Untitled - Revista Zé Pereira

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Untitled - Revista Zé Pereira
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ALÍVIO NECESSÁRIO
A Zé Pereira número 3 chega às bancas com vários motivos para celebrar. Em nossa versão virtual, estreamos na cobertura diária acompanhando o maior festival de
cinema da América Latina, o Festival do Rio. “Um necessário alívio” à seriedade da
crítica atual, observou o cineasta e crítico Eduardo Valente, editor da revista online Cinética.
Foi mais um sinal verde para o fortalecimento do site da Zé Pereira, um veículo pensado para levar ao leitor algo mais do que uma simples versão digital da
edição em papel. Neste número, a Zé Pereira online exibe quatro curtas-metragens,
entre eles o premiado “Batuque na cozinha”, e o lançamento mundial da versão pirata definitiva de “Tropa de elite 5”! Exclusividade da Zé Pereira. Nem os vendedores ambulantes tiveram acesso à cópia. E, ainda, o filme que deu origem à série do
Urubucamelô.
Já o blog ganhou mais fôlego. Além das contundentes observações sobre o
caos nosso de cada dia, ele traz agora reportagens sobre a vida cultural do Rio de
Janeiro e arredores. Atenção: vida cultural!
Por falar em caos… o nosso antiquado e caótico sistema de transporte público é um flagelo esmiuçado nesta edição. E para deixá-lo, caro leitor, com água na
boca, publicamos um capítulo de “O Dia Mastroianni”, novo livro do escritor e colaborador da Zé Pereira, João Paulo Cuenca. O nosso aristocrata do mês é o cangaceiro mais carioca do cinema nacional: o montador Severino Dadá, cidadão emérito
do bairro da Glória.
Vai um biscoito Globo aí?
foto: RODRIGO LINARES
CONSELHO EDITORIAL
Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima, Olívia Ferreira,
Pedro Garavaglia, Roberto Ribeiro.
EDITOR
Eduardo Souza Lima
PROJETO GRÁFICO
Radiográfico (www.radiografico.com.br)/ Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia,
COLUNISTA
Arnaldo Branco (www.gardenal.org/mauhumor)
COORDENADOR DO FOLHETIM
Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br)
REDATORES
Anna Azevedo, Bruno Porto e Eduardo Souza Lima
REVISÃO
José Figueiredo
CAPA
Flávia Carneiro de Carvalho,
por Pedro Garavaglia
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO
Adriana Nolasco (www.atequaseperto.blogspot.com), Alessandro Ferreira, Carla Andrade, Denise Lopes, Dimmi Amora, Eloar Guazzelli, Eric
Garault (www.ericgarault.com), Flávio Izhaki (http://bohemias.blogspot.com), Fernando Gerheim, Leonardo (http://rasuralivre.blogspot.com),
Luiz Henriques (http://arsgratiars.blogspot.com), João Paulo Cuenca (http://oglobo.globo.com/blogs/cuenca), Marcello Monteiro, Marina
Gonçalves (www.marinag.blogger.com.br), Michael Ende (www.michaelende-brazil.com), Ratão Diniz (www.flickr.com/people/rataodiniz), Rodrigo
Linares (www.cadernosbrancos.blogger.com.br), Rodrigo de Oliveira e Rogério Durst.
SITE
Marcos Gurgel (programação), Radiográfico (design) e Eduardo Souza Lima (edição)
www.revistazepereira.com.br
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Os textos assinados também refletem, necessariamente, a opinião da revista.
TIRAGEM DESTA EDIÇÃO
10.000 exemplares
A revista ‘Zé Pereira’ é uma publicação mensal da Hy Brazil 2001 Filmes e Livros Ltda. (www.hybrazilfilmes.com)
número 3/ano I/outubro de 2007
ARISTOCRACIA CARIOCA:
Severino Dadá
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DA PANELINHA: Cu Velho
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O OUTRO LADO DA RUA:
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SUMÁRIO
O cangaceiro da moviola na terra de São
Sebastião. Por Rodrigo de Oliveira (texto) e
Michael Ende (fotos).
...E o sangue semeou a terra na Leopoldina.
Por Luiz Bello (texto) e Marcello Monteiro
(ilustração).
Um passeio pela Dias Ferreira que não está
na novela das oito, guiado por Rogério
Durst (texto) e Pedro Garavaglia (foto).
CONTO: O Amarelo
Diante da peixeira. Por Dimmi Amora.
QUADRINHOS: 666
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FOLHETIM:
As aventuras de um Zé Pereira
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CANJA
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ILUSTRE DESCONHECIDO
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BUMBO DO ZÉ
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MAL NECESSÁRIO
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O sussurro do Apocalipse.
Por Eloar Guazzelli.
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SINFONIA DE BISCOITOS:
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“33” diz Flávio Izhaki, dando a deixa para
Adriana Lisboa, que escreve no número 4.
O CAOS SOBRE RODAS
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Um capítulo de “O Dia Mastroianni”,
o novo livro de João Paulo Cuenca.
Um ensaio fotográfico de Eric Garault
acompanhado por Anna Azevedo.
O carioca é refém das empresas de ônibus.
Charges de Leonardo, texto de Alessandro
Ferreira e Carla Andrade.
SÉRIE: Urubucamelô em
“Que cheiro inominável é esse que
vem da Barra da Tijuca?”. Uma história
de Fernando Gerheim ilustrada
por José Aguiar.
A MARCHA SEM VOLTA
DOS CINECLUBES
Maza tem foto até no Irã.
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Denise Lopes radiografa o movimento
que tomou conta da cidade.
POESIA:
Adriana Nolasco vomita tudo
o que não é.
O OLHAR FOTOGRÁFICO
DA MARÉ
Ratão Diniz fala de suas impressões
sobre o Nordeste a Marina Gonçalves.
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aristocracia carioca: Severino Dadá
texto: RODRIGO DE OLIVEIRA
fotos: MICHAEL ENDE
“NÃO EXISTE
CINEMA SEM
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UM BOTEQUIM”
Como boa parte dos que vivem no Rio, Severino Dadá é um carioca
nascido na rodoviária. Foi no começo de 1969 que Dadá aportou
por estas bandas, na condição de “elemento de alta periculosidade”.
Vinha fugido da perseguição política em sua terra natal, Arcoverde,
no interior de Pernambuco, onde era radialista e militava nos movimentos de resistência à ditadura. Este segundo parto, depois da
longa viagem de ônibus, não marcou apenas o início da relação com
a cidade pela qual Dadá se apaixonou imediatamente. O desembarque na rodoviária define também o começo da carreira de um dos
mais importantes montadores do cinema brasileiro.
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Dos primeiros tempos na cidade, vivendo
de favor na casa de conterrâneos e empregado
num terminal de petróleo da Ilha do Governador,
Dadá se lembra com uma alegria pouco comum
nos relatos daqueles que chegam sozinhos e sem
dinheiro numa cidade estranha.
— Meus amigos me disseram: “Venha pra
cá, aqui você não vai passar fome, não...”. Pô,
eles comandavam uma churrascaria lá na Ilha, eu
ia passar fome de que jeito? – brinca.
A chance de subir na empresa petrolífera,
no entanto, foi logo sustada. Sua jornada carioca
tinha outro objetivo.
— Eu descobri que o pessoal de cinema fazia ponto no Beco da Fome, na Cinelândia, ali na
Rua Álvaro Alvim e suas transversais. Trabalhava
muito na quinta pra ser liberado na sexta, às duas
da tarde. Aí, com grana e solteiro, eu me mandava pro Beco, pra ver as pessoas. “Porra, ali é o
Wilson Grey!”.
Numa das bebedeiras de sexta, Dadá esbarrou com o cineasta Fernando Coni Campos,
que se preparava para rodar um documentário
sobre o Campo de Santana, com filmagem já no
dia seguinte. Dadá não pensou duas vezes antes
de aceitar o convite para participar da tal filmagem. Saíram da cervejada direto para o set.
— Voltei pra Ilha na segunda, numa ressaca fodida, pra pedir demissão. “Me cortaram da
rádio, mas agora meu nome vai aparecer é na tela
do cinema de Arcoverde!”. Era uma coisa infantil,
mas era um amor.
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A memória cinematográfica de Dadá chega
até sua primeira infância. No pequeno povoado
de Pedra, onde vivia com a família, o menino se
encantou com a invenção trazida por um grupo
de ciganos. Instalados no armazém de um tio
seu, o espetáculo noturno incluía um grande
lençol branco estendido no fundo do salão, um
projetorzinho barulhento e as cadeiras que cada
espectador trazia de casa. O cardápio? Buster Keaton, Charles Chaplin, O Gordo e o Magro, além
de uma das inúmeras versões de Tarzan.
Mais tarde, com a mudança para Arcoverde,
veio o deslumbre do 35mm e dos 1.100 lugares do
Cinema Bandeirante, “o gigante da Praça da Bandeira”. A cinefilia explode na juventude, quando
passa a trabalhar no serviço de alto-falante do
cinema concorrente, o Rio Branco. Dadá era o
locutor dessas transmissões, e quem trabalhasse
num cinema podia entrar de graça no outro. Esse
foi seu equivalente a um curso universitário:
— Passei uns quatro anos vendo um filme por
dia, às vezes até mais que isso, sem pagar nada.
Nas mesas de bar da cidade, Dadá era tido
como o cinéfilo-mor. E o status de “especialista”
se amplia quando cai em suas mãos uma edição
de “O Cinema: sua arte, sua técnica, sua economia”, livro clássico do historiador francês George Sadoul.
— Aí vem a minha grande transação de descobrir o cinema mesmo, o enquadramento, a geometria, a decupagem, a linguagem.
Ainda em Pernambuco, fez parte da equipe que rodou a primeira versão cinematográfica
de “O auto da Compadecida” (“A Compadecida”,
1969). Foi esse conhecimento que lhe garantiu
os primeiros empregos no começo da carreira.
Numa temporada de dois anos em São Paulo, foi
assistente de direção de Ozualdo Candeias e de
José Mojica Marins. Impressionado com sua habilidade para decupar os roteiros (transformar
uma frase escrita numa imagem produzível), Victor di Mello o convoca para participar da continuação das filmagens de seu “Quando
as mulheres paqueram”, agora no
Rio. E assim, de 1971 em diante,
Dadá se estabelece definitivamente
em terras cariocas.
O salto decisivo para a carreira que o consagrou vem com o convite para trabalhar com o lendário
Nelo Melli, argentino radicado no
Brasil, responsável pela montagem
de obras-primas como “Porto das
que montou, para cá, foram mais de 300 filmes
realizados, entre as funções de montador e editor de som, num espectro de realizadores que vai
de Neville D’Almeida a Paulo Thiago, do cearense Rosemberg Cariry ao boliviano Jorge Sanjinés,
do cinema marginal à pornochanchada. E todos
estes trabalhos podem ser resumidos numa experiência inusitada à frente das câmeras.
Foi em “Tenda dos milagres”, adaptação
de Nelson Pereira para o romance de
Jorge Amado. O diretor chega um dia
para Dadá e diz que tem um personagem para ele interpretar: “É você
mesmo, ora!”. Criando a estrutura do
filme-dentro-do-filme, Nelson fizera com que o jornalista do romance
decidisse filmar a história do sociólogo baiano Pedro Archanjo. Hugo
Carvana faz o jornalista e, em diversas inserções ao longo de “Tenda”, o
Caixas” e “Vidas secas”. As lições do velho Sadoul
e o cinema consumido avidamente nas telas pernambucanas reverberavam até este momento, e
chegam aos ouvidos de Melli:
— “Tengo la información de que usted domina a linguagem, e tiene una intuición cinematográfica muy forte”. Porra, além de dominar a linguagem, eu também sou intuitivo, é? — diverte-se
Dadá, imitando o sotaque de seu primeiro mestre.
É Melli também que o apresenta a Nelson
Pereira dos Santos, com quem formaria uma
parceria definidora de sua vida. De 1974, de “O
Amuleto de Ogum”, primeiro longa-metragem
vemos discutir com Dadá, diante de uma moviola
(a pesada máquina onde se editavam os filmes
antigamente), que rumos dar ao trabalho que estão montando.
Nelson criou ali a imagem-símbolo do
montador brasileiro. Não à toa, o Archanjo da
ficção é chamado de Ojuobá, que significa “os
olhos de Xangô”. Dadá, nordestinamente paciente, ouve as confusões do jornalista/cineasta,
recebe aquele monte de imagens filmadas sem
muito sentido, e faz o trabalho de organização
desse olhar. É o condutor destes olhos de Xangô. E também dos olhos de Nelson Pereira e de
“Porra, além
de dominar a
linguagem, eu
também sou
intuitivo, é?”
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tantos outros com quem trabalhou. Nascido Severino de Oliveira Souza, Dadá assinava no início
de carreira Severino de Oliveira. O nome artístico
definitivo também lhe foi dado por Nelson:
— Dadá é um apelido de infância. Quem
me deu foi minha avó. Um belo dia ao assistir “O
Amuleto de Ogum” eu vejo Severino Dadá nos
créditos. Fui perguntar o motivo
para o Nelson, e ele me disse: “Pô,
mas todo mundo te chama assim!”.
Já o apelido de “cangaceiro da
moviola” parece bastante justo ao
vermos a imagem de Dadá diante dos
batoques e manivelas. Sua dimensão
sertaneja é inegável. Costuma dizer
que foi apadrinhado pelo piauiense
José Medeiros, grande fotógrafo com
fama de antipático, por conta de uma
certa “máfia nordestina” que opera
entre os que de lá vieram. Talvez seja
por essa mesma relação que, circulando pela Glória, onde vive hoje,
Dadá reconheça cada um dos nordestinos que passam por ele. O atendente do bar não precisa falar mais de
uma frase para que Dadá reconheça
imediatamente seu estado de origem,
e talvez até a cidade.
E a figura expansiva, em todo
seu encolhimento e pouca altura, segue risonha pelas ruas do bairro que
biografou em “Memórias da Glória”,
média-metragem de 2005. Dadá, casado há 32 anos com dona Socorro, fala do Rio de
Janeiro com uma propriedade invejável. Conhece,
com precisão de “Guia Rex”, suas ruas e bares —
sobretudo os bares.
— Não existe cinema sem um botequim.
No histórico Botequim da Líder, na esquina da Álvaro Ramos com a Rua da Passagem, em
Botafogo, que ficava em frente ao maior laboratório de cinema da cidade, era obrigatório o trajeto
entre a sala onde se projetavam os copiões dos
filmes e a mesa em que seriam avidamente discutidos — e bebidos. Quando a Líder se muda para
Vila Isabel, onde Dadá vivia desde 1974, a coisa
fica ainda mais intensa.
Na Vila, Dadá passou quase 20 anos, e es-
teve próximo do melhor do samba carioca. Conta
que o amigo Rogério Sganzerla tinha duas grandes obsessões: Orson Welles e Noel Rosa. Da primeira, Dadá deu conta ao montar “Nem tudo é
verdade” e “A linguagem de Orson Welles”, filmes
do diretor que comentam a passagem do cineasta americano pelo Brasil, nos anos 40. Da segunda, bastou apresentar a Vila Isabel
ao amigo. A formação musical dos
dois os aproximou ainda mais. Dadá
e Sganzerla dividiam um passado no
rádio, escolados na música popular
brasileira. Noel era figura obrigatória nas conversas, e se o grande musical imaginado por Sganzerla, que
narraria a história deste e de outros
baluartes do samba, nunca se realizou, temos pelo menos o belo “Isto
é Noel Rosa”, média-metragem de
1990. Este, Dadá não montou, mas
certamente as “visitas guiadas” à
Vila influenciaram bastante sua realização. Essas visitas renderam, no
mínimo, ótimas histórias:
— O Rogério levava umas pessoas diferentes lá pra Vila. Uma vez
apareceu lá no Boteco do Souza com
o Waly Salomão, completamente louco. O Waly com aquela boca
enorme, gesticulando, recitando e
interpretando os sambas todos. O
Martinho da Vila teve uma crise de
riso, e riu tanto que se mijou todo.
Ouvir Dadá contando estes casos de sua
vida deixa a impressão de que ele sempre esteve
nos lugares certos na hora exata em que alguma
coisa entrava para a História. Mas, a onda da “retomada”, este bonde Dadá não pegou. É uma politicagem que não lhe interessa, que vai contra os
seus princípios.
— Eu não vou fazer nunca um filme comportado — sentencia.
Os tempos mudaram, de fato, e Dadá soube se adaptar a eles sem perder a ternura, jamais.
De um lado, não consegue entender como a tecnologia transformou em montadores aquilo que
chama de “apertadores de botão de computador
que pensam que ritmo cinematográfico é bati-
“O Waly com
aquela boca
enorme, gesticulando,
recitando e interpretando os
sambas todos.
O Martinho da
Vila teve uma
crise de riso,
e riu tanto que
se mijou todo.”
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cum de axé-music no liquidificador da linguagem televisiva”. Do outro, juntou-se a uma turma
jovem que sabe apertar o botão sem esquecer de
pensar naquilo que faz. Com a ajuda de seu filho
André Sampaio, premiado curta-metragista e um
dos diretores de “Conceição – Autor bom é autor
morto”, vira-se bem na condição de cangaceiro
da moviola que precisa se transformar, de uma
hora para outra, em cangaceiro do mouse.
— A dinâmica de trabalho com meu pai é
bastante natural, e a minha presença ali do lado
dele garante essa passagem do analógico para o
digital — diz André. — Mas não existe essa coisa
de “papai” e “filhinho” quando estamos na ilha
de edição, não. Ele me esculhamba, vive dizendo
“joga essa merda fora, isso aí não diz nada!”, e aí
corta fora uma seqüência.
O trabalho com Dadá parece ser mesmo
assim, movido a paixões e arrebatamentos. O
jornalista Luís Alberto Rocha Melo foi seu parceiro na realização dos dois únicos filmes que o
montador dirigiu até aqui, além de “Memórias da
Glória”, também o documentário “Geraldo José
— O som bem barreira”, sobre o mais requisitado
sonoplasta do audiovisual brasileiro.
— Ele, filmando, ficava numa alegria danada. — recorda Luís Alberto, que prepara neste
momento uma cinebiografia de Severino Dadá. —
Às vezes ele se emocionava mais com uma história do que o próprio depoente que a contava. Isso
sem falar que nos trechos ficcionais do “Geraldo
José”, onde Dadá prova que tem um talento extraordinário pra dirigir comédia.
Um talento que esperamos ver materializado em breve. O projeto de cabeceira de Dadá,
sua primeira incursão pela ficção, é uma comédia musical chamada “Oxente, my love”. O roteiro, escrito em parceria com André e Luís Alberto,
conta a história de um pequeno cortiço localizado na sua querida Glória, que em determinado
dia é tomado por dois pivetes fugindo da polícia.
— Ali dentro vivem um ex-policial que tortura um boneco só para não perder a prática, uma
vedete aposentada, a Dona Rosinha Fuqui-Fuqui,
um negão intelectual militante do antigo Partidão, os filhos do policial, um viado e uma travesti
que faz ponto na Augusto Severo. É o escracho
total. π
No site: Severino Dadá em ação no cinema
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da panelinha
O Zé diz que eu quase matei o cara, mas acho que não. Estávamos no Cu Velho,
com Arquiduque e um gringo que havíamos trazido para conhecer aquele pedaço da
Cidade Maravilhosa, à beira do Canal do Mangue e ao lado da passagem sob os trilhos
da Central do Brasil, ao lado da Leopoldina, onde a Wenceslau Brás desemboca no Trevo
das Forças Armadas, acho eu. Ali, vários botecos abertos 24 horas por dia recebiam uma
fauna intergaláctica, incluindo malucos da ECO egressos de alguma loucura e ávidos por
algumas saideiras.
Pouco antes, no intrépido Fiat Elba do Arquiduque, enquanto escutávamos alguma
coisa do Men At Work, vendemos ao gringo (detestava Men At Work) a idéia de que aquele
era um programa imperdível. Dez minutos depois, enquanto discutíamos algo sobre o
Mural Porco ou coisa assim, ele se evadia, puto da vida, em um daqueles táxis vindos da
rodoviária (perto dali), onde deve ter deixado o
couro para poder voltar à Zona Sul.
Reza a lenda que Bagá, Marinho, Johnny
e outros, em uma das suas mil madrugadas de
libação, encontraram uma velhinha bebendo
naquele antro e puseram-se a conjeturar sobre
seus atributos sexuais. Não disseram quem
texto: LUIZ BELLO ilustração: MARCELLO MONTEIRO
comeu, mas o nome pegou. E no Cu Velho a
conversa estava muito séria entre eu e o Zé (Arquiduque já se fora), enquanto o dia clareava,
o trânsito vociferava e um esquálido bebum nos pedia qualquer coisa com insistência.
A tática de ignorá-lo não funcionou, pelo contrário. O ralo cavanhaque e algo que
já fora um blazer marrom davam a ele uma certa solenidade para continuar nos pedindo
grana para mais uma. Solene, irado, clérigo, algo intimidatório e me catucando. Nada
do que ele falava era inteligível e, aparentemente, fazia muito tempo que nem ele mesmo
notava isso.
A ressaca já começava a se misturar com o meu porre. O próprio Zé deu uma de suas
peculiares transbordadas (ele não vomita) antes de retomar a discussão. Mais meia hora
ouvindo o bebum e o meu saco também transbordou. Virei-me e lhe dei um empurrão,
pelos ombros. Na verdade, toquei num fantasma, pois debaixo das roupas não havia
quase nada que agüentasse um tranco. Mas a cabeça fez um ruído muito sólido, quase
oco, ao bater no chão de cimento do Cu Velho, onde o corpo ficou estendido, mantendo
um silêncio reconfortante. Em seguida, no maior cavalheirismo, o maître arrastou os
restos do infeliz até a porta, para garantir que não mais fôssemos interrompidos. Não
houve protestos de outros fregueses, terminamos o papo e a ressaca do dia seguinte não
foi maior do que as outras, embora eu jamais vá me lembrar do que é que a gente estava
falando. Praga do bebum.
CU VELHO
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casa 21
editora
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O OUTRO LADO
DA RUA
texto: ROGÉRIO DURST fotos: PEDRO GARAVAGLIA
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Nem só de restaurantes chiques e
artistas globais vive a Dias Ferreira, um dos pontos mais badalados
da Zona Sul do Rio.
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Situada
lá no finalzinho do bairro, de extrema-zonassul, do Leblon, entre as avenidas Ataulfo de Paiva e Bartolomeu Mitre, fica a Rua Dias
Ferreira. A primeira via a ser aberta no bairro, no
século XIX, como Rua do Sapé ou, sem segundas
intenções, Caminho do Pau, é hoje endereço de
comércio de luxo, passarela de artistas e acontecidos da vez e local de trabalho dos fotógrafos
que os perseguem. Abriga 15 restaurantes da
moda, incluindo quatro dos mais caros (no sentido de queridos, claro) japoneses da cidade. O
caro leitor já pode ter ficado sabendo que o local
é, segundo uma celebridade, “a roliúde carioca”.
Mas certamente não sabe que a mesma rua era “o
nosso cantinho” para o espanhol de Málaga Julio
Miguez, de 82 anos, e sua esposa, brasileira e falecida há três anos, Maria.
— A gente se conheceu aqui — lembra ele.
— Ela era doméstica num dos prédios no início
da rua, e eu tinha um botequim na Humberto de
Campos.
Seu Julio, até hoje morador da Dias Ferreira, conta que os dois viveram ali felizes 40 anos,
desde uma época em que os movimentos de pescoço, para ver se a roupa está ajeitada, se alguém
está olhando para você, para olhar para alguém
famoso, ainda não eram marca registrada da rua.
— Esse negócio de gente famosa não é novidade. Antigamente, viviam aqui pela rua o Vinicius, o Tom Jobim, o Carlinhos de Oliveira. Uma
vez esteve em meu botequim, em 1968, o maior
dos artistas brasileiros, meu conterrâneo Oscarito, que falou com todo mundo e deu autógrafos.
O diferente hoje é a empáfia desses meninos que
trabalham em novela.
E este que vos digita nunca tinha, na vida
real, ouvido alguém falar “empáfia”.
Há algo de meio ridículo em alguém de camiseta colorida, bermuda estampada e sandálias
andando cercado por dois caras enormes de terno escuro e gravata. É o que acha o Anderson, 18
anos e engraxate na Dias Ferreira desde os 10.
— O que me garante aqui é a freguesia fixa
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Tem gente que a
gente só sabe que é
famoso por causa dos
“armários” do lado.
de quem trabalha na rua e alguns moradores. Artista está sempre cercado de segurança e nem dá pra
chegar perto. Aliás, tem gente que a gente só sabe
que é famoso por causa dos “armários” do lado.
As meninas Ana Cláudia e Juliana, de, respectivamente, 5 e 4 anos, nunca reconheceram
um artista na rua. Elas moram no Jardim de Alá e
vão para a Dias Ferreira no fim de semana pedir
esmola, mas o máximo que conseguem é mesmo
uma quentinha, como a refeição de feijão, arroz,
macarrão, farofa e frango, por R$ 6,00 no Embalo Bar, que esse repórter garantiu numa tarde de
sábado.
— A gente vê televisão só de tarde em bar e
nunca viu ninguém que aparece lá.
Atrás do balcão do Embalo, que funciona
no número 105 da rua desde 1968, Seu Ivan serve uma porção de costelinha de porco para o freguês Agenor Nunes, que fala pelos cotovelos e
diz freqüentar o bar desde sempre. Com 51 anos,
formação em Geografia, mas carreira de gerente
de banco, ele diz que encontra as duas meninas
na calçada praticamente todo sábado.
— Elas nunca pedem dinheiro, e sim uma
quentinha, que levam pra comer ali na Azevedo
Marques. E quem paga é sempre alguém aqui no
botequim, madame e artista nem olham.
Agenor mora no Alto, na Aperana, num
apartamento grande que foi dos pais.
— O engraçado é que antigamente se vinha
na Dias Ferreira, tomar uma Antarctica Pilsen
no Embalo ou comer uma costeleta à mineira no
(extinto restaurante) Final do Leblon, para fugir da
muvuca do que a gente chamava de “esquina do
ridículo” no Baixo.
Sessão-nostalgia: ele fala do cruzamento de Ataulfo de Paiva e Aristides Espinola onde
faziam ruidoso sucesso noite adentro nos anos
1980 o restaurante Real Astória, o bar Diagonal e
a Pizzaria Guanabara. Agenor conclui que “agora
a tal da muvuca é toda aqui.”
Como já foi dito, ele fala pelos cotovelos:
— Hoje no Leblon é só rua fechada com
cancela e fotógrafo correndo atrás dos famosos
de plantão. A única sensação de normalidade que
eu tenho por aqui esses dias é ver o João Ubaldo de bermudão e chinelo de dedo lá no Tio Sam
conversando com o Chico.
Não, não é o Buarque e nem da Hollanda, e
sim o Francisco Simões, de Portugal, responsável
pelo bar há 30 anos. E Agenor continua explicando que o Leblon era originalmente uma ilha, ou,
em suas palavras, “uma restinga, um recife, uma
pequena ilha”, cercada de água por mar, Lagoa
e dois canais. E que já foi quilombo e sede da
empresa de pesca de baleias do francês Charles
Le Blond. Em que ordem ele só saberia algumas
cervejas atrás.
— Acho que o sonho das madames é no futuro tirar todo o aterro e ilhar isso aqui de novo.
Só que o futuro já chegou na Dias Ferreira. No térreo do Edifício Dora funciona um complexo reunindo a Sapataria do Futuro, a Costura
do Futuro e a Engraxataria do Futuro, que prometem solução imediata de alta tecnologia para
seus problemas de roupa e calçado. Quem andar
um pouco mais chega ao número 521 da mesma
calçada onde fica o passado, o armarinho Mini
Bazar Ltda, tocado por seu Joaquim de Jesus desde 1970. Dentro de sua discreta loja de uma porta,
seu Joaquim não sentiu o tempo passar na Dias
Ferreira.
— Artista eu só vejo quando tem gravação
de novela e tumultua a rua inteira.
As mudanças ele só sentiu no movimento
da loja:
— Tá fraquinho, essas moças novas não
sabem nem pregar um botão.
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Falar mal dos belos tipos faceiros que circulam pela rua parece ser um esporte local. Praticado por um funcionário de mercado que trabalha na Dias Ferreira, não quer ser identificado e a
quem chamaremos doravante pelo codinome de
Zé José.
— Só tem dois mercados nessa rua, e se
você escreve meu nome aí e alguém lê, eu levo esporro ou até demissão.
Segundo Zé, que trabalha entregando compras, o maior problema da rua é a indolência do
leblonense.
— É engraçado que elas chegam aqui carregadas de bolsas de butique ou então com roupa
de ginástica depois de pegarem peso na academia. Aí mandam entregar qualquer compra, mesmo que seja uma sacolinha de nada. Andar na rua
com saco de mercado é coisa de pobre.
Nem todo mundo reclama de carregar os
pesos da rua mais sofisticada do Leblon. O Chico,
“só Chico, sem sobrenome nem endereço, que
quem precisa sabe onde me encontrar”, tem seu
serviço de transportes, uma van que substituiu a
kombi caindo aos pedaços, na área há mais de
uma década.
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— Levo velhinhas pro teatro, pego adolescentes em festa de madrugada, o que for... O
problema aqui é só pra encostar, tem sempre três
filas de carros estacionados, duas do lado ímpar
e uma do par. O engraçado é que nunca aparece
nem guarda e nem guincho.
Como tantos outros freqüentadores da
área, o maior orgulho de Chico é sua carreira artística, que começou, e acabou, na obscura produção para televisão a cabo “Emmanuelle in Rio”,
de 2003, assinada por um certo Kevin Alber.
— Tinha acabado de comprar a van e passei duas semanas levando mulher boa de lá pra cá.
Elas até trocavam de roupa na viatura, na maior
cara-de-pau. Acabei participando de uma cena
que é uma sessão de fotografia num barco que
acaba na maior sacanagem, claro que não sobrou
nada pra mim — diz batendo no barrigão.
Para Chico, ver toda essa badalação sobre a
Dias Ferreira é coisa estranha.
— Estou sempre aqui e não vejo nada de tão
diferente assim, é como se alguém que você conhecesse a vida inteira ficasse famoso na televisão.
Nem tudo que se escreve sobre a rua parece estranho para ele.
— Vi no jornal outro dia que aqui tem os
melhores restaurantes da cidade e é verdade. O
bolinho de aipim com carne moída lá do Jaime
(no Bar Marisqueira) quando sai quentinho é o melhor que eu já comi.
Há o que reclamar dessa rua podre de
chique. Este repórter, por exemplo, em pleno
cumprimento do dever, enfiou o pé num buraco
numa ensolarada tarde de sábado, bem em frente
ao Boteco Belmonte, e passou uma semana com
o tornozelo imobilizado. Foi socorrido por um
passante chamado Robson, vindo do Morro da
Mangueira para fazer um serviço de encanamento na vizinhança.
— Esquenta, não, professor, isso acontece.
Chato é vir de longe pra cair num buraco no Leblon — disse enquanto ajudava o acidentado a se
sentar num banquinho de esquina.
Nada que uma tortinha, bem pequenininha, de R$ 10,00 no Garcia e Rodrigues não resolvesse. O repórter comeu a torta no táxi pensando nas palavras do Agenor:
— Tão tentando transformar isso aqui
numa Barra mais perto e elegante.
Afinal, a Dias Ferreira, apesar de todas as
mudanças, ainda vale a pena? Quem responde é o
Seu Julio Miguez, veteraníssimo da área.
— Freqüento o La Mole quase desde que
inaugurou — diz ele se referindo à tradicional
rede de restaurantes carioca cuja primeira casa
foi aberta na Rua Dias Ferreira em abril de 1958 e
tem até placa comemorativa na calçada. — Outro
dia minha filha mais nova me levou num japonês
aqui, e eu nem achei ruim, só fiquei pensando
qual o motivo de se pagar tanto por tão pouco e
com tanta frescura. Não tem problema de as coisas mudarem, eu acho, só que ninguém pode te
obrigar a mudar também. Depois que eu vendi o
botequim e minha mulher morreu, fiquei pensando em voltar pra Málaga e deixar isso aqui.
Nesses anos já fui duas vezes para a Europa, mas
sempre voltei para os filhos, netos e amigos. Acabei decidindo que agora sou muito mais carioca
do que espanhol. π
19
conto
O AMARELO
O
Amarelo pegou a peixeira e era enorme. Novinha, a lâmina brilhava mesmo naquele lugar
onde o sol só entrava pelas beirolas. Só não brilhava mais que os olhos dele. Nunca tinha visto
aquilo. Já vi doido trincado botar a cara pra polícia sozinho. Um contra vinte. Gritando e soltando pipoco pra todo lado. Mas igual ao do Amarelo, não. Eu não sou de peidar, mas recuei. Acho
que foi isso que fez ele vir pra cima. Acho que eu
também encarava quantos fosse, trepado ou não,
se tivesse me acontecido o que se passou com ele
naquela sala.
Ele era sujeito quieto, não se metia com
ninguém. Não tinha amigos, e ninguém na favela freqüentava a casa dele, que tava sempre com a
porta fechada. Aliás, ele foi o primeiro que eu soube que tinha ar-condicionado em casa. Não bebia,
não fumava e ia na igreja, a do padre, só no domingo de manhã. Foi numa manhã dessa que alguém viu que a Aparecida, única filha dele, já tinha botado peitinho. Na hora que ela ia e voltava
da escola, ela tava sempre com o caderno na frente.
Desde pequenininha que a gente queria ficar olhando para a Aparecida. Ela era muito, muito branca e parecia que tinha uma luz só em cima
da cabeça da menina o tempo todo que fazia o
cabelo dela brilhar. Eu pensava que era uma luz
só dela mesmo. Era o único jeito de me explicar
como só o cabelo dela ficava claro, brilhando daquele jeito, no meio de um monte de criança tudo
igual. Acho que nós pequenininho sonhava com
ela. Depois, já crescidos, a gente apostava quem
ia dar um beijo na boca da Aparecida.
Mas ela não deixava ninguém chegar perto. Era muito calada, igual ao pai. Só tinha uma
colega, a Jéssica, com quem conversava o tem-
20
texto: DIMMI AMORA ilustração: RADIOGRÁFICO
po todo. E elas não falavam com mais ninguém.
Nem com as outras meninas na escola, nem na
favela. Também a Jéssica era a única que o Amarelo deixava entrar na casa dele. Dizia que a menina era filha de gente decente. Mas o Careca, pai
dela, tinha vacilado na favela e foi pra vala. Todo
mundo achava que tinha sido os alemão. Mas o
pessoal do contexto sabia que o patrão da época
mandou passar ele porque era xisnove. Como ele
foi parceiro do patrão quando garoto, ninguém
falava disso.
Até uns nove anos assim, a dona Ritinha
ainda deixava ela ir para a rua de vez em quando
com a Jéssica, mesmo contra a vontade do Amarelo. Mas isso acabou no dia que ele chegou do
trampo e viu a menina olhando de longe o movimento da boca com a coleguinha. Ele agarrou
a Aparecida pelos cabelos e foi gritando até em
casa que não tinha criado filha pra ser mulher de
bandido.
— Quero você mulher de gente importante.
Vagabundo, não! — berrava o Amarelo.
Com o tempo, as roupas iam crescendo, e a Aparecida passou a usar um lenço pra tampar o cabelo que já nem era tão
louro quanto na infância. O Amarelo chegou a matricular ela num cursinho de inglês que abriu na favela. A gente soube depois que ela tinha até computador em casa
para aprender a mexer na Internet. E correu o boato de que o Amarelo pagaria escola particular pra filha. No fim daquele ano,
duas meninas da sala dela estavam grávidas. As outras tinham uma vida normal: ficavam com um e outro nos bailes, sem contar a Pâmela, que a boca inteira tinha pas-
sado. A Jéssica tinha namorado firme do grupo
jovem da igreja.
E a Aparecida era a única bv da favela.
Aquilo instigava os caras todos. Teve um
maluco que botou o nome da peça de Cida. Uma
vez um otário cheirou uma máquina de fotografar
digital, e nós pegamos ela pra tirar uma foto da
Aparecida na rua. Conseguiram um ângulo que
dava para ver a batata da perna toda. Imprimiram a foto e colaram numa parede boca, do lado
de um monte de foto de mulher pelada. Ela era a
única vestida. E ninguém olhava para as outras.
Era um desespero para todo mundo ver ela
crescer linda daquele jeito e ninguém, ninguém,
conseguir chegar nem perto. Se alguém se aproximava, ela continuava andando no mesmo passo e, sem mudar o ar sério do rosto, respondia
a todas as pergunta. Mas
nunca olhava no olho. De
nenhum garoto. Já tinha
neguinho querendo pegar
ela em casa e levar pra boca
pra esculachar. Diziam que
tinha que fazer aquilo antes que viesse um playboy
babaca e descabaçasse pra
depois tirar onda com todo
mundo na favela.
O patrão caiu num tiroteio com os verme
pertinho do Natal. Os mais velhos não quiseram
botar nenhum cria para gerenciar o negócio porque era todo mundo muito novo e escolheram
um tal de Ditão pra ficar de frente. O cara chegou
de outra favela, e a primeira ordem dele é que tinham que arrumar cinco casas pra ele na favela. E
queria só casa boa. Era tudo pra mulher. Cinco é
foda. Tava difícil pra gente arrumar. Tirar quem?
Teve gente que reclamou na cadeia que ele tava
pior que alemão. Levaram uma idéia, e o Ditão
acabou ficando só com três casas. Deixou duas
famílias no morro de onde ele veio.
Todo mundo pensava por causa disso que
ele colocaria o terror, mas o patrão acabou se
mostrando um cara sangue. Deu um ritmo legal
pra boca. Não esculachou
ninguém da favela. Os moradores resolviam qualquer parada direto com ele,
que até acabou com uns arranca-rabos antigos dando
decisão em certas pessoas
que ninguém tinha tido
coragem de dar até ali.
Uma das casas que arrumamos pro Ditão
era a de um vizinho cachaceiro do Amarelo. O Pezinho tava sempre nas biroscas mesmo, e a gente
deu uma idéia para ele ir pra um barraco menor
que a gente mandou levantar perto da endola. Ele
aceitou por um crédito em cachaça. Dizem que
novo vizinho fez o Amarelo começar a procurar
casa pelo morro. Mas ninguém tinha o dinheiro
que ele queria pela dele, que era uma boa. O Amarelo era um mestre-de-obra caprichoso.
Todo mundo conta que o Ditão nem gostava muito da mina que ele botou nesta casa. Só
tinha trazido ela, que já estava gordinha, porque
foi a primeira a dar um menor pra ele. Mas foi saber da história da Aparecida, e ele não saía mais
de lá. Teve um tempo que ficava mais na casa que
na boca, mesmo sendo ela um lugar não muito
seguro.
Ditão era pintoso. Nem chegava a ser moreno. Mais pra branco. Tinha quase um metro e oitenta e um rosto bem talhado. Mandava comprar
as roupas em shopping, e o perfume dele chegava junto com a carga de farinha. Gostava de andar de calça e sem camisa para mostrar o peitoral
malhado dos tempos que era vigilante. Foi assim
O Amarelo
era um
mestre
de obra
caprichoso.
21
O Amarelo,
que gritava
que eu encontrei ele num
início de tarde na varancomo um
da da casa preferida. Tava
também com uma glock
louco, ficou
na cintura. Eu fui levar um
recado, mas ele nem ouviu.
em silêncio.
A Aparecida tava chegando naquela hora. Ele cumprimentou ela com um
sorriso e ela fez um aceno com a cabeça, olhando
com aquele jeito sério, sem mexer o lábio.
O recado que eu fui dar era importante. Os
alemão queriam invadir naquela noite. Depois
que a Aparecida entrou, o Ditão desceu comigo e
fomos montar um plano. Mesmo a gente sabendo da parada, foi foda segurar. Os caras tinham
colado com os verme e o tiro comeu a noite toda.
Eu, o Ditão e mais dois chegamos a ficar meia
hora numa vala só se defendendo. Sorte nossa
que tinha muito peidão do outro lado, e eles resolveram sair fora quando amanheceu.
Passaram dois dias sem os cu vermelho
voltar. A gente fez uns contatos por telefone e
conseguimos comprar os vermi que eles tinham
contratado. Depois que eles pegaram o arrego, o
morro voltou a ficar tranqüilo. Eu tava com o Ditão na hora que ele saiu do chuveiro, pegou uma
cerveja do freezer, abriu, colocou devagar no
copo, deu uma golada e mandou eu ir buscar a
Cida. Eu fiquei bolado. A parada não podia ser assim. Disse para ele que aquilo não era costume
do morro, que só tinha tido cria como patrão até
ele chegar, e que poderia pegar mal com os chefes. Ele respondeu seco, sem olhar pra mim, depois de mais um gole:
22
— Faz o que eu tô mandando.
O Amarelo não queria abrir a porta quando chegamos. Achou que era invasão. Quando
eu disse quem era, ele abriu uma frestinha e perguntou o que eu queria. Eu disse que tinha que
entrar pra falar com a Aparecida e ele mandou
eu embora. Eu podia até tentar trocar uma idéia
com ele, explicar a situação e que não tinha jeito,
como eu pensei em falar com a Cida. Mas achei
que não adiantaria. Engatilhei a pistola e dei um
pé na porta que jogou o Amarelo longe. A dona
Ritinha gritava chorando da porta do quarto, na
frente da Aparecida, que mantinha o olhar de
sempre. Ao me ver, ela saiu de trás da mãe e fez
ela sentar. O pai gritava para ela ir para o quarto,
mas a menina, em vez disso, ajudou ele a levantar.
Eu lembro que ela segurou ele nos dois braços e
falou só uma vez:
— Eu vou.
A mãe deu um berro e rebentou de chorar sem parar. O Amarelo, que gritava como um
louco, ficou em silêncio. Foi perdendo as forças
e caindo sozinho enquanto ela tentava segurar
o pai pelo braço. Quando o Amarelo sentou na
mesinha de centro, ela virou as costas para eles
e saiu andando, com passos largos e a cabeça erguida, sem se incomodar com a multidão que já
se aglomerava nas vielas, janelas e lajes ao redor.
Sem entender nada, eu já me preparava para
sair quando ouvi o grito do Amarelo vindo com a
peixeira e o tal olhar que me paralisou. Por sorte
eu não estava sozinho, e os irmãos queimaram o
Amarelo quando ele já tava quase baixando a peixeira em mim. Eu fiquei com sangue dele no corpo todo, que lavei depois. Mas aquele olhar nunca
saiu de mim, mesmo lavado com o sangue de um
monte de outros que caíram nestas quebradas.
23
SINFONIA DE
24
BISCOITOS
fotos: ERIC GARAULT
texto: ANNA AZEVEDO A sala, quadrada, tem pé direito de
quatro metros de altura e, à primeira
vista, parece um cofre forte. Dentro dela,
sacas e mais sacas em pilhas de tamanhos variados, com bom respiro no teto.
E um pulsar de estalos, aqui e acolá,
em andamentos intermitentes.
25
A porta ficou entreaberta. O gato, lân-
guido, instala-se sobre uma das sacas, morninha.
Logo é expulso. Felix é da casa. Mas os domínios do felino terminam naquela porta, entrada do depósito dos biscoitos
Globo, a rosquinha de polvilho que caiu nas graças do carioca, galgando o altar dos ícones da cidade praia-Maracanã-engarrafamento:
pontos-chave da logística de distribuição da mercadoria.
E por falar no gato, os irmãos Ponce, proprietários das rosquinhas,
tiveram astúcia digna do bichano.
Em 1965 era inaugurada, no Rio de Janeiro, a TV Globo. Um ano depois e
alguns anos antes de a marca Globo ser associada a um dos maiores negócios de
comunicação do mundo, uma padaria em Botafogo registra a patente para produtos alimentícios. Hoje, seria um case de marketing analisado nas faculdades de
administração. E recentemente serviu de modelo para o primeiro concorrente
à altura do Globo: o Extra, que invadiu a praia dos Ponce disposto a dividir o
Ibope com as famosas rosquinhas que nasceram na Record, uma panificação
no bairro do Ipiranga, em São Paulo.
Mas nada que ameace a liderança do Globo no mercado dos
biscoitos de polvilho. Sucesso absoluto nos horários nobres das
praias, dos engarrafamentos das vias expressas e do Maracanã, a marca, um boneco palito com um globo na cabeça,
está na moda. Nas festinhas da Zona Sul, o biscoito é servido com toques de requinte, como em taças de
26
Aqui, com o
sol forte, as
rosquinhas
torravam mais
um pouco,
ficavam mais
moreninhas e
crocantes.
sorvete, e que em nada
lembram aquele monte de farelo espalhado pelo rosto e que deixa de lembrança uma
camada branca na roupa e que todo carioca que se preza
já experimentou ao comer as tais rosquinhas.
O logo também foi parar nas coleções de roupas de praias
e em artigos de decoração assinados por designers descolados. Isso
tudo sem os Biscoitos Globo jamais terem investido em publicidade e
marketing ao longo de mais de 50 anos na cidade. Por outro lado, não
cobram um tostão sequer para os licenciamentos:
— Propaganda pra quê? Quer outdoor melhor do que os meninos
com uns sacos de 70 por 90 centímetros andando de lá pra cá, todo dia, nos
engarrafamentos da Linha Vermelha, Linha Amarela e Ponte Rio - Niterói? E o
licenciamento é bom para nós, divulga. Mas também não assino papel algum
— ensina Milton Ponce, espécie de relações públicas do grupo.
E tudo começou em São Paulo. Os irmãos Milton, Jaime e João Ponce
foram morar nos fundos de uma padaria no bairro do Ipiranga e, lá, aprenderam a receita. O ano era 1953. Em julho de 1955, acontece no Rio o 36º.
Congresso Eucarístico Internacional e os vendedores do biscoito desceram a Via Dutra para tentar a sorte no, hoje, Aterro do Flamengo. Nunca venderam tanto. E foi sob o sol do Rio que perceberam o pulo do
gato: aqui, com o sol forte, as rosquinhas torravam mais um
pouco, ficavam mais moreninhas e crocantes. A embalagem de papel cristal permite que o biscoito respire, sem reter umidade, o que o deixaria
com textura de velho.
27
Diante dos fatos, o dono da
padaria Record fez as malas e se mudou
para o litoral carioca com a receita debaixo dos
braços e acompanhado dos Ponce. Viraram sócios.
Hoje, na padaria dos Ponce, associados ao “português”
— como se referem, com graça, ao sócio — só se fabrica biscoitos de polvilho. No verão, filas se formam de madrugada em frente à
pequena fábrica, na Rua do Senado, Centro da Cidade. Lá, 62 assadeiras a
200 graus Celsius despejam 40 rosquinhas, cada, em intervalos de 15 minutos.
Não dá vazão: 200 senhas são distribuídas ainda antes de o sol raiar e cada vendedor pode levar, no máximo, 100 saquinhos. É claro que ali mesmo se forma um
mercado negro de biscoitos Globo, que chegam a ser revendidos, para os retardatários, por 3 vezes o valor inicial, que é de R$ 0,50.
E com uma marca de tanto valor como esta em mãos, será que os Ponce nunca
ouviram o canto de alguma sereia?
— Tenho até medo de receber proposta de compra da marca. Isto aqui é o futuro dos nossos filhos. Se a gente vende, como eles ficarão, com que estabilidade?
— diz Milton.
O negócio, segundo ele, é pequeno, mas rentável. “Deu pra criar os filhos”,
resume. E o segredo da receita crocante? Ah, este, sim, revela com uma resposta decorada, mas no fundo sem revelar nada: “ingredientes frescos. Eles
ficam mais crocantes”.
Bem, a julgar pelos estalos que se ouve lá no depósito... π
28
29
O CAOS
ANDA
SOBRE
RODAS
texto: ALESSANDRO FERREIRA E CARLA ANDRADE
charges: LEONARDO
30
A analista de sistemas Carla Tavares não está entre os cariocas
que não abrem mão da boemia. Apesar disso, as suas noites são
sempre, digamos, animadas. Carla trabalha das 18h à meia-noite
e, para não mofar à espera do ônibus, costuma sair correndo pela
Avenida Presidente Vargas até a Central do Brasil, onde passa o
484 (Copacabana-Penha). A região é bastante perigosa, os assaltos são constantes. E sempre que Carla perde um ônibus tem
de esperar mais de uma hora até que outro passe. Ela lembra
que, algumas vezes, o coletivo passa lotado e toma a outra pista
da avenida, deixando na mão ela e outros tantos passageiros.
31
chegar em casa. Podia usar o tempo que perco
esperando ônibus fazendo outras coisas. Não é
só quem mora em Ipanema que trabalha na Zona
Sul — reclama.
Carla é um dos milhões de moradores do
Rio que sofrem diariamente com o caos que é o
sistema de transporte coletivo da cidade. Um caos
que, infelizmente, está longe de ter fim. Para uns,
o setor é refém de empresários gananciosos, que
prestam um péssimo serviço à população e que
volta e meia são denunciados por irregularidades.
Já outros, lembram que a concorrência do chamado transporte alternativo (as vans e Kombis
que infestam as ruas da cidade) é desleal: afinal,
os donos desses veículos roubam passageiros
dos ônibus sem, no entanto, pagar impostos e
oferecer passagens gratuitas. No meio disso tudo
está o poder público, que pouco fez até hoje para
resolver tamanho desgoverno. Enquanto isso,
filas de ônibus praticamente vazios atravancam
o trânsito na Zona Sul, e quem mora no subúrbio perde horas no ponto à espera de condução.
Sem contar que a frota de veículos que circula em
32
nossas ruas seria considerada ilegal em
qualquer cidade civilizada do mundo: os
ônibus daqui nada mais são do que uma
carroceria montada sobre um chassi de
caminhão, que não oferecem nem conforto nem segurança. Some-se a isso a
falta de preparo e de educação dos motoristas, que acreditam que sinal vermelho
foi feito para ser desrespeitado e que o
passageiro é seu inimigo.
O pior é que, numa cidade que há
décadas cresce sem qualquer planejamento urbano de longo prazo e penaliza
seus habitantes ao não oferecer um sistema de transporte ferroviário eficiente, o
papel das empresas de ônibus é crucial:
elas empregam mais de 40 mil pessoas,
que trabalham para que os 7.532 veículos
das empresas filiadas ao sindicato da categoria, o Rio Ônibus, transportem mais
de 2,1 milhões de passageiros por dia,
contra cerca de 400 mil nos trens da Supervia ou os 450 mil do metrô, que opera
perto do limite de sua capacidade.
Observa-se, com base em dados
fornecidos pelo próprio Rio Ônibus, o
acentuado declínio experimentado pelo
setor, cujos resultados minguaram
em proporção inversa aos investimentos feitos na ampliação do serviço. Um
exemplo? A frota das empresas filiadas
ao sindicato é, hoje, praticamente 60%
maior do que era em 1987, quando havia
4.594 ônibus em circulação. Tal aumento
da frota acompanhou o incremento do
número de linhas, que eram 286, há 20
anos, e hoje são 966. Em contrapartida,
a média mensal de passageiros transportados caiu 39%: de 105.627.537 para
64.660.198. Vale ressaltar que os números dizem respeito apenas aos passageiros pagantes, que são os que sustentam
economicamente o serviço.
De acordo com o vice-presidente
do Rio Ônibus, Otacílio Monteiro, a queda no número de passageiros encontra explicação
até nos avanços da vida moderna, que reduziram
a necessidade de deslocamentos.
— Vimos o crescimento da frota de carros
particulares e a expansão dos serviços de telefonia. Ambos afetaram o setor. Antes o sujeito ia
Motoristas são obrigados a espremer 120 pessoas dentro da cada veículo
— O pior é que não existe outra maneira de
ao banco. Hoje faz transações bancárias pelo telefone ou via internet — argumenta, ressaltando
que parte da queda no número de passageiros é
também devida à sucessiva expansão da política de gratuidades. Segundo ele, 34% do total de
passageiros transportados pelos ônibus não pagam passagem.
Monteiro reconhece que a concorrência
das vans e Kombis tenha potencial para, a longo prazo, exterminar as empresas de ônibus. Ele
cita a Ilha do Governador e bairros da Zona Oeste
como regiões em que a “morte” das empresas deverá ocorrer primeiro, dada a feroz concorrência.
— Sem a regulamentação do poder público,
o transporte alternativo, aos poucos, vai dominar
toda a região metropolitana — diz ele, do alto de
seus 16 anos como executivo do sindicato. — Na
década de 60, aconteceu processo semelhante: as
empresas estabelecidas na cidade até essa época
sucumbiram ante a concorrência dos lotações,
que eram, guardadas as proporções, as vans da
época — relembra Monteiro, ressaltando que a
implantação da tarifa única na cidade, no início
dos anos 90, favoreceu ainda mais o avanço de
vans e Kombis, ao acabar com a possibilidade de
as empresas oferecerem passagens mais baratas
aos passageiros nas linhas menos rentáveis.
O transporte coletivo é uma das atividades
mais regulamentadas de que se tem notícia. Itinerário, frota, preço da passagem, tipo de veículo
apropriado a cada linha, direito à gratuidade, treinamento dos profissionais, tudo é regulado, controlado, definido, detalhado e, dizem, fiscalizado
pelas autoridades responsáveis. À Prefeitura cabe
“organizar e prestar, diretamente ou sob regime
de concessão ou permissão, o transporte coletivo
urbano”. No Rio, essas atribuições são da Subsecretaria de Transportes Urbanos (Subtu), ligada à
Secretaria Municipal de Transportes.
Para o secretário municipal de Transportes,
Arolde de Oliveira, o sistema viário da cidade só
pode ser manejado, hoje, de maneira integrada
33
Vereadores não apresentam projetos para o setor
com as malhas de outros municípios da região
metropolitana, que contribuem com boa parte
do fluxo de passageiros que circulam nos ônibus municipais.
— Parcerias com outras prefeituras e
o governo do estado são a única saída para
o gargalo do transporte de massa — diz ele,
lembrando que a distribuição atual das linhas
que cobrem o Rio é baseada em concessões
datadas de 1958.
O que permite absurdos como o que
acontece em Realengo, do lado da Avenida Santa Cruz, que tem apenas uma linha de ônibus,
a 393, ligando o bairro ao Centro. Os coletivos,
que saem de Bangu e fazem ponto final perto
do Palácio Gustavo Capanema, estão quase
sempre cheios, não importa a hora. Segundo
motoristas da linha — que pediram para não
ser identificados —, em hora de rush eles são
obrigados pelos donos da empresa a espremer
até 120 pessoas dentro de cada veículo. Depois
de 23h, eles simplesmente somem. Embora
representantes da Prefeitura periodicamente
venham a público, quando solicitados, para
reiterar que os ônibus têm que manter frota
mínima em circulação à noite, na prática qualquer passageiro sabe que, em muitas linhas,
“se perder o último, só amanhã”. Apesar de as
zonas Norte e Oeste da cidade serem contem-
pladas com o maior número de linhas (são
540 linhas regulares, contra 346 linhas com
ponto final na Zona Sul e no Centro), não há
dúvida de que os moradores dessas regiões
têm menos alternativas de transporte público.
Marilene Pacheco, moradora de Brás
de Pina, conta que, depois de meia-noite, a
possibilidade de pegar um ônibus no bairro
é mínima. Também reclama da falta de opções: depois das 22:30h, ela precisa pegar
outra condução via Avenida Brasil, atravessar uma passarela e cortar uma favela, a pé,
para chegar a seu destino:
— Na Zona Sul não é assim. Em Copacabana, tem ônibus a toda hora. Sei disso
porque trabalhei lá por um tempo. Mudei de
emprego e sofro com a falta de opções, principalmente na volta para casa.
Otacílio Monteiro reconhece nesses
horários um calcanhar-de-aquiles das empresas e afirma, categórico, que o subsídio
público é fundamental na equação:
— De fato, o transporte enfrenta problemas para ser viável durante a madrugada.
O custo do ônibus rodando é o mesmo, mas
em muitas linhas há apenas quatro ou cinco
passageiros por viagem, o que as torna deficitárias. Nesse caso, só o subsídio resolve.
Sabemos que o empresário brasileiro raramente sobrevive sem subsídios. Mas
Arolde de Oliveira exclui esta possibilidade:
— Da parte da secretaria, o que pode
ser feito é aumentar a fiscalização para que
as empresas cumpram o determinado em lei,
que é garantir o direito de ir e vir do cidadão. Estamos preparando operações de fiscalização para
breve, mas reafirmo que só uma mudança mais
profunda no sistema de transportes, que inclua
também os trens e o metrô, poderá solucionar de
vez esse problema. Subsídio às empresas, ao menos por enquanto, está fora de questão.
Cabe aos passageiros rebolarem para não
perder a condução. A secretária Luciana Moraes
Antunes, moradora de Olaria, gosta de ir ao Centro ou à Zona Sul aos sábados, para encontrar
amigos e se divertir, o que ocasionalmente deixa
de fazer por falta de transporte. Luciana conta
que, para chegar aos seus points favoritos, precisa sair cedo de casa e pegar um ônibus que a
deixa longe de seu destino. A maior reclamação é
com a volta, já que ela nunca sabe a que horas sua
condução vai passar:
— É chato sair com hora de voltar. Acabo
não aproveitando. Depois de uma semana de
trabalho, preciso me divertir. Se for pensar só na
dificuldade de condução, não saio mais de casa.
Acabo ficando na rua até o dia nascer.
Para o deputado federal Edson Santos (PT),
que exerceu cinco mandatos de vereador no Rio
e conhece bem o setor — ele comprou brigas
históricas contra as empresas nos anos 80 —, os
problemas do transporte rodoviário começam na
atuação deficiente do poder público.
— Como os governantes não tomam as iniciativas necessárias para a melhor regulação do
sistema de transportes, as empresas acabam se
auto-regulando, o que sem dúvida dá margem a
abusos e desrespeito aos usuários — diz o parlamentar.
Segundo Santos, a própria distribuição
das linhas entre as empresas, sem licitação, é o
maior entrave à racionalização global do sistema:
— Se a prefeitura não licita as linhas, não
há concessões, e sim permissões de exploração
dos trajetos, dadas em caráter precário. Como
conseqüência, temos casos em que as empresas
simplesmente desistem de algumas linhas e as
devolvem à prefeitura, sem que possam ser cobradas a cumprir sua obrigação, como ocorreria
se houvesse um contrato de concessão, assinado
após a licitação.
Arolde de Oliveira diz que a prefeitura tem
um plano de redesenho da malha de linhas de
ônibus da cidade, que seria implantado por meio
de licitações a partir de 2009, após o fim do prazo
de concessões. Contudo, os empresários, amparados por decisões judiciais que lhes garantem a
renovação dos contratos, vêm impondo barreiras
à “faxina” no setor.
— Essa questão terá que ser decidida politicamente, com um acordo entre empresas e poder
público, ou então vai parar no Supremo Tribunal
35
integração de todo o sistema. — Em Guarulhos
(Grande São Paulo), por exemplo, a prefeitura implantou o projeto Orca, que autorizou empresários de ônibus a usarem vans nas linhas radiais,
de menor movimento.
Orca é a sigla para Operador Regional de
Coletivo Autônomo, projeto criado em 2003 pela
Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos do governo paulista, visando a disciplinar
a concorrência entre transportes regular e alternativo. Mas convém lembrar que volta e meia um
exemplo bem-sucedido de fora é apresentado
à população carioca como o salvador da pátria
para o setor. Curitiba, por exemplo, já esteve
muito em voga. Só que nada foi feito até hoje.
Embora seja uma área tão sensível na vida
dos cidadãos, não se nota nos políticos
grande disposição para promover alterações
profundas no sistema. Na maior parte do
tempo, vereadores — e deputados estaduais,
no caso do transporte intermunicipal — dedicam-se apenas a ampliar benefícios já existentes, como as gratuidades, sempre sem
apontar a fonte de custeio das viagens que
deixarão de ser pagas, o que contribui para
onerar o sistema. Mesmo com as histórias
de bastidores, que apontam para a existência de generosas doações de empresários de
ônibus para campanhas políticas (a famosa
“caixinha da Fetranspor”), são pouquíssimos
os projetos realmente destinados a corrigir
distorções do setor de transportes. Otacílio
Monteiro garante que a “caixinha” é apenas
folclore:
— Nunca soube de nada a esse respeito, mas não sou executivo da Fetranspor. Então não posso garantir nada — esquiva-se.
O poder legislativo, representado pela
Câmara dos Vereadores, conta com uma comissão de transportes, cuja função é discutir
os problemas e propor soluções para o transporte coletivo na cidade. Apesar das insistentes
tentativas da Zé Pereira, o vereador Jorge Mauro,
presidente da comissão, não retornou nenhum
dos contatos feitos. O objetivo da entrevista era
mostrar por quais iniciativas os vereadores buscam melhorar as condições do serviço de transporte público na cidade. Uma pesquisa no site
da Câmara não apontou nenhum projeto em tramitação para o setor de transporte público. Em
compensação, havia quatro proposições benefi-
Usuários também sofrem com assaltos
Federal — explica.
Sobre o transporte alternativo, ele diz que
haverá processo de licitação das linhas de vans e
Kombis municipais, que comporão o chamado
transporte complementar especial. Oliveira lembra que a prefeitura já avançou na questão, desde
as primeiras autorizações concedidas a motoristas de lotadas pela antiga SMTU (atual Subtu).
Enquanto isso, o cidadão que se vire.
— O que preocupa os empresários é a concorrência das vans e das Kombis ilegais, que já
foge da alçada da prefeitura, porque, como
ilegalidade, passa a ser problema de polícia.
A intensificação da repressão, por meio das
operações do Departamento de Transportes
Rodoviários, com apoio da PM e da Guarda
Municipal, já vem sendo feita e conta com
nosso apoio — diz o secretário.
Edson Santos vê com preocupação
o atual estágio do sistema de transportes
na cidade, em que concorrência predatória,
abundância de transporte alternativo ilegal e
superposição de linhas poderão transformar
irremediavelmente o nosso caos diário num
inferno, num futuro não muito distante.
— Há espaço para vans e Kombis, desde que de maneira ordenada e integrada aos
ônibus, ao metrô e aos trens. Da maneira que
está hoje, o sistema pode entrar em colapso,
como já ocorreu em outros países. Se você for
a Durban, na África do Sul, verá que as vans
dominaram o transporte público, sem a atuação enérgica do poder público. Como resultado, vê-se gente pendurada em veículos velhos
e superlotados, enquanto outros tentam embarcar. O Rio corre o risco de ir pelo mesmo
caminho — avalia.
Mesmo com a concorrência do transporte alternativo, o representante das empresas acredita no potencial do setor, desde
que devidamente regulamentado pelo poder
público. A implantação de corredores exclusivos
para ônibus é uma medida aguardada com ansiedade pela categoria.
— Parece que agora, com o T5 (corredor que
ligará a Barra da Tijuca à Penha), a coisa vai andar.
É necessário que se priorize o transporte público
nesta cidade, e os ônibus são a alternativa mais
viável, pelo menos no primeiro momento — diz
Monteiro, ressaltando que a regulamentação do
transporte alternativo deve ser feita visando à
36
ciando o transporte alternativo, todas de autoria
do mesmo vereador, aguardando apreciação nas
comissões da Casa ou em plenário. Na opinião
de Monteiro, pressões políticas influenciam negativamente qualquer discussão pública sobre
transportes, ao favorecer a oposição entre ônibus
e vans/Kombis, que em princípio deveriam caminhar para a integração.
— Infelizmente, nosso setor não tem a
atuação política que deveria ter, dado seu peso
na economia da cidade e do estado — diz ele, fazendo questão de frisar que as empresas de ônibus não contam com a atuação de parlamentares
para defender seus interesses.
A segurança das viagens é outra fonte de
preocupação para os usuários. Nem é para menos: segundo dados coletados pela Secretaria
estadual de Segurança Pública, ocorreram 3.068
roubos em ônibus na capital entre janeiro e agosto. Monteiro reconhece a gravidade do problema
e afirma que as empresas fazem sua parte, investindo em equipamentos de vigilância, como
câmeras e sistemas de rastreamento dos veículos por satélite. Segundo ele, algumas empresas,
como a Real, a Tijuquinha e as cinco companhias
do grupo Breda, já utilizam as câmeras, e, num
futuro próximo, todos os coletivos que rodam
na cidade deverão estar equipados de maneira
semelhante. As imagens geradas pelos sistemas
das empresas ajudariam na montagem de bancos
de dados, em parceria com o poder público, sobre crimes. É o que espera um motorista da linha
497 (Penha-Cosme Velho), que trabalha durante a
madrugada e teme até se identificar.
— Já vi muitas coisas na madrugada e nem
sempre boas. Tenho medo de estar na rua àquela
hora da noite. Meu carro já foi assaltado algumas
vezes e na hora tudo o que eu posso fazer é ficar
quieto e colaborar. Esse pessoal sabe o trajeto, os
horários e marca a cara da gente. Agradeço por
estar vivo todos os dias — diz.
Além do risco de ser assaltado, o surgimento dos ônibus não convencionais — em que
não há cobrador — aumenta o medo de acidentes,
causados por desatenção do motorista. Alguns
casos recentes na cidade, incluindo vítimas fatais,
levantaram uma onda de críticas ao enxugamento do quadro das empresas. Segundo Otacílio
Monteiro, a função de cobrador tende mesmo a
desaparecer:
— Estamos caminhando para um cenário
em que todo passageiro terá seu cartão eletrônico. Assim, para que cobrador?
Arolde de Oliveira concorda:
— O projeto de implantação da bilhetagem
eletrônica prevê que as empresas reaproveitem os
cobradores como motoristas dos novos coletivos.
Creio que vem funcionando, porque ainda não
soube de desemprego em massa no setor. Também estamos atentos aos casos de acidentes causados pela desatenção do motorista, ao dirigir e
contar troco ao mesmo tempo.
Monteiro diz que o Rio Ônibus está investindo na reciclagem profissional, o que diminuiria ou extinguiria o problema, que seria de orientação profissional. O sindicato fez parceria com
a Fundação Getúlio Vargas, que já teria reciclado
mais de cinco mil profissionais. Espera-se que
também tenha sido ensinado aos motoristas que
é preciso respeitar os sinais de trânsito. π
série
texto: FERNANDO GERHEIM ilustração: JOSÉ AGUIAR
URUBUCAMELÔ
“QUE CHEIRO INOMINÁVEL É ESSE EM
QUE VEM DA BARRA DA TIJUCA?”
O Urubucamelô sente a característica fricção no
estômago enquanto frui os cheiros que a cidade
exala. Ele gira 360 graus na mão da estátua antes
de decidir seu destino.
“Iguarias putrefatas, manjares purulentos,
provarei os mais refinados paladares da experiência humana! Os superpoderes abriram um novo universo olfativo e mudaram minha percepção
do mundo. Eu sinto o cheiro das idéias. Toda matéria tem cheiro. Logo toda matéria é uma idéia
odorífera.”
Nem o McDonald’s incita tanto a glândula pituitária no interior de suas fossas nasais quanto o
odor que exsuda de algum lugar a oeste.
“Que cheiro inominável é esse que vem da
Barra da Tijuca?”
Ele levanta vôo.
“Com essa onda de ar quente, vou chegar lá
rapidinho!”
Numa ilha da Costa Verde, o empresário da
Chrysler Corporation bebe caipirinha diet numa
espreguiçadeira. Ele pergunta pra Bronzeada:
“Você não tem medo de câncer de pele?”
De biquíni fio-dental, com sua fuselagem modelada em academia de ginástica estirada na toalha sob o Sol do meio-dia, ela responde:
“Não. Eu tiro minha força do buraco na camada de ozônio.”
“Eu adorei essa mulher que vocês arrumaram!”
O empresário sorri pro publicitário a seu lado.
“Nós só trabalhamos com o melhor! He he he!”
“Eu fui superexposta a raios ultravioleta! É de
que sua indústria?”
“Automóveis. A Chrysler comprou cotas de
38
carbono. Vamos instalar indústrias no Brasil.
Queremos ajudar os países em desenvolvimento
a gerar empregos.”
“É bom que vai aumentar o buraco. Eu tô
achando o Sol tão fraquinho!”
A sombra de uma nuvem escurece a praia.
“Ah, o Sol...”, ela lamenta, angustiada. “E se
eu fosse fazer umas compras?”
O helicóptero decola pro Rio de Janeiro.
“O cheiro vem daquele shopping com a réplica
da Estátua da Liberdade.” O Urubucamelô pousa.
“Mas aqui é tudo limpo, colorido e cheiroso.”
Passeando intrigado entre as lojas, ele sente seu organismo transformar inexplicavelmente
todos aqueles itens de consumo novinhos expostos nas vitrines em algum tipo de nutriente. Olhar
o alimenta.
“Hei, que roupa legal!” Diz um consumidor.
Ele se afasta com seu elogiado disfarce secreto
sem se sentir inteiramente saciado.
Na base do monumento, um magricela baixinho com cara de nordestino e o dedo pronto pra
apertar o botão do detonador preso na cintura
sua de nervoso.
“Um homem-bomba!”
“Eu sou o Terror Tremor. E você?”
“Um mutante com os superpoderes dos urubus. Não quero morrer com você.”
“Vou matar e morrer por Alá, filho da Jahiliyyah! Em todo o mundo, muitos, como eu, estão deixando a democracia capitalista pra se tornarem mártires do Islã. Disse isso no vídeo que
mandei pro As-Sahab. Amanhã estarei famoso!”
Curiosos se aproximam.
“Eu transformo podridão em proteína, você
é o vômito da podridão. A bulimia simbólica do
mundo da imagem.”
A Bronzeada também se aproxima.
“É uma filmagem?”
Ela larga as sacolas, tira a roupa e, de biquíni
fio-dental, vai em direção ao monumento.
O Terror Tremor olha pra ela com cobiça; o
Urubucamelô aspira seu cheiro inebriante.
“Eu tomei tanto sol que fiquei com o corpo
blindado de bronze.”
“Eu comi comida podre e ganhei os superpoderes dos urubus.”
“Somos dois penetras no panteão dos mitos!”
“Bota a burka, infiel!” Revolta-se o Terror Tremor.
“Sorria, você está na Barra! Eu sou melhor do
que 72 virgens no paraíso.”
A imprensa chega correndo.
O Terror Tremor discursa: “O Estado de Emergência é a condição do mundo, não a exceção.
Não temos cidadania nem direitos, muito menos
liberdade individual. Vem matar e morrer comigo
por Alá, urubu mutante!”
A Bronzeada sorri pros fotógrafos.
“Xis!”
“Pera lá, eu sou de santo! Moisés e Cristo, aqueles monoteístas geradores de Utopias, dilataram a
Fé e o Império com sua Guerra Santa e humilharam os deuses afro. Agora a al-Quaeda anuncia o
apocalipse do Império. A Emoção WASP é o Orgulho Bélico. Malditas Sombras Fanáticas!”
A polícia chega apontando as armas.
O Terror Tremor diz pro monumento.
“Cópia da cópia, duas vezes Shirk!”
“Olha lá o negão!”, um policial atira.
A Bronzeada se joga na frente do Urubucamelô, interceptando a bala, que ricocheteia em sua
pele metálica. Ela rola pra longe; o Urubucamelô levanta vôo; o Terror Tremor aperta o botão,
detonando-se.
A Estátua da Liberdade explode.
Fotógrafos registram o Urubucamelô fugir voando e o monumento explodindo ao fundo.
A manchete amanhece nas bancas:
“Terrorista explode réplica da Estátua da Liberdade e foge voando.”
A polícia espalha cartazes com a foto do nosso herói:
“PROCURA-SE: VIVO OU MORTO R$ 10.000”
Foragido na mão do Cristo, sentindo aquela
insaciável fricção no estômago, o Urubucamelô
fareja a cidade:
“O cheiro inominável vinha dela... Ela salvou
minha vida! A fome que eu sinto só a Bronzeada
pode matar.”
NO PRÓXIMO EPISÓDIO:
CONSEGUIRÁ O URUBUCAMELÔ COMER A BRONZEADA?
Assista à primeira aventura do Urubucamelô em
www.revistazepereira.com.br
39
foto: Anna Azevedo
40
A MARCHA SEM VOLTA
DOS CINECLUBES
texto: DENISE LOPES
Mate com Angu, Beco do Rato, Buraco do Getúlio, Subúrbio
em Transe, Cachaça Cinema Clube, CineGostoso... Nomes
que nem sempre lembram a tradição de contestação e resistência do movimento cineclubista dos anos 60/70 batizam os principais pontos da atividade hoje no Rio, de Japeri ao Centro, do Cosme Velho à Região dos Lagos. Segundo
estimativa da Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro
(Ascine), eles são mais de 50 em todo o estado, e reúnem,
em média, por mês, mais de 4.000 pessoas em suas sessões. Só filiados à entidade, criada há um ano, havia, até o
fechamento desta edição, 34 cineclubes.
41
— As exibições sistemáticas de filmes são
muitas, crescem exponencialmente, e não temos informações sobre todas. Se bobear, durmo
e acordo amanhã com mais dois ou três associados. O número de pessoas que nos
procuram em busca de informação
é enorme — diz Rodrigo Bouillet,
diretor-geral da Ascine.
Na era digital, em que o DVD
substitui, na maioria das vezes, o
tradicional projetor de 16mm, a
maior regra neste circuito alternativo audiovisual, que não compactua
com o gosto vigente dos cinemas
comerciais, parece ser, exatamente, não ter regra. Um galpão rodeado de barraquinhas de comidas e
bebidas, em Duque de Caxias, onde a projeção acaba numa alucinada festa, com direito a trenzinhos
funk e gente dormindo pelo chão;
uma varanda de bar, em Nova Iguaçu, escurecida por cortinas pretas amarradas com barbante, onde
basta um intervalo para adentrarem
homens com pernas de pau, cuspidores de fogo, repentistas, poetas e toda sorte de
artistas; ou mesmo um beco, no Centro, outrora histórico por ter abrigado personagens como
Manuel Bandeira, Chiquinha Gonzaga e Madame Satã, ocupado por mesas, garrafas de cerveja
e música. Por ali, são exibidos as últimas fornadas de curtas periféricos ou não, pré-históricos e
poucos conhecidos, undergrounds, como Nilson
Primitivo e Edgard Navarro, filmes experimentais, clássicos... produções raras que até há bem
pouco tempo não tinham onde serem vistas.
A atividade cresceu tanto no país de uns
três anos para cá que acaba de ser reconhecida
institucionalmente. Uma instrução normativa da
Agência Nacional do Cinema (Ancine) definiu, no
início do mês, o que é um cineclube e estabeleceu normas para seu
registro facultativo. A regulamentação passou por uma consulta pública e dá direito, a partir de agora,
a que os cineclubes possam tirar o
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) sem precisarem mais
recorrer ao subterfúgio da utilização do registro de ONGs e projetos que apóiam suas exibições.
Um modelo de formulário para o
pedido do “Certificado de Registro de Cineclube” já está disponível, inclusive, no site da Ancine
(www.ancine.gov.br). Luta antiga
de quem milita na área, a regulamentação possibilita aos cineclubes captarem dinheiro através das
leis de incentivo, buscarem patrocínios junto a empresas e terem
editais de fomento e apoios governamentais direcionados às suas atividades. Uma
verdadeira revolução no movimento cineclubista.
De prática social-fantasma a sociedades civis sem
fins lucrativos, voltadas para a exibição de obras
audiovisuais nacionais e estrangeiras e para a realização de conferências, cursos e atividades afins,
os cineclubes atraem cada vez mais atenção num
“mercado” audiovisual carente de espaços para exibição. O Cine Santa, em Santa Teresa, que
começou como cineclube na Igreja Anglicana do
bairro, é um exemplo de como a atividade poderá
evoluir a partir da regulamentação.
A regulamentação
vai possibilitar
aos cineclubes
captarem nas
leis de incentivo,
buscarem
patrocínios junto
a empresas e
terem editais de
fomento e apoios
governamentais
42
Mas, apesar do visível upgrade, há quem critique a emancipação.
— Temos medo da burocratização. Medo
do dinheiro. O Mate é um movimento utópico.
Tomávamos conta do bar, mas abrimos mão. Ele
podia ser uma fonte de recursos. A Lira do Ouro
deixou que a gente o administrasse nas noites de
exibição, mas não deu. Não conseguíamos fechar
as contas. No final da noite, todo mundo doidão,
tomávamos era prejuízo — diz Igor Barradas, um
dos responsáveis pelo Mate com Angu, cineclube que funciona toda última quarta-feira do mês,
num galpão da Sociedade Artística e Musical Lira
do Ouro, no Centro de Duque de Caxias. — Essa é uma discussão interminável, mas a gente teme que isso engesse o movimento. Achamos que
quanto menos oficial melhor.
No último Festival do Rio, um debate intitulado “Reconhecimento institucional do cineclubismo”, com representantes do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC), Federação
Internacional de Cine Clubes (FICC) e Associação
foto
: Ann
a Az
eved
o
Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas
(ABD&C) discutiu a idéia de auto-sustentabilidade dos cineclubes e agitou a questão.
No Buraco do Getúlio, criado em julho de
2006, que funciona toda segunda segunda-feira
do mês no bar do Ananias, a palavra de ordem
também é não enquadrar, apesar de a regulamentação ser vista com bons olhos. Nos intervalos
dos filmes, grupos de Nova Iguaçu, como Desmaio Público, de poesia, e Movimento Alternativo de Cultura e Arte (Maca) fazem intervenções
culturais. Oriundo do trabalho da Escola Popular
de Comunicação e Crítica da Maré, tem apoio do
Observatório de Favelas e prioriza o cinema experimental e a videoarte.
— Na maioria das vezes não temos tema. A
idéia surgiu num bar, e não queremos perder esse clima. Mas, neste mês de outubro, as crianças
terão vez, com a projeção de animações — diz Luana Pinheiro, 21 anos, que junto com Diego Bion,
toca o Buraco, nome da passagem subterrânea
da linha férrea na Avenida Getúlio de Moura, em
frente ao Ananias, onde acontecem as sessões.
Controvérsias à parte, o fato é que paralelamente ao crescimento do movimento e ao desejo
de legalização, a atividade começa a sentir pressão de órgãos oficiais, como o Escritório Central
de Arrecadação e Distribuição (ECAD), que começou a cobrar pelo direito autoral das músicas
executadas nos filmes exibidos nos cineclubes.
— Nem os exibidores convencionais, os
Cinemarks da vida, pagam, mas não
tenho como fazer com que todos os
cineclubes rasguem os boletos de
cobrança. Não temos departamentos jurídicos e muitas vezes eles cobram direto da instituição que abriga o movimento, como aconteceu
na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, onde funciona o cineclube da
ABD&C. Isso cria constrangimentos para uma atividade que vive de
parcerias — diz Rodrigo.
A polêmica, que promete inflar, já está agendada para a 17ª edição do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, próximo Curta
Cinema, que acontece de 25 de outubro a 4 de novembro, na cidade.
Multiplicadores de público,
formadores de opinião e guardiões
43
aumentarão seus números de espectadores e paralelamente a probabilidade de aumentarem seus
Prêmios Adicionais de Renda, verba repassada
pela Ancine aos filmes nacionais de maiores bilheterias. A Ascine, gestada no
encontro de cineclubes realizado
no Festival de Cinema de Brasília
de 2003, evento responsável em
grande parte pelo crescimento da
atividade no país, gerencia a distribuição dos mais de 3,5 mil bilhetes doados pela Riofilme, que
mês passado acabaram rapidamente.
A preferência
é por curtas
brasileiros que
contribuam para
a renovação
da linguagem,
busquem alguma
ousadia e possam
dialogar entre si.
Cachaça, mate e angu
Só o Cachaça Cinema Clube, um dos mais antigos cineclubes do Rio, que completou cinco
anos em agosto, leva a cada edição cerca de 500 espectadores ao
Odeon, no Centro.
— Passamos praticamente
de 2003 a 2006 com um público de 800 pessoas.
Muita gente ficava do lado de fora. Hoje deu uma
acalmada e foi bom. Não queríamos status de
festa. Nosso objetivo é valorizar os filmes — diz
Lis Kogan, que como seus três parceiros, Karen
Black, João Mors e Débora Butruce, é ex-estudante de cinema da UFF. — Sobrevivemos à base de
apoios, do Odeon, da Gráfica Alves, da Cachaça
foto: Úrsula Nery
Mate com angu: sessão termina em trenzinho funk
44
foto: Mazé Mixo
da chamada “diversidade cultural”, os cineclubes
são vistos como poderosos termômetros e difusores de obras, em locais abandonados pelo circuito tradicional. Pensando nisso, a Riofilme (distribuidora de cinema da prefeitura
do Rio) acaba de assinar acordo
com a Ascine para ceder gratuitamente seus lançamentos, tão logo
as estréias comerciais aconteçam,
para os cineclubes. Em especial,
para os da Baixada Fluminense.
Filmes como “500 Almas”, de
Joel Pizzini, “As tentações do irmão Sebastião”, de José Araújo,
e “Conceição”, criação coletiva
dos alunos do Departamento de
Cinema da Universidade Federal
Fluminense (UFF), já cumpriram
um périplo no último mês por locais onde jamais seriam vistos. Os
próximos a rodarem serão “Mestre Bimba — A capoeira iluminada”, de Luiz Fernando Goulart, e
“Brasileirinho”, de Mika Kaurismäki. Os cineclubes de Japeri, Caxias, Mesquita,
Vila Isabel e Lapa formam o primeiro circuito Ascine/Riofilme.
Preocupada em dimensionar esse novo circuito, a Riofilme criou também o “bilhete cineclubista”. Com ele, os cineclubes podem contabilizar seus adeptos, e a Riofilme, legitimar seus
números, como já faz nas exibições nas lonas
culturais. Assim, o “mercado” cineclubista terá
uma avaliação exata de seu público, e os filmes
nacionais, lançados pela distribuidora carioca,
Velha Província e do bar Belmonte, que nos dá a batida de gengibre. Não temos nenhum patrocinador.
A preferência é por curtas brasileiros que contribuam para a renovação da linguagem, busquem
alguma ousadia e possam dialogar entre si. As temáticas são diversas e contemporâneas, mas podem incluir curtas da década de 20, precursores dos cineclubes na época, como “Maluco e Mágico” (1927), de
William Shoucair, cinejornais, como “Rossi Actualidades”, de 1926, ou títulos como “Filme pornográfico”, de autor desconhecido. Único que cobra ingresso do circuito Ascine, R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia), o
Cachaça, como outros cineclubes, tem prêmio e realiza produções coletivas, como “Acossada” (2007),
feita em parceria com a produtora Cineclube Pela
Madrugada, do Humaitá. Em novembro passado, foi
responsável pela seleção de 30 curtas para a mostra
Foco Brasil dentro do Interfilm Berlin, um dos maiores festivais de curtas do mundo.
— Foi a maior responsabilidade, mas as sessões brasileiras foram
bem acolhidas — conta Lis.
Com cinco anos também de existência, o Mate com Angu tem mais de
15 curtas coletivos realizados e o programa “Angu TV”, só com questões urgentes da cidade. Seu idealizador, Marcio Bertoni, soldador de submarinos
da Marinha, largou a farda e está hoje trabalhando numa TV, na Venezuela.
O Mate, que forma gente como Bertoni, nasceu na
Fundação Educacional de Duque de Caxias (Feuduc), como uma mostra de História.
— Nossa primeira exibição foi para ninguém, no Campus da Uerj (Universidade Estadual
do Rio de Janeiro), em Caxias. Começamos, então, a
“exibir” os filmes pelo rádio. Chamávamos de “cinema cego”. O filme era projetado no auditório e o
som ia pelos alto-falantes para todo o campus. Ao
final, fazíamos debates — conta Igor.
Buraco do Getúlio: circo
e circo para o povo
Hoje, o Mate é sucesso total. Além dos filmes, as sessões têm música, poesia, performance, provocações estéticas, grafismos, teatro...
Mas o que faz o local fever mesmo é a festa com
DJ ao final. O nome vem da merenda servida no
passado numa escola da região.
— Todo mundo pergunta se a gente tem essa combinação aqui. Um dia conseguiremos verba para montar o cardápio — brinca Igor.
Mas o que mais espanta no Mate é o gosto dos espectadores, que votam nos melhores filmes, na última sessão do ano.
— Aqui sempre ganha o filme mais diferente mesmo. “Fernando José, o cantor das multidões”, do Felipe Reynaud, feito na Estácio (Universidade Estácio de Sá), ganhou o prêmio do públi-
“O filme era
projetado no
auditório e o
som ia pelos
alto-falantes
para todo o
campus. Ao
final, fazíamos
debates”
45
co, e “Dominação bizarra”, do Matias Maxx e Zé
Colméia, ficou com o Angu de Ouro, sem nunca ter sido aceito num festival. A gente não sabe por que gosta, mas essa possibilidade de nos
refrescar do que rola por aí nos agrada. Caxias é
um município muito reprimido, tem estigma de
antro de bandido, esquadrão da morte, Tenório
Cavalcanti, foi área de segurança nacional, sofreu
tentativas de guerrilhas, é visto como cidade-dormitório, sinônimo de miséria... se a gente libera
essa válvula através da cultura, a coisa explode. É
por isso que o Mate fica lotado — explica Igor.
O estilo Mate contagia outras iniciativas
próximas. No Sesc de São João de Meriti, o teatro
de 350 lugares fica lotado a cada sessão do Cinema Com Batuque. Além dos filmes, a apresentação de MCs deixa gente do lado de fora circulando pelos corredores apertados.
— São como as matinês dos anos 50 —
conta Igor.
No Cine Guandu, em Japeri, a idéia do cineclube partiu de um curso de formação em vídeo
para adolescentes.
— Quem comanda lá é o Pablo (Cunha), um
maluco que apareceu do nada, se formou em arte
e foi dar aula em Japeri. Formou um curso democrático de fazer filme com máquina fotográfica e
edição em Movie Maker (um programa de computador
bem simples), numa sala subocupada, montou o cineclube e já tem dez filmes realizados — conta Igor.
— Queria me apropriar de tecnologias novas capazes de construir outras formas de pensamento e de fazer intervenções no social. Filmávamos de cinco em cinco minutos, descarregávamos e voltávamos. Tripé é cabo de vassoura.
Grua, uma armação de madeira, que sobe três
metros — diz Pablo.
Ramos, Mesquita, Meriti, Tijuca, Lapa,
Centro, Vila Isabel, Botafogo, Urca, Cosme Velho, Rio Comprido, Flamengo... por todo Grande Rio pipocam iniciativas como a de Pablo, Igor
e Lis. A Companhia de Filmes Baratos, de Marcelo Yuka, mantém o Cine-Prisão, com exibição
de filmes para os detentos da delegacia de Nova
Iguaçu. O Subúrbio Em Transe, em Vista Alegre,
um dos caçulas da Ascine, também ataca de programação alternativa. Mas há cineclubes voltados para a exibição de clássicos, documentários e
até mesmo “cinemão”. O movimento se espalha
também pelo interior e pela Região dos Lagos. O
Cinema Na Rua, de Rio das Ostras, ajudou na organização de um encontro da atividade no último
mês, em Cabo Frio, onde foram mapeados outros
grupos. Só em Niterói, há quatro cineclubes com
atividades regulares em operação. Tanta movimentação prova que interesse pelo audiovisual é
o que não falta no Rio. Com a chegada da regulamentação do cineclube e as crescentes facilidades da era digital, a tendência é de que a atividade
cresça ainda mais.
— Não tem volta. Cineclube é coisa novidadeira. Não pára, não — atesta Rodrigo. π
Beco do rato: chorinho, cerveja e cinema
foto: MICHAEL ENDE
46
poesia
ADRIANA NOLASCO
Então esse dia já começa. E é só noite. Um bando de malucos, dos mais saudáveis que
conheço, se reúne. E eu aqui a começar alguma coisa que nem conheço. Recomeço.
Coragem. Às vezes parece que não faz a menor diferença, mas que diferença há de se
fazer?
Conhecer. Tá esquisito escrever. Igual. É o sinal que o teclado ofereceu.
Vozes vêm da sala. Que conforto ver o pensamento.
Nubladas lembranças. É no masculino que se diz, embora seja feminino. Tudo ao mesmo tempo agora. Balela, traquitana irresistível, audácia da filombeta. Fui. Criança.
Sou. Embora. Não saiba. Quem.
Tesão da discrepância. O discernimento. Incrível e sozinho. Falta da mesma mente.
Entende. Sua mãe não lhe disse. A que vim. Afinal.
Barriga de história. Nula presença. Louca crispada. Enfim. Dura e realidade. Linda em
que se vê. Vazia em que se sente. Veste a força motriz. Explode cuspida, densa na turbina. Sua nudez é ridícula. Fonte dura de marfim.
Minha obra é tentar narrar com interrupções. Comprar comida. Fazer comida. Beber.
Acordar. Trepar. Amar. Caps lock. Criar. Pagar conta. Quase sempre. Acreditar. Que
tem um buraco no fim do túnel. E que existe um veículo que te leva. Você precisa descobrir qual é o seu. No momento em que me encontro.
Sibilam e gritam diferentemente. Idiomas concretos. Sussurros expostos de experimentos. A correção idiomática gramatical que me obriga regras. Desfúteis. Inúteis.
O pré dos fixos. Os melanócitos incrédulos. Me tragam objetos! Lindos de fora. Com
rugas. Que hora.
Passei daquela ponte ininterrupta. Em que tempo te encontro?
Rock’in’roll will never die. Minha sonoridade importa. Você me inspira e que transpiração não seja clichê. De mente sem espaço. Ampla, duplex, cobertura. Sem ser na
Barra. Que me odeie e me retire.
Livre.
Vomito tudo que não sou.
47
fotos: RATÃO DINIZ
texto: MARINA GONÇALVES
O OLHAR
FOTOGRÁFICO
DA MARÉ
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MÃE
foto da esquerda: estrada para Carnaubeira da Penha, no sertão de Pernambuco, na altura deSerra Talhada
foto da direita: Parque Maré (onde ele mora)
Ratão Diniz, revelado na Escola de Fotógrafos
Populares, do Observatório de Favelas, mostra
um outro olhar sobre a periferia.
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ARQUITETURA
foto grande: cidade de Vazante, no Sertão de Pernambuco
foto menor: um beco na favela Nova Holanda
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Há três anos, quando ingressou na Escola de Fotógrafos Populares, do Observatório
de Favelas, Ratão Diniz não imaginaria que em
tão pouco tempo de profissão teria a oportunidade de conhecer o Nordeste graças à fotografia. Morador do Parque Maré, uma das muitas comunidades do Complexo da Maré, ele
conheceu a escola por meio de seu irmão, em
2004. De lá pra cá, participou de algumas oficinas, foi monitor da Escola Popular de Comunicação Crítica, até ser convidado para documentar o projeto Revelando os Brasis, percorrendo
com sua máquina diversas cidades do interior
nordestino.
— Sempre tive um interesse específico
pela fotografia documental. Mas a escola mudou minha forma de olhar o outro: detalhes que
antes passavam despercebidos agora são vistos
com o olhar de um fotógrafo. Assim, passei a
enxergar uma outra favela, uma outra periferia.
E de uma maneira que só nós vemos.
Um dos detalhes descobertos em sua
primeira viagem de trabalho fala das semelhanças entre a periferia das grandes metrópoles e as cidades do interior. Foram dois meses — junho e julho — que o ensinaram a ver
o subúrbio como uma grande cidade pequena.
A relação de informalidade entre vizinhos, que
se conhecem pelo nome, a confiança que existe
entre seus moradores, ao deixar, por exemplo,
a chave de casa com o velho amigo da rua, é
a relação que Ratão já conhecia há tempos no
Parque Maré.
— Os moradores das periferias, em sua
maioria, vieram de pequenas cidades do interior. As favelas são formadas por essas pessoas,
e seus filhos e netos, que aprenderam as características de lá — conta.
Durante a viagem o fotógrafo percorreu,
por 59 dias, cidades do Nordeste de até 20 mil
habitantes. O Revelando os Brasis é um projeto da Secretaria do Audiovisual do Ministério
da Cultura, em parceria com o Instituto Marlin
Azul, que tem como objetivo documentar em
vídeo histórias de moradores de pequenos municípios do país. O trabalho de Ratão era percorrer as 20 cidades do Nordeste registrando
as exibições dos filmes. A pedido da Zé Pereira,
o fotógrafo selecionou imagens que fez de favelas cariocas e do Nordeste, formando os pares temáticos que ilustram esta reportagem.
“A escola mudou
minha forma de
olhar o outro:
detalhes que
antes passavam
despercebidos
agora são vistos
com o olhar de
um fotógrafo.”
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Conhecer o Nordeste e registrar suas periferias
já era um dos muitos projetos de Ratão. Há dois anos
ele vem tentando patrocínio para fotografar o fervor
cultural de Pernambuco.
— Estive lá no ano passado, de carona no ônibus de participantes do projeto Musicultura, da UFRJ,
que foram para o II Fórum Social Brasileiro. Como
não consegui entrar em muitas favelas, acabei documentando moradores da periferia que estavam no
fórum. A partir daí, surgiu a idéia de fotografar as manifestações culturais nas periferias.
Sem conseguir levar o projeto a Pernambuco,
ele começou a documentar a periferia carioca, como alunos do Centro
Cultural Pastinha e um encontro
de jongueiros em Valença. A Folia
de Reis nos morros da Formiga e
Dona Marta, e o Jongo da Serrinha,
em Madureira, são os próximos.
João Roberto Ripper, coordenador da Escola de Fotógrafos Populares, é o grande mestre de Ratão.
Quando teve contato com as imagens de Ripper — que é o criador
do extinto projeto Imagens da Terra
— no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o Ratão percebeu
que era isso que queria fazer da vida.
— Sempre tive muita admiração por ele e pelos seus trabalhos ligados à questão agrária — conta Ratão.
A forma de se aproximar dos
fotografados, sempre explicando o
porquê da foto, é uma das coisas que Ratão aprendeu
com Ripper. E também graças ao aprendizado de registrar, na maioria das vezes, famílias populares.
— Na viagem, em uma estrada para Carnaubeira da Penha, no sertão de Pernambuco, encontramos
uma família na beira da estrada. Passamos direto, mas,
depois de 200 metros, voltamos. Nos aproximamos e
vimos que todos nos olhavam com olhar assustado.
Parei, expliquei nosso projeto e disse que a imagem
da família, na beira da estrada, representava o que
queríamos registrar por aquelas cidades. A princípio,
eles não nos deixaram fazer a foto. Mostrei mais uma
vez nossa proposta, e uma das mães, com a filha no
colo, deixou a porta aberta para que eu entrasse na
intimidade delas. Nossa imagem é uma coisa nossa,
muito íntima, não gosto de sair entrando assim na
vida das pessoas. π
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OLHARES
foto grande: morro do alemão, grafitagem
foto menor: Icapui, no Ceará
“Mostrei mais
uma vez nossa
proposta, e uma das
mães, com a filha
no colo, deixou a
porta aberta para
que eu entrasse na
intimidade delas.”
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quadrinhos: ELOAR GUAZZELLI
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folhetim
As aventuras de um Zé Pereira
texto: FLÁVIO IZHAKI
ilustração: OLIVIA FERREIRA
— Ô Zé, não cumprimenta mais a ex-namora-
da? Vai cuspir no prato que comeu?
A naturalidade de Cláudia. A opressora
naturalidade de Cláudia, o falar alto, gesticular,
o sorriso de 78 dentes, jeito espalhafatoso de se
vestir, de puxar conversa com todos, qualquer
um, até com o ex-namorado.
— Senta aí e toma um chope! – no pedido,
uma ordem.
Zé Pereira sentou, sujeito-homem. E esse
anel no dedo, aliança na mão esquerda, casamento: quem seria o Zé Pereira depois do Zé Pereira?
— Está vindo de onde tá indo pra onde? –
Cláudia de novo, a mulher-citação.
As palavras presas, a língua que se recusa
a abrir espaço entre os dentes. O que falar, como
se portar? Zé Pereira ainda calado. Quantos segundos já teriam se passado desde que sentara
e não abrira a boca? O pensamento impedindo a
ação, bloqueando a espontaneidade, e ele começou a contar: 28, 29, 30, 31, 32. Em voz alta o 33,
sem perceber.
— Trinta e três? Está me achando com cara
de médica, Zé? – Cláudia dona da situação, 156
dentes de um duplo sorriso, deboche.
— Não, é... 33 eu disse, não foi? Trinta e
três anos está fazendo o Marcelinho hoje — conseguira remendar a tempo — estou indo lá no
aniversário dele daqui a pouco. Vamos lá?
Convidara Cláudia para um programa, foi
isso? Ato impensado, imprensado contra os azulejos do Nova Capela. E agora a vida era apenas a
espera pela resposta, uma espera que se estendia
em minutos, meses, quatro, o tempo de separação entre os dois, e o olhar de Cláudia oscilando
entre o rosto dele e a porta, será que ela está es-
cap. 3:
33
perando alguém?, e novamente no rosto dele, no
chope, último gole, 12, 13, 14, 15, 16... — Zé Pereira de novo contando.
— Mas o aniversário do Marcelinho não é hoje!
— Não é hoje? É sim, não é? — Cláudia me
domina, ele pensa, Cláudia ainda me hipnotiza,
e agora era o olhar dele que vacilava entre o rosto
dela e a porta, o dedo anular e a parede azulejada,
os avisos colados na parede, peça de teatro, aulas
de violão, show de samba.
— Mas de que Marcelinho você está falando?
— Mais dois chopes?
— Santo Cícero, providencial mestre de
lentes embaçadas, solta dois chopes, ó mestreprático. O meu sem colarinho que sou sujeitohomem, não gosto dessas frescuras de creme.
— Eu, hein, Zé, que história é essa de sujeito-homem?
A mudez de Zé Pereira novamente, os lábios secos que não se desgrudavam, falta de saliva, memória de cerveja.
Sujeito-homem. Isso mesmo, pensou, mas
não falou, sujeito-homem, sim, mais sujeito-homem que esse aí do anel. Pensou, mas não falou.
— Você está estranho, Zé! — uma afirmação, Cláudia só falava no imperativo. Se Cláudia
falasse por escrito colocaria três exclamações ao
final de cada frase.
— Mas que Marcelinho é esse, Zé? Não é o
meu Marcelinho, é? — mesmo as interrogações
de Cláudia eram exclamações.
A porta do Nova Capela se abriu e um sorriso veio andando em direção a mesa onde os dois
estavam. Um homem, um homem no diminutivo
enlaçou o pescoço de Cláudia e estalou um beijo
no cantinho do lábio.
Marcelinho.
CONTINUA
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canja
10:32
texto: JOÃO PAULO CUENCA lustração: CHRISTIANO MENEZES
— Quantos foram os minutos da sua vida
em que você pôde dizer que realmente aconteceu alguma coisa?
— Alô? Quem é?
— Acorda que é hoje!
Bateu o telefone e tentou imediatamente voltar a dormir, colando o lençol à cabeça como uma
muçul­mana de hijab. O aparelho não demorou a tocar de novo e, depois do quinto toque, Tomás Anselmo desistiu.
Hoje o quê?
Saiu do banho gelado e vestiu-se. Ganhou a rua, a essa hora com ar amarelado, e caminhou entre batalhões de anônimos. Desviou-se de valas abertas nas rugas das mãos estendidas, filas indígenas nas portas de onipresentes lotéricas, ciganos ululando pontos de macumba, fuzileiros navais em marcha, freiras de som­brinha, caminhões paquidérmicos despejando
garrafas e engarrafando cruzamentos. Depois do caminho de casebres empilhados (caixas de
fósforo com janelas) e becos malcheirosos (nós, o cancro do mundo!), alcançou-me num bar
de esquina.
O encontro de dois palitos queimados:
Tira esse focinho da cara, Tomás. Começamos agora, incontinenti!
Mas ainda não deu nem onze horas.
Já? — peço dois.
Esvaziamos os troféus dourados num gole en­quanto o garçom, sem que precisemos pedir, desliza da bandeja para nossa mesa um par de sanduíches de abacaxi e filet mignon, conforme anunciado pelo cardápio.
Nas primeiras mastigadas, surge em meu amigo remoto flashback: durante os barulhentos almoços dominicais da sua infância, entre colunas ascendentes de fumaça e cínicas
conversações adultas, a criança que costumava ser Tomás Anselmo mordia as bordas de plástico azul costuradas no menu desse preciso bar até a desintegração total, para irritação dos
garçons e vergonha da mãe, que sempre o castigava com um tapa agudo sobre as costas da
mão. E talvez fosse aquele o mesmo cardápio semidestruído que tem agora de­baixo do copo, o
que faz Tomás, um cavalinho xucro usando retrovisores como antolhos, pensar secreta­mente
em cravar os dentes no menu.
Mas olha para mim, relincha sacudindo a carne das bochechas e, num invisível encolher
de ombros, desiste. Esvazia um paliteiro e, com os palitos quebrados, forma desenhos geométricos sobre a toalha da mesa.
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Rayo nuestro epitafio
Con un escarbadientes
En la mesa del café
La alcantarilla sorbe
Otro dia
Resbalando la vida
De las calles
Que amanecen sin apuro
Mientras canto este tango
A mi amor
Sea quien
Sea quien sea
É a letra do tango obscuro gravado em 1932 por Antonio Ratón que Tomás tenta cantarolar sem saber como acaba ou começa a estrofe:
Ao meu amor
Seja lá
Seja lá quem for...
Encerrados os murmúrios, a exploração mental sobre o cardápio e sua idílica infância
de botequim, engatamos numa conversa sobre os amigos exilados com quem um dia compartilhamos cadeiras, mesas e copos desse bar — e Tomás agora imagina que os co­pos das boas
casas, assim como os cardápios, também devem seguir os mesmos ao longo dos anos, beijados por milhares de bocas!, algumas delas repetidas em estranhos padrões, representados
por equações cujos gráficos se assemelhariam aos desenhos traçados com palitos na mesa.
Enquanto Tomás é um peão introspectivo, perdido em suposições inúteis com melancolia no arco das sobrancelhas, eu, bazófio, arroto escalas diatônicas, faço castelos neogóticos
com as bolachas do chope, fanfarroneio sobre nossos ex-amigos:
— Ah, nossos sátiros camaradas de nada! Brin­demos!
Aos dândis precoces, escritores sem livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes
com quem conversá­vamos por citações de romances inexistentes, flanando sob pontes e mesas
de botecos como pândegos muito sólidos, lordes sem um tostão nos bolsos, trocando os dias
pela noite e as noites por coisa alguma! Bebamos à nossa perpétua disponibilidade para vernissages inú­teis, bocas-livres sem convite! Brindemos ao nosso fu­turo e passado, a enredar fiapos
de vida dedicados ao culto do ócio, de nós mesmos e de paixões viróticas: nossa doce e irreparável adolescência.
— Aos que foram!
— Aos que voltaram!
Muitos tentaram a vida fora, exilando-se num ex­terior mitológico, dedicando-se à vera
arte de lavar pratos ou trabalhar de babá, limpando com diplomas universitários de ciências
humanas os perfumados restos de criancinhas caucasóides de boa estirpe. A desistência do
país, no início vista com inveja e deslumbre por todos, sempre era premiada por al­gum evento
incerto que os obrigava a voltar: falta de dinheiro, acessos de pânico, envolvimento em peque­
nos crimes, políticas de limpeza étnica, mortes na família, ou, ainda, tornados e enchentes
que destruíam as metrópoles de vidro para onde migravam — como se houvesse uma força
misteriosa que os atraísse de volta à cidade perdida de si mesma, aos bares, mesas e cadeiras
de todo mundo e de ninguém, aos copos e cardápios mordidos de sempre. Desembarcavam
cabis­baixos, veteranos de uma guerra perdida.
A única guerra que poderiam algum dia combater.
Mas eu, Pedro Cassavas, jamais teria esse problema! Eu e Tomás Anselmo, periféricos
eternos, à la résistance!
Capítulo do livro “O Dia Mastroianni” (Agir), de João Paulo Cuenca
63
ilustre
desconhecido*
por EDUARDO SOUZA LIMA
Vilmar Barbosa de Souza,
o Maza,
filho de Miséria, mineiro, 46 anos
de idade, 30 de estrada, cantor e
compositor, artista livre, toca no
Largo do Machado e tem foto até no Irã.
VOCÊ É CARIOCA DE ONDE?
Nasci em Muriaé, Minas Gerais, mas fui criado em
Campinas, São Paulo. Fiquei sete anos tocando em
Florianópolis, os turistas viviam me fotografando
lá. Tenho foto até no Irã e na China. E nos Estados
Unidos, França, Itália, Espanha, Holanda... e na Islândia e na Finlândia. Quando cheguei ao Rio, toquei
no Posto 9 e no Largo da Carioca, mas lá tem muita
concorrência.
TOCA DESDE QUANDO?
Desde pequeno. Meu pai era batera, a casa estava
sempre cheia de músicos. Cresci nesse ambiente, não
tinha como escapar. Ele é o Miséria, foi baterista da
Orquestra Leopoldina, que tocou para JK e Café Filho.
Ele acompanhou o Roberto Carlos, a Ângela Maria,
todos os grandes cantores do Brasil. Atualmente ele
dá aula na Fundarte, em Muriaé. É muito respeitado
e querido lá.
HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ TOCA NA RUA?
Há 15 anos comecei meu trabalho solo. Toquei 15 anos
como músico contratado em banda de baile, no Rio,
São Paulo e Minas Gerais. Hoje eu acho uma afronta
ter que seguir lista de música, pedido do público. O
artista tem que ser livre para poder criar. O que seria
da arte se não houvesse liberdade de criação? Certa
vez passei dois anos sem compor porque estava me
sentindo oprimido. Toco toda tarde aqui na Arthur
Bernardes, em frente ao McDonald’s, e quando chove
vou para debaixo da marquise da Pacheco.
As pessoas acham que eu gosto de Djavan por causa do meu cabelo, mas eu
toco mais Tim Maia. Meu repertório
é baseado na MPB, principalmente o
samba. Mas conheço também maracatu,
jongo, frevo, reisado. Aprendi a cantar
músicas em inglês por causa dos gringos, gosto politicamente do Bob Marley.
Mas também canto Ray Charles, Stevie
Wonder, Sting.
DÁ PRA VIVER DE CANTAR NA
RUA?
Eu sobrevivo porque tenho uma disposição fora do normal e viro o jogo. Dá pra
tirar a minha diária, pagar o rango e a
hospedaria. Sou muito grato ao povão.
QUAL O SEU
MAIOR SONHO?
Cantar só as minhas músicas. Mas no
Brasil você só atinge este estágio quando a mídia diz “esse é o cara”. E isso
custa dinheiro.
* inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.
O QUE VOCÊ GOSTA DE TOCAR?
o bumbo do zé
CASO DE POLÍCIA
A primeira vez que a Vivo me fez de otário foi quando comprei um celular, acreditando no reclame da TV
que diz que ela é a única operadora que pega em todo
o país. Agora, levou-me 21 reais na mão grande. Estive
em São Paulo e precisei comprar um cartão de recarga para o meu aparelho. Comprei esse aí embaixo —
ô Selton Mello, você é um cara legal, olha a imagem!
Não me parecia lógico que você só pudesse comprar
cartão para o seu aparelho em seu estado, nem fui avisado pela empresa de que o sistema funciona assim.
No cartão em si não há nenhuma advertência, apenas
um microscópico “SP” — que pode querer dizer qualquer coisa — escrito no canto esquerdo. Fosse a empresa honesta, haveria nele um aviso legível de “Cartão válido apenas para São Paulo”. Ou ela faria uma
campanha de esclarecimento na TV. Mas a Vivo parece viver de expedientes, pequenos golpes nos clientes,
tendo como armas principais contratos criptografados, impossíveis de serem lidos, e propaganda enganosa na TV — o CONAR só existe no papel? Só descobri que o cartão não me valeria de nada depois de ir
a uma loja da Vivo — antes, é claro, fui submetido ao
calvário do *9000. A mocinha simplesmente me disse que não poderia fazer nada por mim. Traduzindo:
perdeu, playboy.
O que mais me espanta nessa história toda é a
total falta de consideração com o cliente, possivelmente causada pela certeza da impunidade. Eles podiam
simplesmente carregar o celular e recolher o cartão. O
único prejuízo seria o do papel usado para confeccionar o mesmo, já que o que importa é o código de 12 números impresso nele. E aí teriam um freguês satisfeito.
Da privatização das teles para cá, o Brasil pulou de 800
mil telefones celulares para 120 milhões. Para a Vivo,
são 120 milhões de trouxas.
CONTO-DA-PHILIPS
Jorge comprou uma TV Philips 29 polegadas, modelo 29PT 4635/78, que estava em promoção. Como
não raro acontece, o aparelho quebrou um mês depois
do término da garantia. Jorge levou a TV para consertar numa oficina autorizada. Lá, lhe disseram que o
aparelho era “arquivo morto”. Traduzindo: o modelo
29PT 4635/78 tinha saído de linha e não fabricavam
mais peças de reposição para ele. Jorge ficou com uma
enorme carcaça inútil nas mãos.
A Philips costuma tratar mal o consumidor — quem já
teve que recorrer ao seu 0800 bem o sabe. Mas vender
produto com prazo de validade determinado e esconder isso do comprador já é conto-do-vigário.
CHAMANDO NA CHINCHA
Em 2003, Ricardo Macieira subiu ao palco do Cine
Odeon para prometer apoio da Prefeitura para o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. A promessa não foi
cumprida, a Prefeitura deixou os organizadores do
evento na mão em cima da hora, mas no ano seguinte
lá estava de novo o secretário das Culturas, na maior
cara-de-pau, para dessa vez prometer ajuda para o Festival do Rio. Ensaiou-se uma vaia, que foi rapidamente abafada. Este ano, Cesar Maia retirou o apoio financeiro ao Festival do Rio pouco antes de ele começar,
quando o material de divulgação já estava pronto, todo ele exibindo a marca da Prefeitura. Ninguém sabe
de onde veio e para onde vai Macieira — que chegou a
ser esculachado publicamente pelo prefeito numa reunião com produtores culturais — mas José Wilker tem
nome e carreira a zelar. Porém o ator e dublê de presidente da Riofilme — distribuidora de cinema da Prefeitura — fez um papelão ao subir ao palco do Odeon dizendo que não concordava com os desmandos
do chefe, mas que se calava. Papelão maior ainda fez
a turma que o aplaudiu. Tivesse ele pedido exoneração do cargo, mereceria todos os aplausos. Mas parece
que a galera do pires na mão não vai tirar o rabinho do
meio das pernas nunca.
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humor
Nonsense and Sensibility
ARNALDO BRANCO
Existe
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“Se você divertir o público, será considerado superficial, mas se aborrecê-lo todos o levarão a
sério”. Quem disse isso ou algo parecido foi Somerset Maugham, autor que tentei ler certa vez, mas larguei na vigésima página.
CENA CORTADA DE TROPA DE ELITE:
Capitão Nascimento dando na cara de um empreiteiro e apontando para TV ligada no horário político
eleitoral: “é você quem financia esta merda!”
leia o Mal Necessário Online em www.revistazepereira.com.br
o teste de QI, que dá a medida da capacidade de um ser humano para responder um teste de QI.
Mas desenvolvi uma forma de medir outro tipo de habilidade humana: o Quociente de Sensibilidade, QS. A
equação é QS = A (abstração) + T (tempo).
Sendo um sujeito extremamente superficial,
sempre tive dificuldade de perceber em certas obras de
arte, a arte em si. E dia desses tive uma epifania quando vi um sujeito em um museu contemplando um quadro (duas linhas perpendiculares sobre tela) tomar alguns passos de distância, parar, e não satisfeito dar
mais três passos para trás, como se fosse cobrar um
pênalti. Não perdeu o quadro de vista por um segundo
sequer, e ficou ali parado por uma eternidade.
Percebi então que um indivíduo pode ser considerado mais sensível que a média quão mais abstrato é
o objeto artístico em estudo e quão maior o tempo em
que sua atenção recai sobre ele.
Espectadores rasteiros costumam desistir de
admirar obras mais complexas nos primeiros indícios
de dificuldade em absorver a mensagem, o que dimuinui o Quociente de Sensibilidade pela redução do fator
tempo de exposição. Eles podem, por exemplo, abandonar uma sessão de “Stalker” do Tarkovski por acreditar que nada aconteceu nos seus primeiros 20 minutos, e perder mais duas horas e meia de um nada acontecendo sensibilíssimo.
Ou até podem dedicar atenção por um considerável período de tempo a um determinado produto
cultural, mas este tende a perder no quesito abstração
— por exemplo, uma Maratona Simpsons na Fox, que
tem o risco adicional de poder representar diversão, o
antônimo da Experiência Artística.