pdf completo - Revista Papeis

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pdf completo - Revista Papeis
PA
EI
R E V I S TA D E
LETRAS
UFMS
Papéis - Rev. Letras UFMS
Campo Grande, MS
v. 1
n. 1
p. 1-56
jan./jun. 1997
1
PA
EI
R E V I S T A D E
LETRAS
UFMS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
MATO GROSSO DO SUL
Reitor
Jorge João Chacha
Vice-Reitor
Amaury de Souza
CÂMARA EDITORIAL
Ronaldo Assunção (CCHS-UFMS)
Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS)
Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS)
Eliane Mara Costa Roos (CEUA-UFMS)
Ana Maria Pinto Pires de Oliveira (CCHS-UFMS)
Ficha Catalográfica preparada pela
Coordenadoria de Biblioteca Central-UFMS
Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 1
(jan-jun. 1997)- . -- Campo Grande, MS :
Ed. UFMS, 1997V. : il ; 27 cm.
Semestral.
1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
2
APRESENTAÇÃO
O desafio está lançado. A primeira edição da Revista de Letras da UFMS,
PAPÉIS, marca o início de um trabalho que promete ser longo e fecundo,
apesar, é claro, das dificuldades por que vem passando nossas instituições de
ensino superior. Mais um motivo para marcarmos nossa presença, valorizando
nosso trabalho. Os cinco Cursos de Letras da UFMS, espalhados pelo Estado,
em Campo Grande, e nos Centros Universitários de Dourados, Corumbá,
Três Lagoas e Aquidauana, já faziam por merecer a edição de sua própria
revista. Esse merecimento se concretiza agora, com a publicação deste
primeiro número de PAPÉIS.
Os objetivos que nortearam o surgimento desta revista podem ser traduzidos em
dois pontos cruciais: a) ser o elo de articulação, de união, entre os pesquisadores
dos diversos Cursos de Letras da UFMS, propiciando-lhes o intercâmbio de
conhecimentos; b) ser um meio de difusão dos trabalhos de especialistas,
pertencentes ou não à UFMS, envolvidos nos estudos das letras, voltados para o
texto literário, para a lingüística, para as questões culturais, ou outras, na área.
PAPÉIS quer ser um espaço de troca de saberes e, com isso, estar em sintonia
com estudiosos de todo o país.
Colocando já em prática esses objetivos, a primeira edição de PAPÉIS traz aos
leitores os trabalhos de estudiosos da UFMS e de outras instituições, discutindo
temáticas variadas, que vão da estética, do modernismo, da subjetividade, da
cidade, à língua, à fotografia e à interpretação.
Por fim, um agradecimento e dois desejos. Agradecemos a todos aqueles que,
de forma direta ou indireta, colaboraram para a concretização deste trabalho
que ora inicia sua trajetória. O desejo de que mais textos surjam, como
resultado final de trabalhos originais de estudiosos das letras; e o desejo de que
a Editora da UFMS estabeleça, de uma vez por todas, este mecanismo de
publicação dos estudos acadêmicos na área, permitindo, assim, um meio fecundo
de intercâmbio do saber entre os pesquisadores e a comunidade.
Ronaldo Assunção
3
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R E V I S T A D E
LETRAS
UFMS
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica
Editora UFMS
Versão dos resumos para o inglês
Daniel Derrel Santee
Revisão
A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores
Impressão e Acabamento
Divisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS
Distribuição
Livraria UFMS
Publicação da
Rua 9 de Julho, 1922
CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS
Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642
e-mail:[email protected]
Ilustração de Capa: Titivillus Angélico de Letras - Obra de Genésio Fernandes - Acrílico e colagem sobre papel
Artista plástico e mestre em Teoria da Literatura, Genésio inspirou-se numa passagem do romance A Rainha dos Cárceres da Grécia,
de Osman Lins, para criar a obra que se tornou cartaz da VII Semana de Letras-96 e capa desta Revista.
A passagem é a seguinte: "Titivillus, alcunha familiar entre os monges da Alta Idade Média, era o demônio da transcrição infiel: ocioso,
instalava-se nas inscriptoria, induzindo a erro os copistas". A partir dessa referência, o artista criou um texto pictórico dialógico.
4
SUMÁRIO
6
DIALOGIA ENTRE ARTE E VIDA:
A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADE DE MIKHAIL BAKHTIN
Irene A. Machado
14
MODERNISMO:
GERME OU SENTIMENTO EM IRRADIAÇÃO
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
20
A SUBJETIVIDADE POSTA EM QUESTÃO POR
NARRADORES E PERSONAGENS
Maria Adélia Menegazzo
24
UM PARAÍSO IMAGINÁRIO OU A BICHARADA NO CIMENTO
J. Genésio Fernandes
28
CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA:
WALTER BENJAMIN PASSEIA PELO CENÁRIO MOSCOVITA
Ronaldo Assunção
34
AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO:
A FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO
Marcelo Marinho
44
UMA LEITURA DE UMBERTO ECO
Maria Emília Borges Daniel
52
DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO ‘‘DIABO’’ EM ‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’:
UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICO
Ana Maria P. Pires de Oliveira
5
O dogma da verossimilhança ainda é um critério vigoroso para a definição da estética como mimesis. Ao situar o
objeto estético no contexto das experiências vivas estimuladas pela interação social, Bakhtin desenvolve um outro
campo conceitual para refletir sobre a criação verbal. Em
sua estética da respondibilidade a obra de arte não se
desvincula da vida e do contexto cultural tampouco com
eles se confunde. Arte não é vida, mas signo. Em torno
dessas idéias se desenvolveu o assunto desse artigo.
Palavras-chave:
Dialogismo, estética da respondibilidade,
criação verbal
*
The dogma of verisimilitude is yet a strict criterion
for the definition of aesthetic as mimesis. By situating
the aesthetic object in the context of live experience
stimulated by the social interaction, Bakhtin develops
another conceptual field to reflect about the verbal
creation. In this aesthetics of responsibility the work of
art does not separate itself from life or from the cultural context, nor do they mingle. Art is not life, but a
sign. Around these ideas the development of this essay
was built.
Key-words:
Dialogicity, aesthetics of responsibility,
verbal creativity
6
Este texto é uma
condensação da
primeira parte do
minicurso sobre a
estética da criação verbal
de M. Bakhtin, ocorrido
durante a Semana de
Letras da UFMS, Campo
Grande, de 14 a 18 de
outubro de 1996.
**
Irene A. Machado é
professora de Teoria
Literária na Escola
Técnica Federal de
São Paulo. Doutora em
Teoria Literária
pela USP.
DIALOGIA ENTRE
ARTE E VIDA
A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADE
DE MIKHAIL BAKHTIN*
Irene A. Machado**
O que é o estético?
O conceito de estética
Há mais de dois mil anos filósofos e interessados
no estudo da arte e da criação em geral se fazem essa
pergunta e ainda estamos longe de chegar a uma resposta definitiva. Certo de sua incapacidade de responder a essa questão de modo afirmativo, Sócrates arriscou uma resposta negativa: estética não é retórica.
A dúvida socrática, contudo, não foi suficiente para
impedir sistematizações como, por exemplo, o
paradigma aristotélico que situa o estético no campo
da mimesis. No diálogo Hipias maior, “Socrates se
interroga sobre o que é o belo e chega à conclusão de que definir o princípio estético é uma tarefa
enormemente complexa. Aristóteles parece contestálo nas primeiras linhas da Poética com a tese de
que o que define todo fenômeno estético é a imitação. Desde então muitos acreditam ter resolvido
essa questão. Nem Kant nem Bakhtin estão entre
eles” 1.
Onde então se situam as formulações que Bakhtin
apresenta para as manifestações estéticas? Se as idéias
de Bakhtin não são aritotélicas em que sentido elas
são kantianas? Arrisquemos um percurso teórico rumo
a respostas mais esclarecedoras.
Sabemos que a palavra estética deriva do grego
aisthesis cujo significado gravita em torno de sensação, sentido, sentir; quer dizer, diz respeito às manifestações da sensibilidade humana que dependem de
impulsos internos e externos. “A raiz grega aisth, no
verbo aisthanomai quer dizer sentir, não com o coração ou com os sentimentos, mas com os sentidos,
redes de percepções físicas”2.
Foi Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762)
quem entendeu estética como disciplina filosófica, ciência do belo ou filosofia da arte. Mas seu principal objetivo era entender a essência do belo, tal como seus
antepassados gregos, Platão, Aristóteles, Plotino, que
conservaram a tendência antiga de identificar o belo
com o bom na unidade do real perfeito, subordinando o
valor da beleza a valores extra-estéticos e, em especial, a entidades metafísicas.
Devemos a Kant (Immanuel 1724-1804) a introdução do estudo da estética à luz da crítica do juízo3.
Estética é juízo, e juízo de valor. Para Kant, pensamento é síntese de duas formas de conhecimento: a
sensibilidade e a compreensão. A primeira diz respeito
ao mundo das sensações fora da mente e a segunda,
1
Luis B. Almería, 1994: 57, nota 2.
Barilli 1989: 2, cit. por Lúcia Santaella 1994: 11.
3 Estamos apresentando apenas pontos sumários de uma problemática complexa estudada com muito cuidado pelos autores cujas obras
citamos em nossa bibliografia.
2
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.
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ao núcleo conceitual da mente. O conceito (compreensão) existe na mente, mas ele pode ser usado ativamente para organizar as sensações fora da mente. A
habilidade de pensar é habilidade de fazer julgamentos
e requer ambas as formas de conhecimento. O belo,
por sua vez, não é reconhecido objetivamente como
um “valor absoluto”, uma vez que ele se relaciona só
com o sujeito. Considerado o ponto de vista do sujeito,
é possível chegar aos termos de uma conceituação,
ainda que de modo precário. Se o estético resulta de
um juízo produzido por uma vivência, estética pode
ser definida como uma forma de dar corpo a experiências vivas. Somos assim introduzidos no contexto das
formulações bakhtinianas.
A estética da
respondibilidade
Diríamos que as formulações de Bakhtin sobre a
estética se inserem na concepção geral de “ciência da
percepção”, ou seja, como conhecimento através dos
sentidos. Entenda-se: sentidos, como rede de percepções físicas ou sistema de idéias; percepção, como
refração na ótica de uma unidade que agrega muitos
pontos de vista. Com isso, a estética em Bakhtin não
se desvincula do sujeito. Se a percepção é uma ação
de um indivíduo em sua relação com os outros, a estética só pode ser percepção entre outros. Na lei da percepção humana, examina-se como um eu é levado a
perceber a si próprio na categoria do outro. Contudo,
não queremos dizer que as formulações estéticas de
Bakhtin sejam orientadas totalmente pela doutrina de
Kant. Há distinções significativas que precisam ser consideradas. Os valores a que se refere Bakhtin na sua
estética geral filosófica não dizem respeito ao belo, ao
feio, ao expressivo, ao verdadeiro e todos os demais
valores que se consagraram como valores estéticos.
Valor é sentido e, como tal, é construído; não é absoluto, não é dado, não é definitivo. A advertência contra o
risco de tal formulação foi dada pelo próprio Bakhtin
no final de seu livro sobre a estética da criação verbal,
cujo ensaio é uma reflexão sobre a metodologia em
ciências humanas: “não há nada morto de maneira
absoluta. Todo sentido festejará um dia seu
renascimento”4. Os valores dependem das relações
entre os indivíduos no interior da cultura humana. Com
isso, o objeto estético não está desvinculado das outras formas fundamentais da vida humana: o conhecimento e a ética. Ciência, ética e estética são
inseparáveis.
Para Bakhtin, a estética é juízo de valor inserido no
conjunto da cultura humana. Foi pensada do ponto de
4
5
8
vista do sujeito e o juízo estético como produto da experiência. A estética de Bakhtin é a estética da respondibilidade fundada no diálogo: estética é um ato onde o
sentido tem caráter de resposta. A estética da
respondibilidade formulada por Bakhtin considera, antes de mais nada, o ato da construção das relações entre seres, ordenando as categorias eu/outro. Dessa noção, podemos esboçar algumas implicações específicas.
1. A estética insere-se na ação humana. Ser humano é significar; significar é articular valores.
2. A estética da respondibilidade fundada no diálogo mergulha na ação viva do fato respondível e responsável, atual e concreto. É o mundo das ações
interconectadas num conjunto indissolúvel.
3. Se a estética é uma forma de dar corpo a experiências vivas, “a experiência estética é um tipo especial de experiência fundada num dos momentos
que precisam de vida própria e exigem um sujeito
contemplativo, isto é, que se situa fora dos limites
da vida ativa”5.
4. A experiência estética cria uma visão de acabamento (daí ser corpo da experiência viva), não do interior, mas de um ponto de vista exterior.
5. O corpo estético ocupa um lugar na existência,
ainda que o corpo não seja o lugar da existência. O
corpo é o centro das ações.
6. O objeto estético surge a partir de um ponto de
vista extraposto, fora dos limites da ação específica.
Graças à extraposição o acabamento torna-se possível.
7. A extraposição se constrói pela lei geral da percepção: tudo que é percebido só pode ser percebido
de um único ponto, dentro de uma estrutura que agrega muitos pontos de visão.
8. O ato perceptivo define-se como uma ação autoral: em que um eu é levado a perceber a si próprio
na categoria do outro.
9. A possibilidade de perceber o outro faz da estética uma atividade de resposta.
10. O objeto estético entendido como resposta é
material sensível revestido de sentido social, que deve
ser entendido pela dinâmica das relações autoria/recepção; pelo conteúdo temático (fragmento da vida) e
uma forma artística.
Como se vê, estamos muito longe de adentrarmos
numa discussão estética situada numa zona difusa do
espírito. Cada vez mais, o topos de nossa questões se
avizinha da consciência, lugar das tensas relações do
homem com o mundo. Relações essas centralizadas por
um núcleo que em Bakhtin é muito claro e preciso: as
relações de sentido. A “unidade interior de sentido”
é condição da criação de uma imagem de totalidade de
partes em correlação. Essa é a noção que abre o estudo
M.M. Bakhtin, 1992: 414.
Luis B. Almería, 1994: 59.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.
Arte e respondibilidade6. Por que
· Estética da criação verbal
Ao se distanciar
(Autor e personagem na atividade estéa compreensão do que propicia a
da
metafísica,
tica,
1920-24; O autor e o herói; O probleimagem da totalidade é tão imporma dos gêneros discursivos; O problema do
tante? Porque o artista é um homem
a estética de Bakhtin
texto na lingüística, filologia e outras ciências
que está na vida, mas o objeto criahumanas: ensaio de análise filosófica e Resaproxima-se
da
do não é a vida, como geralmente
posta à pergunta feita pela revista Nov Mir)
semiótica que
defendem muitas teorias. Bakhtin
· Discurso na vida e discurso na
entende que, “quando o homem se
poesia, assinado por Valentin
considera o objeto
encontra na arte, ele não está na
Volochinov
estético como veículo
vida e vice-versa”. Com isso ele
Nesses textos, existe uma preoentende que a relação entre arte e
de comunicação.
cupação teórica com o exame dos
vida é uma relação responsiva: “eu
procedimentos estéticos, dos fenôdevo responder com minha vida
menos e correlações que comandam
por aquilo que vivi e compreendi
o ato da criação através da palana arte, para que tudo o que foi vivido e compreen- vra. Conceber o processo criativo como um ato signidido não permaneça sem ação na vida”7. O artista fica, antes de mais nada, situá-lo na dinâmica da
não cria a vida, ele cria arte, cria signos, que devem ter, interatividade de sujeitos e consciências e não nos lipara o outro, significação. Não estamos no campo da mites da individualidade. A questão estética é igualmimesis nem da retórica aristotélica que não conside- mente uma questão ética: não se trata assim de encerrou a relação autor-receptor nem, conseqüentemente, a rar os procedimentos estéticos no campo dos princípidimensão subjetiva do gênero como visão de acabamento os construtivos mas, sobretudo, entendê-los como juldo objeto estético.
gamento de valor. Tudo depende da posição que o arAo se distanciar da metafísica, a estética de Bakhtin tista criador exprime com relação ao mundo. E, como
aproxima-se da semiótica que considera o objeto esté- afirma Bakhtin num de seus escritos, o lugar que o
tico como veículo de comunicação. Mas trata-se de indivíduo e o artista ocupam no mundo é único, mas
uma estética semiótica em que a concepção de signo ele nunca está sozinho. Nesse sentido, já podemos pernão se desgarra da teoria dos valores. Signo é aquilo ceber a importância das relações interativas no ato da
que significa.
criação que produz o objeto estético.
Diríamos, assim, que o conceito-chave formulado por
Bakhtin para a compreensão de todos os tipos de relações na obra de arte e no processo criativo é o conceito
de extraposição. Para Bakhtin, somente na arte a vida
pode ser representada, isto é, ser uma forma esteticaBakhtin insere seus estudos referentes aos proble- mente significante segundo o valor que anima o contexmas da criação através da palavra na disciplina que to das relações sociais. O artista está na vida e não fora
ele denomina Estética Geral Filosófica, cujo objetivo é dela. Nada é criado fora da vida. Paradoxalmente, sua
focalizar o objeto estético na unidade da cultura huma- criação não é vida, é um signo. Para criar o signo, o
na, em sua relação com o ético e o cognitivo. Para artista constrói um ponto de vista que se projeta com
Bakhtin, no domínio da cultura humana, o conhecimento, um certo distanciamento. O artista olha para a vida como
a ética e a arte são regiões fronteiriças; não se estivesse fora dela. Constrói, assim, um ponto de viscorresponde, portanto, a um terreno fechado em suas ta extraposto. O que está fora, repetimos, é o ponto de
possibilidades. Nele, tudo vive sobre fronteiras. Uma vista, não o sujeito-criador. Este está no mundo, ocupa
vez que a forma estética orienta-se sobre um valor seu lugar e dele tem acesso a um campo de visão ao
além do material, é impossível definir o objeto estético qual ninguém mais tem acesso. A partir desse ponto,
fora da cultura humana.
elabora o acabamento que fornece a obra de arte como
Dentre os estudos de Bakhtin, aqueles que procura- um todo fechado. A noção de extraposição é fundaram dar um tratamento teórico aos problemas funda- mental para entender o conceito de posicionamento, de
mentais da estética geral filosófica foram os trabalhos sentido, de dialogia cultural, de texto, de gênero, de
escritos, com raras exceções, nos anos 20. São eles:
enunciação, de signo e, principalmente, a noção de au· Arte e respondibilidade
toria, um dos temas complexos da estética que merece
· Acerca da filosofia do ato
uma focalização isolada. Em torno desse conceito,
· Problemas do conteúdo, do material e da forma na Bakhtin desenvolveu os principais tópicos de sua estéticriação literária
ca da criação verbal, como:
Textos e tópicos da
estética da criação verbal
6
7
M.M. Bakhtin, “ Arte y responsabilidad”, 1989: 11-12.
M. M. Bakhtin, “Arte y responsabilidad”, 1989: 11.
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* objeto estético como resultado de uma visão
extraposta
* relação entre ética e estética na unidade da cultura
humana
* relação ética entre autor e personagem como determinação estética
* o ser expressivo e falante como objeto das ciências
humanas e o conceito de texto
* a noção de ato cultural dialógico como texto
* o texto como enunciação: fronteiras lingüísticas, antropológicas, filosóficas e literárias
* a noção de gênero como memória criadora e, conseqüentemente, como categoria estética da cultura literária
* revisão das formas da linguagem através dos gêneros e das atuações discursivas do cotidiano
* o enunciado-enunciação como objeto da
metalingüística
* metalingüística e o caráter extralingüístico da palavra-discurso
* o signo ideológico e os processos de representação e
significação responsiva
* a expressão como matéria plena de sentido ou como
sentido materializado
O objeto estético e
suas fronteiras
A transformação da experiência em signo
Análise do conto
O retrato Oval, de Edgar Allan Poe
No conto O retrato oval de E.A. Poe, estão representados pontos cruciais da problemática relação
arte/vida. Nele o objeto estético, criado a partir da vida,
mostra não ser vida. Exatamente por desconhecer os
mecanismos do efeito de real na totalidade da imagem, confunde arte com vida. Além disso, o espaço de
criação, tomado como um espaço alheio à turbulência
da vida mostra o quanto a inspiração é irresponsável.
Para a compreensão das dimensões do objeto estético, segundo as formulações de Bakhtin, devemos compreender, na leitura do conto, o seguinte:
* o efeito de real como decorrente da visão de totalidade própria da arte, não da vida
* a criação não é vida, mas arte
* como arte, a criação é signo que produz sentidos que
se oferecem à leitura
* compreensão da literatura como um sistema de signos graças às relações dinâmicas que comandam o
processo criativo quando da passagem de uma dimensão a outra, ou seja, quando a experiência se transforma em atividade estética.
No âmbito dessa abordagem, estamos considerando
signo como um processo de representação em que os
dados da experiência se transformam dialeticamente em
10
criação. Signo é, portanto, transformação da quantidade em qualidade. É essa passagem que nos permite ver,
por exemplo, a representação e o objeto representado,
a voz e a escritura, enfim, os homens e as idéias.
Evidentemente, se estamos definindo o signo de
acordo com as leis do processo dialético ¾ ainda que
de forma simplificada, mas de uma simplificação necessária ¾ é porque nos interessa valorizar o processo
de luta que, a um só tempo, reflete e refrata a experiência. É esse o caráter sígnico que define, para nós, a
natureza da literatura que vamos examinar no conto,
O retrato oval de Edgar Allan Poe, com o objetivo de
levantar os problemas conceituais que estão implicados no estudo da natureza da literatura enquanto fenômeno estético.
Para melhor compreender a dinâmica da representação enquanto signo, tal como foi elaborada por
Poe, vamos destacar alguns momentos do conto. Inicialmente trata-se de uma narrativa em que um indivíduo ferido e seu criado procuram um abrigo. Essa
seria a situação que acreditamos ser o suporte da
representação. Mas, assim que o homem ferido se
acomoda, delirando em febre, a profunda meia-noite
surge e, por acaso, ao virar o candelabro, sua visão
descobre o quadro e, em seguida, um livro com a narrativa da maravilha que se lhe ofereceu ao olhar. A
partir daí a situação inicial é interrompida e somos
conduzidos pela leitura do personagem: a história do
pintor e de sua genial transformação da beleza física
da mulher em sua obra-prima. A narrativa que o personagem ferido lê é a transformação da mulher, esposa dedicada, amorosa, em signo visual, o quadro
que o ferido encontra, mas que nos é dada pela literatura, nossa leitura da leitura.
Essa é a passagem que define o conto enquanto
objeto estético, ou seja, enquanto signo. Os formalistas
russos identificavam o arranjo estético a partir da organização da trama de motivos de uma determinada
fábula fornecida pela experiência. A trama seria o
conjunto a que chamamos signo. Estamos diante de
um processo complexo de representação que vai ao
encontro da própria natureza desconcertante da literatura como sistema simbólico. A narrativa inicial não se
fecha e foi anulada pela história do quadro. Nos limites do conto literário ocorrem transformações em cadeia, visto que uma situação gera uma outra e, no final,
ficamos diante de um quadro, não visual, mas de ordem estética, cultural, filosófica, dadas as questões que
se abrem a partir da narrativa: as leis do processo
criativo, os limites da vida e da arte, a morte como
condição da vida, a situação e o jogo, os limites da
representação, enfim, o mundo como fruto de uma leitura. Afinal, quem escreveu a história que lemos através dos olhos do ferido? Essa é uma questão grandiosa que nos obriga a voltar sempre a esse conto quando
se trata de compreender a literatura como sistema de
signos. O que lemos, é a leitura do personagem, ou
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melhor, de uma mente febril. Essa é uma outra questão que diz respeito ao nosso assunto.
Imaginário e leitura são instâncias igualmente inquietantes da natureza da literatura. A literatura, como
todo signo, é algo que significa, que se oferece à leitura, à compreensão. Se, por um lado, essa é uma questão desconcertante, por outro, essa é uma potencialidade da literatura, da criação, da cultura humana
que difere dos fenômenos naturais. Aprendemos com
M. Bakhtin, que “quando estudamos o homem, buscamos e encontramos signos, signos em toda parte
e tratamos de compreender sua significação”8. O
imaginário não está fora desse processo, pelo contrário, desde La Fontaine o imaginário é espaço de criação. Evidentemente, tais questões são problemas complexos que vamos apenas deixar esboçados, visto que
é necessário considerar o processo histórico que acreditamos determinar no processo de significação do signo
e, conseqüentemente, da literatura.
A dialética
da representação
no signo dialógico
Se o homem está na vida ele não está na arte.
Eis nossa primeira lição de estética segundo a abordagem de Bakhtin. São muitas as implicações teóricas e
práticas que tal conceito nos apresenta. O objeto estético é, para Bakhtin, um processo de representação
por isso a noção de imagem atravessa toda sua formulação. Arte é representação cujo objeto é uma imagem. Não se pode avançar nesse terreno sem antes
compreender o conceito de signo dialógico formulado
por V.N. Volochinov nos anos vinte, quando Bakhtin
trabalhava teoricamente os problemas de estética geral filosófica.
A representação é, para Volochinov, um processo
de significação. Signo é definido assim, como algo que
está no lugar de alguma coisa: entender o signo e, igualmente, o processo de representação como coisa é entender o signo como materialidade. Diz Volochinov: “Um
signo não simplesmente existe como parte da realidade ¾ ele reflete e refrata uma outra realidade”9.
Ou seja, o signo tem uma dimensão semiótica. Orientada pelos estudos dos teóricos russos, a professora e
semioticista Lúcia Santaella entende que Volochinov
“forneceu-nos do signo uma definição imagética
capaz de esclarecer com precisão a duplicidade
paradoxal do signo como algo que é, a um só tempo, ele mesmo e um outro”10. O signo é sempre uma
resposta: “entender é uma resposta para um signo
com signos”, diz Volochinov11.
Para compreender a problemática da definição
do signo, Lúcia Santaella recorre ao mito de Narciso
que ela considera paradigmático, visto que nele não há
a duplicação, a vida se confunde com a imagem num
único fenômeno, a vida só existe na representação se
deixar de existir na própria vida: na história do mito
não há dialética, não há passagem de uma dimensão a
outra. Não houve possibilidade de resposta, de interação
entre as diferenças. “Narciso se esquece de si porque confunde sua imagem, um signo do eu, com o
próprio eu. Aliena-se no signo, toma a imagem por
realidade e desvanece como objeto, isto é, como
realidade que, fora da imagem, determina a imagem. Perde-se de si por não perceber a fenda, a
brecha da diferença entre o próprio eu, este que
avança no fluxo da vida, e a imagem (representação) do eu”, entende Lúcia Santaella12.
O mito de Narciso é o mito do não-signo; mas, ao
mesmo tempo, aponta para uma definição imagética
do processo de luta para a constituição do signo. Sem
o concurso de grandezas distintas, não existe a mínima
possibilidade de se constituir o signo ou, como afirma
Volochinov: “Os signos emergem, assim, somente no
processo da interação entre a consciência individual e outra. E a própria consciência individual é
carregada de signos. A consciência torna-se consciência somente quando ela é preenchida com conteúdo ideológico (semiótico), conseqüentemente,
somente no processo da interação social” 13. Tal
processo possui um caráter responsivo, fundamental
para o surgimento da obra de arte e para a definição
do objeto estético.
O grande desafio, porém, está no fato de o homem
ser signo. Está no corpo do homem um dos signos mais
caros a todo processo criativo que é a palavra. A presença da palavra é a força maior na definição do homos
semioticus: “não há nada no animal que se assemelhe à maquinaria combinatória dos fonemas que
rege a complexidade de organização das línguas
humanas, nem há, em qualquer animal, a capacidade projetiva e simuladora do cérebro apta para
estabelecer novas combinações e associações criadoras que, aliadas à sutilezas da mão e do corpo,
permitem ao homem produzir linguagem para fora
8
M.M. Bakhtin, 1992: 341.
N. Volochinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1979:17.
10 Lúcia Santaella, “O signo à luz do espelho (uma releitura do mito de Narciso)”, 1996: 60-68.
11 idem, ibidem, p. 11.
12 Lúcia Santaella, 1996, cit. pp. 67-8.
13 V.N. Volochinov, cit., p. 20.
9 V.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.
11
do corpo e do cérebro, isto é, povoar o mundo de
signos”14. Por isso, Volochinov define a palavra como
“signo neutro”, com isso, quer dizer o seguinte: “cada
espécie de material semiótico se destina a um determinado campo da criatividade ideológica. Cada
campo possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos específicos para si próprio
e inaplicáveis a outros campos. Nesses casos, o signo é criado para atender a uma função ideológica
precisa da qual permanece inseparável. A palavra, contrariamente, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica”15. No signo literário se processa a dialética da representação que o
define como objeto estético, ou seja, a dialogia entre
arte e vida. O homem é signo, mas o signo literário não
é o homem, mas sim a sua linguagem, ou melhor, a
imagem de sua linguagem (a obraz iaziká, como podemos ler nos escritos de Bakhtin).
A atividade estética:
o ato estético
e o ato cognitivo
A singularidade da atividade estética reside na sua
condição de signo: embora considere o mundo da experiência e faça dele a realidade pré-existente ao processo criativo, o objeto estético não se confunde com
ele. A criação é um ato, mas o ato da atividade estética não se confunde com o ato da atividade cognitiva.
Entender a diferença entre ato cognitivo e ato estético
foi uma das tarefas de Bakhtin em sua estética geral e
filosófica. No estudo “O problema do conteúdo, da
forma e do material na atividade estética”, Bakhtin
situa o campo das diferenças entre estética e conhecimento onde buscamos orientação para compreender a
dialética da representação no signo.
A relação entre a atividade estética e o mundo da
realidade material é dinâmica, responsiva; ao passo que
o ato de conhecimento relaciona-se de modo puramente negativo com a realidade pré-existente. Quer dizer, o
ato cognitivo cria seu objeto pela primeira vez. A atividade estética é um fenômeno cultural e, enquanto tal,
vive num sistematismo concreto: cada fenômeno cultural é concreto e sistemático na medida em que ocupa
uma posição substancial qualquer em relação à realidade pré-existente de outras atitudes culturais e por isso
mesmo participa da unidade da cultura prescrita. A estética se diferencia do conhecimento e do ato porque
acolhe a realidade pré-existente ao conhecimento e ao
ato. A atividade estética não cria uma realidade inteira-
mente nova. Isso fica claro porque na arte nós sabemos
tudo, nós lembramos de tudo, ao passo que no conhecimento não sabemos nada. Por isso na arte o elemento
de novidade, originalidade, de imprevisto, de liberdade
assume papel decisivo. O ato e o conhecimento são primordiais, criam o objeto pela primeira vez. O ato é vivo
apenas pelo que ainda não existe: aqui tudo é novo desde o início, portanto, não há novidade, tudo é ex-origine
por isso mesmo sem originalidade16. Por que o pintor,
protagonista do conto de Edgar Allan Poe, fica horrorizado quando termina sua composição? Porque, embora
ele afirme ter criado a própria vida, o que ele tem diante
de si não é a vida. O estranhamento fica por conta da
semelhança aparente da vida.
Para Bakhtin, o conteúdo é a dimensão do conhecimento e da ética da ação humana indispensável à constituição do objeto estético que ao artista compete criar
e à análise estética revelar. Diz Bakhtin, “em primeiro
lugar a análise estética deve revelar a composição
do conteúdo, imanente ao objeto estético, em nada
saindo dos limites desse objeto, tal qual ele se realiza pela criação e pela composição”17. É essa capacidade de revelação que nos parece ser o motor criador do objeto estético. O que se entende por revelação? Entendemos que a revelação do objeto estético
nasce da análise de seus processos construtivos, por
isso Bakhtin centralizou sua discussão em torno das
questões do gênero.
A noção de gênero e a
obra estética na unidade
dialógica da cultura
O processo de significação que situamos na natureza do signo literário nos leva à definição da literatura, e o objeto estético que ela pressupõe, em sua função histórica: a compreensão, bem como a significação, não acontece fora do espaço-tempo da cultura.
A significação adquire um caráter cronotópico. Com
isso queremos dizer o seguinte: a literatura é fenômeno complexo e multifacético elaborado pelas épocas remotas e vive um grande tempo, que extrapola
os limites da contemporaneidade. Aprendemos com
M. Bakhtin que a literatura é parte inalienável da
cultura humana e não pode ser compreendida fora do
contexto de toda a cultura de uma época dada. E
aqui não podemos deixar de citar Flaubert: “uma obra
só tem importância em virtude de sua eternidade,
isto é, quanto mais ela representar a humanidade
de todos os tempos, mas ela será bela”. “...eu es-
14
Lúcia Santaella, 1996, cit. p. 165.
V.N. Volochinov, cit. p. 22.
16 M. Bakhtin, 1988, “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, pp. 33-4.
17 M. Bakhtin, 1988, cit. p. 40.
15
12
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.
crevo não para o leitor de hoje, mas para todos
os leitores que poderão vir, enquanto a língua viver. Minha mercadoria portanto não pode ser
consumida agora, pois não é feita exclusivamente para meus contemporâneos. Meu serviço fica
portanto indefinido e, em conseqüência, sem pagamento”18. A condição estética revela-se grandiosa quanto maior for sua capacidade de ser traduzida
pelas épocas históricas, no grande tempo da cultura,
como afirma Bakhtin.
Situar o processo de significação dentro do grande
tempo significa para nós definir a função histórica da
literatura. Segundo o crítico A. Candido “...o ponto
de vista histórico é um dos modos legítimos de se
estudar literatura, pressupondo que as obras se
articulam no tempo, de modo a se poder discernir
uma certa determinação na maneira por que são
produzidas e incorporadas no patrimônio de uma
civilização”19 (A. Candido, 1975: 30). Antônio Candido
coloca o tema como o elo de retomada pelas gerações
sucessivas através do tempo. No sentido de situar a
função histórica da literatura, tal como o formulou M.
Bakhtin, é preciso considerar a noção de gênero. Para
Bakhtin, o gênero é o elo de vinculação entre as obras,
visto que, para ele, os gêneros, literários e discursivos,
durante os séculos de sua existência, acumulam formas de visão e compreensão de determinados aspectos do mundo. A função histórica da literatura pode
ser compreendida a partir dos gêneros e das visões de
mundo ou temas que neles [nos gêneros] estão implicados na evolução cultural.
E aqui voltamos ao conto de Poe. Como entender o
conceito de função histórica a partir desse conto?
Em primeiro lugar pelo fato de Poe recuperar temas e formas que são consideradas verdadeiros patri-
mônios de nossa cultura. Ao situar a dialética da representação no confronto vida e morte, arte e vida,
vida e eternidade, O retrato oval integra-se a um
sistema de obras onde se inclui a questão da representação no confronto de Poe, em sua função histórica
tanto da perspectiva do gênero como da perspectiva
do tema, visto que dentro do gêneros estão formas de
visão de mundo, sistemas de idéias e valores que não
podem ser desconsiderados quando se trata de precisar a natureza da obra literária. Vejamos. Acaso a
temática da dialética da representação da vida pela
arte não estava presente na lenda que mobilizou a capacidade criativa de Goethe, T. Mann e outros? Também não é esse o tema de Oscar Wilde no romance O
retrato de Dorian Gray que, por sua vez, nos leva ao
mito de Narciso? Também não é como fábula que o
personagem lê e oferece à nossa leitura a história do
quadro ovalado?
Na verdade, os temas são sistemas de idéias que
os gêneros acumulam ao longo das épocas históricas
colocando as culturas num confronto dialógico. A função histórica assim compreendida é animada pela dimensão paródica, quer dizer, as diferentes culturas não
se fundem, nem se mescalm, mas ambas se enriquecem mutuamente.
Entendemos assim que a função histórica da literatura é um impulso dialético do processo de evolução,
entendido como luta (I. Tinianov). O processo de combinação e mistura dos gêneros é fundamental para se
conhecer a natureza da literatura e o diálogo cultural
determinado pela função histórica que se desenrola ao
longo de sua existência. Esse é o procedimento através do qual a obra estética é considerada na unidade
dialógica da cultura onde ética e estética jamais se
separam.
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18
19
Gustave Flaubert, 1975: 223; 239.
Antônio Candido, 1975: 30.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997.
13
Este ensaio propõe uma reflexão sobre o modernismo,
enfocando seu surgimento, ambiência, repercussões, valores estéticos e político-sociais que vão redesenhar o pensamento ocidental.
Palavras-chave:
Modernismo, valor estético
This essay proposes a reflection about modernism,
starting with its origins, ambiance, repercussions,
aesthetic, political and social values, which will
reconfigure western thought.
Key-words:
Modernism, aesthetic values
14
*
Paulo Sérgio Nolasco
dos Santos é professor de
Teoria Literária e
Literatura Comparada do
CEUD da Universidade
Federal de Mato Grosso
do Sul, Doutor em
Literatura Comparada
pela UFMG.
MODERNISMO
GERME OU SENTIMENTO
EM IRRADIAÇÃO
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos*
Sob a égide do processo criativo no contexto do
mundo contemporâneo patenteia-se, não raramente, um
sentimento de perplexidade a envolver o processo de renovação e revitalização por que passam, de um lado,as
formas narracionais e, de outro, o próprio leitor de literatura. Explorando e confrontando os dois pólos - o criador e o ato de leitura - , ou tornando ambos centro de
uma mesma problemática - o processo criativo - , assistimos a algo como uma ''paralisia'' no âmbito da literatura no modernismo.
Apontando, como eixo de referência histórico-literário da literatura moderna, a obra do irlandês James Joyce
com sua batalha travada no Ulisses e a mencionar, ainda,
a empresa analítico-interpretativa de Marcel Proust em
sua Recherche, a literatura começa a processar-se em
termos de crise e metamorfose. Com isso quer-se dizer
que, deixando de ocupar-se dos ''reveses da sorte, da
boa ou da má fortuna'', ou ''do conflito das paixões, dos
caracteres'', no dizer de André Gide, a literatura de nossos dias expõe-se a si mesma enquanto fascinada pelo
ser da linguagem.
Se é necessário determinar um ponto de partida do
que se pode chamar de renovação na criação literária,
isso visa a, antes de tudo, considerar com mais propriedade o que acontece a partir desse ponto, em termos de
renovação das formas narracionais. Para tanto, é preciso por em relevância o próprio conceito de criação literária, ou antes, considerar com propriedade a renovação
do processo criativo no advento do modernismo.
1
Na verdade, à medida que se estreita o foco de análise e se aumenta a pressão para identificar aquele acontecimento fulcral - a obra realmente importante para se
buscar o annus morabili do modernismo - , pode-se cair
numa posição extrema, só confirmada pela ousadia, considerando-se a divergência de opiniões ou mesmo de
certezas que acabe num constrangimento pouco suportável e nada convincente.
Nesse sentido, Malcolm Bradbury1 torna-se um dos
críticos a que recorremos enfaticamente, quer seja por
sua vasta e importante produção no que se refere às
questões do modernismo ''stricto sensu'', quer seja, e
de modo mais criterioso, pelo fato de o ensaísta adotar
em sua crítica em método pluralista, ou seja, mais ''coerente com o relativismo e perspectivismo do modernismo''. Os textos de M. Bradbury, bem como os textos de outros críticos do modernismo que integram a
coletânea Modernismo: Guia Geral (na maioria, professores que trabalham esse tema na Universidade de
East Anglia) refletem uma sutil consciência de que a
literatura em análise continua a ser desconcertante e,
por isso, as discussões críticas sobre essa literatura
devem ser vistas ainda em estágio embrionário.
Haja vista que o que está em germe na reação da
literatura, no fim do século passado, reação conhecida
na França por simbolismo, é o complexo de um movimento que conhecemos por modernismo. O simbolismo
- que despertou uma sensibilidade diretamente ligada
à palavra e ao verso doadores de imagens cambiantes
Cf. BRADBURY, McFARLANE. Modernismo: guia geral, editado em 1989; BRADBURY. O mundo moderno: dez grandes escritores, também de 1989 e BRADBURY. O romance americano moderno, de 1991.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.
15
( - Ó pântanos de Mim - jardim estagnado!...) - algumas
vezes apressadamente considerado de puro hermetismo,
em outras vezes louvado apoteoticamente, entretece fios
muito estreitos com a poética modernista. Com efeito, o
não compreender a estética simbolista constitui sério
entrave para se compreender toda a literatura imaginativa, e, no bojo, as revoltas modernistas que se seguiram
ao final do século.
Deste ponto de vista, o simbolismo poderia ser visto
como uma bola lançada de uma época à outra. Edmund
Wilson2 estende-o ao longo de linhas tão amplas que é
capaz de incluir os romances de Joyce e de Proust, as
ininteligibilidades de Gertrud Stein e dos dadaístas, em
sua ampla definição, que diz:
''O simbolismo pode ser definido como uma tentativa
de comunicar, mediante meios cuidadosamente estudados - uma complicada associação de idéias, representada por uma mistura de metáforas - , os sentimentos pessoais e únicos.''3
Malcolm Bradbury, em ensaio dedicado ao nome e à
natureza do modernismo,4 alertando para a natureza oblíqua desse movimento, dedicou especial atenção à difícil
tarefa de situá-lo ou datá-lo com precisão. Faz notar o
crítico o quanto as opiniões divergem dentre os demais
especialistas. Entretanto, ao registrar a fala e a causa
advogadas, a partir de interesses tão diversos e objetivos
quase sempre diferentes, pôde ele oferecer uma síntese
que permitiu fixar não o momento, mas a origem do
modernismo. Assinala, ainda, que a face oposta do modernismo ''consiste em seu caráter internacional'' e que
o próprio lexema ''moderno'' pode ser assim identificável
à primeira vista.
Se inúmeros são os ensaios de críticos que se debruçaram na tentativa de identificar o início do modernismo,
resta uma concenso segundo o qual quem o busca deve
procurá-lo nos primeiros trinta anos deste século, período em que, para A. Alvarez, encontrar-se-ão Pound, Eliot,
Joyce e Kafka no epicentro da mudança5.
Para Virginia Woolf, o ano de 1910 marca no mundo
uma revolução nas idéias e na vida, pela enorme transformação cultural que se deu, num breve intervalo de
tempo. No ensaio ''Mr. Bennet and Mrs. Brow'', Virginia
Woolf faz observar:
''Em ou por volta de dezembro de 1910, a natureza
humana mudou. (...) Todas as relações humanas se modificaram - entre patrões e empregados, maridos e mulheres, pais e filhos. E, quando as relações humanas mudam,
há ao mesmo tempo uma mudança na religião, no comportamento, na política e na literatura.''6
Já em O Mundo Moderno, Malcolm Bradbury chama
a atenção para o fato de 1922 ter sido, sem sombra de
dúvidas, o ano de grande importância para o modernismo. Nesse ano T. S. Eliot publicou A Terra Estéril, James
Joyce lançou Ulisses e Marcel Proust morreu. É desse
mesmo ano a publicação do terceiro romance de Mrs.
Woolf, O Quatro de Jacob, que, por ser a obra mais
experimental que lançara até então, vai merecer da autora o juízo de que finalmente descobrira ''como começar
(aos quarenta anos) a dizer algo com minha própria voz''.7
Com efeito, dois grandes eventos podem corroborar os
acontecimentos do ano de 1922. Por um lado, foi justamente a criação da Hogart Press, editora de propriedade
dos Woolfs, que publicou a edição britânica de A Terra
Estéril, lançado já no mesmo ano nos Estados Unidos.
Por outro, instalada e em plena atividade, essa editora,
depois de publicar o livro de ensaios de Virginia Woolf
intitulado O Leitor Comum e O Bosque Sagrado, de T.
S. Eliot, publicou uma das obras mais importantes do
modernismo, inicialmente um conto intitulado ''Mrs.
Dalloway em Bond Street''. Neste conto já se encontra
em germe a obra que vai consolidar-se mais tarde, sob o
título de Mrs. Dalloway, projeto que ocuparia a mente
de sua autora durante todo o ano de 1992.
Neste rastreamento de acontecimentos decisivos, um
marco irradiador do estado de efervescência das novas
idéias culturais no modernismo desponta com a organização da famosa exposição pós-impressionista feita por
Roger Fry na Grafton Gallery, ainda em 1910, e que se
registra como evento do grupo de Bloomsbury. Muito já
se falou sobre os importantes movimentos artísticos e
das idéias fundamentais que o espírito da Bloomsbury
defendia tenazmente para a criação literária. O ''grupo de
Bloomsbury'', assim chamado, reunia artistas, críticos,
jornalistas, escritores, filósofos; suas figuras centrais
foram a própria Virginia Woolf, E. M. Forster, o biógrafo Litton Strachey, Clive Bell e John Maynard Keynes, o
grande economista do século. O grupo de Bloomsbury
notabilizou-se por seu caráter irônico e seu agnosticismo
radical, porquanto seus integrantes não perdoavam nada,
nem a si mesmos, e por suas atividades inovadoras, pode
ser visto, ao mesmo tempo, ''como revolta contra o 'sistema' e como um novo 'sistema', principalmente mais
para o final dos anos 20, quando (...) assumiu uma posição central na vida literária e artística, no mundo edito-
2
WILSON. O castelo de Axel.
Ibidem. p. 23.
4
BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p. 23-42.
5
Para D.H. Lawrence parecerá que foi "em 1915 que o velho mundo se acabou", data da morte do rei Eduardo. Richard Ellmann, vai
estender sua repercussão por todo o período eduardiano, sugerindo que "1900 é um ano mais apropriado e mais preciso do que o 1910
de Virginia Woolf", Cf. Id. Ibidem.
6
WOOLF. Character in Fiction, p. 422. Cf. também, WOOLF. Diário. Primeiro volume - 1915-1916, p. 213.
7
Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124.
3
16
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.
rial, na opinião crítica e na influência
ral do modernismo, Malcolm
Na delicada tarefa
social''.8 Quanto ao que caracteriza o
Bradbury, orientando-se por um node fixar o ponto
''espírito de Bloomsbury'', como se
tável senso de prudência, alertou,
convencionou denominar, voltarelogo na prefácio, para a imperiosa
de intensidade das
mos, no intuito de demonstrar o
necessidade de tratar o modernismo
atividades modernistas,
questionamento que opera sobre a ficsob um método pluralista que, em si
alguns críticos preferem mesmo, fosse ''bastante coerente
ção moderna, relacionando-o à noção
de realidade vista mais como uma
com o relativismo e perspectivismo
transferir tal foco
questão estética e metafísica.
do modernismo''. Com efeito, dianpara os anos
Na delicada tarefa de fixar o ponte disso o que resta são diferentes
to de intensidade das atividades moformas de abordar um tema, junto
posteriores à Primeira
dernistas, alguns críticos preferem
com a consciência de que qualquer
Grande Guerra.
transferir tal foco de intensidade para
intervenção nesse movimento de taos anos posteriores à Primeira Granmanha complexidade, qualquer corde Guerra. Do escritor e ensaísta Julio Cortázar pode-se te na série, qualquer seccionamento, violentaria o todo,
colher um testemunho valioso quando enfatiza que a re- que tenta subsistir na complexidade e, nesta, encerra sua
ação ao passadismo se estende pelas três primeiras dé- resistência. Trata-se, enfim, de percorrer um trajeto socadas do século. O século inicia-se sob o impacto da bre o qual sabe-se de antemão que, durante seu
filosofia bergsoniana, cuja correspondência instantânea rastreamento, vai-se deparar com uma área de estudos
se reflete na obra de Marcel Proust, o que levará Cortázar ''cuja demarcação é controversa'', justamente pelos dia indicar o período de 1910 a 1930 como sendo o versos cruzamentos que a pervagam.
descortinar-se do esperado e requerido pelos romancisSe o modernismo pode ser definido pela ''derrubada
tas que buscavam deliberadamente ''uma nova metafísica, das tradicionais fronteiras em questões literárias e cultunão já ingênua como a inicial, e uma gnosiologia, não já rais'', um de seus traços mais importantes, duas quesanalítica, mas de contato''.9 Com o soar do sino da nova tões parecem aí imbricar-se, cada uma com seu ramo
filosofia bergsoniana e também com a de G. E. Moore próprio e alastrar-se, mas complementando-se naquele
(filósofo de Cambridge que, naquela Universidade, in- traço definidor.
fluenciou o círculo de amigos mais tarde conhecido como
A primeira questão diz respeito ao seu caráter cosmoo Grupo de Bloomsbury), 1910 e 1930 será, para polita, de ressonância em escala cada vez mais universal,
Cortázar, o grande período a ''conceder o primeiro plano favorecido pelos intercâmbios de um modo geral e tendo
a uma atmosfera ou a uma orientação manifestamente como pano de fundo grandes conflitos mundiais como as
irracional''.10 Isso se pode traduzir numa despreocupa- duas grandes guerras e o período de entreguerras; enfim,
ção com os modelos e convenções, haja vista a consci- foi todo um contexto de irradiação e circulação de idéias e
ência exacerbada de que os modelos não são imutáveis, costumes novos que acabaram por reduzir o globo à esatitude responsável pela grande abertura do modernismo cala do homem. Assim, a palavra ''moderno'' encontra
rumo à série de pesquisas de conteúdo e de pesquisas de sua força quando associada a um sentimento específico e
forma. A pesquisa formal representa para o modernis- tipicamente contemporâneo, a saber:
mo a preocupação maior e a procura da expressão ade''a sensação historicista de que vivemos em tempos
quada para dizer, sem nenhum preconceito vocabular, totalmente novos, de que a história contemporânea é a
exatamente o que estava acontecendo com os sentimen- fonte de nossa significação, de que somos derivados não
tos e com a vida íntima.
do passado, mas da trama ou do ambiente circundante e
Essas considerações preliminares acerca do nome e envolvente, de que a modernidade é uma consciência
da natureza do modernismo apontam para um movimento nova, uma condição recente da mente humana - condique é, decerto, marcado por um caráter de contradi- ção que a arte moderna explorou, vivenciou e à qual
ções, fruto da vontade, do espírito e do gosto por uma por vezes se opôs''.11
nova ordem. Tentar marcar o início de todo o élan que é
Desta forma, o modernismo caracteriza-se sobretuo modernismo, resultaria em parcos frutos, só justificá- do sob o signo de um nome e o de uma corrente que
veis pela obsessão e capricho pessoais. Em seu guia ge- atravessam as culturas ocidentais como um movimento
8
Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124.
CORTÁZAR. Situação do romance, p. 72.
10
Júlio Cortázar também registra as conquistas de Joyce e Proust, mas celebra as de Gide, D.H. Laurence, Kafka, William Faulkner.
Faulkner que, buscando "a metafisica da guerra de 14 com olhos de alucinado", deslumbrara Cortázar e sua geração. Cortázar também
menciona Thomas Mann, Fedin, Hermann Brach e Virginia Woolf. Esta blomsburyana que lhe parecerá a "flor perfeita desta árvore
poética do romance, sua última Thule, a prova refinada de sua grandeza e também de sua fraqueza". Cf. Id. Ibidem.
11
BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p.16.
9
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.
17
vigoroso e internacional. Sustentando para cada obra uma
idéia de estrutura própria e de criação voltada para o seu
caráter de linguagem enquanto representação, que passa
a subsistir mais por seus ''constituintes autotélicos'' do
que pelo referencial, o modernismo, enquanto movimento
revolucionário, caracterizado por uma insatisfação radical para com o passado antigo, confirma efetivamente
sua tendência cosmopolita. É ''um movimento de natureza internacional, marcado por um volume de idéias,
formas e valores principais que se difundiram de país
para país e veio a se converter na linha mestra da tradição ocidental''.
Uma outra questão que se pode apresentar diz respeito
à geografia do modernismo. O conceito de modernismo
põe em aberto nuances de diferença de acordo com as
metrópoles que lhe advogam a origem, ou as que lhe querem caracterizar sob a ótica de uma recepção peculiar, ou
ainda, daquelas metrópoles que advogam para si ambos
os atributos. Essa atitude se respalda na impertinência
mesma de se tentar datar um movimento de expansão
meteórica. Nesse sentido, observa M. Bradbury o quanto
o conceito de modernismo prendeu a atenção de algumas
cidades do modernismo, como Viena, Oslo, Zurique, e
mesmo da Alemanha entre os anos de 1890 e 1891, obsessão atenuada noutras metrópoles. Na Inglaterra, por
exemplo, registra-se a relativa indiferença pelo termo "moderno", que "raramente é usado em qualquer acepção
programática".
Como salientamos, nossa tentativa de caracterização
do modernismo deparou-se com a vitalidade de um movimento de dificil delimitação. Falamos da geografia do
modernismo no sentido da circulação dos ideiais modernistas no além-fronteiras de um país específico. No entanto, sob a perspectiva do modernismo brasileiro parece
relevante traçar a ambiência de um movimento já marcado historicamente, pelo ano de 1922: data que nos remete
à Semana de Arte Moderna. Ter ciência dos acontecimentos e do espírito renovador da Semana não significa
desconhecer a envergadura de um movimento que, no
Brasil, vinha sendo preparado antes de 22 e que continuou
a sofrer evoluções ao longo daquele ano e até nossos dias.
Vale dizer que os critérios estéticos que se colocavam em
germe na Semana de 22 foram evoluindo cronologicamente.
Não retomaríamos, aqui, a revisão dos diversos
avatares do modernismo brasileiro. Revisão que, nitidamente, foi feita pela história literária, inclusive reconhecendo no modernismo o nosso movimento maior no sentido de fazer balanço do que é a realidade brasileira,
imbuído que foi de uma orientação eminentemente crítica, de modo a substituir o falso e o superado pelo au-
têntico e atual. Na ambiência do modernismo brasileiro
é visível a intenção dos expoentes modernistas que se
debateram entre uma cultura altamente europeizada e o
desejo, a necessidade vicária, de dar forma e feição a um
pensamento artístico que correspondesse à cultura nacional. Assim, é notável o fato desses mesmos expoentes, recém chegados da Europa, empenharam-se em re/
visitar o Brasil através das célebres viagens pelo interior, recuperando o elemento nacional que vai do folclore
às estátuas do Aleijadinho e todo o Barroco mineiro12.
Buscar as raízes da nacionalidade foi razão do grande
projeto criador de Oswald e Mário de Andrade, que incorporaram à literatura o índio, o negro, e o imigrante.
Nesse intento, a "rapsódia" Macunaíma, de Mário, de
1928, representa um dos maiores esforços já elaborados
na construção daquele projeto inicial - o mapeamento do
nacional -, cuja realização só se torna possível com o
questionamento da linguagem literária que passa a assumir na própria ruptura do código - metalinguagem - o
reflexo e a síntese de uma destruição que é então construção do nacional - da realidade. É preciso dizer que a
indagação sobre a linguagem e a gramática não deixa de
estar conectada aos propósitos maiores do movimento
modernista lato sensu, e que Mário de Andrade, na célebre conferência O movimento modernista, traz uma síntese essencial:
"O que caracteriza esta realidade que o movimento
modernista impôs é a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética: a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência crítica nacional."13
Com efeito, há que se assinalar que o grande mérito
do livro de Mário de Andrade, Macunaíma, está na subversão e reconstituição do material lingüistico. Ao tornar
possível a convivência das inúmeras formas lingüísticas
- produto de um país de dimensões continentais, de
constrastes múltiplos - Macunaíma realiza uma síntese
que abole a linguagem estritamente regionalista para
desregionalizar o mais possível a criação.
Eneida Maria de Souza ressalta que essa
desregionalização corresponde à língua desgeografizada
que busca, icônica e isomorficamente, mesclar no plano da invenção verbal o nacional e o estrangeiro - espécie de sincretismo, próprio do modernismo no sentido
lato14. Assim articulado com o todo da vida nacional,
Macunaíma elabora criticamente um jogo da escrita comandado por fragmentos de discursos e retalhos de textos que resultam numa obra representativa dos valores
estéticos do modernismo apontados por M. Bradbury.
Sublinhando o "direito à pesquisa estética", Mário
de Andrade pôs em prospecção uma das marcas mais
12
Cf. BELLUZZO. Os surtos modernistas, p. 13-29.
ANDRADE. O movimento modernista, citado por IGLÉSIAS. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional, p.7.
14
SOUZA. A pedra mágica do discurso.
13
18
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.
características do modernismo: o ethos lúdico dos modernos se afirma tanto no plano da forma quanto no do
conteúdo. O jogo das formas e das técnicas substancia
um projeto que leva à proliferação e à fragmentação das
escolas e movimentos na frenética sucessão de ismos
de vanguarda , sobretudo o futurismo, o dadaísmo e o
surrealismo que, na época, exerceram um considerável
impacto no Brasil.
Simultaneamente ao otimismo da forma, o modernismo brasileiro acentuou a natureza problemática da
mímese.15 Pois, somente a partir da reflexão acerca
das relações entre realidade e reapresentação, essas duas
noções de base, é que se pode exercer a tomada de
consciência ao nível de intervenção cultural - tarefa
que vai ser assumida pelo modernismo brasileiro que,
assim, conecta-se ao movimento moderno, em seu ideal
mais amplo e de bases universais que já significava a
problematização dos valores literários.
É a desconfiança do ajuste entre representação e
realidade que torna inevitável a crise de representação,
sempre acoplada à crítica das articulações. Isso constitui o traço recorrente nos escritores modernistas brasileiros conscientes de que é sempre preciso adaptar o
que se recebe à realidade. Foi essa consciência
agudizada dos mecanismos ficcionais que levou os escritores Machado de Assis e Mário de Andrade a transformarem o cânon do romance, de tal forma que é com
dificuldade que falamos de romance nesses casos. Machado, marcando o descompasso entre escritor e rea-
lidade, já apontava , em seu tempo, uma desarticulação
da linguagem literária que se volta para a elipse, litotes
e paradoxos resgatados no humor e na descrença do
escritor.16
A "rapsódia" de Mário de Andrade, elaborando a paródia da história brasileira, e querendo marcar os
desajustamentos entre indivíduo e historia, torna complexas as articulações entre realidade e representação. Também os 163 fragmentos que compõem o livro Memórias
Sentimentais de João Miramar, espécie de continuum
Brasil-Europa-Brasil, acentuam sempre o princípio da composição como meio fundante da representação.
Do que se acaba de expor, breve traço da ambiência
do modernismo brasileiro, releva observar que um movimento tão significativo para a vida nacional - a Semana da
Arte Moderna, com seus desdobramentos e articulações
- requer uma abordagem pluralista, inclusive pelas avaliações e estudos ainda em desenvolvimento. Portanto, exige-se acuidade do analista que vive e participa de um movimento ao qual está ligado pelo fenômeno da pertença,
que o sobreavisa do risco das sínteses e desaconselha
totalizações. Ressalte-se , sobretudo, o caráter de acontecimento e de renovação desses movimentos - a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e o Grupo de
Bloomsbury, em Londres - que, por si sós, tiveram o mérito de defender a ferro e fogo os ideais do novo e da
renovação, e que, com o trabalho decisivo de seus expoentes, mudou a direção de pelo menos uma parte do pensamento ocidental.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. 141p. Capítulo IV: “A modernidade do romance”, p. 119-131.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina/Editora Unesp,
1990. P.13-29: Os surtos modernistas. (Caderno de Cultura,1)
BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 247p. P.119-137: Marcel Proust;
197-214: Virginia Woolf.
BRADBURY, Malcolm, FLETCHER, John. (Org.). Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Segunda Parte. Capítulo 6: “O romance de
introversão”, p. 322-339.
BRADBURY, Malcolm, MCFARLANE, James. (Org.). Modernismo: guia geral. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Primeira Parte.
Capítulo 1: “O nome e a natureza do modernismo”, p. 13-42; Capítulo 6: “O romance modernista”, p. 321-394.
BRADBURY, Malcolm. O romance americano moderno. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 220p.
BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno - dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 247p. p. 197-214:
Virginia Woolf.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad., sel. org. Davi Arrigucci Junior. São Paulo: Perspectiva, 1974. 257p. Capítulo 17: “Do conto breve e seus arredores”, p. 227237; Capítulo 6: “Alguns aspectos do conto”, p. 147-163; Capítulo 3: “Situação do romance”, p. 61-83.
IGLÉSIAS, Francisco. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional. (s.n.t.). (mimeogr.)
MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. Capítulo VI: “O modernismo brasileiro”, p. 122-134.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988. 135p.
WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, (s.d.). 220p.
WOOLE, Virginia. Diário. Segundo volume. 1927-1941. Trad. Maria José Jorge. Lisboa: Bertrand, 1987. 563p.
WOOLE, Virginia. The essays of Virginia Woolf. Volume 3: 1919-1924. London. The Hogart Press. 1988. 551p. (ed. Andrew McNeillie). p. 420-438. Character in fiction.
15
Sobre a problemática realidade vs. representação, cf. BARBOSA. A modernidade do romance, p. 119-131 e MERQUIOR. O
modernismo brasileiro, p. 122-134.
16
A importância da obra machadiana na configuração do modernismo brasileiro foi de tal impacto que a critica, atônita, em 1889, fazia
observar: "Talvez daqui a mais de um século os literatos ainda discutam a que escola pertence. Machado de Assis". Cf. REVISTA
VEJA, ano 20, n.37, p. 105, 20 nov. 1989.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997.
19
Esse ensaio procura redefinir o lugar do sujeito ficcional
a partir do questionamento da subjetividade por parte de
narradores e personagens da literatura contemporrânea.
Palavras-chave:
Narrador, subjetividade,
literatura contemporrânea
In this essay I attempt to re-define the standing of
the fictional character based on the questionning of
contemporary literature's characters and narrators of
the subjetivity.
Key-words:
Narrator, subjectivity;
contemporary literature
20
*
Texto apresentado
durante o Seminário Arte
e Subjetividade na
UFMS, em 05.12.96.
**
Maria Adélia
Menegazzo é professora
de Teoria da Literatura e
de História da Arte do
CCHS da Universidade
Federal de Mato Grosso
do Sul. Doutora em
Teoria Literária e
Literatura Comparada
pela UNESP de Assis.
A SUBJETIVIDADE POSTA EM
QUESTÃO POR NARRADORES
E PERSONAGENS*
Maria Adélia Menegazzo**
O título desse pequeno ensaio revela de antemão
ao menos dois limites: 1. iremos compreender a subjetividade do ponto de vista lingüístico, enquanto a capacidade do falante de se posicionar como sujeito; 2. o
sujeito de que trataremos será sempre aquele ficcional
ou ficcionalizado, que terá sua autoridade discursiva
auto-questionada ou contestada por algum outro sujeito também ficcional.
O questionamento da noção de sujeito e da subjetividade apresenta uma freqüência razoável na literatura e na teoria literária contemporâneas e as razões
desse fato podem ir da esquizofrenia ao capitalismo
multinacional, dependendo do olhar de quem tenta
explicá-las. Mas sabemos que o respaldo da subjetividade narrativa é dado pelo ponto de vista ou foco-narrativo. E é este mecanismo que sofrerá ajustes e
desajustes a partir do final do século XIX, mais propriamente a partir do romance Madame Bovary de
Gustave Flaubert.
As múltiplas posições do narrador de MB podem
ser lidas não como uma negação do episódico, mas
como uma argumentação em favor da objetividade
narrativa1. Flaubert altera a representação literária ao
acentuar a palavra enquanto material narrativo (e não
mais meramente descritivo), introduzindo uma nova
forma de apresentação do tempo ao multiplicar e sobrepor o ponto de vista (a famosa cena dos comícios
agrícolas), eliminando ou deixando quase imperceptíveis as fronteiras entre o ideal e a realidade, além de
quebrar a coerência e a função do narrador.
1
Flaubert dá ao leitor a oportunidade de se defrontar com a ambivalência do olhar narrativo, (e portanto
com sujeitos ambivalentes) e com uma nova
temporalidade racionalizada para reforçar a presença
de um mundo ficcional. Assim, os múltiplos narradores de MB criam vazios no texto - porque não se sabe
quem fala ou pensa, quem vê ou sonha - descrevendo
minimamente, quase em silêncio (não podemos esquecer o desejo de um "livro sobre nada"), impressões visuais de superficie a partir das quais o leitor poderá
olhar o que é apresentado como aparente exposição
de fatos.
A partir do modernismo, o desafio é aquele imposto
na educação do gosto pelo mesmo. A arte encontra
na auto-reflexidade uma das possibilidades de
desestimular o leitor a procurar correspondências entre texto e realidade e de levá-lo a refletir sobre a
realidade do texto. É este o recurso que será acentuado pela arte contemporânea.
Assim, a auto-reflexividade da literatura atual não
representa um novo paradigma, mas um modo de
acentuar a provisoriedade dos modos de expressão,
de romper as noções "naturais" do realismo factual,
seus limites e possibilidades discursivas.
O questionamento da subjetividade levado a efeito
pela literatura contemporânea, desafia as noções tradicionais de ponto de vista, uma vez que já não se pode
supor que o sujeito que olha e percebe seja alguém
imbuído do propósito de produzir imagens e significados coerentes.
Cf. LLOSA, Mario Vargas. A orgia perpétua. Flaubert e Madame Bovary. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997.
21
Ítalo Calvino, por exemplo, utiliza recursos do próprio realismo para estruturar seus romances, ao mesmo tempo em que põe em evidência o caráter convencional desses recursos. O romance Se um viajante
numa noite de inverno 2 é exemplar desse tipo de
enunciação auto-reflexiva. Quando diz:
Ocorreu-me a idéia de escrever um romance feito
totalmente de inícios de romances. O protagonista
poderia ser um Leitor que se vê continuamente
interrompido. O Leitor adquire o novo romance A
do autor Z. Mas o exemplar é defeituoso, contém
exclusivamente o início... O Leitor retorna à livraria para trocar seu exemplar... (p. 239)
Revela exatamente o que o romance irá apresentar
como narrativa ao leitor. Calvino opta pelo desvio enquanto autor, narrador e leitor, levantando as possibilidades desses elementos se posicionarem dentro do
texto literário. Mas o faz através do descentramento
e da negação da semelhança, entendida como
problematização das normas tradicionais da narrativa,
por meio da desconstrução e/ou da superexposição
dessas normas para serem quebradas e do olhar irônico sobre as teorias a esse respeito.
(...) as frases continuam a se mover no
indeterminado, no cinzento, em uma espécie de
no man's land da experiência reduzida a seu
mínimo denominador comum. Presta atenção:
esta é certamente uma técnica para te seduzir
sem que te dês conta. Uma armadilha. Ou
talvez o autor esteja indeciso, como de resto tu
mesmo, Leitor, não estás certo do que mais te
agradaria ler: (...) (p.19)
Através do processo auto-reflexivo, Calvino se aproxima do leitor expondo as possibilidades de ludibriá-lo.
Se esse é um autor exemplar da literatura que questiona a enunciação totalizante, que vai da produção à
recepção do texto literário, alguns escritores brasileiros contemporâneos também merecem ser
referenciados: Silviano Santiago, Zulmira Ribeiro
Tavares, Chico Buarque de Holanda, João Gilberto
Noll e Sergio Sant'Anna, entre outros.
A necessidade de ruptura com paradigmas
totalizantes levou estes escritores à expansão da reflexão metadiscursiva, uma vez que há uma disseminação
do provisório e do heterogêneo contaminando todas as
tentativas organizadas de unificação e coerência, sejam
elas formais ou temáticas, impossibilitando visões homogêneas do mundo ficcional, que poderiam atuar como
elementos de dissolução da ficção.
O que se percebe na obra desses autores brasileiros é um descentramento de valores no sujeito (narrador
ou personagem) e um descentramento da individualidade na construção do espaço tempo da ficção. Isto
não implica necessariamente ausência de sentido, mas
a presença de uma lógica particular de cada discurso,
de cada sujeito.
A pluralidade dos olhares narrativos implica a recusa do absoluto e estabelece uma nova relação com
o leitor, na percepção do recorte do mundo dado
ficcionalmente. Mas essa ótica simultânea de narradores, personagens e mundos, não pressupõe uma convivência pacífica; é antes de tudo conflitual e fecunda.
Conflito evidente no romance Stella Manhattan3
de Silviano Santiago, onde se apresenta um encontro
entre o narrador e o leitor através de um recorte
ensaístico incorporado ao romance sem qualquer explicação: COMEÇO: O NARRADOR.
A certa altura, a disputa entre leitor e narrador chega
ao máximo com o leitor afirmando:
Você, com remorso, já está disposto a me salvar
da morte,
Vira-se para mim e diz que na verdade sou eu
quem tem razão e que você realmente não gosta
de narrativas autobiográficas. Ficção é fingimento blablablá, o poeta quem diria? é um
fingidor. El poeta quaquaquaquá es un jodedor,
eso si. A fucker. A motherfucker. (...) (p. 74)
O narrador afasta desse modo qualquer tentativa de
identificação biográfica, de favorecimento de experiências subjetivas. Esse diálogo entre narrador e leitor continuará intercalado por páginas do romance em processo de construção, páginas que vão sendo submetidas ao
leitor por vontade do escritor ou por intromissão daquele que está o tempo todo lendo por trás dos ombros do
narrador e que pode ainda afirmar:
Você continua a rir de mim e eu pensando como
são falsos os romances que só transmitem a
descontinuidade da ação, mas nunca transmitem a descontinuidade da criação. (p.86)
Demonstra, assim, ao leitor que o que é lido em
seqüência não é construído na mesma ordem. Que o
tempo da leitura é diferente do tempo da escritura que,
por sua vez, é diferente do tempo da enunciação, embora todos estejam fartos de o saber.
No ensaio "O narrador pós-moderno"4, Silviano
Santiago afirma que "na pobreza da experiência de
ambos se revela a importância do personagem na ficção contemporânea; narrador e leitor se definem como
espectadores de uma ação alheia que os empolga,
emociona e seduz." (p.44)
Narradores hesitantes, personagens difusos e, ao
mesmo tempo, múltiplos, imagens que se filtram atra-
2
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
4
Em SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
3
22
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997.
vés de recortes temporais e espasabe onde está, pois indaga "onde
ciais, histórias não concluídas, são
Nos romances
é aqui?", nem quando as coisas
alguns traços enunciados problemaacontecem: "por que o meu atracontemporâneos
ticamente pela literatura contemposo diante desta duração?". Isto sigpós-modernistas,
rânea que, auto-reflexiva, não tem
nifica que a subjetividade, aparencomo objetivo negar as verdades da
temente expressa no eu que naro sujeito que narra
ficção e da realidade, mas sim
ra, não se afirma, impedindo que
ou é extremamente
contestá-las de dentro.
se refaçam percursos, porque reNa exposição do mundo pelo rosingular, ou é
presenta seres suspensos no temmance tradicional, o leitor podia enpo e no espaço. Em O quieto aniescandalosamente
contrar aquele olhar realista, minumal da esquina7, o narrador-perplural.
cioso, já esquematizado, que não lhe
sonagem pergunta:
permitia qualquer dúvida sobre o
De qualquer maneira, se eu tenespelho, identificação aparentementasse sanar o atraso, se virasse
te incontestável do já visto, do que não permite ambia memória pelo avesso para reconstruir este
güidades. No entanto, quando se defronta hoje com o
tempo, quem iria avalizar a minha perícia?
mundo ficcional, ele está obscenamente exposto em(p.52)
bora não nitidamente visível. Investe-se no olhar
A pergunta final reforça o jogo com o inesperado e
como o sentido capaz de inventariar o visível, o já a ausência de regras na construção do sentido de uma
visto, o ainda não visto.
possível história pessoal. As narrativas de Noll têm a
Assim, em O nome do bispo, de Zulmira Ribeiro propriedade de, ao mesmo tempo, propor percursos
Tavares, o narrador trata de descobrir quem é o ou- de formação ou de busca de identidade para suas pertro para quem se fala? Se se tratasse de um narrador sonagens e de destruir estes mesmos percursos detecomum, o outro seria o leitor. Mas esse narrador é, ao riorando as imagens em sua materialidade, restando
mesmo tempo, porta voz de uma personagem alta- ao leitor recortes sombrios, esgotados e irônicos em
mente indecisa, que passa por situações constrange- seu significado sempre subtraído. Nada, nenhuma hisdoras e sempre inacabadas. Não é capaz de decidir tória se conclui.
sozinha quem é o outro para quem deveria contar o
Esses são alguns meios utilizados pela literatura
que acontecera.
contemporânea para redefinir o ponto de vista, ou olhar
Problematizar o sujeito ficcional pode levar, então, narrativo que parte de um sujeito, aprofundando suas
à indeterminação da voz que narra e dos papéis narra- possibilidades de ruptura com paradigmas anteriores,
tivos. Imagine-se um romance que narra a história de quando a subjetividade limitava-se à presença aflitiva
personagens criadas para representarem o papel de do Eu e sua relativa unidade. Nos romances contempersonagens que simulam situações reais. Metaficção porâneos pós-modernistas, o sujeito que narra ou é exao quadrado? Mas é o que acontece no romance Si- tremamente singular, mesmo quando indeterminado, ou
mulacros5 de Sérgio Sant'Anna.
é escandalosamente plural, ainda que centrado em um
Ao contrário do que ocorre em Seis personagens único narrador.
à procura de uma autor6, de Luigi Pirandello, as perO papel atribuído ao leitor - uma sombra por trás do
sonagens simulacro revoltam-se contra seu autor, ma- narrador - permite que se acentue a desarrumação da
tam-no e o enterram no fundo do quintal. Um romance onisciência, da onipotência e ubiqüidade do sujeito narque se apresenta como metaficção experimental, rativo, portanto, a desfocalização da subjetividade que
ficcionalmente frustrada e também como uma refle- pode se apresentar super-dimensionada, multíplice,
xão paródica sobre a "morte do autor", reafirmando a dirigida ou manipulada e, ainda, indeterminada ou hesiautoridade do eu que narra.
tante.
Já nos romances de João Gilberto Noll, ainda que
O questionamento da subjetividade, enquanto reas personagens sejam os narradores, essa fusão não curso retórico da narrativa contemporânea, assume a
implica identidade ou identificação do sujeito nar- problematização da ausência de paradigmas estruturativo. O narrador prefere ficar escondido, afirman- rais e temáticos da linguagem da arte, criando a nedo "aqui ninguém me vê". Mas ao mesmo tempo não cessidade de auto-consciência e reflexão.
5
SANT'ANNA, Sergio. Simulacros. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
PIRANDELLO, Luigi. Seis personagem à procura de um autor. Trad. Brutus Pedreira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
7
NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
6
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997.
23
Este pequeno trabalho pretende ser uma primeira tentativa de leitura das grandes imagens de bichos, pintadas nas
paredes dos prédios da cidade de Campo Grande nos últimos anos, e financiadas por empresas, bancos, e órgãos do
governo estadual. Podem ser entendidas como um discurso
ecológico promovido por aqueles que , há pouco tempo, não
tinham a mínima simpatia pelo movimento ecológico? Onde
está o referente desse “bicharéu” monumental?
Palavras-chave:
Campo Grande
imaginário - ecologia
*
This small essay intends to be a first attemp to
interpret the huge paintings of animals which have been
appearing on the sides of different buildings in the city
of Campo Grande in these recent years financed by
Companies. Banks and State Agencies. Can they be
understood as an ecological discourse promoted by
those who, very recently, hadn't the slightest empathy
with the ecological movements? Where is the reference
to this "animalistic" monument?
Keywords:
Campo Grande
imaginary - ecology
24
No momento em que
este texto é publicado, as
imagens de bichos da
entrada da cidade de
Campo Grande já não
existem mais. Nas
eleições de 96, os
políticos encobriram-nas
com imagens de
campanha eleitoral.
**
J. Genésio Fernandes
é artista Plástico e prof.º
de Teoria Literária do
Depto Letras da UFMS.
Mestre em Teoria da
Literatura pela UFPE e
doutorando pela USP.
UM PARAÍSO IMAGINÁRIO
OU A BICHARADA
NO CIMENTO*
J. Genésio Fernandes* *
Nos tempos atuais, não sei se para maior riqueza ou
pobreza da produção acadêmica, não temos mais os
mestres do pensamento, grandes intelectuais de referência de algumas décadas atrás, verdadeiras escolas, e poucas, que emprestavam segurança e rumo para aqueles que
se dispunham ao estudo de determinado assunto. O que
existe é um número enorme e disperso de estudiosos. Só
o tempo e um trabalho futuro de apuração dirá o que foi
mais produtivo. Na falta deles, e no bojo da crise atual de
paradigmas, parece compreensível que a maioria das publicações e das teses universitárias sejam uma selva de
citações, como que para compensar o vazio de segurança
e rumo para pensar. “Já não se ousa dizer nada com convicção; e para dissimular as incertezas, as pessoas refugiam-se nos diversos graus de citação: já não falamos senão
entre aspas” diz Todorov1. Talvez se possa encontrar aí
explicação para o fato de que é bem mais comum encontrar estudiosos mais à vontade e em maior número dispostos a se debruçar sobre as produções culturais que já
foram honradas com uma palavra alheia de prestígio na
instituição literária ou nos domínios da disciplina.
Nos cursos de letras, por exemplo, é muito maior o
interesse por aquelas obras do passado que já mereceram o aval da crítica ou o selo das relações curriculares.
Os alunos, e nós todos que também somos herdeiros
desse tipo de ensino, aprendemos a nos sentir mais encorajados a opinar sobre aquilo que já conta com uma
orientação de leitura, com o prestígio ou o reconhecimento da instituição literária. O procedimento é, quase
sempre: primeiro ler os textos críticos sobre determina-
I
1
2
da obra e, só depois, ler a obra mesma. Escrever sobre
as peças teatrais apresentadas na cidade, sobre tal ou
qual exposição de pintura ou sobre as obras e os fenômenos que vão surgindo a nossa porta, nem pensar! A
prática leitora dos departamentos de letras não tem olhos
para o que acontece no seu arredor, em sua própria região. Romper esses receios, cumprir nosso papel de leitores críticos no campo cultural mais restrito é, também, muito importante e pode ser caminho capaz de revigorar a prática docente de um curso de letras e de
tornar atraentes as obras do passado. Bakhtin ocupou
espaço nas duas últimas semanas de letras, mas nem
mesmo vendo o inacabamento constitutivo de seus textos e de suas reflexões, nos encorajamos a produzir nossas
próprias leituras, correndo os riscos de vê-las incompletas, inacabadas.
Dirão, e bem, que falar é mais fácil. Assim, tentarei
aqui praticar e, creiam, não sem os titubeios e certo desamparo daquele que se põe a falar daquelas produções
humanas ainda em processo, aquelas que aqui e ali, numa
esquina ou noutra, surpreendem o cotidiano do passante,
a caminho de casa, da escola ou do serviço.
Neste pequeno trabalho, e ainda em vias de desenvolvimento, tomei um assunto que nos diz
respeito,que surgiu e ainda está em processo de constituição no cotidiano da vida da Cidade de Campo Grande:
as imagens de bichos2 que encobrem a pele de cimento
da cidade, competindo com a altura dos prédios, e que a
maioria louva e justifica, crendo que elas significam ape-
II
Tzvetan Todorov in prefácio a Estética da Criação Verbal, de Bakhtin, Martins Fontes, 1992
Fernandes, José Genésio. Imagens de Bichos nos prédios da cidade de Campo Grande: fotografias e slides. Biblioteca particular.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997.
25
nas o gesto bom e bem intencionado de uma campanha
ecológica.
Sem poder contar com o conforto de uma palavra
alheia que ampare o meu texto com algum aval ou
contraponto, corro humildemente os risco, confortado
apenas pelo fato de que estou tentando produzir sentido
sobre objeto que habita o cotidiano da platéia e sobre o
que ela pode, também, produzir leitura durante essa curta exposição3 . Isso posto, sigam um viajante.
Para aquele que viaja pelo interior do Estado, o nome
“Mato Grosso” não deixa de causar um certo malestar: não se vê mais nem mesmo mato fino. Milhares de
hectares de terra pronta para o plantio mecânico ou transformados em pastagens estendem-se a perder de vista e,
não raro, sem um pé de árvore, sem uma fonte de água.
Na rodovia Campo Grande-Dourados, às margens
do asfalto incandescente, um índio meio curvado para a
estrada agita um papagainho maltrapilho empoleirado em
um pedaço de pau, sem saber bem que trejeitos, que
riso, que olhar poderia atrair um comprador motorizado.
Do outro lado, três índias com o filho a tiracolo agitam
os braços e antecipam festejos quando os carros diminuem a velocidade.
Esse é o quadro: a paisagem devastada, os ídios sem
rumo e, mais à frente, também à margem da rodovia os
sem-terra em seus barracos cobertos de plásticos negros. Envolvendo tudo, um ar extremamente seco, um
calor insuportável. Os jornais tecem comentários sobre
o racionamento do fornecimento de água e anunciam os
maiores índices de desmatamento e de queimadas. Tudo
resultado de um processo de exploração da natureza que
seguiu e segue à risca o pensamento de Francis Bacon,
que orientou o processo de desenvolvimento técnico industrial do mundo e cujo objetivo era a libertação humana de sua indigência física, de seu estado econômico de
escassez. Digo segue, porque o meu vizinho chegou
III
ontem do interior onde, desde janeiro de l991, tratores
dos mais potentes, unidos por correntes enormes, fazem o vai-e-vem interminável de destruição irracional do
resto das matas.
Diante desse quadro, o viajante não deixa de experimentar o mal-estar do vazio semântico do nome do Estado e de slogans como, “tudo é um mato só”, “gigante
pela própria natureza”, e “santuário ecológico mundial”, presentes em material de divulgação política e cultural da capital4. Onde está o referente desses discursos?
Mas nem bem o viajante se refaz desse mal-estar,
eis que topa com a cidade: se o interior não é um
mato só, nem mato grosso e nem mesmo mato fino, os
outdoors da entrada anunciam o contrário, que tudo é
natureza pura, uma bicharada só, um paraíso só.
Logo na entrada da cidade, uma onça pintada lambe
suavemente um homem que lhe dá o rosto dentro das
margens de um outdoor. Fora dessas margens, atrás e
ao lado, a casa de vender toros de madeira de porte médio. Nesse contexto as imagens adquirem um tom de
elegia. Tuiuius, antas, capivaras, jacarés e garças de vôos
delicados seguem o viajante que chega à cidade pela avenida dupla de traçado técnico, racional, moderna. O imaginário, o mítico irrompe ali mesmo onde parece não
haver mais lugar para ele5 .
O viajante adentra a capital. No centro, o museu imaginário se completa: uma arara azul candidata ao Guinness
Book parece querer desprender-se da pele de cimento
do Exceler Plaza Hotel e pousar na árvore próxima. E
pousaria, não fossem os argumentos presentes nos artifícios que a tecem, e que conspiram contra a possibilidade de seu real. A técnica hiper-realista apresenta-a
como num close do seu todo, inviabiliza-a para a árvore
real ali próxima, aponta a inexistência de seu referente
ou mesmo estabelece a substituição deste.
IV
Esse imaginário multiplicouse nesses últimos
anos na mesma proporção em que o
movimento ecológico foi perdendo o
vigor depois do
boom que teve com
a morte de lideres
como Chico Mendes
no Acre e Marçal de
Souza no Mato
Grosso do Sul, e na
mesma proporção da
onda do discurso da
globalização.
Financiado por
bancos, por empresas e pelos postos go-
V
Arara Azul, foto de J. Genésio Fernandes: provavelmente a maior pintura
de uma “Anodorhynchus hyacinthinus” do mundo. Veja reprodução colorida na última capa.
26
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997.
vernamentais locais, esse discurso
esse lance de pintura de uma topoO que mais temos nos
icônico não se instaurou num vazio
grafia imaginária: “Ressurge uma atiolhos é o que mais
discursivo, como alguém que falasse
tude de encantamento, desponta uma
a partir do nada e para ninguém, e a
nova sacralidade...”
nos
falta
na
vida.
peso de ouro6 . Somente Adão mítico
A beleza dos projetos e de todo
Estaríamos na
emitiu palavra num mundo virgem verdiscurso governamental que trata da
caverna de Platão,
balmente não dito. Esse enunciado
questão ecológica, a construção de
icônico, enunciado no sentido
um parque das nações indígenas liindecisos, impotentes
bakhtiniano, é produto da percepção
gando a cidade ao Parque dos Podepara dizer se as
que essas entidades tiveram do que vai
res e a olimpíada indígena9, tudo isso
no discurso do outro, das massas: a
também configura para nós somensombras podem ter
utopia de um mundo mais natureza,
te a topografia imaginária de uma terum mundo?
mas uma utopia na qual elas não mais
ra mais natureza, paradisíaca, pois
acreditam e da qual não querem lannão há convicção de que se possa
çar mão.7 Assim, o oferecimento desreavê-la e, consequentemente, nesa topografia imaginária de encher os olhos vai de par nhuma ação nesse sentido.
com o crescimento dos voyeurs. Para as empresas e para
A metáfora dessa falta que não crê mais suprida
o poder governamental, não há perigo em inflacionar os foi, para o colonizador europeu, o tipo de coleção coolhos dos citadinos, pois, inativos, se contentam em ver, nhecida como Gabinetes de Curiosidades e; para nós, é
em buscar, em imagens e em ficção, aquilo que mais lhes o bicharéu empalhado do Museu Dom Bosco, coleção
falta. E o que lhes falta parece cada dia mais distante.
dos troféus de caça do caçador Jovani Magrin e cartão
Essa utopia de voyeurs, na qual não se crê mais, mas de visita da capital10. Tal qual o colonizador, fomos
da qual não se quer lançar mão, parece estar configura- espoliadores de nossa própria natureza e, nossa utopia
da, também, nos textos de um Leonardo Boff. Lá uma em reavê-la é capaz apenas de nos levar a passeio por
terra mais natureza como que sobe para as nuvens. Diz uma topografia imaginária em expansão: a das imagens
ele. “Recusamo-nos a rebaixar à Terra a um conjunto de de uma natureza paradisíaca nos prédios, nos cartazes,
recursos naturais ou a um reservatório físico-químico no museu, na tela dos pintores, nos cartões que circude matérias-primas. Ela possui uma identidade e autono- lam de mão em mão, nas grandes esculturas que tomia como um organismo extremamente dinâmico e com- mam as áreas de lazer, como aquelas da Cabeça de Boi.
plexo. Ela fundamentalmente se apresenta como a Gran- Todos tecem, insistem nesse imaginário paradisíaco,
de Mãe que nos nutre e nos carrega. É a grande genero- menos os artistas índios, Conceição dos Bugres, seu
sa Pacha Mama (Grande Mãe) das culturas andinas ou filho Iltom Silva e o poeta Manoel de Barros, o que dá o
um superorganismo vivo, a Gaia, da mitologia Grega e que pensar11.
da moderna cosmologia. Queremos sentir a terra em priO que mais temos nos olhos é o que mais nos falta
meira mão. Sentir o vento em nossa pele, mergulhar nas na vida. Estaríamos na caverna de Platão, indecisos,
águas da montanha, penetrar na floresta virgem e captar impotentes para dizer se as sombras podem ter um
as expressões da biodiversidade8.” E ele remata assim mundo?
3
Este texto foi apresentado na Semana de Letras-96 do Departamento de Letras da UFMS.
Frases presentes em material de propaganda política e de divulgação de Instituições Culturais e Administrativas do Estado do Mato
Grosso do Sul em 1984, 85 e 86.
5
Certeau, Michel de. A Cultura no Plural. São Paulo, Papirus, 1995.
6
Lembremos que, no tempo de Marçal de Souza e de Chico Mendes, as empresas e o governo estiveram sempre dispostos a dar fim às
faixas e outdoors que veiculavam mensagens ecológicas - e hoje, em Campo Grande, são os bancos, as empresas privadas e os órgãos
governamentais que financiam ou apoiam a cobertura da cidade com esse material.
7
Bakhtin diz que o discurso nasce sempre a partir de um outro discurso, de uma outra palavra, refletindo e refratando essa outra palavra.
Não há discurso adâmico. Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992.
8
Boff, Leonardo. Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. São Paulo, Papirus, 1995.
9
Os governantes de Mato Grosso do Sul sobem e descem do poder, criticam-se mutuamente pelas suas obras, mas insistem todos na
mesma tecla de uma terra só natureza. Um teve o cuidado de dar a entender que o poder é verde com a construção do Parque dos Poderes
numa área muito bem conservada e que destoa dos campos devastados do resto do Estado. Outro inventou o Parque das Nações
Indígenas como um elo de ligação entre a cidade e o Parque dos Poderes, uma espécie de cimento simbólico entre o cidadão branco e o
poder governamental. O último, criticando a megalomania de seu antecessor, tentou mudar o nome do Parque das Nações Indígenas para
Parque do Rio Prosa, mas, por fim, insistiu na mesma tecla de um Estado natureza pura: promoveu a Primeira Olimpíada Indígena e
alardeou um convênio com franceses para promover a natureza.
10
Quase ninguém sabe, mas a bicharada empalhada do Museu Dom Bosco é troféu de caça de Giovani Magrin, um caçador de Goiânia. O
lote de bichos empalhados foi adquirido pelo Museu Dom Bosco e pela Universidade Federal.
11
Os artistas plásticos do Mato Grosso do Sul, na sua maioria, insistem no tema de uma terra natureza plena, pintando uma bicharada em
tons naturalistas, menos os artistas índios ou descendentes. Os bugrinhos da artista Conceição do Bugres, por exemplo, em nada se
parecem com a temática e a linguagem praticada pelos demais artistas dedicados à exaltação de um paraíso imaginário.
4
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Este ensaio analisa determinados aspectos da cidade de
Moscou dos anos 20, pós-revolução, pelo prisma do filósofo
alemão Walter Benjamin. É possível depreender, através
do olhar do filósofo-artista, os potenciais de uma nova cidade que se traduz em um novo imaginário urbano construído
pelo leitor da cidade moderna. A leitura que faz Benjamin
de Moscou dialoga criticamente com a sua própria prática
intelectual que, mais que reproduzir mimeticamente o cenário em que flanea, o recria poeticamente, imaginariamente.
Palavras-chave:
Cidade, imaginário, subjetividade
This essay analyses certain aspects of the city of
Moscow during the twenties post-revolutionary period
under a philosophical view of the German Walter Benjamin. It is possible to infer, through the point of view of
the German philosopher and artist, the potential of a
new city, which leads to a new imaginary urban
environment constructed by the reader of the modern
city. The interpretation Benjamin makes of Moscow
interacts critically with his own intellectual practice
which, more than just reproducing mimetically the
scenario through which he drifts, recreates it poetically,
imaginarily.
Keywords:
City, imaginary, subjectivity
28
*
Ronaldo Assunção é
professor de Literatura
Latino-Americana e
Espanhola do Depto de
Letras da Universidade
Federal de Mato Grosso
do Sul. Mestre em Teoria
Literária e Literatura
Brasileira pela UFSC.
CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA
WALTER BENJAMIN
PASSEIA PELO CENÁRIO
MOSCOVITA
Ronaldo Assunção*
Todo artista, como assinala César Vallejo, é inevitavelmente um sujeito político. Assim, a literatura pode
ser concebida como uma atividade crítica profundamente
interligada com o contexto em que surge; como expressão cultural que tem um modo próprio de entender e
expressar as mais complexas e simples relações de ser
humano consigo mesmo, com os outros e com a natureza.
Entre as infinitas questões alocadas pela literatura e a
arte de modo geral, pode-se apontar uma que vem me
desafiando há algum tempo. Refiro-me à questão da cidade moderna e suas representações que afloram no processo de escritura do artista.
A cidade incere-se como o cenário por excelência da
modernidade; o lugar de experiências inusitadas e centro
de aventuras vertiginosas. Ao atuar não apenas enquanto espectador da cena citadina, mas também personagem da mesma, o artista busca traduzir, através da linguagem, a sua rede de sentidos, donde podemos conceber o cenário urbano moderno como um texto discursivo
e aberto que permite a atuação do leitor num jogo duplo
de escritura e leitura.
Ler a cidade enquanto texto, e o texto sobre a cidade
como ''o relato das formas de ver a cidade'', é a tentativa
de aproximar-se mais da complexidade cultural que a
1
cidade moderna engendra. O desafio a que me proponho
neste trabalho é o de buscar demarcar e entender os
processos de construção de representações sobre e da
cidade moderna a partir da experiência do filósofo/artista Walter Benjamin em Moscou, capital da revolução
socialista e que tem sido um dos autores que mais tem
contribuído para o debate em torno da modernidade e da
cidade.
Benjamin passeia pelo cenário moscovita entre dezembro de 1926 e janeiro de 1927. De sua viagem saiu o
Diário de Moscou, livro fascinante e chave para se conhecer não só as suas impressões da Rússia de então,
mas um período muito particular da sua vida, que surge
despojada de qualquer tipo de censura por parte do autor. O texto nasce no instante da vivência, com riqueza
de detalhes sobre seus problemas, angústias e emoções.
Moscou aparece aqui e ali, ao estilo de Benjamin, fragmentariamente.1
De acordo com Gershom Scholem, os motivos que
levaram Benjamin a Moscou são, num primeiro momento, afetivos, pois lá estava Asja Lacis, por quem o filósofo nutria um forte sentimento amoroso. Por outro lado
também desejava conhecer de perto a situação russa e
talvez decidir definitivamente seu ingresso no Partido Comunista Alemão. E, finalmente, para ter uma idéia da
Num momento posterior, Benjamin sistematiza esta experiência em Moscou através de artigos escritos para revistas. Entre estes,
encontra-se ''Moscou'', escrito logo após o seu retorno, em 1927, para ser publicada na revista alemã Die Kreatur. Esse artigo foi incluído
no livro Rua de mão única, edição brasleira, em Obras escolhidas II. Trad. de Rubens R. T. Filho. São Paulo. Brasiliense. 1987. pp. 155187. Esse trabalho foi aludido pelo próprio Benjamin, em carta escrita a Sieafried Kracauer, em 23 de fevereiro de 1927, onde declara:
''tenho também a intenção de escrever uma síntese de Moscou. Porém, como costuma suceder tratando-se de mim, esta ficará fracionada
em notas especialmente pequenas e díspares, e dependerá do leitor tirar o maior proveito''. Em: BENJAMIN, Walter. Diario de Moscú.
(trad. esp.). Buenos Aires, Taurus. 1990. p. 160. No presente trabalho lançarei mão ora do Diário, ora de ''Moscou'' .
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cidade de Moscou, como se vivia
''tudo se dispersa logo que busco
O estilo arquitetônico
nela e qual a sua ''fisionomia''.2 Evinomes. Tenho de ir-me embora... No
da cidade
dentemente esses três aspectos se
princípio, não há nada a ver exceto
cruzam e se confundem ao longo do
neve.''4 A cidade brinca de escondecaracteriza-se pelas
texto, mas é possível, no caso partiesconde, propondo, assim, um jogo
numerosas casas de
cular deste trabalho, ver como a leilúdico e inocente: ''logo com a cheum e dois andares.
tura que Benjamin faz de Moscou degada se inicia a fase infantil. Deve-se
termina a leitura que faz da revoluaprender novamente a andar sobre o
Essas lhes dão
ção e outros aspectos da política
espesso regelo dessas ruas. A selva
aparência de uma
bolchevique, da arte, dos problemas
de prédios é tão impenetrável que o
que afetavam o mundo e de si próolhar só distingue aquilo que brilha
cidade de hotelzinhos
prio.
deslumbrantemente.''5 Ler a cidade é
de
verão.
Um dos primeiros aspectos do
também deixar-se reeducar por ela,
cenário moscovita a atrair o olhar de
colocar em suspenso conceitos préBenjamin é a sua arquitetura:
fixados. Neste jogo, a cidade desafia o visitante a enconO estilo arquitetônico da cidade se caracteriza pelas trar o seu ''rio'', o seu espírito. O processo de construnumerosas casas de um e de dois andares. Essas lhe dão ção textual de Benjamin se afasta, pouco a pouco, dos
a aparência de uma cidade de hotelzinhos de verão moldes do ''realismo socialista'', que se afirmava na lite(...). Com freqüência se encontram pinceladas de cores ratura e arte de modo geral na Rússia. Seu olhar se contênues: vermelho principalmente: mas também há azul, funde com o cenário misterioso e feérico dessa cidade
amarelo e (...) verde. As calçadas são surpreendente- milenar; cenário de uma nova experiência social e estétimente estreitas (...). Com muita freqüência se vêm cor- ca. Desse modo, o filósofo declara:
dões diante das lojas estatais: para comprar manteiga e
Antes de ter descoberto a real paisagem de Moscou,
outros artigos é preciso fazer fila. (...) [Há] abundânde ter visto seu verdadeiro rio, antes de ter achado
cia de pães e de outros tipos de bolos: pãezinhos de
seus verdadeiros pátios, cada calçada já se transfortodos os tamanhos, rosquinhas e, nos cafés, tortas sunmou em mim num rio litigioso, cada prédio num situosas. Com banho de açúcar fazem construções ou flonal trigonométrico, cada uma de suas gigantescas
resfantásticas.3
praças num lago. Só que cada passo é dado aqui em
O olhar do passeante parte do geral, o estilo
logradouros. E, então, no lugar que recebe um desses
arquitetônico, o traçado das ruas, até se fixar nos detanomes, num piscar de olhos, a fantasia constrói em
lhes; detalhes que são revelações de segredos, a ''cidatorno desse som um bairro inteiro que, ainda por muito
de de hotelzinhos de verão'', coloridos. As imagens motempo, vai teimar contra a realidade posterior e nela
bilizadas não se reduzem a meras descrições; estão, na
se fincar quebradiço como muro de vidro. Nesses priverdade, carregadas de sentidos. São objetos alegórimeiros tempos a cidade tem ainda centenas de froncos que tramam com o seu leitor uma idéia de cidade
teiras. No entanto, um belo dia, o portal, a igreja
denunciando o seu ''imaginário social'', seu modo de
que eram fronteiras de um lugar, de improviso, são
ser e viver, a sua tradução. Pode-se dizer que a cidade
meio. Agora, a cidade se transforma num labirinto
se deixa falar pelo discurso do seu leitor, tem sua própara o principiante.6
pria voz; é o que Noé Jitrik chama de discurso da cidaBenjamin não lê a cidade na tentativa de expressar o
de e não apenas sobre a cidade. A cidade se configura seu aspecto real, concreto. Fugindo da reprodução simcomo um mosaico que permite ao leitor, ao seu bel- ples e banal, o leitor atua como se pintasse um quadro
prazer, dar significações infinitas, o que, em última aná- no qual constrói uma cidade ficcional, imaginária. O
lise, significa ficcionar. Os edifícios coloridos, o ba- procedimento não é o de reproduzir mimeticamente,
nho de açúcar, a neve, os mendigos, os vendedores mas o de construir imaginariamente, de modo que se
ambulantes, etc., são elementos que configuram o ima- permita o acréscimo e subtração de elementos, de forginário do artista que trama com a cidade uma escrita ma dinâmica, cambiante, ''quebradiça como muro de
possível.
vidro'', e ao mesmo tempo poder a fantasia construir,
Moscou é um cenário enigmático e árido. Benjamin, num piscar de olhos, ''um bairro inteiro''. Como indica
como quem vai ao encontro de um desconhecido, traz Renato Cordeiro Gomes, ''ler a cidade é escrevê-la, não
muitas expectativas. A primeira impressão é reveladora: reproduzí-la, mas construí-la, fazendo circular o jogo
2
3
4
5
6
SCHOLEM, Gershom. ''Prólogo''. Em: Diario de Moscú, cit., p.8.
Diario de Moscú, cit., pp.23-24.
BENJAMIN, Walter, ''Moscou''. Em: Obras escolhidas II, cit., p.156.
Ibid., p. 157.
Ibid., p. 157.
30
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997.
das significações''.7 Nesse exercício
estrutura e o detalhe em última anáMoscou vai,
construtivo, dialógico, a cidade tem
lise estão sempre carregados de hisseus códigos secretos, que para o
tória.11 Dessa forma, o crítico retira
pouco a pouco,
artista são reveladores; são signos
dos detalhes da vida cotidiana citatraduzindo-se e
do inusitado e um desafio. Assim, o
dina o valor dialético que está adorremodelando-se a
viajante percebe que ''a cidade granmecido. Constrói, como acertadade se defende contra ele, se mascamente observou Willi Bolle (que, na
partir do olhar do
ra, foge, faz intrigas, seduz, até conesteira de Benjamin, depreende na
filósofo-artista.
fundir à exaustão seus círculos.'' 8
leitura deste os componentes de uma
Seu traçado, suas ruas e habitantes
narrativa feérica), ''um conto de fada
Ela passa a
o envolvem num jogo lúdico de separa cabeças dialéticas''.12 De modo
confundir-se
com
ele.
dução:
que, em uma manhã de um dia qualAs ruas de Moscou são um caso à
quer, ele descobre ''casinhas jamais
parte: nelas a aldeia russa brinca
vistas, com janelas lampejantes e
de se esconder. Quando se atravessa qualquer um uma cerca em torno da estrada: brinquedos de madeira
dos grandes portões - com freqüência podem ser fe- de Província de Vladimir.13 Ou vê, na dinâmica do cotichados com grades de ferro batido, mas nunca en- diano das ruas, as construções alegóricas dos vendedocontrei nenhum fechado - parece que se está no limi- res ambulantes:
ar de uma provocação espaçosa. Lá se abre ampla e
Gostaria de escrever sobre flores em Moscou, refeatraente, uma quinta ou uma aldeia, o solo é irregurindo-me não somente às heróicas rosas de Natal,
lar, crianças andam de trenó.9
mas também às imensas malva-rosas das pupilas das
Moscou vai, pouco a pouco, traduzindo-se e remodelâmpadas que os vendedores transportam pela cidalando-se a partir do olhar do filósofo-artista. Ela passa a
de, orgulhosamente alçadas. E dos doces adornos de
confundir-se com ele. A cidade é poetizada, ou, como
açúcar das tortas. Ainda que haja também tortas que
queria Borges, ''literaturizada'', fundindo-se com o eu líriparecem cornucópias e das que saem em trompa
co na sua forma poética, nas suas imagens poéticas:
triquitraques ou bombons envoltos em papel coloriPedestres ecoam entre carros e cavalos rebeldes. Longa
do. Tortas em forma de lira. O confiteiro dos velhos
série de trenós nos quais se despacha neve. Cavaleilivros juvenis parece sobreviver ainda em Moscou.
ros solitários. Bandos mudos de corvos estão pousaSomente aqui se encontram figuras feitas exclusivados na neve. Os olhos estão infinitamente mais ocumente de açúcar fiado (...). Também teria que falar
pados que os ouvidos. As cores proclamam o seu exde tudo o que o orvalho sugere aqui; dos lenços das
tremo contra o fundo branco. O mais ínfimo trapo
componesas, cujos bordados, costurados com lã azul,
colorido cintila ao ar livre. Livros de figuras jazem
reproduzem as rosetas de gelo das janelas. O invensobre a neve; chineses vendem artísticos leques de
tário das ruas é inesgotável.14
papel e, ainda mais freqüentemente pipas na forma
Benjamin não é mais o teórico da alegoria, mas o
de exóticos peixes de águas profundas. Todos os dias próprio alegorista, mobilizando os objetos e atribuindose organizam festas infantis. Há vendedores com ces- lhes novos sentidos.
tos cheios de brinquedos e pás; os carrinhos são amaAo ver os vendedores ambulantes como vendedores
relos e vermelhos.10
de fantasias e sonhos, Benjamin desvela um novo imagiO ponto culminante do olhar de Benjamin está nos nário social e poético. Esse imaginário está determinado
detalhes. Como ele mesmo escreveu, ''sem ao menos por fatores estranhos, diferentes dos de outras sociedauma compreensão intuitiva da vida do detalhe através da des. Mas o que há de novo nesse cenário? Que lições o
estrutura, a inclinação pelo belo é um devaneio vazio. A artista retira desse plexo cultural? Creio ser possível in-
7
GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Literatura e experiência urbana. Prefácio de Eneida Maria de Souza. Rio de
Janeiro. Rocco. 1994; p. 57.
8
''Moscou'', cit., p.157.
9
Ibid., pp. 181-182.
10
Ibid., p. 158.
11
BENJAMIN, Walter, Origem do drama barroco alemão. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Brasiliense. 1984. p.204.
12
BOLLE, Willi. ''Viagem a Moscou: o mito das revoluções''. Em: Revista da USP, nº 5. São Paulo, mar-abr-mai. 1990. p.129. Esse artigo
foi incluído posteriormente no livro de Bolle. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São
Paulo. EDUSP. 1994, cap. IV. O livro aprofunda, de forma exemplar, a leitura da cidade moderna pelo prisma de Benjamin. Un texto
fundamental para o estudo em torno da modernidade e da cidade moderna, temas constantes no universo crítico de Benjamin.
13
''Moscou'', cit., p.158.
14
Diario de Moscú, cit., p.76.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997.
31
ferir, a partir dessas leituras, que as
Proust, ensaio sobre Goethe, cartas,
Nos espaços onde o
imagens mobilizadas do cenário
leituras, debates, reflexões sobre seu
controle estatal se faz
moscovita remetem a uma convivênfuturo, etc.).
cia social que, apesar de sua desartiO que é revelador, de fato, é ver
presente tudo é
culação, materializa-se a partir de
como o movimento das ruas produz
transitório. Em nome
práticas culturais novas, predominanuma dinâmica profundamente criatido socialismo e do
do as relações de liberdade, de autova para Benjamin. Este se atém a
nomia e solidariedade. Essa organiobservar, por exemplo, um dos perprogresso desenfreado
zação se articula fora de um centro
sonagens freqüentes nesse cenário:
perdem-se os
institucional unificador. Ou seja, o
os mendigos. Para o crítico, eles
novo não surge de uma ordem
constróem uma ''sábia organização'',
potenciais criativos
estabelecida, do consenso hegemôformam uma ''coorporação de moridas pessoas.
nico, que determina o caminho a ser
bundos''. ''Eis um mendigo que dá
seguido. Nasce justamente das práinício a um choro baixo e persistente
ticas alternativas, espontâneas, livres e criativas, deter- toda vez que dele se aproxima alguém de quem espera
minando seu caráter experimental, destrutivo-construti- obter alguma coisa; esse choro se dirige a estrangeiros
vo. Essa é a dialética que se manifesta na leitura de Ben- que não sabem russo. 17 O choro é o seu código
jamin em Moscou, e desponta, para usar uma rica ex- lingüístico, um meio alternativo de comunicação que tem
pressão de Rafael Gutiérrez Girardot, como ''un motor um único objetivo: fazer aflorar a piedade burguesa do
purificador de la política y de la praxis política que como estrangeiro. Mas não são somente os mendigos os filhos
tal pierde su fuerza cuando sigue el camino que indica.15 legítimos das ruas; juntam-se a eles os vagabundos, as
Ainda que Benjamin esteja atento para o debate ideo- prostitutas, os vendedores. Fora da ordem estabelecida,
lógico da época, não é aí que encontra um terreno fértil eles só encontram proteção e abrigo no seio da grande
para a sua crítica. A esse respeito Willi Bolle observa que mãe, a cidade:
''enquanto na capital da URSS de1926/1927 as lideran''Sabem num tempo certo de um canto ao lado da
ças políticas e intelectuais estão comprometidas com a
estrada de certa loja onde lhes é pertinente se aqueluta pelo poder, pelo qual garimpam dia e noite (...), o
cer por dez minutos; sabem onde podem ir buscar, em
intelectual Walter Benjamin, em suas solitárias andanças
determinado dia da semana, numa hora certa, crospelas ruas da cidade, não tem nada melhor a fazer do
tas de pão, e onde existe vaga para dormir em tubulões
que comprar tangerinas, nozes e doces para a mulher
amontoados uns sobre os outros. Com centenas de
que ama, ou escolher, com carinho, brinquedos artesanais
esquemas e variantes transformam a miséria numa
para o filho. Tal comportamento, a um passo do idílico e
grande arte''.18
do subjetivismo total, tem algo de frágil e sublime que o
Se o socialismo não havia ainda chegado às ruas, na
transcende. Enquanto na cúpula do império socialista se sua forma oficial, esta, livre do controle direto daquele,
planeja o futuro da humanidade, o protagonista e autor organiza-se a seu modo e de forma criativa. Em condo Diário de Moscou também toca no futuro, em sua traste, nos espaços onde o controle estatal se faz preforma mais imediata, concreta, palpável''.16 Bolle confir- sente, o processo é distinto. Ali tudo é transitório, de
ma, de certa forma, o que vínhamos desenvolvendo até acordo com as novas funções que lhe são atribuídas.
aqui, mas é importante não tomar a atitude de Benjamin Assim, em nome do socialismo e do progresso desencomo sendo uma espécie de cegueira amorosa que lhe freado, perdem-se os potenciais criativos e a subjetiviimpede ou dificulta interessar-se por outros problemas. dade das pessoas. ''O bolchevismo aboliu a vida privaAo contrário, a relação com Asja Lacis e seus passeios da. A natureza dos serviços públicos, a atividade política
pelas ruas, museus, etc., são elementos que consti-tuem e a imprensa são tão poderosos que não sobra tempo
um procedimentos de leitura profundamente relacionada para interesses que não confluam com elas.19 E compledentro de um contexto mais geral, pois Benjamin está ta no seu Diário, ''ser comunista num Estado sob o doem constante diálogo com artistas, políticos, amigos, mínio do proletariado supõe renunciar completamente à
bem como com suas atividades intelectuais (tradução de independência pes-soal. O indivíduo, por assim dizer,
15
GUTIÉRREZ GIRARDOT, Rafael. ''César Vallejo y Walter Benjamin''. Em: Cuadernos Hispanoamericanos, nº 520. Madri, out. 1993.
Instinto de Cooperación Iberoamericana. p.69.
16
''Viagem a Moscou: o mito das revoluções'', cit., p.129.
17
''Moscou'', cit., p.163.
18
Ibid., p.163.
19
Ibid, p.166.
32
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997.
delega ao Partido a tarefa de organipermitiram ao crítico olhar para si
zar a própria vida.20 Condição esta não
Na Rússia somente os
próprio e sua prática intelectual. De
aceita por Benjamin e que o leva, enmodo que, ao falar de Moscou, está
decididos podem ver.
tre outras coisas, a não ingressar no
falando de si e de sua cidade, como
Ver não qual das
Partido Comunista Alemão. O filósodeclara:
fo questiona a viabilidade de levar adiPor meio de Moscou se aprende
realidades é a melhor
ante seu trabalho científico, que tem
a ver Berlim mais rapidamente que
mas qual se torna
como base os estudos formais e
a própria Moscou. Para quem remetafísicos, dentro de um sistema
intrinsicamente
gresse da Rússia, a cidade está como
cujo materialismo científico é a base
que recém-lavada. Não há sujeira,
convergente com a
de todo conhecimento.
mas tampouco há neve. As ruas afiverdade?
Para Rafael Gutiérrez Girarbot,
guram-se-lhe na realidade tão
Benjamin é um filósofo-poeta, defiinconsolavelmente limpas e varridas
nido pelo próprio Benjamin como uma
como os desenhos de Grosz. E tamconjugação ''Denkbilder'', isto é, ''pensamento-imagens''
bém a naturalidade de seus tipos lhe é mais evidente.
ou ''pensamento em imagens'' e ''imagens em pensamenO que acontece com a imagem da cidade e das pesto''; que em definitivo são construções alegóricas. O fisoas não é diferente do que com as condições espirilósofo buscou articular essa noção com o marxismotuais: a nova ótica que desta se ganha é o produto
leninismo, mas a união entre alusão e dogmatismo não
mais incontestável de uma estada na Rússia - o que
surtiu efeito positivo.
se aprende é a observar e a julgar a Europa com o
Não estranha, então, as críticas que faz aos intelecsaber consciente do que sucede na Rússia.22
tuais e artistas dentro da própria Rússia. Estes não se
Para Benjamin, na Rússia somente os decididos poopõem a nada, estão do lado do poder, quando não são o dem ver. Ver não qual das realidades (a da Rússia ou
próprio poder. ''O intelectual é - observa Benjamin - an- outra) é a melhor, mas ''qual das realidades se torna
tes de mais nada, funcionário, trabalha no departamento intrinsecamente convergente com a verdade? Qual das
de Censura, de Justiça, de Finanças, onde não cai em verdades se prepara para convergir intrinsecamente com
decadência, sócio do trabalho - mas, na Rússia, isso sig- o real? Só é objetivo quem nesse ponto dá uma resposnifica sócio do poder. É membro da classe dominante. ta clara. Não perante seus contemporâneos (isso não é
(...) Também no campo da produção intelectual ele se o mais importante). Mas perante os acontecimentos
confessa afim com o pensamento da ditadura''.21 É pre- atuais (isso é decisivo). Só quem, na decisão, fez com
ciso observar que a leitura crítica de Benjamin desvenda o mundo a sua paz dialética pode apreender o concrenão só as contradições que se gestavam no interior da to'' .23 Benjamin não só vê, como depreende os fatos
cúpula revolucionária do Partido, mas, também, o cará- concretos que demarcaram a crise do seu tempo e a
ter passageiro da própria revolução, retendo suas ener- sua condição de intelectual. Em Moscou, o filósofo alegias não no espaço privado, centralizador e hierarquizado, mão, com seu aguçado espírito crítico, faz um diagmas no espaço público, aberto e descentrado. A leitura nóstico bastante crítico da revolução socialista. Se por
crítica que Benjamin faz da revolução, em 1927, a partir um lado comulga com o marxismo a necessidade de se
de Moscou, confirma a idéia de que o filósofo pensa a construir uma nova sociedade socialista, por outro, descidade como pluralidade e a revolução como espetáculo; carta a interpretação marxista do processo histórico que
a cidade como o cenário onde se ensaia um possível funde racionalismo linear e progressista com um promodo de ser e viver diferente, independente do fracasso cedimento centralizador e autoritário.
ou do êxito em si do processo revolucionário.
Nessa leitura dialética, o papel de Moscou como imaA experiência de Benjamin em Moscou propiciou, gem alegórica é inquestionável e decisório enquanto expetalvez como o fator mais fecundo, conhecer, mais do riência e amadurecimento de um filósofo inquieto e refique a própria Moscou e o socialismo, a si mesmo. As nado que alcança ver, na sobreposição de imagens, Berlim
relações que mantém com intelectuais russos, com Asja em Moscou e nelas a si próprio e, em decorrência, a crise
Lacis, com seu amigo Bernhard Reich e com Moscou, já latente dos paradigmas civilizatórios existentes.
20
Diario de Moscú, cit., p.94.
''Moscou'', cit., p.177.
22
Ibid., p.155.
23
Ibid., p.155.
21
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997.
33
A fotografia de Sebastião Salgado é debitária, implícita
ou explicitamente, da pintura renascentista e serve-se em
profusão da ambigüidade, recurso próprio à poesia, no sentido literário do termo. Desta forma, sua fotografia não pode
ser lida como simples registro do real, pois oferece ao leitor
uma multiplicidade de leituras possíveis e grande número
de referências intertextuais a serem decodificadas em situação de análise.
Palavras-chave:
Fotografia, intertexto,
Sebastião Salgado
The pictures taken by Sebastian Salgado owes much,
implicitly as well as explicitly, to the renaissance painting.
He resorts to the profusion of ambiguity in poetry itself.
Thus, his pictures cannot be read simply as the
registering of day to day for it supplies the reader with
a multiplicity of possible understandings and a great
number of intertextual references to be decodified in an
analytical situation.
Key-words:
Photography, intertextuality ,
Sebastião Salgado
34
*
Marcelo Marinho é
licenciado em Letras
Modernas e em
Literatura Geral e
Comparada pela
Sorbonne Nouvelle; é
mestre e doutorando em
Literatura Geral e
Comparada pela mesma
universidade; é
professor de Teoria
Literária e Literatura
Brasileira na
Universidade Católica
Dom Bosco,
Campo Grande.
AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO
A FOTOGRAFIA DE
SEBASTIÃO SALGADO
Marcelo Marinho*
“Inúmeros traços poéticos relacionam-se não apenas com as Ciências da Linguagem, mas com a Teoria
dos Signos em seu conjunto; em outros termos, com a
semiologia (ou semiótica) geral”, afirma Jakobson1 .
Ora, traços poéticos são aqueles que caracterizam a
poesia como arte da linguagem (escrita ou não) exprimindo ou sugerindo idéias ou sentimentos através do
ritmo, da harmonia e da imagem. Assim, a poesia pode
se manifestar (e é essencial) em qualquer obra de arte
(literatura, pintura, escultura, cinema, fotografia, etc.)
e ligar-se-á, de maneira extremamente coesa, à linguagem conotativa e, por conseqüente, à ambigüidade. O conceito “poesia”, é notório, poderá igualmente
designar certas propriedades de seres ou objetos que
despertam no homem um estado poético (estado onírico
ou de devaneio).
Cumpre portanto buscar os traços poéticos na obra
de Sebastião Salgado, hoje considerado como um dos
maiores fotógrafos vivos do planeta. Em sua dimensão poética, esta fotografia não poderá ser submetida
a uma qualquer prova de verdade. Ela não saberia oferecer-se como um simples registro da realidade, como
propõem tantos e mais detratores da arte fotográfica,
imagem unívoca, obediente a normas e hábitos, previsível, transparente, dotada de automatismo, buscando
apenas e tão somente informação objetiva - características, como sabemos, da linguagem comum, não da
linguagem poética -. Por esta razão, consideraremos
como central o aspecto ficcional, imaginário,
desconsiderando para tanto a dimensão documental da
1
2
imagem fotografada. Nesta perspectiva, lançaremos
um olhar sobre a fotografia intitulada “Nômades atravessam o Lago Faguibin, ressecado”, composição assaz despojada e paradoxalmente repleta de elementos
de reflexão sobre a arte fotográfica e o estatuto
ontológico do homem.
Para tanto, buscaremos inicialmente traços significativos na composição fotográfica (desde a escolha do
suporte até o agenciamento das formas, luminosidade,
cores e texturas), traços que instauram aquela “formesens” da qual fala Henri Meschonnic, e por cujo intermédio a obra de arte grava-se na memória, incorporase às experiências vividas pelo homem, ao contrário das
informações jornalísticas, cujas pretensa objetividade,
brevidade, univocidade ou clareza e, sobretudo, ausência de correlação, de solução de continuidade entre as
informações, diminuem as chances de incorporação de
acontecimentos exteriores à experiência pessoal do ser
humano, pois o bombardeio de fatos não atinge a
interioridade privada de quem os decodifica. Nesta perspectiva, chamaremos leitor-decodificador, ou apenas
e tão somente leitor, ao destinatário da fotografia. Com
vistas à decodificação da mensagem (no sentido
lingüístico do termo), veremos com Jakobson que, “para
ser operante, a mensagem requer inicialmente um contexto ao qual ela remete, (...) contexto passível de captação pelo destinatário, contexto que será ou verbal, ou
suscetível de ser verbalizado.”2 Cumpre portanto, na
seqüência, verbalizar o contexto de produção e leitura
da fotografia analisada.
Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale, p. 210.
Ibid., p. 213.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
35
Contudo, para retomar noções propostas por
Jakobson, diremos que, considerado nosso objetivo de
contribuir ao debate científico, nos situamos na vertente oposta àquela dos debates políticos, e, desta feita, não buscamos nem podemos buscar o consenso,
assim como não podemos fazer recurso ao voto e ao
veto, pois “o desacordo desvela antinomias e tensões
no interior do campo estudado; ele é pretexto para novas explorações”3 , como escreve o lingüista. Visaremos, portanto, ter lançado, ao término de nossa análise, bases para novas explorações, chaves para novas
e múltiplas leituras.
Como sói ser em obras de superior valor estético,
inúmeras são as referências (conscientes ou inconcientes) intertextuais trazidas a efeito nesta composição
fotográfica. Assim, podemos inicialmente ver que, tal
qual em composições pictóricas do período
renascentista, os nômades retratados por Salgado trazem sobre si tecidos drapeados e esvoaçantes, soltos
ao vento, tecidos apenas atados sobre o corpo e sem
costuras, cujas dobras são sublinhadas por uma certa
luminosidade diáfana, etérea. A título de ilustração,
estas são características que poderemos observar nas
reproduções em anexo, a saber, Nascimento de Vênus,
de Botticelli (1444-1510), A Sagrada Família, de
Michelângelo (1475-1564) e Madonna, de Rafael
(1483-1520).
Poucas não serão as semelhanças entre a Nômade de Salgado e certas Madonnas dos períodos medieval - aquelas de Cimabue (1240-1302) ou Giotto
(1267-1337), por exemplo - e renascentista Michelangelo, Peruggino, Rafael, entre outros -. Assim, tal qual a Madonna de Rafael (ver reprodução),
a Nômade traz consigo duas crianças (figura 2, personagens 2 e 3), em quem as dobras adiposas revertem-se em sulcos inter-ósseos, retratos inversos de
rotundos, bem nutridos e quase arianos Cristo e São
João em companhia da Virgem, africanos Cristo e
São João esqueléticos e famintos, símbolos de um provável Cristo pouco louro e com olhos nada azuis ignorado pelos homens em sua manjedoura, local onde
alimentam-se animais. Através do recurso à regra
renascentista dos três terços (Le Nombre d’Or), Salgado acentua dois pontos simétricos em cuja direção
será carreado o olhar: ombros descarnados e nus da
mulher famélica, nádegas nuas e descarnadas da desnutrida criança, fato que realça o contraste entre as
imagens aqui comparadas, que dá relevo a personagens angulosos e distantes das rotundidades daqueles levados à tela pelos pintores renascentistas - notese coincidentemente aqui a moldura circular da A Sagrada Família, de Michelângelo -. Por outro lado,
3
4
Ibid., p. 210.
Georges Péninou, “Física e metafísica da imagem publicitária”, in
Christian Metz, A Análise das imagens, Petrópolis, Vozes, 1973)
36
vemos que a famélica criança (figura 2, personagem
2) traz fechada sua mão, e nas representações sacras as mão encontram-se, na maior parte do casos,
ostensivamente abertas, como para receber a graça
ou misericórdia Divinas. Aqui, nada se espera. Nesta perspectiva, observaremos que as mãos dos outros personagens encontram-se escondidas, ou pendem inertes rumo ao solo. Este mesmo pequeno personagem (nº 2) esconde seu rosto e faz pensar no
Inferno da Capela Sistina, pintado por Michelângelo;
igualmente, o pequeno leva seus olhos fechados em
sugestão de desamparo, de recusa à situação vivida,
ao momento atravessado.
Ao fundo, na pintura de Michelângelo, A Sagrada
Família, vemos anjos guardiões desnudos cujas figuras, em Salgado, serão substituídas pelos garota e garotos semi-desnudos (figura 2, personagens 4, 5 e 6),
Nômades atravessam o lago Faguibin, ressecado. Mali, 1985.
Foto de Sebastião Salgado.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
anjos esgotados e vencidos pelos
(1710-1736) ou Anton DvoÍák
Como as composições
reveses, seres que, entretanto, per(1841-1904), entre outros - diante
renascentistas,
manecem anjos, posto que, tal qual
das agruras sofridas por seu rebenvige no simbolismo do imaginário
to, mas também diante daquelas soos nômades de
cristão, conduzem e protegem a cafridas por si mesma.
Salgado trazem
minhada deste grupo de nômades.
As espaldas voltadas ao públitecidos soltos ao vento
Ademais, na vertente oposta às conco podem fazer emergir as noções
vencionais Madonnas medievais ou
propostas por G. Péninou em recom luminosidade
renascentistas apresentadas frontallação à fotografia, notadamente pudiáfana.
mente ao espectador-leitor, a
blicitária. Péninou afirma que “se
Madonna de Salgado é mãe que,
os olhos baixam, fixam um detalhe
como seus anjos protetores, volta as
do objeto [anunciado em publicidaespaldas ao público, busca retirar-se, escapar ao olhar de] ou fogem, oblíquos, para longe, a mensagem
humano. É mãe que está a meio termo de tornar-se conativa se apaga”4 Ora, nesta fotografia de SebasPietà, figura que traz à cena o tema cristão da mãe tião Salgado não há olhar em direção ao espectador,
desamparada (stabat mater lacrimosa, dolorosa) logo aplaina-se a função conativa, cuja etimologia (latema carreado à expressão musical por Pergolese tim conatio, tentativa, esforço) indica impulsão no sen-
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
37
tido de determinar um ato,
um esforço, tendência
consciente para atuar.
Ainda uma vez, lembremos das mãos fechadas
ou braços pendentes das
crianças retratadas, símbolos de uma total desesperança na providência
humana ou divina. Nesta
perspectiva, pensemos
naqueles intrigantes personagens das pinturas de
Nicolas Poussin (15941665) que, a partir de um
ponto qualquer do quadro,
contemplam por vezes, diretamente e em posição
frontal, o lugar onde deverá situar-se o espectador, como a chamá-lo a
participar da situação representada, a completar o quadro, obra aberta, situação diametralmente oposta àquela
dos nômades no Lago Faguibin.
Esta fotografia de Salgado pode igualmente ser vista
como reconstrução às avessas do célebre Nascimento de Vênus, de Botticelli (1444-1510), retrato inverso
onde esvai-se o elemento líquido, como indica a legenda, onde encontra-se ausente a água, símbolo de locus
amoenus, de alegria do retorno ao aprazível líquido
uterino. Em Salgado, não haverá ninfa primavera, com
sua veste ormamentada de flores e seu manto protetor
em tons pastel; tampouco haverá vegetação à espera
desta desidratada Vênus africana. Ademais, esta
Vênus caminha da direita para a esquerda, sentido
contrário àquele indicado pelo movimento esboçado
pela Vênus de Botticelli, cuja perna direita avança sobre a esquerda como se fosse iniciar um movimento
na direção da margem direita da composição. Observe-se ainda que, coincidentemente, a nascente Vênus
e sua antípoda Nômade trajando o escurecido manto
da Morte - símbolo do embate entre Eros e Tanatos,
pulsões de vida e morte - ocupam a mesma posição na
mise en page destas composições respectivamente
pictórica e fotográfica, cujas estruturas em pirâmide
têm como vértice o ápice das cabeças das figuras centrais das situações representadas (figuras 1 e 3). Este
embate entre Eros (Vênus) e Tanatos simboliza as
pulsões bipolares que regem a caminhada do ser humano, e da comparação entre a Vênus de Botticelli e
a Nômade de Salgado poderemos abstrair pares
antinômicos tais como alto x baixo; miséria x riqueza;
vida x morte; cerimônia de vida (festa) x cerimônia de
morte (féretro e sepultamento); júbilo x dor; dinamismo x estatismo.
Não obstante, notemos que a composição piramidal é moeda corrente entre artistas plásticos como Fra
38
Figura 1
Angelico (1400-1455), Leonardo Da Vinci (1452-1519),
Rafael (1483-1520), entre tantos outros, e nela podemos observar a presença, em termos implícitos, da
Santíssima Trindade. Na composição do fotógrafo brasileiro, os limites do manto, a inclinação e o alto da
cabeça da mulher adulta, o olhar da garota e o alinhamento das cabeças do garoto e da garota (figura 2,
personagens 1, 4 e 5) completam a pirâmide. Este é
também um triângulo que aponta para o céu e que traz
em si a oposição entre alto e baixo, com suas
conotações valorativas antropomórficas (os pés, plano
inferior, em oposição à inteligência, plano superior).
Igualmente, poderemos observar uma segunda pirâmide, reduzida, contudo, à sua metade, e ligeiramente
inclinada, tal como poderíamos perceber uma eventual
pirâmide que se deslocasse com velocidade relativamente alta (figura 1), imagem também presente em
Botticelli.
Ambas as Vênus - a da vida e a da morte - oferecem a mesma elegância em seu delgado movimento
ondulante. Entretanto, as ondulantes madeixas ruivas
de Vênus de Boticelli transformam-se, nas mãos de
Salgado, em bem sólidas e fixas tranças negras, tranças às quais o sopro do Zéfiro do quadro inicial não
conseguirá dar movimento. Igualmente, o Zéfiro de
Botticelli sopra no sentido sugerido pelo movimento de
Vênus, movimento que é favorecido pelo vigor das
forças eólicas; por sua vez, a descarnada Vênus de
Salgado deve ainda, ademais de seus reveses, enfrentar vento contrário a seu movimento, como observamos no balançar de suas vestes.
As indicações étnica (vestuário, pigmentação da
pele, cor dos cabelos) e geográfica efetuadas por Salgado realçam a contradição entre o padrão de vida de
certas camadas da população do planeta - simbolizadas pelo Museu do Ofício, em Florença, onde enconPapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
tra-se a Vênus em meio a formidável acervo
renascentista - e o padrão de outras totalmente
desmunidas e desamparadas, como este grupo da África do oeste. Os primeiros, aqueles que abandonam (espectadores impassíveis), estão assim sugeridos nestas
imagens que podemos ler como referências à cultura
ocidental (aqui entendida como cultura dos países industrializados). As altas formas de abstração atingidas por estas sociedades do Norte (e colocadas em
exercício nesta composição fotográfica) somente através das lentes de um poeta da imagem como Sebastião Salgado poderão dar expressão (e contradição) à
realidade cotidiana de sociedades inteiras que vivem,
ao Sul, à margem das conquistas materiais e intelectu-
Figura 2
ais logradas em um planeta que, afinal, a todos pertence. A função conativa eliminada pela ausência do
olhar em direção ao espectador é assim recuperada
através de um jogo especular que traz à tona a imagem do espectador diante de si mesmo, diante de suas
referências culturais transmutadas em pálido quadro
do oeste africano.
Por outro lado, podemos ver, pelo descentramento
temático encontrado na fotografia de Sebastião Salgado, a modernidade anunciada na literatura por
Guillaume Apollinaire (1880-1918) e Manuel Bandeira (1886-1968), levada a efeito na fotografia de Robert
Doisneau (nascido em 1912) e Henri Cartier-Bresson
(nascido em 1908), temática que pode ser lida como
transposição intertextual
daquele Enterrement à
Ornans, de Gustave
Courbet (1819-1877), que
tanto chocou o público
francês pelo tema realista e pela inusitada extração social dos personagens. Na mesma perspectiva, a fotografia de cunho
social exclusivamente em
preto e branco de Salgado pode ser lida como sugestão de um certo
passadismo, de uma certa recusa a um presente
indigno de seres humanos,
retrato sobre papel fotográfico daquela “littérature engagée” preconizada por Sartre5. Teríamos portanto uma reversão, em termos de compromisso social, do tema
cristão da caminhada
(Maria e José, o bom
Samaritano), da peregrinação, procissão sem imagens, sem ídolos, sem venerações, tema que pode
fazer pensar também naqueles retirantes do nordeste brasileiro e, por esta
vertente, relacionar-se,
sob
uma
óptica
intertextual, com a poesia
de João Cabral de Mello
5
Figura 3
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
Régis Debray declara: “devemos a Salgado a reconciliação
do estético com a militância”
(Veja, 12/03/97, p. 80).
39
Neto e inúmeras outras manifestaanalisar o quadro Paysage avec un
ções da cultura brasileira.
homme tué par un serpent, de
Incontáveis são, portanto, os eleNicolas Poussin, L. Marin observa,
Incontáveis
mentos conduzindo a uma leitura
a partir de leituras em aparência consão os elementos
múltipla e ambígua desta fotogratraditórias propostas por Fénelon,
conduzindo a
fia. Entre as questões diretamente
Félibien e pelo autor de um catáloacessíveis e ostensivamente mais
go, que a superposição destas leituuma leitura múltipla
abertas, poderíamos sublinhar: a
ras distintas - unicamente possíveis
e ambígua da
mulher leva as crianças (personaem função da ambigüidade, da
gens 2 e 3) pelas mãos ou estas a
dualidade existente na representafotografia.
seguem por si próprias, abandonação de Poussin - “libera um comedas à própria sorte? A garota (perço de sentido” 7 , e, ademais,
sonagem 4) ri ou franze o rosto? Se
“dualidade que é o sentido e não
franze o rosto, seria por efeito da
variação sobre um tema oculto”; em
ação do vento ou pela predominância da luz outros termos, a dualidade seria a chave de acesso ao
esbranquiçada? Qual a posição da fonte de luz? A mu- “conjunto aberto das leituras possíveis”, para retomar
lher encontra-se grávida ou seu manto está abaulado palavras do crítico8 que fazem eco à noção proposta
pela ação do vento? A criança (personagem 2) chora por W.H. Auden.
ou protege-se do vento e da areia? Qual é o objeto
Em que pese a ambigüidade presente em inúmeros
carregado pela mulher? Este objeto encontra-se à mão elementos da foto, é patente o estado de sofrimento e
ou a tiracolo? A garota (personagem 4) traz um galho privação em que encontram-se os personagens, que caà mão, o galho encontra-se cravado no solo ou trata- minham olhando para o chão, cabisbaixos, pensativos.
se de um pedaço de tecido de sua roupa? Qual é a O olhar alcança apenas e tão somente o espaço definiidade aproximada das crianças? Os laços que os unem do pelo próximo passo, feito que sublinha uma certa ausão de parentesco ou de amizade? O percurso é de ida sência de perpectivas. Assim, caminham como autôou de retorno?
matos, abúlicos, indiferentes à própria sorte, sem destiNesta perspectiva, podemos ver que a luz provém no seguro, pois nada há no horizonte da paisagem retranão se sabe bem de onde, pois o sombreamento do tada. Nesta perspectiva, torna-se impensável saber, a
vestuário da mulher parece indicar uma fonte lumino- partir dos elementos apresentados, se os personagens
sa do outro lado do véu, em contraluz, no lado oposto estão indo ou voltando, e estes não trazem consigo quaisao espectador (e ao fotógrafo - é notória a predileção quer objetos que indiquem objetivo (por exemplo, uma
de Sebastião Salgado por construções em contraluz6 ). ânfora vazia, objetos para venda, objetos adquiridos ou
Igualmente, podemos lembrar que, quando temos à recebidos, bagagens, um livro, alimentos). Ademais, cafrente uma espessa barreira de neblina, ou neve, ou minham da direita para a esquerda, movimento que exareia muito clara, o reflexo da luz pode ser tão forte perimentamos como retrocesso, pois dá-se em sentido
quanto a intensidade da fonte luminosa que porventura contrário ao da leitura na cultura ocidental. Basta coloencontra-se em nossa retaguarda.
car-se a fotografia em contraluz e observá-la invertida,
Assim, esta fotografia parece reger-se pelo princí- com seu dorso voltado aos olhos, para perceber-se que
pio da incerteza: idade, sexo das crianças, gravidez, o movimento fará aquisição de valores positivos, será
mãos do garoto, mãos da mulher, grupo ou família, sor- percebido como avanço, não retrocesso.
riso ou careta da menina, galho ou farrapo de tecido,
A roupagem parece ser um fardo difícil a transpordestino da caminhada, objetivos, objeto levado a tira- tar, um fardo de grande volume, pesando sobre os
colo pela mulher, tantos serão por conseqüente os ele- ombros apesar de apresentarem-se esvoaçantes sob a
mentos dúbios na composição. Esta dualidade pode que- brisa soprada por Zéfiro. As tranças figuram-se pararer-se imagem especular da modernidade, da era do lelas às margens verticais que, por sua vez, enconhomem binário (1,0,1,0,sim,não), do princípio da incer- tram-se solidamente soldadas às margens horizontais
teza da física quântica e da fratura dos pilares da pouco maleável moldura. As tranças tombam retas
epistêmicos levada ao paroxismo. Seja como for, po- e rígidas em direção ao solo, como peso fixando-se à
demos dizer, com Louis Marin, que a ambigüidade só terra de origem, como recusa à terra de destino, como
tende a agregar valor à obra de arte. Com efeito, ao recusa ao movimento, recusa à própria vida. A cena é
6
Salgado afirma: “É claro que eu tenho de trabalhar contra a luz. A minha cidade, Aimorés, tinha um sol incrível. A gente vivia na sombra.
Eu sempre olhei meu pai chegando em casa na contraluz. Eu na sombra, ele vindo do sol. Numa fração de segundo, eu restituo tudo isso”
(Veja, 12/03/97, p. 81).
7
Louis Marin, “A descrição da imagem: a propósito de uma paisagem de Poussin”, in Christian Metz, A Análise das imagens, p. 85.
8
Ibid., p. 105.
40
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
paisagem lunar que nada inclui e muito contribui para
a expressão de uma vida em vacuidade, indigna de
seres humanos. O agenciamento dos elementos de composição fotográfica sugere que o prolongamento do
olhar em direção à esquerda ou à direita, acima ou
abaixo do enquadramento, somente revelaria o vazio,
o nada, uma luminosidade opaca que nada pode iluminar nem conter. Mais ninguém encontra-se no
enquadramento, e a ausência de água e de vida vegetal é total, elementos que contribuem para criar a impressão de desamparo que experimentamos ao obser-
A Sagrada
Família, de
Michelângelo
var esta fotografia. No entanto, a idéia que permanece é a de ida em direção a algo, pois o espaço é mais
vazio à frente dos caminhantes do que à sua retaguarda. Em situação inversa (espaço mais vazio à retaguarda), a ação de abandonar um local estaria sugerida
com mais propriedade que a ação de buscar um local
(ou algo).
O grupo parece caminhar por entre a luz (tudo é
esbranquiçado, como um véu translúcido), em um espaço indefinido entre o céu e a terra, e nota-se a ausência de sombras bem definidas, como se a fonte de
Madonna,
de Rafael
Nascimento
de Vênus,
de Botticelli
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
41
luz fosse tão somente um halo. A
que abrem a marcha, conduzem o
indefinição da sombra projetada no
grupo, incentivam à caminhada:
A total ausência de
solo arenoso também sugere seres
convite à persistência, à esperanpersonagens
impalpáveis, imater iais, fança, formulado por estes guias puetasmagóricos, seres do além. A imris e desprovidos da descrença que
masculinos adultos
pressão de desamparo é reforçaé o lote próprio de adultos em mono enquadramento da
da pela fragilidade dos famélicos
mentos de reveses. Neste sentido,
corpos, sem condições físicas para
seria igualmente plausível ver que,
imagem sugere força e
caminhar, como o garoto que tem
se por um lado a eventual gravisolidão de mãe
sua perna arqueada pelo esforço
dez da mulher (nº 1) poderia sugeprotegendo filhos.
físico levado ao paroxismo.
rir o advento de mais um ser fadaMalgrado a brisa, o véu da mulher
do ao sofrimento, por outro lado
arrasta-se pelo chão, assim como
poderia simbolizar a renovação, o
seus pés.
eterno renascimento próprio ao ciOs pequenos logram, com seus curtos passos, clo vital.
acompanhar a caminhada, que deverá portanto faOs dois grupos que podemos observar na comzer-se lenta; todos os caminhantes têm seus pés fi- posição fotográfica formarão um conjunto indivisível,
xados pela fotografia no instante em que encontra- cujo laço será o olhar que a garota (nº 4) lança para
vam-se colados ao chão, como se estivessem para- trás como se esperasse ou verificasse o ponto em
dos (lembremos que, em fotos de cunho esportivo - que os personagens (nº 1, 2 e 3) encontram-se em
ocasião em que celebra-se a força, a velocidade, a sua marcha, o que cria um elo de ligação entre os
vitalidade -, os pés flutuarão no ar, suspensos num dois grupos e demonstra a carga de materialidade
presente atemporal que é também o tempo do mito), que podemos encontrar no olhar. Ademais, os ciimagem do esgotamento, do cansaço, lassidão; o pe- clos da vida estarão igualmente implícitos neste insqueno (nº 2) somente levanta um dos pés após apoiar tante de passagem, iniciático, instante de amadureo outro completamente no solo; o passo do garoto da cimento representado por este olhar protetor, de vefrente (nº 5), não obstante sua estatura relativamente rificação, de preocupação que a garota (nº 4), ser
superior, é tão ou mais curto que aquele das crianças desprotegido em relação à mulher adulta (nº 1), lanque seguem atrás (nº 2 e 3).
ça à retaguarda. A criança toma portanto a si a funOs personagens parecem caminhar em círculo, ção de proteção que a mulher adulta parece não
pois a direção sugerida pelos três personagens da poder assumir no momento, tal como poderíamos ver
retaguarda é diferente daquela sugerida pelos que em um certo abandono à própria sorte sugerido pelo
estão à frente da marcha (figura 2). Contudo, trata- avanço em relação aos pequenos (nº 2 e 3) que obse de ilusão de óptica que pode se desfazer na aná- servamos em seu deslocamento. Notemos ainda que
lise da composição do grupo anterior. Em outra pers- a garota parece puerilmente arrastar um galho pela
pectiva, vemos que o garoto da frente (personagem areia, lúdico alheamento ao sofrimento através de
5) anda em direção à linha do horizonte, mas, como jogos infantis, e sutil sugestão de permanência no
não há distinção entre céu e terra, e como ele está estatuto de entidade humana malgrado a perda dos
ligeiramente desfocado como por efeito do véu benefícios que o homem pode encontrar em sua
translúcido de luminosidade - mas em realidade por existência sobre a Terra.
um sábio efeito de exploração da profundidade de
Por outro lado, a total ausência de personagens
campo -, temos a sensação de que o garoto vai atra- masculinos adultos no enquadramento sugere força e
vessar (ou já começou a atravessar) a folha, o pa- solidão de mãe protegendo filhos. Esta ausência torpel fotográfico, e escapar ao nosso olhar (logo, às na incompleta a figuração da cena, pois nossos hábinossas vidas). Igualmente, na medida em está sain- tos pictóricos e nosso imaginário solicitam compledo do campo focal, está escapando ao alcance das mento no sentido de aproximar o quadro (fotográfilentes do fotógrafo, ao seu/nosso olhar, temos a im- co) de, por exemplo, A Sagrada Família. Assim Sepressão de estarmos perdendo para sempre a sua bastião Salgado parece jogar com a função protetora
improvável companhia.
do animal macho e a função nutricional do animal
Malgrado os reveses, e apesar de cabisbaixas e fêmea, tal como estas apresentam-se ao imaginário
meditabundas, as pessoas do grupo caminham ligei- ocidental. Apesar dessa ausência, o grupo prossegue
ramente inclinadas para frente, altivas, fazendo pro- demonstrando força, demonstrando dignidade, e as
va de persistência em seu destino, de resistência a trabalhosas tranças das mulheres, se por um lado inuma ventania imaginária que sopra em sentido con- dicam vaidade, por outro mostram que, apesar dos
trário - não estaria o garoto (nº 2) protegendo seus infortúnios, estão ali fotografados seres que mantêmolhos contra a ventania? - a seu movimento em dire- se em sua qualidade de humanos pois não desvelam
ção ao nada. E neste movimento, serão crianças os sobre sua própria aparência.
42
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997.
“Seus humildes são gigantes”, esatemporalidade, de imprecisão temA universalidade
creve Dorrit Harazim9 . Com efeito,
poral, tendendo à generalização e
buscada por Salgado
as pessoas fotografadas por Salgado
não à individualização, à universaliocupam grande espaço na folha, em
dade e não à particularidade. Ora,
é sugerida pela
relação a outros elementos da comcomo afirma Arrigucci Jr., “a emoausência de rostos.
posição. Na fotografia em tela, nada
ção poética se distingue da emoção
Entretanto,
há além de pessoas, e o ângulo escobanal por nos dar uma sensação de
lhido por Salgado situa o olhar do leiuniverso”11 , e, acrescentamos, por
o monopólio da
tor em um plano inferior àquele onde
tornar-se revelação do instante
presença humana é
situa-se o olhar (presumível) dos perepifânico. Entre tantas maneiras, a
sonagens fotografados, pois a máquipoesia pode revelar-se também na
patente.
na fotográfica estaria ao nível da cincapacidade humana de manter a
tura da mulher adulta; deste feito, o
dignidade mesmo em situações exleitor experimenta a impressão de
tremamente adversas, pois traz à
observar um personagem agigantado, desproporcional, tona um certo espaço onírico, tempo de sonhos e deefeito criado pelas lentes do fotógrafo.
vaneios.
A universalidade buscada por Salgado é sugerida,
Parafraseando Guimarães Rosa, diremos que a fono caso desta fotografia, pela ausência de rostos. En- tografia de Sebastião Salgado “pode valer pelo muito
tretanto, o monopólio da presença humana é patente, que nela não deveu caber”. De fato, a questão da
pois o fundo da composição encontra-se desguarnecido. valoração da obra artística residiria no número de suas
Veremos aqui, portanto, mensagens do ser, que fun- interpretações potenciais, como afirmam W.H. Auden
dam sua autoridade na sobriedade, no laconismo, no e Rolland Barthes, entre tantos outros. Para tanto, por
silêncio ou na solidão: busca da essência, não de aci- vezes será necessário reverter a perspectiva de análidentes. A situação é caracterizada por seu estatuto se e definir o processo de leitura, com G. Rosa, a parontológico, o ser em primeiro plano. Não há pretexto tir de uma definição proposta por Augusto dos Anjos
para narração de um qualquer evento particular. A iden- para “rede”: “uma porção de buracos, amarrados com
tidade formal entre personagens provém do vestuário, barbante...”
pigmentação da pele, estado físico, traços
Poderemos então dizer que, a partir de material, em
fisionômicos10 , e a unidade ou solução de continuida- princípio, não poético; de destino singular de pobres coide entre os elementos da fotografia provém de ele- tados nômades; de retrato da contraditória realidade inmentos como idênticas roupas (ou sua ausência), arei- ternacional, Sebastião Salgado visa a operar a síntese
as, repetição do mesmo personagem em tamanhos dis- da experiência humana. Se esta é uma entre as múltitintos, símbolos de uma enumeração ad infinitum, di- plas leituras possíveis de sua obra fotográfica, cremos
ferentes e idênticas etapas da vida diante de mal fada- lançar aqui bases para um “início de sentido”, conforme
das condições de sobrevivência. Nesta mesma pers- a expressão de Barthes, sentido a ser reconstruído a
pectiva, Sebastião Salgado coloca em cena uma situa- partir das noções propostas por Schopenhauer: “daí, pois,
ção desprovida de qualquer indício temporal, marcada como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, funpela ausência de datação, suspensa no tempo, um tem- dada na certeza que na segunda, muita coisa ou tudo, se
po que será indeterminado e vago, carregado de entenderá sob luz inteiramente outra.”12
Bibliografia
ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996.
DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris, Seuil, 1972.
HARRAZIM, Dorrit. “O Fotógrafo da luz”, in Veja, nº 1486, 12/03/97, p. 70-87.
JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris, Les Éditions de Minuit, 1963.
PAGEAUX, Daniel-Henri. La Littérature Générale et Comparée. Paris, Armand Colin, 1994.
METZ, Christian et alii. A Análise das imagens. Petrópolis, Vozes, 1973.
PRAZ, Mario. Literatura e Artes Visuais. São Paulo, EDUSP/Cultrix, 1982.
ROSSI, Filippo. The Uffizzi and Pitti. Londres, Thames and Hudson, 1966.
SALGADO, Sebastião. Trabalhadores. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996.
______. Sebastião Salgado. Paris, Centro Nacional da Fotografia, 1993.
______. “Nômades atravessam o Lago Faguibin ressecado. Mali, 1985”, in Veja, nº 1486, 12/03/97, p. 78.
9
Veja, 12/03/97, p. 80.
Quando Salgado afirma, por exemplo, “um rosto dessas caravanas pode revelar toda uma história, a culturade um povo” (Veja, 12/03/
97, p. 73), é possível dizer que “um”, na maior parte das vezes, representa toda uma série de repetições, e os traços fisionômicos
individuais, particulares, não terão grande importância. Assim, a ausência de rostos ou sua repetição tem a mesma função na construção
do sentido, pois trata-se de rostos sem identidade com intuito de despersonalização, generalização.
11
Davi Arrigucci Jr., Humildade, paixão e morte, p. 137.
12
Citado por Guimarães Rosa, em epígrafe a Tutaméia.
10
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43
Este trabalho pretende mostrar que, segundo Umberto
Eco, existem critérios para delimitar a interpretação de um
texto.
Palavras-chave:
Interpretação,
superinterpretação, história.
This paper aims at showing that, according to
Umberto Eco, there are criteria to delimit an
interpretation of a text.
Key-words:
Interpretation,
super interpretation, history
44
*
Maria Emília Borges
Daniel é professora de
Língua Portuguesa do
Departamento de Letras
da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
Mestre em Lingüística
Aplicada na UNICAMP.
Doutoranda em
Lingüística e
Semiótica na USP.
UMA LEITURA
DE UMBERTO ECO
Maria Emília Borges Daniel*
ECO, Umberto. Interpretação e
Superinterpretação. São Paulo, 1993,
Martins Fontes, 1993, 183 p.
A obra em referência deriva das Conferências e
do Seminário Tanner de Clare Hall, Universidade de
Cambridge, 1990. O objetivo de tais Conferências, realizadas anualmente, é "favorecer e refletir sobre o
saber acadêmico e científico relativo a avaliações e
valores humanos".1
Ao aceitar o convite para ser o conferencista
Tanner de 1990, Umberto Eco propôs o tema "Interpretação e Superinterpretação", aliás, bem apropriado para o objetivo das Conferências. Escolher a noção de interpretação como objeto de atenção e estudo favorece a reflexão justamente sobre o "saber
acadêmico e científico relativo a avaliações e valores humanos", considerando que, embora a noção de
interpretação "seja mais relevante para as ciências
da linguagem, ela está presente no exercício das ciências humanas, em particular, e de qualquer ciência,
em geral". 2
O livro em epígrafe inclui uma introdução às Conferências e aos Seminários, feita por Stephan Collini,
professor de Inglês e membro de Clare Hall,
Cambridge, sob o título de Introdução: interpretação terminável e interminável.
Inclui também os textos revistos das Conferências
Tanner/1990 de Eco - 1. Interpretação e história; 2.
Superinterpretando textos; 3. Entre autor e texto.
Apresenta ainda os artigos dos três participantes do
seminário: - 4. A trajetória do pragmatista (Richard
Rorty, catedrático de Humanidades na Universidade
de Virgínia); 5. Em defesa da superinterpretação
(Jonathan Culler, catedrático de Inglês e Literatura
Comparada e diretor da Sociedade das Humanidades
da Universidade Cornell); 6. História palimpsesta
(Christine Brooke-Rose, ex-catedrática de Literatura
na Universidade de Paris VIII). E, finalmente, a Réplica (Umberto Eco).
Ao escolher o tema Interpretação e
Superinterpretação 3 para suas conferências, Eco
comprometia-se a definir sua posição sobre a natureza do significado, as possibilidades e os limites da interpretação. Nos anos 60 e 70, dedicou-se ao estudo
do papel do leitor no processo de "produzir" significado. Em sua obra mais recente (The Limits of
Interpretation)4 mostra-se apreensivo em relação à
forma pela qual importantes correntes do pensamento
crítico contemporâneo, sobretudo a crítica americana
inspirada em Derrida, autodenominada "Descons-
1
Apud COLLINI, Stephan. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. São
Paulo, Martins Fontes, 1993, p.1.
2
ORLANDI, Eni P. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis. Vozes, 1996, p.9.
3
Superinterpretação: uma leitura que, segundo Eco, excede os ''limites da interpretação legítima''.
4
No prelo.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
45
trução" associada particularmente
rindo-se certamente a Austin, 9
ao trabalho de Paul de Man e J.
acrescenta "Se bem me lembro, foi
Dizer que a
Hillis Miller, parecem dar licenaqui na Inglaterra que alguém suinterpretação é
ça ao leitor de produzir um fluxo
geriu, anos atrás, que é possível fapotencialmente
ilimitado e incontrolável de "leizer coisas com palavras. Interpreturas." 5
tar um texto significa explicar por
ilimitada não significa
Por não concordar com tal tipo
que essas palavras podem fazer
que a interpretação
de "semiótica ilimitada", que consivárias coisas (e não outras) através
dera um "apropriação perversa",
do modo pelo qual são interpretanão tenha objeto e que
Eco busca descobrir, em suas condas''. Exemplificando: se Jack, o
corra por conta
ferências, algumas possibilidades de
Estripador, alegasse que fez o que
própria.
limitar o alcance de interpretações
fez baseado em sua interpretação
admissíveis e, em decorrência, de
do Evangelho de São Lucas, muitos
classificar determinadas leituras
críticos voltados para o leitor tencomo "superinterpretações".
deriam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma
Neste texto, vou ater-me apenas à primeira Confe- forma inadequada. Os críticos não voltados para o leirência de Eco em que ele aborda questões relaciona- tor afirmariam que Jack, o Estripador, ''estava comdas ao tema Interpretação e História.
pletamente louco.''
Confessa Eco que concordaria, muito a contragosto, com o fato de que Jack, o Estripador, precisava de
cuidados médicos e supõe também que mesmo o
desconstrucionista mais radical concordaria(?). Embora reconheça que seu exemplo é um tanto forçado,
Iniciando a primeira Conferência, Eco explica que, julga que até um argumento parodoxal como esse preem Obra Aberta6 (1962), "estava estudando a dialética cisa ser levado a sério, pois
entre os direitos dos textos e os direitos de seus intérEle prova que existe pelo menos um caso em que
pretes" e lhe parece que os direitos dos intérpretes
é possível dizer que uma determinada interpretêm sido exagerados nas décadas mais recentes.
tação é ruim. Segundo os termos da teoria de
Embora tenha elaborado, em suas últimas obras7, a
pesquisa científica de Popper, isso é o suficienidéia peirceana da semiótica ilimitada, procurou moste para refutar a hipótese de que a interpretatrar8 que tal concepção não leva à conclusão de que a
ção não tem critérios públicos (ao menos em terinterpretação não tenha critérios:
mos estatísticos). (p.29)
Dizer que a interpretação (enquanto caracteA única alternativa a uma teoria radical da interrística básica da semiótica) é potencialmente ili- pretação voltada para o leitor é a assumida pelos demitada não significa que a interpretação não fensores da idéia segundo a qual a única interpretação
tenha objeto e que corra por conta própria. válida é a que pretende descobrir a intenção original
Dizer que um texto potencialmente não tem fim do autor. Quanto a essa objeção, Eco diz:
não significa que todo ato de interpretação posEm alguns dos meus escritos recentes, sugeri que
sa ter um final feliz. (p.28)
entre a intenção do autor (muito difícil de desMas os críticos contemporâneos defensores do pocobrir e freqüentemente irrelevante para a inder exagerado do leitor chegam a considerar que a
terpretação de um texto) e a intenção do intérexistência de um texto é dada somente pela cadeia de
prete que (para citar Richard Rorty) simplesmenrespostas que suscita e que, conforme observou
te "desbasta o texto até chegar a uma forma
Todorov, maliciosamente, "um texto é apenas um pique sirva a seu propósito" existe a intenção do
quenique onde o autor entra com as palavras e os leitexto. (p.29)
tores com o sentido".
A seguir, propõe-se a relatar a história das raízes
Ao rebater tal posição, Eco argumenta que as pala- arcaicas do debate contemporâneo sobre o significado
vras do autor constituem uma unidade de evidências de um texto, apagando, inicialmente, a distinção tanto
materiais que o leitor não pode desconsiderar. Refe- entre textos literários e textos comuns quanto entre
Interpretação e
História
5
COLLINI, S. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo,
Martins Fontes, 1993, p. 9.
6
(Trad. bras). São Paulo, Perspectiva, 1967, Debates 4.
7
A Theory of Semiotics, The Role of the Reader e Semiotics and the Philosophy of Language
8
Dissertação apresentada no Congresso Internacional Peirce, na Universidade de Harvard (setembro de 1989)
9
AUSTIN, J. L. 1962. How to do Things with Words, Oxford, Clarendon (trad. para o italiano sob o título Quando dire è fare, 2ª ed.,
Turim, Marietti, 1975).
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Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
textos "enquanto imagens do munrantem ao menos um contrato
Ao contrário do que se
do e o mundo natural como (segunsocial. O racionalismo latino
pressupõe, a maior
do uma tradição venerável) um
adota os
princípios do
Grande Texto a ser decifrado".
racionalismo grego, mas os
parte da teoria
O objetivo do relato é demonstransforma e enriquece num sencontemporânea ligada
trar que, ao contrário do que se
tido legal e contratual. O modeao pensamento "póspressupõe, a maior parte da teoria
lo legal é modus, mas o modus é
contemporânea ligada ao chamado
também o limite, a fronteira.
moderno" parecerá
pensamento "pós-moderno" parece(pp.31-32)
uma retomada de
rá uma retomada de movimentos
Esse modelo do racionalismo
muito antigos.
grego e latino ainda domina a mamovimentos muito
Em 1987, ao fazer uma palestra
temática, a lógica, a ciência e a proantigos.
introdutória na Feira de Frankfurt,
gramação de computadores, mas
sobre o irracionalismo moderno, conão esgota a história do que chameçou a sua reflexão esclarecendo ser difícil definir mamos herança grega.
"irracionalismo" sem dispor de um conceito filosófico
No mito de Hermes, em torno do qual os gregos
de "razão":
construíram a idéia de metamorfose contínua, enconInfelizmente, toda a história da filosofia ociden- tra-se a negação do princípio de identidade, de nãotal serve para provar que tal definição é muito contradição e do terceiro excluído, e os nexos causais
controvertida. Qualquer forma de pensar sem- enrolam-se sobre si mesmos em espirais: "o ‘depois’
pre é vista como irracional pelo modelo histórico precede o ‘antes’, o deus não conhece limites espacide outra forma de pensar, que vê a si mesmo como ais e pode, em diferentes formas, estar em diferentes
racional. A lógica de Aristóteles não é a mesma lugares ao mesmo tempo". Essa concepção de Hermes
que a de Hegel; Ratio, Ragione, Raison, Reason data do século II depois de Cristo, um período de ore Vernunft não significam a mesma coisa.
dem política e paz, e o império aparentemente une por
Uma maneira de entender conceitos filosóficos uma língua e uma cultura todos os povos que domina.
é, com freqüência, voltar ao senso comum dos É o século em que se define o conceito de educação
dicionários. (p.30)
geral, cujo objetivo era produzir um tipo de homem
A noção latina de modus, ou seja, "dentro dos limi- completo, versado em todas as disciplinas. Isso, no entes e das medidas", foi muito relevante, se não para tanto, pressupõe um mundo perfeito, coerente, enquanto
estabelecer a diferença entre racionalismo e o mundo do século II é uma mistura de raças e línirracionalismo ("algo que vai além de um limite estabe- guas; um encruzilhamento de povos e idéias e dos mais
lecido por um padrão"), pelo menos para determinar diferentes tipos de deuses.
duas atitudes básicas, isto é:
É bastante conhecida a lenda do califa que mandou
duas formas de decifrar o texto como um mundo destruir a biblioteca de Alexandria, justificando-se com
ou o mundo como um texto. Para o racionalismo o argumento segundo o qual os livros diziam a mesma
grego, de Platão a Aristóteles e outros, conhecer coisa que o Corão e, nesse caso, eram supérfluos, ou
significava entender as causas. Assim, definir então diziam coisa diferente e, nesse caso, eram erraDeus significava definir uma causa, além da qual dos e perniciosos. "O califa conhecia a verdade e julnão poderia haver nenhuma outra causa. Para gou os livros com base nessa verdade". Por outro lado,
se conseguir definir o mundo em termos de cau- o hermetismo do século II caracteriza-se pela busca
sas, é necessário desenvolver a idéia de uma ca- de uma verdade que não conhece e dispõe apenas de
deia unilinear: se um movimento vai de A para B, livros os quais espera que sirvam para confirmar-se
então não há força na terra capaz de fazê-lo ir mutuamente e nos quais imagina encontrar uma cende B para A. Para se conseguir justificar a natu- telha de verdade.
reza unilinear da cadeia causal, é necessário
Nesta dimensão sincrética, um dos princípios dos
primeiro supor uma série de princípios: o princímodelos racionalistas gregos, o do terceiro expio de identidade (A = A), o princípio da nãocluído, entra em crise. É possível muitas coisas
contradição (é impossível algo ser A e não ser A
serem verdadeiras ao mesmo tempo, mesmo que
ao mesmo tempo) e o princípio do terceiro excluse contradigam. Mas, se os livros falam a verído (ou A é verdadeiro ou A é falso e tertium nom
dade, mesmo quando se contradizem, então cada
datur) A partir desses princípios, derivamos o
uma de suas palavras deve ser uma alusão, uma
modelo típico de pensamento do racionalismo
alegoria. Estão dizendo algo diferente do que
ocidental, o modus ponens: "se p então q: mas p:
parecem dizer. (...) Assim a verdade passa a idenportanto q".
tificar-se com o que não é dito ou com o que é
Embora esses princípios não garantam o recodito de forma obscura e deve ser compreendido
nhecimento de uma ordem física do mundo, gaalém ou sob a superfície de um texto. (p.35)
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
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Vale observar que, nessa época,
explicar que não podemos definir
uma coisa verdadeira era principalDeus em termos muito precisos
Sentimos necessidade
mente algo que não podia ser explidevido à inadequação de nossa líncado, enquanto para o racionalismo
gua, o pensamento hermético11 asde nos voltar para
grego uma coisa era verdade quansume que nossa língua, quanto mais
imagens de outras
do podia ser explicada. Agora, é a
ambígua e polivalente, quanto mais
civilizações, porque só
suposta gagueira do estrangeiro que
se valer de símbolos e metáforas,
se transforma na língua sagrada,
tanto mais será especialmente adeos símbolos exóticos
enquanto no racionalismo clássico
quada para designar a Unidade na
podem manter uma
identificavam-se os estrangeiros
qual se realiza a coincidência dos
como bárbaros, isto é, aqueles que
opostos e da qual resulta o colapso
aura de sacralidade.
nem sequer conseguem falar cordo princípio da identidade.
retamente ("o que gagueja" é a verEm conseqüência, a procura de
dadeira etimologia de bárbaro).
um significado final inatingível reConsiderando essa nova situação, se a procura de sulta em ''uma interminável oscilação ou deslocamenuma verdade diferente surgiu da desconfiança da he- to de significado'' e a interpretação é imprecisa. Por
rança grega clássica, então, conclui Eco,
exemplo, uma planta não é definida com base em suas
todo verdadeiro conhecimento teria de ser mais características morfológicas e funcionais, mas de acorarcaico. Encontra-se entre os resíduos de civili- do com sua semelhança mesmo que parcial com outro
zações que os pais do racionalismo grego igno- elemento do cosmos. O pensamento hermético reduz
raram. A verdade é algo com que temos vivido tudo a um fenômeno lingüístico, mas, ao mesmo temdesde o começo dos tempos, só que a esquece- po, nega à linguagem qualquer poder de comunicação.
mos. (p.36)
Após referir-se aos textos básicos dessa linha de
A propósito, Jung explicou que sentimos necessi- pensamento, Eco esclarece que os pensadores da Redade de nos voltar para imagens de outras civilizações, nascença demonstraram que o Corpus Hermeticum
porque só os símbolos exóticos podem manter uma aura não era um produto da cultura grega, mas que havia
de sacralidade. Assim, uma imagem divina perde seu sido escrito antes de Platão. Após ressurgir em Flomistério, quando se torna muito familiar para nós. No rença, no início do chamado mundo moderno e ser
século II, o conhecimento secreto teria estado, portan- reelaborado pelo neoplatonismo da Renascença e pelo
to, com os druidas, com os sacerdotes celtas, ou com cabalismo cristão, o pensamento hermético continuou
os sábios do Oriente, que falavam línguas incompre- fundamentando uma grande parcela da cultura moderensíveis.
na, da magia à ciência.
A opinião geral era que os sacerdotes bárbaros
O modelo hermético defendia a idéia de que a orpossuíam um conhecimento misterioso sobre os elos dem do universo descrita pelo racionalismo grego posecretos que ligavam o mundo espiritual ao mundo as- deria ser subvertida e que novas conexões e relatral que, por sua vez, ligava-se ao mundo sublunar. O ções poderiam ser descobertas no universo, as quais
significado disso era que as ações sobre uma planta teriam permitido ao homem tanto agir sobre a natupodiam influenciar a trajetória das estrelas; a trajetória reza quanto mudar seu curso. Propunha ainda que o
das estrelas repercutia no destino dos seres terrestres; mundo deveria ser descrito de acordo com uma lógias operações mágicas com a imagem de um deus po- ca quantitativa e não em termos de uma lógica qualideriam obrigá-lo a realizar nossos desejos. O universo tativa. Portanto, o modelo hermético, paradoxalmenassemelha-se, pois, a um grande espelho em que cada te, colabora para o surgimento de seu novo oponente,
objeto individual reflete e significa todos os outros. O o racionalismo científico moderno. Além disso, Eco
que existe na terra também existe no céu.
explica que:
Nessas condições, o princípio da não-contradição é
O novo irracionalismo hermético oscila, por um
rejeitado, pois tal visão do universo resulta de uma
lado, entre místicos e alquimistas e, por outro,
emanação divina no mundo em cuja origem está o "Um
entre poetas e filósofos, de Goethe a Gérard de
incognoscível, que é a sede da própria contradição".
Nerval e Yeats, de Schelling a Franz von Baader,
Enquanto o pensamento cristão neoplatônico10 busca
de Heidegger a Jung. E em muitos conceitos
10
Relativo ao neoplatonismo. Filos. Corrente doutrinária fundada por Amonio Sacas (séc. II), em Alexandria (...). Caracterizava-se pelas
teses de absoluta transcendência do ser divino, da emanação (...) e do retorno do mundo a Deus pela interiorização progressiva do
homem. (Dicionário Aurélio).
11
Relativo ao hermetismo (...) Filos. Doutrina ligada ao gnosticismo (...), surgida no Egito no séc. I, atribuída ao Deus Thot, chamado pelos
gregos Hermes Trismegisto, e formada principalmente pela associação de elementos doutrinários orientais e neoplatônicos. Cristalizouse num ensinamento secreto em que se misturam filosofia e alquimia. (Dicionário Aurélio).
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Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
pós-modernos de crítica não é
acreditarem que ele tem um segredifícil reconhecer a idéia do
do político.
No modelo hermético
contínuo deslocamento do sigA seguir, Eco passa a sugerir em
a verdade é sempre
nificado. A idéia expressa por
que sentido os resultados de sua inPaul Valéry, de que il n’y a pas
cursão às raízes da herança hermésecreta e nenhum
de vrai sens d’un texte, é uma
tica podem ser interessantes para
questionamento dos
idéia hermética.
compreender um pouco mais da teEm um de seus livros, Science
oria contemporânea de interpretasímbolos e enigmas
de l’homme et tradition - extreção textual. Enumera então uma lispoderá revelar
mamente questionável pelo enta das principais características daa verdade última.
tusiasmo irrestrito de seu auquilo que ele gostaria de chamar
tor, embora não lhe faltem aruma abordagem hermética dos texgumentos persuasivos -,
tos, na qual descobriu algumas idéiGilbert Durand vê o conjunto
as similares em muitas teorias condo
pensamento
contemporâneo,
em temporâneas:
contraposição ao paradigma mecanicista do
1.Um texto é um universo aberto em que o intérpositivismo, passar pelo sopro vivificante de prete pode descobrir infinitas interconexões.
Hermes, e a lista de personalidades que identi2. A linguagem é incapaz de apreender um signififica convida à reflexão: Spengler, Dilthey, cado único e preexistente: ao contrário, o papel da linScheler, Nietzsche, Husserl, Kerényi, Plank, guagem é mostrar que aquilo de que se pode falar é
Pauli, Oppenheimer, Einstein, Bachelard, apenas a coincidência dos opostos.
Sorokin, Lévi-Strauss, Foucault, Derrida,
3. A linguagem reflete a inadequação do pensaBarthes, Todorov, Comsky, Greimas, Deleuze. mento: "nosso ser-no-mundo nada mais é do que ser
(p.40)
incapaz de encontrar qualquer significado
Outra convicção que caracteriza o modelo hermé- transcendental.
tico é a de que a verdade é sempre secreta e nenhum
4. Qualquer texto que pretenda dizer algo inequívoquestionamento dos símbolos e enigmas jamais poderá co, é um "universo abortado, ou seja, a obra de um
revelar a verdade última e só deslocará o segredo para Demiurgo desastrado."
outro lugar. Se a condição humana é assim, então o
5. O gnosticismo textual contemporâneo é, porém,
mundo surgiu de um erro. Por isso o homem do século bastante generoso: "toda pessoa, desde que ansiosa por
II desenvolveu uma consciência neurótica do seu pa- impor a intenção do leitor sobre a intenção inatingível do
pel num mundo incompreensível. A expressão cultural autor, pode tornar-se o Übermensch (super-homem de
desse estado psicológico denomina-se gnose12.
Nietzsche) que realmente entende a verdade, qual seja,
Gnose significava verdadeiro conhecimento da exis- que o/a autor/a não sabia o que estava realmente dizentência, na tradição do racionalismo grego. Tal conhe- do, porque a língua falou em seu lugar".
cimento podia ser tanto coloquial quanto dialético, em
6. Para salvar o texto - ou seja, para fazê-lo passar
contraposição à simples percepção (aisthesis) ou opi- de uma ilusão de significado à percepção de que o
nião (doxa). Entretanto, nos primeiros séculos cris- significado é infinito - o leitor deve desconfiar de que
tãos, gnose passou a significar conhecimento metar- cada linha esconde um outro significado secreto; as
racional, intuitivo, um dom divino capaz de salvar quem palavras, ao invés de dizer, escondem o não-dito; a
o atinja.
glória do leitor é descobrir que um texto pode dizer
Eco sugere uma ligação entre a herança gnóstica13 tudo, menos o que o seu autor queria que dissesse;
e muitos aspectos da cultura moderna e contemporâ- assim que se anuncia a descoberta de um suposto signea. O amor cortês, por exemplo, visto como uma re- nificado, temos certeza de que não é o verdadeiro.
lação puramente espiritual, como renúncia, como per7. O leitor real é aquele que compreende que o
da do ser amado, revela uma origem gnóstica.
significado de um texto é seu vazio.
Tanto a herança hermética quanto a gnóstica proSobre a inter-relação apresentada, Eco coduzem a síndrome do segredo. O modelo hermético menta:
levou o iniciado, que entende o segredo cósmico, à
Sei que fiz uma caricatura das teorias mais raconvicção de que o poder consiste em fazer outros
dicais de interpretação voltadas para o leitor.
12
Gnose (do gr. Gnôsis) S. f. 1. Conhecimento, sabedoria. 2. Hist. Fil. Conhecimento esotérico e perfeito da divindade e que se transmite
por meio da tradição e mediante ritos de iniciação.
13
Relativa ao gnosticismo. (De gnóstico + -ismo) S. m. Hist. Filos. 1. Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossa
era e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio da
gnose. (São dogmas do gonosticismo: a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras potências celestes, entre a
divindade e os homens. Relaciona-se o gnosticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais). Dicionário Aurélio.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
49
Além disso, penso que as cado que antes, confessou a Falta,
ricaturas são muitas vezes
admirando a Divindade do Papel
Ao ser separado
bons retratos não do caso
e, para o futuro, promete realmende seu autor um texto
como ele é, mas pelo menos do
te toda a sua Fidelidade em cada
poderia vir a ser o caso, se suTarefa. (pp.47-48)
paira no vácuo de
puséssemos que alguma coisa
Ao ser separado de seu autor (e
uma série
fosse o caso.
também da intenção desse autor) e
virtualmente infinita
O que quero dizer aqui é que
das circunstâncias concretas de sua
existem critérios para limitar a
criação (e, portanto, de seu referende interpretações
interpretação.
te intencionado) um texto paira, de
possíveis.
(...) Sei que há textos poéticos
certa forma, no vácuo de uma série
cujo objetivo é mostrar que a
virtualmente infinita de interpretainterpretação pode ser infinições possíveis. No relato citado, seu
ta. Sei que Finnegans Wake foi
autor, Wilkins, poderia ter alegado
escrito para um leitor ideal afetado por uma in- que o destinatário tinha certeza de que a cesta referisônia ideal. Mas sei também que, embora toda a da na carta era a mesma levada pelo escravo. Que o
obra do Marquês de Sade tenha sido escrita para escravo, mensageiro da carta, era o mesmo a quem
mostrar o que o sexo poderia ser, a maioria de seu amigo dera a cesta. Que havia uma relação entre
nós é mais moderada. (p.46)
a expressão "30" mencionada na carta e a quantidade
Para demonstrar o que afirmou sobre os critérios de figos contida na cesta.
existentes para limitar a interpretação, apresenta o
Entretanto, vamos supor que, ao longo do caminho,
começo de Mercury; Or, the Secret and Swift o escravo original tivesse sido assassinado e outra pesMessenger (1641), em que John Wilkins14 conta a soa o tivesse substituído. Que os trinta figos originais
seguinte história:
tivessem sido substituídos por outros figos. Que a cesO quanto essa Arte de Escrever pareceu estra- ta tivesse sido levada a um destinatário diferente. Que
nha quando da sua Invenção primeira é algo que o novo destinatário não soubesse de nenhum amigo
podemos imaginar pelos Americanos recém-des- desejoso de lhe mandar figos.
cobertos, que ficavam espantados ao ver Homens
Ainda assim seria possível concluir o que a carta
conversarem com Livros, e não conseguiam acre- estava dizendo. Mas temos direito de presumir que a
ditar que um papel pudesse falar...
reação do novo destinatário seria algo como "Alguém, e
Há um relato excelente a este Propósito, refe- Deus sabe quem, mandou-me uma quantidade de figos
rente a um Escravo Índio; que, ao ser mandado menor que o número mencionado na carta que os acompor seu Senhor com uma Cesta de Figos e uma panha" (p.48).
Carta, comeu durante o Percurso uma grande
Poderíamos supor também que não apenas o mensaParte de seu Carregamento, entregando o Res- geiro tivesse sido morto, mas também que seus assastante à Pessoa a quem se destinava; que, ao ler sinos tivessem comido os figos, destruído a cesta, posa Carta e não encontrando a Quantidade de to a carta numa garrafa e atirado a garrafa ao mar. E
Figos correspondente ao que se tinha dito, acu- que, setenta anos depois, Robinson Crusoé encontrassa o Escravo de comê-los, dizendo-lhe que a se a tal garrafa e, dentro dela, somente a carta, é claro
Carta afirmara aquilo contra ele. Mas o Índio (sem cesta, sem escravo, sem figos). Mesmo assim,
(apesar dessa Prova) negou o Fato com a mai- Eco aposta que "a primeira reação de Robinson Crusoé
or segurança, acusando o Papel de ser uma teria sido: "Onde estão os figos?"
Testemunha falsa e mentirosa.
Poderíamos ainda imaginar que a mensagem da garrafa
fosse encontrada por uma pessoa mais sofisticada,
Depois disso, sendo mandado de novo com um
um
estudioso
de lingüística, hermenêutica ou semiótica,
Carregamento semelhante e uma Carta expresque
poderia
levantar
outras hipóteses, entre as quais:
sando o Número exato de Figos que deviam ser
entregues, ele, mais uma vez, de acordo com sua
1. Atualmente, podemos entender figos num sentiPrática anterior, devorou uma grande Parte de- do retórico em expressões como to be in good fig
les durante o Percurso; mas, antes de comer o [estar em boa forma], to be in full fig [estar em
primeiro (para evitar as Acusações que se segui- plena forma], to be in poor fig [estar em más conriam), pegou a Carta e a escondeu sob uma gran- dições], e a mensagem poderia admitir uma interprede Pedra, assegurando-se de que, se ela não o tação diferente. Ainda assim, o destinatário estaria
visse comer os Figos, nunca poderia acusá-lo; privilegiando interpretações possíveis de figo, e não
mas, sendo agora acusado com muito mais rigor de maçã ou gato.
14
50
John Wilkins, Mercury; Or, the Secret and Swiftt Messenger, 3ª ed. (Londres, Nicholson, 1707) pp. 3-4.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
2. A mensagem é uma alegoria
Há certamente uma diferença en(seqüência de metáforas), escrita
Entre a intenção
tre discutir a carta de Wilkins e
por um poeta: o destinatário, seguindiscutir Finnegans Wake.
do autor e o propósito
do determinados indícios, procura
Finnegans Wake pode nos ajudo intérprete existe
na mensagem "um segundo sentido
dar a colocar em dúvida até o
oculto baseado num código poético
suposto bom senso do exemplo de
a intenção do texto e
privado, válido apenas para aquele
Wilkins. Mas não podemos
um texto pode ter
texto". Sendo assim, é possível que
desconsiderar o ponto de vista do
o destinatário chegasse a várias himuitas leituras
escravo que testemunhou pela
póteses contraditórias. Entretanto,
primeira vez o milagre dos textos
mas não qualquer
para legitimar a hipótese escolhida,
e de sua interpretação. Se há algo
leitura.
provavelmente ele faria
a ser interpretado, a interpretacertas hipóteses prévias sobre
ção deve falar de algo que deve
o possível remetente e o possíser encontrado em algum lugar,
vel período histórico em que o texto foi produzie de certa forma respeitado. Assim, pelo menos
do. Isso nada tem a ver com a pesquisa sobre as
no decorrer de minha próxima conferência, miintenções do remetente, mas certamente tem a
nha proposta é: vamos primeiro assumir o lugar
ver com a pesquisa do quadro cultural da mendo escravo. É a única maneira de nos tornarsagem original. (pp.50-51)
mos, se não os senhores, ao menos os servos
Por isso, Eco afirma que acredita "piamente" na
respeitosos da semiótica.
existência de "certos critérios ‘econômicos’ com base
Umberto Eco tem razão ao propor "vamos assunos quais certas hipóteses serão mais interessantes que mir o lugar do escravo. É a única maneira de nos
outras".
tornarmos, se não os senhores, ao menos os servos
A provável conclusão desse intérprete sofisticado respeitosos da semiótica". Porque, na primeira vez
seria que a carta encontrada na garrafa havia feito em que o destinatário da carta e dos figos acusou-o
referência, em algum tempo e em algum lugar, a figos de ter comido grande parte dos figos e alegou que a
de verdade e a um certo escravo. Havia sido enviada carta afirmara isso contra ele, o escravo não acredipor um determinado remetente para um dado destina- tou que ela tivesse o poder de dizer isso. Mesmo tentário. Mas agora havia perdido essa referência.
do comido os figos, negou o fato com a maior seguPor outro lado, concluiria também que a mensagem rança, acusando a carta de ser uma testemunha falcontinuará sendo um texto que com certeza poderia sa e mentirosa.
ser usado para enviar incontáveis cestas e outros tanNa segunda vez, embora tivesse tido o cuidado
tos figos, mas certamente não para enviar maçãs ou de, antes de comer os figos, esconder a carta sob
unicórnios.
uma grande pedra, para impedir que presenciasse a
O destinatário poderia ainda imaginar, o remeten- cena e evitar que o acusasse depois, ainda assim, ela
te, o escravo e o destinatário desaparecidos, envolvi- teve o poder de provar que mais uma vez ele havia
dos, de modo ambíguo, com a mudança de coisas em cometido aquela falta. O escravo-mensageiro, então,
símbolos, por exemplo, usar figos para fazer uma in- como diz Eco, testemunhou pela primeira vez o
sinuação misteriosa. Nesse caso, o nosso destinatá- milagre dos textos e de sua interpretação. Descorio poderia usar aquela carta como uma mensagem briu que havia algo naquela carta que ele devia enanônima, para testar uma série de significados e re- contrar e, de certa forma, respeitar. E foi o que fez,
ferentes.
confessando a falta e passando a admirar a "DivinApós ter levantado todas essas possibilidades de dade do Papel".
interpretação, seria possível então o destinatário dizer
O leitor está na moda,15 mas existe algo no texto
que a mensagem pode significar muitas coisas, mas que ele - como o "escravo" da história de Wilkins não que ela pode significar qualquer coisa. Ela diz, não pode deixar de aceitar e, de certa forma, respei"com certeza, que era uma vez uma cesta cheia de tar. Considero que Eco conseguiu ''tocar''16 o leitor no
figos. Nenhuma teoria voltada para o leitor pode evitar sentido de fazê-lo compreender que17 entre a intenuma restrição como essa".
ção do autor e o propósito do intérprete existe a
Ao finalizar a Conferência sobre Interpretação e intenção do texto e que um texto pode ter muitas leiHistória, Eco conclui:
turas, mas não pode ter18 qualquer leitura.
15
Possenti, Sírio. ''A leitura errada existe''. In: Leitura: Teoria & Prática. Campinas, SP, Faculdade de Educação UNICAMP, nº 15, p.1216, jun. 1990.
16
Idem, ib.
17
ECO, Umberto. (1993:29).
18
Idem, ib.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997.
51
O objeto deste artigo é a análise de palavras usadas
para designar o Diabo em Grande Sertão: veredas,
objetivando verificar alguns traços de arcaismos nestes signos lingüísticos e também examinar como estes signos refletem a visão de mundo e a realidade histórica e cultural
de um grupo social.
Palavras-chave:
lexicologia, realidade
sócio-cultural
The object of this paper is the analysis of words used to
designate the devil in Grande Sertão: veredas, in order
to verify some archaic nature in these linguistic signs and
also to examine how these signs reflect the representation
of the world and the historical and cultural reality in a social
community.
Key-words:
lexicology, social
and cultural reality
52
*
Ana Maria P. Pires de
Oliveira é professora de
Língua Portuguesa do
Departamento de Letras
da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
Mestre em Lingüística e
Língua Portuguesa pela
UNESP - Araraquara-SP.
Doutoranda em
Lingüística e Língua
Portuguesa na UNESP Araraquara-SP.
DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO
‘‘DIABO’’ EM
‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’
UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICO
Ana Maria P. Pires de Oliveira*
As relações existentes entre língua, cultura e sociedade se manifestam, principalmente, com respeito ao
modo como o sistema lingüístico pode refletir a visão de
mundo de uma cultura. Nessa linha de pensamento, a
língua pode ser vista como um indicador cultural, o que
nos possibilita crer que a história da língua e a história da
cultura percorrem trilhas paralelas.
Sapir1 reforça que a língua não existe desligada da
cultura, ou seja, de um conjunto socialmente herdado de
práticas e crenças que norteiam o cotidiano de cada comunidade.
Desse modo, cada sociedade recorta e recria, a sua
maneira, a realidade. O homem partilha, com os elementos de seu grupo, de princípios comuns transmitidos
coletivamente e, assim, os diferentes grupos sociais estabelecem seus valores, seus costumes e crenças e, também, os assuntos que serão legados ao silêncio, isto é,
que serão tabu.
Embora tenha um caráter universal e seja um fenômeno encontrado em todos os tempos, o tabu lingüístico
não apresenta uma uniformidade. Ele varia de comunidade para comunidade, podendo, ainda, ser temporário,
ou seja, vigorar até o tempo em que persistir o estigma
do tabu. Os vocábulos tabu não chegam a desaparecer
totalmente; de um modo geral, são mantidos, algumas
vezes sob formas variantes, outras vezes, apresentam
alterações em sua estrutura.
Toda língua, através do universo vocabular que a liga
ao mundo exterior, reflete a cultura da sociedade à qual
serve de meio de expressão e interação social. E como o
1
usuário da língua vai constituindo seu vocabulário ao
longo da vida, podemos dizer que o léxico se configura
como o somatório das experiências próprias de uma sociedade e de sua cultura.
Como vimos, todo sistema léxico representa o resultado das experiências acumuladas de uma sociedade e da
cultura através dos tempos. Como agentes no processo
de criação e mesmo de perpetuação lexical, os membros
que integram esta sociedade, vão continuamente, recriando ou perpetuando o vocabulário de sua língua. Esse contínuo processo de desenvolvimento e de criação determina a expansão lexical, motivada pelas mudanças sociais e
culturais. Pode ocorrer, também, que vocábulos caídos
em desuso sejam resgatados e voltem à baila, geralmente
com nova acepção, após receber interferência de lexias
pertencentes à mesma esfera de significação.
Estas formas variantes proporcionam um matiz renovador e evidenciam claramente o espírito criador da
língua. Em vista disso, podemos assinalar que a variação
e a mudança são fatos inerentes à própria essência da
língua e que a língua não é dinâmica porque muda, mas
ela muda por que sua natureza é dinâmica. Ainda nessa
linha de raciocínio observa Coseriu que:
"la lengua cambia sin cesar, pero lo cambio no la
destruye y no la afecta en su "ser lengua", que se
mantiene siempre intacta. Ello, sin embargo, no significa que el ser sistema sería independiente del cambio, sino todo lo contrario, porque el cambio en la
lengua no es "alteración" o "deterioro", como se dice
en terminología naturalista, sino reconstrucción,
SAPIR, E. ''Língua, raça e cultura''. In A linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971.
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.
53
renovación del sistema y asegura
3 - Designativos que denotam
su continuidad y su funcionatamanho:
miento."2
Satanazim5, Romãozinho, MorO
léxico
é
o
nível
Temos, assim, as mudanças e
cegão, Grão-tinhoso, Cão-miúdo,
variações inevitáveis em qualquer línlingüístico que revela
Anhangão, Satanão, Demonião, Digua que, embora, possam variar de
abinho, Dioguim.
com mais
acordo com suas particularidades
4 - Designativos que sofreram
transparência o
históricas, com fatores de natureza
alteração fonética:
extra-lingüística e, também, devido
Demo, Diá, Dê, Canho, Xu,
ambiente físico e social
ao contato com outros idiomas no
Drão, Dião.
dos falantes.
mesmo espaço geográfico, aceleram
5 - Designativos que incorpoou contraem esta natural
ram a idéia de cor:
efervescência lingüística. Desse
Bode-preto, Pé-preto, Das-trevas,
modo, se considerarmos a natureza
Tisnado, Carocho.
dinâmica da língua e, ainda, a antigüidade dos fenôme6 - Designativos de caráter genérico:
nos de variação e mudança lingüística somos levados a
O Indivíduo, o Cujo, o Ele, o Coisa, o Aquele, o
pensar que o estado natural de toda língua, por mais Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O.
reduzida que seja sua área geográfica, deverá ser o esta7 - Designativos consagrados pela tradição judaido de mutabilidade, ou seja, toda língua exibe sempre co-cristã:
uma feição polimórfica.
Satanás, Demônio, Lúcifer, Belzebu.
Assim, podemos perceber que o léxico é o nível
Para a análise dos dados consideramos, além das relalingüístico que revela com mais transparência o ambien- ções língua/cultura/sociedade, os aspectos sócio-culturais
te físico e social dos falantes. O nível lexical é, portanto, característicos do sertão mineiro e de sua gente- vaqueio que melhor testemunha a atuação de forças sociais ros, jagunços, homem do campo em geral - e as caractemodeladoras da vida e do pensamento de uma comuni- rísticas físicas e geográficas desta região.
dade.
A análise das lexias arroladas no primeiro campo léxiNo presente trabalho procuramos analisar os co - designativos formados com nomes de animais - mosdesignativos do vocábulo diabo, na obra Grande Ser- tra a preferência por animais como o cão e o bode, utilizatão: veredas, de Guimarães Rosa.3 Foi nossa intenção dos no processo de denominação. A tradição popular tem
verificar não apenas as possíveis marcas arcaizantes apresentado o diabo em variadas formas animais, entre
presentes nestes signos lingüísticos, mas também a ma- elas a de porco, bode, veado, cão, mosca e touro. Entreneira pela qual essas lexias refletem a visão de mundo e tanto, a denominação a partir da figura do cão e do bode
a realidade histórico-cultural de um grupo social.
destacou-se na narrativa de Riobaldo, tendo sido motivaEmbora inventariássemos os inúmeros designativos da, possivelmente, por reflexos da herança sócio-cultural,
da lexia diabo existentes na obra em questão, seleciona- uma vez que, segundo a tradição popular, acredita-se semos, para este estudo, apenas algumas dessas formas rem esses animais portadores de presságios.
lingüísticas, dado os limites do presente trabalho. AsA tradição cristã faz referência ao bode como elesim, agrupamos os designativos em cinco campos léxi- mento relacionado ao mal e, segundo crença disseminacos4, considerando-se a presença de traços semânticos da no meio rural, esse animal é conhecido pelos estragos
comuns a determinados grupos de nomes. Deste modo, que causa às plantações e às colheitas. A figura do cão
os dados foram reunidos em torno dos seguintes vinculada à idéia de diabo é encontrada em Nogueira,
sintagmas que encabeçam cada campo:
segundo o qual, no século XIX, "nos Países Baixos, era
1 - Designativos formados com nomes de animais: costume expulsar os cães das igrejas e inscrever à porta:
Cão, Cão-tinhoso, Cão-extremo, Cão-miúdo, Bode-preto. Os cães, fora do templo do Senhor"6 Ao que parece, a
2 - Designativos que denotam sisudez:
tradição secular de vincular a figura do diabo a de certos
O Que-nunca-se-ri, o Que-não-ri, o Muito-sério, o animais manteve-se forte no léxico do sertanejo, retraSempre-sério, o Sem-gracejos, o Severo-mor, o Mal-en- tando, assim, a imagem do homem rústico, aferrado às
carado, o Austero
superstições, crenças e tradições.
2
Citado por LOPE-BLANCH, J. M. Investigaciones sobre dialectología mexicana. México: Instituto de Investigaciones Filológicas,
1990, p.13.
3
ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão: veredas, 26 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
4
Neste estudo, adotarmos o conceito de campo léxico apresentando por Dubois, ou seja, o conjunto de palavras que designam os aspectos
diversos de uma técnica, uma relação, uma idéia etc.''
5
Nos exemplos utilizados para este trabalho, - im é um sufixo irregular, de uso popular, também usado entre os habitantes do sertão mineiro.
6
NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986, p.60
54
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.
As unidades lexicais agrupadas no
gistrar que o fanatismo religioso, a
Influenciados por
campo léxico referente aos
questão do tabu e a ignorância acerdesignativos que denotam sisudez reca de questões de ordem religiosa
lendas e superstições,
metem ao aspecto circunspecto com
existente em muitas comunidades
os falantes deixam de
o qual o diabo é apresentado. Para
rurais do Brasil influenciam, consiexpressá-lo, o autor utilizou-se, na
deravelmente, a escolha lexical dos
pronunciar os
maioria das vezes, de lexias composfalantes
designativos de diabo
tas como, o Que nunca-se-ri, o SemOs itens lexicais reunidos no
com receio de que algo
pre-sério, o Muito-sério, o Sem-gracampo léxico - designativos que incejos, o Severo-mor, o Austero, o Malcorporam a idéia de cor - registram
de ruim possa
encarado, entre outras, evidenciana preferência pela cor escura, preacontecer-lhes.
do, assim, a força do sobrenatural mata, encontrada nos vários
nifestada na crença ferrenha, espadenominativos de diabo. A tradição
lhada entre o homem do campo, de
judaico-cristã refere-se ao diabo
que o diabo tem aspecto sóbrio e enfezado. Tal convic- como o Príncipe das Trevas o qual, por desobediência
ção é resquício de uma sociedade agrária conservadora a Deus foi precipitado ao reino das trevas, da escuriem virtude da estagnação cultural, e do isolacionismo dão. Assim, quer se apresente na forma humana ou
existente em áreas rurais ainda hoje isoladas geografi- animal, é, freqüentemente, representado por figura de
camente.
cor preta, ou por expressões que remetem à cor escura
Os itens lexicais arrolados no campo léxico - - tisnado (requeimado, tostado, enegrecido), carocho
designativos que denotam tamanho - expressam a cren- (que tem a cor escura, trigueira), trevas (escuridão abdice de que o sertão é cheio de mistérios, de buscas e soluta), como atestam os exemplos Bode-preto, Pédescobertas constantes, um contínuo caminhar pelas ve- preto, Das-trevas, Tisnado e Carocho.
redas onde habita o Grão-tinhoso ou o Cão-miúdo, o
A tendência conservadora que caracteriza a vida do
Satanão, o Satanazim, o Dioguim, o Diabinho ou o povo rude e humilde do interior do Brasil que, ainda,
Romãozinho. O traço semântico tamanho, observado nes- vive mergulhado no passado e norteia suas vidas conses exemplos, deixa transparecer a crença enraizada no forme preceitos de tradição judaico-cristã permea-dos
íntimo do sertanejo, de que ali convivem um diabo meni- por crenças de vertentes indígena e africana, acaba por
no que faz estripulias, travessuras e um diabo adulto, sem- manter a tradição, isto é, a preferência por certas lexias
pre ativo, espreitando os espíritos mais simples e rudes. A já consagradas na comunidade na qual se inserem.
referência a esses dois estágios em que o diabo pode se
As unidades lexicais que compõem o campo léxico manifestar deixa transparecer o poder que o sobrenatural designati-vos de caráter genérico - evidenciam o uso de
exerce sobre a população do meio rural. Essas supersti- termos generalizantes que, na linguagem de Riobaldo se
ções, mitos e crenças persistem ainda, nessas áreas, ali- especializam deixando, assim, de designar um ser qualmentadas pela distância existente entre uma propriedade quer, cujo nome não se quer ou não se pode declinar, para
rural e outra e, principalmente, pelo isolamento que se nomear, especificamente, o diabo. Essas lexias estão, na
encontram dos grandes centros culturais. É o ermo que maioria das vezes, antecedidas do artigo definido, o que
impera entre as propriedades rurais do sertão.
lhes confere o caráter individualizador. Temos, assim, uniJá as unidades lexicais reunidas no campo léxico - dades lexicais como o Indivíduo, o Cujo, o Ele, a Coisa,
designativos que sofreram alterações fonéticas - são re- o Aquele, o Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O. Vale
sultantes das mudanças fonéticas ocorridas nas lexias, lembrar que encontramos, com freqüência, na fala popuDemônio, Diabo, Canhoto, Xuxo (ou Exu), Dragão e lar, expressões com termos genéricos: o dito cujo, como
Diabão, donde resultaram as formas variantes Demo ou diz o outro, aquele um, empregados quando não se pode
Dê, Diá, Canho, Xu, Drão e Dião. E importante assinalar ou não se quer proferir o nome de alguém. O emprego de
que a conduta lingüística pode, por vezes, ser influencia- Ele, por exemplo, como designativo de diabo remete à
da pela noção de poder. Parece-nos pertinente mencionar não-pessoa.
que o poder, entendido como algo que tem que ser acataO uso do designativo O representa, certamente, uma
do ou, ao mesmo tempo, como algo que se deva opor tentativa de expressar "o fim" das dúvidas que atormenresistência, exerce influência considerável na seleção lin- tam o cotidiano de Riobaldo. Representa esse
güística dos falantes.
denominativo o símbolo do temor sobrenatural que imDesse modo, influenciados por lendas e superstições pede as pessoas de pronunciarem o nome nefando, no
existentes na comunidade, os falantes deixam de pro- caso, o do diabo. Processa-se, nesse caso, a concentranunciar os designativos de diabo com receio de que algo ção do máximo de significado no mínimo de significante.
de ruim possa acontecer-lhes. Utilizam-se, então, das
A crença no poder sobrenatural, disseminada entre a
formas reduzidas, um modo alternativo, segundo a crença maior parte das comunidades rurais do sertão, popularipopular, de referir-se ao diabo sem invocá-lo, ou seja, zou o hábito de que não se deve proferir o nome de
sem correr o risco dele fazer-se presente. Importa re- entidades vinculadas ao mal, para que nada de nefando
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.
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venha acontecer. Portanto, utilizamdo léxico comum de uma língua só
A grande e
se dos designativos de caráter geral,
será possível à luz dos regionalismos.
diversificada sinonímia
quando necessitam referir-se a essas
A grande e diversificada sinonímia
entidades.
utilizada na obra para fazer referênutilizada na obra para
Já as unidades lexicais arroladas
cia ao diabo representa importante
fazer referência ao
no último campo léxico contribuição da cultura popular para
diabo representa
designativos consagrados pela trao léxico da língua portuguesa. Tal fato
dição judaico-cristã - formam corparece consolidar-se na crença de que
importante
po com toda essa múltipla nomeao nome do espírito do mal não deve
contribuição da cultura
ção de uma mesma figura. Entreser pronunciado, o que faria com que
tanto, a baixa ocorrência desses
ele se tornasse presente. Essa crenpopular para o léxico
designativos talvez seja justificada
dice popular parece concentrar-se no
da língua portuguesa.
pelo fato de tratar-se de vocábulos
fato de que é menos "pecado" profede origem erudita.
rir os seus diferentes designativos,
Entre as unidades lexicais reunidas nesse campo - denominados por Riobaldo nomes de rebuço.
Satanás, Demônio, Lúcifer e Belzebu - apenas a lexia
Estes itens lexicais, ainda produtivos na cadeia do
Belzebu apresenta formas variantes, quais sejam, léxico comum pela força da tradição religiosa na memóBerzebu, Berzabum, Berzabu e, ainda, Barzabu, lexia ria popular, definem-se para o usuário como formas que
resgatada da fala de Riobaldo. Outras duas lexias que se permitem encobrir, disfarçar ou abrandar o que não pode
agrupam neste campo - Satanás e Demônio - apresen- ou não deve ser proferido, uma vez que reconstituem a
tam as formas reduzidas Satã e Demo.
imagem de seu portador imediato, deixando, também,
A análise dos dados testemunha a presença, bastante transparecer aspectos inerentes à fé e à devoção de um
freqüente, na fala do homem do meio rural, de lexias de grupo social.
caráter popular como Capeta, Tinhoso, Coisa-ruim, etc.,
A análise dos dados permitiu-nos observar a existênem detrimento das formas ortodoxas como Satanás, De- cia de unidades do léxico que assumiram matizes espemônio, Lúcifer e Belzebu.
ciais configurando-se como brasileirismos/regionalismos.
À guisa de conclusão foi-nos possível observar que Por outro lado, o usuário da língua, motivado por fatoo emprego de arcaísmos associa-se ao de regionalis- res de natureza geográfica, física e sócio-cultural, cria
mos, na medida em que, muitos deles, são formas em vocábulos específicos a partir de elementos pertencendesuso nas áreas mais desenvolvidas do país. Entre- tes ao sistema, atribuindo-lhes "cor local". O estudo por
tanto parecem continuar subsistindo em certas regiões nós efetuado permitiu-nos verificar a presença do social
rurais não afetadas, ainda, pelo desenvolvimento oriundo atuando no processo de representação da realidade, o
da civilização moderna. O isolamento, característico que reforça o pensamento sapiriano, segundo o qual "fadessas áreas em relação a outras no país, é devido, tores físicos só se refletem na língua, na medida em que
sobretudo, à precariedade dos meios de comunicação e atuarem sobre eles fatores sociais."8
à falta de contato intenso com outros grupos sociais, o
Vale reiterar que o estudo do léxico utilizado por um
que justifica o fato de seus habitantes conservarem tra- grupo social leva-nos a inferências acerca do ambiente
ços de linguagem representativos de outros períodos sócio-cultural de seus integrantes. Por fim, assinalamos
da história da língua.
que a análise realizada neste trabalho possibilitou-nos,
Em seus estudos sobre o português do Brasil, Silva portanto, reforçar a idéia de que
Neto7 menciona a importância dos regionalismos para a
"usos e costumes, tradições, mitos e lendas, hábitos e
história da língua e para a pesquisa etimológica. Assinala
linguajar retratam profunda feição arcaizante, próo autor que os regionalismos, embora geograficamente
pria de população segregada. O insulamento e o analconfinados e socialmente desprestigiados, seriam mefabetismo explicam a permanência dessa herança
lhor tratados se enfocados sob uma perspectiva histórisecular. Quanto mais se penetra no sertão, maior é a
ca. Segundo o autor, antes da constituição da língua cofisionomia arcaizante."9
mum temos apenas os regionalismos das diferentes parFoi precisamente aspectos dessa fisionomia arcaizante
tes do País que fornecerão a matéria-prima para a confi- manifestos na língua que tentamos demonstrar através
guração do léxico da língua comum. Atenta, ainda, esse da análise dos designativos de diabo, recolhidos da fala
estudioso para o fato de que uma correta interpretação de Riobaldo.
7
SILVA NETO, S. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1986, p.307.
''Língua, raça e cultura'', cit., p.45.
9
ARROYO, L. A cultura popular em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editorial/INL, 1984, p.7.
8
56
Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.