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PA EI R E V I S TA D E LETRAS UFMS Papéis - Rev. Letras UFMS Campo Grande, MS v. 1 n. 1 p. 1-56 jan./jun. 1997 1 PA EI R E V I S T A D E LETRAS UFMS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Reitor Jorge João Chacha Vice-Reitor Amaury de Souza CÂMARA EDITORIAL Ronaldo Assunção (CCHS-UFMS) Maria Adélia Menegazzo (CCHS-UFMS) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (CEUD-UFMS) Rita Maria Baltar Van Der Laan (CEUC-UFMS) Eliane Mara Costa Roos (CEUA-UFMS) Ana Maria Pinto Pires de Oliveira (CCHS-UFMS) Ficha Catalográfica preparada pela Coordenadoria de Biblioteca Central-UFMS Papéis revista de letras UFMS. Vol. 1, n. 1 (jan-jun. 1997)- . -- Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 1997V. : il ; 27 cm. Semestral. 1. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 2 APRESENTAÇÃO O desafio está lançado. A primeira edição da Revista de Letras da UFMS, PAPÉIS, marca o início de um trabalho que promete ser longo e fecundo, apesar, é claro, das dificuldades por que vem passando nossas instituições de ensino superior. Mais um motivo para marcarmos nossa presença, valorizando nosso trabalho. Os cinco Cursos de Letras da UFMS, espalhados pelo Estado, em Campo Grande, e nos Centros Universitários de Dourados, Corumbá, Três Lagoas e Aquidauana, já faziam por merecer a edição de sua própria revista. Esse merecimento se concretiza agora, com a publicação deste primeiro número de PAPÉIS. Os objetivos que nortearam o surgimento desta revista podem ser traduzidos em dois pontos cruciais: a) ser o elo de articulação, de união, entre os pesquisadores dos diversos Cursos de Letras da UFMS, propiciando-lhes o intercâmbio de conhecimentos; b) ser um meio de difusão dos trabalhos de especialistas, pertencentes ou não à UFMS, envolvidos nos estudos das letras, voltados para o texto literário, para a lingüística, para as questões culturais, ou outras, na área. PAPÉIS quer ser um espaço de troca de saberes e, com isso, estar em sintonia com estudiosos de todo o país. Colocando já em prática esses objetivos, a primeira edição de PAPÉIS traz aos leitores os trabalhos de estudiosos da UFMS e de outras instituições, discutindo temáticas variadas, que vão da estética, do modernismo, da subjetividade, da cidade, à língua, à fotografia e à interpretação. Por fim, um agradecimento e dois desejos. Agradecemos a todos aqueles que, de forma direta ou indireta, colaboraram para a concretização deste trabalho que ora inicia sua trajetória. O desejo de que mais textos surjam, como resultado final de trabalhos originais de estudiosos das letras; e o desejo de que a Editora da UFMS estabeleça, de uma vez por todas, este mecanismo de publicação dos estudos acadêmicos na área, permitindo, assim, um meio fecundo de intercâmbio do saber entre os pesquisadores e a comunidade. Ronaldo Assunção 3 PA EI R E V I S T A D E LETRAS UFMS Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Editora UFMS Versão dos resumos para o inglês Daniel Derrel Santee Revisão A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade dos autores Impressão e Acabamento Divisão de Produção Gráfica - ACS/UFMS Distribuição Livraria UFMS Publicação da Rua 9 de Julho, 1922 CEP 79.081-050 - Campo Grande-MS Fone: (067) 787-1335 - Fax: (067) 787-7642 e-mail:[email protected] Ilustração de Capa: Titivillus Angélico de Letras - Obra de Genésio Fernandes - Acrílico e colagem sobre papel Artista plástico e mestre em Teoria da Literatura, Genésio inspirou-se numa passagem do romance A Rainha dos Cárceres da Grécia, de Osman Lins, para criar a obra que se tornou cartaz da VII Semana de Letras-96 e capa desta Revista. A passagem é a seguinte: "Titivillus, alcunha familiar entre os monges da Alta Idade Média, era o demônio da transcrição infiel: ocioso, instalava-se nas inscriptoria, induzindo a erro os copistas". A partir dessa referência, o artista criou um texto pictórico dialógico. 4 SUMÁRIO 6 DIALOGIA ENTRE ARTE E VIDA: A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADE DE MIKHAIL BAKHTIN Irene A. Machado 14 MODERNISMO: GERME OU SENTIMENTO EM IRRADIAÇÃO Paulo Sérgio Nolasco dos Santos 20 A SUBJETIVIDADE POSTA EM QUESTÃO POR NARRADORES E PERSONAGENS Maria Adélia Menegazzo 24 UM PARAÍSO IMAGINÁRIO OU A BICHARADA NO CIMENTO J. Genésio Fernandes 28 CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA: WALTER BENJAMIN PASSEIA PELO CENÁRIO MOSCOVITA Ronaldo Assunção 34 AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO: A FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO Marcelo Marinho 44 UMA LEITURA DE UMBERTO ECO Maria Emília Borges Daniel 52 DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO ‘‘DIABO’’ EM ‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’: UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICO Ana Maria P. Pires de Oliveira 5 O dogma da verossimilhança ainda é um critério vigoroso para a definição da estética como mimesis. Ao situar o objeto estético no contexto das experiências vivas estimuladas pela interação social, Bakhtin desenvolve um outro campo conceitual para refletir sobre a criação verbal. Em sua estética da respondibilidade a obra de arte não se desvincula da vida e do contexto cultural tampouco com eles se confunde. Arte não é vida, mas signo. Em torno dessas idéias se desenvolveu o assunto desse artigo. Palavras-chave: Dialogismo, estética da respondibilidade, criação verbal * The dogma of verisimilitude is yet a strict criterion for the definition of aesthetic as mimesis. By situating the aesthetic object in the context of live experience stimulated by the social interaction, Bakhtin develops another conceptual field to reflect about the verbal creation. In this aesthetics of responsibility the work of art does not separate itself from life or from the cultural context, nor do they mingle. Art is not life, but a sign. Around these ideas the development of this essay was built. Key-words: Dialogicity, aesthetics of responsibility, verbal creativity 6 Este texto é uma condensação da primeira parte do minicurso sobre a estética da criação verbal de M. Bakhtin, ocorrido durante a Semana de Letras da UFMS, Campo Grande, de 14 a 18 de outubro de 1996. ** Irene A. Machado é professora de Teoria Literária na Escola Técnica Federal de São Paulo. Doutora em Teoria Literária pela USP. DIALOGIA ENTRE ARTE E VIDA A ESTÉTICA DA RESPONDIBILIDADE DE MIKHAIL BAKHTIN* Irene A. Machado** O que é o estético? O conceito de estética Há mais de dois mil anos filósofos e interessados no estudo da arte e da criação em geral se fazem essa pergunta e ainda estamos longe de chegar a uma resposta definitiva. Certo de sua incapacidade de responder a essa questão de modo afirmativo, Sócrates arriscou uma resposta negativa: estética não é retórica. A dúvida socrática, contudo, não foi suficiente para impedir sistematizações como, por exemplo, o paradigma aristotélico que situa o estético no campo da mimesis. No diálogo Hipias maior, “Socrates se interroga sobre o que é o belo e chega à conclusão de que definir o princípio estético é uma tarefa enormemente complexa. Aristóteles parece contestálo nas primeiras linhas da Poética com a tese de que o que define todo fenômeno estético é a imitação. Desde então muitos acreditam ter resolvido essa questão. Nem Kant nem Bakhtin estão entre eles” 1. Onde então se situam as formulações que Bakhtin apresenta para as manifestações estéticas? Se as idéias de Bakhtin não são aritotélicas em que sentido elas são kantianas? Arrisquemos um percurso teórico rumo a respostas mais esclarecedoras. Sabemos que a palavra estética deriva do grego aisthesis cujo significado gravita em torno de sensação, sentido, sentir; quer dizer, diz respeito às manifestações da sensibilidade humana que dependem de impulsos internos e externos. “A raiz grega aisth, no verbo aisthanomai quer dizer sentir, não com o coração ou com os sentimentos, mas com os sentidos, redes de percepções físicas”2. Foi Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) quem entendeu estética como disciplina filosófica, ciência do belo ou filosofia da arte. Mas seu principal objetivo era entender a essência do belo, tal como seus antepassados gregos, Platão, Aristóteles, Plotino, que conservaram a tendência antiga de identificar o belo com o bom na unidade do real perfeito, subordinando o valor da beleza a valores extra-estéticos e, em especial, a entidades metafísicas. Devemos a Kant (Immanuel 1724-1804) a introdução do estudo da estética à luz da crítica do juízo3. Estética é juízo, e juízo de valor. Para Kant, pensamento é síntese de duas formas de conhecimento: a sensibilidade e a compreensão. A primeira diz respeito ao mundo das sensações fora da mente e a segunda, 1 Luis B. Almería, 1994: 57, nota 2. Barilli 1989: 2, cit. por Lúcia Santaella 1994: 11. 3 Estamos apresentando apenas pontos sumários de uma problemática complexa estudada com muito cuidado pelos autores cujas obras citamos em nossa bibliografia. 2 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. 7 ao núcleo conceitual da mente. O conceito (compreensão) existe na mente, mas ele pode ser usado ativamente para organizar as sensações fora da mente. A habilidade de pensar é habilidade de fazer julgamentos e requer ambas as formas de conhecimento. O belo, por sua vez, não é reconhecido objetivamente como um “valor absoluto”, uma vez que ele se relaciona só com o sujeito. Considerado o ponto de vista do sujeito, é possível chegar aos termos de uma conceituação, ainda que de modo precário. Se o estético resulta de um juízo produzido por uma vivência, estética pode ser definida como uma forma de dar corpo a experiências vivas. Somos assim introduzidos no contexto das formulações bakhtinianas. A estética da respondibilidade Diríamos que as formulações de Bakhtin sobre a estética se inserem na concepção geral de “ciência da percepção”, ou seja, como conhecimento através dos sentidos. Entenda-se: sentidos, como rede de percepções físicas ou sistema de idéias; percepção, como refração na ótica de uma unidade que agrega muitos pontos de vista. Com isso, a estética em Bakhtin não se desvincula do sujeito. Se a percepção é uma ação de um indivíduo em sua relação com os outros, a estética só pode ser percepção entre outros. Na lei da percepção humana, examina-se como um eu é levado a perceber a si próprio na categoria do outro. Contudo, não queremos dizer que as formulações estéticas de Bakhtin sejam orientadas totalmente pela doutrina de Kant. Há distinções significativas que precisam ser consideradas. Os valores a que se refere Bakhtin na sua estética geral filosófica não dizem respeito ao belo, ao feio, ao expressivo, ao verdadeiro e todos os demais valores que se consagraram como valores estéticos. Valor é sentido e, como tal, é construído; não é absoluto, não é dado, não é definitivo. A advertência contra o risco de tal formulação foi dada pelo próprio Bakhtin no final de seu livro sobre a estética da criação verbal, cujo ensaio é uma reflexão sobre a metodologia em ciências humanas: “não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento”4. Os valores dependem das relações entre os indivíduos no interior da cultura humana. Com isso, o objeto estético não está desvinculado das outras formas fundamentais da vida humana: o conhecimento e a ética. Ciência, ética e estética são inseparáveis. Para Bakhtin, a estética é juízo de valor inserido no conjunto da cultura humana. Foi pensada do ponto de 4 5 8 vista do sujeito e o juízo estético como produto da experiência. A estética de Bakhtin é a estética da respondibilidade fundada no diálogo: estética é um ato onde o sentido tem caráter de resposta. A estética da respondibilidade formulada por Bakhtin considera, antes de mais nada, o ato da construção das relações entre seres, ordenando as categorias eu/outro. Dessa noção, podemos esboçar algumas implicações específicas. 1. A estética insere-se na ação humana. Ser humano é significar; significar é articular valores. 2. A estética da respondibilidade fundada no diálogo mergulha na ação viva do fato respondível e responsável, atual e concreto. É o mundo das ações interconectadas num conjunto indissolúvel. 3. Se a estética é uma forma de dar corpo a experiências vivas, “a experiência estética é um tipo especial de experiência fundada num dos momentos que precisam de vida própria e exigem um sujeito contemplativo, isto é, que se situa fora dos limites da vida ativa”5. 4. A experiência estética cria uma visão de acabamento (daí ser corpo da experiência viva), não do interior, mas de um ponto de vista exterior. 5. O corpo estético ocupa um lugar na existência, ainda que o corpo não seja o lugar da existência. O corpo é o centro das ações. 6. O objeto estético surge a partir de um ponto de vista extraposto, fora dos limites da ação específica. Graças à extraposição o acabamento torna-se possível. 7. A extraposição se constrói pela lei geral da percepção: tudo que é percebido só pode ser percebido de um único ponto, dentro de uma estrutura que agrega muitos pontos de visão. 8. O ato perceptivo define-se como uma ação autoral: em que um eu é levado a perceber a si próprio na categoria do outro. 9. A possibilidade de perceber o outro faz da estética uma atividade de resposta. 10. O objeto estético entendido como resposta é material sensível revestido de sentido social, que deve ser entendido pela dinâmica das relações autoria/recepção; pelo conteúdo temático (fragmento da vida) e uma forma artística. Como se vê, estamos muito longe de adentrarmos numa discussão estética situada numa zona difusa do espírito. Cada vez mais, o topos de nossa questões se avizinha da consciência, lugar das tensas relações do homem com o mundo. Relações essas centralizadas por um núcleo que em Bakhtin é muito claro e preciso: as relações de sentido. A “unidade interior de sentido” é condição da criação de uma imagem de totalidade de partes em correlação. Essa é a noção que abre o estudo M.M. Bakhtin, 1992: 414. Luis B. Almería, 1994: 59. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. Arte e respondibilidade6. Por que · Estética da criação verbal Ao se distanciar (Autor e personagem na atividade estéa compreensão do que propicia a da metafísica, tica, 1920-24; O autor e o herói; O probleimagem da totalidade é tão imporma dos gêneros discursivos; O problema do tante? Porque o artista é um homem a estética de Bakhtin texto na lingüística, filologia e outras ciências que está na vida, mas o objeto criahumanas: ensaio de análise filosófica e Resaproxima-se da do não é a vida, como geralmente posta à pergunta feita pela revista Nov Mir) semiótica que defendem muitas teorias. Bakhtin · Discurso na vida e discurso na entende que, “quando o homem se poesia, assinado por Valentin considera o objeto encontra na arte, ele não está na Volochinov estético como veículo vida e vice-versa”. Com isso ele Nesses textos, existe uma preoentende que a relação entre arte e de comunicação. cupação teórica com o exame dos vida é uma relação responsiva: “eu procedimentos estéticos, dos fenôdevo responder com minha vida menos e correlações que comandam por aquilo que vivi e compreendi o ato da criação através da palana arte, para que tudo o que foi vivido e compreen- vra. Conceber o processo criativo como um ato signidido não permaneça sem ação na vida”7. O artista fica, antes de mais nada, situá-lo na dinâmica da não cria a vida, ele cria arte, cria signos, que devem ter, interatividade de sujeitos e consciências e não nos lipara o outro, significação. Não estamos no campo da mites da individualidade. A questão estética é igualmimesis nem da retórica aristotélica que não conside- mente uma questão ética: não se trata assim de encerrou a relação autor-receptor nem, conseqüentemente, a rar os procedimentos estéticos no campo dos princípidimensão subjetiva do gênero como visão de acabamento os construtivos mas, sobretudo, entendê-los como juldo objeto estético. gamento de valor. Tudo depende da posição que o arAo se distanciar da metafísica, a estética de Bakhtin tista criador exprime com relação ao mundo. E, como aproxima-se da semiótica que considera o objeto esté- afirma Bakhtin num de seus escritos, o lugar que o tico como veículo de comunicação. Mas trata-se de indivíduo e o artista ocupam no mundo é único, mas uma estética semiótica em que a concepção de signo ele nunca está sozinho. Nesse sentido, já podemos pernão se desgarra da teoria dos valores. Signo é aquilo ceber a importância das relações interativas no ato da que significa. criação que produz o objeto estético. Diríamos, assim, que o conceito-chave formulado por Bakhtin para a compreensão de todos os tipos de relações na obra de arte e no processo criativo é o conceito de extraposição. Para Bakhtin, somente na arte a vida pode ser representada, isto é, ser uma forma esteticaBakhtin insere seus estudos referentes aos proble- mente significante segundo o valor que anima o contexmas da criação através da palavra na disciplina que to das relações sociais. O artista está na vida e não fora ele denomina Estética Geral Filosófica, cujo objetivo é dela. Nada é criado fora da vida. Paradoxalmente, sua focalizar o objeto estético na unidade da cultura huma- criação não é vida, é um signo. Para criar o signo, o na, em sua relação com o ético e o cognitivo. Para artista constrói um ponto de vista que se projeta com Bakhtin, no domínio da cultura humana, o conhecimento, um certo distanciamento. O artista olha para a vida como a ética e a arte são regiões fronteiriças; não se estivesse fora dela. Constrói, assim, um ponto de viscorresponde, portanto, a um terreno fechado em suas ta extraposto. O que está fora, repetimos, é o ponto de possibilidades. Nele, tudo vive sobre fronteiras. Uma vista, não o sujeito-criador. Este está no mundo, ocupa vez que a forma estética orienta-se sobre um valor seu lugar e dele tem acesso a um campo de visão ao além do material, é impossível definir o objeto estético qual ninguém mais tem acesso. A partir desse ponto, fora da cultura humana. elabora o acabamento que fornece a obra de arte como Dentre os estudos de Bakhtin, aqueles que procura- um todo fechado. A noção de extraposição é fundaram dar um tratamento teórico aos problemas funda- mental para entender o conceito de posicionamento, de mentais da estética geral filosófica foram os trabalhos sentido, de dialogia cultural, de texto, de gênero, de escritos, com raras exceções, nos anos 20. São eles: enunciação, de signo e, principalmente, a noção de au· Arte e respondibilidade toria, um dos temas complexos da estética que merece · Acerca da filosofia do ato uma focalização isolada. Em torno desse conceito, · Problemas do conteúdo, do material e da forma na Bakhtin desenvolveu os principais tópicos de sua estéticriação literária ca da criação verbal, como: Textos e tópicos da estética da criação verbal 6 7 M.M. Bakhtin, “ Arte y responsabilidad”, 1989: 11-12. M. M. Bakhtin, “Arte y responsabilidad”, 1989: 11. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. 9 * objeto estético como resultado de uma visão extraposta * relação entre ética e estética na unidade da cultura humana * relação ética entre autor e personagem como determinação estética * o ser expressivo e falante como objeto das ciências humanas e o conceito de texto * a noção de ato cultural dialógico como texto * o texto como enunciação: fronteiras lingüísticas, antropológicas, filosóficas e literárias * a noção de gênero como memória criadora e, conseqüentemente, como categoria estética da cultura literária * revisão das formas da linguagem através dos gêneros e das atuações discursivas do cotidiano * o enunciado-enunciação como objeto da metalingüística * metalingüística e o caráter extralingüístico da palavra-discurso * o signo ideológico e os processos de representação e significação responsiva * a expressão como matéria plena de sentido ou como sentido materializado O objeto estético e suas fronteiras A transformação da experiência em signo Análise do conto O retrato Oval, de Edgar Allan Poe No conto O retrato oval de E.A. Poe, estão representados pontos cruciais da problemática relação arte/vida. Nele o objeto estético, criado a partir da vida, mostra não ser vida. Exatamente por desconhecer os mecanismos do efeito de real na totalidade da imagem, confunde arte com vida. Além disso, o espaço de criação, tomado como um espaço alheio à turbulência da vida mostra o quanto a inspiração é irresponsável. Para a compreensão das dimensões do objeto estético, segundo as formulações de Bakhtin, devemos compreender, na leitura do conto, o seguinte: * o efeito de real como decorrente da visão de totalidade própria da arte, não da vida * a criação não é vida, mas arte * como arte, a criação é signo que produz sentidos que se oferecem à leitura * compreensão da literatura como um sistema de signos graças às relações dinâmicas que comandam o processo criativo quando da passagem de uma dimensão a outra, ou seja, quando a experiência se transforma em atividade estética. No âmbito dessa abordagem, estamos considerando signo como um processo de representação em que os dados da experiência se transformam dialeticamente em 10 criação. Signo é, portanto, transformação da quantidade em qualidade. É essa passagem que nos permite ver, por exemplo, a representação e o objeto representado, a voz e a escritura, enfim, os homens e as idéias. Evidentemente, se estamos definindo o signo de acordo com as leis do processo dialético ¾ ainda que de forma simplificada, mas de uma simplificação necessária ¾ é porque nos interessa valorizar o processo de luta que, a um só tempo, reflete e refrata a experiência. É esse o caráter sígnico que define, para nós, a natureza da literatura que vamos examinar no conto, O retrato oval de Edgar Allan Poe, com o objetivo de levantar os problemas conceituais que estão implicados no estudo da natureza da literatura enquanto fenômeno estético. Para melhor compreender a dinâmica da representação enquanto signo, tal como foi elaborada por Poe, vamos destacar alguns momentos do conto. Inicialmente trata-se de uma narrativa em que um indivíduo ferido e seu criado procuram um abrigo. Essa seria a situação que acreditamos ser o suporte da representação. Mas, assim que o homem ferido se acomoda, delirando em febre, a profunda meia-noite surge e, por acaso, ao virar o candelabro, sua visão descobre o quadro e, em seguida, um livro com a narrativa da maravilha que se lhe ofereceu ao olhar. A partir daí a situação inicial é interrompida e somos conduzidos pela leitura do personagem: a história do pintor e de sua genial transformação da beleza física da mulher em sua obra-prima. A narrativa que o personagem ferido lê é a transformação da mulher, esposa dedicada, amorosa, em signo visual, o quadro que o ferido encontra, mas que nos é dada pela literatura, nossa leitura da leitura. Essa é a passagem que define o conto enquanto objeto estético, ou seja, enquanto signo. Os formalistas russos identificavam o arranjo estético a partir da organização da trama de motivos de uma determinada fábula fornecida pela experiência. A trama seria o conjunto a que chamamos signo. Estamos diante de um processo complexo de representação que vai ao encontro da própria natureza desconcertante da literatura como sistema simbólico. A narrativa inicial não se fecha e foi anulada pela história do quadro. Nos limites do conto literário ocorrem transformações em cadeia, visto que uma situação gera uma outra e, no final, ficamos diante de um quadro, não visual, mas de ordem estética, cultural, filosófica, dadas as questões que se abrem a partir da narrativa: as leis do processo criativo, os limites da vida e da arte, a morte como condição da vida, a situação e o jogo, os limites da representação, enfim, o mundo como fruto de uma leitura. Afinal, quem escreveu a história que lemos através dos olhos do ferido? Essa é uma questão grandiosa que nos obriga a voltar sempre a esse conto quando se trata de compreender a literatura como sistema de signos. O que lemos, é a leitura do personagem, ou Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. melhor, de uma mente febril. Essa é uma outra questão que diz respeito ao nosso assunto. Imaginário e leitura são instâncias igualmente inquietantes da natureza da literatura. A literatura, como todo signo, é algo que significa, que se oferece à leitura, à compreensão. Se, por um lado, essa é uma questão desconcertante, por outro, essa é uma potencialidade da literatura, da criação, da cultura humana que difere dos fenômenos naturais. Aprendemos com M. Bakhtin, que “quando estudamos o homem, buscamos e encontramos signos, signos em toda parte e tratamos de compreender sua significação”8. O imaginário não está fora desse processo, pelo contrário, desde La Fontaine o imaginário é espaço de criação. Evidentemente, tais questões são problemas complexos que vamos apenas deixar esboçados, visto que é necessário considerar o processo histórico que acreditamos determinar no processo de significação do signo e, conseqüentemente, da literatura. A dialética da representação no signo dialógico Se o homem está na vida ele não está na arte. Eis nossa primeira lição de estética segundo a abordagem de Bakhtin. São muitas as implicações teóricas e práticas que tal conceito nos apresenta. O objeto estético é, para Bakhtin, um processo de representação por isso a noção de imagem atravessa toda sua formulação. Arte é representação cujo objeto é uma imagem. Não se pode avançar nesse terreno sem antes compreender o conceito de signo dialógico formulado por V.N. Volochinov nos anos vinte, quando Bakhtin trabalhava teoricamente os problemas de estética geral filosófica. A representação é, para Volochinov, um processo de significação. Signo é definido assim, como algo que está no lugar de alguma coisa: entender o signo e, igualmente, o processo de representação como coisa é entender o signo como materialidade. Diz Volochinov: “Um signo não simplesmente existe como parte da realidade ¾ ele reflete e refrata uma outra realidade”9. Ou seja, o signo tem uma dimensão semiótica. Orientada pelos estudos dos teóricos russos, a professora e semioticista Lúcia Santaella entende que Volochinov “forneceu-nos do signo uma definição imagética capaz de esclarecer com precisão a duplicidade paradoxal do signo como algo que é, a um só tempo, ele mesmo e um outro”10. O signo é sempre uma resposta: “entender é uma resposta para um signo com signos”, diz Volochinov11. Para compreender a problemática da definição do signo, Lúcia Santaella recorre ao mito de Narciso que ela considera paradigmático, visto que nele não há a duplicação, a vida se confunde com a imagem num único fenômeno, a vida só existe na representação se deixar de existir na própria vida: na história do mito não há dialética, não há passagem de uma dimensão a outra. Não houve possibilidade de resposta, de interação entre as diferenças. “Narciso se esquece de si porque confunde sua imagem, um signo do eu, com o próprio eu. Aliena-se no signo, toma a imagem por realidade e desvanece como objeto, isto é, como realidade que, fora da imagem, determina a imagem. Perde-se de si por não perceber a fenda, a brecha da diferença entre o próprio eu, este que avança no fluxo da vida, e a imagem (representação) do eu”, entende Lúcia Santaella12. O mito de Narciso é o mito do não-signo; mas, ao mesmo tempo, aponta para uma definição imagética do processo de luta para a constituição do signo. Sem o concurso de grandezas distintas, não existe a mínima possibilidade de se constituir o signo ou, como afirma Volochinov: “Os signos emergem, assim, somente no processo da interação entre a consciência individual e outra. E a própria consciência individual é carregada de signos. A consciência torna-se consciência somente quando ela é preenchida com conteúdo ideológico (semiótico), conseqüentemente, somente no processo da interação social” 13. Tal processo possui um caráter responsivo, fundamental para o surgimento da obra de arte e para a definição do objeto estético. O grande desafio, porém, está no fato de o homem ser signo. Está no corpo do homem um dos signos mais caros a todo processo criativo que é a palavra. A presença da palavra é a força maior na definição do homos semioticus: “não há nada no animal que se assemelhe à maquinaria combinatória dos fonemas que rege a complexidade de organização das línguas humanas, nem há, em qualquer animal, a capacidade projetiva e simuladora do cérebro apta para estabelecer novas combinações e associações criadoras que, aliadas à sutilezas da mão e do corpo, permitem ao homem produzir linguagem para fora 8 M.M. Bakhtin, 1992: 341. N. Volochinov, Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1979:17. 10 Lúcia Santaella, “O signo à luz do espelho (uma releitura do mito de Narciso)”, 1996: 60-68. 11 idem, ibidem, p. 11. 12 Lúcia Santaella, 1996, cit. pp. 67-8. 13 V.N. Volochinov, cit., p. 20. 9 V. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. 11 do corpo e do cérebro, isto é, povoar o mundo de signos”14. Por isso, Volochinov define a palavra como “signo neutro”, com isso, quer dizer o seguinte: “cada espécie de material semiótico se destina a um determinado campo da criatividade ideológica. Cada campo possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos específicos para si próprio e inaplicáveis a outros campos. Nesses casos, o signo é criado para atender a uma função ideológica precisa da qual permanece inseparável. A palavra, contrariamente, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica”15. No signo literário se processa a dialética da representação que o define como objeto estético, ou seja, a dialogia entre arte e vida. O homem é signo, mas o signo literário não é o homem, mas sim a sua linguagem, ou melhor, a imagem de sua linguagem (a obraz iaziká, como podemos ler nos escritos de Bakhtin). A atividade estética: o ato estético e o ato cognitivo A singularidade da atividade estética reside na sua condição de signo: embora considere o mundo da experiência e faça dele a realidade pré-existente ao processo criativo, o objeto estético não se confunde com ele. A criação é um ato, mas o ato da atividade estética não se confunde com o ato da atividade cognitiva. Entender a diferença entre ato cognitivo e ato estético foi uma das tarefas de Bakhtin em sua estética geral e filosófica. No estudo “O problema do conteúdo, da forma e do material na atividade estética”, Bakhtin situa o campo das diferenças entre estética e conhecimento onde buscamos orientação para compreender a dialética da representação no signo. A relação entre a atividade estética e o mundo da realidade material é dinâmica, responsiva; ao passo que o ato de conhecimento relaciona-se de modo puramente negativo com a realidade pré-existente. Quer dizer, o ato cognitivo cria seu objeto pela primeira vez. A atividade estética é um fenômeno cultural e, enquanto tal, vive num sistematismo concreto: cada fenômeno cultural é concreto e sistemático na medida em que ocupa uma posição substancial qualquer em relação à realidade pré-existente de outras atitudes culturais e por isso mesmo participa da unidade da cultura prescrita. A estética se diferencia do conhecimento e do ato porque acolhe a realidade pré-existente ao conhecimento e ao ato. A atividade estética não cria uma realidade inteira- mente nova. Isso fica claro porque na arte nós sabemos tudo, nós lembramos de tudo, ao passo que no conhecimento não sabemos nada. Por isso na arte o elemento de novidade, originalidade, de imprevisto, de liberdade assume papel decisivo. O ato e o conhecimento são primordiais, criam o objeto pela primeira vez. O ato é vivo apenas pelo que ainda não existe: aqui tudo é novo desde o início, portanto, não há novidade, tudo é ex-origine por isso mesmo sem originalidade16. Por que o pintor, protagonista do conto de Edgar Allan Poe, fica horrorizado quando termina sua composição? Porque, embora ele afirme ter criado a própria vida, o que ele tem diante de si não é a vida. O estranhamento fica por conta da semelhança aparente da vida. Para Bakhtin, o conteúdo é a dimensão do conhecimento e da ética da ação humana indispensável à constituição do objeto estético que ao artista compete criar e à análise estética revelar. Diz Bakhtin, “em primeiro lugar a análise estética deve revelar a composição do conteúdo, imanente ao objeto estético, em nada saindo dos limites desse objeto, tal qual ele se realiza pela criação e pela composição”17. É essa capacidade de revelação que nos parece ser o motor criador do objeto estético. O que se entende por revelação? Entendemos que a revelação do objeto estético nasce da análise de seus processos construtivos, por isso Bakhtin centralizou sua discussão em torno das questões do gênero. A noção de gênero e a obra estética na unidade dialógica da cultura O processo de significação que situamos na natureza do signo literário nos leva à definição da literatura, e o objeto estético que ela pressupõe, em sua função histórica: a compreensão, bem como a significação, não acontece fora do espaço-tempo da cultura. A significação adquire um caráter cronotópico. Com isso queremos dizer o seguinte: a literatura é fenômeno complexo e multifacético elaborado pelas épocas remotas e vive um grande tempo, que extrapola os limites da contemporaneidade. Aprendemos com M. Bakhtin que a literatura é parte inalienável da cultura humana e não pode ser compreendida fora do contexto de toda a cultura de uma época dada. E aqui não podemos deixar de citar Flaubert: “uma obra só tem importância em virtude de sua eternidade, isto é, quanto mais ela representar a humanidade de todos os tempos, mas ela será bela”. “...eu es- 14 Lúcia Santaella, 1996, cit. p. 165. V.N. Volochinov, cit. p. 22. 16 M. Bakhtin, 1988, “O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”, pp. 33-4. 17 M. Bakhtin, 1988, cit. p. 40. 15 12 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 6-13, jan./jun., 1997. crevo não para o leitor de hoje, mas para todos os leitores que poderão vir, enquanto a língua viver. Minha mercadoria portanto não pode ser consumida agora, pois não é feita exclusivamente para meus contemporâneos. Meu serviço fica portanto indefinido e, em conseqüência, sem pagamento”18. A condição estética revela-se grandiosa quanto maior for sua capacidade de ser traduzida pelas épocas históricas, no grande tempo da cultura, como afirma Bakhtin. Situar o processo de significação dentro do grande tempo significa para nós definir a função histórica da literatura. Segundo o crítico A. Candido “...o ponto de vista histórico é um dos modos legítimos de se estudar literatura, pressupondo que as obras se articulam no tempo, de modo a se poder discernir uma certa determinação na maneira por que são produzidas e incorporadas no patrimônio de uma civilização”19 (A. Candido, 1975: 30). Antônio Candido coloca o tema como o elo de retomada pelas gerações sucessivas através do tempo. No sentido de situar a função histórica da literatura, tal como o formulou M. Bakhtin, é preciso considerar a noção de gênero. Para Bakhtin, o gênero é o elo de vinculação entre as obras, visto que, para ele, os gêneros, literários e discursivos, durante os séculos de sua existência, acumulam formas de visão e compreensão de determinados aspectos do mundo. A função histórica da literatura pode ser compreendida a partir dos gêneros e das visões de mundo ou temas que neles [nos gêneros] estão implicados na evolução cultural. E aqui voltamos ao conto de Poe. Como entender o conceito de função histórica a partir desse conto? Em primeiro lugar pelo fato de Poe recuperar temas e formas que são consideradas verdadeiros patri- mônios de nossa cultura. Ao situar a dialética da representação no confronto vida e morte, arte e vida, vida e eternidade, O retrato oval integra-se a um sistema de obras onde se inclui a questão da representação no confronto de Poe, em sua função histórica tanto da perspectiva do gênero como da perspectiva do tema, visto que dentro do gêneros estão formas de visão de mundo, sistemas de idéias e valores que não podem ser desconsiderados quando se trata de precisar a natureza da obra literária. Vejamos. Acaso a temática da dialética da representação da vida pela arte não estava presente na lenda que mobilizou a capacidade criativa de Goethe, T. Mann e outros? Também não é esse o tema de Oscar Wilde no romance O retrato de Dorian Gray que, por sua vez, nos leva ao mito de Narciso? Também não é como fábula que o personagem lê e oferece à nossa leitura a história do quadro ovalado? Na verdade, os temas são sistemas de idéias que os gêneros acumulam ao longo das épocas históricas colocando as culturas num confronto dialógico. A função histórica assim compreendida é animada pela dimensão paródica, quer dizer, as diferentes culturas não se fundem, nem se mescalm, mas ambas se enriquecem mutuamente. Entendemos assim que a função histórica da literatura é um impulso dialético do processo de evolução, entendido como luta (I. Tinianov). O processo de combinação e mistura dos gêneros é fundamental para se conhecer a natureza da literatura e o diálogo cultural determinado pela função histórica que se desenrola ao longo de sua existência. Esse é o procedimento através do qual a obra estética é considerada na unidade dialógica da cultura onde ética e estética jamais se separam. Bibliografia selecionada ALMERÍA, Luis B. “Ideología y estética en el pensamiento de Bajtín”. 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Key-words: Modernism, aesthetic values 14 * Paulo Sérgio Nolasco dos Santos é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada do CEUD da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Doutor em Literatura Comparada pela UFMG. MODERNISMO GERME OU SENTIMENTO EM IRRADIAÇÃO Paulo Sérgio Nolasco dos Santos* Sob a égide do processo criativo no contexto do mundo contemporâneo patenteia-se, não raramente, um sentimento de perplexidade a envolver o processo de renovação e revitalização por que passam, de um lado,as formas narracionais e, de outro, o próprio leitor de literatura. Explorando e confrontando os dois pólos - o criador e o ato de leitura - , ou tornando ambos centro de uma mesma problemática - o processo criativo - , assistimos a algo como uma ''paralisia'' no âmbito da literatura no modernismo. Apontando, como eixo de referência histórico-literário da literatura moderna, a obra do irlandês James Joyce com sua batalha travada no Ulisses e a mencionar, ainda, a empresa analítico-interpretativa de Marcel Proust em sua Recherche, a literatura começa a processar-se em termos de crise e metamorfose. Com isso quer-se dizer que, deixando de ocupar-se dos ''reveses da sorte, da boa ou da má fortuna'', ou ''do conflito das paixões, dos caracteres'', no dizer de André Gide, a literatura de nossos dias expõe-se a si mesma enquanto fascinada pelo ser da linguagem. Se é necessário determinar um ponto de partida do que se pode chamar de renovação na criação literária, isso visa a, antes de tudo, considerar com mais propriedade o que acontece a partir desse ponto, em termos de renovação das formas narracionais. Para tanto, é preciso por em relevância o próprio conceito de criação literária, ou antes, considerar com propriedade a renovação do processo criativo no advento do modernismo. 1 Na verdade, à medida que se estreita o foco de análise e se aumenta a pressão para identificar aquele acontecimento fulcral - a obra realmente importante para se buscar o annus morabili do modernismo - , pode-se cair numa posição extrema, só confirmada pela ousadia, considerando-se a divergência de opiniões ou mesmo de certezas que acabe num constrangimento pouco suportável e nada convincente. Nesse sentido, Malcolm Bradbury1 torna-se um dos críticos a que recorremos enfaticamente, quer seja por sua vasta e importante produção no que se refere às questões do modernismo ''stricto sensu'', quer seja, e de modo mais criterioso, pelo fato de o ensaísta adotar em sua crítica em método pluralista, ou seja, mais ''coerente com o relativismo e perspectivismo do modernismo''. Os textos de M. Bradbury, bem como os textos de outros críticos do modernismo que integram a coletânea Modernismo: Guia Geral (na maioria, professores que trabalham esse tema na Universidade de East Anglia) refletem uma sutil consciência de que a literatura em análise continua a ser desconcertante e, por isso, as discussões críticas sobre essa literatura devem ser vistas ainda em estágio embrionário. Haja vista que o que está em germe na reação da literatura, no fim do século passado, reação conhecida na França por simbolismo, é o complexo de um movimento que conhecemos por modernismo. O simbolismo - que despertou uma sensibilidade diretamente ligada à palavra e ao verso doadores de imagens cambiantes Cf. BRADBURY, McFARLANE. Modernismo: guia geral, editado em 1989; BRADBURY. O mundo moderno: dez grandes escritores, também de 1989 e BRADBURY. O romance americano moderno, de 1991. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997. 15 ( - Ó pântanos de Mim - jardim estagnado!...) - algumas vezes apressadamente considerado de puro hermetismo, em outras vezes louvado apoteoticamente, entretece fios muito estreitos com a poética modernista. Com efeito, o não compreender a estética simbolista constitui sério entrave para se compreender toda a literatura imaginativa, e, no bojo, as revoltas modernistas que se seguiram ao final do século. Deste ponto de vista, o simbolismo poderia ser visto como uma bola lançada de uma época à outra. Edmund Wilson2 estende-o ao longo de linhas tão amplas que é capaz de incluir os romances de Joyce e de Proust, as ininteligibilidades de Gertrud Stein e dos dadaístas, em sua ampla definição, que diz: ''O simbolismo pode ser definido como uma tentativa de comunicar, mediante meios cuidadosamente estudados - uma complicada associação de idéias, representada por uma mistura de metáforas - , os sentimentos pessoais e únicos.''3 Malcolm Bradbury, em ensaio dedicado ao nome e à natureza do modernismo,4 alertando para a natureza oblíqua desse movimento, dedicou especial atenção à difícil tarefa de situá-lo ou datá-lo com precisão. Faz notar o crítico o quanto as opiniões divergem dentre os demais especialistas. Entretanto, ao registrar a fala e a causa advogadas, a partir de interesses tão diversos e objetivos quase sempre diferentes, pôde ele oferecer uma síntese que permitiu fixar não o momento, mas a origem do modernismo. Assinala, ainda, que a face oposta do modernismo ''consiste em seu caráter internacional'' e que o próprio lexema ''moderno'' pode ser assim identificável à primeira vista. Se inúmeros são os ensaios de críticos que se debruçaram na tentativa de identificar o início do modernismo, resta uma concenso segundo o qual quem o busca deve procurá-lo nos primeiros trinta anos deste século, período em que, para A. Alvarez, encontrar-se-ão Pound, Eliot, Joyce e Kafka no epicentro da mudança5. Para Virginia Woolf, o ano de 1910 marca no mundo uma revolução nas idéias e na vida, pela enorme transformação cultural que se deu, num breve intervalo de tempo. No ensaio ''Mr. Bennet and Mrs. Brow'', Virginia Woolf faz observar: ''Em ou por volta de dezembro de 1910, a natureza humana mudou. (...) Todas as relações humanas se modificaram - entre patrões e empregados, maridos e mulheres, pais e filhos. E, quando as relações humanas mudam, há ao mesmo tempo uma mudança na religião, no comportamento, na política e na literatura.''6 Já em O Mundo Moderno, Malcolm Bradbury chama a atenção para o fato de 1922 ter sido, sem sombra de dúvidas, o ano de grande importância para o modernismo. Nesse ano T. S. Eliot publicou A Terra Estéril, James Joyce lançou Ulisses e Marcel Proust morreu. É desse mesmo ano a publicação do terceiro romance de Mrs. Woolf, O Quatro de Jacob, que, por ser a obra mais experimental que lançara até então, vai merecer da autora o juízo de que finalmente descobrira ''como começar (aos quarenta anos) a dizer algo com minha própria voz''.7 Com efeito, dois grandes eventos podem corroborar os acontecimentos do ano de 1922. Por um lado, foi justamente a criação da Hogart Press, editora de propriedade dos Woolfs, que publicou a edição britânica de A Terra Estéril, lançado já no mesmo ano nos Estados Unidos. Por outro, instalada e em plena atividade, essa editora, depois de publicar o livro de ensaios de Virginia Woolf intitulado O Leitor Comum e O Bosque Sagrado, de T. S. Eliot, publicou uma das obras mais importantes do modernismo, inicialmente um conto intitulado ''Mrs. Dalloway em Bond Street''. Neste conto já se encontra em germe a obra que vai consolidar-se mais tarde, sob o título de Mrs. Dalloway, projeto que ocuparia a mente de sua autora durante todo o ano de 1992. Neste rastreamento de acontecimentos decisivos, um marco irradiador do estado de efervescência das novas idéias culturais no modernismo desponta com a organização da famosa exposição pós-impressionista feita por Roger Fry na Grafton Gallery, ainda em 1910, e que se registra como evento do grupo de Bloomsbury. Muito já se falou sobre os importantes movimentos artísticos e das idéias fundamentais que o espírito da Bloomsbury defendia tenazmente para a criação literária. O ''grupo de Bloomsbury'', assim chamado, reunia artistas, críticos, jornalistas, escritores, filósofos; suas figuras centrais foram a própria Virginia Woolf, E. M. Forster, o biógrafo Litton Strachey, Clive Bell e John Maynard Keynes, o grande economista do século. O grupo de Bloomsbury notabilizou-se por seu caráter irônico e seu agnosticismo radical, porquanto seus integrantes não perdoavam nada, nem a si mesmos, e por suas atividades inovadoras, pode ser visto, ao mesmo tempo, ''como revolta contra o 'sistema' e como um novo 'sistema', principalmente mais para o final dos anos 20, quando (...) assumiu uma posição central na vida literária e artística, no mundo edito- 2 WILSON. O castelo de Axel. Ibidem. p. 23. 4 BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p. 23-42. 5 Para D.H. Lawrence parecerá que foi "em 1915 que o velho mundo se acabou", data da morte do rei Eduardo. Richard Ellmann, vai estender sua repercussão por todo o período eduardiano, sugerindo que "1900 é um ano mais apropriado e mais preciso do que o 1910 de Virginia Woolf", Cf. Id. Ibidem. 6 WOOLF. Character in Fiction, p. 422. Cf. também, WOOLF. Diário. Primeiro volume - 1915-1916, p. 213. 7 Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124. 3 16 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997. rial, na opinião crítica e na influência ral do modernismo, Malcolm Na delicada tarefa social''.8 Quanto ao que caracteriza o Bradbury, orientando-se por um node fixar o ponto ''espírito de Bloomsbury'', como se tável senso de prudência, alertou, convencionou denominar, voltarelogo na prefácio, para a imperiosa de intensidade das mos, no intuito de demonstrar o necessidade de tratar o modernismo atividades modernistas, questionamento que opera sobre a ficsob um método pluralista que, em si alguns críticos preferem mesmo, fosse ''bastante coerente ção moderna, relacionando-o à noção de realidade vista mais como uma com o relativismo e perspectivismo transferir tal foco questão estética e metafísica. do modernismo''. Com efeito, dianpara os anos Na delicada tarefa de fixar o ponte disso o que resta são diferentes to de intensidade das atividades moformas de abordar um tema, junto posteriores à Primeira dernistas, alguns críticos preferem com a consciência de que qualquer Grande Guerra. transferir tal foco de intensidade para intervenção nesse movimento de taos anos posteriores à Primeira Granmanha complexidade, qualquer corde Guerra. Do escritor e ensaísta Julio Cortázar pode-se te na série, qualquer seccionamento, violentaria o todo, colher um testemunho valioso quando enfatiza que a re- que tenta subsistir na complexidade e, nesta, encerra sua ação ao passadismo se estende pelas três primeiras dé- resistência. Trata-se, enfim, de percorrer um trajeto socadas do século. O século inicia-se sob o impacto da bre o qual sabe-se de antemão que, durante seu filosofia bergsoniana, cuja correspondência instantânea rastreamento, vai-se deparar com uma área de estudos se reflete na obra de Marcel Proust, o que levará Cortázar ''cuja demarcação é controversa'', justamente pelos dia indicar o período de 1910 a 1930 como sendo o versos cruzamentos que a pervagam. descortinar-se do esperado e requerido pelos romancisSe o modernismo pode ser definido pela ''derrubada tas que buscavam deliberadamente ''uma nova metafísica, das tradicionais fronteiras em questões literárias e cultunão já ingênua como a inicial, e uma gnosiologia, não já rais'', um de seus traços mais importantes, duas quesanalítica, mas de contato''.9 Com o soar do sino da nova tões parecem aí imbricar-se, cada uma com seu ramo filosofia bergsoniana e também com a de G. E. Moore próprio e alastrar-se, mas complementando-se naquele (filósofo de Cambridge que, naquela Universidade, in- traço definidor. fluenciou o círculo de amigos mais tarde conhecido como A primeira questão diz respeito ao seu caráter cosmoo Grupo de Bloomsbury), 1910 e 1930 será, para polita, de ressonância em escala cada vez mais universal, Cortázar, o grande período a ''conceder o primeiro plano favorecido pelos intercâmbios de um modo geral e tendo a uma atmosfera ou a uma orientação manifestamente como pano de fundo grandes conflitos mundiais como as irracional''.10 Isso se pode traduzir numa despreocupa- duas grandes guerras e o período de entreguerras; enfim, ção com os modelos e convenções, haja vista a consci- foi todo um contexto de irradiação e circulação de idéias e ência exacerbada de que os modelos não são imutáveis, costumes novos que acabaram por reduzir o globo à esatitude responsável pela grande abertura do modernismo cala do homem. Assim, a palavra ''moderno'' encontra rumo à série de pesquisas de conteúdo e de pesquisas de sua força quando associada a um sentimento específico e forma. A pesquisa formal representa para o modernis- tipicamente contemporâneo, a saber: mo a preocupação maior e a procura da expressão ade''a sensação historicista de que vivemos em tempos quada para dizer, sem nenhum preconceito vocabular, totalmente novos, de que a história contemporânea é a exatamente o que estava acontecendo com os sentimen- fonte de nossa significação, de que somos derivados não tos e com a vida íntima. do passado, mas da trama ou do ambiente circundante e Essas considerações preliminares acerca do nome e envolvente, de que a modernidade é uma consciência da natureza do modernismo apontam para um movimento nova, uma condição recente da mente humana - condique é, decerto, marcado por um caráter de contradi- ção que a arte moderna explorou, vivenciou e à qual ções, fruto da vontade, do espírito e do gosto por uma por vezes se opôs''.11 nova ordem. Tentar marcar o início de todo o élan que é Desta forma, o modernismo caracteriza-se sobretuo modernismo, resultaria em parcos frutos, só justificá- do sob o signo de um nome e o de uma corrente que veis pela obsessão e capricho pessoais. Em seu guia ge- atravessam as culturas ocidentais como um movimento 8 Cf. BRADBURY. Virginia Woolf, p. 197-124. CORTÁZAR. Situação do romance, p. 72. 10 Júlio Cortázar também registra as conquistas de Joyce e Proust, mas celebra as de Gide, D.H. Laurence, Kafka, William Faulkner. Faulkner que, buscando "a metafisica da guerra de 14 com olhos de alucinado", deslumbrara Cortázar e sua geração. Cortázar também menciona Thomas Mann, Fedin, Hermann Brach e Virginia Woolf. Esta blomsburyana que lhe parecerá a "flor perfeita desta árvore poética do romance, sua última Thule, a prova refinada de sua grandeza e também de sua fraqueza". Cf. Id. Ibidem. 11 BRADBURY, McFARLANE. O nome e a natureza do modernismo, p.16. 9 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997. 17 vigoroso e internacional. Sustentando para cada obra uma idéia de estrutura própria e de criação voltada para o seu caráter de linguagem enquanto representação, que passa a subsistir mais por seus ''constituintes autotélicos'' do que pelo referencial, o modernismo, enquanto movimento revolucionário, caracterizado por uma insatisfação radical para com o passado antigo, confirma efetivamente sua tendência cosmopolita. É ''um movimento de natureza internacional, marcado por um volume de idéias, formas e valores principais que se difundiram de país para país e veio a se converter na linha mestra da tradição ocidental''. Uma outra questão que se pode apresentar diz respeito à geografia do modernismo. O conceito de modernismo põe em aberto nuances de diferença de acordo com as metrópoles que lhe advogam a origem, ou as que lhe querem caracterizar sob a ótica de uma recepção peculiar, ou ainda, daquelas metrópoles que advogam para si ambos os atributos. Essa atitude se respalda na impertinência mesma de se tentar datar um movimento de expansão meteórica. Nesse sentido, observa M. Bradbury o quanto o conceito de modernismo prendeu a atenção de algumas cidades do modernismo, como Viena, Oslo, Zurique, e mesmo da Alemanha entre os anos de 1890 e 1891, obsessão atenuada noutras metrópoles. Na Inglaterra, por exemplo, registra-se a relativa indiferença pelo termo "moderno", que "raramente é usado em qualquer acepção programática". Como salientamos, nossa tentativa de caracterização do modernismo deparou-se com a vitalidade de um movimento de dificil delimitação. Falamos da geografia do modernismo no sentido da circulação dos ideiais modernistas no além-fronteiras de um país específico. No entanto, sob a perspectiva do modernismo brasileiro parece relevante traçar a ambiência de um movimento já marcado historicamente, pelo ano de 1922: data que nos remete à Semana de Arte Moderna. Ter ciência dos acontecimentos e do espírito renovador da Semana não significa desconhecer a envergadura de um movimento que, no Brasil, vinha sendo preparado antes de 22 e que continuou a sofrer evoluções ao longo daquele ano e até nossos dias. Vale dizer que os critérios estéticos que se colocavam em germe na Semana de 22 foram evoluindo cronologicamente. Não retomaríamos, aqui, a revisão dos diversos avatares do modernismo brasileiro. Revisão que, nitidamente, foi feita pela história literária, inclusive reconhecendo no modernismo o nosso movimento maior no sentido de fazer balanço do que é a realidade brasileira, imbuído que foi de uma orientação eminentemente crítica, de modo a substituir o falso e o superado pelo au- têntico e atual. Na ambiência do modernismo brasileiro é visível a intenção dos expoentes modernistas que se debateram entre uma cultura altamente europeizada e o desejo, a necessidade vicária, de dar forma e feição a um pensamento artístico que correspondesse à cultura nacional. Assim, é notável o fato desses mesmos expoentes, recém chegados da Europa, empenharam-se em re/ visitar o Brasil através das célebres viagens pelo interior, recuperando o elemento nacional que vai do folclore às estátuas do Aleijadinho e todo o Barroco mineiro12. Buscar as raízes da nacionalidade foi razão do grande projeto criador de Oswald e Mário de Andrade, que incorporaram à literatura o índio, o negro, e o imigrante. Nesse intento, a "rapsódia" Macunaíma, de Mário, de 1928, representa um dos maiores esforços já elaborados na construção daquele projeto inicial - o mapeamento do nacional -, cuja realização só se torna possível com o questionamento da linguagem literária que passa a assumir na própria ruptura do código - metalinguagem - o reflexo e a síntese de uma destruição que é então construção do nacional - da realidade. É preciso dizer que a indagação sobre a linguagem e a gramática não deixa de estar conectada aos propósitos maiores do movimento modernista lato sensu, e que Mário de Andrade, na célebre conferência O movimento modernista, traz uma síntese essencial: "O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética: a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência crítica nacional."13 Com efeito, há que se assinalar que o grande mérito do livro de Mário de Andrade, Macunaíma, está na subversão e reconstituição do material lingüistico. Ao tornar possível a convivência das inúmeras formas lingüísticas - produto de um país de dimensões continentais, de constrastes múltiplos - Macunaíma realiza uma síntese que abole a linguagem estritamente regionalista para desregionalizar o mais possível a criação. Eneida Maria de Souza ressalta que essa desregionalização corresponde à língua desgeografizada que busca, icônica e isomorficamente, mesclar no plano da invenção verbal o nacional e o estrangeiro - espécie de sincretismo, próprio do modernismo no sentido lato14. Assim articulado com o todo da vida nacional, Macunaíma elabora criticamente um jogo da escrita comandado por fragmentos de discursos e retalhos de textos que resultam numa obra representativa dos valores estéticos do modernismo apontados por M. Bradbury. Sublinhando o "direito à pesquisa estética", Mário de Andrade pôs em prospecção uma das marcas mais 12 Cf. BELLUZZO. Os surtos modernistas, p. 13-29. ANDRADE. O movimento modernista, citado por IGLÉSIAS. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional, p.7. 14 SOUZA. A pedra mágica do discurso. 13 18 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997. características do modernismo: o ethos lúdico dos modernos se afirma tanto no plano da forma quanto no do conteúdo. O jogo das formas e das técnicas substancia um projeto que leva à proliferação e à fragmentação das escolas e movimentos na frenética sucessão de ismos de vanguarda , sobretudo o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo que, na época, exerceram um considerável impacto no Brasil. Simultaneamente ao otimismo da forma, o modernismo brasileiro acentuou a natureza problemática da mímese.15 Pois, somente a partir da reflexão acerca das relações entre realidade e reapresentação, essas duas noções de base, é que se pode exercer a tomada de consciência ao nível de intervenção cultural - tarefa que vai ser assumida pelo modernismo brasileiro que, assim, conecta-se ao movimento moderno, em seu ideal mais amplo e de bases universais que já significava a problematização dos valores literários. É a desconfiança do ajuste entre representação e realidade que torna inevitável a crise de representação, sempre acoplada à crítica das articulações. Isso constitui o traço recorrente nos escritores modernistas brasileiros conscientes de que é sempre preciso adaptar o que se recebe à realidade. Foi essa consciência agudizada dos mecanismos ficcionais que levou os escritores Machado de Assis e Mário de Andrade a transformarem o cânon do romance, de tal forma que é com dificuldade que falamos de romance nesses casos. Machado, marcando o descompasso entre escritor e rea- lidade, já apontava , em seu tempo, uma desarticulação da linguagem literária que se volta para a elipse, litotes e paradoxos resgatados no humor e na descrença do escritor.16 A "rapsódia" de Mário de Andrade, elaborando a paródia da história brasileira, e querendo marcar os desajustamentos entre indivíduo e historia, torna complexas as articulações entre realidade e representação. Também os 163 fragmentos que compõem o livro Memórias Sentimentais de João Miramar, espécie de continuum Brasil-Europa-Brasil, acentuam sempre o princípio da composição como meio fundante da representação. Do que se acaba de expor, breve traço da ambiência do modernismo brasileiro, releva observar que um movimento tão significativo para a vida nacional - a Semana da Arte Moderna, com seus desdobramentos e articulações - requer uma abordagem pluralista, inclusive pelas avaliações e estudos ainda em desenvolvimento. Portanto, exige-se acuidade do analista que vive e participa de um movimento ao qual está ligado pelo fenômeno da pertença, que o sobreavisa do risco das sínteses e desaconselha totalizações. Ressalte-se , sobretudo, o caráter de acontecimento e de renovação desses movimentos - a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, e o Grupo de Bloomsbury, em Londres - que, por si sós, tiveram o mérito de defender a ferro e fogo os ideais do novo e da renovação, e que, com o trabalho decisivo de seus expoentes, mudou a direção de pelo menos uma parte do pensamento ocidental. Referências Bibliográficas BARBOSA, João Alexandre. A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras, 1990. 141p. Capítulo IV: “A modernidade do romance”, p. 119-131. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina/Editora Unesp, 1990. P.13-29: Os surtos modernistas. (Caderno de Cultura,1) BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 247p. P.119-137: Marcel Proust; 197-214: Virginia Woolf. BRADBURY, Malcolm, FLETCHER, John. (Org.). Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Segunda Parte. Capítulo 6: “O romance de introversão”, p. 322-339. BRADBURY, Malcolm, MCFARLANE, James. (Org.). Modernismo: guia geral. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 556p. Primeira Parte. Capítulo 1: “O nome e a natureza do modernismo”, p. 13-42; Capítulo 6: “O romance modernista”, p. 321-394. BRADBURY, Malcolm. O romance americano moderno. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 220p. BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno - dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 247p. p. 197-214: Virginia Woolf. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad., sel. org. Davi Arrigucci Junior. São Paulo: Perspectiva, 1974. 257p. Capítulo 17: “Do conto breve e seus arredores”, p. 227237; Capítulo 6: “Alguns aspectos do conto”, p. 147-163; Capítulo 3: “Situação do romance”, p. 61-83. IGLÉSIAS, Francisco. Modernismo: uma reverificação da inteligência nacional. (s.n.t.). (mimeogr.) MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: Vozes, 1980. Capítulo VI: “O modernismo brasileiro”, p. 122-134. SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1988. 135p. WILSON, Edmund. O castelo de Axel. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, (s.d.). 220p. WOOLE, Virginia. Diário. Segundo volume. 1927-1941. Trad. Maria José Jorge. Lisboa: Bertrand, 1987. 563p. WOOLE, Virginia. The essays of Virginia Woolf. Volume 3: 1919-1924. London. The Hogart Press. 1988. 551p. (ed. Andrew McNeillie). p. 420-438. Character in fiction. 15 Sobre a problemática realidade vs. representação, cf. BARBOSA. A modernidade do romance, p. 119-131 e MERQUIOR. O modernismo brasileiro, p. 122-134. 16 A importância da obra machadiana na configuração do modernismo brasileiro foi de tal impacto que a critica, atônita, em 1889, fazia observar: "Talvez daqui a mais de um século os literatos ainda discutam a que escola pertence. Machado de Assis". Cf. REVISTA VEJA, ano 20, n.37, p. 105, 20 nov. 1989. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 14-19, jan./jun., 1997. 19 Esse ensaio procura redefinir o lugar do sujeito ficcional a partir do questionamento da subjetividade por parte de narradores e personagens da literatura contemporrânea. Palavras-chave: Narrador, subjetividade, literatura contemporrânea In this essay I attempt to re-define the standing of the fictional character based on the questionning of contemporary literature's characters and narrators of the subjetivity. Key-words: Narrator, subjectivity; contemporary literature 20 * Texto apresentado durante o Seminário Arte e Subjetividade na UFMS, em 05.12.96. ** Maria Adélia Menegazzo é professora de Teoria da Literatura e de História da Arte do CCHS da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela UNESP de Assis. A SUBJETIVIDADE POSTA EM QUESTÃO POR NARRADORES E PERSONAGENS* Maria Adélia Menegazzo** O título desse pequeno ensaio revela de antemão ao menos dois limites: 1. iremos compreender a subjetividade do ponto de vista lingüístico, enquanto a capacidade do falante de se posicionar como sujeito; 2. o sujeito de que trataremos será sempre aquele ficcional ou ficcionalizado, que terá sua autoridade discursiva auto-questionada ou contestada por algum outro sujeito também ficcional. O questionamento da noção de sujeito e da subjetividade apresenta uma freqüência razoável na literatura e na teoria literária contemporâneas e as razões desse fato podem ir da esquizofrenia ao capitalismo multinacional, dependendo do olhar de quem tenta explicá-las. Mas sabemos que o respaldo da subjetividade narrativa é dado pelo ponto de vista ou foco-narrativo. E é este mecanismo que sofrerá ajustes e desajustes a partir do final do século XIX, mais propriamente a partir do romance Madame Bovary de Gustave Flaubert. As múltiplas posições do narrador de MB podem ser lidas não como uma negação do episódico, mas como uma argumentação em favor da objetividade narrativa1. Flaubert altera a representação literária ao acentuar a palavra enquanto material narrativo (e não mais meramente descritivo), introduzindo uma nova forma de apresentação do tempo ao multiplicar e sobrepor o ponto de vista (a famosa cena dos comícios agrícolas), eliminando ou deixando quase imperceptíveis as fronteiras entre o ideal e a realidade, além de quebrar a coerência e a função do narrador. 1 Flaubert dá ao leitor a oportunidade de se defrontar com a ambivalência do olhar narrativo, (e portanto com sujeitos ambivalentes) e com uma nova temporalidade racionalizada para reforçar a presença de um mundo ficcional. Assim, os múltiplos narradores de MB criam vazios no texto - porque não se sabe quem fala ou pensa, quem vê ou sonha - descrevendo minimamente, quase em silêncio (não podemos esquecer o desejo de um "livro sobre nada"), impressões visuais de superficie a partir das quais o leitor poderá olhar o que é apresentado como aparente exposição de fatos. A partir do modernismo, o desafio é aquele imposto na educação do gosto pelo mesmo. A arte encontra na auto-reflexidade uma das possibilidades de desestimular o leitor a procurar correspondências entre texto e realidade e de levá-lo a refletir sobre a realidade do texto. É este o recurso que será acentuado pela arte contemporânea. Assim, a auto-reflexividade da literatura atual não representa um novo paradigma, mas um modo de acentuar a provisoriedade dos modos de expressão, de romper as noções "naturais" do realismo factual, seus limites e possibilidades discursivas. O questionamento da subjetividade levado a efeito pela literatura contemporânea, desafia as noções tradicionais de ponto de vista, uma vez que já não se pode supor que o sujeito que olha e percebe seja alguém imbuído do propósito de produzir imagens e significados coerentes. Cf. LLOSA, Mario Vargas. A orgia perpétua. Flaubert e Madame Bovary. Trad. Remy Gorga, Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997. 21 Ítalo Calvino, por exemplo, utiliza recursos do próprio realismo para estruturar seus romances, ao mesmo tempo em que põe em evidência o caráter convencional desses recursos. O romance Se um viajante numa noite de inverno 2 é exemplar desse tipo de enunciação auto-reflexiva. Quando diz: Ocorreu-me a idéia de escrever um romance feito totalmente de inícios de romances. O protagonista poderia ser um Leitor que se vê continuamente interrompido. O Leitor adquire o novo romance A do autor Z. Mas o exemplar é defeituoso, contém exclusivamente o início... O Leitor retorna à livraria para trocar seu exemplar... (p. 239) Revela exatamente o que o romance irá apresentar como narrativa ao leitor. Calvino opta pelo desvio enquanto autor, narrador e leitor, levantando as possibilidades desses elementos se posicionarem dentro do texto literário. Mas o faz através do descentramento e da negação da semelhança, entendida como problematização das normas tradicionais da narrativa, por meio da desconstrução e/ou da superexposição dessas normas para serem quebradas e do olhar irônico sobre as teorias a esse respeito. (...) as frases continuam a se mover no indeterminado, no cinzento, em uma espécie de no man's land da experiência reduzida a seu mínimo denominador comum. Presta atenção: esta é certamente uma técnica para te seduzir sem que te dês conta. Uma armadilha. Ou talvez o autor esteja indeciso, como de resto tu mesmo, Leitor, não estás certo do que mais te agradaria ler: (...) (p.19) Através do processo auto-reflexivo, Calvino se aproxima do leitor expondo as possibilidades de ludibriá-lo. Se esse é um autor exemplar da literatura que questiona a enunciação totalizante, que vai da produção à recepção do texto literário, alguns escritores brasileiros contemporâneos também merecem ser referenciados: Silviano Santiago, Zulmira Ribeiro Tavares, Chico Buarque de Holanda, João Gilberto Noll e Sergio Sant'Anna, entre outros. A necessidade de ruptura com paradigmas totalizantes levou estes escritores à expansão da reflexão metadiscursiva, uma vez que há uma disseminação do provisório e do heterogêneo contaminando todas as tentativas organizadas de unificação e coerência, sejam elas formais ou temáticas, impossibilitando visões homogêneas do mundo ficcional, que poderiam atuar como elementos de dissolução da ficção. O que se percebe na obra desses autores brasileiros é um descentramento de valores no sujeito (narrador ou personagem) e um descentramento da individualidade na construção do espaço tempo da ficção. Isto não implica necessariamente ausência de sentido, mas a presença de uma lógica particular de cada discurso, de cada sujeito. A pluralidade dos olhares narrativos implica a recusa do absoluto e estabelece uma nova relação com o leitor, na percepção do recorte do mundo dado ficcionalmente. Mas essa ótica simultânea de narradores, personagens e mundos, não pressupõe uma convivência pacífica; é antes de tudo conflitual e fecunda. Conflito evidente no romance Stella Manhattan3 de Silviano Santiago, onde se apresenta um encontro entre o narrador e o leitor através de um recorte ensaístico incorporado ao romance sem qualquer explicação: COMEÇO: O NARRADOR. A certa altura, a disputa entre leitor e narrador chega ao máximo com o leitor afirmando: Você, com remorso, já está disposto a me salvar da morte, Vira-se para mim e diz que na verdade sou eu quem tem razão e que você realmente não gosta de narrativas autobiográficas. Ficção é fingimento blablablá, o poeta quem diria? é um fingidor. El poeta quaquaquaquá es un jodedor, eso si. A fucker. A motherfucker. (...) (p. 74) O narrador afasta desse modo qualquer tentativa de identificação biográfica, de favorecimento de experiências subjetivas. Esse diálogo entre narrador e leitor continuará intercalado por páginas do romance em processo de construção, páginas que vão sendo submetidas ao leitor por vontade do escritor ou por intromissão daquele que está o tempo todo lendo por trás dos ombros do narrador e que pode ainda afirmar: Você continua a rir de mim e eu pensando como são falsos os romances que só transmitem a descontinuidade da ação, mas nunca transmitem a descontinuidade da criação. (p.86) Demonstra, assim, ao leitor que o que é lido em seqüência não é construído na mesma ordem. Que o tempo da leitura é diferente do tempo da escritura que, por sua vez, é diferente do tempo da enunciação, embora todos estejam fartos de o saber. No ensaio "O narrador pós-moderno"4, Silviano Santiago afirma que "na pobreza da experiência de ambos se revela a importância do personagem na ficção contemporânea; narrador e leitor se definem como espectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona e seduz." (p.44) Narradores hesitantes, personagens difusos e, ao mesmo tempo, múltiplos, imagens que se filtram atra- 2 CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. Trad. Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 4 Em SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 3 22 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997. vés de recortes temporais e espasabe onde está, pois indaga "onde ciais, histórias não concluídas, são Nos romances é aqui?", nem quando as coisas alguns traços enunciados problemaacontecem: "por que o meu atracontemporâneos ticamente pela literatura contemposo diante desta duração?". Isto sigpós-modernistas, rânea que, auto-reflexiva, não tem nifica que a subjetividade, aparencomo objetivo negar as verdades da temente expressa no eu que naro sujeito que narra ficção e da realidade, mas sim ra, não se afirma, impedindo que ou é extremamente contestá-las de dentro. se refaçam percursos, porque reNa exposição do mundo pelo rosingular, ou é presenta seres suspensos no temmance tradicional, o leitor podia enpo e no espaço. Em O quieto aniescandalosamente contrar aquele olhar realista, minumal da esquina7, o narrador-perplural. cioso, já esquematizado, que não lhe sonagem pergunta: permitia qualquer dúvida sobre o De qualquer maneira, se eu tenespelho, identificação aparentementasse sanar o atraso, se virasse te incontestável do já visto, do que não permite ambia memória pelo avesso para reconstruir este güidades. No entanto, quando se defronta hoje com o tempo, quem iria avalizar a minha perícia? mundo ficcional, ele está obscenamente exposto em(p.52) bora não nitidamente visível. Investe-se no olhar A pergunta final reforça o jogo com o inesperado e como o sentido capaz de inventariar o visível, o já a ausência de regras na construção do sentido de uma visto, o ainda não visto. possível história pessoal. As narrativas de Noll têm a Assim, em O nome do bispo, de Zulmira Ribeiro propriedade de, ao mesmo tempo, propor percursos Tavares, o narrador trata de descobrir quem é o ou- de formação ou de busca de identidade para suas pertro para quem se fala? Se se tratasse de um narrador sonagens e de destruir estes mesmos percursos detecomum, o outro seria o leitor. Mas esse narrador é, ao riorando as imagens em sua materialidade, restando mesmo tempo, porta voz de uma personagem alta- ao leitor recortes sombrios, esgotados e irônicos em mente indecisa, que passa por situações constrange- seu significado sempre subtraído. Nada, nenhuma hisdoras e sempre inacabadas. Não é capaz de decidir tória se conclui. sozinha quem é o outro para quem deveria contar o Esses são alguns meios utilizados pela literatura que acontecera. contemporânea para redefinir o ponto de vista, ou olhar Problematizar o sujeito ficcional pode levar, então, narrativo que parte de um sujeito, aprofundando suas à indeterminação da voz que narra e dos papéis narra- possibilidades de ruptura com paradigmas anteriores, tivos. Imagine-se um romance que narra a história de quando a subjetividade limitava-se à presença aflitiva personagens criadas para representarem o papel de do Eu e sua relativa unidade. Nos romances contempersonagens que simulam situações reais. Metaficção porâneos pós-modernistas, o sujeito que narra ou é exao quadrado? Mas é o que acontece no romance Si- tremamente singular, mesmo quando indeterminado, ou mulacros5 de Sérgio Sant'Anna. é escandalosamente plural, ainda que centrado em um Ao contrário do que ocorre em Seis personagens único narrador. à procura de uma autor6, de Luigi Pirandello, as perO papel atribuído ao leitor - uma sombra por trás do sonagens simulacro revoltam-se contra seu autor, ma- narrador - permite que se acentue a desarrumação da tam-no e o enterram no fundo do quintal. Um romance onisciência, da onipotência e ubiqüidade do sujeito narque se apresenta como metaficção experimental, rativo, portanto, a desfocalização da subjetividade que ficcionalmente frustrada e também como uma refle- pode se apresentar super-dimensionada, multíplice, xão paródica sobre a "morte do autor", reafirmando a dirigida ou manipulada e, ainda, indeterminada ou hesiautoridade do eu que narra. tante. Já nos romances de João Gilberto Noll, ainda que O questionamento da subjetividade, enquanto reas personagens sejam os narradores, essa fusão não curso retórico da narrativa contemporânea, assume a implica identidade ou identificação do sujeito nar- problematização da ausência de paradigmas estruturativo. O narrador prefere ficar escondido, afirman- rais e temáticos da linguagem da arte, criando a nedo "aqui ninguém me vê". Mas ao mesmo tempo não cessidade de auto-consciência e reflexão. 5 SANT'ANNA, Sergio. Simulacros. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. PIRANDELLO, Luigi. Seis personagem à procura de um autor. Trad. Brutus Pedreira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. 7 NOLL, João Gilberto. O quieto animal da esquina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 6 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 20-23, jan./jun., 1997. 23 Este pequeno trabalho pretende ser uma primeira tentativa de leitura das grandes imagens de bichos, pintadas nas paredes dos prédios da cidade de Campo Grande nos últimos anos, e financiadas por empresas, bancos, e órgãos do governo estadual. Podem ser entendidas como um discurso ecológico promovido por aqueles que , há pouco tempo, não tinham a mínima simpatia pelo movimento ecológico? Onde está o referente desse “bicharéu” monumental? Palavras-chave: Campo Grande imaginário - ecologia * This small essay intends to be a first attemp to interpret the huge paintings of animals which have been appearing on the sides of different buildings in the city of Campo Grande in these recent years financed by Companies. Banks and State Agencies. Can they be understood as an ecological discourse promoted by those who, very recently, hadn't the slightest empathy with the ecological movements? Where is the reference to this "animalistic" monument? Keywords: Campo Grande imaginary - ecology 24 No momento em que este texto é publicado, as imagens de bichos da entrada da cidade de Campo Grande já não existem mais. Nas eleições de 96, os políticos encobriram-nas com imagens de campanha eleitoral. ** J. Genésio Fernandes é artista Plástico e prof.º de Teoria Literária do Depto Letras da UFMS. Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE e doutorando pela USP. UM PARAÍSO IMAGINÁRIO OU A BICHARADA NO CIMENTO* J. Genésio Fernandes* * Nos tempos atuais, não sei se para maior riqueza ou pobreza da produção acadêmica, não temos mais os mestres do pensamento, grandes intelectuais de referência de algumas décadas atrás, verdadeiras escolas, e poucas, que emprestavam segurança e rumo para aqueles que se dispunham ao estudo de determinado assunto. O que existe é um número enorme e disperso de estudiosos. Só o tempo e um trabalho futuro de apuração dirá o que foi mais produtivo. Na falta deles, e no bojo da crise atual de paradigmas, parece compreensível que a maioria das publicações e das teses universitárias sejam uma selva de citações, como que para compensar o vazio de segurança e rumo para pensar. “Já não se ousa dizer nada com convicção; e para dissimular as incertezas, as pessoas refugiam-se nos diversos graus de citação: já não falamos senão entre aspas” diz Todorov1. Talvez se possa encontrar aí explicação para o fato de que é bem mais comum encontrar estudiosos mais à vontade e em maior número dispostos a se debruçar sobre as produções culturais que já foram honradas com uma palavra alheia de prestígio na instituição literária ou nos domínios da disciplina. Nos cursos de letras, por exemplo, é muito maior o interesse por aquelas obras do passado que já mereceram o aval da crítica ou o selo das relações curriculares. Os alunos, e nós todos que também somos herdeiros desse tipo de ensino, aprendemos a nos sentir mais encorajados a opinar sobre aquilo que já conta com uma orientação de leitura, com o prestígio ou o reconhecimento da instituição literária. O procedimento é, quase sempre: primeiro ler os textos críticos sobre determina- I 1 2 da obra e, só depois, ler a obra mesma. Escrever sobre as peças teatrais apresentadas na cidade, sobre tal ou qual exposição de pintura ou sobre as obras e os fenômenos que vão surgindo a nossa porta, nem pensar! A prática leitora dos departamentos de letras não tem olhos para o que acontece no seu arredor, em sua própria região. Romper esses receios, cumprir nosso papel de leitores críticos no campo cultural mais restrito é, também, muito importante e pode ser caminho capaz de revigorar a prática docente de um curso de letras e de tornar atraentes as obras do passado. Bakhtin ocupou espaço nas duas últimas semanas de letras, mas nem mesmo vendo o inacabamento constitutivo de seus textos e de suas reflexões, nos encorajamos a produzir nossas próprias leituras, correndo os riscos de vê-las incompletas, inacabadas. Dirão, e bem, que falar é mais fácil. Assim, tentarei aqui praticar e, creiam, não sem os titubeios e certo desamparo daquele que se põe a falar daquelas produções humanas ainda em processo, aquelas que aqui e ali, numa esquina ou noutra, surpreendem o cotidiano do passante, a caminho de casa, da escola ou do serviço. Neste pequeno trabalho, e ainda em vias de desenvolvimento, tomei um assunto que nos diz respeito,que surgiu e ainda está em processo de constituição no cotidiano da vida da Cidade de Campo Grande: as imagens de bichos2 que encobrem a pele de cimento da cidade, competindo com a altura dos prédios, e que a maioria louva e justifica, crendo que elas significam ape- II Tzvetan Todorov in prefácio a Estética da Criação Verbal, de Bakhtin, Martins Fontes, 1992 Fernandes, José Genésio. Imagens de Bichos nos prédios da cidade de Campo Grande: fotografias e slides. Biblioteca particular. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997. 25 nas o gesto bom e bem intencionado de uma campanha ecológica. Sem poder contar com o conforto de uma palavra alheia que ampare o meu texto com algum aval ou contraponto, corro humildemente os risco, confortado apenas pelo fato de que estou tentando produzir sentido sobre objeto que habita o cotidiano da platéia e sobre o que ela pode, também, produzir leitura durante essa curta exposição3 . Isso posto, sigam um viajante. Para aquele que viaja pelo interior do Estado, o nome “Mato Grosso” não deixa de causar um certo malestar: não se vê mais nem mesmo mato fino. Milhares de hectares de terra pronta para o plantio mecânico ou transformados em pastagens estendem-se a perder de vista e, não raro, sem um pé de árvore, sem uma fonte de água. Na rodovia Campo Grande-Dourados, às margens do asfalto incandescente, um índio meio curvado para a estrada agita um papagainho maltrapilho empoleirado em um pedaço de pau, sem saber bem que trejeitos, que riso, que olhar poderia atrair um comprador motorizado. Do outro lado, três índias com o filho a tiracolo agitam os braços e antecipam festejos quando os carros diminuem a velocidade. Esse é o quadro: a paisagem devastada, os ídios sem rumo e, mais à frente, também à margem da rodovia os sem-terra em seus barracos cobertos de plásticos negros. Envolvendo tudo, um ar extremamente seco, um calor insuportável. Os jornais tecem comentários sobre o racionamento do fornecimento de água e anunciam os maiores índices de desmatamento e de queimadas. Tudo resultado de um processo de exploração da natureza que seguiu e segue à risca o pensamento de Francis Bacon, que orientou o processo de desenvolvimento técnico industrial do mundo e cujo objetivo era a libertação humana de sua indigência física, de seu estado econômico de escassez. Digo segue, porque o meu vizinho chegou III ontem do interior onde, desde janeiro de l991, tratores dos mais potentes, unidos por correntes enormes, fazem o vai-e-vem interminável de destruição irracional do resto das matas. Diante desse quadro, o viajante não deixa de experimentar o mal-estar do vazio semântico do nome do Estado e de slogans como, “tudo é um mato só”, “gigante pela própria natureza”, e “santuário ecológico mundial”, presentes em material de divulgação política e cultural da capital4. Onde está o referente desses discursos? Mas nem bem o viajante se refaz desse mal-estar, eis que topa com a cidade: se o interior não é um mato só, nem mato grosso e nem mesmo mato fino, os outdoors da entrada anunciam o contrário, que tudo é natureza pura, uma bicharada só, um paraíso só. Logo na entrada da cidade, uma onça pintada lambe suavemente um homem que lhe dá o rosto dentro das margens de um outdoor. Fora dessas margens, atrás e ao lado, a casa de vender toros de madeira de porte médio. Nesse contexto as imagens adquirem um tom de elegia. Tuiuius, antas, capivaras, jacarés e garças de vôos delicados seguem o viajante que chega à cidade pela avenida dupla de traçado técnico, racional, moderna. O imaginário, o mítico irrompe ali mesmo onde parece não haver mais lugar para ele5 . O viajante adentra a capital. No centro, o museu imaginário se completa: uma arara azul candidata ao Guinness Book parece querer desprender-se da pele de cimento do Exceler Plaza Hotel e pousar na árvore próxima. E pousaria, não fossem os argumentos presentes nos artifícios que a tecem, e que conspiram contra a possibilidade de seu real. A técnica hiper-realista apresenta-a como num close do seu todo, inviabiliza-a para a árvore real ali próxima, aponta a inexistência de seu referente ou mesmo estabelece a substituição deste. IV Esse imaginário multiplicouse nesses últimos anos na mesma proporção em que o movimento ecológico foi perdendo o vigor depois do boom que teve com a morte de lideres como Chico Mendes no Acre e Marçal de Souza no Mato Grosso do Sul, e na mesma proporção da onda do discurso da globalização. Financiado por bancos, por empresas e pelos postos go- V Arara Azul, foto de J. Genésio Fernandes: provavelmente a maior pintura de uma “Anodorhynchus hyacinthinus” do mundo. Veja reprodução colorida na última capa. 26 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997. vernamentais locais, esse discurso esse lance de pintura de uma topoO que mais temos nos icônico não se instaurou num vazio grafia imaginária: “Ressurge uma atiolhos é o que mais discursivo, como alguém que falasse tude de encantamento, desponta uma a partir do nada e para ninguém, e a nova sacralidade...” nos falta na vida. peso de ouro6 . Somente Adão mítico A beleza dos projetos e de todo Estaríamos na emitiu palavra num mundo virgem verdiscurso governamental que trata da caverna de Platão, balmente não dito. Esse enunciado questão ecológica, a construção de icônico, enunciado no sentido um parque das nações indígenas liindecisos, impotentes bakhtiniano, é produto da percepção gando a cidade ao Parque dos Podepara dizer se as que essas entidades tiveram do que vai res e a olimpíada indígena9, tudo isso no discurso do outro, das massas: a também configura para nós somensombras podem ter utopia de um mundo mais natureza, te a topografia imaginária de uma terum mundo? mas uma utopia na qual elas não mais ra mais natureza, paradisíaca, pois acreditam e da qual não querem lannão há convicção de que se possa çar mão.7 Assim, o oferecimento desreavê-la e, consequentemente, nesa topografia imaginária de encher os olhos vai de par nhuma ação nesse sentido. com o crescimento dos voyeurs. Para as empresas e para A metáfora dessa falta que não crê mais suprida o poder governamental, não há perigo em inflacionar os foi, para o colonizador europeu, o tipo de coleção coolhos dos citadinos, pois, inativos, se contentam em ver, nhecida como Gabinetes de Curiosidades e; para nós, é em buscar, em imagens e em ficção, aquilo que mais lhes o bicharéu empalhado do Museu Dom Bosco, coleção falta. E o que lhes falta parece cada dia mais distante. dos troféus de caça do caçador Jovani Magrin e cartão Essa utopia de voyeurs, na qual não se crê mais, mas de visita da capital10. Tal qual o colonizador, fomos da qual não se quer lançar mão, parece estar configura- espoliadores de nossa própria natureza e, nossa utopia da, também, nos textos de um Leonardo Boff. Lá uma em reavê-la é capaz apenas de nos levar a passeio por terra mais natureza como que sobe para as nuvens. Diz uma topografia imaginária em expansão: a das imagens ele. “Recusamo-nos a rebaixar à Terra a um conjunto de de uma natureza paradisíaca nos prédios, nos cartazes, recursos naturais ou a um reservatório físico-químico no museu, na tela dos pintores, nos cartões que circude matérias-primas. Ela possui uma identidade e autono- lam de mão em mão, nas grandes esculturas que tomia como um organismo extremamente dinâmico e com- mam as áreas de lazer, como aquelas da Cabeça de Boi. plexo. Ela fundamentalmente se apresenta como a Gran- Todos tecem, insistem nesse imaginário paradisíaco, de Mãe que nos nutre e nos carrega. É a grande genero- menos os artistas índios, Conceição dos Bugres, seu sa Pacha Mama (Grande Mãe) das culturas andinas ou filho Iltom Silva e o poeta Manoel de Barros, o que dá o um superorganismo vivo, a Gaia, da mitologia Grega e que pensar11. da moderna cosmologia. Queremos sentir a terra em priO que mais temos nos olhos é o que mais nos falta meira mão. Sentir o vento em nossa pele, mergulhar nas na vida. Estaríamos na caverna de Platão, indecisos, águas da montanha, penetrar na floresta virgem e captar impotentes para dizer se as sombras podem ter um as expressões da biodiversidade8.” E ele remata assim mundo? 3 Este texto foi apresentado na Semana de Letras-96 do Departamento de Letras da UFMS. Frases presentes em material de propaganda política e de divulgação de Instituições Culturais e Administrativas do Estado do Mato Grosso do Sul em 1984, 85 e 86. 5 Certeau, Michel de. A Cultura no Plural. São Paulo, Papirus, 1995. 6 Lembremos que, no tempo de Marçal de Souza e de Chico Mendes, as empresas e o governo estiveram sempre dispostos a dar fim às faixas e outdoors que veiculavam mensagens ecológicas - e hoje, em Campo Grande, são os bancos, as empresas privadas e os órgãos governamentais que financiam ou apoiam a cobertura da cidade com esse material. 7 Bakhtin diz que o discurso nasce sempre a partir de um outro discurso, de uma outra palavra, refletindo e refratando essa outra palavra. Não há discurso adâmico. Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1992. 8 Boff, Leonardo. Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres. São Paulo, Papirus, 1995. 9 Os governantes de Mato Grosso do Sul sobem e descem do poder, criticam-se mutuamente pelas suas obras, mas insistem todos na mesma tecla de uma terra só natureza. Um teve o cuidado de dar a entender que o poder é verde com a construção do Parque dos Poderes numa área muito bem conservada e que destoa dos campos devastados do resto do Estado. Outro inventou o Parque das Nações Indígenas como um elo de ligação entre a cidade e o Parque dos Poderes, uma espécie de cimento simbólico entre o cidadão branco e o poder governamental. O último, criticando a megalomania de seu antecessor, tentou mudar o nome do Parque das Nações Indígenas para Parque do Rio Prosa, mas, por fim, insistiu na mesma tecla de um Estado natureza pura: promoveu a Primeira Olimpíada Indígena e alardeou um convênio com franceses para promover a natureza. 10 Quase ninguém sabe, mas a bicharada empalhada do Museu Dom Bosco é troféu de caça de Giovani Magrin, um caçador de Goiânia. O lote de bichos empalhados foi adquirido pelo Museu Dom Bosco e pela Universidade Federal. 11 Os artistas plásticos do Mato Grosso do Sul, na sua maioria, insistem no tema de uma terra natureza plena, pintando uma bicharada em tons naturalistas, menos os artistas índios ou descendentes. Os bugrinhos da artista Conceição do Bugres, por exemplo, em nada se parecem com a temática e a linguagem praticada pelos demais artistas dedicados à exaltação de um paraíso imaginário. 4 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 24-27, jan./jun., 1997. 27 Este ensaio analisa determinados aspectos da cidade de Moscou dos anos 20, pós-revolução, pelo prisma do filósofo alemão Walter Benjamin. É possível depreender, através do olhar do filósofo-artista, os potenciais de uma nova cidade que se traduz em um novo imaginário urbano construído pelo leitor da cidade moderna. A leitura que faz Benjamin de Moscou dialoga criticamente com a sua própria prática intelectual que, mais que reproduzir mimeticamente o cenário em que flanea, o recria poeticamente, imaginariamente. Palavras-chave: Cidade, imaginário, subjetividade This essay analyses certain aspects of the city of Moscow during the twenties post-revolutionary period under a philosophical view of the German Walter Benjamin. It is possible to infer, through the point of view of the German philosopher and artist, the potential of a new city, which leads to a new imaginary urban environment constructed by the reader of the modern city. The interpretation Benjamin makes of Moscow interacts critically with his own intellectual practice which, more than just reproducing mimetically the scenario through which he drifts, recreates it poetically, imaginarily. Keywords: City, imaginary, subjectivity 28 * Ronaldo Assunção é professor de Literatura Latino-Americana e Espanhola do Depto de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestre em Teoria Literária e Literatura Brasileira pela UFSC. CIDADE REAL, CIDADE FICCIONALIZADA WALTER BENJAMIN PASSEIA PELO CENÁRIO MOSCOVITA Ronaldo Assunção* Todo artista, como assinala César Vallejo, é inevitavelmente um sujeito político. Assim, a literatura pode ser concebida como uma atividade crítica profundamente interligada com o contexto em que surge; como expressão cultural que tem um modo próprio de entender e expressar as mais complexas e simples relações de ser humano consigo mesmo, com os outros e com a natureza. Entre as infinitas questões alocadas pela literatura e a arte de modo geral, pode-se apontar uma que vem me desafiando há algum tempo. Refiro-me à questão da cidade moderna e suas representações que afloram no processo de escritura do artista. A cidade incere-se como o cenário por excelência da modernidade; o lugar de experiências inusitadas e centro de aventuras vertiginosas. Ao atuar não apenas enquanto espectador da cena citadina, mas também personagem da mesma, o artista busca traduzir, através da linguagem, a sua rede de sentidos, donde podemos conceber o cenário urbano moderno como um texto discursivo e aberto que permite a atuação do leitor num jogo duplo de escritura e leitura. Ler a cidade enquanto texto, e o texto sobre a cidade como ''o relato das formas de ver a cidade'', é a tentativa de aproximar-se mais da complexidade cultural que a 1 cidade moderna engendra. O desafio a que me proponho neste trabalho é o de buscar demarcar e entender os processos de construção de representações sobre e da cidade moderna a partir da experiência do filósofo/artista Walter Benjamin em Moscou, capital da revolução socialista e que tem sido um dos autores que mais tem contribuído para o debate em torno da modernidade e da cidade. Benjamin passeia pelo cenário moscovita entre dezembro de 1926 e janeiro de 1927. De sua viagem saiu o Diário de Moscou, livro fascinante e chave para se conhecer não só as suas impressões da Rússia de então, mas um período muito particular da sua vida, que surge despojada de qualquer tipo de censura por parte do autor. O texto nasce no instante da vivência, com riqueza de detalhes sobre seus problemas, angústias e emoções. Moscou aparece aqui e ali, ao estilo de Benjamin, fragmentariamente.1 De acordo com Gershom Scholem, os motivos que levaram Benjamin a Moscou são, num primeiro momento, afetivos, pois lá estava Asja Lacis, por quem o filósofo nutria um forte sentimento amoroso. Por outro lado também desejava conhecer de perto a situação russa e talvez decidir definitivamente seu ingresso no Partido Comunista Alemão. E, finalmente, para ter uma idéia da Num momento posterior, Benjamin sistematiza esta experiência em Moscou através de artigos escritos para revistas. Entre estes, encontra-se ''Moscou'', escrito logo após o seu retorno, em 1927, para ser publicada na revista alemã Die Kreatur. Esse artigo foi incluído no livro Rua de mão única, edição brasleira, em Obras escolhidas II. Trad. de Rubens R. T. Filho. São Paulo. Brasiliense. 1987. pp. 155187. Esse trabalho foi aludido pelo próprio Benjamin, em carta escrita a Sieafried Kracauer, em 23 de fevereiro de 1927, onde declara: ''tenho também a intenção de escrever uma síntese de Moscou. Porém, como costuma suceder tratando-se de mim, esta ficará fracionada em notas especialmente pequenas e díspares, e dependerá do leitor tirar o maior proveito''. Em: BENJAMIN, Walter. Diario de Moscú. (trad. esp.). Buenos Aires, Taurus. 1990. p. 160. No presente trabalho lançarei mão ora do Diário, ora de ''Moscou'' . Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997. 29 cidade de Moscou, como se vivia ''tudo se dispersa logo que busco O estilo arquitetônico nela e qual a sua ''fisionomia''.2 Evinomes. Tenho de ir-me embora... No da cidade dentemente esses três aspectos se princípio, não há nada a ver exceto cruzam e se confundem ao longo do neve.''4 A cidade brinca de escondecaracteriza-se pelas texto, mas é possível, no caso partiesconde, propondo, assim, um jogo numerosas casas de cular deste trabalho, ver como a leilúdico e inocente: ''logo com a cheum e dois andares. tura que Benjamin faz de Moscou degada se inicia a fase infantil. Deve-se termina a leitura que faz da revoluaprender novamente a andar sobre o Essas lhes dão ção e outros aspectos da política espesso regelo dessas ruas. A selva aparência de uma bolchevique, da arte, dos problemas de prédios é tão impenetrável que o que afetavam o mundo e de si próolhar só distingue aquilo que brilha cidade de hotelzinhos prio. deslumbrantemente.''5 Ler a cidade é de verão. Um dos primeiros aspectos do também deixar-se reeducar por ela, cenário moscovita a atrair o olhar de colocar em suspenso conceitos préBenjamin é a sua arquitetura: fixados. Neste jogo, a cidade desafia o visitante a enconO estilo arquitetônico da cidade se caracteriza pelas trar o seu ''rio'', o seu espírito. O processo de construnumerosas casas de um e de dois andares. Essas lhe dão ção textual de Benjamin se afasta, pouco a pouco, dos a aparência de uma cidade de hotelzinhos de verão moldes do ''realismo socialista'', que se afirmava na lite(...). Com freqüência se encontram pinceladas de cores ratura e arte de modo geral na Rússia. Seu olhar se contênues: vermelho principalmente: mas também há azul, funde com o cenário misterioso e feérico dessa cidade amarelo e (...) verde. As calçadas são surpreendente- milenar; cenário de uma nova experiência social e estétimente estreitas (...). Com muita freqüência se vêm cor- ca. Desse modo, o filósofo declara: dões diante das lojas estatais: para comprar manteiga e Antes de ter descoberto a real paisagem de Moscou, outros artigos é preciso fazer fila. (...) [Há] abundânde ter visto seu verdadeiro rio, antes de ter achado cia de pães e de outros tipos de bolos: pãezinhos de seus verdadeiros pátios, cada calçada já se transfortodos os tamanhos, rosquinhas e, nos cafés, tortas sunmou em mim num rio litigioso, cada prédio num situosas. Com banho de açúcar fazem construções ou flonal trigonométrico, cada uma de suas gigantescas resfantásticas.3 praças num lago. Só que cada passo é dado aqui em O olhar do passeante parte do geral, o estilo logradouros. E, então, no lugar que recebe um desses arquitetônico, o traçado das ruas, até se fixar nos detanomes, num piscar de olhos, a fantasia constrói em lhes; detalhes que são revelações de segredos, a ''cidatorno desse som um bairro inteiro que, ainda por muito de de hotelzinhos de verão'', coloridos. As imagens motempo, vai teimar contra a realidade posterior e nela bilizadas não se reduzem a meras descrições; estão, na se fincar quebradiço como muro de vidro. Nesses priverdade, carregadas de sentidos. São objetos alegórimeiros tempos a cidade tem ainda centenas de froncos que tramam com o seu leitor uma idéia de cidade teiras. No entanto, um belo dia, o portal, a igreja denunciando o seu ''imaginário social'', seu modo de que eram fronteiras de um lugar, de improviso, são ser e viver, a sua tradução. Pode-se dizer que a cidade meio. Agora, a cidade se transforma num labirinto se deixa falar pelo discurso do seu leitor, tem sua própara o principiante.6 pria voz; é o que Noé Jitrik chama de discurso da cidaBenjamin não lê a cidade na tentativa de expressar o de e não apenas sobre a cidade. A cidade se configura seu aspecto real, concreto. Fugindo da reprodução simcomo um mosaico que permite ao leitor, ao seu bel- ples e banal, o leitor atua como se pintasse um quadro prazer, dar significações infinitas, o que, em última aná- no qual constrói uma cidade ficcional, imaginária. O lise, significa ficcionar. Os edifícios coloridos, o ba- procedimento não é o de reproduzir mimeticamente, nho de açúcar, a neve, os mendigos, os vendedores mas o de construir imaginariamente, de modo que se ambulantes, etc., são elementos que configuram o ima- permita o acréscimo e subtração de elementos, de forginário do artista que trama com a cidade uma escrita ma dinâmica, cambiante, ''quebradiça como muro de possível. vidro'', e ao mesmo tempo poder a fantasia construir, Moscou é um cenário enigmático e árido. Benjamin, num piscar de olhos, ''um bairro inteiro''. Como indica como quem vai ao encontro de um desconhecido, traz Renato Cordeiro Gomes, ''ler a cidade é escrevê-la, não muitas expectativas. A primeira impressão é reveladora: reproduzí-la, mas construí-la, fazendo circular o jogo 2 3 4 5 6 SCHOLEM, Gershom. ''Prólogo''. Em: Diario de Moscú, cit., p.8. Diario de Moscú, cit., pp.23-24. BENJAMIN, Walter, ''Moscou''. Em: Obras escolhidas II, cit., p.156. Ibid., p. 157. Ibid., p. 157. 30 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997. das significações''.7 Nesse exercício estrutura e o detalhe em última anáMoscou vai, construtivo, dialógico, a cidade tem lise estão sempre carregados de hisseus códigos secretos, que para o tória.11 Dessa forma, o crítico retira pouco a pouco, artista são reveladores; são signos dos detalhes da vida cotidiana citatraduzindo-se e do inusitado e um desafio. Assim, o dina o valor dialético que está adorremodelando-se a viajante percebe que ''a cidade granmecido. Constrói, como acertadade se defende contra ele, se mascamente observou Willi Bolle (que, na partir do olhar do ra, foge, faz intrigas, seduz, até conesteira de Benjamin, depreende na filósofo-artista. fundir à exaustão seus círculos.'' 8 leitura deste os componentes de uma Seu traçado, suas ruas e habitantes narrativa feérica), ''um conto de fada Ela passa a o envolvem num jogo lúdico de separa cabeças dialéticas''.12 De modo confundir-se com ele. dução: que, em uma manhã de um dia qualAs ruas de Moscou são um caso à quer, ele descobre ''casinhas jamais parte: nelas a aldeia russa brinca vistas, com janelas lampejantes e de se esconder. Quando se atravessa qualquer um uma cerca em torno da estrada: brinquedos de madeira dos grandes portões - com freqüência podem ser fe- de Província de Vladimir.13 Ou vê, na dinâmica do cotichados com grades de ferro batido, mas nunca en- diano das ruas, as construções alegóricas dos vendedocontrei nenhum fechado - parece que se está no limi- res ambulantes: ar de uma provocação espaçosa. Lá se abre ampla e Gostaria de escrever sobre flores em Moscou, refeatraente, uma quinta ou uma aldeia, o solo é irregurindo-me não somente às heróicas rosas de Natal, lar, crianças andam de trenó.9 mas também às imensas malva-rosas das pupilas das Moscou vai, pouco a pouco, traduzindo-se e remodelâmpadas que os vendedores transportam pela cidalando-se a partir do olhar do filósofo-artista. Ela passa a de, orgulhosamente alçadas. E dos doces adornos de confundir-se com ele. A cidade é poetizada, ou, como açúcar das tortas. Ainda que haja também tortas que queria Borges, ''literaturizada'', fundindo-se com o eu líriparecem cornucópias e das que saem em trompa co na sua forma poética, nas suas imagens poéticas: triquitraques ou bombons envoltos em papel coloriPedestres ecoam entre carros e cavalos rebeldes. Longa do. Tortas em forma de lira. O confiteiro dos velhos série de trenós nos quais se despacha neve. Cavaleilivros juvenis parece sobreviver ainda em Moscou. ros solitários. Bandos mudos de corvos estão pousaSomente aqui se encontram figuras feitas exclusivados na neve. Os olhos estão infinitamente mais ocumente de açúcar fiado (...). Também teria que falar pados que os ouvidos. As cores proclamam o seu exde tudo o que o orvalho sugere aqui; dos lenços das tremo contra o fundo branco. O mais ínfimo trapo componesas, cujos bordados, costurados com lã azul, colorido cintila ao ar livre. Livros de figuras jazem reproduzem as rosetas de gelo das janelas. O invensobre a neve; chineses vendem artísticos leques de tário das ruas é inesgotável.14 papel e, ainda mais freqüentemente pipas na forma Benjamin não é mais o teórico da alegoria, mas o de exóticos peixes de águas profundas. Todos os dias próprio alegorista, mobilizando os objetos e atribuindose organizam festas infantis. Há vendedores com ces- lhes novos sentidos. tos cheios de brinquedos e pás; os carrinhos são amaAo ver os vendedores ambulantes como vendedores relos e vermelhos.10 de fantasias e sonhos, Benjamin desvela um novo imagiO ponto culminante do olhar de Benjamin está nos nário social e poético. Esse imaginário está determinado detalhes. Como ele mesmo escreveu, ''sem ao menos por fatores estranhos, diferentes dos de outras sociedauma compreensão intuitiva da vida do detalhe através da des. Mas o que há de novo nesse cenário? Que lições o estrutura, a inclinação pelo belo é um devaneio vazio. A artista retira desse plexo cultural? Creio ser possível in- 7 GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. Literatura e experiência urbana. Prefácio de Eneida Maria de Souza. Rio de Janeiro. Rocco. 1994; p. 57. 8 ''Moscou'', cit., p.157. 9 Ibid., pp. 181-182. 10 Ibid., p. 158. 11 BENJAMIN, Walter, Origem do drama barroco alemão. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo. Brasiliense. 1984. p.204. 12 BOLLE, Willi. ''Viagem a Moscou: o mito das revoluções''. Em: Revista da USP, nº 5. São Paulo, mar-abr-mai. 1990. p.129. Esse artigo foi incluído posteriormente no livro de Bolle. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São Paulo. EDUSP. 1994, cap. IV. O livro aprofunda, de forma exemplar, a leitura da cidade moderna pelo prisma de Benjamin. Un texto fundamental para o estudo em torno da modernidade e da cidade moderna, temas constantes no universo crítico de Benjamin. 13 ''Moscou'', cit., p.158. 14 Diario de Moscú, cit., p.76. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997. 31 ferir, a partir dessas leituras, que as Proust, ensaio sobre Goethe, cartas, Nos espaços onde o imagens mobilizadas do cenário leituras, debates, reflexões sobre seu controle estatal se faz moscovita remetem a uma convivênfuturo, etc.). cia social que, apesar de sua desartiO que é revelador, de fato, é ver presente tudo é culação, materializa-se a partir de como o movimento das ruas produz transitório. Em nome práticas culturais novas, predominanuma dinâmica profundamente criatido socialismo e do do as relações de liberdade, de autova para Benjamin. Este se atém a nomia e solidariedade. Essa organiobservar, por exemplo, um dos perprogresso desenfreado zação se articula fora de um centro sonagens freqüentes nesse cenário: perdem-se os institucional unificador. Ou seja, o os mendigos. Para o crítico, eles novo não surge de uma ordem constróem uma ''sábia organização'', potenciais criativos estabelecida, do consenso hegemôformam uma ''coorporação de moridas pessoas. nico, que determina o caminho a ser bundos''. ''Eis um mendigo que dá seguido. Nasce justamente das práinício a um choro baixo e persistente ticas alternativas, espontâneas, livres e criativas, deter- toda vez que dele se aproxima alguém de quem espera minando seu caráter experimental, destrutivo-construti- obter alguma coisa; esse choro se dirige a estrangeiros vo. Essa é a dialética que se manifesta na leitura de Ben- que não sabem russo. 17 O choro é o seu código jamin em Moscou, e desponta, para usar uma rica ex- lingüístico, um meio alternativo de comunicação que tem pressão de Rafael Gutiérrez Girardot, como ''un motor um único objetivo: fazer aflorar a piedade burguesa do purificador de la política y de la praxis política que como estrangeiro. Mas não são somente os mendigos os filhos tal pierde su fuerza cuando sigue el camino que indica.15 legítimos das ruas; juntam-se a eles os vagabundos, as Ainda que Benjamin esteja atento para o debate ideo- prostitutas, os vendedores. Fora da ordem estabelecida, lógico da época, não é aí que encontra um terreno fértil eles só encontram proteção e abrigo no seio da grande para a sua crítica. A esse respeito Willi Bolle observa que mãe, a cidade: ''enquanto na capital da URSS de1926/1927 as lideran''Sabem num tempo certo de um canto ao lado da ças políticas e intelectuais estão comprometidas com a estrada de certa loja onde lhes é pertinente se aqueluta pelo poder, pelo qual garimpam dia e noite (...), o cer por dez minutos; sabem onde podem ir buscar, em intelectual Walter Benjamin, em suas solitárias andanças determinado dia da semana, numa hora certa, crospelas ruas da cidade, não tem nada melhor a fazer do tas de pão, e onde existe vaga para dormir em tubulões que comprar tangerinas, nozes e doces para a mulher amontoados uns sobre os outros. Com centenas de que ama, ou escolher, com carinho, brinquedos artesanais esquemas e variantes transformam a miséria numa para o filho. Tal comportamento, a um passo do idílico e grande arte''.18 do subjetivismo total, tem algo de frágil e sublime que o Se o socialismo não havia ainda chegado às ruas, na transcende. Enquanto na cúpula do império socialista se sua forma oficial, esta, livre do controle direto daquele, planeja o futuro da humanidade, o protagonista e autor organiza-se a seu modo e de forma criativa. Em condo Diário de Moscou também toca no futuro, em sua traste, nos espaços onde o controle estatal se faz preforma mais imediata, concreta, palpável''.16 Bolle confir- sente, o processo é distinto. Ali tudo é transitório, de ma, de certa forma, o que vínhamos desenvolvendo até acordo com as novas funções que lhe são atribuídas. aqui, mas é importante não tomar a atitude de Benjamin Assim, em nome do socialismo e do progresso desencomo sendo uma espécie de cegueira amorosa que lhe freado, perdem-se os potenciais criativos e a subjetiviimpede ou dificulta interessar-se por outros problemas. dade das pessoas. ''O bolchevismo aboliu a vida privaAo contrário, a relação com Asja Lacis e seus passeios da. A natureza dos serviços públicos, a atividade política pelas ruas, museus, etc., são elementos que consti-tuem e a imprensa são tão poderosos que não sobra tempo um procedimentos de leitura profundamente relacionada para interesses que não confluam com elas.19 E compledentro de um contexto mais geral, pois Benjamin está ta no seu Diário, ''ser comunista num Estado sob o doem constante diálogo com artistas, políticos, amigos, mínio do proletariado supõe renunciar completamente à bem como com suas atividades intelectuais (tradução de independência pes-soal. O indivíduo, por assim dizer, 15 GUTIÉRREZ GIRARDOT, Rafael. ''César Vallejo y Walter Benjamin''. Em: Cuadernos Hispanoamericanos, nº 520. Madri, out. 1993. Instinto de Cooperación Iberoamericana. p.69. 16 ''Viagem a Moscou: o mito das revoluções'', cit., p.129. 17 ''Moscou'', cit., p.163. 18 Ibid., p.163. 19 Ibid, p.166. 32 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997. delega ao Partido a tarefa de organipermitiram ao crítico olhar para si zar a própria vida.20 Condição esta não Na Rússia somente os próprio e sua prática intelectual. De aceita por Benjamin e que o leva, enmodo que, ao falar de Moscou, está decididos podem ver. tre outras coisas, a não ingressar no falando de si e de sua cidade, como Ver não qual das Partido Comunista Alemão. O filósodeclara: fo questiona a viabilidade de levar adiPor meio de Moscou se aprende realidades é a melhor ante seu trabalho científico, que tem a ver Berlim mais rapidamente que mas qual se torna como base os estudos formais e a própria Moscou. Para quem remetafísicos, dentro de um sistema intrinsicamente gresse da Rússia, a cidade está como cujo materialismo científico é a base que recém-lavada. Não há sujeira, convergente com a de todo conhecimento. mas tampouco há neve. As ruas afiverdade? Para Rafael Gutiérrez Girarbot, guram-se-lhe na realidade tão Benjamin é um filósofo-poeta, defiinconsolavelmente limpas e varridas nido pelo próprio Benjamin como uma como os desenhos de Grosz. E tamconjugação ''Denkbilder'', isto é, ''pensamento-imagens'' bém a naturalidade de seus tipos lhe é mais evidente. ou ''pensamento em imagens'' e ''imagens em pensamenO que acontece com a imagem da cidade e das pesto''; que em definitivo são construções alegóricas. O fisoas não é diferente do que com as condições espirilósofo buscou articular essa noção com o marxismotuais: a nova ótica que desta se ganha é o produto leninismo, mas a união entre alusão e dogmatismo não mais incontestável de uma estada na Rússia - o que surtiu efeito positivo. se aprende é a observar e a julgar a Europa com o Não estranha, então, as críticas que faz aos intelecsaber consciente do que sucede na Rússia.22 tuais e artistas dentro da própria Rússia. Estes não se Para Benjamin, na Rússia somente os decididos poopõem a nada, estão do lado do poder, quando não são o dem ver. Ver não qual das realidades (a da Rússia ou próprio poder. ''O intelectual é - observa Benjamin - an- outra) é a melhor, mas ''qual das realidades se torna tes de mais nada, funcionário, trabalha no departamento intrinsecamente convergente com a verdade? Qual das de Censura, de Justiça, de Finanças, onde não cai em verdades se prepara para convergir intrinsecamente com decadência, sócio do trabalho - mas, na Rússia, isso sig- o real? Só é objetivo quem nesse ponto dá uma resposnifica sócio do poder. É membro da classe dominante. ta clara. Não perante seus contemporâneos (isso não é (...) Também no campo da produção intelectual ele se o mais importante). Mas perante os acontecimentos confessa afim com o pensamento da ditadura''.21 É pre- atuais (isso é decisivo). Só quem, na decisão, fez com ciso observar que a leitura crítica de Benjamin desvenda o mundo a sua paz dialética pode apreender o concrenão só as contradições que se gestavam no interior da to'' .23 Benjamin não só vê, como depreende os fatos cúpula revolucionária do Partido, mas, também, o cará- concretos que demarcaram a crise do seu tempo e a ter passageiro da própria revolução, retendo suas ener- sua condição de intelectual. Em Moscou, o filósofo alegias não no espaço privado, centralizador e hierarquizado, mão, com seu aguçado espírito crítico, faz um diagmas no espaço público, aberto e descentrado. A leitura nóstico bastante crítico da revolução socialista. Se por crítica que Benjamin faz da revolução, em 1927, a partir um lado comulga com o marxismo a necessidade de se de Moscou, confirma a idéia de que o filósofo pensa a construir uma nova sociedade socialista, por outro, descidade como pluralidade e a revolução como espetáculo; carta a interpretação marxista do processo histórico que a cidade como o cenário onde se ensaia um possível funde racionalismo linear e progressista com um promodo de ser e viver diferente, independente do fracasso cedimento centralizador e autoritário. ou do êxito em si do processo revolucionário. Nessa leitura dialética, o papel de Moscou como imaA experiência de Benjamin em Moscou propiciou, gem alegórica é inquestionável e decisório enquanto expetalvez como o fator mais fecundo, conhecer, mais do riência e amadurecimento de um filósofo inquieto e refique a própria Moscou e o socialismo, a si mesmo. As nado que alcança ver, na sobreposição de imagens, Berlim relações que mantém com intelectuais russos, com Asja em Moscou e nelas a si próprio e, em decorrência, a crise Lacis, com seu amigo Bernhard Reich e com Moscou, já latente dos paradigmas civilizatórios existentes. 20 Diario de Moscú, cit., p.94. ''Moscou'', cit., p.177. 22 Ibid., p.155. 23 Ibid., p.155. 21 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 28-33, jan./jun., 1997. 33 A fotografia de Sebastião Salgado é debitária, implícita ou explicitamente, da pintura renascentista e serve-se em profusão da ambigüidade, recurso próprio à poesia, no sentido literário do termo. Desta forma, sua fotografia não pode ser lida como simples registro do real, pois oferece ao leitor uma multiplicidade de leituras possíveis e grande número de referências intertextuais a serem decodificadas em situação de análise. Palavras-chave: Fotografia, intertexto, Sebastião Salgado The pictures taken by Sebastian Salgado owes much, implicitly as well as explicitly, to the renaissance painting. He resorts to the profusion of ambiguity in poetry itself. Thus, his pictures cannot be read simply as the registering of day to day for it supplies the reader with a multiplicity of possible understandings and a great number of intertextual references to be decodified in an analytical situation. Key-words: Photography, intertextuality , Sebastião Salgado 34 * Marcelo Marinho é licenciado em Letras Modernas e em Literatura Geral e Comparada pela Sorbonne Nouvelle; é mestre e doutorando em Literatura Geral e Comparada pela mesma universidade; é professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira na Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande. AMBIGÜIDADE, POÉTICA E INTERTEXTO A FOTOGRAFIA DE SEBASTIÃO SALGADO Marcelo Marinho* “Inúmeros traços poéticos relacionam-se não apenas com as Ciências da Linguagem, mas com a Teoria dos Signos em seu conjunto; em outros termos, com a semiologia (ou semiótica) geral”, afirma Jakobson1 . Ora, traços poéticos são aqueles que caracterizam a poesia como arte da linguagem (escrita ou não) exprimindo ou sugerindo idéias ou sentimentos através do ritmo, da harmonia e da imagem. Assim, a poesia pode se manifestar (e é essencial) em qualquer obra de arte (literatura, pintura, escultura, cinema, fotografia, etc.) e ligar-se-á, de maneira extremamente coesa, à linguagem conotativa e, por conseqüente, à ambigüidade. O conceito “poesia”, é notório, poderá igualmente designar certas propriedades de seres ou objetos que despertam no homem um estado poético (estado onírico ou de devaneio). Cumpre portanto buscar os traços poéticos na obra de Sebastião Salgado, hoje considerado como um dos maiores fotógrafos vivos do planeta. Em sua dimensão poética, esta fotografia não poderá ser submetida a uma qualquer prova de verdade. Ela não saberia oferecer-se como um simples registro da realidade, como propõem tantos e mais detratores da arte fotográfica, imagem unívoca, obediente a normas e hábitos, previsível, transparente, dotada de automatismo, buscando apenas e tão somente informação objetiva - características, como sabemos, da linguagem comum, não da linguagem poética -. Por esta razão, consideraremos como central o aspecto ficcional, imaginário, desconsiderando para tanto a dimensão documental da 1 2 imagem fotografada. Nesta perspectiva, lançaremos um olhar sobre a fotografia intitulada “Nômades atravessam o Lago Faguibin, ressecado”, composição assaz despojada e paradoxalmente repleta de elementos de reflexão sobre a arte fotográfica e o estatuto ontológico do homem. Para tanto, buscaremos inicialmente traços significativos na composição fotográfica (desde a escolha do suporte até o agenciamento das formas, luminosidade, cores e texturas), traços que instauram aquela “formesens” da qual fala Henri Meschonnic, e por cujo intermédio a obra de arte grava-se na memória, incorporase às experiências vividas pelo homem, ao contrário das informações jornalísticas, cujas pretensa objetividade, brevidade, univocidade ou clareza e, sobretudo, ausência de correlação, de solução de continuidade entre as informações, diminuem as chances de incorporação de acontecimentos exteriores à experiência pessoal do ser humano, pois o bombardeio de fatos não atinge a interioridade privada de quem os decodifica. Nesta perspectiva, chamaremos leitor-decodificador, ou apenas e tão somente leitor, ao destinatário da fotografia. Com vistas à decodificação da mensagem (no sentido lingüístico do termo), veremos com Jakobson que, “para ser operante, a mensagem requer inicialmente um contexto ao qual ela remete, (...) contexto passível de captação pelo destinatário, contexto que será ou verbal, ou suscetível de ser verbalizado.”2 Cumpre portanto, na seqüência, verbalizar o contexto de produção e leitura da fotografia analisada. Roman Jakobson, Essais de Linguistique Générale, p. 210. Ibid., p. 213. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. 35 Contudo, para retomar noções propostas por Jakobson, diremos que, considerado nosso objetivo de contribuir ao debate científico, nos situamos na vertente oposta àquela dos debates políticos, e, desta feita, não buscamos nem podemos buscar o consenso, assim como não podemos fazer recurso ao voto e ao veto, pois “o desacordo desvela antinomias e tensões no interior do campo estudado; ele é pretexto para novas explorações”3 , como escreve o lingüista. Visaremos, portanto, ter lançado, ao término de nossa análise, bases para novas explorações, chaves para novas e múltiplas leituras. Como sói ser em obras de superior valor estético, inúmeras são as referências (conscientes ou inconcientes) intertextuais trazidas a efeito nesta composição fotográfica. Assim, podemos inicialmente ver que, tal qual em composições pictóricas do período renascentista, os nômades retratados por Salgado trazem sobre si tecidos drapeados e esvoaçantes, soltos ao vento, tecidos apenas atados sobre o corpo e sem costuras, cujas dobras são sublinhadas por uma certa luminosidade diáfana, etérea. A título de ilustração, estas são características que poderemos observar nas reproduções em anexo, a saber, Nascimento de Vênus, de Botticelli (1444-1510), A Sagrada Família, de Michelângelo (1475-1564) e Madonna, de Rafael (1483-1520). Poucas não serão as semelhanças entre a Nômade de Salgado e certas Madonnas dos períodos medieval - aquelas de Cimabue (1240-1302) ou Giotto (1267-1337), por exemplo - e renascentista Michelangelo, Peruggino, Rafael, entre outros -. Assim, tal qual a Madonna de Rafael (ver reprodução), a Nômade traz consigo duas crianças (figura 2, personagens 2 e 3), em quem as dobras adiposas revertem-se em sulcos inter-ósseos, retratos inversos de rotundos, bem nutridos e quase arianos Cristo e São João em companhia da Virgem, africanos Cristo e São João esqueléticos e famintos, símbolos de um provável Cristo pouco louro e com olhos nada azuis ignorado pelos homens em sua manjedoura, local onde alimentam-se animais. Através do recurso à regra renascentista dos três terços (Le Nombre d’Or), Salgado acentua dois pontos simétricos em cuja direção será carreado o olhar: ombros descarnados e nus da mulher famélica, nádegas nuas e descarnadas da desnutrida criança, fato que realça o contraste entre as imagens aqui comparadas, que dá relevo a personagens angulosos e distantes das rotundidades daqueles levados à tela pelos pintores renascentistas - notese coincidentemente aqui a moldura circular da A Sagrada Família, de Michelângelo -. Por outro lado, 3 4 Ibid., p. 210. Georges Péninou, “Física e metafísica da imagem publicitária”, in Christian Metz, A Análise das imagens, Petrópolis, Vozes, 1973) 36 vemos que a famélica criança (figura 2, personagem 2) traz fechada sua mão, e nas representações sacras as mão encontram-se, na maior parte do casos, ostensivamente abertas, como para receber a graça ou misericórdia Divinas. Aqui, nada se espera. Nesta perspectiva, observaremos que as mãos dos outros personagens encontram-se escondidas, ou pendem inertes rumo ao solo. Este mesmo pequeno personagem (nº 2) esconde seu rosto e faz pensar no Inferno da Capela Sistina, pintado por Michelângelo; igualmente, o pequeno leva seus olhos fechados em sugestão de desamparo, de recusa à situação vivida, ao momento atravessado. Ao fundo, na pintura de Michelângelo, A Sagrada Família, vemos anjos guardiões desnudos cujas figuras, em Salgado, serão substituídas pelos garota e garotos semi-desnudos (figura 2, personagens 4, 5 e 6), Nômades atravessam o lago Faguibin, ressecado. Mali, 1985. Foto de Sebastião Salgado. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. anjos esgotados e vencidos pelos (1710-1736) ou Anton DvoÍák Como as composições reveses, seres que, entretanto, per(1841-1904), entre outros - diante renascentistas, manecem anjos, posto que, tal qual das agruras sofridas por seu rebenvige no simbolismo do imaginário to, mas também diante daquelas soos nômades de cristão, conduzem e protegem a cafridas por si mesma. Salgado trazem minhada deste grupo de nômades. As espaldas voltadas ao públitecidos soltos ao vento Ademais, na vertente oposta às conco podem fazer emergir as noções vencionais Madonnas medievais ou propostas por G. Péninou em recom luminosidade renascentistas apresentadas frontallação à fotografia, notadamente pudiáfana. mente ao espectador-leitor, a blicitária. Péninou afirma que “se Madonna de Salgado é mãe que, os olhos baixam, fixam um detalhe como seus anjos protetores, volta as do objeto [anunciado em publicidaespaldas ao público, busca retirar-se, escapar ao olhar de] ou fogem, oblíquos, para longe, a mensagem humano. É mãe que está a meio termo de tornar-se conativa se apaga”4 Ora, nesta fotografia de SebasPietà, figura que traz à cena o tema cristão da mãe tião Salgado não há olhar em direção ao espectador, desamparada (stabat mater lacrimosa, dolorosa) logo aplaina-se a função conativa, cuja etimologia (latema carreado à expressão musical por Pergolese tim conatio, tentativa, esforço) indica impulsão no sen- Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. 37 tido de determinar um ato, um esforço, tendência consciente para atuar. Ainda uma vez, lembremos das mãos fechadas ou braços pendentes das crianças retratadas, símbolos de uma total desesperança na providência humana ou divina. Nesta perspectiva, pensemos naqueles intrigantes personagens das pinturas de Nicolas Poussin (15941665) que, a partir de um ponto qualquer do quadro, contemplam por vezes, diretamente e em posição frontal, o lugar onde deverá situar-se o espectador, como a chamá-lo a participar da situação representada, a completar o quadro, obra aberta, situação diametralmente oposta àquela dos nômades no Lago Faguibin. Esta fotografia de Salgado pode igualmente ser vista como reconstrução às avessas do célebre Nascimento de Vênus, de Botticelli (1444-1510), retrato inverso onde esvai-se o elemento líquido, como indica a legenda, onde encontra-se ausente a água, símbolo de locus amoenus, de alegria do retorno ao aprazível líquido uterino. Em Salgado, não haverá ninfa primavera, com sua veste ormamentada de flores e seu manto protetor em tons pastel; tampouco haverá vegetação à espera desta desidratada Vênus africana. Ademais, esta Vênus caminha da direita para a esquerda, sentido contrário àquele indicado pelo movimento esboçado pela Vênus de Botticelli, cuja perna direita avança sobre a esquerda como se fosse iniciar um movimento na direção da margem direita da composição. Observe-se ainda que, coincidentemente, a nascente Vênus e sua antípoda Nômade trajando o escurecido manto da Morte - símbolo do embate entre Eros e Tanatos, pulsões de vida e morte - ocupam a mesma posição na mise en page destas composições respectivamente pictórica e fotográfica, cujas estruturas em pirâmide têm como vértice o ápice das cabeças das figuras centrais das situações representadas (figuras 1 e 3). Este embate entre Eros (Vênus) e Tanatos simboliza as pulsões bipolares que regem a caminhada do ser humano, e da comparação entre a Vênus de Botticelli e a Nômade de Salgado poderemos abstrair pares antinômicos tais como alto x baixo; miséria x riqueza; vida x morte; cerimônia de vida (festa) x cerimônia de morte (féretro e sepultamento); júbilo x dor; dinamismo x estatismo. Não obstante, notemos que a composição piramidal é moeda corrente entre artistas plásticos como Fra 38 Figura 1 Angelico (1400-1455), Leonardo Da Vinci (1452-1519), Rafael (1483-1520), entre tantos outros, e nela podemos observar a presença, em termos implícitos, da Santíssima Trindade. Na composição do fotógrafo brasileiro, os limites do manto, a inclinação e o alto da cabeça da mulher adulta, o olhar da garota e o alinhamento das cabeças do garoto e da garota (figura 2, personagens 1, 4 e 5) completam a pirâmide. Este é também um triângulo que aponta para o céu e que traz em si a oposição entre alto e baixo, com suas conotações valorativas antropomórficas (os pés, plano inferior, em oposição à inteligência, plano superior). Igualmente, poderemos observar uma segunda pirâmide, reduzida, contudo, à sua metade, e ligeiramente inclinada, tal como poderíamos perceber uma eventual pirâmide que se deslocasse com velocidade relativamente alta (figura 1), imagem também presente em Botticelli. Ambas as Vênus - a da vida e a da morte - oferecem a mesma elegância em seu delgado movimento ondulante. Entretanto, as ondulantes madeixas ruivas de Vênus de Boticelli transformam-se, nas mãos de Salgado, em bem sólidas e fixas tranças negras, tranças às quais o sopro do Zéfiro do quadro inicial não conseguirá dar movimento. Igualmente, o Zéfiro de Botticelli sopra no sentido sugerido pelo movimento de Vênus, movimento que é favorecido pelo vigor das forças eólicas; por sua vez, a descarnada Vênus de Salgado deve ainda, ademais de seus reveses, enfrentar vento contrário a seu movimento, como observamos no balançar de suas vestes. As indicações étnica (vestuário, pigmentação da pele, cor dos cabelos) e geográfica efetuadas por Salgado realçam a contradição entre o padrão de vida de certas camadas da população do planeta - simbolizadas pelo Museu do Ofício, em Florença, onde enconPapéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. tra-se a Vênus em meio a formidável acervo renascentista - e o padrão de outras totalmente desmunidas e desamparadas, como este grupo da África do oeste. Os primeiros, aqueles que abandonam (espectadores impassíveis), estão assim sugeridos nestas imagens que podemos ler como referências à cultura ocidental (aqui entendida como cultura dos países industrializados). As altas formas de abstração atingidas por estas sociedades do Norte (e colocadas em exercício nesta composição fotográfica) somente através das lentes de um poeta da imagem como Sebastião Salgado poderão dar expressão (e contradição) à realidade cotidiana de sociedades inteiras que vivem, ao Sul, à margem das conquistas materiais e intelectu- Figura 2 ais logradas em um planeta que, afinal, a todos pertence. A função conativa eliminada pela ausência do olhar em direção ao espectador é assim recuperada através de um jogo especular que traz à tona a imagem do espectador diante de si mesmo, diante de suas referências culturais transmutadas em pálido quadro do oeste africano. Por outro lado, podemos ver, pelo descentramento temático encontrado na fotografia de Sebastião Salgado, a modernidade anunciada na literatura por Guillaume Apollinaire (1880-1918) e Manuel Bandeira (1886-1968), levada a efeito na fotografia de Robert Doisneau (nascido em 1912) e Henri Cartier-Bresson (nascido em 1908), temática que pode ser lida como transposição intertextual daquele Enterrement à Ornans, de Gustave Courbet (1819-1877), que tanto chocou o público francês pelo tema realista e pela inusitada extração social dos personagens. Na mesma perspectiva, a fotografia de cunho social exclusivamente em preto e branco de Salgado pode ser lida como sugestão de um certo passadismo, de uma certa recusa a um presente indigno de seres humanos, retrato sobre papel fotográfico daquela “littérature engagée” preconizada por Sartre5. Teríamos portanto uma reversão, em termos de compromisso social, do tema cristão da caminhada (Maria e José, o bom Samaritano), da peregrinação, procissão sem imagens, sem ídolos, sem venerações, tema que pode fazer pensar também naqueles retirantes do nordeste brasileiro e, por esta vertente, relacionar-se, sob uma óptica intertextual, com a poesia de João Cabral de Mello 5 Figura 3 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. Régis Debray declara: “devemos a Salgado a reconciliação do estético com a militância” (Veja, 12/03/97, p. 80). 39 Neto e inúmeras outras manifestaanalisar o quadro Paysage avec un ções da cultura brasileira. homme tué par un serpent, de Incontáveis são, portanto, os eleNicolas Poussin, L. Marin observa, Incontáveis mentos conduzindo a uma leitura a partir de leituras em aparência consão os elementos múltipla e ambígua desta fotogratraditórias propostas por Fénelon, conduzindo a fia. Entre as questões diretamente Félibien e pelo autor de um catáloacessíveis e ostensivamente mais go, que a superposição destas leituuma leitura múltipla abertas, poderíamos sublinhar: a ras distintas - unicamente possíveis e ambígua da mulher leva as crianças (personaem função da ambigüidade, da gens 2 e 3) pelas mãos ou estas a dualidade existente na representafotografia. seguem por si próprias, abandonação de Poussin - “libera um comedas à própria sorte? A garota (perço de sentido” 7 , e, ademais, sonagem 4) ri ou franze o rosto? Se “dualidade que é o sentido e não franze o rosto, seria por efeito da variação sobre um tema oculto”; em ação do vento ou pela predominância da luz outros termos, a dualidade seria a chave de acesso ao esbranquiçada? Qual a posição da fonte de luz? A mu- “conjunto aberto das leituras possíveis”, para retomar lher encontra-se grávida ou seu manto está abaulado palavras do crítico8 que fazem eco à noção proposta pela ação do vento? A criança (personagem 2) chora por W.H. Auden. ou protege-se do vento e da areia? Qual é o objeto Em que pese a ambigüidade presente em inúmeros carregado pela mulher? Este objeto encontra-se à mão elementos da foto, é patente o estado de sofrimento e ou a tiracolo? A garota (personagem 4) traz um galho privação em que encontram-se os personagens, que caà mão, o galho encontra-se cravado no solo ou trata- minham olhando para o chão, cabisbaixos, pensativos. se de um pedaço de tecido de sua roupa? Qual é a O olhar alcança apenas e tão somente o espaço definiidade aproximada das crianças? Os laços que os unem do pelo próximo passo, feito que sublinha uma certa ausão de parentesco ou de amizade? O percurso é de ida sência de perpectivas. Assim, caminham como autôou de retorno? matos, abúlicos, indiferentes à própria sorte, sem destiNesta perspectiva, podemos ver que a luz provém no seguro, pois nada há no horizonte da paisagem retranão se sabe bem de onde, pois o sombreamento do tada. Nesta perspectiva, torna-se impensável saber, a vestuário da mulher parece indicar uma fonte lumino- partir dos elementos apresentados, se os personagens sa do outro lado do véu, em contraluz, no lado oposto estão indo ou voltando, e estes não trazem consigo quaisao espectador (e ao fotógrafo - é notória a predileção quer objetos que indiquem objetivo (por exemplo, uma de Sebastião Salgado por construções em contraluz6 ). ânfora vazia, objetos para venda, objetos adquiridos ou Igualmente, podemos lembrar que, quando temos à recebidos, bagagens, um livro, alimentos). Ademais, cafrente uma espessa barreira de neblina, ou neve, ou minham da direita para a esquerda, movimento que exareia muito clara, o reflexo da luz pode ser tão forte perimentamos como retrocesso, pois dá-se em sentido quanto a intensidade da fonte luminosa que porventura contrário ao da leitura na cultura ocidental. Basta coloencontra-se em nossa retaguarda. car-se a fotografia em contraluz e observá-la invertida, Assim, esta fotografia parece reger-se pelo princí- com seu dorso voltado aos olhos, para perceber-se que pio da incerteza: idade, sexo das crianças, gravidez, o movimento fará aquisição de valores positivos, será mãos do garoto, mãos da mulher, grupo ou família, sor- percebido como avanço, não retrocesso. riso ou careta da menina, galho ou farrapo de tecido, A roupagem parece ser um fardo difícil a transpordestino da caminhada, objetivos, objeto levado a tira- tar, um fardo de grande volume, pesando sobre os colo pela mulher, tantos serão por conseqüente os ele- ombros apesar de apresentarem-se esvoaçantes sob a mentos dúbios na composição. Esta dualidade pode que- brisa soprada por Zéfiro. As tranças figuram-se pararer-se imagem especular da modernidade, da era do lelas às margens verticais que, por sua vez, enconhomem binário (1,0,1,0,sim,não), do princípio da incer- tram-se solidamente soldadas às margens horizontais teza da física quântica e da fratura dos pilares da pouco maleável moldura. As tranças tombam retas epistêmicos levada ao paroxismo. Seja como for, po- e rígidas em direção ao solo, como peso fixando-se à demos dizer, com Louis Marin, que a ambigüidade só terra de origem, como recusa à terra de destino, como tende a agregar valor à obra de arte. Com efeito, ao recusa ao movimento, recusa à própria vida. A cena é 6 Salgado afirma: “É claro que eu tenho de trabalhar contra a luz. A minha cidade, Aimorés, tinha um sol incrível. A gente vivia na sombra. Eu sempre olhei meu pai chegando em casa na contraluz. Eu na sombra, ele vindo do sol. Numa fração de segundo, eu restituo tudo isso” (Veja, 12/03/97, p. 81). 7 Louis Marin, “A descrição da imagem: a propósito de uma paisagem de Poussin”, in Christian Metz, A Análise das imagens, p. 85. 8 Ibid., p. 105. 40 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. paisagem lunar que nada inclui e muito contribui para a expressão de uma vida em vacuidade, indigna de seres humanos. O agenciamento dos elementos de composição fotográfica sugere que o prolongamento do olhar em direção à esquerda ou à direita, acima ou abaixo do enquadramento, somente revelaria o vazio, o nada, uma luminosidade opaca que nada pode iluminar nem conter. Mais ninguém encontra-se no enquadramento, e a ausência de água e de vida vegetal é total, elementos que contribuem para criar a impressão de desamparo que experimentamos ao obser- A Sagrada Família, de Michelângelo var esta fotografia. No entanto, a idéia que permanece é a de ida em direção a algo, pois o espaço é mais vazio à frente dos caminhantes do que à sua retaguarda. Em situação inversa (espaço mais vazio à retaguarda), a ação de abandonar um local estaria sugerida com mais propriedade que a ação de buscar um local (ou algo). O grupo parece caminhar por entre a luz (tudo é esbranquiçado, como um véu translúcido), em um espaço indefinido entre o céu e a terra, e nota-se a ausência de sombras bem definidas, como se a fonte de Madonna, de Rafael Nascimento de Vênus, de Botticelli Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. 41 luz fosse tão somente um halo. A que abrem a marcha, conduzem o indefinição da sombra projetada no grupo, incentivam à caminhada: A total ausência de solo arenoso também sugere seres convite à persistência, à esperanpersonagens impalpáveis, imater iais, fança, formulado por estes guias puetasmagóricos, seres do além. A imris e desprovidos da descrença que masculinos adultos pressão de desamparo é reforçaé o lote próprio de adultos em mono enquadramento da da pela fragilidade dos famélicos mentos de reveses. Neste sentido, corpos, sem condições físicas para seria igualmente plausível ver que, imagem sugere força e caminhar, como o garoto que tem se por um lado a eventual gravisolidão de mãe sua perna arqueada pelo esforço dez da mulher (nº 1) poderia sugeprotegendo filhos. físico levado ao paroxismo. rir o advento de mais um ser fadaMalgrado a brisa, o véu da mulher do ao sofrimento, por outro lado arrasta-se pelo chão, assim como poderia simbolizar a renovação, o seus pés. eterno renascimento próprio ao ciOs pequenos logram, com seus curtos passos, clo vital. acompanhar a caminhada, que deverá portanto faOs dois grupos que podemos observar na comzer-se lenta; todos os caminhantes têm seus pés fi- posição fotográfica formarão um conjunto indivisível, xados pela fotografia no instante em que encontra- cujo laço será o olhar que a garota (nº 4) lança para vam-se colados ao chão, como se estivessem para- trás como se esperasse ou verificasse o ponto em dos (lembremos que, em fotos de cunho esportivo - que os personagens (nº 1, 2 e 3) encontram-se em ocasião em que celebra-se a força, a velocidade, a sua marcha, o que cria um elo de ligação entre os vitalidade -, os pés flutuarão no ar, suspensos num dois grupos e demonstra a carga de materialidade presente atemporal que é também o tempo do mito), que podemos encontrar no olhar. Ademais, os ciimagem do esgotamento, do cansaço, lassidão; o pe- clos da vida estarão igualmente implícitos neste insqueno (nº 2) somente levanta um dos pés após apoiar tante de passagem, iniciático, instante de amadureo outro completamente no solo; o passo do garoto da cimento representado por este olhar protetor, de vefrente (nº 5), não obstante sua estatura relativamente rificação, de preocupação que a garota (nº 4), ser superior, é tão ou mais curto que aquele das crianças desprotegido em relação à mulher adulta (nº 1), lanque seguem atrás (nº 2 e 3). ça à retaguarda. A criança toma portanto a si a funOs personagens parecem caminhar em círculo, ção de proteção que a mulher adulta parece não pois a direção sugerida pelos três personagens da poder assumir no momento, tal como poderíamos ver retaguarda é diferente daquela sugerida pelos que em um certo abandono à própria sorte sugerido pelo estão à frente da marcha (figura 2). Contudo, trata- avanço em relação aos pequenos (nº 2 e 3) que obse de ilusão de óptica que pode se desfazer na aná- servamos em seu deslocamento. Notemos ainda que lise da composição do grupo anterior. Em outra pers- a garota parece puerilmente arrastar um galho pela pectiva, vemos que o garoto da frente (personagem areia, lúdico alheamento ao sofrimento através de 5) anda em direção à linha do horizonte, mas, como jogos infantis, e sutil sugestão de permanência no não há distinção entre céu e terra, e como ele está estatuto de entidade humana malgrado a perda dos ligeiramente desfocado como por efeito do véu benefícios que o homem pode encontrar em sua translúcido de luminosidade - mas em realidade por existência sobre a Terra. um sábio efeito de exploração da profundidade de Por outro lado, a total ausência de personagens campo -, temos a sensação de que o garoto vai atra- masculinos adultos no enquadramento sugere força e vessar (ou já começou a atravessar) a folha, o pa- solidão de mãe protegendo filhos. Esta ausência torpel fotográfico, e escapar ao nosso olhar (logo, às na incompleta a figuração da cena, pois nossos hábinossas vidas). Igualmente, na medida em está sain- tos pictóricos e nosso imaginário solicitam compledo do campo focal, está escapando ao alcance das mento no sentido de aproximar o quadro (fotográfilentes do fotógrafo, ao seu/nosso olhar, temos a im- co) de, por exemplo, A Sagrada Família. Assim Sepressão de estarmos perdendo para sempre a sua bastião Salgado parece jogar com a função protetora improvável companhia. do animal macho e a função nutricional do animal Malgrado os reveses, e apesar de cabisbaixas e fêmea, tal como estas apresentam-se ao imaginário meditabundas, as pessoas do grupo caminham ligei- ocidental. Apesar dessa ausência, o grupo prossegue ramente inclinadas para frente, altivas, fazendo pro- demonstrando força, demonstrando dignidade, e as va de persistência em seu destino, de resistência a trabalhosas tranças das mulheres, se por um lado inuma ventania imaginária que sopra em sentido con- dicam vaidade, por outro mostram que, apesar dos trário - não estaria o garoto (nº 2) protegendo seus infortúnios, estão ali fotografados seres que mantêmolhos contra a ventania? - a seu movimento em dire- se em sua qualidade de humanos pois não desvelam ção ao nada. E neste movimento, serão crianças os sobre sua própria aparência. 42 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. “Seus humildes são gigantes”, esatemporalidade, de imprecisão temA universalidade creve Dorrit Harazim9 . Com efeito, poral, tendendo à generalização e buscada por Salgado as pessoas fotografadas por Salgado não à individualização, à universaliocupam grande espaço na folha, em dade e não à particularidade. Ora, é sugerida pela relação a outros elementos da comcomo afirma Arrigucci Jr., “a emoausência de rostos. posição. Na fotografia em tela, nada ção poética se distingue da emoção Entretanto, há além de pessoas, e o ângulo escobanal por nos dar uma sensação de lhido por Salgado situa o olhar do leiuniverso”11 , e, acrescentamos, por o monopólio da tor em um plano inferior àquele onde tornar-se revelação do instante presença humana é situa-se o olhar (presumível) dos perepifânico. Entre tantas maneiras, a sonagens fotografados, pois a máquipoesia pode revelar-se também na patente. na fotográfica estaria ao nível da cincapacidade humana de manter a tura da mulher adulta; deste feito, o dignidade mesmo em situações exleitor experimenta a impressão de tremamente adversas, pois traz à observar um personagem agigantado, desproporcional, tona um certo espaço onírico, tempo de sonhos e deefeito criado pelas lentes do fotógrafo. vaneios. A universalidade buscada por Salgado é sugerida, Parafraseando Guimarães Rosa, diremos que a fono caso desta fotografia, pela ausência de rostos. En- tografia de Sebastião Salgado “pode valer pelo muito tretanto, o monopólio da presença humana é patente, que nela não deveu caber”. De fato, a questão da pois o fundo da composição encontra-se desguarnecido. valoração da obra artística residiria no número de suas Veremos aqui, portanto, mensagens do ser, que fun- interpretações potenciais, como afirmam W.H. Auden dam sua autoridade na sobriedade, no laconismo, no e Rolland Barthes, entre tantos outros. Para tanto, por silêncio ou na solidão: busca da essência, não de aci- vezes será necessário reverter a perspectiva de análidentes. A situação é caracterizada por seu estatuto se e definir o processo de leitura, com G. Rosa, a parontológico, o ser em primeiro plano. Não há pretexto tir de uma definição proposta por Augusto dos Anjos para narração de um qualquer evento particular. A iden- para “rede”: “uma porção de buracos, amarrados com tidade formal entre personagens provém do vestuário, barbante...” pigmentação da pele, estado físico, traços Poderemos então dizer que, a partir de material, em fisionômicos10 , e a unidade ou solução de continuida- princípio, não poético; de destino singular de pobres coide entre os elementos da fotografia provém de ele- tados nômades; de retrato da contraditória realidade inmentos como idênticas roupas (ou sua ausência), arei- ternacional, Sebastião Salgado visa a operar a síntese as, repetição do mesmo personagem em tamanhos dis- da experiência humana. Se esta é uma entre as múltitintos, símbolos de uma enumeração ad infinitum, di- plas leituras possíveis de sua obra fotográfica, cremos ferentes e idênticas etapas da vida diante de mal fada- lançar aqui bases para um “início de sentido”, conforme das condições de sobrevivência. Nesta mesma pers- a expressão de Barthes, sentido a ser reconstruído a pectiva, Sebastião Salgado coloca em cena uma situa- partir das noções propostas por Schopenhauer: “daí, pois, ção desprovida de qualquer indício temporal, marcada como já se disse, exigir a primeira leitura paciência, funpela ausência de datação, suspensa no tempo, um tem- dada na certeza que na segunda, muita coisa ou tudo, se po que será indeterminado e vago, carregado de entenderá sob luz inteiramente outra.”12 Bibliografia ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1996. DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris, Seuil, 1972. HARRAZIM, Dorrit. “O Fotógrafo da luz”, in Veja, nº 1486, 12/03/97, p. 70-87. JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris, Les Éditions de Minuit, 1963. PAGEAUX, Daniel-Henri. La Littérature Générale et Comparée. Paris, Armand Colin, 1994. METZ, Christian et alii. 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Assim, a ausência de rostos ou sua repetição tem a mesma função na construção do sentido, pois trata-se de rostos sem identidade com intuito de despersonalização, generalização. 11 Davi Arrigucci Jr., Humildade, paixão e morte, p. 137. 12 Citado por Guimarães Rosa, em epígrafe a Tutaméia. 10 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 34-43, jan./jun., 1997. 43 Este trabalho pretende mostrar que, segundo Umberto Eco, existem critérios para delimitar a interpretação de um texto. Palavras-chave: Interpretação, superinterpretação, história. This paper aims at showing that, according to Umberto Eco, there are criteria to delimit an interpretation of a text. Key-words: Interpretation, super interpretation, history 44 * Maria Emília Borges Daniel é professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestre em Lingüística Aplicada na UNICAMP. Doutoranda em Lingüística e Semiótica na USP. UMA LEITURA DE UMBERTO ECO Maria Emília Borges Daniel* ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo, 1993, Martins Fontes, 1993, 183 p. A obra em referência deriva das Conferências e do Seminário Tanner de Clare Hall, Universidade de Cambridge, 1990. O objetivo de tais Conferências, realizadas anualmente, é "favorecer e refletir sobre o saber acadêmico e científico relativo a avaliações e valores humanos".1 Ao aceitar o convite para ser o conferencista Tanner de 1990, Umberto Eco propôs o tema "Interpretação e Superinterpretação", aliás, bem apropriado para o objetivo das Conferências. Escolher a noção de interpretação como objeto de atenção e estudo favorece a reflexão justamente sobre o "saber acadêmico e científico relativo a avaliações e valores humanos", considerando que, embora a noção de interpretação "seja mais relevante para as ciências da linguagem, ela está presente no exercício das ciências humanas, em particular, e de qualquer ciência, em geral". 2 O livro em epígrafe inclui uma introdução às Conferências e aos Seminários, feita por Stephan Collini, professor de Inglês e membro de Clare Hall, Cambridge, sob o título de Introdução: interpretação terminável e interminável. Inclui também os textos revistos das Conferências Tanner/1990 de Eco - 1. Interpretação e história; 2. Superinterpretando textos; 3. Entre autor e texto. Apresenta ainda os artigos dos três participantes do seminário: - 4. A trajetória do pragmatista (Richard Rorty, catedrático de Humanidades na Universidade de Virgínia); 5. Em defesa da superinterpretação (Jonathan Culler, catedrático de Inglês e Literatura Comparada e diretor da Sociedade das Humanidades da Universidade Cornell); 6. História palimpsesta (Christine Brooke-Rose, ex-catedrática de Literatura na Universidade de Paris VIII). E, finalmente, a Réplica (Umberto Eco). Ao escolher o tema Interpretação e Superinterpretação 3 para suas conferências, Eco comprometia-se a definir sua posição sobre a natureza do significado, as possibilidades e os limites da interpretação. Nos anos 60 e 70, dedicou-se ao estudo do papel do leitor no processo de "produzir" significado. Em sua obra mais recente (The Limits of Interpretation)4 mostra-se apreensivo em relação à forma pela qual importantes correntes do pensamento crítico contemporâneo, sobretudo a crítica americana inspirada em Derrida, autodenominada "Descons- 1 Apud COLLINI, Stephan. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p.1. 2 ORLANDI, Eni P. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis. Vozes, 1996, p.9. 3 Superinterpretação: uma leitura que, segundo Eco, excede os ''limites da interpretação legítima''. 4 No prelo. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. 45 trução" associada particularmente rindo-se certamente a Austin, 9 ao trabalho de Paul de Man e J. acrescenta "Se bem me lembro, foi Dizer que a Hillis Miller, parecem dar licenaqui na Inglaterra que alguém suinterpretação é ça ao leitor de produzir um fluxo geriu, anos atrás, que é possível fapotencialmente ilimitado e incontrolável de "leizer coisas com palavras. Interpreturas." 5 tar um texto significa explicar por ilimitada não significa Por não concordar com tal tipo que essas palavras podem fazer que a interpretação de "semiótica ilimitada", que consivárias coisas (e não outras) através dera um "apropriação perversa", do modo pelo qual são interpretanão tenha objeto e que Eco busca descobrir, em suas condas''. Exemplificando: se Jack, o corra por conta ferências, algumas possibilidades de Estripador, alegasse que fez o que própria. limitar o alcance de interpretações fez baseado em sua interpretação admissíveis e, em decorrência, de do Evangelho de São Lucas, muitos classificar determinadas leituras críticos voltados para o leitor tencomo "superinterpretações". deriam a pensar que ele havia lido São Lucas de uma Neste texto, vou ater-me apenas à primeira Confe- forma inadequada. Os críticos não voltados para o leirência de Eco em que ele aborda questões relaciona- tor afirmariam que Jack, o Estripador, ''estava comdas ao tema Interpretação e História. pletamente louco.'' Confessa Eco que concordaria, muito a contragosto, com o fato de que Jack, o Estripador, precisava de cuidados médicos e supõe também que mesmo o desconstrucionista mais radical concordaria(?). Embora reconheça que seu exemplo é um tanto forçado, Iniciando a primeira Conferência, Eco explica que, julga que até um argumento parodoxal como esse preem Obra Aberta6 (1962), "estava estudando a dialética cisa ser levado a sério, pois entre os direitos dos textos e os direitos de seus intérEle prova que existe pelo menos um caso em que pretes" e lhe parece que os direitos dos intérpretes é possível dizer que uma determinada interpretêm sido exagerados nas décadas mais recentes. tação é ruim. Segundo os termos da teoria de Embora tenha elaborado, em suas últimas obras7, a pesquisa científica de Popper, isso é o suficienidéia peirceana da semiótica ilimitada, procurou moste para refutar a hipótese de que a interpretatrar8 que tal concepção não leva à conclusão de que a ção não tem critérios públicos (ao menos em terinterpretação não tenha critérios: mos estatísticos). (p.29) Dizer que a interpretação (enquanto caracteA única alternativa a uma teoria radical da interrística básica da semiótica) é potencialmente ili- pretação voltada para o leitor é a assumida pelos demitada não significa que a interpretação não fensores da idéia segundo a qual a única interpretação tenha objeto e que corra por conta própria. válida é a que pretende descobrir a intenção original Dizer que um texto potencialmente não tem fim do autor. Quanto a essa objeção, Eco diz: não significa que todo ato de interpretação posEm alguns dos meus escritos recentes, sugeri que sa ter um final feliz. (p.28) entre a intenção do autor (muito difícil de desMas os críticos contemporâneos defensores do pocobrir e freqüentemente irrelevante para a inder exagerado do leitor chegam a considerar que a terpretação de um texto) e a intenção do intérexistência de um texto é dada somente pela cadeia de prete que (para citar Richard Rorty) simplesmenrespostas que suscita e que, conforme observou te "desbasta o texto até chegar a uma forma Todorov, maliciosamente, "um texto é apenas um pique sirva a seu propósito" existe a intenção do quenique onde o autor entra com as palavras e os leitexto. (p.29) tores com o sentido". A seguir, propõe-se a relatar a história das raízes Ao rebater tal posição, Eco argumenta que as pala- arcaicas do debate contemporâneo sobre o significado vras do autor constituem uma unidade de evidências de um texto, apagando, inicialmente, a distinção tanto materiais que o leitor não pode desconsiderar. Refe- entre textos literários e textos comuns quanto entre Interpretação e História 5 COLLINI, S. ''Introdução: interpretação terminável e interminável''. In: ECO, U. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 9. 6 (Trad. bras). São Paulo, Perspectiva, 1967, Debates 4. 7 A Theory of Semiotics, The Role of the Reader e Semiotics and the Philosophy of Language 8 Dissertação apresentada no Congresso Internacional Peirce, na Universidade de Harvard (setembro de 1989) 9 AUSTIN, J. L. 1962. How to do Things with Words, Oxford, Clarendon (trad. para o italiano sob o título Quando dire è fare, 2ª ed., Turim, Marietti, 1975). 46 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. textos "enquanto imagens do munrantem ao menos um contrato Ao contrário do que se do e o mundo natural como (segunsocial. O racionalismo latino pressupõe, a maior do uma tradição venerável) um adota os princípios do Grande Texto a ser decifrado". racionalismo grego, mas os parte da teoria O objetivo do relato é demonstransforma e enriquece num sencontemporânea ligada trar que, ao contrário do que se tido legal e contratual. O modeao pensamento "póspressupõe, a maior parte da teoria lo legal é modus, mas o modus é contemporânea ligada ao chamado também o limite, a fronteira. moderno" parecerá pensamento "pós-moderno" parece(pp.31-32) uma retomada de rá uma retomada de movimentos Esse modelo do racionalismo muito antigos. grego e latino ainda domina a mamovimentos muito Em 1987, ao fazer uma palestra temática, a lógica, a ciência e a proantigos. introdutória na Feira de Frankfurt, gramação de computadores, mas sobre o irracionalismo moderno, conão esgota a história do que chameçou a sua reflexão esclarecendo ser difícil definir mamos herança grega. "irracionalismo" sem dispor de um conceito filosófico No mito de Hermes, em torno do qual os gregos de "razão": construíram a idéia de metamorfose contínua, enconInfelizmente, toda a história da filosofia ociden- tra-se a negação do princípio de identidade, de nãotal serve para provar que tal definição é muito contradição e do terceiro excluído, e os nexos causais controvertida. Qualquer forma de pensar sem- enrolam-se sobre si mesmos em espirais: "o ‘depois’ pre é vista como irracional pelo modelo histórico precede o ‘antes’, o deus não conhece limites espacide outra forma de pensar, que vê a si mesmo como ais e pode, em diferentes formas, estar em diferentes racional. A lógica de Aristóteles não é a mesma lugares ao mesmo tempo". Essa concepção de Hermes que a de Hegel; Ratio, Ragione, Raison, Reason data do século II depois de Cristo, um período de ore Vernunft não significam a mesma coisa. dem política e paz, e o império aparentemente une por Uma maneira de entender conceitos filosóficos uma língua e uma cultura todos os povos que domina. é, com freqüência, voltar ao senso comum dos É o século em que se define o conceito de educação dicionários. (p.30) geral, cujo objetivo era produzir um tipo de homem A noção latina de modus, ou seja, "dentro dos limi- completo, versado em todas as disciplinas. Isso, no entes e das medidas", foi muito relevante, se não para tanto, pressupõe um mundo perfeito, coerente, enquanto estabelecer a diferença entre racionalismo e o mundo do século II é uma mistura de raças e línirracionalismo ("algo que vai além de um limite estabe- guas; um encruzilhamento de povos e idéias e dos mais lecido por um padrão"), pelo menos para determinar diferentes tipos de deuses. duas atitudes básicas, isto é: É bastante conhecida a lenda do califa que mandou duas formas de decifrar o texto como um mundo destruir a biblioteca de Alexandria, justificando-se com ou o mundo como um texto. Para o racionalismo o argumento segundo o qual os livros diziam a mesma grego, de Platão a Aristóteles e outros, conhecer coisa que o Corão e, nesse caso, eram supérfluos, ou significava entender as causas. Assim, definir então diziam coisa diferente e, nesse caso, eram erraDeus significava definir uma causa, além da qual dos e perniciosos. "O califa conhecia a verdade e julnão poderia haver nenhuma outra causa. Para gou os livros com base nessa verdade". Por outro lado, se conseguir definir o mundo em termos de cau- o hermetismo do século II caracteriza-se pela busca sas, é necessário desenvolver a idéia de uma ca- de uma verdade que não conhece e dispõe apenas de deia unilinear: se um movimento vai de A para B, livros os quais espera que sirvam para confirmar-se então não há força na terra capaz de fazê-lo ir mutuamente e nos quais imagina encontrar uma cende B para A. Para se conseguir justificar a natu- telha de verdade. reza unilinear da cadeia causal, é necessário Nesta dimensão sincrética, um dos princípios dos primeiro supor uma série de princípios: o princímodelos racionalistas gregos, o do terceiro expio de identidade (A = A), o princípio da nãocluído, entra em crise. É possível muitas coisas contradição (é impossível algo ser A e não ser A serem verdadeiras ao mesmo tempo, mesmo que ao mesmo tempo) e o princípio do terceiro excluse contradigam. Mas, se os livros falam a verído (ou A é verdadeiro ou A é falso e tertium nom dade, mesmo quando se contradizem, então cada datur) A partir desses princípios, derivamos o uma de suas palavras deve ser uma alusão, uma modelo típico de pensamento do racionalismo alegoria. Estão dizendo algo diferente do que ocidental, o modus ponens: "se p então q: mas p: parecem dizer. (...) Assim a verdade passa a idenportanto q". tificar-se com o que não é dito ou com o que é Embora esses princípios não garantam o recodito de forma obscura e deve ser compreendido nhecimento de uma ordem física do mundo, gaalém ou sob a superfície de um texto. (p.35) Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. 47 Vale observar que, nessa época, explicar que não podemos definir uma coisa verdadeira era principalDeus em termos muito precisos Sentimos necessidade mente algo que não podia ser explidevido à inadequação de nossa líncado, enquanto para o racionalismo gua, o pensamento hermético11 asde nos voltar para grego uma coisa era verdade quansume que nossa língua, quanto mais imagens de outras do podia ser explicada. Agora, é a ambígua e polivalente, quanto mais civilizações, porque só suposta gagueira do estrangeiro que se valer de símbolos e metáforas, se transforma na língua sagrada, tanto mais será especialmente adeos símbolos exóticos enquanto no racionalismo clássico quada para designar a Unidade na podem manter uma identificavam-se os estrangeiros qual se realiza a coincidência dos como bárbaros, isto é, aqueles que opostos e da qual resulta o colapso aura de sacralidade. nem sequer conseguem falar cordo princípio da identidade. retamente ("o que gagueja" é a verEm conseqüência, a procura de dadeira etimologia de bárbaro). um significado final inatingível reConsiderando essa nova situação, se a procura de sulta em ''uma interminável oscilação ou deslocamenuma verdade diferente surgiu da desconfiança da he- to de significado'' e a interpretação é imprecisa. Por rança grega clássica, então, conclui Eco, exemplo, uma planta não é definida com base em suas todo verdadeiro conhecimento teria de ser mais características morfológicas e funcionais, mas de acorarcaico. Encontra-se entre os resíduos de civili- do com sua semelhança mesmo que parcial com outro zações que os pais do racionalismo grego igno- elemento do cosmos. O pensamento hermético reduz raram. A verdade é algo com que temos vivido tudo a um fenômeno lingüístico, mas, ao mesmo temdesde o começo dos tempos, só que a esquece- po, nega à linguagem qualquer poder de comunicação. mos. (p.36) Após referir-se aos textos básicos dessa linha de A propósito, Jung explicou que sentimos necessi- pensamento, Eco esclarece que os pensadores da Redade de nos voltar para imagens de outras civilizações, nascença demonstraram que o Corpus Hermeticum porque só os símbolos exóticos podem manter uma aura não era um produto da cultura grega, mas que havia de sacralidade. Assim, uma imagem divina perde seu sido escrito antes de Platão. Após ressurgir em Flomistério, quando se torna muito familiar para nós. No rença, no início do chamado mundo moderno e ser século II, o conhecimento secreto teria estado, portan- reelaborado pelo neoplatonismo da Renascença e pelo to, com os druidas, com os sacerdotes celtas, ou com cabalismo cristão, o pensamento hermético continuou os sábios do Oriente, que falavam línguas incompre- fundamentando uma grande parcela da cultura moderensíveis. na, da magia à ciência. A opinião geral era que os sacerdotes bárbaros O modelo hermético defendia a idéia de que a orpossuíam um conhecimento misterioso sobre os elos dem do universo descrita pelo racionalismo grego posecretos que ligavam o mundo espiritual ao mundo as- deria ser subvertida e que novas conexões e relatral que, por sua vez, ligava-se ao mundo sublunar. O ções poderiam ser descobertas no universo, as quais significado disso era que as ações sobre uma planta teriam permitido ao homem tanto agir sobre a natupodiam influenciar a trajetória das estrelas; a trajetória reza quanto mudar seu curso. Propunha ainda que o das estrelas repercutia no destino dos seres terrestres; mundo deveria ser descrito de acordo com uma lógias operações mágicas com a imagem de um deus po- ca quantitativa e não em termos de uma lógica qualideriam obrigá-lo a realizar nossos desejos. O universo tativa. Portanto, o modelo hermético, paradoxalmenassemelha-se, pois, a um grande espelho em que cada te, colabora para o surgimento de seu novo oponente, objeto individual reflete e significa todos os outros. O o racionalismo científico moderno. Além disso, Eco que existe na terra também existe no céu. explica que: Nessas condições, o princípio da não-contradição é O novo irracionalismo hermético oscila, por um rejeitado, pois tal visão do universo resulta de uma lado, entre místicos e alquimistas e, por outro, emanação divina no mundo em cuja origem está o "Um entre poetas e filósofos, de Goethe a Gérard de incognoscível, que é a sede da própria contradição". Nerval e Yeats, de Schelling a Franz von Baader, Enquanto o pensamento cristão neoplatônico10 busca de Heidegger a Jung. E em muitos conceitos 10 Relativo ao neoplatonismo. Filos. Corrente doutrinária fundada por Amonio Sacas (séc. II), em Alexandria (...). Caracterizava-se pelas teses de absoluta transcendência do ser divino, da emanação (...) e do retorno do mundo a Deus pela interiorização progressiva do homem. (Dicionário Aurélio). 11 Relativo ao hermetismo (...) Filos. Doutrina ligada ao gnosticismo (...), surgida no Egito no séc. I, atribuída ao Deus Thot, chamado pelos gregos Hermes Trismegisto, e formada principalmente pela associação de elementos doutrinários orientais e neoplatônicos. Cristalizouse num ensinamento secreto em que se misturam filosofia e alquimia. (Dicionário Aurélio). 48 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. pós-modernos de crítica não é acreditarem que ele tem um segredifícil reconhecer a idéia do do político. No modelo hermético contínuo deslocamento do sigA seguir, Eco passa a sugerir em a verdade é sempre nificado. A idéia expressa por que sentido os resultados de sua inPaul Valéry, de que il n’y a pas cursão às raízes da herança hermésecreta e nenhum de vrai sens d’un texte, é uma tica podem ser interessantes para questionamento dos idéia hermética. compreender um pouco mais da teEm um de seus livros, Science oria contemporânea de interpretasímbolos e enigmas de l’homme et tradition - extreção textual. Enumera então uma lispoderá revelar mamente questionável pelo enta das principais características daa verdade última. tusiasmo irrestrito de seu auquilo que ele gostaria de chamar tor, embora não lhe faltem aruma abordagem hermética dos texgumentos persuasivos -, tos, na qual descobriu algumas idéiGilbert Durand vê o conjunto as similares em muitas teorias condo pensamento contemporâneo, em temporâneas: contraposição ao paradigma mecanicista do 1.Um texto é um universo aberto em que o intérpositivismo, passar pelo sopro vivificante de prete pode descobrir infinitas interconexões. Hermes, e a lista de personalidades que identi2. A linguagem é incapaz de apreender um signififica convida à reflexão: Spengler, Dilthey, cado único e preexistente: ao contrário, o papel da linScheler, Nietzsche, Husserl, Kerényi, Plank, guagem é mostrar que aquilo de que se pode falar é Pauli, Oppenheimer, Einstein, Bachelard, apenas a coincidência dos opostos. Sorokin, Lévi-Strauss, Foucault, Derrida, 3. A linguagem reflete a inadequação do pensaBarthes, Todorov, Comsky, Greimas, Deleuze. mento: "nosso ser-no-mundo nada mais é do que ser (p.40) incapaz de encontrar qualquer significado Outra convicção que caracteriza o modelo hermé- transcendental. tico é a de que a verdade é sempre secreta e nenhum 4. Qualquer texto que pretenda dizer algo inequívoquestionamento dos símbolos e enigmas jamais poderá co, é um "universo abortado, ou seja, a obra de um revelar a verdade última e só deslocará o segredo para Demiurgo desastrado." outro lugar. Se a condição humana é assim, então o 5. O gnosticismo textual contemporâneo é, porém, mundo surgiu de um erro. Por isso o homem do século bastante generoso: "toda pessoa, desde que ansiosa por II desenvolveu uma consciência neurótica do seu pa- impor a intenção do leitor sobre a intenção inatingível do pel num mundo incompreensível. A expressão cultural autor, pode tornar-se o Übermensch (super-homem de desse estado psicológico denomina-se gnose12. Nietzsche) que realmente entende a verdade, qual seja, Gnose significava verdadeiro conhecimento da exis- que o/a autor/a não sabia o que estava realmente dizentência, na tradição do racionalismo grego. Tal conhe- do, porque a língua falou em seu lugar". cimento podia ser tanto coloquial quanto dialético, em 6. Para salvar o texto - ou seja, para fazê-lo passar contraposição à simples percepção (aisthesis) ou opi- de uma ilusão de significado à percepção de que o nião (doxa). Entretanto, nos primeiros séculos cris- significado é infinito - o leitor deve desconfiar de que tãos, gnose passou a significar conhecimento metar- cada linha esconde um outro significado secreto; as racional, intuitivo, um dom divino capaz de salvar quem palavras, ao invés de dizer, escondem o não-dito; a o atinja. glória do leitor é descobrir que um texto pode dizer Eco sugere uma ligação entre a herança gnóstica13 tudo, menos o que o seu autor queria que dissesse; e muitos aspectos da cultura moderna e contemporâ- assim que se anuncia a descoberta de um suposto signea. O amor cortês, por exemplo, visto como uma re- nificado, temos certeza de que não é o verdadeiro. lação puramente espiritual, como renúncia, como per7. O leitor real é aquele que compreende que o da do ser amado, revela uma origem gnóstica. significado de um texto é seu vazio. Tanto a herança hermética quanto a gnóstica proSobre a inter-relação apresentada, Eco coduzem a síndrome do segredo. O modelo hermético menta: levou o iniciado, que entende o segredo cósmico, à Sei que fiz uma caricatura das teorias mais raconvicção de que o poder consiste em fazer outros dicais de interpretação voltadas para o leitor. 12 Gnose (do gr. Gnôsis) S. f. 1. Conhecimento, sabedoria. 2. Hist. Fil. Conhecimento esotérico e perfeito da divindade e que se transmite por meio da tradição e mediante ritos de iniciação. 13 Relativa ao gnosticismo. (De gnóstico + -ismo) S. m. Hist. Filos. 1. Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio da gnose. (São dogmas do gonosticismo: a emanação, a queda, a redenção e a mediação, exercida por inúmeras potências celestes, entre a divindade e os homens. Relaciona-se o gnosticismo com a cabala, o neoplatonismo e as religiões orientais). Dicionário Aurélio. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. 49 Além disso, penso que as cado que antes, confessou a Falta, ricaturas são muitas vezes admirando a Divindade do Papel Ao ser separado bons retratos não do caso e, para o futuro, promete realmende seu autor um texto como ele é, mas pelo menos do te toda a sua Fidelidade em cada poderia vir a ser o caso, se suTarefa. (pp.47-48) paira no vácuo de puséssemos que alguma coisa Ao ser separado de seu autor (e uma série fosse o caso. também da intenção desse autor) e virtualmente infinita O que quero dizer aqui é que das circunstâncias concretas de sua existem critérios para limitar a criação (e, portanto, de seu referende interpretações interpretação. te intencionado) um texto paira, de possíveis. (...) Sei que há textos poéticos certa forma, no vácuo de uma série cujo objetivo é mostrar que a virtualmente infinita de interpretainterpretação pode ser infinições possíveis. No relato citado, seu ta. Sei que Finnegans Wake foi autor, Wilkins, poderia ter alegado escrito para um leitor ideal afetado por uma in- que o destinatário tinha certeza de que a cesta referisônia ideal. Mas sei também que, embora toda a da na carta era a mesma levada pelo escravo. Que o obra do Marquês de Sade tenha sido escrita para escravo, mensageiro da carta, era o mesmo a quem mostrar o que o sexo poderia ser, a maioria de seu amigo dera a cesta. Que havia uma relação entre nós é mais moderada. (p.46) a expressão "30" mencionada na carta e a quantidade Para demonstrar o que afirmou sobre os critérios de figos contida na cesta. existentes para limitar a interpretação, apresenta o Entretanto, vamos supor que, ao longo do caminho, começo de Mercury; Or, the Secret and Swift o escravo original tivesse sido assassinado e outra pesMessenger (1641), em que John Wilkins14 conta a soa o tivesse substituído. Que os trinta figos originais seguinte história: tivessem sido substituídos por outros figos. Que a cesO quanto essa Arte de Escrever pareceu estra- ta tivesse sido levada a um destinatário diferente. Que nha quando da sua Invenção primeira é algo que o novo destinatário não soubesse de nenhum amigo podemos imaginar pelos Americanos recém-des- desejoso de lhe mandar figos. cobertos, que ficavam espantados ao ver Homens Ainda assim seria possível concluir o que a carta conversarem com Livros, e não conseguiam acre- estava dizendo. Mas temos direito de presumir que a ditar que um papel pudesse falar... reação do novo destinatário seria algo como "Alguém, e Há um relato excelente a este Propósito, refe- Deus sabe quem, mandou-me uma quantidade de figos rente a um Escravo Índio; que, ao ser mandado menor que o número mencionado na carta que os acompor seu Senhor com uma Cesta de Figos e uma panha" (p.48). Carta, comeu durante o Percurso uma grande Poderíamos supor também que não apenas o mensaParte de seu Carregamento, entregando o Res- geiro tivesse sido morto, mas também que seus assastante à Pessoa a quem se destinava; que, ao ler sinos tivessem comido os figos, destruído a cesta, posa Carta e não encontrando a Quantidade de to a carta numa garrafa e atirado a garrafa ao mar. E Figos correspondente ao que se tinha dito, acu- que, setenta anos depois, Robinson Crusoé encontrassa o Escravo de comê-los, dizendo-lhe que a se a tal garrafa e, dentro dela, somente a carta, é claro Carta afirmara aquilo contra ele. Mas o Índio (sem cesta, sem escravo, sem figos). Mesmo assim, (apesar dessa Prova) negou o Fato com a mai- Eco aposta que "a primeira reação de Robinson Crusoé or segurança, acusando o Papel de ser uma teria sido: "Onde estão os figos?" Testemunha falsa e mentirosa. Poderíamos ainda imaginar que a mensagem da garrafa fosse encontrada por uma pessoa mais sofisticada, Depois disso, sendo mandado de novo com um um estudioso de lingüística, hermenêutica ou semiótica, Carregamento semelhante e uma Carta expresque poderia levantar outras hipóteses, entre as quais: sando o Número exato de Figos que deviam ser entregues, ele, mais uma vez, de acordo com sua 1. Atualmente, podemos entender figos num sentiPrática anterior, devorou uma grande Parte de- do retórico em expressões como to be in good fig les durante o Percurso; mas, antes de comer o [estar em boa forma], to be in full fig [estar em primeiro (para evitar as Acusações que se segui- plena forma], to be in poor fig [estar em más conriam), pegou a Carta e a escondeu sob uma gran- dições], e a mensagem poderia admitir uma interprede Pedra, assegurando-se de que, se ela não o tação diferente. Ainda assim, o destinatário estaria visse comer os Figos, nunca poderia acusá-lo; privilegiando interpretações possíveis de figo, e não mas, sendo agora acusado com muito mais rigor de maçã ou gato. 14 50 John Wilkins, Mercury; Or, the Secret and Swiftt Messenger, 3ª ed. (Londres, Nicholson, 1707) pp. 3-4. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. 2. A mensagem é uma alegoria Há certamente uma diferença en(seqüência de metáforas), escrita Entre a intenção tre discutir a carta de Wilkins e por um poeta: o destinatário, seguindiscutir Finnegans Wake. do autor e o propósito do determinados indícios, procura Finnegans Wake pode nos ajudo intérprete existe na mensagem "um segundo sentido dar a colocar em dúvida até o oculto baseado num código poético suposto bom senso do exemplo de a intenção do texto e privado, válido apenas para aquele Wilkins. Mas não podemos um texto pode ter texto". Sendo assim, é possível que desconsiderar o ponto de vista do o destinatário chegasse a várias himuitas leituras escravo que testemunhou pela póteses contraditórias. Entretanto, primeira vez o milagre dos textos mas não qualquer para legitimar a hipótese escolhida, e de sua interpretação. Se há algo leitura. provavelmente ele faria a ser interpretado, a interpretacertas hipóteses prévias sobre ção deve falar de algo que deve o possível remetente e o possíser encontrado em algum lugar, vel período histórico em que o texto foi produzie de certa forma respeitado. Assim, pelo menos do. Isso nada tem a ver com a pesquisa sobre as no decorrer de minha próxima conferência, miintenções do remetente, mas certamente tem a nha proposta é: vamos primeiro assumir o lugar ver com a pesquisa do quadro cultural da mendo escravo. É a única maneira de nos tornarsagem original. (pp.50-51) mos, se não os senhores, ao menos os servos Por isso, Eco afirma que acredita "piamente" na respeitosos da semiótica. existência de "certos critérios ‘econômicos’ com base Umberto Eco tem razão ao propor "vamos assunos quais certas hipóteses serão mais interessantes que mir o lugar do escravo. É a única maneira de nos outras". tornarmos, se não os senhores, ao menos os servos A provável conclusão desse intérprete sofisticado respeitosos da semiótica". Porque, na primeira vez seria que a carta encontrada na garrafa havia feito em que o destinatário da carta e dos figos acusou-o referência, em algum tempo e em algum lugar, a figos de ter comido grande parte dos figos e alegou que a de verdade e a um certo escravo. Havia sido enviada carta afirmara isso contra ele, o escravo não acredipor um determinado remetente para um dado destina- tou que ela tivesse o poder de dizer isso. Mesmo tentário. Mas agora havia perdido essa referência. do comido os figos, negou o fato com a maior seguPor outro lado, concluiria também que a mensagem rança, acusando a carta de ser uma testemunha falcontinuará sendo um texto que com certeza poderia sa e mentirosa. ser usado para enviar incontáveis cestas e outros tanNa segunda vez, embora tivesse tido o cuidado tos figos, mas certamente não para enviar maçãs ou de, antes de comer os figos, esconder a carta sob unicórnios. uma grande pedra, para impedir que presenciasse a O destinatário poderia ainda imaginar, o remeten- cena e evitar que o acusasse depois, ainda assim, ela te, o escravo e o destinatário desaparecidos, envolvi- teve o poder de provar que mais uma vez ele havia dos, de modo ambíguo, com a mudança de coisas em cometido aquela falta. O escravo-mensageiro, então, símbolos, por exemplo, usar figos para fazer uma in- como diz Eco, testemunhou pela primeira vez o sinuação misteriosa. Nesse caso, o nosso destinatá- milagre dos textos e de sua interpretação. Descorio poderia usar aquela carta como uma mensagem briu que havia algo naquela carta que ele devia enanônima, para testar uma série de significados e re- contrar e, de certa forma, respeitar. E foi o que fez, ferentes. confessando a falta e passando a admirar a "DivinApós ter levantado todas essas possibilidades de dade do Papel". interpretação, seria possível então o destinatário dizer O leitor está na moda,15 mas existe algo no texto que a mensagem pode significar muitas coisas, mas que ele - como o "escravo" da história de Wilkins não que ela pode significar qualquer coisa. Ela diz, não pode deixar de aceitar e, de certa forma, respei"com certeza, que era uma vez uma cesta cheia de tar. Considero que Eco conseguiu ''tocar''16 o leitor no figos. Nenhuma teoria voltada para o leitor pode evitar sentido de fazê-lo compreender que17 entre a intenuma restrição como essa". ção do autor e o propósito do intérprete existe a Ao finalizar a Conferência sobre Interpretação e intenção do texto e que um texto pode ter muitas leiHistória, Eco conclui: turas, mas não pode ter18 qualquer leitura. 15 Possenti, Sírio. ''A leitura errada existe''. In: Leitura: Teoria & Prática. Campinas, SP, Faculdade de Educação UNICAMP, nº 15, p.1216, jun. 1990. 16 Idem, ib. 17 ECO, Umberto. (1993:29). 18 Idem, ib. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 44-51, jan./jun., 1997. 51 O objeto deste artigo é a análise de palavras usadas para designar o Diabo em Grande Sertão: veredas, objetivando verificar alguns traços de arcaismos nestes signos lingüísticos e também examinar como estes signos refletem a visão de mundo e a realidade histórica e cultural de um grupo social. Palavras-chave: lexicologia, realidade sócio-cultural The object of this paper is the analysis of words used to designate the devil in Grande Sertão: veredas, in order to verify some archaic nature in these linguistic signs and also to examine how these signs reflect the representation of the world and the historical and cultural reality in a social community. Key-words: lexicology, social and cultural reality 52 * Ana Maria P. Pires de Oliveira é professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Mestre em Lingüística e Língua Portuguesa pela UNESP - Araraquara-SP. Doutoranda em Lingüística e Língua Portuguesa na UNESP Araraquara-SP. DESIGNATIVOS DO VOCÁBULO ‘‘DIABO’’ EM ‘‘GRANDE SERTÃO: VEREDAS’’ UM ESTUDO SÓCIO-ETNOLINGÜÍSTICO Ana Maria P. Pires de Oliveira* As relações existentes entre língua, cultura e sociedade se manifestam, principalmente, com respeito ao modo como o sistema lingüístico pode refletir a visão de mundo de uma cultura. Nessa linha de pensamento, a língua pode ser vista como um indicador cultural, o que nos possibilita crer que a história da língua e a história da cultura percorrem trilhas paralelas. Sapir1 reforça que a língua não existe desligada da cultura, ou seja, de um conjunto socialmente herdado de práticas e crenças que norteiam o cotidiano de cada comunidade. Desse modo, cada sociedade recorta e recria, a sua maneira, a realidade. O homem partilha, com os elementos de seu grupo, de princípios comuns transmitidos coletivamente e, assim, os diferentes grupos sociais estabelecem seus valores, seus costumes e crenças e, também, os assuntos que serão legados ao silêncio, isto é, que serão tabu. Embora tenha um caráter universal e seja um fenômeno encontrado em todos os tempos, o tabu lingüístico não apresenta uma uniformidade. Ele varia de comunidade para comunidade, podendo, ainda, ser temporário, ou seja, vigorar até o tempo em que persistir o estigma do tabu. Os vocábulos tabu não chegam a desaparecer totalmente; de um modo geral, são mantidos, algumas vezes sob formas variantes, outras vezes, apresentam alterações em sua estrutura. Toda língua, através do universo vocabular que a liga ao mundo exterior, reflete a cultura da sociedade à qual serve de meio de expressão e interação social. E como o 1 usuário da língua vai constituindo seu vocabulário ao longo da vida, podemos dizer que o léxico se configura como o somatório das experiências próprias de uma sociedade e de sua cultura. Como vimos, todo sistema léxico representa o resultado das experiências acumuladas de uma sociedade e da cultura através dos tempos. Como agentes no processo de criação e mesmo de perpetuação lexical, os membros que integram esta sociedade, vão continuamente, recriando ou perpetuando o vocabulário de sua língua. Esse contínuo processo de desenvolvimento e de criação determina a expansão lexical, motivada pelas mudanças sociais e culturais. Pode ocorrer, também, que vocábulos caídos em desuso sejam resgatados e voltem à baila, geralmente com nova acepção, após receber interferência de lexias pertencentes à mesma esfera de significação. Estas formas variantes proporcionam um matiz renovador e evidenciam claramente o espírito criador da língua. Em vista disso, podemos assinalar que a variação e a mudança são fatos inerentes à própria essência da língua e que a língua não é dinâmica porque muda, mas ela muda por que sua natureza é dinâmica. Ainda nessa linha de raciocínio observa Coseriu que: "la lengua cambia sin cesar, pero lo cambio no la destruye y no la afecta en su "ser lengua", que se mantiene siempre intacta. Ello, sin embargo, no significa que el ser sistema sería independiente del cambio, sino todo lo contrario, porque el cambio en la lengua no es "alteración" o "deterioro", como se dice en terminología naturalista, sino reconstrucción, SAPIR, E. ''Língua, raça e cultura''. In A linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1971. Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997. 53 renovación del sistema y asegura 3 - Designativos que denotam su continuidad y su funcionatamanho: miento."2 Satanazim5, Romãozinho, MorO léxico é o nível Temos, assim, as mudanças e cegão, Grão-tinhoso, Cão-miúdo, variações inevitáveis em qualquer línlingüístico que revela Anhangão, Satanão, Demonião, Digua que, embora, possam variar de abinho, Dioguim. com mais acordo com suas particularidades 4 - Designativos que sofreram transparência o históricas, com fatores de natureza alteração fonética: extra-lingüística e, também, devido Demo, Diá, Dê, Canho, Xu, ambiente físico e social ao contato com outros idiomas no Drão, Dião. dos falantes. mesmo espaço geográfico, aceleram 5 - Designativos que incorpoou contraem esta natural ram a idéia de cor: efervescência lingüística. Desse Bode-preto, Pé-preto, Das-trevas, modo, se considerarmos a natureza Tisnado, Carocho. dinâmica da língua e, ainda, a antigüidade dos fenôme6 - Designativos de caráter genérico: nos de variação e mudança lingüística somos levados a O Indivíduo, o Cujo, o Ele, o Coisa, o Aquele, o pensar que o estado natural de toda língua, por mais Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O. reduzida que seja sua área geográfica, deverá ser o esta7 - Designativos consagrados pela tradição judaido de mutabilidade, ou seja, toda língua exibe sempre co-cristã: uma feição polimórfica. Satanás, Demônio, Lúcifer, Belzebu. Assim, podemos perceber que o léxico é o nível Para a análise dos dados consideramos, além das relalingüístico que revela com mais transparência o ambien- ções língua/cultura/sociedade, os aspectos sócio-culturais te físico e social dos falantes. O nível lexical é, portanto, característicos do sertão mineiro e de sua gente- vaqueio que melhor testemunha a atuação de forças sociais ros, jagunços, homem do campo em geral - e as caractemodeladoras da vida e do pensamento de uma comuni- rísticas físicas e geográficas desta região. dade. A análise das lexias arroladas no primeiro campo léxiNo presente trabalho procuramos analisar os co - designativos formados com nomes de animais - mosdesignativos do vocábulo diabo, na obra Grande Ser- tra a preferência por animais como o cão e o bode, utilizatão: veredas, de Guimarães Rosa.3 Foi nossa intenção dos no processo de denominação. A tradição popular tem verificar não apenas as possíveis marcas arcaizantes apresentado o diabo em variadas formas animais, entre presentes nestes signos lingüísticos, mas também a ma- elas a de porco, bode, veado, cão, mosca e touro. Entreneira pela qual essas lexias refletem a visão de mundo e tanto, a denominação a partir da figura do cão e do bode a realidade histórico-cultural de um grupo social. destacou-se na narrativa de Riobaldo, tendo sido motivaEmbora inventariássemos os inúmeros designativos da, possivelmente, por reflexos da herança sócio-cultural, da lexia diabo existentes na obra em questão, seleciona- uma vez que, segundo a tradição popular, acredita-se semos, para este estudo, apenas algumas dessas formas rem esses animais portadores de presságios. lingüísticas, dado os limites do presente trabalho. AsA tradição cristã faz referência ao bode como elesim, agrupamos os designativos em cinco campos léxi- mento relacionado ao mal e, segundo crença disseminacos4, considerando-se a presença de traços semânticos da no meio rural, esse animal é conhecido pelos estragos comuns a determinados grupos de nomes. Deste modo, que causa às plantações e às colheitas. A figura do cão os dados foram reunidos em torno dos seguintes vinculada à idéia de diabo é encontrada em Nogueira, sintagmas que encabeçam cada campo: segundo o qual, no século XIX, "nos Países Baixos, era 1 - Designativos formados com nomes de animais: costume expulsar os cães das igrejas e inscrever à porta: Cão, Cão-tinhoso, Cão-extremo, Cão-miúdo, Bode-preto. Os cães, fora do templo do Senhor"6 Ao que parece, a 2 - Designativos que denotam sisudez: tradição secular de vincular a figura do diabo a de certos O Que-nunca-se-ri, o Que-não-ri, o Muito-sério, o animais manteve-se forte no léxico do sertanejo, retraSempre-sério, o Sem-gracejos, o Severo-mor, o Mal-en- tando, assim, a imagem do homem rústico, aferrado às carado, o Austero superstições, crenças e tradições. 2 Citado por LOPE-BLANCH, J. M. Investigaciones sobre dialectología mexicana. México: Instituto de Investigaciones Filológicas, 1990, p.13. 3 ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão: veredas, 26 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 4 Neste estudo, adotarmos o conceito de campo léxico apresentando por Dubois, ou seja, o conjunto de palavras que designam os aspectos diversos de uma técnica, uma relação, uma idéia etc.'' 5 Nos exemplos utilizados para este trabalho, - im é um sufixo irregular, de uso popular, também usado entre os habitantes do sertão mineiro. 6 NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. São Paulo: Ática, 1986, p.60 54 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997. As unidades lexicais agrupadas no gistrar que o fanatismo religioso, a Influenciados por campo léxico referente aos questão do tabu e a ignorância acerdesignativos que denotam sisudez reca de questões de ordem religiosa lendas e superstições, metem ao aspecto circunspecto com existente em muitas comunidades os falantes deixam de o qual o diabo é apresentado. Para rurais do Brasil influenciam, consiexpressá-lo, o autor utilizou-se, na deravelmente, a escolha lexical dos pronunciar os maioria das vezes, de lexias composfalantes designativos de diabo tas como, o Que nunca-se-ri, o SemOs itens lexicais reunidos no com receio de que algo pre-sério, o Muito-sério, o Sem-gracampo léxico - designativos que incejos, o Severo-mor, o Austero, o Malcorporam a idéia de cor - registram de ruim possa encarado, entre outras, evidenciana preferência pela cor escura, preacontecer-lhes. do, assim, a força do sobrenatural mata, encontrada nos vários nifestada na crença ferrenha, espadenominativos de diabo. A tradição lhada entre o homem do campo, de judaico-cristã refere-se ao diabo que o diabo tem aspecto sóbrio e enfezado. Tal convic- como o Príncipe das Trevas o qual, por desobediência ção é resquício de uma sociedade agrária conservadora a Deus foi precipitado ao reino das trevas, da escuriem virtude da estagnação cultural, e do isolacionismo dão. Assim, quer se apresente na forma humana ou existente em áreas rurais ainda hoje isoladas geografi- animal, é, freqüentemente, representado por figura de camente. cor preta, ou por expressões que remetem à cor escura Os itens lexicais arrolados no campo léxico - - tisnado (requeimado, tostado, enegrecido), carocho designativos que denotam tamanho - expressam a cren- (que tem a cor escura, trigueira), trevas (escuridão abdice de que o sertão é cheio de mistérios, de buscas e soluta), como atestam os exemplos Bode-preto, Pédescobertas constantes, um contínuo caminhar pelas ve- preto, Das-trevas, Tisnado e Carocho. redas onde habita o Grão-tinhoso ou o Cão-miúdo, o A tendência conservadora que caracteriza a vida do Satanão, o Satanazim, o Dioguim, o Diabinho ou o povo rude e humilde do interior do Brasil que, ainda, Romãozinho. O traço semântico tamanho, observado nes- vive mergulhado no passado e norteia suas vidas conses exemplos, deixa transparecer a crença enraizada no forme preceitos de tradição judaico-cristã permea-dos íntimo do sertanejo, de que ali convivem um diabo meni- por crenças de vertentes indígena e africana, acaba por no que faz estripulias, travessuras e um diabo adulto, sem- manter a tradição, isto é, a preferência por certas lexias pre ativo, espreitando os espíritos mais simples e rudes. A já consagradas na comunidade na qual se inserem. referência a esses dois estágios em que o diabo pode se As unidades lexicais que compõem o campo léxico manifestar deixa transparecer o poder que o sobrenatural designati-vos de caráter genérico - evidenciam o uso de exerce sobre a população do meio rural. Essas supersti- termos generalizantes que, na linguagem de Riobaldo se ções, mitos e crenças persistem ainda, nessas áreas, ali- especializam deixando, assim, de designar um ser qualmentadas pela distância existente entre uma propriedade quer, cujo nome não se quer ou não se pode declinar, para rural e outra e, principalmente, pelo isolamento que se nomear, especificamente, o diabo. Essas lexias estão, na encontram dos grandes centros culturais. É o ermo que maioria das vezes, antecedidas do artigo definido, o que impera entre as propriedades rurais do sertão. lhes confere o caráter individualizador. Temos, assim, uniJá as unidades lexicais reunidas no campo léxico - dades lexicais como o Indivíduo, o Cujo, o Ele, a Coisa, designativos que sofreram alterações fonéticas - são re- o Aquele, o Dito, a Figura, o Outro, o Tal, o O. Vale sultantes das mudanças fonéticas ocorridas nas lexias, lembrar que encontramos, com freqüência, na fala popuDemônio, Diabo, Canhoto, Xuxo (ou Exu), Dragão e lar, expressões com termos genéricos: o dito cujo, como Diabão, donde resultaram as formas variantes Demo ou diz o outro, aquele um, empregados quando não se pode Dê, Diá, Canho, Xu, Drão e Dião. E importante assinalar ou não se quer proferir o nome de alguém. O emprego de que a conduta lingüística pode, por vezes, ser influencia- Ele, por exemplo, como designativo de diabo remete à da pela noção de poder. Parece-nos pertinente mencionar não-pessoa. que o poder, entendido como algo que tem que ser acataO uso do designativo O representa, certamente, uma do ou, ao mesmo tempo, como algo que se deva opor tentativa de expressar "o fim" das dúvidas que atormenresistência, exerce influência considerável na seleção lin- tam o cotidiano de Riobaldo. Representa esse güística dos falantes. denominativo o símbolo do temor sobrenatural que imDesse modo, influenciados por lendas e superstições pede as pessoas de pronunciarem o nome nefando, no existentes na comunidade, os falantes deixam de pro- caso, o do diabo. Processa-se, nesse caso, a concentranunciar os designativos de diabo com receio de que algo ção do máximo de significado no mínimo de significante. de ruim possa acontecer-lhes. Utilizam-se, então, das A crença no poder sobrenatural, disseminada entre a formas reduzidas, um modo alternativo, segundo a crença maior parte das comunidades rurais do sertão, popularipopular, de referir-se ao diabo sem invocá-lo, ou seja, zou o hábito de que não se deve proferir o nome de sem correr o risco dele fazer-se presente. Importa re- entidades vinculadas ao mal, para que nada de nefando Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997. 55 venha acontecer. Portanto, utilizamdo léxico comum de uma língua só A grande e se dos designativos de caráter geral, será possível à luz dos regionalismos. diversificada sinonímia quando necessitam referir-se a essas A grande e diversificada sinonímia entidades. utilizada na obra para fazer referênutilizada na obra para Já as unidades lexicais arroladas cia ao diabo representa importante fazer referência ao no último campo léxico contribuição da cultura popular para diabo representa designativos consagrados pela trao léxico da língua portuguesa. Tal fato dição judaico-cristã - formam corparece consolidar-se na crença de que importante po com toda essa múltipla nomeao nome do espírito do mal não deve contribuição da cultura ção de uma mesma figura. Entreser pronunciado, o que faria com que tanto, a baixa ocorrência desses ele se tornasse presente. Essa crenpopular para o léxico designativos talvez seja justificada dice popular parece concentrar-se no da língua portuguesa. pelo fato de tratar-se de vocábulos fato de que é menos "pecado" profede origem erudita. rir os seus diferentes designativos, Entre as unidades lexicais reunidas nesse campo - denominados por Riobaldo nomes de rebuço. Satanás, Demônio, Lúcifer e Belzebu - apenas a lexia Estes itens lexicais, ainda produtivos na cadeia do Belzebu apresenta formas variantes, quais sejam, léxico comum pela força da tradição religiosa na memóBerzebu, Berzabum, Berzabu e, ainda, Barzabu, lexia ria popular, definem-se para o usuário como formas que resgatada da fala de Riobaldo. Outras duas lexias que se permitem encobrir, disfarçar ou abrandar o que não pode agrupam neste campo - Satanás e Demônio - apresen- ou não deve ser proferido, uma vez que reconstituem a tam as formas reduzidas Satã e Demo. imagem de seu portador imediato, deixando, também, A análise dos dados testemunha a presença, bastante transparecer aspectos inerentes à fé e à devoção de um freqüente, na fala do homem do meio rural, de lexias de grupo social. caráter popular como Capeta, Tinhoso, Coisa-ruim, etc., A análise dos dados permitiu-nos observar a existênem detrimento das formas ortodoxas como Satanás, De- cia de unidades do léxico que assumiram matizes espemônio, Lúcifer e Belzebu. ciais configurando-se como brasileirismos/regionalismos. À guisa de conclusão foi-nos possível observar que Por outro lado, o usuário da língua, motivado por fatoo emprego de arcaísmos associa-se ao de regionalis- res de natureza geográfica, física e sócio-cultural, cria mos, na medida em que, muitos deles, são formas em vocábulos específicos a partir de elementos pertencendesuso nas áreas mais desenvolvidas do país. Entre- tes ao sistema, atribuindo-lhes "cor local". O estudo por tanto parecem continuar subsistindo em certas regiões nós efetuado permitiu-nos verificar a presença do social rurais não afetadas, ainda, pelo desenvolvimento oriundo atuando no processo de representação da realidade, o da civilização moderna. O isolamento, característico que reforça o pensamento sapiriano, segundo o qual "fadessas áreas em relação a outras no país, é devido, tores físicos só se refletem na língua, na medida em que sobretudo, à precariedade dos meios de comunicação e atuarem sobre eles fatores sociais."8 à falta de contato intenso com outros grupos sociais, o Vale reiterar que o estudo do léxico utilizado por um que justifica o fato de seus habitantes conservarem tra- grupo social leva-nos a inferências acerca do ambiente ços de linguagem representativos de outros períodos sócio-cultural de seus integrantes. Por fim, assinalamos da história da língua. que a análise realizada neste trabalho possibilitou-nos, Em seus estudos sobre o português do Brasil, Silva portanto, reforçar a idéia de que Neto7 menciona a importância dos regionalismos para a "usos e costumes, tradições, mitos e lendas, hábitos e história da língua e para a pesquisa etimológica. Assinala linguajar retratam profunda feição arcaizante, próo autor que os regionalismos, embora geograficamente pria de população segregada. O insulamento e o analconfinados e socialmente desprestigiados, seriam mefabetismo explicam a permanência dessa herança lhor tratados se enfocados sob uma perspectiva histórisecular. Quanto mais se penetra no sertão, maior é a ca. Segundo o autor, antes da constituição da língua cofisionomia arcaizante."9 mum temos apenas os regionalismos das diferentes parFoi precisamente aspectos dessa fisionomia arcaizante tes do País que fornecerão a matéria-prima para a confi- manifestos na língua que tentamos demonstrar através guração do léxico da língua comum. Atenta, ainda, esse da análise dos designativos de diabo, recolhidos da fala estudioso para o fato de que uma correta interpretação de Riobaldo. 7 SILVA NETO, S. História da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1986, p.307. ''Língua, raça e cultura'', cit., p.45. 9 ARROYO, L. A cultura popular em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editorial/INL, 1984, p.7. 8 56 Papéis - Rev. Letras UFMS, Campo Grande, MS, 1(1): 52-56, jan./jun., 1997.