ZR1 – Rio dos Cachorros em Zona Industrial 3, a chamada ZI3 – Itaquí [...]74. Os documentos apresentados nas audiências para esclarecer ao público presente, referentes à Lei de Zoneamento, são constituídos de uma série mapas e de códigos que indicam as Zonas (Zona Rural, Zona Industrial, Zona de Interesse Social, Zona Residencial, Zona Turística, além de suas enumerações, assim como, as chamadas Glebas e suas respectivas subdivisões) de modo que, nem sempre é de fácil compreensão ao público em geral. Utilizome da ata de Audiência do dia 08 de março de 2005 que teve a presença de 496 pessoas, conforme a lista de assinatura documentada em ata. A primeira intervenção nesta audiência foi sobre a necessidade de mudança na forma da linguagem técnica sobre o processo de mudança no zoneamento. 73 Com relação ao conteúdo dos trechos extraídos das atas de audiências públicas, procurei manter a forma original uma vez que se trata de uma fonte de pesquisa; razão pela qual possíveis erros de digitação ou de gramática podem ser percebidos. 74 Registro de Ata de Audiência Pública sobre o pedido de alteração do Zoneamento de São Luís no povoado de Vila Maranhão em 08.03.04. 165 Como representante da sociedade e em nome da Constituição peço à mesa diretora dos trabalhos que cumpra com mais exatidão o Estatuto da Cidade no que diz respeito à consultoria pública. A audiência pública [...] é de natureza constitutiva, a opinião dos senhores é relevante [...] não é de meros expectadores, por isso, os senhores têm direito de tomar conhecimento claro do por que desta alteração. A argumentação foi apenas jurídica e eu gostaria que fossem colocados os outros aspectos sociais e econômicos que motivam esta preposição e pediria ao doutor José Marcelo que fosse mais claro com relação às consequências desta alteração. Porque aqui a população está entendendo o que é ZI3, ZR10. Tenho absoluta certeza que todos entenderam o que está lá, mas o que está em dúvida em todas as mentes aqui é quem está envolvido, o bairro de quem, a casa de quem? e qual a consequência que traz esta alteração? Porque esta é a função da audiência pública, esta é função que está no Estatuto da Cidade. É garantir a participação popular, é dar a eles o poder de exercer a democracia direta, que está na constituição, que está no Estatuto da Cidade [...] eu pediria que vossa excelência fosse um pouco mais claro com a população, antes de abrir para o debate. (Fernando Barreto, Promotor de Justiça de Meio Ambiente). O questionamento inicial do Promotor de Justiça foi seguido do advogado e militante do Reage São Luís Guilherme Zagallo que levantou uma série de questões relativas aos procedimentos da Audiência: [...] O edital de convocação para esta audiência fala da criação da Zona Industrial 3 [...] temos uma declaração do ministério público estadual informando que os documentos formalmente disponibilizados para consulta pelo município para esta audiência são os mesmos da audiência designada para o dia 3 de dezembro [...] em 16 de dezembro de 2004 foi protocolado na Prefeitura de São Luís requerimento subscrito por mais de 50 pessoas na forma de decreto 27030 solicitando realização de audiências públicas nos demais bairros e na região central de São Luís em face da limitação do transporte público para Vila Maranhão e o interesse da mudança da Lei de Zoneamento será de todos os moradores de São Luís [...] Estas duas questões foram encaminhadas ao Ministério Público e o Ministério Público tentou junto ao município obter a retificação do edital [...] o município não formalizou ao Ministério Público a proposta de alteração que foi apresentada agora da Zona Industrial 3 e tão pouco deu uma resposta sobre o pedido de mais de uma audiência pública [...] pediria ao Dr. Barreto que se pronunciasse sobre essas questões, que podem tornar o trabalho feito aqui hoje, em nulidade, que venha inclusive ser discutidas na justiça. (Guilherme Zagallo, advogado e militante do Reage São Luís) A intervenção seguinte foi da representante da União Nacional de Moradia Popular e inserida também no debate sobre o Plano Diretor de São Luís. [...] Nós do Conselho fizemos uma mesa no Sindicato dos Bancários [...] discutimos a revisão do Plano Diretor. O plano tem 12 anos e a prefeitura não se dispõe a discutir [...] parece que esta audiência puxada para cá, parece que é para discutir a questão apenas da Vila Maranhão [...] é um problema que afeta todos nós que moramos em São Luís. A mudança na Lei de Zoneamento não é só uma mudançazinha, é mudar todo o funcionamento da cidade. Enquanto Conselheira Nacional das Cidades, exijo que seja suspensa esta audiência e que seja estabelecido na cidade um calendário de audiências, porque no Estatuto da Cidade, no artigo 36 e 38 exige que a Prefeitura disponibilize para nós um Estudo de Impacto de Vizinhança e um Estudo de Impacto Ambiental [...] então exigimos o cumprimento da Lei Federal, o Estatuto das Cidades, aprovada e apoiada por nós e não permitimos que a Lei seja desrespeitada pela Prefeitura [...] (Creuzamar Pinho, Movimento Nacional por Moradia Popular e membro do Reage São Luís) 166 Repetidamente o Presidente da Mesa Diretora retomou em suas respostas os aspectos técnicos para justificar a alteração da Lei. Não se discute a aprovação de uma siderúrgica, da indústria A ou B, por isso justificamos a alteração de uma Zona Industrial ampla e igual para todo e qualquer tipo de indústria. Com relação ao uso incompatível ou compatível, a Prefeitura não licencia indústria, ela trabalha com o uso de solo, permitindo determinados uso, e a indústria, se ela é incômoda, se ela é poluente ou não, passa por uma instância superior e, neste momento a Prefeitura não está avaliando se uma indústria vai de fato se instalar ou não. A resposta é ampliar as possibilidades e oferecer seja lá qual indústria for, as possibilidades de futuras instalações na cidade [...] A Prefeitura não está avaliando nenhum projeto específico nesta alteração da Lei de Zoneamento. (Marcelo do Espírito Santo, Presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento do Município de São Luís, Presidente da Mesa Diretora da Audiência Pública). Após a justificativa do representante da Prefeitura com relação aos questionamentos, na sequência estão documentadas duas intervenções de apoio ao propósito da prefeitura, nas quais se nota a questão do desenvolvimento econômico associado ao emprego a ser gerado pelo polo. Na sequência, quatro intervenções que apresentam críticas ao polo siderúrgico, sendo que a primeira retoma os exemplos da Alumar e da Companhia Vale, a segunda que enfatiza os impactos ambientais e a terceira e quarta que colocam em questão o fato do representante da Prefeitura dizer que a alteração da Lei de Zoneamento está dissociada do projeto do polo siderúrgico, e também sobre a legislação ambiental: [...] Esta reunião é uma opinião [...] está se discutindo o desenvolvimento sócioeconômico que, ao meu ver vem beneficiar a todos nós que moramos nesta região. Sou nascido e criado aqui, já fiz muitas coisas e hoje eu tenho um emprego graças aos projetos da Vale do Rio Doce. Pensem que nós podemos ter mais e ter um desenvolvimento sim para todos nós. (Geraldo, Comunidade de São Benedito) É lamentável o apoio que nós estamos tendo de Zagallo e de alguns deputados que aqui estão. Eu gostaria que este apoio tivesse antes vendo as necessidades que nós temos na comunidade.(Zé Augusto Vila Conceição) Quero dizer prá vocês que já temos duas empresas grandes que é a Alumar e a CVRD [...] quem aqui é empregado dessas duas empresas? Aqui estamos com vários parlamentares [...] trabalhei no restaurante na implantação da CVRD, quando terminou a implantação fui despedida, tenho filhos jovens que até hoje não conseguiram uma vaga na CVRD e são formados, isso é ilusão [...] Essas empresas multinacionais que vem se instalar no Maranhão, que vejam não os trabalhos, mas os danos que vêm causando na nossa área, porque emprego prá população pobre não tem [...] o nosso Maranhão é um antro de doenças e prostituição porque eu sou testemunha quando foram construir aqui a CVRD e a Alumar, as filhas dos pobres [...] foram se prostituindo [...] não vai ter nada de emprego prá pobre(Maria da Fita, Moradora do Sá Viana) Primeiro eu queria fazer uma pergunta: quantas vezes você já andou na área ItaquiBacanga? Você conhece esta área? Você sabia que é uma área de mangue? Você sabia que é uma área de preservação ambiental? Vou fazer outra pergunta: o prefeito, o governador do estado [...] por que eles não dão uma das suas fazendas que é maior do que a área Iraqui-Bacanga? Eu gostaria de perguntar qual o benefício que vai trazer 167 para São Luís? vai ficar 15 anos sem pagar impostos. Eu pergunto qual o benefício dessa siderurgia para São Luís? (Sr José, morador do Rio dos Cachorros) A Prefeitura que é obrigada a fazer a revisão do Plano Diretor até outubro de 2006 está atravancando o processo e está fazendo a revisão parcial da lei de Zoneamento. As outras áreas da cidade não vão ser revistas? Nós não vamos discutir, por exemplo, as zonas de interesse social, as zonas de proteção ambiental, as zonas de interesse turístico? Nós não vamos discutir a nossa cidade, porque nós estamos fazendo a revisão de uma lei complementar sem discutir o nosso Plano Diretor, lá sim, nós vamos discutir a cidade como um todo, discutir o desenvolvimento da cidade. A outra questão, o senhor não pode se recusar a responder as questões do polo siderúrgico porque quando saiu o edital a documentação disponibilizada é sobre o polo siderúrgico. Esta audiência aqui é uma enganação, pois nós não temos documentos que justifiquem a alteração [...] este documento não chegou às mãos dos cidadãos [...] A outra questão: por que a Prefeitura está na contramão da revisão do Plano Diretor, contrariando uma orientação do Governo Federal e do Estatuto da Cidade que dizem que a revisão do Plano Diretor tem de ser participativo. Por que estamos sendo excluídos? (Suely Gonçalves, funcionária pública, membro do Reage São Luís) A prefeitura está desrespeitando as Leis [...} é necessário que seja feito um estudo de impacto ambiental para verificar as características da área. E digo, se esta zona criada há 20 anos, tivesse as leis ambientais ela hoje não seria aqui, porque estamos numa área onde as características físicas do solo não permitem a instalação de indústrias pesadas, apenas indústrias limpas. Não pensem que nós não estamos percebendo o que vocês estão fazendo, existem leis estaduais, a lei dos recursos hídricos, por exemplo, prevê no artigo 30 estabelece total proteção às áreas com características topográficas [...] prevê a preservação de toda esta área: Rio dos Cachorros, Taim que jamais poderão ser zona industrial. O desenvolvimento é necessário, mas deve estar em harmonia com o meio ambiente. (Edilea Pereira, Geóloga, Professora da UFMA, membro do Reage São Luís). Conforme o Quadro 13 foram realizadas 05 audiências na Câmara Municipal de São Luís nos dias 23, 24, 27, 28, 30 de junho de 2005. Todas, sobre o Projeto de Lei 063/65 de 27 de abril de 2005 enviado pelo Prefeito de São Luís à Câmara dos Vereadores para ser submetido à votação. A primeira desta sequência de audiências, ou seja, em 23 de junho de 2005 ocorreu sem a presença dos representantes da Prefeitura, gerando críticas dos presentes uma vez que o poder executivo como autor do projeto deveria prestar esclarecimentos conforme o que estabelecem os editais. Resumo o teor deste debate em torno de duas intervenções: a do advogado Guilherme Zagallo do Reage São Luís e a do Engenheiro Deusdedith Soares, representante da Secretaria Estadual de Indústria e Comércio que expôs o projeto de habitação da população que seria remanejada. Zagallo, expôs o seguinte: [...] Movimento Reage de São Luís é um movimento composto por cerca de 40 Entidades das Sociedades Civis, Entidades das mais diversas: Sindicatos, Entidades Cientificas como é SBPC, entidades de classe como Conselho Regional de Medicina, CUT é um movimento bastante plural, Comissão de Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Luís, não é contra a implantação do Polo Siderúrgico no Estado do Maranhão, mas acha, é tecnicamente impossível que essa instalação ocorra na cidade de São Luís, ou melhor, dizendo, na Ilha de São Luís sem que isso cause grave prejuízo a população. Tanto da população que vai ser removida pra implantação do empreendimento, quanto à população do restante da Ilha de São Luís. Nós já 168 mostramos aqui em outras apresentações, que o Estado sabe, conhece detalhes da planta, aqui é a área do Cajueiro com a planta da Usina, ou seja, o Estado em que pese em determinado momento ter dito que não reconhecia depois, sabe, é uma planta enorme, mais de 1 km de extensão cada uma delas. Este é o desenho em detalhe, aqui é o Porto de Itaqui aqui é o Porto do Polo Siderúrgico, que vai ter que ser licenciado ainda é um porto grande, são duas pontes, uma de 900 metros de outra de 1.200 metros sobre o mar. As três plantas, a primeira a Usina, a segunda e a terceira cada uma delas pra 7 milhões e meio de toneladas, mais duas Usinas de produção de ferro gusa [...] já consta nos documentos do Governo do Estado, de como será a produção do carvão, minério de ferro, coquerias, sinterização, alto forno enfim, o processo resumindo com as quantidades em milhares de toneladas de insumo que serão utilizadas, de carvão mineral, de minério de ferro, de fundentes que no caso é calcário [...] já fizemos uma discussão na Audiência passada, de que a região pretendida por remoção das famílias, a região está localizada próximo ao aterro da Ribeira, o lixão da cidade de São Luís, e que em parte do tempo, pelo menos 20% do tempo, os ventos são de direção Norte e Nordeste, o que significa que os ventos passarão do aterro da Ribeira [...] Esta intervenção continua questionando o fato de a Prefeitura Municipal de São Luís omitir a intenção de instalação do polo siderúrgico, uma vez que a exposição do representante do Governo do Estado era especificamente sobre o polo siderúrgico. Naquele contexto, o governo do Maranhão já havia criado por Decreto Estadual nº 21.190 de 26 de abril de 2005, o Grupo Executivo para Implantação do Polo Siderúrgico (GEIP), com a finalidade de “[...] coordenar e implementar as ações técnicas e operacionais de responsabilidade do Governo Estadual à implantação do Polo Siderúrgico do Maranhão, no Sub-Distrito Industrial, em São Luís”. Este Grupo, também já apresentava nos fóruns de debates um plano de remanejamento de uma parte dos povoados, como Cajueiro e Vila Maranhão para um “bairro planejado”, que seria o bairro do Tinaí. Tal plano de remanejamento, entretanto, havia sido elaborado sem a consulta aos povoados afetados. Pelo que expôs em audiência o representante do governo estadual, este plano prévia o reassentamento de 611 famílias, com acesso a casas de alvenaria de 60 m, infraestrutura, serviços públicos básicos e também uma média de 16 mil reais de indenização para cada uma delas. Enquanto o Reage São Luís contabilizava aproximadamente 14. 400 pessoas que seriam deslocadas, este representante do governo estadual falava 1.549. Houve um intenso debate, inclusive em termos de números de povoados, e de pessoas que seriam afetadas. Vejamos um trecho de sua exposição: [...] a área hoje é objeto de estudos onde nós estamos pedindo que a área rural seja transformada em área industrial, esse trabalho que estamos discutindo hoje, na realidade começou em 21 de agosto de 2002, chegando até ao final agora onde estamos fazendo está proposta, onde nós afirmamos que no ofício feito do Plano Diretor do Distrito Industrial, que é do Estado do Maranhão, no seu Decreto do Plano Diretor, aonde esse Decreto, estamos pedindo com essa modificação de área, ele vai ficar condizente com o Plano Diretor do Distrito Industrial de São Luís, esse Decreto é de nº 20.727 de 23 de agosto de 2004, no seu art. 2º que eu vou ler aqui para vocês. O Governo do Estado mostra claramente o que pretende com essa área, ele diz que: Dos 2.471,71 hectares, seriam destinados à implantação de um Sub-Distrito Industrial 169 Siderúrgico. Então a pretensão nossa é que no local, hoje rural nós pudermos transformar em área industrial [...] o mais importante hoje, é um trabalho apresentado, onde as empresas hoje têm o seu projeto e tem a sua política ambiental, e dentro dessa política ambiental, tem o seu sistema de gestão ambiental, eu quero dizer com isso aqui que, não basta você ter o EIA/RIMA hoje, pronta aprovada e garantido, ter o EIA/RIMA é como se fosse um carro novo, quem compra um carro, o que acontece? Não precisa fazer, recuperar, não precisa levar para a oficina, mais daqui a 2 anos, o carro começa a dar problema, e aí o EIA/RIMA está superado. Então, o importante é que tenhamos sim o EIA/RIMA de base, mais o importante é que obtenhamos a política ambiental, onde vai permitir que o EIA/RIMA seja monitorado, atualizado e todo o tempo de acordo com as novas legislações ambientais. Agora, voltando ao assunto, dentro da credibilidade que nós estamos propondo da retirada de 1.549 pessoas, nós queremos fazer um trabalho que é mostrar uma fita uma realidade que lá nós temos, para que vocês vejam em função dessa fita depois, e vou mostrar algumas fotografias da área e depois vamos mostrar um orçamento básico do que o Estado do Maranhão está se propondo dentro do projeto que já mostramos que é de residências de benfeitorias e infra-estrutura. (Deusdedith Soares, representante da Secretaria Estadual de Indústria e Comércio) No dia 31 de julho de 2004, os integrantes do Reage São Luís enviaram uma Representação para a Promotoria de Justiça da Curadoria do Meio Ambiente da Comarca de São Luís expondo o seguinte: [...] integrantes do Movimento “Reage São Luís”, vem respeitosamente, informar a existência de inconstitucionalidades e ilegalidades no Decreto Legislativo nº 004/2005 da Câmara Municipal de São Luís (doc. 1), publicado no Diário Oficial do Município de São Luís do dia 01 de junho de 2005 e no Edital de Convocação da Audiência Pública sobre Alteração do Zoneamento de São Luís (doc. 2), publicado no mesmo dia, pelos motivos a seguir expostos: A realização de audiências públicas é requisito para modificação de lei de planejamento municipal. Não se trata de mera liberalidade e discricionariedade a realização de tais audiências no que diz respeito à consulta popular acerca de modificações na configuração do espaço urbano. Num ponto tamanho que se chega até a identificar como prática digna da caracterização como improbidade administrativa a não realização de audiências públicas no caso de criação, modificação e fiscalização do Plano Diretor, instrumento norteador da política urbano-rural de um município. A existência da regulamentação da participação popular exigência legal fundamentada em preceito constitucional tem como fundo permitir que os cidadãos tomem ciência e intervenham no processo de formação do espaço urbano e se compreendam como parte integrante dele, de forma a colocarem de forma direta suas necessidades e anseios. A questão levantada pelo Reage São Luís na Representação é que pelo Decreto Legislativo houve “restrição à participação popular”: as audiências iniciariam após dez dias do início das inscrições e pelo edital de Convocação o prazo estabelecido para as inscrições acabou sendo menor do que o estabelecido, e houve somente 40 inscrições com duração de 05 minutos de intervenção para os inscritos. O Movimento Reage São Luís alegou o seguinte: A experiência de se resolver “tecnicamente” as questões de ordenamento urbano mostrou que o olhar que guia a organização do espaço urbano privilegiava um setor social em detrimento de outros. Tal paradigma criou o caos urbano que possibilitou um crescimento desigual e desestruturado das cidades. A participação popular tem dupla função porque possibilita à população um sentimento de detenção de direitos na 170 cidade e permite que os grupos sociais tenham uma possibilidade maior de disputar seus interesses. Assim, conjugados os dispositivos, chega-se à soma (se houverem audiências todos os dias) de 400 (quatrocentos) participantes, o que não significa nem 0,04% (zero vírgula zero quatro por cento) da população de São Luís e 0,35% (zero vírgula trinta e cinco por cento) da população que sofre ameaça de despejo forçado, caso o Zoneamento seja modificado. (Representação do Reage São Luís ao Promotor de Justiça da Curadoria do Meio Ambiente da Comarca de São Luís MA, 31, julho de 2004) Enquanto ocorriam as audiências entre os dias 23 e 30 de junho de 2005, tramitou nas quatro Comissões da Câmara de Vereadores (Comissão de Saúde, Educação e Cultura, Comissão de Meio Ambiente, Comissão de Orçamento, Comissão de Constituição e Justiça) o Projeto de Lei 063/05 de 27 de abril de 2005 enviado pelo Prefeito de São Luís. A tramitação, por sua vez, refletiu na disputa política interna da Câmara pela aprovação ou não do projeto pelos vereadores de São Luís. Este debate foi bastante emblemático entre os vereadores que se dividiram em duas posições, sendo, de um lado, aqueles que se aliaram às ações do Reage São Luís, sobretudo incorporando o discurso dos danos ambientais, à questão da saúde pública em decorrência da emissão de gases e a questão social com o deslocamento dos moradores. Por outro lado, os vereadores que apoiaram o projeto siderúrgico pela defesa do “desenvolvimento econômico”, sobretudo pelo discurso da geração de emprego para a população do Maranhão. Após as discussões nas treze audiências públicas, entre estas, as cinco audiências da Câmara dos Vereadores de São Luís, ocorreu a Sessão Ordinária em 30 de novembro de 2005 em que foi votado o Projeto de Lei 063/05 de 27 de abril de 2005 para alterar a Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 3.253 de 1992). Dos 21 vereadores, apenas três mantiveram-se contra o projeto de alteração do zoneamento e contra o projeto do polo siderúrgico: Marília Mendonça (PDT), Joberval Bertoldo (PCB) e Abdon Murad (PMDB). A Vereadora Marília Mendonça (PDT) tinha aproximações com as lideranças do movimento social e havia participado intensamente dos debates nas audiências. Em seus discursos durante as audiências da Câmara e na Sessão de votação do Projeto de Lei para alterar o zoneamento, manteve uma postura crítica em relação às ações do poder executivo e quanto à pretensão do governo de instalar o polo siderúrgico. O seu discurso da Sessão de votação do dia 30 de novembro de 2005, consta na ata o seguinte: 171 Fiquei muito triste [...] primeiro como foi composta a galeria da Casa 75, não tem que haver seleção, de quem vai entrar para assistir uma Sessão, temos um regimento [...] estamos desrespeitando, nem se fala em respeito com a sociedade que confiou em cada um de nós, depois de assistir todas as audiências, me fiz presente para ouvir a população, o que a população quer, e se nós abríssemos hoje uma votação na área afetada [...] não é só Porto Grande, Rio dos Cachorros, a Ilha não é só composta de São Luís, têm outros municípios 76[...] então não é só questão de emprego que a Vale do Doce não mudou a situação do Anjo da Guarda, daqueles bairros alí adjacentes, os empregados da Alumar que estão vivendo um problema seríssimo e nós estamos de braços cruzados, os vendedores ambulantes que nós não temos uma resposta [...] nós fizemos um acordo e nós mesmos quebramos [...] aquela galeria que hoje está composta por pessoas exatamente enumeradas para vaiar [...] (Intervenção do Presidente da Sessão) Pessoal por favor, olha a galeria por favor, eu gostaria de ouvir a vereadora com calma [...] Vereadora Marília Mendonça: estamos discutindo transformação de área mas só se fala em geração de emprego [...] isso é o que todo mundo busca, mas de forma responsável, até porque temos um Distrito Industrial que está abandonado, não tem política dirigida para alí e sim emprego imediato, temos problemas de água seríssimos, sem falar de outras situações, saúde, educação [...] sou contra essa transformação, tenho que ter responsabilidade com as pessoas que me deram essa responsabilidade. O Vereador Abdom Murad (PMDB), era Presidente e relator da Comissão de Saúde, Educação e Cultura da Câmara Municipal em 2005 e como médico e Presidente do Conselho Regional de Medicina, tinha experiência e informação na área de saúde pública e também havia participado do debate sobre os impactos da Alcoa nos anos de 1980 junto ao Comitê de Defesa da Ilha e do Professor Nascimento de Moraes (sobre a atuação do Comitê de Defesa da Ilha discuti no Capítulo 1). Naquele processo de argumentação em defesa e contra o projeto de alteração da lei de zoneamento e da instalação de um polo siderúrgico, os vereadores Abdom Murad e Joberval Bertoldo defendendo a posição contrária à da maioria na Câmara haviam feito um “pedido de vista” para rever o projeto. Questionavam o porquê da pressa na aprovação do projeto uma vez que havia necessidade de revisão. Tal pedido, entretanto, foi negado. Em seu pronunciamento, disse o seguinte: Não há força política contra, o povo de São Luís se dividiu [...] ora a favor ora contra, e aí cabe no pensamento de cada um de nós analisar esse posicionamento do povo. Mas temos que votar contra aquilo que parece bom para uma pessoa e que a gente sabidamente sabe que não é. O elevado índice de mortalidade por câncer nas cidades onde tem siderúrgica me faz tremer ao saber que daqui há cinco dez anos o mesmo quadro poderá estar acontecendo aqui em São Luís, porque a siderúrgica implantada aqui vai trazer contaminação, vai favorecer o aparecimento de doenças graves, principalmente doenças de câncer em vários órgãos como acontece em Vitória, como acontece em Cubatão, como em Volta Redonda, onde o índice é bem maior do que nas cidades onde não têm [...] Não sou fiscal do voto de ninguém, nunca policiei voto de companheiro algum, merecem todo meu respeito, e preciso que também respeitem o meu voto e o meu posicionamento. Saio triste [...] me desculpe a Mesa Diretora da Casa, presenciamos algumas manobras, desde quando um pedido de vista não foi 75 Refere-se ao espaço destinado a populares que busquem participar das sessões da Câmara Municipal. É importante destacar que, no caso da Câmara de São Luís, esse espaço é muito pequeno (cabe cerca de 40 pessoas) e fica isolado do salão em que se localizam os vereadores por uma placa de vidro. 76 Além de São Luís, a Ilha de São Luís é composta pelos municípios de Raposa, Paço do Lumiar e São José de Ribamar. 172 aceito Senhor Presidente? Saio chateado porque o processo que foi democrático até hoje, termina com mais de 40 policiais lá fora cercando esta casa como se aqui dentro tivessem bandido. Aqui está o povo falando, quer falar e não precisa polícia [...] aqueles que estão lá fora merecem o mesmo respeito dos que estão aqui dentro [...] esses que estão aqui chegaram mais cedo, os que estão lá fora sofreram ameaça da polícia, estão sendo escorraçado para não emitir o desejo que a Câmara votasse contra porque alguém disse a eles que os que estão lá fora são perigosos, os que estão aqui dentro são inocentes. Quando todos são inocentes na sua vontade e nós temos que respeitar a vontade do povo, seja ela contra ou a favor, ou a favor da nossa [...] onze audiências eu também frequentei, não frequentei as duas do Poder Executivo porque não me sinto motivado de ouvir os técnicos vomitarem informações da Prefeitura, porque eles não tiveram o cuidado de ir às onze audiências [...] então não houve preocupação da Prefeitura, não houve respeito com o povo que foi às audiências, não houve respeito com os vereadores que participaram das audiências [...] vamos deixar que o tempo se encarregue de fazer com que essa maldita siderurgia não venha para São Luís apesar de aprovada aqui nesta Casa, porque ainda tem esperança do IBAMA [...] de outros órgãos federais que vão fiscalizar os estaduais, a implantação de uma indústria criminosa que agride a saúde e a dignidade do povo de onde ela se instala. O Vereador Joberval Bertoldo (PCB), era membro da Comissão de Meio Ambiente e diferente dos demais integrantes desta Comissão teve posição contrária à aprovação do Projeto de Lei e se alinhava à posição do Reage São Luís e dos movimentos sociais. Politicamente também essa posição refletia em seu histórico de engajamento e em defesa dos interesses dos moradores dos povoados afetados, uma vez que naquela região também possuía base eleitoral. Sintetizo um pequeno trecho de uma de suas intervenções na Sessão da Câmara do dia 30 de novembro de 2005, denunciando a forma na condução do processo. Em seu ponto de vista a votação foi um “rolo compressor”, uma vez que a votação foi realizada sem o aprofundamento pelos vereadores que estavam se posicionando favorável: Vou me ater na ótica do processo [...] esta aula parlamentar de hoje é uma aula [...] nos meus tempos de escola gostaria de não ter participado [...] tem uma coisa que se chama consciência que cada um de nós fará a sua prestação de contas. Essa aula de hoje se chama rolo compressor [...] os dois artigos citados da Lei Orgânica, 149 o município assegurará a seus habitantes em pleno exercício de direitos culturais, o 150, o Patrimônio Cultural do Maranhão. É preciso que se relate para que cada vereador aqui presente saiba como se constituiu esse processo que não foi à luz de estudos, foi à luz simplesmente de saber que no final nós vamos dar um voto favorável ou contra, mas que esse voto representa alguma coisa do conteúdo que está estabelecido nesse processo e não votar só por votar [...] A votação do Projeto naquele contexto implicava nas decisões futuras quanto à viabilização da instalação de um polo siderúrgico que era de interesse da Companhia Vale, do Governo do Maranhão e da Prefeitura articulados no âmbito da Câmara Municipal, refletindo numericamente no resultado da votação, ou seja, de vinte e um vereadores apenas três tinham posição contrária ao polo siderúrgico. A posição de uma das lideranças da Câmara reflete o significado do polo siderúrgico. Vejamos o discurso do vereador Pinto da Itamaraty (PDT) 173 Sr. Presidente Colegas vereadores, galeria, o projeto é muito interessante, quando chegou nesta Casa era solicitado no corpo do projeto 4 mil hectares para implantação de uma possível siderúrgica, a Câmara entrou em discussão justamente com as autoridades competentes e nós conseguimos trabalhar e reduzir a área em média 75% das áreas, logo houve um trabalho para preservação de 75% das comunidades também. Aqui hoje poucas pessoas têm capacidade técnica para discutir siderúrgica. Eu tenho, eu trabalhei 8 anos na Alumar, e outra coisa, não fui para Alumar por favor, foi por meio de seleção. Saí da Alumar quando pedi demissão para continuar meu curso de engenharia. Conseguir formar grande parte de minha família trabalhando na Alumar [...] eu não votei contra o relatório do vereador Abdom Murad, apenas me posicionei de acordo com minha visão, meu ponto de vista técnico [...] e alí no relatório do vereador, se nós percebermos hoje em São Luís tem 906 mil habitantes com um índice de 74,3 para cada 100 mil habitantes, o que estou dizendo está escrito, e lá quando fala que o índice de câncer de doenças é muito grande onde tem indústrias, aqui nesse momento eu faço minha contestação, porque São Luís tem a Alumar operando há a 25 anos, chegou aqui nos anos 80, temos a Companhia vale do Rio Doce. E eu comecei minha grande trajetória profissional na Alumar, a Alumar me projetou para chegar até aqui, claro e evidentemente que eu soube muito bem aproveitar as oportunidades que a vida ofereceu e continuo aproveitando, mas sempre pautado na dignidade, na transparência, acima de tudo de pai de família e de um cidadão. Eu não estou aqui na Câmara por um acaso, estou aqui cumprindo uma missão que foi outorgada por deus e pelo povo e é desta forma que vou continuar me pautando tenho as mãos limpas e vou ter a certeza do que estou fazendo do que estou votando. Logo, qual é a esperança de nossa juventude quando termina o seu ensino médio, seu curso médio em busca da vida profissional? Ainda agora o colega citou que precisamos fazer concursos e concursos públicos prá botar aonde? A Prefeitura está abarrotada, o Governo do estado não cabe mais ninguém, a Câmara de São Luís não cabe mais ninguém [...] Para a Sessão de votação do projeto de alteração da lei de zoneamento, o Reage São Luís havia mobilizado sua base: as entidades e os moradores dos povoados que se manifestaram do lado de fora da Câmara contra a aprovação do Projeto. Outros grupos e militantes também estavam na manifestação. No processo de aprovação houve “tumulto” e “pressão”, e “clima tenso” como foi destacado pela imprensa77: Manifestações marcaram a votação da lei de zoneamento [...] os ânimos estavam alterados dentro e fora da Câmara Municipal. Estrategicamente os manifestantes que eram a favor da lei, chegaram mais cedo à galeria que excepcionalmente foi aberto antes do horário previsto, e ocuparam todo o espaço destinado a população dentro da Casa. As pessoas que fazem parte de movimentos antipólo siderúrgico ficaram do lado de fora da galeria fazendo batucada em frente à Câmara. Para evitar excessos, a Presidência da Casa contratou mais seguranças e pediu policiamento. Em cada porta da Câmara havia cerca de três seguranças e mais de vinte policiais. Mesmo com toda essa segurança, alguns incidentes aconteceram. Do lado de dentro um dos seguranças da Câmara estava ameaçando um jovem na galeria. Observando o fato, o jornalista Walter Rodrigues tentou impedir [...] resolveu retirar o jovem do local. Com uma atitude autoritária, o chefe da segurança do local, Lula, proibiu que o jornalista e o jovem ameaçado passassem para o outro lado da galeria. Indignado, Walter Rodrigues recorreu ao presidente Pereirinha que logo acatou o apelo do jornalista [...] do lado de fora, membros do PSTU e Unipar – União dos Estudantes do Ensino Superior “Lei de Zoneamento é aprovada na Câmara de São luís” (JORNAL “O DEBATE”, 2005); “Em clima tenso, projeto é aprovado” (JORNAL “O ESTADO DO MARANHÃO, 2005); “Lei de Zoneamento aprovada na Câmara em clima de tensão” (JORNAL ATOS E FATOS, 2005); “Tumulto marca aprovação da Lei de Zoneamento” (JORNAL PEQUENO, .2005). 77 174 Particular – estavam se se enfrentando e que resultou na prisão de um dos integrantes da Unipar.(Texto publicado no Jornal O Debate – 01.12.04) O Projeto de Lei, entretanto, foi alterado por meio de uma emenda do vereador Edvaldo Holanda Júnior (PTC), Presidente da Comissão de Constituição e Justiça reduzindo a área de 4 mil hectares que havia sido solicitada no projeto original, para 1.063 hectares. A proposição dessa emenda, entretanto, como se destacou na imprensa, foi resultado de um “consenso” entre as diferentes posições na Câmara, mas também reflexo da pressão do Reage São Luís. A pressão do Reage São Luís e das manifestações durante as audiências públicas e, em especial, no dia da votação do Projeto de Lei para alterar a Lei de Zoneamento, surtiu efeito a ponto da proposição da emenda reduzir consideravelmente o tamanho da área, retirando da proposta original a área que incluía o Rio dos Cachorros. Vejamos no discurso do Vereador Pinto da Itamarati (PDT) que de certa forma sintetiza o resultado da discussão, expondo sua posição: [...] Então nós temos que buscar alternativas e alternativas inteligentes. Sr. Presidente, eu peço aqui de V. Excelência e dos vereadores atenção redobrada, triplicada para que a gente para que a gente possa buscar investimento para zona Rural, para as comunidades preservadas [...] Rio dos Cachorros, Taim, Limoeiro, entre outras e aqui eu quero formar uma Comissão com permissão desta Casa e representante da Zona Rural dessas comunidades que foram preservadas para ir até o Sr. Prefeito de São Luís para pedir melhorias, porque não basta só essas pessoas permanecerem [...] tem que ter escolas, posto de saúde, tem que ter melhoria no transporte público [...] não preciso da tribuna para fazer palco político e muito menos demagogia porque eu me elegi 7º mais votado na primeira eleição e nessa agora o mais votado porque no mínimo a população entendeu que eu posso representa-la [...] justifico meu voto me posicionando contrário em parte e eu tinha citado ao vereador Abdom Murad, apenas uma parte de seu relatório principalmente quando V. Excelência colocou que estamos transformando o Rio dos cachorros em Zona Industrial. Não é verdade, o Rio dos Cachorros está preservado [...] Em síntese: o esforço político de alteração da Lei de Zoneamento pela Prefeitura de São Luís a pedido do Governo Estadual visava resolver a questão legal do terreno para instalação da siderurgia proposta pela Companhia Vale e pelo Governo do Maranhão. O Governo Estadual e o Governo Municipal tinham pressa nas alterações em função do cronograma de atividades para instalação da siderurgia, pois, os investidores aguardavam as decisões dos gestores locais. a) a área prevista para as instalações de três usinas seria de 2.471,71 hectares, localizados entre o Porto do Itaqui e o povoado de Rio dos Cachorros, na região administrativa municipal do Itaqui/Bacanga. Para isso era necessário converter uma área total de 4.000 hectares, incluindo o Rio dos Cachorros como Zona Industrial. Em 2004, esta área foi declarada como de utilidade pública para fins de desapropriação pelo governo do Estado do Maranhão (Decretos nº 20.727-DO, de 30 de agosto de 2004, e nº 20.781-DO, de 29 de setembro de 2004); b) porém, havia um impedimento legal para instalação das usinas: a Lei de 175 Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano do Município de São Luís, em vigor desde 1992 situa a área que foi planejada para a siderurgia na Zona Rural II do Município de São Luís, sendo que segundo a Lei acima citada, empreendimentos industriais somente podem ser implantados em Zona Industrial; c) visando eliminar esta dificuldade legal, a Prefeitura Municipal de São Luís encaminhou à Câmara Municipal um projeto de alteração desta Lei, convertendo a área em Zona Industrial; d) a pressão dos movimentos sociais contrários à implantação da siderurgia não impediu que a Câmara Municipal aprovasse a mudança na Lei, mas levou à alteração do projeto inicial, “excluindo as áreas de preservação permanente, constituídas das nascentes e cursos d´água existentes e reduzindo a área do projeto para 1.068 hectares” (FORUM CARAJÁS, 2006). 176 5 PROPOSTAS ANTAGÔNICAS78: a Reserva Extrativista de Tauá-Mirim versus Polo Siderúrgico Observemos os Mapas 2 e 4. Eles localizam a planta do projeto siderúrgico em discussão em 2004. E observemos o Mapa 5 que demarca a área do projeto de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. O que está em questão? Um “processo de territorialização” que se efetiva por meio de experiências de mobilização de forças antagônicas notando-se uma complexa rede de relações de poder interconectadas e intercaladas (SOUZA, 1995)79 e a “sobreposição de reivindicações” de diferentes atores “[...] portadores de identidades e lógicas culturais diferenciadas, sobre o mesmo recorte espacial”, sendo portanto, uma situação que pode ser classificada no rol de “Conflitos ambientais territoriais” (ZHOURI; LACHEFSKI, 2010, p. 23). A existência de forças políticas antagônicas, com reivindicação de controle sobre o mesmo espaço, ganha sentido histórico pela ação estatal, que aliando-se à iniciativa privada representada por grandes empresas multinacionais do setor mínero-metalúrgico tem potencializado esses conflitos Como analisei no Capítulo 1, os povoados da Zona Rural II de São Luís convivem com a constante ameaça de deslocamento desde o final dos anos de 1970, quando começaram as obras de instalação da fábrica de Alumínio da Alumar (na época denominada somente Alcoa) e a construção da Estrada de Ferro de Carajás, assim como dos terminais de carga e passageiros da Companhia Vale. Vale relembrar que em 1987 foi criada a estatal Usina Siderúrgica do Maranhão (USIMAR) que funcionou até 1999 quando foi desativada. Em 1999, a empresa foi reativada pela iniciativa privada com apoio institucional do governo estadual, mas em 2000 as obras foram paralisadas em função da extinção da Sudam (MARANHÃO, 2004a). Já em 2001, o Governo do Maranhão, em parceria com a Companhia Vale retomou o projeto de instalação de um polo siderúrgico em São Luís, inserido num cenário em que o governo brasileiro retomava importantes investimentos em obras de infraestrutura visando tornar o país competitivo na economia internacional. Neste contexto o Estado, por meio de suas agências de 78 Foi o termo utilizado por Alberto Cantanhede em entrevista em 11 jan. 2012 ao caracterizar a situação de conflito que surgiu com o projeto de instalação do polo siderúrgico em 2004 na mesma área em que as associações de moradores dos povoados rurais da Zona Rural II de São Luís propunham a instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim cujo projeto vinha sendo discutido desde os anos de 1990. 79 Os exemplos de territórios e suas respectivas relações de poder ilustrados por Souza (1995) referem-se às suas experiências de pesquisa de campo sobre os territórios do tráfico de drogas e os conflitos e/ ou alianças entre “facções amigas” ou rivais na cidade do Rio de Janeiro. A forma de abordar o território por este autor é bastante inspiradora neste estudo, sobretudo pelo fato de que se trata de uma abordagem antropológica na qual o território é mediado por relações sociais e relações de poder, permitindo dialogar com a realidade aqui estudada. 177 desenvolvimento econômico, mobilizou recursos, estabeleceu planos estratégicos, estabeleceu novas diretrizes de gestão territorial, incluindo grandes extensões de terra em áreas portuárias, como foi o caso da área do Porto de Itaqui, adequando-se aos interesses de “agentes hegemônicos” (CARVALHO, 2011). Com relação aos efeitos destes projetos sobre os povoados da zona portuária da cidade de São Luís, Sant’Ana Júnior et al. (2009, p. 23) verificaram o seguinte, [...] a instalação destes empreendimentos implicou em deslocamentos compulsórios de vários povoados, e seu funcionamento acarreta uma série de problemas ambientais. Além disso, devido às condições logísticas existentes para a instalação de novos empreendimentos industriais, há uma possibilidade constante de novos deslocamentos [...] em áreas nas quais a regularização fundiária é muito incipiente, o que os fragiliza quanto à posse e controle do território. Esses grupos são submetidos, também a constantes constrangimentos simbólicos, pois a percepção de sua condição de fraqueza é sempre reforçada diante do que é apresentado como sendo a força dos grandes empreendedores públicos e privados; O Estado é um agente indutor importante do processo de territorialização, por ser o principal articulador e promotor das ações político-institucionais e administrativas, e é ao mesmo tempo um “agente hegemônico” dentro da arena constituída pela disputa territorial e controle ambiental. Como dito antes, o “campo dos conflitos ambientais”, seguindo a formulação de Acselrad (2004) pode ser considerado como: a) “Um terreno contestado material e simbolicamente”, pois remete ao processo de redistribuição de poderes sobre os recursos territorializados; b) Implica em “legitimação/deslegitimação das práticas de apropriação da base material das sociedades e/ou de suas localizações”. c) As lutas por recursos ambientais são “lutas por sentidos culturais”. O meio ambiente é percebido assim como: [...] Uma construção variável no tempo e no espaço, um recurso argumentativo a que atores sociais recorrem discursivamente através de estratégias de localização conceitual nas condições específicas da luta social [...] pela afirmação de certos projetos em contextos de desigualdade sociopolítica. (ACSELRAD, 2004, p. 19). Um conflito social tem uma historicidade, envolve experiência e aprendizagem e é continuamente reinventado e ressignificado, na medida em que as circunstâncias e os contextos influenciam as formas da ação coletiva e os interesses em questão (TILLY, 1978; OLSON, 1998). Não é uma manifestação espontânea, é reflexo da condição social e do despertar para o mundo da política na vida cotidiana. Neste caso, o conflito instalado é fruto do processo de modernização e expansão econômica capitalista via projetos de desenvolvimento. A percepção do fortalecimento político dos atores locais é importante, pois, a existência do conflito é também fruto da compreensão e da percepção de indivíduos, de grupos 178 politicamente mobilizados (LOPES, 2004). Um conflito pode ter início a partir de uma coletividade, mas pode surgir também de um problema individual, pessoal, que se transforma em um processo mais amplo e “dessingularizado”, de reivindicações (BOLTANSKI, 1990). No Capítulo 3, chamei atenção para a ideia de “comunidade”, que neste estudo, está empiricamente referida aos povoados, mas tal noção aqui, é redefinida no sentido de serem “comunidades” pensadas enquanto coletividades dinâmicas com uma capacidade de intervenção na realidade, com uma relativa autonomia com relação à ação do Estado e com um certo nível de protagonismo, para lembrar as reflexões formuladas a partir dos formatos organizativos dos “novos movimentos sociais” que em sua maioria irrompem com a tradição oligárquica e patrimonialista (GOHN, 1995, p. 203). Neste estudo trata-se da emergência de novos sujeitos que se constituem como força política que não somente questionam a forma de atuação do Estado, mas também criam estruturas de ação coletivas que pressionam ao Estado a dar respostas institucionais em forma de políticas sociais. Foi nesta perspectiva que me referi ao trecho da narrativa do jovem líder do Taim quando falou do “fortalecimento da comunidade”. A meu ver, a narrativa exemplifica o processo de subjetivação acima referido. A “comunidade” e o sentimento de a ela pertencer e de defendê-la são também resultado da pressão econômica, da configuração de forças antagônicas que gera o sentimento de pertencer a uma comunidade face às ameaças e perdas materiais e simbólicas relativas ao lugar. Por esse prisma, o processo de modernização e sua contraposição são percebidos, como mais dinâmicos, como se neles não houvesse uma posição pré-definida uma vez que os atores não somente não são meras “correias de transmissão”, como também dispõem de uma “margem de manobras” (OLIVIER DE SARDAN, 1997). Observando a documentação produzida pelo Governo do Maranhão, assim como os documentos produzidos pelo Reage São Luís, não encontrei referências politicamente expressivas sobre o pedido de instalação da Reserva Extrativista. A atuação do Reage São Luís priorizou de fato a reivindicação mais imediata qual seja, a de impedir a instalação de um polo siderúrgico. A reivindicação da RESEX foi um ponto de pauta do movimento, entretanto, não foi o principal. A retomada da proposta de instalação do projeto da Reserva Extrativista, no âmbito das mobilizações ocorreu posteriormente. Naquelas circunstâncias, sob pressão do movimento o governo já cogitava a possibilidade de transferir a instalação do empreendimento para o continente, e esta foi a proposta, inclusive da coordenação do Reage São Luís, durante as audiências públicas. Se não foi uma posição unânime do movimento, a coordenação tinha a compreensão de que “o desenvolvimento é necessário, mas deve estar em harmonia com o meio 179 ambiente”80, o que de certa forma, sugere que, na possibilidade dessa harmonia, o empreendimento poderia ser instalado em um local ambientalmente viável e que oferecesse as condições logísticas e apresentasse uma relação custo-benefício interessante aos investidores. Um trecho da de intervenção na Audiência Pública de 24 de março de 2005 ilustra a posição do Reage São Luís. A primeira coisa que nós deixamos claro, sempre que temos conversado com as pessoas, é que o movimento não é contra a implantação do Polo Siderúrgico no Estado do Maranhão. O movimento acha que não é tecnicamente possível que isso aconteça na Ilha de São Luís. E nós fazemos questão de começar a nossa apresentação mostrando que economicamente é viável que o Polo Siderúrgico se instale no Estado do Maranhão sem que seja necessariamente na Ilha de São Luís. O Brasil, essas indústrias que querem vir pra cá, nós estamos falando da alteração da Lei do Uso do Solo, mas é alteração da Lei de Uso do Solo para finalidade de instalação de um empreendimento siderúrgico no nosso Estado. Pois bem, o Brasil tem o menor custo de produção de placas de aço do mundo. Este é o principal motivo pelo qual as indústrias procuram o Brasil: é porque aqui é barato produzir, pelo tipo de minério que nós temos de alta qualidade, pelos salários dos brasileiros que são mais baixos de que em outras regiões; enfim, somando todos os fatores é barato produzir no Brasil. Provavelmente no Maranhão será mais barato ainda, por quê? Porque nós temos um minério - Minério de Carajás - que é o melhor minério de ferro do mundo com 66% de concentração. Existem usinas pelo mundo que trabalham com Mineiro de Ferro com 28% de teor de ferro, com 40%, com 50%. No nosso caso, temos 66%. Isto significa custo de produção mais baixo. A estimativa que nós temos é que remover, por exemplo, de São Luís para o Município de Bacabeira teria custo adicional da ordem de 03 dólares por tonelada, ainda assim seria um excelente negócio para as indústrias que querem vir se instalar, no Maranhão. Então, é possível que essa instalação, que essa implantação ocorra. Nós usamos o Município de Bacabeira como referência, apenas porque em 1996, quando o Estado fez o Plano Diretor do Distrito Industrial, concluiu, sugeriu que esse tipo de indústria mais pesada - Indústria do Aço, Cimento - não fosse instalada na Ilha de São Luís. Foi criado na época no Município de Rosário um Distrito Industrial e determinado que esse tipo de indústria fosse instalado naquele local. Então, a sugestão de Bacabeira na verdade vem do Governo do Estado, em 1996. Curiosamente, no estudo que foi patrocinado pela Companhia Vale do Rio Doce, na época, ela não tinha interesse em se tornar sócia de nenhum empreendimento siderúrgico. No atual momento há esse interesse talvez porque ela tenha tanta insistência para que seja na Ilha de São Luís. Realmente, na Ilha de São Luís, é mais barato. As empresas se forem produzir na Ilha, terão um lucro maior. Mas é perfeitamente viável que seja instalada fora da Ilha de São Luís, que ainda assim vai ser um excelente negócio para as empresas81. A posição política e a proposição dos membros do Reage sempre remetem à problemática socioambiental da instalação de um empreendimento da magnitude daquele que estava sendo planejado, em uma ilha que já apresenta visível fragilidade ambiental. Vejamos no trecho abaixo o que dizem outras organizações ligadas ao Reage São Luís: [...] Os efeitos socioambientais e econômicos do polo siderúrgico serão, indiscutivelmente, positivos desde que sua localização seja direcionada para uma área segura. Nesses aspectos as áreas continentais da região norte do Maranhão, situadas 80 Trecho extraído da ata da Audiência Pública de 8 mar. 2005. Intervenção de Edilea Pereira, Geóloga, Professora da UFMA, membro do Reage São Luís. 81 Trecho extraído da ata da Audiência Pública de 24 jun. 2005. Intervenção de Guilherme Zagallo, advogado e coordenador do Reage São Luís. 180 ao sul da cidade de Bacabeira surgem como estratégicas, sob todos os aspectos: locacionais, de acessibilidade, de disponibilidade de água e de energia, e de maior garantia geoquímica contra eventos poluidores (AGEMA; IMRH, 2004, p. 13) Os argumentos acima expostos de certa forma ajudam a traçar o perfil do Reage São Luís. Não se trata de um movimento de oposição ao modelo de desenvolvimento econômico, seja no âmbito global, regional ou o modelo em curso no país. Volta-se muito mais para uma pauta específica, qual seja um enfrentamento de ordem mais pragmática, localizada e pontual, que é a instalação de um grande projeto siderúrgico, face à fragilidade ambiental da ilha. Este enfrentamento levou a debate mais amplo, ao qual se pode atribuir uma crítica de caráter mais global, entretanto, o caráter global da crítica se refere mais diretamente aos efeitos da poluição ambiental. Um debate sobre o capitalismo não teve lugar privilegiado, pois, não foi este o alvo direto da crítica social do Reage São Luís. Nesta posição mediana, contra a instalação de um polo siderúrgico na ilha, contra o desenvolvimento a qualquer custo, mas não contra o modelo de desenvolvimento, reside o principal dispositivo estratégico discursivo do Reage São Luís. Importante considerar também, o cenário político em que as instâncias governamentais principalmente da esfera federal, foram mais propensas a ouvir “a voz do popular”. As “estruturas de oportunidade” neste caso, identificadas no cenário político nacional, aliadas à habilidade da coordenação do Reage São Luís formada por um corpo de experts capaz de identificar as falhas nos processos de decisão administrativa e delas tirar proveito. A meu ver, estes foram em geral os fatores decisivos para uma maior eficácia do discurso socioambiental do Reage São Luís, a ponto de frustrar a expectativa dos investidores e, como desdobramento fortalecer a proposta de instalação de uma reserva extrativista que já estava em pauta antes do debate sobre a instalação do polo siderúrgico. 5.1 A RESEX de Tauá-Mirim: reviravolta na arena política local do meio ambiente? Passado o período mais tenso do debate acerca do polo siderúrgico, já no final de 2006 e durante o ano de 2007, na gestão do Governador Jackson Lago, irmã Anne da Congregação das Irmãs de Notre Dame e membro do Reage São Luís, lembrou82 que o governador havia lhe dito em um dos encontros que teve com ele, que a instalação da Reserva Extrativista na região onde se cogitou a instalação do polo siderúrgico, dependia muito mais da 82 Notas de um encontro com Irmã Anne em 17 set. 2012. 181 organização da sociedade civil local para exigir sua efetivação83. Compreendo que esta observação é bastante significativa nesse quadro de oportunidades do qual a coordenação do Reage São Luís soube estrategicamente aproveitar. Sirvo-me, também, de outra observação que complementa a lembrança de irmã Anne, feita por Marluze Pastor, Gerente Executiva do IBAMA (MA) em 2004: perguntei sobre sua compreensão acerca do contexto político mais geral em que se discutia um polo siderúrgico em São Luís e ela disse: [...] Tem algum momento interessante que já era o conflito entre Roseana e José Reinaldo, eu acho que também é importante porque José Reinaldo estava muito confuso em relação a isso, a esse tal empreendimento e Jackson Lago que assume depois o governo já defende que não devia ser em São Luís, deveria ser em Bacabeira. Então essa conjuntura, há esses conflitos no grupo, no grupo Sarney também. Ao nível nacional tem a questão da Marina84 (Ministra do Meio Ambiente) pelo que ela representava no Ministério, na questão ambiental no Brasil, e tinha um trâmite muito importante no governo, tinha uma marca no IBAMA e tinha uma série de pessoas que asseguraram [...] que estavam junto com Marina lá no Ministério e deram respaldo [...] teve ação do Ministério Público contra o polo siderúrgico, teve a ação do IBAMA contra o polo siderúrgico, teve pessoas do lado jurídico [...] que assinaram ação. Então essa conjuntura política foi importante naquele momento, tanto no que acontecia aqui no Estado de conflito entre o grupo Sarney e José Reinaldo e a formação de Jackson pra ser o governante, quanto em nível nacional. Esse momento do início do governo Lula que de alguma forma favoreceu, as reivindicações dos movimentos sociais [...] (Marluze Pastor, Gerente Executiva do IBAMA em 2004. Entrevista em 06 jun. 2013) Após sua avaliação do cenário político do momento (2004-2006), perguntei se o cenário mudaria caso o projeto do polo siderúrgico tivesse sido proposto anteriormente quando o governo estadual estava sob o controle do “grupo Sarney”, ela disse o seguinte: [...] Seria bem diferente. Tem duas coisas que seriam diferentes: primeiro, você não tem essa conjuntura política nacional e local, como você tem outra situação. O governo do grupo Sarney é um governo de medo, as pessoas têm medo de dar visibilidade de reagir, as pessoas morrem de medo. Na época do José Reinaldo as pessoas tiveram mais com ele, criticaram mais. A mesma coisa com Jackson, estavam sempre lá com ele criticando, questionando - é um governo de menos medo e mais liberdade, entre aspas, as pessoas criticaram muito mais, se expuseram muito mais, colocaram suas questões muito mais, aflorou muito mais [...] As pessoas tem muito medo de dar uma palavra contra esse pessoal (“grupo Sarney”) - é um governo de compadrio, se ficar contra ele, perde qualquer oportunidade, então não sai da toca. Esses são dois pontos importantes que levariam o movimento para outra direção, pelo menos, menos projeção [...]. Também tem outra coisa, a relação de José Reinaldo e Jackson com essas empresas é diferente da relação deles; Sarney faz esse jogo de troca que os outros fizeram menos, esse contexto foi importante. (Marluze Pastor, Gerente Executiva do IBAMA em 2004. Entrevista em 06 jun. 2013) 83 O governador na ocasião, Jackson Lago (PDT), com histórico de aproximações com os movimentos sociais foi eleito em outubro de 2006 por uma diversificada rede de alianças e de coalizões capitaneadas pelos partidos de oposição ao grupo político do Senador José Sarney, o PDT e o PSDB (COSTA, 2009). 84 Refere-se ao fato de que a Ministra do Meio Ambiente, a ecologista Marina Silva (2003-2008) manteve uma política de controle quanto à liberação de projetos geradores de grandes impactos ambientais. Como assinalei no Capítulo 2 a postura da Ministra do Meio Ambiente para os agentes econômicos (estatais e privados) resultou em fortes pressões políticas para liberação de licenças ambientais e consequentemente o pedido de demissão da Ministra Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente, em 2008. 182 Considerar estes elementos que compõem o cenário político torna-se imprescindível porque eles indicam na análise em curso, que um movimento também avança em suas formas de ação e de negociação dentro de um quadro político - ou como venho chamando atenção, dentro de uma “estrutura de oportunidades” que permitiu avançar nas negociações no âmbito das políticas ambientais. Desde 1996, já havia um acúmulo de discussões sobre projetos de unidades de conservação na área da Zona Rural II, como foi registrado no Laudo Sócio-Econômico e Biológico para Criação da Reserva Extrativista do Taim (IBAMA, 2007, p. 9): [...] Com o início da negociação para a criação da pretendida unidade de conservação, as lideranças perceberam que seria muito difícil que as empresas instaladas na região abrissem mão de suas áreas cedidas pelo estado, e então começaram e pensar em outra alternativa. A partir de 1997, dentro do contexto de reuniões do Fórum Carajás e da Sociedade de Direitos Humanos, surgiram as primeiras sugestões de se criar uma reserva extrativista, entendendo que esse modelo de unidade seria o que mais se adequava como instrumento para proteger toda a comunidade e seu modo de vida. Vejamos que os moradores e lideranças da Zona Rural II de São Luís, desde os anos de 1990 já estavam articulados por meio de suas organizações com outras entidades, tais como Maranhense de Direitos Humanos, Fórum Carajás85 e também por meio do GTA. Nestes espaços consolidaram importantes parcerias por meio das quais discutiram o projeto da RESEX. Retomo um trecho da entrevista com Alberto Cantanhede, líder do povoado do Taim, em 11 de janeiro de 2012 que mostra o panorama desse entrecruzamento entre o pedido de instalação da Reserva de Tauá-Mirim e o projeto de instalação do polo siderúrgico: [...] Eu entrei no movimento em 1990 então 2 anos depois eu comecei a frequentar a reunião do GTA (Grupo de Trabalho Amazônico) e em 1996 eu fui para o Conselho e agora em 2005 a 2007 eu fui presidente do grupo. Em 2008 terminou o mandato e eu voltei para a secretaria e elegemos um outro companheiro do Amazonas, e eu voltei para a secretaria e terminou o mandato agora esse ano dessa secretaria [...]. Então nesse centro a gente começa ver outras articulações, sobretudo na questão ambiental e a questão da criação de reservas é o forte dentro do GTA, de potencializar tanto a criação quanto as que já estão criadas, então quando eu começo lá e cá, então começo achar que a gente podia criar uma unidade de conservação aqui, que o modelo de assentamento como a gente teve não funcionou. Teve comunidade em 1997 que o governo do estado criou 15 assentamentos em São Luís, Jacamim, Taim, Rio dos Cachorros, Porto Grande, tudo é assentamento. Mas ninguém tem uma coordenação desses assentamentos, então têm comunidades como, por exemplo, Tajaçuaba em que entrou um Presidente de associação e vendeu as terras todas, vendendo loteando as 85 Conforme consta em seu site o Fórum Carajás é uma ONG formada por uma teia de entidades do Maranhão, Pará e Tocantins, surgida em 1992 e voltada às implicações ambientais, sociais e econômicas produzidas por grandes projetos. Atua nas políticas de projetos para a Região do Carajás, promove atividades de sensibilização da opinião pública e formação de lideranças; realiza estudos voltados ao fortalecimento do Movimento Popular; busca encontrar soluções para os problemas socioambientais através de articulação com entidades nãogovernamentais da Alemanha e de outras regiões do Brasil e do mundo. Consiste “num espaço pluri-institucional que desenvolve bases sustentáveis, tendo na produção agroecológica e na agricultura familiar extrativista, a garantia de participação democrática no âmbito de gestão e deliberação de políticas públicas das populações atingidas pelos grandes projetos”. (FORUM CARAJÁS, 2006). 183 terras das comunidades que eram o assentamento. Então não tinha uma coordenação, não tinha um regimento nada, então eu disse “olha para a gente preservar o que ainda resta, a gente pode transformar vários assentamentos em uma unidade de conservação”. Alberto Cantanhede fala de sua inserção na discussão ambiental na Amazônia desde 1996, como pescador e morador do povoado do Taim, fazia a articulação “lá e cá” na luta política pela regularização das terras em conflito territorial. Note-se que somente em 2000 foi instituído o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), mas preocupações com preservação, já faziam parte da agenda de discussões e de mobilizações das lideranças por meio das organizações locais, entre elas, a Colônia de Pescadores e o movimento de pescadores, envolvendo também as associações de moradores, entre estas as associações de moradores do Taim e do Rio dos Cachorros. Entre 2004 e 2005 no confronto com o projeto de instalação do polo siderúrgico, os membros do Reage São Luís foram orientados a procurar a SPU em Brasília, quando descobriram que havia um documento do Governo do Maranhão solicitando terras da Zona Rural II para instalação do projeto siderúrgico. Perceberam também que na área solicitada pelo governo estadual estava situada a área de assentamento (descrevi e analisei essa situação no Item 3.8). Ainda seguindo o relato de Alberto Cantanhede, a discussão sobre unidade de conservação se deu a partir da percepção de que a experiência de assentamento foi fracassada em função das especificidades da população, do ambiente e de suas atividades produtivas: Foi aí que surgiu a ideia da Reserva Extrativista, mas esse assentamento foi criado em 97 e ai a gente vem com ele e em 98 a gente começa discutir a RESEX a que foi dada a entrada só em 2003. Em 2004 começa a discussão do polo siderúrgico e aí a gente entrou em parafuso por que são duas propostas antagônicas né, uma querendo preservar e a outra querendo destruir. O polo siderúrgico vinha com a proposta de 3 unidades de produção de aço. Então era um outro mundo. (Entrevista com Alberto Cantanhede, líder do povoado do Taim em 11 jan. 2012). Seguindo as explicações de Alberto Cantanhede e de Cloves Amorim86, também pescador e liderança do povoado de Cajueiro, se vê que o modelo de gestão do território baseado em assentamento rural, para aqueles povoados da Zona Rural, não correspondeu às singularidades da população. Embora sejam significativas as atividades agrícolas voltadas para a subsistência com base na pequena produção familiar, tratava-se de uma população com atividades muito mais voltadas ao extrativismo marinho (e atualmente em menor escala à prática de extrativismo mineral) e à atividade de pesca artesanal. Quer dizer, para estas 86 Entrevista em 20 mar. 2013 com Cloves Amorim: pescador, líder comunitário do povoado de Cajueiro, engajado no movimento de pescadores artesanais e membro do Reage São Luís. 184 lideranças, o projeto de assentamento rural na forma estabelecida foi mais um processo de imposição “de cima para baixo” sem diálogo com a sociedade e com as organizações. Em 2000, já informados pelo SNUC, viram que o modelo de unidade de conservação no formato de uma Reserva Extrativista estaria muito mais aproximado da realidade. Quanto ao processo de institucionalização nota-se também uma mudança significativa na forma de atuação dos órgãos governamentais que lidam com as políticas ambientais, em especial o IBAMA, por meio do CNPT que propõe “[...] metodologias participativas para que a construção coletiva do conhecimento seja também um instrumento de articulação entre os atores envolvidos e de valorização da cultura tradicional” (IBAMA, 2007, p.7). Foi nesse contexto de mobilizações que estas lideranças, por meio das associações de moradores e articulados ao GTA e com o MONAPE, iniciaram a busca de reconhecimento oficial como “populações tradicionais”. Ao acionar esta categoria, os moradores e as organizações, principalmente as associações de moradores articuladas ao movimento de pescadores e as demais organizações mencionadas acima, tais como GTA, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, Forum Carajás, recorreram a vários dispositivos com o propósito de reivindicar legalmente a propriedade da área. Em primeiro lugar, nota-se que as lideranças recorreram ao amparo legal, uma vez que o termo “populações tradicionais” foi incorporado inicialmente pelos órgãos estatais que lidam com o meio ambiente. Mais especificamente, com o CNPT em 1992, órgão ligado diretamente ao IBAMA e posteriormente, em 2007 com o surgimento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o CNPT passou a integrar este novo órgão federal. Nota-se um enquadramento de determinados grupos sociais como “populações tradicionais” a serem alvos de planos, programas e projetos, dentre dos quais se encontram as atribuições relativas à criação de Reservas Extrativistas em conjunto com estes grupos assim denominados. Ora, neste processo de resistência ao deslocamento para instalação do polo siderúrgico e também em defesa da Reserva Extrativista, como verificou Gaspar (2009, p. 117) no caso do Taim, “a expressão populações tradicionais aparece como categoria de atribuição às famílias residentes nos povoados incluídos na área pretendida para a criação da RESEX de Tauá-Mirim”. Nesta busca, os moradores mobilizados por meio das associações recorrentemente passaram a acionar esta categoria. Observa Gaspar (2009) que os moradores do Taim recorrem ao histórico de ocupação como forma de conectar as gerações presentes com uma “ancestralidade comum”, aos primeiros moradores do lugar, entre estes negros escravos. Outra forma de conectar o presente ao passado ocorre também através das manifestações 185 culturais que seriam herdadas destes primeiros habitantes negros, tais como, as festividades e devoção a São Benedito, acompanhados de danças como o Tambor de Crioula87. O Tambor de Crioula tem sido uma manifestação cultural local importante também na ótica da identidade local (ver Silva (2009)88. Em segundo lugar é importante salientar que o uso do termo “população tradicional” passou a ser recorrente nos discursos das lideranças comunitárias se constituindo como parte da composição do repertório de ação política. Segundo Sant`Ana Júnior et al., (2009, p. 27). Parte dos moradores da área disputada para instalação do polo siderúrgico, através de suas associações e lideranças, reivindica a condição de “população tradicional”, argumentando que praticam a pesca, coleta de marisco, agricultura familiar, mantendo uma relação sustentável, mantêm suas próprias formas de organização comunitária, ocupam ancestralmente a área, mantendo um modo de vida e uma cultura próprios. O uso do termo, entretanto, não se restringe às manifestações públicas. Tem sido disseminado na linguagem cotidiana por diversos meios de difusão tais como escolas, cursos de capacitação, associação de moradores, órgãos governamentais, de modo que passou a operar como uma espécie de “dupla hermenêutica”, conforme uso do termo feito por Giddens (1996), ao falar da reflexividade da produção do conhecimento no campo sociológico, quando os atores sociais incorporam, em suas práticas sociais, um conceito construído fora, mas acionado por eles, na medida em que se faz necessário incorporá-lo, dotando-o de novos significados e novos sentidos atribuídos dentro do contexto social em questão. O uso que se faz da expressão “Populações Tradicionais”, agora não é somente o que vem daqueles órgãos e/ou intelectuais que o inventaram para intervir na realidade. Passa ser também um dispositivo de ação política a ser acionado, uma vez que é uma forma de categorização, de classificação social e política que, neste caso, é instrumentalizado juridicamente porque interessa a toda uma coletividade. Neste sentido, as lideranças do Taim, Rio dos Cachorros, Cajueiro, Porto Grande, entre outros perceberam que havia perdas e compreenderam a necessidade de que essas perdas deveriam ser reparadas, considerando também, o perfil da população local tendo em vista que se trata de uma população de pescadores-agricultores e extrativistas. Essa foi a razão pela qual as lideranças tomaram a iniciativa de solicitar a instalação de uma Reserva Extrativista. 87 O Tambor de Crioula é uma forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros, ou então associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. (IPHAN, c2014). 88 Silva (2009) analisou como os moradores do Taim recorreram à memória coletiva como estratégia de luta política para permanecer no território. A autora mostra que as relações de parentesco, de amizade, de vizinhança e de compadrio, associados às manifestações culturais, a exemplo do Tambor de Crioula, e dos festejos dos santos padroeiros, reforçam e se constituem como elementos de organização comunitária importantes nos processos de resistência política aos deslocamentos compulsórios. 186 A gente tinha acabado de dar entrada no pedido da RESEX em agosto de 2003, quando já havia todo um ambiente para isso. Já vínhamos discutindo desde 98 a possibilidade de reparação dos danos ambientais, a gente só não sabia como fazer isso, a gente começou essa discussão. O que que a gente pensava, perdemos produção, perdemos espaço de trabalho e um conjunto de coisas, de patrimônios que a gente tinha. Então como é que a gente fazia, uma ideia era garantir que a gente não piorasse. Solicitamos reuniões com as empresas do setor e diziam que topavam, achavam a ideia interessante conversamos com o poder público municipal que era a criação de um centro de referência pra saúde, não pedimos indenização nenhuma né, até então, esse era outro passo que a gente tinha, então nós queríamos assegurar que pudesse estabilizar a questão saúde tanto do trabalhador quanto das populações que estão no entorno desses grandes empreendimentos e aí a gente não avançou muito, disseram ok, mas não deram o passo seguinte, tanto o estado quanto a empresa, aí a gente queria ver essa questão do meio ambiente como é que ficava na mesma tentativa de estabilizar os danos, aí a gente pensa na unidade de conservação. (Entrevista com Alberto Cantanhede, líder do povoado do Taim. Entrevista em 11 jan. 2012). O projeto de instalação da Reserva Extrativista como relata Alberto Cantanhede, começou pela articulação nas discussões em nível nacional sobre a política ambiental no âmbito do GTA. O Governo do Maranhão e a Prefeitura de São Luís, em conjunto com a Companhia Vale empenhavam-se pela instalação do polo siderúrgico e mobilizavam a sociedade local tanto seguimentos organizados da sociedade, como foi o caso do empresariado maranhense, quanto as lideranças que também deram apoio ao projeto do governo. Mas, a mobilização contra a instalação do polo siderúrgico e, por conseguinte, contra o deslocamento de grande parte dos povoados da Zona Rural II de São Luís, foi também um momento importante para dar visibilidade ao projeto de instalação da Reserva Extrativista. A retomada deste projeto no âmbito do Reage São Luís pode ser compreendida, portanto, como um desdobramento da mobilização contra o polo siderúrgico. Outra estratégia importante foi acessar os canais institucionais no âmbito do governo federal ligados às políticas ambientais. Na época, o IBAMA e o CNPT foram importantes na interlocução para a demanda da RESEX entre as várias instâncias do governo e os movimentos sociais, pois, erem estes órgãos os responsáveis respectivamente pela criação da RESEX e por sua gestão. Questões como os instrumentos e a forma de gestão de uma RESEX ainda eram desconhecidas pela maioria dos moradores, o que de certa forma gerou uma série de dúvidas quanto à continuidade de suas atividades econômicas e de sobrevivência, caso a RESEX viesse a ser instalada. Entre 2006 e 2007 ocorreram várias reuniões para tratar do projeto da RESEX. Tive a oportunidade de participar de uma Audiência Pública em 2006, no povoado de Vila Maranhão. Naquele ano não tinha pretensão de estudar a situação, no entanto, como membro do GEDMMA (UFMA), observando os desdobramentos do debate sobre o polo siderúrgico, percebi que alguns moradores presentes na Audiência trabalhavam com extração mineral, fosse de areia, barro ou pedras, temiam ter suas atividades paralisadas e seus imóveis 187 desapropriados com a mudança de gestão. Embora sendo um número reduzido de pessoas, tais preocupações por parte destes moradores mostraram a dimensão do problema que os proponentes da RESEX iriam enfrentar. Percebi nas intervenções deste pequeno grupo que havia preocupações com o que poderia acontecer se suas atividades fossem controladas pelo “Conselho” e segundo o “Plano de Manejo” que naquele contexto estavam sendo apresentados e discutidos. Reserva Extrativista (RESEX) é uma modalidade de unidade de conservação ambiental prevista no Sistema Nacional de Unidade de Unidade de Conservação (SNUC), conforme está instituído pela Lei nº. 9.985, de 18 de julho de 2000. O SNUC estabelece duas modalidades de unidade de conservação: 1) de Proteção Integral; e 2) de Uso Sustentável (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2003). As Unidades de Uso Sustentável visam “[...] compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais”. São divididas em sete categorias: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista (grifo meu); Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; e Reserva Particular do Patrimônio Natural. Já as Unidades de Proteção Integral, visam “[...] preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos nesta Lei”. Estas se dividem em: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; Refúgio de Vida Silvestre (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2003). Dadas as especificidades das atividades, do ambiente e da população, no diálogo estabelecido entre a população, o IBAMA e o CNPT, houve um acordo em torno da classificação prevista no SNUC de que a RESEX seria classificada como Reserva Extrativista Marinha. Em 2003 os moradores dos povoados de Taim, Cajueiro, Rio dos Cachorros, Limoeiro e Porto Grande, por meio de um abaixo-assinado, solicitaram ao IBAMA a criação da RESEX na Zona Rural II de São Luís. Em seguida, o IBAMA instaurou o processo de constituição da RESEX (nº 02012.001265/2003-73, de 22 de agosto de 2003). Foram realizados dois laudos como requisito legal para a instalação da RESEX, sendo que o primeiro foi publicado em 2006 e o segundo em 2007. A realização da primeira audiência ocorreu em 2006, sob a coordenação do IBAMA, visando consultar a população acerca do pedido de inclusão dos povoados na RESEX (MIRANDA, 2009). Vejamos como o debate sobre a instalação da RESEX em contraposição da instalação do polo siderúrgico está posto no primeiro Laudo Socioeconômico e Biológico para a criação da Reserva Extrativista de 2006 (IBAMA, 2006, p. 7). 188 [...] A instalação do Polo Siderúrgico em São Luís implicará na destruição de aproximadamente 10 mil hectares de manguezais (desmatamento e aterramento) tanto para a instalação das usinas, como para a construção do porto. Essa área compreende extensas áreas de brejos que formam nascentes de rios e riachos. Para implantação do Polo Siderúrgico é necessária a instalação de lagoas de contenção de lama ácida. Na hipótese de vazamento, estas lagoas poderão contaminar os mangues. Existe ainda a possibilidade de ocorrer chuva ácida na região, causando danos aos manguezais situados na direção dos ventos predominantes, a exemplo da Ilha dos Caranguejos, com graves conseqüências sobre todo o ecossistema da Baía de São Marcos. Estas questões enumeradas acima e outras que poderão surgir com a reflexão consciente sobre o assunto, fortalecem a discussão, que vem sendo realizada pela comunidade desde 1996, antes da existência do projeto de criação do Polo Siderúrgico, sobre a criação da RESEX do Taim. Para as comunidades envolvidas nessas discussões, a RESEX se apresenta como alternativa de conservação, por conciliar o potencial natural às tradições sócio-culturais da região, concretizando os preceitos da sustentabilidade ambiental. No caso da área proposta, a criação da RESEX viria garantir a territorialidade, o uso dos recursos naturais e o modo de vida tradicional [...] Pelo Laudo de 2006 a proposta da RESEX incluiu os povoados de Cajueiro, Limoeiro, Taim, Rio dos Cachorros, Porto Grande, parte da Vila Maranhão (estes incluídos no processo de deslocamento para instalação do polo siderúrgico) e foi denominada de RESEX do Taim (IBAMA, 2006). Posteriormente, em 2007 foi realizado o segundo Laudo SócioEconômico e Biológico incluindo a ilha de Tauá-Mirim (ver Mapa 5), onde estão localizados os povoados de Amapá, Embaubal, Portinho, Jacamim, Ilha Pequena, Amapá e Tauá-Mirim, uma vez que esta ilha apresenta alto grau de conservação ambiental. Foi alterada também a denominação que antes era RESEX do Taim e neste novo laudo de 2007, passou a ser RESEX de Tauá-Mirim, pois, durante a tramitação do pedido de instalação, foi constatado pelo IBAMA que havia uma Reserva Biológica no Rio Grande do Sul com o mesmo nome (IBAMA, 2007). Na proposta atual, conforme o Mapa 5, a área totaliza 16.663,55 hectares e perímetro de 71,21 km (SANT’ANA JÚNIOR, et al., 2009). A inviabilização do polo siderúrgico, entretanto, deixa sem garantia a permanência nos territórios. Mesmo sem a instalação de um grande empreendimento, há ameaças contínuas em função da instalação de empreendimentos menores. Vejamos no Mapa 5, que os povoados estão localizados ao longo da faixa litorânea conforme o traçado dos limites da proposta da RESEX. Eles estão sendo pressionados no sentido do interior da ilha em direção aos seus territórios. Se por um lado, a ameaça com o polo siderúrgico despertou o interesse pela organização política de resistência ao deslocamento, reativando a proposta da instalação da RESEX, por outro, há um visível avanço no processo de ocupação das áreas no entorno dos povoados, que os coloca em situação de constante ameaça, principalmente em função da escassez dos recursos naturais, sobretudo quanto aos recursos pesqueiros que fazem parte da subsistência dos moradores. 189 Mapa 5 – Área proposta para a criação da RESEX de Tauá-Mirim (São LuísMA) Fonte: IBAMA (2007) Vale observar o que dizem algumas lideranças89 sobre esse avanço dos empreendimentos. No primeiro relato trata-se da situação de um dos povoados localizados entre a baía de São Marcos e as empresas que avançam sobre as áreas agrícolas e de empresas ligadas às atividades portuárias que impactam as atividades pesqueiras: [...] Acho que daqui a dez anos não tem mais ninguém aqui: elas estão vindo devagar e ocupando o espaço. Não tem aquele posto ali na frente? É administrador desse porto aqui; uma época ele queria botar uma lavagem aqui, nós embargamos, [...] Eu participava do movimento e, no documento, o porto era da comunidade, foi a Marinha que doou pra comunidade. Aqui, o pessoal quase não pesca, tem o mar bem aqui, mas essas empresas estão acabando, dragando o fundo do mar, mas o pessoal ainda vai pescar, mas não vive mais de pesca. De agricultura tem poucas pessoas que trabalham. Aqui as pessoas dizem assim: “ah eu me aposentei, não tem nada”, já teve, tem muita plantação, hoje não tem mais por conta também dessas jazidas, dessa degradação dessas usinas. Um aposentado, uma mandioca aqui, você conhece aqui na ponta de dedo as pessoas aqui que trabalham, mas só pra comer e não pra vender, se fosse viver de horta já estava morto [...] acho que daqui a dez anos nós não estamos mas aqui porque essa área todinha tá sendo tomada pelas empresas, de um lado, aqui é o mar, do outro essa Votorantim (refere-se à fábrica de cimento desta empresa), mais lá na frente já tão fazendo o Minha Casa Minha Vida perto do Rio dos Cachorros; por trás da mineradora tem um terreno comprado já ouvir dizer, da Argamassa. Tudo isso polui a gente aqui, aí já tem essas jazidas (refere-se à fábrica que extrai pedra e areia), essas usinas de asfalto, bem aqui tem duas, tem a Prime e a Paraíba, aí a outra Egídio Oliveira, Vieira Moreira, só mineradora. (L. Entrevista realizada em 22 out. 2012) Srª. M. relatou que na época em que participou da mobilização contra a instalação do polo siderúrgico um funcionário de uma das empresas de consultoria da qual não lembra o nome, disse a ela o seguinte: 89 Por questões de segurança, neste caso, dei um nome fictício ao entrevistado evitando também mencionar o nome do povoado. 190 D. L. daqui a uns 15 anos vocês não vão estar mais aqui”, ele me disse: “é fase por fase que vai acontecer isso”. Aí digo: olha o que esse homem me disse tá acontecendo, ele disse que vem uma empresa muito grande, até 2012 e 2013 tá finalizando e tá mesmo, a MPX (Termelétrica Porto de Itaqui da MPX)90. Foi uma briga tão grande o pessoal do Cajueiro, fez tanta confusão que essa empresa não ia entrar, era vereador dando cem reais para ir para as reuniões, todos querendo que essa empresa acontecesse, era muita confusão muito debate, não adiantou nada, tá aí a MPX estão lá, até dando curso de meio ambiente aqui para a gente. (L. Entrevista realizada em 22 out. 2012). A situação do Taim, na percepção de uma das lideranças do povoado também é relatada da seguinte forma: [...] Tem as empresas, as minerações, são oito minerações, duas de asfalto, uma de concreto, uma de fertilizante, já estão fazendo outra de fertilizantes, tem uma fábrica de cimento, tem a Termelétrica (Termelétrica Porto de Itaqui da MPX) e a Vale com o projeto dela e a Alumar. Só no nosso entorno aqui tem mais 6 indústrias de médio porte [...]. (Jean Carlos, liderança do Taim. Entrevista em 31 jan. 2012). Em vista da situação por ele relatada, perguntei sua opinião sobre o processo de resistência ao polo siderúrgico do Taim e a que ele atribuía o êxito da organização local que de certa forma havia evitado o deslocamento de seus moradores. O relato é o seguinte: [...] talvez seja porque quando uma pessoa luta só ele não tem tanto êxito, agora quando se une ai a gente viu que o que a gente tira de lição é isso, quando uma pessoa se une com outra pessoa ela vai se unindo gera uma rede, aí fortalece e a gente tem orgulho de pessoas irem dizer lá que a comunidade mais resistente ao Polo Siderúrgico, “que não gosta do progresso”, foi o que eles falavam, é o Taim, que foi a única que não foi pixada91 por eles, foi a única que poucas pessoas vieram aqui conversar com a gente aqui; que a gente não aceitava, e eles sempre queriam vir aqui conversar para talvez pra amolecer, enfraquecer o movimento. Queriam conversar marcar reunião, só que a gente nunca quis reunião com eles, porque eles fizeram reuniões em quase todas comunidades, foram lá mostraram o projeto querendo ganhar mais seguidores. Mas o Taim nunca teve isso não, tem esse orgulho de dizer que teve uma grande resistência aqui até a barrar o polo siderúrgico. Barramos o polo siderúrgico, mas outras coisas, foi o que eles falaram, vamos transformar isso aqui em área industrial que é o que eles queriam, o segundo distrito industrial de São Luís. Agora o que me deixa mais triste é que eles estão quase conseguindo fazer isso, tem indústria para tudo enquanto é lado aqui nessa região. (Jean Carlos, liderança do Taim. Entrevista em 31 jan. 2012). Os trechos acima concordam quanto à percepção de que as empresas estão avançando sobre os povoados, mas é preciso dizer que há posições diferentes quanto à ideia de continuar resistindo, como também, na perspectiva de buscar o reconhecimento como 90 Usina Termoelétrica Porto do Itaqui, foi instalada em 2009 e iniciou suas operações em 2012. Inicialmente pertenceu a empresa MPX Mineração e Energia Ltda, do empresário Eike Batista, e integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal. Com a falência da MPX em 2013, a Termelétrica foi comprada pela Companhia ENEVA S.A que atua nas áreas de geração e comercialização de energia elétrica, com negócios complementares em exploração e produção de gás natural. (ENEVA, c2014). 91 Vale lembrar que quando os funcionários da Diagonal Consultoria tentaram marcar as casas com numeração feita em tinta preta no povoado do Rio dos Cachorros, imediatamente as lideranças locais, em especial a Sr. Máxima Pires acionou Alberto Cantanhede, líder Comunitário do povoado vizinho, o Taim que juntos impediram a continuidade das marcações. Descrevi este episódio no Subcapítulo 3.8. 191 “população tradicional”. As lideranças locais têm procurado estabelecer unidade entre os povoados, como também buscado parcerias com outros organismos governamentais (a exemplo, o CNPT, ONGs, pesquisadores e universidades). A proposta tem sido objeto de divulgação e discussão entre os moradores no sentido da sensibilização para a compreensão do que seja uma Reserva Extrativista e sua importância para os moradores e também para a cidade de São Luís. O Laudo Socioeconômico e Biológico para a criação da Reserva Extrativista do Taim apresenta um perfil ocupacional da população da área da RESEX, indicando os seguintes dados: estudantes (26%), donas de casa (15%), pescadores (11%), mineradores de areia e pedra (9%), lavradores (6%), aposentados (4%), desempregados (4%), extratores de lenha (1%); 24% da população em idade produtiva está caracterizada na categoria “outras ocupações” (IBAMA, 2007). Embora sendo uma região que apresenta um potencial em termos de recursos e ambientes que devem ser preservados e que também seus moradores em grande parte se beneficiem de tais recursos, os dados confirmam a percepção da crescente escassez de recursos tal como relatado acima. Ou seja, os relatos e os dados indicam o quanto os meios de vida da população estão ameaçados em função do avanço de empreendimentos industriais e de atividades portuárias que geram profundos impactos, principalmente nas atividades pesqueiras, ou seja, apenas 11% se ocupam com esta atividade. E embora os dados possam omitir outras variáveis quanto às atividades de subsistência eles permitem inferir o quanto estes recursos decrescem na medida em que são produzidos cada vez mais impactos ambientais em decorrência de obras de expansão da estrutura portuária das grandes empresas instaladas nas proximidades da área solicitada para instalação da RESEX. O processo de instalação RESEX explícita o histórico de conflitos que remonta aos anos de 1980. Ilustra a tensão entre aqueles atores que reivindicam a permanência nos territórios e aqueles que consideram os mesmos territórios como áreas de “vocação industrial”. Sobre o processo de implementação das políticas de ordenamento territorial nas áreas onde se localizam esses povoados, nota-se que um dos dilemas que enfrentam os gestores é o de tentar compatibilizar a demarcação das fronteiras com o uso e ocupação do solo por atores sociais heterogêneos, com seus diferentes interesses e lógicas de uso e de ocupação nessa região da ilha de São Luís (CARVALHO, 2009). Entretanto, para as lideranças dos povoados empenhados na proposta da RESEX são “duas propostas antagônicas, um querendo preservar e outro querendo destruir”. Face a estas duas posições há que se levar em conta a correlação de forças. Foram cumpridas as seguintes etapas para a criação da RESEX: a solicitação formal dos moradores da área; a 192 realização de vistoria técnica pelo CNPT/IBAMA para realização do levantamento sobre a potencialidade dos recursos; a elaboração de laudos socioeconômicos e biológicos e a realização de consulta pública aos moradores da área para a implantação da reserva. Atualmente o cenário político tanto no nível nacional quanto no âmbito regional se modificou. Com a saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente o Governo Federal mudou a orientação da política ambiental, retomados grandes projetos de infraestrutura. Com saída de Marluze Pastor da Gerência Executiva do IBAMA (MA) este cargo voltou a ser ocupado por indicação do governo estadual, no caso, a governadora Roseana Sarney. Conforme Sant’Ana Júnior, et al., (2009, p. 28), o processo da RESEX de Tauá-Mirim foi concluído, estando apenas aguardando sanção presidencial, entretanto, [...] aqueles que demandam a criação da Reserva Extrativista, atualmente vivem um momento de expectativa, pois existe uma orientação geral da Presidência da República de que novas unidades de conservação geridas pelo Governo Federal somente seriam instaladas com a aceitação formal dos governos dos estados nos quais seriam criadas. A consulta, presentemente está sendo feita ao Governo do Maranhão que sofre fortes pressões por parte dos planejadores estaduais, empresas nacionais e estrangeiras e empreendimentos mineradores (de areia e pedra) que atuam na área ou a percebem como local estratégico para novos empreendimentos, em função da infraestrutura (portos, ferrovia, rodovias) disponível. Por outro lado, as organizações sociais dos povoados implicados, com apoio de movimentos sociais, estudiosos e organizações sociais, buscam fazer valer seus interesses, articulando formas de intervenção nos processos decisórios. O projeto de instalação da RESEX continua sendo objeto de disputa. Vale notar que as condições políticas criadas na dinâmica do movimento não garantem, a priori, “de fato” o que é formalmente estabelecido como sendo “de direito”. Estão em “jogo” concepções de projetos de desenvolvimento, nos quais subjazem diferentes concepções de uso social de recursos e dos territórios, representadas de um lado pela compreensão e interesse de grupos que os consideram como sendo de “vocação industrial”. Por outro, aqueles grupos apoiados por órgãos governamentais como o IBAMA que os considerou como sendo de “vocação ecológica”, tal como conclui o Laudo Sócio-Econômico e Biológico (IBAMA, 2007, p. 44): A área em questão possui vocação ecológica e social para a consolidação de uma Reserva Extrativista. A implantação de um polo siderúrgico seria inadequada, pois não cumpriria função social alguma e traria sério impacto a áreas bastante relevantes para preservação. A criação de uma unidade de conservação agroextrativista na região representará um ponto de resistência comunitária e de conservação da biodiversidade, repensando os modelos contemporâneos de sociedade. Esta unidade contemplaria a Ilha de São Luís com mais um reduto natural protegido por lei, promovendo um apoio à forma de viver dos povos tradicionais, valorizando-os e possibilitando a continuidade de sua existência. 193 6 CONCLUSÃO Neste trabalho busquei identificar, descrever e analisar as formas de contestação à instalação de um polo siderúrgico na cidade de São Luís. A partir de relatos dos atores sociais que participaram deste processo procurei identificar as formas de resistência por eles vivenciadas. Comecei a análise pelas primeiras ações coletivas iniciadas postas em prática por lideranças comunitárias, tendo como unidades de observação dois povoados, Taim e Rio dos Cachorros. Posteriormente, procurei verificar os links ou as alianças por elas construídas com outros atores importantes, organizados em ONGs, em movimentos sociais diversos, em igrejas, associações de moradores, centros comunitários, Pastorais da Igreja Católica, e outros povoados também ameaçados de deslocamento. À luz do modelo analítico proposto por Boltanski (1990), considerei o percurso das experiências (descritas e analisadas a partir do Capítulo 3) como um processo de “dessingularização” que desaguou num movimento mais amplo, o Reage São Luís. Os povoados Taim e Rio dos Cachorros localizados na área da Zona Rural II de São Luís se mobilizaram contra a instalação do polo siderúrgico e consequentemente contra a ameaça de deslocamento dos moradores daquela área cujos territórios ocupam historicamente. Evitar a instalação de um empreendimento da magnitude do polo siderúrgico e enfrentar interesses de outros atores e agentes, política e economicamente muito mais fortes levou as lideranças daqueles povoados a buscarem aliados às suas reivindicações e procurar também envolver outros povoados em situação de ameaça pela planta siderúrgica. O Reage São Luís, como propus, pode ser visto como resultado dessa resistência inicial que sustenta a hipótese do “processo de dessingularização”, uma vez que, aquela mobilização inicial dos povoados de Taim e de Rio dos Cachorros, transcendeu os interesses locais, pois, a instalação de um empreendimento com alto poder de impacto ambiental poderia prejudicar toda a ilha do Maranhão e não somente os povoados diretamente afetados. Tal hipótese é alicerçada também pelo entendimento de que a problematização da questão ambiental passa pela capacidade crítica dos atores locais de perceberem os impactos socioambientais e os formularem publicamente. (LOPES, 2004). Quer dizer, pela capacidade de atribuírem à causa desse problema uma dimensão política ou a uma formulação pública, envolvendo um conjunto de atores coletivos (LENOIR, 1996). O que está em questão: a instalação de um polo siderúrgico e a possibilidade de pelo menos 12 povoados localizados na Zona Rural II de São Luís, serem deslocados compulsoriamente. Tal empreendimento siderúrgico envolveu grandes empresas entre elas a 194 Companhia Vale e a siderúrgica chinesa Baosteel, além de outras empresas que estavam em processo de negociação, tais como a sul-coreana Posco, e a alemã ThyssenKrupp, que contavam também com apoio do governo brasileiro, tanto nas esferas estadual e municipal, quanto na esfera federal. Situação que na análise se evidencia como um processo conflitivo de “territorialização” (SOUZA, 1995) e socioambiental de várias ordens (ACSELRAD, 2004; ZHOURI; LACHEFSKI, 2010). A configuração do conflito instalado sugeria que se desse visibilidade também, ainda que brevemente, aos atores comerciais globais, ou seja àquelas empresas multinacionais mencionadas acima que denominei de Gigantes, termo que apareceu na imprensa, referindo-se ao poder econômico que estes possuem, uma vez que atuam no mercado global de commodities (ver Capítulo 2). Estes atores comerciais globais estavam articulados aos atores políticos locais, entre os quais se destacava o papel do governo estadual, com apoio de agências do governo federal e também da Prefeitura de São Luís. Procurei, então, pensar a configuração de uma “arena” no sentido dado por Olivier De Sardan (p. 178-179):“[...] est une notion d’ordre plus interaccionniste, [...] plus “politique” [...] est un lieu de confrontations concrètes d’acteurs sociaux [...] Un projet de développement est une arène. Le pouvoir villageois est une arène. Un ecoopérative est une arène”. Embora se leve em consideração a capacidade de imposição pelo poder econômico das grandes empresas, os atores locais foram capazes de colocar em questão à viabilização de um empreendimento que estava dado como um projeto a ser realizado. O governo em suas várias instâncias assim como estes atores comerciais globais, se surpreendeu com a mobilização política e de resistência local que ganhou notoriedade pela adesão de significativos setores da sociedade civil organizada de São Luís. De certa forma, as ações coletivas organizadas pelo Reage São Luís evidenciam a sugestiva proposição teórica de Olivier De Sardan (1997) quando diz que face aos “projetos de desenvolvimento” os atores sociais locais não são meras “correias de transmissão”. Este autor percebe que estes atores locais têm capacidade crítica de reagir, de negociar de tirar proveito conforme os interesses em jogo. Quer dizer, numa perspectiva mais pragmática e descritiva, a “Arena” é um “lugar de confrontação concreta” (lieu de confrontations concrètes d’acteurs sociaux). A noção de Arena abre um leque bastante amplo de possibilidades analíticas pois não se restringe a estabelecer padrões e categorias analíticas pré-definidas. Há um conteúdo descritivo que permite visualizar os processos sociais por uma ótica mais interacionista que complexifica a percepção dos conflitos. 195 No entanto, no caso analisado, se trata de uma situação de enfrentamento político bastante delimitado, pontual quanto às ações coletivas visando questionar um projeto de “desenvolvimento econômico” para uma área que, na percepção dos planejadores estatais apresenta uma “vocação industrial”, termo recorrentemente utilizados pelos agentes e planejadores governamentais ao justificarem a necessidade de converter as áreas rurais e residenciais em áreas industriais. Quanto à estrutura dos repertórios, às formas de ação e ao quadro argumentativo, procurei descrever a estrutura de mobilização e de argumentação do Reage São Luís pela ótica da teoria de “campo” de Bourdieu (1997). Dessa forma, identifiquei três “campos”: o “campo sociopolítico”, o “campo científico” e o “campo jurídico”. Tratei de utilizar estes “campos” para descrever a dinâmica do Reage São Luís, pois a ideia de usar essa nomenclatura me ocorreu na medida em que fui aprofundando na análise das entrevistas e observando a forma como alguns membros do Reage São Luís expunham sua compreensão do processo de mobilização. Importante, mencionar que este viés foi complementado pela perspectiva interacionista proposta pela ótica da “arena” de Olivier de Sardan (1997) que ajudou a ampliar o olhar para as variações e diferentes níveis de conflitos. Quer dizer, os conflitos não se dão apenas entre os que desejam e os que não desejam o desenvolvimento, e também não se resumem às diferenças entre a agência estatal e a sociedade civil, ou entre estas e as grandes empresas interessadas no empreendimento siderúrgico, no caso da Companhia Vale e empresa siderúrgica chinesa Baosteel. Na realidade, houve parcerias entre os agentes e agências estatais e as associações de moradores, para citar apenas o caso da parceria entre o CNPT e a Associação de Moradores do Taim, a Associação de Moradores do Rio dos Cachorros, contando também com a participação de moradores e lideranças dos povoados de Cajueiro e de Porto Grande. No período em que se debatia o projeto de instalação do polo siderúrgico, estes moradores por meio de suas organizações locais, discutiam por outro lado, o projeto de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim. Neste processo de disputa territorial a parceria com o CNPT contribuiu decisivamente para a percepção, formulação e ampliação da questão socioambiental. Por outra ótica, houve conflitos entre os moradores dos povoados quanto à opinião de ser a favor ou contra a instalação do polo siderúrgico na área. Estes conflitos entre os prós e os contra o polo siderúrgico, foram potencializados com os processos de alianças e de adesão de lideranças aos empreendedores e agentes estatais durante as negociações, tal como procurei ilustrar em alguns relatos. Mas, há também aqueles conflitos que estão em “jogo” por outros 196 interesses e sobre os quais somente uma pesquisa empírica de profundidade em cada caso poderia oferecer um quadro mais detalhado. Não é, entretanto, meu propósito neste estudo. Ao defenderem a posição contrária à instalação do polo siderúrgico, lideranças do Taim, por exemplo, foram consideradas pelos seus opositores como sendo contra ao “progresso” e o “desenvolvimento”92. Essa situação de ter que se justificar foi também recorrente no âmbito dos coordenadores do Reage São Luís. Como lembrou o sociólogo e Professor José Alcântara Júnior, membro do Reage São Luís 93, a coordenação do movimento teve que não somente se empenhar em argumentar contra a instalação do polo siderúrgico, mas também justificar por que o movimento era contra um projeto que estava sendo publicado como gerador de emprego e renda para os maranhenses. Portanto, tratar de conflito no âmbito de projetos de desenvolvimento é de uma complexidade tamanha que neste caso, escapa às formulações teóricas que organizam a visão científica do pesquisador. Dentro do processo conflitivo e mediante a complexidade na configuração da “arena” foi necessário estabelecer um recorte empírico, razão pela qual a formulação do objeto de estudo desta tese foi centrado na formação do movimento de contestação, procurando por meio dos relatos, evidenciar as formas de mobilização, os repertórios de ação política que no conjunto das ações designei como processo de “dessingularização”. Na descrição das organizações sociais que compuseram o movimento Reage São Luís, procurei mostrar as interconexões que convergiram para a formação da resistência, enfatizando os argumentos e os repertórios de mobilização. Situei o Reage São Luís dentro dos formatos organizativos dos “novos movimentos sociais”, que segundo Doimo (1995) não se inserem mais na órbita das relações de produção, mas em outros espaços entre mercado, Estado e cultura. Lima (2009) ao analisar alguns aspectos do Movimento Reage São Luís, o considera como “um movimento de coalizão e transclassista”, uma vez que a sua reivindicação transcendeu as fronteiras de classe, unificando organizações distintas cujo interesse é a questão socioambiental. Nesta perspectiva este autor também situa o Reage São Luís como um movimento contemporâneo. Dentro destes novos formatos organizativos da atualidade, alguns aspectos destacados por Gohn (2013) podem ser elucidativos para pensar o caso do Reage São Luís. Em primeiro lugar, os movimentos da atualidade se caracterizam pelo caráter sociopolítico e cultural das ações coletivas, adotando diferentes estratégias de reivindicação: denúncia, pressão direta e indireta. No caso do Reage São Luís, a pressão direta do movimento sobre o governo 92 93 Notas de entrevista com Jean Carlos, liderança do povoado do Taim em 31 jan. 2012 Notas de entrevista realizada em 15 dez. 2011. 197 do Maranhão pode ser ilustrada: pela exigência imediata de uma reunião com o Secretário de Indústria e Comércio e com a Prefeitura de São Luís, e pelas intervenções nas audiências públicas. Indiretamente, as pressões se deram, por exemplo, pela busca ao acesso à documentação sobre a área na SPU em Brasília quando os membros do Reage São Luís constataram que havia de fato um pedido de desapropriação de terras na Zona Rural II de São Luís para instalação de um polo siderúrgico. Em segundo lugar, os movimentos da atualidade se organizam por meio das chamadas “Redes Sociais” que articulam as demandas locais às nacionais e internacionais com novos meios de comunicação e informação, a exemplo, a internet. As “Redes Sociais”, diz Gohn (2013, p. 15): [...] São estruturas da sociedade contemporânea globalizada e informatizada. Elas se referem a um tipo de relação social, atuam segundo objetivos estratégicos e produzem articulações com resultados relevantes para os movimentos sociais e para a sociedade civil em geral. As redes podem ser articuladas diretamente nos bairros, comunidades, povoados, no contato direto entre pessoas, organizações e movimentos, mas podem ser articuladas também virtualmente, por meio de articulações via online com uso da internet. O uso do termo link por membros do Reage São Luís, exemplifica esta estratégia de articulação virtual, mas, as articulações se fizeram também pelo contato direto entre pessoas, organizações inseridas nas redes sociais. Entre as instituições que foram acessadas por articulação em redes pelo Reage São Luís, destacam-se, por exemplo, Fórum Carajás, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (MA), Movimento Nacional por Moradia Popular, OAB-MA, Congregação Irmãs de Notre Dame (MA), SMDH, Plataforma DhESCA. Estas organizações por sua vez estão conectadas com outras organizações regionais, nacionais e internacionais. De modo que este formato organizativo em redes permite não somente a rapidez no fluxo de informações para as tomadas de decisão, mas também o empoderamento político, na medida em que criam “sujeitos sociais” para atuarem nas redes (GOHN, 2013). Vale destacar que no caso do Reage São Luís, diferentes experiências ocorridas em contextos históricos diferentes, foram utilizados. Além das redes sociais, o Reage pôde se utilizar de repertórios historicamente acumulados. Entre estes, procurei destacar as experiências de resistência durante os anos de 1980, a exemplo do surgimento do Comitê de Defesa da Ilha que naquele período se uniu às comunidades ameaçadas de deslocamento pela instalação da Alcoa, tal como discuti no Capítulo 1. O Reage São Luís, no entanto, como um movimento social contemporâneo inovou nas formas de mobilização política através das redes de movimentos sociais, mas também, aproveitando-se das oportunidades políticas do presente, 198 sobretudo, considerando os novos escopos e espaços institucionalizados com o processo de democratização instalados na estrutura do poder estatal (o processo de instalação da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim exemplifica essa relação dialógica entre os povoados que reivindicam a RESEX e a parceria estabelecida com o IBAMA e o CNPT). Se por um lado, estes novos espaços, embora tenham dado “voz e vez” a estes novos sujeitos sociopolíticos historicamente excluídos das arenas de participação (DOIMO, 1995; GOHN, 2013), por outro, as novas institucionalidades não são garantias a priori da participação e da justiça social. A experiência de resistência organizada pelo Reage São Luís mostra, por exemplo, que os conselhos (Conselho da Cidade, Conselho de Meio Ambiente), bem como as audiências públicas podem ser transformados em instrumentos e meios de forjar decisões consensuais. Nesse sentido, pode-se dizer que estes espaços são objetos de disputas. Assim, estes espaços não somente não garantem de antemão a participação qualitativa desses sujeitos políticos, como também, podem ser transformados em instrumentos de manobras políticas por parte dos grupos de interesse. Neste caso em estudo, há que se considerar que o governo estadual, articulado politicamente ao governo municipal se empenharam pela viabilização do polo siderúrgico, de modo a construir manobras políticas para evitar os mecanismos de participação e de questionamento, pelos impactos que o projeto do polo siderúrgico causaria caso fosse instalado em São Luís. Face à premissa segundo a qual as estruturas formais não garantem de antemão a participação política, busquei privilegiar as estratégias de mobilização, descrevendo as formas de ação coletiva construídas pelo Reage São Luís. Estas, substancialmente colocam em questão a participação nos processos decisórios. Na dinâmica do movimento, destaquei a experiência das oficinas e reuniões preparatórias para o público mobilizado intervir nas audiências, e das reuniões para traçar estratégias de mobilização do público alvo a ser mobilizado. Retomando as formulações e a metáfora de Olivier de Sardan (1997), anteriormente mencionadas, é importante conceber os agentes do desenvolvimento, não como “correias de transmissão”, mas como atores sociais relevantes com capacidade de mobilizar recursos e importantes aparatos cognitivos mediante as agências de desenvolvimento. Se, por um lado, as ações empresariais estratégicas têm sido importantes nos processos de negociação sobre implantação de projetos de desenvolvimento, por outro lado, as respostas e /ou reações dos atores que conflitam, dialogam e negociam com tais empresas, devem ser consideradas, sobretudo quando essas ações podem acarretar novos desdobramentos nos processos de decisão. Nesta perspectiva, “atores sociais relevantes” interagem no “jogo”, são dotados de uma capacidade cognitiva que lhes facultam construir estratégias de ação. Por 199 esse prisma, o desenvolvimento é interpretado como uma espécie de “aposta” segundo as distintas formas de capitais de cada “jogador”. O desenvolvimento é, portanto, um universo amplamente cosmopolita de atores sociais diversificados: experts, burocratas, pesquisadores, representantes de ONGs, trabalhadores rurais e técnicos, que mobilizam “recursos materiais e simbólicos consideráveis”. Esta perspectiva da “socioantropologia”, como sugere Olivier de Sardan (1997, p. 8) ajudaria a maximizar as observações sobre os processos de mudanças sociais, como também, “[...] minimiser les présupposés idéologiques et les catégories préfabriquées”. Sobre a produção sociológica no Brasil, a crítica de Olivier de Sardan (1997) pode ser sugerida no artigo intitulado “Por uma sociologia dos conflitos ambientais no Brasil”, de Alonso e Costa (2000). Os autores avaliam que, no país, a produção acadêmica das ciências sociais sobre meio ambiente tem sido caracterizada por uma superposição entre ativismo ambientalista e pesquisa acadêmica, de modo que a abordagem socioambiental, originária ainda nos anos de 1970, estaria comprometida por um “viés engajado” que teria transformado suas concepções ideológicas em pressupostos analíticos. O processo de institucionalização do ambientalismo, segundo estes autores, tornou hegemônica esta perspectiva: de um lado, através das agências estatais como o IBAMA e, por outro, através de setores da sociedade civil como ONGs, sindicatos, movimentos sociais. A crítica agora feita é que os estudos devem levar em conta “os interesses” e captar objetivamente as relações políticas em que se inserem os atores sociais em suas respectivas reivindicações e repertórios, considerando também, a dimensão cultural dos mesmos. Uma maior “objetividade” evitaria, assim, tanto a generalização do “discurso verde” ou a disseminação ideológica de uma “democracia verde”, quanto o pressuposto de que, dadas as condições institucionais formais para expansão da participação popular, pela realização de Audiências Públicas e formação de Conselhos Deliberativos na gestão das RESEX, por exemplo, estariam garantidas as decisões consensuais sobre os dilemas ambientais (ALONSO; COSTA, 2000). A experiência de mobilização do Reage São Luís e a proposição da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim indicam que as mudanças na forma de atuação do Estado têm sido muito mais impulsionadas pela força da mobilização política. Se, de um lado, o histórico de ameaça de deslocamento pode ter sido estimulante para a organização desses povoados, como apontou um de seus líderes, por outro, as experiências das CEBs potencializaram a solidariedade pré-existente entre eles, mesmo antes da chegada das indústrias nessa região. Em grande parte a organização política dos povoados está associada ao papel das pastorais da Igreja e das paróquias, cujos espaços de festividades religiosas, “festas de santo”, também se tornaram 200 espaços de discussão dos interesses comuns aos povoados. É valido lembrar também, a importância do Comitê em Defesa da Ilha quanto à crítica socioambiental ainda nos anos de 1980 aos projetos da Vale e da Alcoa (Alumar). Em 2004, com o projeto do polo siderúrgico, as investidas de modernização se defrontaram com um cenário de resistência produzido tanto pelos novos formatos de mobilização, como pelo repertório de experiências anteriores, culminando na emergência do Movimento Reage São Luís que em grande medida se beneficiou da “estrutura de oportunidades” no seio do próprio Estado, que também foi fruto de enfrentamentos políticos e de resistências anteriores. Por outro lado, lancei mão do cenário político que propiciou o resultado das ações coletivas, proponho sintetizar 02 (dois) cenários para analisar sob que circunstância o processo de resistência ocorreu: No cenário nacional: o governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva ampliou consideravelmente os diálogos com a sociedade civil. O Ministério do Meio Ambiente estava sob o comando da ecologista Marina Silva. No cenário regional: o IBAMA no Estado do Maranhão estava sob o comando de Marluze Pastor com trajetória de participação nos movimentos sociais ligadas ao meio ambiente na Amazônia e que participou de oficinas, discutiu com a base do Reage São Luís e apoiou a reivindicação dos povoados. Na mesma linha de atuação estava o CNPT, órgão do IBAMA que naquele contexto de embate com o polo siderúrgico já estava envolvido com os povoados para viabilizar o pedido de instalação da RESEX de Tauá-Mirim. Outro aspecto importante na cena política estadual: o grupo político do Senador José Sarney estava fora do governo estadual e conforme registrado pela imprensa, membros do grupo político e mesmo diretamente o Senador Sarney teria mobilizado politicamente seus aliados em Brasília (no Senado e Câmara Federal) para barrar o projeto do polo siderúrgico no Maranhão, visando fragilizar politicamente seus opositores que estavam no controle do governo estadual (FREIRE, 2005). Quanto ao perfil do Reage São Luís, embora eu não tenha investido na obtenção de dados que me permitissem ter uma visão mais detalhada sobre as diferentes posições internas no que diz respeito à política ambiental, com relação ao polo siderúrgico, foi possível identificar pelo menos duas posições: a primeira posição é aquela que minoritariamente, se colocou contra a instalação do polo siderúrgico incondicionalmente, ou seja, defendia que o polo não deveria ser instalado não somente na ilha do Maranhão, mas também era contra a instalação do mesmo em qualquer outro lugar. A segunda posição é aquela que sustenta a necessidade do desenvolvimento e defende que um polo siderúrgico na magnitude daquele que estava sendo discutido pudesse ser instalado fora da ilha. Esta última posição lança um amplo leque de 201 questões relativas aos discursos dos membros do Reage São Luís. Sendo uma posição majoritária, levanto duas ordens de questões não necessariamente para enquadrá-lo, mas no sentido de lançar um olhar crítico sobre esse posicionamento. Em primeiro lugar seria o caso de se questionar, por exemplo, se esta última posição do Reage São Luís, se insere na lógica dos movimentos NIMBY (Not in my backyard – “não no meu quintal”), surgidos nos Estados Unidos e que orientam decisões locacionais de indústrias poluentes “para o quintal dos outros” (ACSERALD et al, 2009). Em segundo lugar, como um movimento alinhado aos chamados “novos movimentos sociais” o Reage se enquadraria naquela crítica feita por Doimo (1995), ao parafrasear Touraine (1981), de que estes movimentos apresentam um “fascínio pelo presente” e dificultam a formação de um projeto ou “uma promessa de futuro” que se contraponha às classes dirigentes. Ademais, o Reage São Luís, é um movimento social que como pude mostrar se caracteriza pelo seu pragmatismo, pela sua objetividade em definir um foco de contestação visando um resultado político pontual de relevância significativa, qual seja o de barrar a instalação de um polo siderúrgico. Uma vez inviabilizado o projeto de instalação deste empreendimento, o movimento foi desarticulado. As organizações e movimentos que o compuseram retornaram às suas agendas específicas, desfazendo o mosaico de entidades que convergiu a uma causa. Caberia perguntar por que as entidades e os “intelectuais orgânicos” e experts não deram continuidade a outras agendas socioambientais da cidade de São Luís, como é o caso, por exemplo da campanha em defesa da instalação da RESEX de Tauá-Mirim? As características elementares dos “novos movimentos sociais”, em parte indicam alguns elementos que permitem dialogar com o caso do Reage São Luís. Em geral, se caracterizam pela fragmentação das ações coletivas; apresentam uma “base social” dispersa e volátil; se originam fora dos formatos tradicionais de representação política; são propensos e vulneráveis ao agenciamento de grupos e de instituições; estabelecem diálogos com a cultura da igualdade social; se organizam em redes sociais (DOIMO, 1995, p. 53). Para uma análise sobre os movimentos sociais no início do século XXI, Gohn (2013, p. 16-17), sugere 04 (quatro) pontos: 1) Lutas em defesa das culturas locais, contra os efeitos devastadores da globalização e enfatiza o resgate “das coisas públicas”; 202 2) Exercício da vigilância sobre a atuação estatal/governamental. Os movimentos orientam a população para o que está sendo desviado do que é público para o tratamento particular; 3) Os movimentos atuais cobrem áreas do cotidiano, não acessadas por outras entidades tais como partidos, sindicatos e igrejas. Ênfase na subjetividade: sexo, crença, valores com alto grau de tolerância. Com relação à questão da tolerância, tanto Gohn (2013) quanto Doimo (1995) chamam atenção para o fato de que estes movimentos da atualidade podem também apresentar manifestações de intolerância que têm estado presentes em movimentos fanático-religiosos e também de movimentos nacionalistas que geram ódio e guerra; 4) Por último, a questão da autonomia dos movimentos atuais, que se distingue da autonomia dos movimentos dos anos de 1980. Para Gohn (2013, p. 16-17), “[...] ter autonomia não é ser contra tudo e todos, estar isolado ou de costas para o Estado”, mas fundamentalmente ter projetos, ter planejamento estratégico, ter proposta de resolução para os conflitos que estão envolvidos, ser flexível para incorporação de outros que tem desejo de participação; é tentar dar universalidade às demandas particulares e fazer política vencendo os desafios dos localismos, priorizar a cidadania, construindo-a onde não existe, refazendoa onde foi corrompida, é ter pessoal capacitado dos movimentos nas negociações; Dos aspectos acima enfatizados pela autora, está em questão, uma autonomia circunscrita ao âmbito de processos de institucionalização dos movimentos. O Reage São Luís atuou tanto por meio de mecanismos institucionais, como não institucionais. Neste caso, inúmeras formas de manifestação tais como as que exemplifiquei no item 4.1.1. Ao mesmo tempo em que se articulou, por exemplo, aos canais institucionalizados tais como, a OAB-MA e o IBAMA/CNPTAB-MA, fazendo com que estes por sua vez cobrassem do Ministério Público Estadual uma posição perante o público nas Audiências Públicas. Por outro lado, se conectou com outros inúmeros movimentos, fóruns coletivos e entidades de bairros e comunidades rurais, a exemplo das Associações de Moradores do Taim e da Associação de Moradores de Rio dos Cachorros e de Porto Grande. Passada uma década desta importante experiência política e social que foi o Reage São Luís, estas comunidades hoje continuam, não somente reagindo aos constantes constrangimentos, mas também procurando formular propostas criativas, novos experimentos 203 de gestão territorial e dos recursos naturais. A proposta de instalação da RESEX de Tauá-Mirim indica novos rumos no processo de mobilização e pluraliza o debate sobre a gestão territorial. A organização política, os saberes e práticas construídos na mobilização coletiva, a ampliação de suas causas aos demais grupos sociais e comunidades vizinhas atingidas pelos impactos produzidos por empresas e indústrias têm indicado a necessidade de um contínuo processo de “dessingularização”. Isto porque envolve a luta política pelo reconhecimento de seus próprios atores enquanto sujeitos de direitos. Tal luta, tem sido concretamente encaminhada pela reivindicação de “populações tradicionais”. Mas é também uma luta política cotidiana não somente pela demanda desse direito mediante as agências estatais, mas também, uma luta, inclusive pela legitimidade dessa identidade perante os moradores destas comunidades. Ao mesmo tempo em que as lideranças lutam pelo reconhecimento de seu modo de vida ao reivindicarem a identidade de “populações tradicionais”, há um aparato privado e estatal que investe contra esse reconhecimento. Tal investida tem sido evidenciada tanto por meio de ameaças e uso da coerção direta como ocorreu com os moradores deslocados da comunidade de Vila Madureira e como se evidenciou na situação de isolamento da comunidade de Camboa dos Frades durante o processo de instalação da Usina Termelétrica da MPX em 2009, e também se expressa por meio da política de cooptação através de ofertas de dinheiro, bens ou privilégios a lideranças para mudarem de posição política de modo a provocar conflitos no interior das comunidades (MENDONÇA, 2006). Note-se que para os planejadores, os territórios onde se situam estas comunidades são portadores de uma “vocação industrial” e há um contínuo avanço de atividades empresariais sobre a Zona Rural II. A permanência desta Zona e as lutas que se travam na arena pública visando garantias de direito ao território, para os planejadores estatais, se constituem num grande entrave ao desenvolvimento. Em contraposição, as organizações sociais e lideranças locais têm lançado mão de algumas estratégias, entre estas as parcerias com instituições como ONGs, Universidades por meio das quais são desenvolvidos Projetos de Extensão, Cursos de Educação Ambiental, envolvimento de jovens em atividades de mobilização comunitária, etc., visando fomentar o debate político sobre a temática socioambiental e a formação de novas lideranças comunitárias. Por meio destas atividades surgem novas perspectivas organizacionais para enfrentar os novos desafios. Surgiu a partir de 2012 através do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, a proposta do Território Pesqueiro por meio de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular sobre Território Pesqueiro (MOVIMENTO DOS PESCADORES E PESCADORAS 204 ARTESANAIS, 2002). Para o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, as Unidades de Conservação da Natureza são importantes para impedir que áreas sejam destruídas, a exemplo da proposta da RESEX, entretanto, argumenta o Movimento de Pescadores e Pescadoras que, a forma que esta modalidade assumiu na sua criação “[...] nem sempre assegura corretamente o respeito à natureza e a manutenção dos modos de ser e de viver dos povos e comunidades tradicionais que habitam os ambientes onde esta forma de gestão é implementada” (MOVIMENTO DOS PESCADORES E PESCADORAS ARTESANAIS, 2002). Em primeiro lugar, eles criticam que há ainda uma compreensão de que a preservação da natureza seja incompatível com as práticas de atividades socioeconômicas por parte desses grupos sociais. Argumentam também que esta modalidade de Unidade de Conservação não se adapta às formas pelas quais cada grupo social se relaciona com a natureza. Razão pela qual estão também defendendo a proposta do Projeto de Território pesqueiro. As duas propostas em pauta, a da Reserva Extrativista de Tauá-Mirim e a proposta pela implementação da Lei de Iniciativa Popular de Território Pesqueiro sobre uma parte da mesma área da Zona Rural II de São Luís, refletem a busca de garantia jurídica para permanecerem nos territórios e ter continuidade nas formas tradicionais de uso social dos recursos e de gestão territorial. As reivindicações do uso social dos territórios se constituem como instrumentos de luta e de estratégia de ação política na busca de reconhecimento da população local no sentido de garantia de direitos pela permanência nas áreas que têm sido alvo de políticas de zoneamento industrial. Estas frentes de mobilização denotam o processo de formação de sujeitos políticos que problematizam a forma como o Estado e empreendimentos privados intervêm no seu “modo de vida” e no “ambiente de vida” que construíram. Quando comecei esboçar o projeto de tese entre 2010 e 2011, havia algo que me impulsionava para uma compreensão do Reage São Luís pela ótica da busca de uma política, pelo “bem comum”, pela participação efetiva dos atores locais nos espaços púbicos em que ocorrem os processos decisórios. Naquele momento, antes da pesquisa de campo, tinha uma ideia muito ampla, mas que no fundo serviu de inspiração. Estas inquietações resultaram tanto das leituras introdutórias de Boltanski (1990) quanto de Habermas (2003), além de outras leituras importantes de experiências de pesquisas realizadas no Brasil que em síntese estimulavam inquietações para explorar a questão “pública”, referida em geral aos termos: “bem comum”, “esfera pública”, “espaço público”, conceitos que me estimularam para tentar compreender por meio de uma experiência local a discussão acerca do “campo dos conflitos ambientais” (ACSELRAD, 2004), e do processo de ambientalização dos conflitos sociais (LOPES, 2004). No primeiro momento, tinha a impressão de que neste “campo” e dentro dos 205 processos de “ambientalização” havia um grande peso das estruturas políticas e econômicas de agentes privados e estatais que submetiam os atores locais ao império da “razão instrumental” materializada no poder econômico das multinacionais envolvidas no processo de instalação do polo siderúrgico. Com o aprofundamento da pesquisa empírica, leituras e dialogando com outras experiências e discussões sobre o espaço público no Brasil atual, aprendi que a “esfera pública” deve ser relativizada considerando as singularidades de nossas instituições, principalmente após o processo de democratização em 1988. Razão pela qual é necessário reconectar a articulação entre Estado e sociedade dentro da esfera pública. Quer dizer, a esfera pública e espaços públicos não são meros instrumentos de controle. Os espaços públicos são espaços de disputas, de diálogos, são espaços de lutas políticas. Os exemplos de experiências de participação e de exercício democrático, ainda que nos limites das formalidades destes canais institucionais após 1988, são os conselhos de políticas públicas que “conjugam participação e representação” (ALMEIDA, 2008, p. 185). O Reage São Luís, portanto, pode ser pensado como resultado de um acúmulo de experiências do passado conectadas com as experiências do presente. Reúne elementos dos movimentos populares emergidos ainda nos anos de 1970 que foram empoderados e potencializados pelas CEBs, assim como herdou os repertórios de mobilização criados pelo Comitê de Defesa da Ilha que teve um papel relevante nas ações coletivas e nos debates socioambientais ainda nos anos de 1980. Tal como o Comitê em Defesa da Ilha que lutou contra a instalação da fábrica de alumínio da multinacional norte-americana Alcoa, ou como a apelidaram, as lideranças do Comitê, a “Besta Fera”, o Reage São Luís se deparou com “Gigantes”, desta vez, não era apenas “uma Alcoa”, mas “três Alcoas juntas” como destaquei em um trecho de intervenção de audiências públicas. Duas experiências em tempos e cenários políticos diferentes. Após três décadas de experiências de resistência, os povoados da Zona Rural II de São Luís em conjunto com a sociedade civil organizada foram capazes de colocar na agenda política local, durante pelo menos dois anos, 2004 e 2005, a reflexão, o debate, em torno de um grande projeto industrial que teria como consequência social imediata a ruptura de pelo menos quatorze mil e quatrocentas pessoas com o seu modo de viver. Diria que aquelas noções básicas da sociologia pragmatista que mencionei no Capítulo 3 ajudam a pensar e valorizar as competências e os saberes dos atores locais para ocuparem os espaços públicos nos quais, é tomada grande parte das decisões que afetam a vida. Na sociologia pragmatista, parte-se de um pressuposto de que no cotidiano as pessoas produzem um “momento crítico” ao questionarem a ordem daquilo que lhes incomoda. Todos os membros de uma sociedade apresentam uma “capacidade crítica” (BOLTANSKI, 206 1990) e na medida em que defendem suas causas produzem justificações submetidas ao julgamento de outros. São “regras de aceitabilidade”. Os sujeitos têm capacidade crítica e esta capacidade interessa porque no caso aqui em discussão, são interpretadas como energias que podem ser canalizadas. Ações coletivas, mobilizações políticas, disposições, motivações, argumentos, criatividade e inovação, talvez sejam palavras que dão substância a estas energias políticas canalizadas para defender a vida e contestar a lógica do mercado. No fundo por este viés, a experiência do Reage São Luís pode ser um exemplo de resgate da dimensão política das decisões que envolvem a questão socioambiental. Por fim, a experiência do Reage São Luís é uma experiência social, no sentido de que contribuiu decisivamente para frustrar um processo social que estava sendo planejado. Deslocar grupos humanos historicamente enraizados de um lugar para outro de maneira forçada é uma experiência social, na medida em que implica em mudanças no modo de organizar socialmente a vida; implica em desestruturação social e em redefinição dos elementos constitutivos dos laços sociais; modificam-se expectativas de futuro, eliminam-se histórias e experiências; Tal situação pode ser traduzida como “lamento e dor” (MAGALHÃES, 2007). O Movimento Reage São Luís é também uma experiência política quando os atores locais se manifestam e problematizam as decisões ocupando os espaços públicos: quando denunciam, quando interferem nas Audiências Públicas, quando ocupam as galerias da Câmara de Vereadores, quando mobilizam a sociedade civil para participar das decisões sobre o destino da cidade, quando fazem manifestações nos bairros de periferia, quando vão às universidades e às ruas falar dos problemas que os afetam. Tudo isto faz parte deste amplo repertório de ações criadas e recriadas por um movimento de contestação que não somente frustrou um grande projeto, mas evitou também a concretização de um planejamento cujo resultado seria lucrativo para grupos econômicos e políticos bastante restritos, mas que poderia ser catastrófico para a cidade. 207 REFERÊNCIAS A VALE deu ultimato: mineradora exige licença ambiental e expulsão dos moradores do Itaquí. O Jornal Pequeno, Colunão, p. 1, 28 ago. 2005. ABAS-MA; AGEMA. Que cidade queremos? [S.l.:s.n.], 2004. ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello Amaral; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2009. 160 p. ACSERALD, H.; BEZERRA, G. Desrregulação, deslocalização e conflito ambiental: considerações sobre o controle das demandas sociais. In: ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de et al (Org.). Capitalismo globalizado e recursos territoriais: fronteiras da acumulação no Brasil contemporâneo. 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