do descampado de ninguém a um câncer social
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do descampado de ninguém a um câncer social
1 GT 3 - CONFLITOS SOCIAIS, INSTITUIÇÕES E POLÍTICA – SESSÃO 1 COORDENADXR E DEBATEDXR: DRA. ISABEL GEORGES 16 DE JUNHO DE 2015 – 14H LOCAL: AUDITÓRIO 3 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE OS GÊNEROS DO “TRABALHO DO ESTADO” Tarcísio Perdigão Araújo Filho - PPGS - UFSCar [email protected] Agencia fomentadora: CAPES GT3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política Resumo: Neste texto proponho-me a discutir imbricações entre construções de gênero e determinadas frentes do “trabalho do Estado”, colocando em perspectiva comparada duas das “frentes” possíveis dos governos contemporâneos: as atividades profissionais do care, como o trabalho das assistentes sociais ou das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS); e as atividades do controle estatal, como o trabalho policial ou o do fiscal. Trata-se de refletir sobre o Estado pelos desvelamentos que suas interfaces diretas e cotidianas com o público oferecem, como no caso, pelo trabalho de implementação das políticas ou serviços públicos. Por isso, trago como insumo de minhas análises exemplos de pesquisas etnográficas e de cunho microssociológico que tratem dos dilemas individuais ligados ao trabalho dos implementadores, ou burocratas do nível de rua. Dessa maneira, acredito ser possível debater gênero, trabalho e governança de maneira cruzada. A escolha por esta abordagem dá a possibilidade de análises aproximadas às relações de poder, configuradas, a uma só vez, como aspectos das construções de gênero e do governo. Introdução Neste texto, proponho-me a discutir imbricações entre construções de gênero e determinadas frentes do “trabalho do Estado”, colocando em perspectiva comparada duas frentes de atuação de governo: as atividades profissionais do care e da assistência social; e o trabalho do controle estatal (como o trabalho policial ou da vigilância). Essas categorias profissionais nos permitem uma reflexão sobre o Estado em termos de suas interfaces diretas com o público e como são refletidas no cotidiano, pelo trabalho de implementação das políticas ou serviços públicos. Por isso, trago como insumo de minhas análises dados de pesquisas, principalmente etnográficas ou de cunho microssociológico, que tratem dos dilemas individuais ligados ao trabalho dos implementadores, ou burocratas do nível de rua (LIPSKY, 1980). A escolha por esta abordagem dá a possibilidade de análises específicas, concentradas e localizadas, afinal, “é ao nível da negociação quotidiana, das interacções Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 carregadas de poder, das reformulações das narrativas de vida, que o gênero como processo e prática pode ser apreendido” (ALMEIDA, 1996, p.3). Dessa maneira, acredito ser possível debater gênero, trabalho e governança de maneira cruzada. A fim de analisar a dimensão do gênero nos serviços associados ao controle social, meu foco principal neste trabalho, levanto questões relacionadas à investigação que desenvolvo acerca do âmbito operacional da fiscalização sobre irregularidades na cidade de Belo Horizonte, protagonizada exclusivamente por trabalhadores homens, os chamados auxiliares de fiscalização. Com o intuito de traçar um paralelo tencionado pelo viés do gênero, mobilizo pesquisas que analisam o trabalho de mulheres operadoras da assistência social e da assistência à saúde, compreendidos como trabalho “do cuidado” (MOLINIER, 2012; SOARES, 2012; HIRATA & GUIMARÃES, 2012; GEORGES & SANTOS, 2010; 2012; 2013; 2014), supostamente uma vocação feminina. Textos como estes me inspiraram a pensar como o Estado se produz, ao nível do cotidiano (DAS & POOLE, 2004), também pelo viés das construções de gênero. Neste trabalho não ambiciono discutir amplamente as questões conceituais fundamentais que envolvem as variadas ações do Estado Moderno. Assistência e controle social são tipologias gerais e ideais que servem de base para elucidar a diversidade de frentes possíveis de atuação do Estado contemporâneo brasileiro, a partir de suas bases operacionais. Através de certa noção de divisão do trabalho, ressalto alguns dos desdobramentos típicos de cada uma dessas frentes possíveis da governança, a partir do ponto de vista das interações sociais. Portanto, não se trata apenas de discutir questões gerais relacionadas a burocracias do nível de rua (LIPSKY, 1980), mas abordar determinadas questões relativas às experiências nas camadas mais subalternizadas das agências estatais brasileiras e contemporâneas, contextualizadas pela descentralização da implementação de políticas estatais e das flexibilizações dos empregos públicos (LIMA & COCKELL, 2008). Este aspecto é levado em consideração como fator estruturante das experiências analisadas, inclusive pelo ponto de vista da construção dos papéis de gênero. Os auxiliares de fiscalização da Prefeitura de Belo Horizonte Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 Há mais de dois anos desenvolvo pesquisa sobre o os auxiliares de fiscalização, funcionários terceirizados que atuam nas “linhas de frente” da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Trata-se de uma categoria de trabalhadores responsáveis por variadas demandas associadas, principalmente, ao controle de práticas ditas irregulares/ilegais em espaços públicos da cidade. O trabalho dos auxiliares de fiscalização chama a atenção por se tratar de uma função alocada nas pontas do controle sobre irregularidades no espaço público: eles lidam com a rotina da operacionalização das regras de conduta nas ruas da cidade e em contato direto com os cidadãos (LIPSKY, 1980). Um ponto crucial para se compreender a função dos auxiliares, de modo geral, é que se trata de uma ocupação exclusivamente masculina. Segundo a gerência da secretaria da PBH responsável pela gestão destes trabalhadores, “ser homem” é o pré-requisito básico exigido na seleção. Vale comparar que, entre os “fiscais integrados” (os fiscais superiores, “oficiais”), esta condição não existe: há tanto fiscais homens, quanto mulheres no quadro de funcionários. O preenchimento dessas vagas se dá mediante um concurso, ao passo que no caso dos auxiliares acontece por meio de uma seleção aberta realizada pelas empresas terceirizadas. Apesar de não ter averiguado justificativas formais acerca desta exigência na seleção dos auxiliares, fica claro que existe uma estruturação proposital baseada em certa expectativa sobre o que seria uma qualificação ideal de funcionários nessa posição, baseado, por sua vez, em uma clara ideia de papel de gênero: trata-se de um trabalho masculino. Por meio dos dados de pesquisa gerados até então por meio de entrevistas em profundidade e observação direta do trabalho realizado pelos agentes da Prefeitura no Centro de Belo Horizonte, foi possível traçar as principais características da ocupação: (1) estes trabalhadores estão alocados na base da cadeia hierárquica da burocracia municipal; (2) sua função predominante (e diária) é a da vigilância ostensiva em espaços públicos onde há grande movimentação de pessoas (o plantão), cujo objetivo central é o controle do comércio ambulante irregular; (3) os auxiliares, atualmente, não recebem capacitações técnicas ou teóricas sobre como atuar e conhecem pouco sobre o conteúdo das legislações que operacionalizam atualmente1. Amplamente, reconhecem que o que sabem foi aprendido “na 1 Desde o início dos anos 2000, existe uma única peça jurídica que demarca legalmente práticas em espaço público na cidade, o Código de Posturas de Belo Horizonte (2003) – cunhado como Lei. 8.616. Este marco regulatório das “posturas” conta com mais de 300 normas, criadas ao longo dos anos desde 1930. Há uma variada gama de normas relacionadas aos usos e práticas nos espaços públicos: utilização das calçadas, Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 prática”, “nas ruas”, “na tora”. (4) O objetivo anunciado pela maioria deles sobre sua atuação prioritária é o de “manter as ruas limpas”, referindo-se a sua atribuição principal: a inibição e controle, nos espaços públicos, de uma vasta gama de práticas consideradas irregulares pela legislação, mas com o foco claro no comércio ambulante irregular. Apesar disso, o que também marca a experiência de trabalho desses homens é (5) a participação enquanto “auxiliares” em várias outras atividades realizadas pela PBH, estas executadas eventualmente, quer dizer, a depender de demanda. A maioria delas ainda está associada ao controle de práticas ditas irregulares, como o auxílio nas operações, modalidade da fiscalização entendida como complementar ao plantão no modelo de gestão urbana belohorizontina (ARAÚJO FILHO, 2015). Genericamente chamadas de “operações”, compreendem-se as operações de fiscalização nas mediações dos grandes eventos, operações de abordagem à população em situação de rua, operações de fiscalização em shoppings populares, patrulhas de fiscalização em estabelecimentos comerciais, operações de desapropriação e etc. A participação dos auxiliares nas equipes que executam as operações (nem todas coordenadas pela Secretaria Municipal Adjunta de Fiscalização - SMAFIS) se limita, pelo menos a princípio, ao “trabalho braçal”, considerado por muitos auxiliares como uma espécie de “trabalho sujo” (HUGHES, 1957), a parte que ninguém mais quer fazer: carregar caixas, entulhos, guardar e lacrar os materiais apreendidos, carregar e descarregar caminhões. De fato, a lista de atribuições é bastante extensa e não termina aqui2. Ponto crucial desde minhas impressões iniciais no campo foi que, especialmente no contexto de sua atribuição principal, o da vigilância ostensiva nas ruas (o plantão), estes agentes possuem relativo poder de decisão sobre quais irregularidades serão de fato controladas, em nome da tarefa de manter a “limpeza”, a ordem. Devido a condições situacionais diversas (quase sempre adversas, pelo ponto de vista dos sujeitos) para sua atuação como agente de controle, formas variadas de “resolução” dos problemas rotineiros podem ser tomadas por eles, uma vez que existem poucas possibilidades para que sigam procedimentos de atuação rígidos e disciplinados. Em outras palavras, como observado, o instalação de faixas, instalação de publicidade, regularização de obras privadas, incluindo direcionamentos sobre solicitações de alvarás, e etc. 2 Além das situações citadas eles se envolvem também com outras atividades “braçais” com a montagem e desmontagem das grades que cercam a Feira Hippie, realizada todos os domingos na região do Centro da capital, o carregamento e descarregamento de caixas pesadas dos/para os caminhões que levam os materiais para o/do depósito, entre outros. Escutei, ao longo do meu contato com o campo, vários apelidos para estes trabalhadores decorrentes dessa característica, entre eles: “faz-tudo”, “quebra-galho”, “severino”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 trabalho desempenhado por estes trabalhadores é fortemente marcado por um relativo poder discricionário e por condições de atuação que não os enrijece em protocolos concretos e bem definidos (ARAÚJO FILHO, 2014, 2015). A saber, o “procedimento padrão” básico dos plantões é, basicamente, permanecer num ponto fixo (podendo às vezes se movimentar por alguns quarteirões próximos) para coibir que pessoas venham a realizar algum tipo de irregularidade naquelas mediações e, desta forma, promover uma espécie de controle imediato das práticas naquele microterritório. Ao notar alguma irregularidade, o agente deve se dirigir ao infrator e comunicá-lo que está em situação irregular, convencendo-o a não persistir. Trata-se do “primeiro contato”, como descrevem comumente os auxiliares. Caso não haja sucesso, o agente se comunica, via telecomunicador “HT”, com as chamadas “equipes de apoio” (ou simplesmente Apoio), para que elas se desloquem ao local e “resolvam a situação”. Desta forma é pensada a participação do Apoio pelos sujeitos. Dada a situação, por exemplo, de um comerciante ambulante que “incomoda” o plantão, a equipe de Apoio é acionada a fim de realizar, de forma imediata, a apreensão das mercadorias. Esta equipe é liderada por um fiscal integrado (funcionário concursado da PBH que possui legalmente a autoridade para assinar os autos de apreensão e aplicar todas as sanções previstas no Código de Posturas), acompanhado por um policial militar (cuja função se limita ao resguardo da segurança da equipe) e por um grupo de (normalmente quatro) auxiliares de fiscalização, que já à primeira vista se diferenciam por não usarem uniformes - o colete e boné azuis - como os outros. Estes são os auxiliares que compõem o Apoio3. O papel desempenhado por estes auxiliares é completamente distinto do realizado pelos “azuizinhos”, assim como sua experiência no “serviço”. Sua tarefa principal continua sendo o de auxílio, mas nesse caso se limita às ações de apreensão, em atendimento aos chamados originados no plantão. No caso do Apoio, o trabalho não é comunicativo, mas incisivo: ao chegarem ao local indicado, cercam os ambulantes apontados pelo plantão e “pulam” nas mercadorias expostas para venda. O fiscal integrado participa da ação apenas como a figura que a autoriza e a legitima, assinando o auto de apreensão. Todo o esforço e risco envolvidos na ação são assumidos pelos auxiliares do Apoio, desde o recebimento do chamado, a própria apreensão, 3 Muitas vezes, os próprios auxiliares do Apoio são chamados de “apoio”, ou “meninos do apoio”, ou “caras do apoio”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 até o lacramento das mercadorias nos invólucros e o descarregamento dos mesmos no depósito da Prefeitura. Há um ponto muito importante a ser ressaltado nessa descrição. Durante meu contato com o campo, percebi que existe uma grande distância (e uma suposta hierarquia) entre as duas modalidades de auxiliares, que parecem opostas, pelo ponto de vista das representações que elaboram de si e sobre o outro. Os auxiliares que compõem as equipes de Apoio durante a semana4 não se reconhecem como auxiliares. Como não usam uniformes, muitas vezes precisei pergunta-los se eram auxiliares, uma vez que se confundiam com os seus superiores supervisores, gerentes -, que também usam roupas casuais: calça jeans, camiseta, tênis. A primeira resposta de muitos foi: “sou do Apoio”. Apesar de receberem o mesmo salário, trabalharem sob a mesma carga horária e ter a Carteira de Trabalho assinada da mesma forma, as funções que exercem os “azuizinhos” e os “meninos do Apoio” e a representação que fazem de si é absolutamente distinta e diferenciadora. Chamo a atenção, a seguir, para aspectos dessa distância aparente, presente em uma representação do “drama social do trabalho” (no sentido atribuído por HUGHES, 1976), a partir do ponto de vista de três agentes5. As narrativas delineiam um pouco sobre as sociabilidades (masculinas) no emprego de auxiliar, desdobramentos das socializações no ambiente de trabalho, entendido aqui como um processo que “conecta permanentemente situações e percursos, tarefas a realizar e perspectivas a seguir, relações com outros e consigo (self), concebido como um processo em construção permanente” (DUBAR, 2012, p.8). Márcio e Gustavo Conheci os agentes Márcio e Gustavo enquanto acompanhei por alguns dias o trabalho de uma das equipes6 do Apoio. Dentro da Kombi, um clima bastante descontraído (piadas, 4 Nos finais de semana, outros auxiliares compõem as equipes de Apoio, os mesmos que participam dos plantões de segunda a sexta. Todos os auxiliares trabalham em pelo menos um dia do final de semana, e exercem, na maioria das vezes, alguma função diferente da realizada nos outros dias. 5 Nota-se que não trago informações precisas sobre os sujeitos e suas origens, uma vez que o único contato que obtive com estes foi na rua, durante o período de serviço. Embora este seja um objetivo para os próximos meses de pesquisa, não consegui entrevistá-los utilizando um gravador. Além disso, devo lembrar que os nomes dos auxiliares atribuídos nas narrativas são fictícios, como uma maneira de resguardar-lhes as identidades. 6 Vale explicar que submetidas à Regional Centro-Sul existem várias as equipes de Apoio, cada uma responsável por “cobrir” uma sub-região do Centro, dentre as que apresentam maior demanda: Savassi, Barro Preto, Área Hospitalar e Hipercentro. Cada uma delas é denominada segundo a mesma lógica e a mesma nomenclatura de policiamento territorializada da Polícia Militar mineira, na qual cada “Cia” (por exemplo, 6ª Cia, 4ª Cia) corresponde por um território. A fim de proteger os meus interlocutores, preferi não expor qual das Cias Márcio e Gustavo fazem parte, mas é preciso dizer que ela corresponde a um dos territórios mais “torados” e problemáticos da cidade. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 “zuações”, casos do final de semana, joguinhos no celular, assovios e cantadas para mulheres que passavam na rua), se alternava com as tarefas e os assuntos de trabalho. Minha presença parecia não causas grandes perturbações7. Pude presenciar algumas ações de apreensão, mas também, entre um chamado e outro, participei de conversas e de momentos de descontração entre os auxiliares. Presenciar os momentos de ação foi tão importante, pelo ponto de vista da pesquisa, quanto os momentos mais relaxados. Márcio trabalha há dois anos para a PBH e Gustavo há oito; Márcio tem vinte e poucos anos e Gustavo quase trinta. Há pouco mais de um ano, eles integram a mesma equipe. Os dois foram os meus principais interlocutores do grupo e fizeram questão de me apresentar o “serviço”, e com certo orgulho. Márcio conta que essa equipe é resultado de muita “peneira”, afinal, “muitos desistem porque não aguentam a pressão”, o ritmo e os riscos da atividade, e então pedem transferência para o plantão. Márcio relata que muita gente não entende porque ele continua nesse trabalho, e ele responde que é por que “gosta da adrenalina” e que não suportaria o trabalho dos “azuizinhos” no plantão, pois julga ser “muito parado”. Diz também que sentiria certa sensação de impotência diante dos conflitos com os camelôs: diferente do Apoio, os outros auxiliares “não podem reagir de nenhuma forma”, a não ser chamando o Apoio e a Polícia Militar como últimas instâncias. Disseram que o trabalho no Hipercentro é muito difícil, mas que eles têm conseguido bons resultados. Gustavo me mostrou uma foto das mercadorias da última apreensão que realizaram, segundo ele a maior apreensão de cigarro contrabandeado já realizada em Belo Horizonte. Também havia uma foto tirada de uma espécie de cartaz feito em reconhecimento do feito, que seria exposta em algum mural da sede, junto à foto da apreensão e a outra de todos os responsáveis pela ação. Pedi as fotos para Gustavo que não se incomodou em me enviar, utilizando o bluetooth do celular. Gustavo me mostra também uma cicatriz que tem no tórax, resultado de uma facada que tomou durante um conflito com camelôs, após uma ação de apreensão arriscada perto da Rodoviária. “Já levei paulada, pedrada, facada”, conta espontaneamente logo no meu primeiro dia na Kombi da companhia. Márcio confirma o fato de que estejam vulneráveis às agressões e as situações de violência na rua, mas faz questão de 7 Penso que por ser homem, foi possível criar algum tipo de identificação entre os sujeitos na Kombi e eu, ao passo que não pareciam constrangidos de forma alguma, por exemplo, ao fazerem piadas de cunho machista, quando flertavam com mulheres na rua ou conversavam entre si sobre assuntos constrangedores. Na verdade, penso que toda minha inserção no campo foi facilitada por este mesmo motivo, uma vez que quase todos os meus interlocutores são homens. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 dizer que não deixa barato: “Tem vez que eu apanho, mas quando é assim, eu mais bato do que apanho.” Wagner Conheci Wagner já na primeira vez que fui a campo acompanhar uma ação concentrada da fiscalização nas mediações da passarela que liga a Praça Rio Branco e o Bairro Lagoinha, região onde tradicionalmente circulam muitos comerciantes ambulantes. Esta ação durou vários dias, o que se tornou uma oportunidade para eu acompanhar um pouco da rotina dos plantões. Ao longo desses dias, enquanto Wagner trabalhava, conversamos bastante. Wagner tem mais ou menos trinta anos e trabalha há quatro como auxiliar (desde quando saiu de sua cidade no interior de Minas Gerais), atuando nos dias de semana em plantões na região da Rodoviária. Diz que até conhece de vista alguns dos ambulantes que têm “ponto” por ali. Apesar de ter achado curioso, Wagner gostou muito de saber que havia alguém estudando a fiscalização e, por isso, fez questão de dar atenção às minhas perguntas. Constantemente se lembrava de alguma informação que ele julgava ser “interessante para a pesquisa”. O auxiliar me descreve o seu trabalho como uma atividade que depende muito do que ele chamou de “técnica”, isto é, uma maneira de dizer que existe um comportamento adequado nesse tipo de serviço, “como tudo que se faz”, explica. Segundo ele, um aspecto determinante do trabalho é a maneira de realizar a abordagem, que deve ser tranquila e bem medida, quer dizer, o auxiliar deve saber entender “até onde pode ir”, e aponta: “até policial sabe a hora que tem que recuar”, “se você sabe como evitar [problemas, confusões], por que não evitar né?!” Diz ainda que é comum que alguns ambulantes acatem mais tranquila e rapidamente seu pedido para dispersarem em respeito à forma gentil, “com educação”, com que lhes trata. A fim de fazer um contraste à sua conduta “técnica”, conta-me sobre alguns outros auxiliares que, segundo ele, extrapolam o seu papel como auxiliar. Ele se referia a determinados auxiliares do Apoio (ainda que alguns azuizinhos também tenham esse tipo de atitude), e os denominou como “vibradores”, “sangue nos olhos”. Conta que não se identifica com estes colegas pois eles excedem o que o serviço e as situações demandam: agem com truculência, ameaçam os ambulantes, tomam as mercadorias (às vezes sem a presença ou a Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 ordem do fiscal), correm atrás de assaltantes, e mais, segundo Wagner, pensam o seu território de atuação como sendo “área deles”. Ele se pergunta: “por que não fazem concurso pra polícia então?”. De fato, muitos dos auxiliares, do Apoio e do plantão, me relataram ter planos, e já estarem estudando, para prestar o concurso 2015 para soldado da Polícia Militar. Wagner reclama que acha o trabalho um pouco monótono, mas afirma estar satisfeito com o emprego mesmo assim. Já se acostumou a ficar tantas horas parado e em pé. A divisão sexual do “trabalho do Estado” Neste texto, assumo análises que denotam a proposta de imbricação de categorias de trabalho e gênero. Não há determinismo (ou naturalizações) com relação à associação do gênero masculino ao trabalho do controle (policiais, seguranças, porteiros, soldados, fiscais), por exemplo, uma vez que existe espaço, ainda que limitado, para as mulheres nesses mercados de trabalho. Trata-se de uma maneira de apontar que determinadas atividades parecem se conformar e se popularizar enquanto apropriações de processos mais amplos de construção do gênero na sociedade, o que, de fato, traz consequências reais para os trabalhadores e trabalhadoras. Aspectos de gênero são definidores para a delimitação de tarefas, atividades, sociabilidades, hierarquias e etc. Em uma pesquisa sobre a entrada das mulheres na Polícia Militar paulista, Denari (2014) revela que a elas, normalmente, são separadas funções não combativas dentro da organização (como as administrativas ou as relacionadas ao policiamento comunitário), funções estas notoriamente de menor prestígio segundo a lógica da sociabilidade e das hierarquias policiais. Ainda sobre as organizações militares – nesse caso especificamente o Exército Brasileiro – Rosa Reis (2007), sob a ótica bourdieusiana, ressalta a existência de um campo militar, onde é possível identificar a emergência de um habitus correspondente, o habitus militar. Segundo ele, sendo este campo uma construção social protagonizada por homens, enquanto elaboradores das regras do mesmo, estes jogam o seu próprio jogo com vistas na reprodução de suas estruturas. O autor discute sobre a associação entre o habitus militar e o habitus masculino, diz que a combinação Homem-Militar torna-se naturalizada, inscrita na “ordem das coisas” (BOURDIEU, 1999, WACQUANT, 2002, apud REIS, 2007). Esse quadro se manifesta quando se traduz em violência simbólica dentro da organização. Segundo Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 o autor, as mulheres que, por sua vez tiveram uma entrada efetiva no Exército Brasileiro apenas recentemente, acabam encontrando como a única opção viável diante de sua participação marginal no campo de forças a conformação às regras já vigentes e às possibilidades de movimentação subjacentes nas dinâmicas masculinas-militares estabelecidas tradicionalmente, a “conversão” ao habitus militar. Nessa perspectiva, outros autores como Paula Poncioni (2005), Paulo Storani (2010) e Jaqueline Muniz (1999) apontam que faz parte da narrativa e da justificação do trabalho policial (militar), determinadas simbologias e comportamentos que evidenciam que a identificação policial está sedimentada no que se chama de ethos guerreiro (combatente, viril, masculino). Reproduz-se, desta forma, um padrão de comportamento que legitima simbolicamente o trabalho policial, à vista de todos, encorajando a agressividade como fator necessário para o cumprimento de suas obrigações públicas, ao mesmo tempo, em que se afirma enquanto homem (PONCIONI, 2005). Estes estudos fazem-me pensar sobre como os “trabalhos do Estado” estão inseridos em uma “divisão sexual do trabalho” análoga. A formulação de Hirata & Kergoat (2007), já renovada com relação às abordagens teóricas/políticas tradicionais, a princípio, diz sobre a desigualdade na distribuição de homens e mulheres no mundo do trabalho e para a designação diferenciada entre ambos para ofícios, profissões e atividades. Elas chamam a atenção para a “divisão sexual do trabalho” como uma forma de divisão social do trabalho decorrente das relações de poder entre os sexos, e chamam a atenção para o aspecto “prioritário” dessa “nova” divisão para a configuração da própria desigualdade social. Nesse mesmo sentido, Araújo (2005), ressalta que as relações de classe e gênero devem ser pensadas como fatores estruturantes da sociedade, na medida em que se sobrepõem: “as relações de classe são sexuadas, assim como as relações de gênero são perpassadas por pontos de vista de classe” (p. 90). Daí a importância de se ter em mente “quais” mulheres e homens inserimos em nossas pesquisas. Por uma mirada feminista, e a fim de adequarem o conceito aos novos modos de organizações socioeconômicas, Hirata e Kergoat (2007) ressaltam a necessidade de ampliação do conceito de “trabalho”, incluindo agora os trabalhos domésticos, os diversos trabalhos nãoremunerados e os trabalhos decorrentes da chamada “informalidade”. Trata-se de um olhar voltado para uma divisão fundamental e hierárquica do mundo do trabalho (de modo geral) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 observada em vários de seus aspectos, entre atividades, tarefas e técnicas (além de profissões), assentados em opostos sexuados: espaço público e privado; produção e reprodução; “trabalho masculino” e “trabalho feminino”. Parece-me adequada a transposição desse esquema ao campo dos trabalhadores (subalternos) do Estado. Quando analisamos cargos de baixo escalão nessa divisão do trabalho, observa-se que, em sua maioria, os empregos tipicamente masculinos proporcionam atividades voltadas para as dinâmicas de uma esfera pública (“para fora”) - como fica claro pelo caso dos auxiliares de fiscalização, que lidam com a imposição de regras, do controle de práticas, com “a rua” -, enquanto que os empregos tipicamente femininos estariam voltados para a esfera privada ou do doméstico (“para dentro”) - como as trabalhadoras do care, que tem suas raízes nos vínculos familiares (SOARES, 2012), tratando sobre interesses supostamente não-públicos8. Avançando nesta discussão, em face às novas abordagens que os programas sociais brasileiros têm desenvolvido, e consequentemente às novas ocupações femininas decorrentes destas, Georges & Santos (2014) dizem que a moralidade feminina tradicional se configura como um dos motivos pelos quais, nesses espaços de atuação, as mulheres pobres têm se lançado em determinada (e relativa) esfera pública quando ocupam empregos na implementação de programas sociais e de atenção à saúde. A ampla expectativa de um comportamento tipicamente materno – que preza pelo cuidado do outro – e a capacidade dessas mulheres de manterem uma comunicação estreita com os assistidos (de sua mesma classe social e moradores da mesma comunidade) têm otimizado o alcance e a eficiência desses programas nas comunidades pobres. No caso do trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS)9, as mulheres não só têm um pertencimento social próximo às assistidas, como também são dispõem de um capital social nas localidades que facilita a conquista de laços de confiança e a obtenção de informações sobre os hábitos domésticos ligados à higiene e à saúde, sustentando a eficácia 8 Isso não quer dizer que o que se seria considerado uma função não-pública esteja desprovida de capacidade de produção de política. Susan Okin (2008) traz uma importante discussão sobre o “quanto do pessoal é político”, ela traz dois pontos principais: (1) chama a atenção para as dinâmicas de poder entre os sexos, ainda que em ambientes domésticos; (2) e diz sobre a completa independência das relações sociais domésticas com as relações sociais não-domésticas. 9 A atuação dessas mulheres faz parte das diretrizes do Programa Saúde da Família (PSF) e integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), que objetiva atuar no sentido de promover a prevenção e a identificação de doenças, assim como a educação sanitária, por meio de uma abordagem comunitária de proximidade entre as agentes e as usuárias (GEORGES & SANTOS, 2010). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 dos novos programas de saúde (LIMA & COCKELL, 2008; LIMA & MOURA, 2005). Portanto, não há exatamente uma inversão de papéis nos novos programas sociais, mas sim uma funcionalização das supostas disposições femininas de sociabilidade para o cuidado em nome do sucesso de uma política pública. Georges e Santos (2010) chamam a atenção para as Agentes Comunitárias de Saúde que, estando “nas pontas” das políticas de saúde e lidando com os usuários direta e constantemente em suas residências, acabam por extrapolar suas atribuições oficiais. Elas agem como reguladoras de diversos assuntos (privados e públicos) da comunidade, o que oferece a oportunidade de provocar a demanda das famílias pelos vários serviços públicos, o que se mostra como um efeito da autonomia típica de ação. Investigando também sobre as ACS, Lotta (2012) observou ainda que, na interação com os usuários, elas mobilizam saberes técnicos juntamente com saberes locais. Ainda que este procedimento não esteja previsto institucionalmente, as trabalhadoras utilizam-se destes conhecimentos a fim de se fazer entender bem entre os usuários e usuárias, ao mesmo tempo em que lidam com o desafio da exequilibilidade do programa. A proximidade entre operadoras das pontas e o público parece ser uma chave importante para entender o contexto dos novos programas sociais, uma vez que eles pretendem capilarizar-se nas comunidades periféricas. Em pesquisa sobre a implementação do Programa Saúde da Família (PSF) em uma “comunidade carente” em São Paulo, Georges e Santos (2013) chamam a atenção para um efeito importante desse tipo de política de saúde: as titulares do programa (as usuárias) tornam-se alvos diretos de atividades de “moralização”, que visam, sobretudo, a “transformação social” dessas mulheres, o que, na realidade, está previsto como norte do programa e das entidades que o executa. A pesquisa demonstra que existe uma forte relação entre a maneira com que as operadoras do programa elaboram um repertório moral, embasadas nas orientações da instituição e na maneira com elas mesmas se veem no mundo social enquanto mulheres, e as expectativas comportamentais reverberadas nas usuárias. O caráter de continuidade de valorações morais no intere da implementação é central, passada por meio da interação entre assistentes e assistidas, ela produz “rótulos” referenciados pela adesão ou “desvio” aos propósitos do programa pelas usuárias. O estudo demonstra que se trata de uma “gestão sexuada da assistência” de cunho familista, que incide Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 no sentido do engessamento das mulheres pobres assistidas à função materna como opção/atividade central. Conclui as autoras que: ... fica evidente que a definição do acesso ao programa, assim como a definição da categoria dos beneficiários – ou a sua “rotulação” -, o estabelecimento de regras a seu respeito e a sua justificação implica uma tarefa central da atividade dos trabalhadores sociais de forma geral. Constitui o coração dessa atividade ainda emergente, em via de constituição e de profissionalização, e forma a base de suas lógicas de legitimação. (GEORGES & SANTOS, 2013, p.76) O foco está posto, portanto, sobre a natureza das interações que envolvem a(o)s agentes do Estado e as construções de gênero ali assentadas como condicionantes. Neste sentido, pensar na noção de trabalho emocional (HOCHSCHILD, 1983) pode ser elucidativo para discutir as diferenças das experiências de trabalho entre os trabalhadores e trabalhadoras, e o peso do fator gênero para as diferentes funções públicas. Soares (2012, 2013) chama a atenção para a existência de uma divisão sexual das emoções, remetendo à expressão das emoções no trabalho. Seu ponto de vista é que as emoções são socialmente construídas, portanto homens e mulheres não expressam e vivem emoções no trabalho de forma equivalente. Primeiramente, isso acontece porque, no geral, estão alocados em ocupações distintas, e mais abrangentemente a situações sociais distintas, levando-se em conta uma série de expectativas sobre papéis e comportamentos de gênero na composição de suas atividades e de suas interações. O trabalho do care, efetuado majoritariamente pelas mulheres, denota tanto uma prática (profissionalizada ou não) quanto uma disposição para o cuidado do outro (HIRATA & GUIMARÃES, 2012). Atividades, empregos ou serviços que se assentam no cuidado ou no “dar atenção” (MOLINIER, 2012) condicionam e são condicionadas por um trabalho emocional típico. Estas executam tarefas que exigem um traquejo social típico, envolvendo a ternura, gentileza, delicadeza, intuição, sensibilidade, doçura (SOARES, 2013). Num jogo interacional, as trabalhadoras devem gerir suas emoções de forma a satisfazer as expectativas da relação entre elas e os usuários, a fim de sustentar uma relação que se torna complicada, dividida entre a intimidade e o profissionalismo, buscando “um equilíbrio entre o limite de suas emoções e a exequibilidade do seu trabalho” (GEORGES & SANTOS, 2014) Do “outro lado” na divisão sexual do trabalho, a busca por este equilíbrio também se mostra uma necessidade diária, o que fica explícito no discurso dos auxiliares de fiscalização. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 A experiência dos agentes da PBH está repleta de situações em se exige um outro tipo de trabalho emocional, também marcado pela necessidade do “equilíbrio”. Por outro lado, nos trabalhos masculinos, as tarefas exigem algum grau de agressividade, rudeza, dureza e frieza (SOARES, 2013), o que fica radicalizado no contexto de atividades mais subalternizadas do controle estatal, como já descrito anteriormente. Os auxiliares de fiscalização se incluem. Um forte pilar das rotinas dos auxiliares é a interação direta e constante com o seu público nos espaços urbanos – camelôs, moradores de rua, artistas de rua – num cenário de controle social ativo, de imposição de regras (BECKER, 1963). Não somente os agentes do Apoio estão suscetíveis a se defrontar fisicamente com os ambulantes, mas também os auxiliares que fazem plantão. Escutei várias vezes: “a gente nunca deve ficar de costas para a rua”. A convivência com xingamentos, ameaças e o medo de ser surpreendidos é real: É igual juiz de futebol, tem que ter um monte de manha, tem que aguentar um monte de gente mal educada na rua que te chamam de cachorro do governo, „vai pegar vagabundo em favela‟, „vai pegar droga em favela‟. A primeira coisa que eles veem é isso. [...] A gente é chamado de tudo que é nome na rua. Estou escaldado já. [Extrato de entrevista realizada com L em 06/06/2013] Uma vez que, por várias vezes ao dia, são mobilizados a fazerem abordagens aos sujeitos infratores, se sujeitam potencialmente a atritos que podem culminar em violência verbal ou física. Desde quando são testados no processo seletivo para o cargo, os agentes tem impressões sobre possíveis situações de violência no trabalho. Segundo um dos auxiliares entrevistados, L, há oito anos, quando participou do processo seletivo para o emprego, teve que realizar um teste que consistia em algumas perguntas que serviam para testar a reação do candidato a determinadas situações adversas. Segue o relato de uma das questões da prova: Olha, na prova que eu me lembro que fiz... se eu estiver de plantão com um colega meu e esse colega meu arrumar um atrito com um camelô, porque eles não gostam que a gente chega pra falar pra dar licença... aí, se gerar um confronto lá, se eu vou correr ou se eu vou ajudar o amigo. Eu falei o óbvio. Eu não vou deixar um colega meu apanhar sozinho. Ou nós vamos apanhar junto ou nós vamos bater nele junto. Aí nisso que era baseada a prova. [Extrato de entrevista realizada com L em 06/06/2013] Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 A preocupação da instituição acerca de certo “preparo” do candidato para o cargo indica a expectativa de que as relações estabelecidas no trabalho podem ser bastante violentas. No decorrer das entrevistas, surpreendeu a grande quantidade de relatos espontâneos sobre conflitos e a intensidade com que eram contados, principalmente porque ressaltavam o medo e a precisão ora do “sangue frio”, ora da reação. Seguem alguns dos relatos: Tem, tem um pouco [de risco], seria um pouco né. Trabalhar com o público tem sempre um pouco de risco né. Num é aquele risco eminente não, mas pode vir uma pedra, um... a gente não sabe, né, como é que a pessoa vai reagir. Geralmente é tranquilo. A gente não sabe como é que a pessoa saiu de casa... [Extrato de entrevista realizada com M em 02/09/2013] O que me marcou foi um tumulto que teve com a gente aqui na Carijós. Nós de um lado, camelô do outro, e o Choque no meio. Pedra comendo solto no meio da rua. [...] Aí a polícia chega, te ajuda a abordar e pega a mercadoria toda e naquilo ali, uma palavra mal falada de um que está passando já gera aquela bola de neve. Aí começa as agressões. Primeiro começa a verbal, aí já começa a física que é empurrão, soco. E aí já começa. Essa marcou para mim. [...] Esse serviço nosso aqui... quem não tá acostumado com esse tipo de serviço, não fica. [Extrato de entrevista realizada com L em 06/06/2013] Se colocar a mão na gente, o trem fica feio para o lado dele porque é muito azulzinho. Teve uma vez na Santa Rosa, por exemplo, teve um cara lá que passou com o carrinho cheio de água e pipoca e ali é um lugar que não pode mesmo! Ali toda hora o Carlão passa, o gerente. Se vê, dá galho para nós! Nós chegamos e o cara todo maloqueiro, todo malandrinho. [...] Ele falou para nós que para tirar ele tinha que ser quatro ´nego‟, precisava de „quatro de vocês‟. Aí foi e nós saímos de perto. Quando nós voltamos, trocamos ideia com ele na boa, pedimos com educação e ele falou „não vou sair daqui não. Tem que ser muito homem para me tirar daqui‟. Nós chamamos no rádio e chegou dez azulzinhos. O que ele fez? Pegou o carrinho e foi embora pedindo desculpa. [Extrato de entrevista realizada com C em 26/09/2013] Considerações finais A partir de dados etnográficos sobre a assistência e o controle social no Brasil contemporâneo, foram elaboradas reflexões acerca do trabalho do Estado, a partir de suas Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 “linhas de frente”. Tanto no caso das pesquisas sobre os auxiliares de fiscalização como sobre as Agentes Comunitárias de Saúde, o encontro face-a-face e a construção de vínculos diretos com o público, são determinantes para se pensar na socialização profissional - “a construção de si” (DUBAR, 2012). Desta forma, o gênero se torna um mote privilegiado frente a este objetivo, uma vez que ele perspectiva a maneira com que os sujeitos se compreendem, são compreendidos e se relacionam com os demais. Ao captar as moralidades (masculinas e femininas) mobilizadas em campo, é possível elucidar o estabelecimento de relações de poder e de hierarquias típicas. Pelo ponto de vista das construções de gênero inscritas na categoria “trabalho”, é possível conectar as peculiaridades dos trabalhos do Estado - seus alcances, limitações e dimensões - nos níveis locais com formas enunciativas mais amplas, como proposto, por exemplo, pela discussão sobre a “divisão sexual do trabalho”, inserida também pelas frentes de atuação estatais. Portanto, o olhar aproximado a essas realidades, atento às minúcias que integram às funções e às sociabilidades, nos leva a desvelar por quais caminhos percorrem os modos de governança, estruturados pelas relações de gênero. Dados os casos estudados, é impossível distinguir quais aspectos das relações de poder são próprios das relações de gênero e quais são advindos da administração pública. Há uma imbricação, mas não uma confusão entre as dimensões. No caso da fiscalização urbana em Belo Horizonte, o papel desempenhado pelos auxiliares - nas variadas modalidades e situações em que se envolvem - apresenta-se como uma peça fundamental para o formato proposto de controle social dos espaços públicos. Sua autoridade relativa por participar da “ordem pública”, na medida de sua condição de trabalhador homem e subalterno permite, coloca-os na condição de receber e amortecer os efeitos das tensões “da rua”. De modo análogo, o Estado mobiliza, por meio de suas operadoras nas pontas das novas políticas de assistência, moralidades e aspectos “funcionais” das atribuições socialmente construídas sobre o “trabalho feminino”, como instrumentos de gestão positivados, especialmente, por seu alcance diferenciado às esferas domésticas. Bibliografia ALMEIDA, Miguel Vale de. Gênero, masculinidade e poder: Revendo um caso do Sul de Portugal. In Anuário Antropológico 95, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1996. ARAUJO, Angela Maria Carneiro. Apresentação. Cad. Pagu [online]. 2002, n.17-18 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 ARAÚJO FILHO, Perdigão Tarcísio. Burocratas do Nível de Rua: uma análise interacionista sobre a atuação dos burocratas na linha de frente do Estado. Revista Áskesis 3 (1). São Carlos, 2014, p. 45 – 57. _____________________________. A linha de frente da fiscalização de práticas urbanas em Belo Horizonte: entre a discricionariedade e o empreendedorismo moral. In: Anais do XII CONLAB – Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Lisboa, 2015. BECKER, Howard S. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. Free Press Paperback, New York, 1963. DAS, Veena & POOLE, Deborah. Anthropology in the Margins of the State. Oxford: School of American Research Press/ James Currey: Santa Fé, 2004. DENARI, Giulianna B. 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A produção da “demanda”: viés institucional e implicações políticas da terceirização do trabalho social na periferia de São Paulo. In: CUNHA, N. V., FELTRAN, G. S. Sobre Periferias: Novos con[itos no espaço publico. Rio de Janeiro, Ed. Faperj/Lamparina, 2013. ___________________________________. Olhares cruzados: relações de cuidado, classe e gênero, Tempo Social, Vol.26, n.1, 2014, pp. 47-60 HIRATA, H.; GUIMARÃES, N.A., Introdução, in: HIRATA, H., GUIMARÃES, N. (Orgs.). Cuidado e cuidadoras. As várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 1-11. HIRATA, H., KERGOAT, D., Novas configurações da divisão sexual do trabalho, Cadernos de Pesquisa, v.37, n. 132, p. 595-609, set/dez. 2007. HUGHES, Everett C. Men and their work. Free Press, New York, 1958. _________________ The Social Drama of Work. Mid-American Review of Sociology, Volume 1, Number 1, pp. 1-7. 1976. LIMA, Jacob Carlos, COCKELL, Fernanda Flávia. 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E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 1 “UM SORRISO E O BATOM”: AS NARRATIVAS SOBRE A HISTÓRIA DA INSERÇÃO E PERMANÊNCIA DAS MULHERES NA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. Giulianna Bueno Denari (UFSCar) 1 [email protected] CAPES GT3: Conflitos Sociais, Instituições e Política A inserção da mulher na Polícia Militar do Estado de São Paulo teve como principal justificativa a necessidade de levar para a instituição uma nova imagem, que fosse mais maternal, com características de mais cuidado para com a comunidade, prevenção e assistência. O Corpo Feminino de Policiamento, criado em 1955 e com atuação exclusiva na capital, tinha como público alvo crianças, idosos e doentes que buscassem auxílio ou estivessem em situação de rua. Sendo socialmente atribuída a mulher as características do cuidado, do carinho, atenção, dever de educar e servir de exemplo aos mais jovens, as policiais deveriam então, dar assistências àqueles que estavam nas ruas, sem comida e sem abrigo, ou então, chegassem a capital sem ter onde morar ou trabalhar. A presente proposta tem como objetivo discutir e analisar a passagem da função assistencial das policiais para as funções gerais de policiamento, ou seja, quando passaram a exercer as mesmas funções que os homens, buscando entender os modelos de policiamento que existem nesse processo. O foco é na Polícia Militar do Estado de São Paulo e, para tal proposta, serão tratados dados de campo construídos durante o mestrado em andamento que consistem em entrevistas a policiais militares ainda em atividade e reformadas, e material documental obtido em pesquisa no Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo, sendo a metodologia de análise qualitativa. A proposta contribui para a compreensão da história da mulher na polícia militar e os modelos de policiamento da instituição ao longo dos anos relatados pelas interlocutoras da pesquisa. 1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos com ênfase em Sociologia. Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos. Integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar (GEVAC). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 Introdução A primeira mulher a entrar para a Polícia Militar no Brasil foi Hilda Macedo, falecida em 2005, 50 anos após a aprovação do decreto que possibilitou a construção de sua carreira como policial. A ideia da criação de tal efetivo partiu de uma palestra realizada pela mesma no 1º Congresso Brasileiro de Medicina Legal e Criminologia, na qual ela defendeu a importância da mulher para a Polícia Militar. A partir do que começou com uma ideia, foi assinado no ano de 1955, em 12 de maio, o decreto nº 24.548, pelo governador de então, Jânio Quadros, criando o Corpo Feminino de Policiamento. A primeira turma de mulheres começou com 12 aspirantes, sob o mando da então comandante, Hilda Macedo. Pela estética militar, um pelotão (composto por até 30 policiais) só pode ser comandado por um oficial e neste caso, criando-se o Corpo Feminino de Policiamento, este deveria ser comandado por uma coronel, fazendo com que Hilda Macedo ascendesse ao posto imediatamente. Em dezembro daquele mesmo ano, foi feita a comemoração pela formação das 12 mulheres, que juntamente com a precursora, ficaram conhecidas como “as 13 mais corajosas de 1955”. Na época ainda não existia a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) como conhecemos hoje: e o recém-criado policiamento feminino foi designado ao policiamento civil. A partir de então, sucederam-se mais decretos em relação a efetivação do quadro de mulheres na polícia militar, determinando funções, armamento e vestimentas adequadas. Até o ano de 2011, a instituição contou com 8 coronéis, sendo elas Hilda Macedo, Janette Ribeiro Fiúza, Denisa Della Nina, Sylvia Binelli, Dyarsi Teixeira Ferraz, Vera Maria Fávaro, Hilda Magro e Vitória Brasília de Souza Lima. No presente ano são três coronéis na ativa, ocupando diferentes funções de comando na instituição, sendo que são apenas pouco mais de 50 policiais que ocupam o posto de coronel, só ascendendo ao posto um novo coronel, quando algum entra para a reserva. No início dos anos 2000, ficou instituído em São Paulo que as funções dos efetivos masculino e feminino não seriam mais separadas, possibilitando uma maior abrangência de atuação das mulheres nas funções de policial militar. Em 2001, o então governador do estado, Geraldo Alckmin, criou o Dia do Policial Militar Feminino, a ser comemorado em maio. Essas são algumas das primeiras mudanças em relação ao efetivo feminino. Alguns anos mais Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 tarde, os quadros do efetivo policial seriam unificados, possibilitando assim, que toda e qualquer função na PMESP seja exercida legalmente por mulheres. A presente proposta tem como objetivo discutir e analisar a passagem da função assistencial das policiais para as funções gerais de policiamento, ou seja, quando passaram a exercer as mesmas funções que os homens, buscando entender os modelos de policiamento que existem nesse processo. A discussão será focada nos dados de campo construídos durante a pesquisa de mestrado, a partir de entrevistas qualitativas realizadas com policiais militares de diferentes patentes e funções, em diferentes cidades paulistas. Também serão trazidos nesta proposta os dados produzidos a partir de pesquisa no Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o qual possui vasto acerto sobre a história legal das policiais militares. Busca por inserção e permanência: narrativas de policiais A figura abaixo ilustra o fardamento das policiais e o título representa a imagem passada através do Corpo de Policiamento Feminino, de um policiamento carinhoso, atencioso e cuidadoso. O uniforme na época era composto por uma saia-calça, sapatos de pouco salto e uma bolsa de couro, que carregava uma arma de pequeno calibre. Figura 1 – Publicação comemorativa da formatura da primeira turma de mulheres policiais Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo Já na época elas realizavam policiamento a pé, de dia, próximo às estações de trem, principalmente a Estação da Luz em São Paulo, na qual chegavam migrantes de todo o país e elas os auxiliavam a conseguir moradia e trabalho. Tal uniforme permaneceu até a década de 1990, quando as mulheres passaram a usar o fardamento atual: calça e coturno, como os homens. Na época, o fardamento mostrava qual o modelo de policiamento as mulheres poderiam realizar: assistencial, como elas mesmas contam nas entrevistas. Mas, assim, ela era desconfortável, porque você imagina: você está com uma bermuda aqui, aí você faz o movimento da perna e a bermuda vem aqui assim. A bermuda sobe... Então era saia-calça. Se eu abrisse a perna assim, ía aparecer uma calça. Mas ela era desconfortável para você trabalhar no serviço operacional. Ela era bem desconfortável. Era uma coisa mais social, sabe assim? Para você ficar numa instituição, num lugar assim... entendeu?! Não para atender ocorrência, trabalhar na linha de frente. Ela não era prática. E sem contar que a gente tinha que usar meia-calça e a meia a cada serviço eram 2 ou 3 meias, porque ela desfiava tudo. (Policial feminino, oficial, reformada). Moreira (2011) faz um levantamento histórico desde a criação, em 1955, até o ano de 1964 do então Corpo de Policiamento Feminino do estado de São Paulo. Segundo a autora, as primeiras intenções da criação desse corpo de policiamento feminino partiram das sufragistas na década de 30, que lutavam não por uma igualdade na profissão, mas pela necessidade em Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 ter um efetivo feminino que lidasse com um público “frágil”, que requeria um cuidado mais “maternal”. [...] Não é que os policiais sejam maus ou incompetentes. Não, mil vezes não! É que lhes falta para êste trabalho sobremodo delicado, aquela sensibilidade própria da mulher, tornando os, portanto, falhos, por falta de capacidade especifica... É de se notar, por outro lado que a recíproca é verdadeira. (MOREIRA, 2011: 75) De acordo com os documentos analisados pela autora, os textos de criação do Corpo Feminino de Policiamento também previam essa ação maternal das mulheres policiais, que deveriam administrar conflitos que envolvessem mulheres, crianças, jovens infratores, idosos e migrantes. Destaca também a normatividade em relação às ações dos policiais para com as mulheres que ingressavam na profissão: a obrigatoriedade de um respeito extremo para com as mulheres, oficiais ou não. Não deveriam ser olhadas por muito tempo, deveriam permanecer afastadas dos efetivos masculinos e apenas amparadas em caso de necessidade em suas abordagens. Exigia-se um cuidado com a figura feminina que extrapolava a estética militar. Tais características permaneceram por muitos anos na instituição, como relata uma das entrevistadas: No começo tinha muito disso. Quando eu ingressei, por uns anos, eles nos viam muito como... eles eram nossos protetores, tá? Nós éramos um grupo até pequeno na época, então ai se eu tivesse fazendo policiamento, ai se alguém mexesse com uma policial feminina. Eles ficavam...era como se tivesse mexendo com uma filha, com a mulher deles. Eles sempre nos viram muito como protetores, mas mudou, mudou... hoje já não tem mais isso. (Policial feminino, oficial, reformada). A visão do assistencialismo estatal incorporado nessas mulheres é bem representado pela então deputada Bertha Luz: [...] exercer, em cooperação com a justiça e a Polícia Civil, a vigilância social e preventiva em beneficio da infância e da mocidade desamparadas e ameaçadas pelo abandono e exploração moral, intelectual ou física; receber, acompanhar, recolher e vigiar mulheres delinquentes e criminosas. (MOREIRA, 2011: 45). Colocar essas mulheres sob olhar e vigilância de todos, assim como aponta Soares e Musumeci (2005), para mudar a visão de até então da polícia: repressora. Há no Museu da PMESP acervo com diversas fotografias, imagens e reportagens representando a mulher Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 policial como uma extensão familiar da mãe protetora: sempre as representavam segurando crianças pequenas, ajudando pessoas idosas ou sendo admiradas na rua. Como exemplificam as figuras a seguir. Figura 2 – Imagem de reportagem exaltando o cuidado das policiais para com a população Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo Figura 3 – Imagem retirada de jornal de uma policial amamentando uma criança encontrada nas ruas Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo Com o aumento de interioranos migrando para a capital, a autora aponta que a policial era vista como vigilante dessas novas figuras na cidade, que causavam medo e insegurança. “O pressuposto de um feminino como sinônimo de moralidade, bondade, compreensão e sensibilidade garantia a salvaguarda de mulheres e crianças nas mãos de policiais mulheres.” (idem: 58/9). A postura da policial feminina deveria seguir padrões determinados, para garantir sua moralidade e integridade. Não era qualquer mulher que deveria fazer parte do policiamento: como aponta Moreira, em uma discussão entre Esther Ferraz e um deputado: [...] já incide em erro o Sr. Costa Rêgo, quando coloca na Polícia Feminina a Angélica – pequena boneca de porcelana, quebradiça, fútil e inexperiente como uma “debutante” que aguarda seu primeiro baile, e cujo programa diário se esgota com as visitas à modista, à massagista, à manicura, ao cabeleireiro, sonhando com a eventualidade de ser eleita “glamour girl”, garota 53”, ou “miss planalto”. Pois a Polícia Feminina não é mesmo para a Angélica, para nenhuma Angélica do mundo, que o papel da Angélica é o de brilhar nos salões, nas praias e nas piscinas, atraindo olhares para seu encanto e graça, exigindo proteção para sua fragilidade. A Polícia Feminina requer mulheres adultas, independentes, experientes – como tantas que conheço – que tem olhos abertos para tôdas as realidades da vida, sabem como enfrentar essas realidades e possuem aquelas qualidades de inteligência, de caráter e de coração indispensáveis a quem pretende esquecer-se de si para servir ao próximo e ser útil a coletividade. (idem: 79/80) Subordinado inicialmente a Guarda Civil, o Corpo Feminino de Policiamento tinha suas características administrativas, de proteção e previdência muito bem marcadas como funções necessárias das policiais. Ao contrário do que era então a Força Pública, que ficara então responsável pelo patrulhamento ostensivo das cidades. Uma das justificativas da inserção feminina na Guarda Civil era tirar da responsabilidade dos homens as ações “menos nobres” de administração, permitindo que a ação destes ficasse cada vez mais restrita as “atividades fim”. A figura feminina tinha então, o intuído de dar uma fachada civilizatória à polícia da época. Por ser símbolo de ordem e moralidade, as mulheres representavam as ações civilizadas de atuação com a população, ou seja, menos violentas, mais comedidas e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 controladas, não só pelos superiores, mas por elas mesmas e por toda a população. Devido a isso, quando uma mulher praticava um ato violento contra qualquer cidadão, tal ato causava extremo estranhamento e repulsa por parte da população. Como relata Moreira (2011), em um determinado momento, logo após a criação do Corpo Feminino de Policiamento, uma policial foi flagrada pela população agredindo uma moradora de rua. Tal fato causou comoção, uma vez que uma mulher não deveria agredir outra. Houve uma quebra da imagem frágil e maternal que a policial deveria exercer no cuidado com a população também frágil e indefesa. Essa restrição do trabalho dos policiais femininos (apesar de mulheres, são chamadas comumente por elas e seus pares de “policial feminino”) ou Fox2 é relatada tanto na principal pesquisa realizada sobre a inserção da mulher na PMESP, quanto nas falas das policiais entrevistadas nesta pesquisa. Mesmo havendo uma distância de mais de 40 anos desde a primeira mulher policial da instituição, as soldados entrevistadas ainda relatam tais restrições, na atuação, no fardamento e os preconceitos da época, o que mostra que a história dessas mulheres ainda é referência, de alguma forma, ainda hoje. Uma das entrevistadas relata que se não houvesse oportunidade de tratar sobre a história das mulheres na polícia, quando chegassem aos Batalhões de Policiamento Femininos, as comandantes faziam questão de relatar e manter presente a história das policiais até então. Esse contexto histórico é trazido nos discursos principalmente para diferenciar o que seria o contexto dessas mulheres hoje: livre concorrência nos concursos e livre concorrência para ascensão na carreira. Porém, foi apenas no ano de 2013 que foi realizado o primeiro concurso em igual concorrência entre homens e mulheres para o ingresso na carreira: até então, existia uma cota máxima de mulheres que poderia ingressar a cada novo concurso realizado. Isso se devia ao fato dos quadros do efetivo policial serem separados, ou seja, existia um quadro do efetivo masculino, com cerca de 90% das vagas e outro quadro do efetivo feminino, com cerca de 10% das vagas. Algumas coisas pra gente eram limitadas, hoje não é mais. Porque a própria constituição estadual limitava. Um exemplo, o maior exemplo: é, a constituição do estado diz que pra ser comandante geral o coronel tem que 2 Outra nominação dada às policiais, cuja justificativa ainda é diversa. Entrevistas exploratórias realizadas com policiais na cidade de São Paulo indicam que o termo não é estranho às policiais, porém, não sabem ao certo o porquê são assim chamadas. Ao perguntar se há alguma relação com a tradução direta do inglês para “raposa”, foi negado imediatamente. Em outras entrevistas a justificativa para o termo foi o código internacional também usado pela PMESP, o “Código Q”, no qual a letra F é traduzida como Fox. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 ser QOPM: quadro de oficial policiais militares. As mulheres eram quadro de oficiais policiais femininas militares, então até não modificar tudo isso, eu não podia, por lei, ser comandante geral. Hoje pode. (Policial feminino, oficial, reformada). A justificativa para tal era que a inteligência da PMESP realizou estudos que justificavam o número expressivamente menor de mulheres na instituição, mas a entrevistada em questão, não sabia dizer quais estudos e baseados em quais elementos. Mas ela própria tem uma justificativa: a necessidade de força física para atuação policial restringe em muito a presença da mulher na PM. O feminino, ela vai ter atuação um pouco mais específica do que o masculino. Porque o masculino, não pode dar geral em mulher...entendeu? Então cada equipe tem que ter um feminino. Mas não seria coerente, por exemplo, ter uma equipe inteira só de mulher. Até por conta da necessidade da força física e tudo mais que é necessário e que a mulher não tem a mesma capacidade física que o homem.(Policial feminino, praça, aposentada). A valorização da força como a principal característica de um policial militar, ou ao menos, saber usar de sua força física, para proteger a população e a si mesmo, mostra qual a importância do biológico, do físico para diferenciar e demarcar a separação das atuações na instituição. “(...) a mulher, como o homem, é seu corpo, mas seu corpo não é ela, é outra coisa.” (BEAUVOIR, 1970:49). Ou seja, estar sujeito a seu corpo não é um problema: todos estão presos, no limite à sua própria biologia. Mas à mulher, cabem funções que a tiram de seu próprio corpo, que a levam a obrigações sociais que extrapolam sua individualidade e seu próprio organismo. Para além das mudanças latentes quando da unificação das funções como, por exemplo, a inserção das mulheres nos mesmos locais de trabalho que os homens, a necessidade de adequar batalhões e prédios para que elas pudessem ali trabalhar. Os policiais até agora entrevistados entendem que a instituição como um todo está passando por mudanças e isso afeta diretamente o trabalho dos policiais, principalmente aqueles que exercem funções de policiamento ostensivo, ou “de rua”. No discurso sobre o policiamento atual, há uma junção nas funções até então existentes, fazendo com que seja “trabalho de polícia” as funções ostensivas e as de “cuidado”. Homens e mulheres policiais foram alocados discursivamente na categoria “policiais militares”, talvez como uma tentativa de minimizar as diferenças no trabalho policial até então existentes. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 As mudanças apontadas estão voltadas ao trato com a população, expondo sempre que a atuação comunitária tem sido prioridade de atuação policial. O trabalho feminino estaria em destaque nesse cenário por ter uma história de assistencialismo e policiamento comunitário, porém, não há indícios de que mais mulheres ocupem as funções comunitárias da polícia. Tais mudanças são mais apontadas pelos homens entrevistados que as mulheres. Figura 4 – Capa da revista Segurança Policial na edição em homenagem às policiais Fonte: Página na rede social da revista Segurança Policia3. Porém, é constante que as/os entrevistados destaquem a importância do trabalho repressivo a partir da força física da PM. Sendo esse trabalho importante, não seria possível que as mulheres ocupem todas as funções ou se tornem a maioria do efetivo, pois isso inviabilizaria a atuação policial. Apesar disso, as imagens que circulam em grandes redes sociais, jornais e revistas, exaltam hoje a imagem de uma policial “guerreira”, portando armas, algo bem diferente do que existia até a década de 1990, como a imagem acima. Porém, não há um abandono completo de elementos socialmente considerados femininos na 3 Acesso em 31/maio/2015 < https://www.facebook.com/pages/Revista-Seguran%C3%A7aPolicial/1403305303220033?sk=photos_stream>. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 representação das policiais: a maquiagem (destaque ao batom), as crianças, o cuidado, são algumas das características ainda representadas na imagem da mulher policial, como mostra a figura a seguir. Figura 5 – Imagem de exaltação das mulheres policiais em uma página na rede social voltada a homenageá-las Fonte: Página Mulheres de Farda em rede social 4. Todas as mudanças que ocorreram que envolvessem as mulheres policiais são tratadas pelos policiais entrevistados como uma “evolução social”, pois a PMESP acompanharia tais mudanças, seria algo “natural” ao curso social. Como se chamam de “legalistas”, tudo que está presente e determinado por lei, tratado por eles como algo a ser cumprido e seguido. A maioria dos policiais, homens e mulheres, apontam uma não atuação feminina visando mudanças, mas uma determinação que ocorre a partir do Comando Geral da PMESP e esta que acompanharia as mudanças sociais para determinar a atuação da polícia como um todo. Porém não é uma fala unanime. Algumas entrevistas indicam que houve movimentos, mesmo que isolados, para acelerar as mudanças em relação ao gênero na PMESMP. Em uma das falas das entrevistadas, por exemplo, a oficial descreve o momento de sua formatura há alguns anos. Ela tinha o sonho de ser parte da cavalaria da PM, grupo com funções consideradas de elite e masculinas, e nenhuma mulher havia feito o curso até então. Ela conta que precisou se esforçar e mostrar sempre suas capacidades em acompanhar o restante da 4 Acesso em 31/maio/2015 < https://www.facebook.com/fardadas/photos/pb.162099723879825.2207520000.1433098985./775143005908824/?type=3&theater> . Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 turma, toda composta por homens. Ao final do curso, ficou em primeiro lugar, o que lhe daria direito a ganhar o sabre da cavalaria, símbolo de honra do grupo. E como primeira colocada, faria jus receber o sabre das mãos do governador. Só que por conta do quadro, que até então, existia um quadro feminino. Um quadro gerado por questão de gênero, que é uma coisa meio absurda, até constitucionalmente. Mas enfim, era um quadro feminino....apesar de toda formação foi igual, todo treinamento foi igual, a gente foi submetida às mesmas coisas que os rapazes. (...) Eu acabei por não recebendo o sabre de primeira colocada de cavalaria, então o segundo colocado foi lá e recebeu. E eu lembro que eu chorei de raiva na minha formatura, pelo fato assim de entender que eu me fazia merecedora e não tive o reconhecimento na época, por quê? Porque era mulher. Isso me causou, assim, uma frustração, mas ao mesmo tempo me deu mais vontade ainda de falar assim: nós somos capazes, a gente tem como fazer uma carreira bonita, então, me tornou mais determinada ainda, em vez de desanimar eu fiquei mais...querendo fazer as coisas. (Policial feminino, oficial, administrativo). A determinação da mudança das funções, bem como a unificação dos quadros do efetivo é legal e algumas falas das entrevistadas indicam que houve movimentos isolados para que a mudança acontecesse antes mesmo dos anos 1990, mas sem mais explicações, elas dizem não ter sido possível fazer a unificação dos quadros e funções. A partir das mudanças, legalmente as mulheres podem exercer e ocupar os mesmos cargos que os homens ocupam e exercem na PMESP. Devido à estética militar, muitas oficiais acabaram por “comer balão”, como eles chamam, ou seja, subiram de patente antes que seus colegas homens de turma. Isso se deu quando da unificação dos quadros, permitindo que mulheres mais novas de instituição chegassem a postos mais altos pela necessidade de ocupar os cargos. De acordo com os relatos dos entrevistados, em quase sua totalidade, esse é o principal motivo de ainda haver determinados setores que mal vejam a presença feminina na polícia e seria uma questão de tempo, até que as turmas se igualassem nas hierarquias, para que não houvesse quaisquer outros problemas em ter mulheres em todas as funções policiais. Considerações finais A passagem das formas de policiamento das policiais na PMESP se deu de forma gradual e contínua ao longo dos recém-completados 60 anos da primeira turma de mulheres na instituição. Essas mudanças refletem também as formas de policiamento que a própria instituição adotou ao longo dos anos. As principais justificativas seguem a linha de atender Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 aos pedidos da sociedade e uma tentativa de aproximação da PMESP e sociedade. Mas também não significam que ao mudar, abandonaram por completo antigos padrões. Os discursos hoje não giram mais em torno do gênero dos policiais: a necessidade de uma aproximação com a população seria uma obrigação de todo e cada policial, destacando assim, uma tentativa de mudança institucional geral. Mas o movimento da atuação feminina não deixa de existir apesar disso: contratadas inicialmente com funções assistenciais, muitas mulheres tiveram que se adaptar às novas funções ainda no exercício da carreira, em posição de comando. Ou seja, muitas policiais, que entraram sob a estética de cuidado e assistencialismo tiveram que adotar a lógica do policiamento ostensivo a partir de meados dos anos 19805. O que, segundo alguns relatos, causou conflitos entre as policiais: as mais antigas entendiam que as funções das mulheres deveriam ser as mesmas, sendo as armas das mulheres “um sorriso e o batom”, ou seja, que elas não deveriam nem usar armas de fogo. As policiais que entraram a partir da década de 1980, já ingressavam com outros interesses e vidões do que deveria ser o policiamento: mesmas funções que os homens já exerciam e vontade do “combate ao crime”. A atuação feminina na PMESP hoje se encontra em todos os ramos existentes do policiamento ostensivo e nas divisões administrativas. As mudanças nos padrões de policiamento feminino refletem em alguns pontos sobre a própria atuação da polícia como um todo. A questão neste trabalho não é avaliar se as mudanças são ou não efetivas, mas mostrar as diferentes formas de discurso sobre esse policiamento. As diferentes representações das imagens das policiais ao longo dos anos de sua permanência na PMESP retratam como os discursos sobre o policiamento militar no estado de São Paulo também mudam de alguma forma. Mostram, de forma inicial também, as estratégias que as policiais mobilizaram para permanecerem na profissão. Referências 5 Apesar de legalmente só serem autorizadas a realizar funções assistencialistas, a partir de meados da década de 1970, algumas atuações pontuais passaram a ser realizadas pelas policiais, como o policiamento do trânsito e segurança em estádios. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. 54 anos da Polícia Feminina do Estado de São Paulo. Disponível em <http://al-sp.jusbrasil.com.br/noticias/1056813/54-anos-dapolicia-feminina-do-estado-de-sao-paulo> Acesso em 30 set.13. BATITUCCI, E. C. A emergência do profissionalismo na Polícia Militar de Minas Gerais (1969 – 2009). 2010. 179 f. Tese (Doutorado em Sociologia). Departamento de Antropologia e Sociologia, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. 310 p. BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e significados da diferença entre juízes e juízas estaduais e federais. 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Esta reflexão é concretizada pelo estudo da economia solidária e a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) dentro do Ministério do Trabalho. O objetivo central é analisar o encontro de duas lógicas políticas diferentes – uma perspectiva autogestionária que ampara a administração da SENAES; e uma perspectiva hierarquizada e de gestão democrática baseada no princípio da autoridade política representada pelo Estado. Os dilemas do processo democrático-participativo são um dos temas a serem refletidos pela teoria democrática contemporânea. Neste contexto político, algumas iniciativas alcançam participação direta na governança pública a partir do momento em que são institucionalizadas, de forma que, se por um lado configuram-se como um avanço na democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2009), por outro, abrem um novo campo de disputas dentro da máquina estatal, pois são novos atores em ação, com novas perspectivas de participação e representação política, sobretudo quando no próprio nome da iniciativa institucionalizada está inscrita a palavra ‘solidária’. A partir do pressuposto de que a SENAES representa a materialização de possibilidades de vivências democráticas dentro do Estado, propomos reflexões sobre as perspectivas atuais da governança participativa e a prática no campo da democracia vislumbrada pela institucionalização da SENAES. Palavras-chave: Economia solidária; Democracia; Democracia participativa; Secretaria Nacional de Economia Solidária 1. Introdução Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 Em um regime democrático, ‘o estar em transformação’ é seu estado natural. A democracia, em sua definição formal, é concebida como uma forma de governo baseada em um conjunto de regras que pautam a formação das decisões coletivas, em que a participação dos interessados está prevista pelo Estado. Entretanto, o período atual merece ser analisado através de teorias que conceituem a democracia como uma forma de sociabilidade e não somente como uma forma de governar. Desta forma, a democracia atual refere-se ao próprio princípio da política. Segundo SANTOS (2005), as últimas décadas foram anos de intensa experimentação social, com a afirmação política de novos sujeitos bem representada pelos movimentos sociais, sobretudo nos países da América Latina a partir da década de 1980. Estes movimentos foram e continuam sendo formulações de alternativas em maior ou menor intensidade de oposição ao modelo de desenvolvimento econômico e social do capitalismo e os impactos sociaisvalem ser analisados, visto que as transformações que ocorreram ao longo da história são decorrentes das diferentes formas de participação vivenciadas pelas sociedades e por seus Estados. Ao longo da história brasileira, o sufrágio foi um dos maiores argumentos para o Estado reiterar que a democracia está presente no cenário político, porém, todas as outras dimensões da prática social perderam força política e, com isso, foram mantidas longe do exercício da cidadania, configurando, desse modo,a oposição marcada entre Estado e sociedade civil e a predominância da democracia representativa no cenário político. Porém, a história também se constrói a partir da busca pornovos espaços para o exercício de novas formas de democracia. Uma das possíveis vivências da democracia participativa se dá através da ampliação dos canais institucionais de participação e acolhimento de demandas advindas da sociedade, de forma a proporcionar um melhor desempenho de governo.(ROMÃO, 2014). No Brasil, a prática dademocracia – denominada como nova por ter uma participação mais efetiva nas instâncias de tomadas de decisão e poder - é vivenciada por inúmeras iniciativas, dentre as quais destaca-sea economia solidária. Neste contexto, a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no Ministério do Trabalho em 2003, abre caminho para uma maior presença social, legitimidade política e ampliação da democracia participativa. A partir do marco jurídico da SENAES, a Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 economia solidária torna-se institucionalizada e cria um espaço governamental para ampliar a capacidade de democratizar as decisões em políticas públicas. A formação deste novo campo político traz uma nova agenda para o processo democrático, pois a SENAES é uma criação que parte de um movimento social, ou seja, da sociedade civil e ocupa um lugar dentro do Estado, de forma que esta institucionalização nos leva às seguintes reflexões: como uma secretaria construída a partir de valores de autogestão e democracia participativa dialoga com os mecanismos de controle democrático que pemeiam o Estado? Quais são os principais dilemas e êxitos de uma secretaria concebida a partir dos valores da economia solidária que vislumbra a emancipação1no diálogo com o governo federal? 2. Definição do problema e objeto Este trabalho está inserido dentro do projeto de doutorado ainda em construção e busca retratar alguns dos dilemas do processo democrático-participativo que pode ser refletido pela teoria democrática contemporânea. Tendo isto como uma informação importante, visto que ainda não há resultados a serem analisados, a pretensão é discutir o contexto político de algumas iniciativas que alcançam participação direta na governança pública a partir do momento em que são institucionalizadas, de forma que, se por um lado configuram-se comoum avanço na democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2009), por outro, abrem um novo campo de disputas dentro da máquina estatal, pois são novos atores em ação, com novas perspectivas de participação e representação política, sobretudo quando no próprio nome da iniciativa institucionalizada está inscrita a palavra ‘solidária’. O movimento democrático é assim um duplo movimento de transgressões dos limites, um movimento para estender a igualdade do homem público a outros domínios da vida comum e, em particular, a todos que são governados pela ilimitação capitalista da riqueza, um movimento também para reafirmar o pertencimento dessa esfera pública incessantemente privatizada a todos e qualquer um. (RANCIÈRE, 2014, p. 75). 1 O sentido de emancipação aqui adotado parte do conceito de SANTOS (2009, p. 107), e é definida como “formas de emancipação que são construídas a partir da vivência de sociabilidades alternativas em cada um dos espaços estruturais. A emancipação (também definida pelo autor como novo senso comum solidário) deve ser conquistada a partir de três dimensões: a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o prazer (dimensão estética) e é contrária à qualquer regulação rígida. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 Nestes movimentos de transgressões de limites, a ampliação da vivência participativa contempla as ambiguidades contidas em todo processo de transformação social. Nas palavras de SANTOS (2009, p. 175): Embora todas estas transformações tenham contribuído para fragilizar ainda mais as condições para o exercício da solidariedade horizontal a que o princípio da comunidade faz apelo, deve salientar-se que, nas últimas décadas, este princípio foi de certo modo reativado, não através de uma forma derivada e centrada no Estado, como no segundo período, mas de uma nova forma aparentemente mais autônoma. Trata-se de um processo bastante ambíguo que abrange um vasto espectro de cenários ideológicos. O movimento da democracia pretende, dessa forma, dissolver os marcos de referência da certeza - representados pela ordem tradicional -e apontar cada vez mais para uma democracia com outros padrões de representação e espaços de discussão, impulsionados pelo intuito de transformação social (RANCIÈRE, 2014). Na onda das potências de transformação a economia solidária se insere, visto que o Brasil atualmente possui mais de 21 mil grupos produtivos e envolve pelo menos 1,8 milhão de trabalhadores2. A partir da década de 1990, tais iniciativas começaram a passar por um processo de consolidação que não ficou restrito às práticas cotidianas e demonstraram a necessidade de uma maior articulação entre os empreendimentos, concretizado por meio de conferências municipais, estaduais e nacionais configurando um relacionamento mais amplo com as esferas estatais. Neste contexto, aSENAES nasce diante da perspectiva de uma necessária integração entre Estado e atores da sociedade civil, criando um processo que se sustenta mediante a busca por uma maior efetividade da execução das políticas públicas de economia solidária. O cenário da transição democráticaestá concretizado e, isto posto, vale investigar a qualidade da relação estabelecida entre os atores. Tal análise não deve ficar restrita aos espaços institucionais, pois a democracia habita justamente a intersecção entre um conjunto de práticas cotidianas de relacionamento entre sociedade civil, Estado e demais instituições políticas, sendo que constitui-se (a democracia) como“nem uma sociedade a governar nem um governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve, em última análise, descobrir-se fundamentado(RANCIÈRE,2014,p. 65). 2 Estes dados são do Atlas da Economia Solidária de 2007, o dado oficial mais recente. Considera-se que estes números tenham ampliado, seguindo a linha crescente: em 1980 havia 468 empreendimentossolidários;de 1980 até 1990 surgiram mais 1.903 novos empreendimentos, e de 1991 a 2000 mais 8.554. No período compreendido entre 2001 e 2007, outros 10.653 EES foram criados. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 A partir disso, começa a se configurar os pressupostos e os objetivos: analisar os avanços e impedimentos da vivência concreta da democracia participativa que ocorrem à SENAES.Partimos da hipótese de que a institucionalização da SENAESé uma efetiva participação democrática em nível federal, entretanto, somente a institucionalização é a garantia de uma ampliação do processo democrático, fatores que valem ser analisados. 3. Objetivo O principal objetivo é investigar a interface entre o movimento da economia solidária, representada na institucionalização da Secretaria Nacional de Economia Solidária e a gestão pública federal, diante do encontro de duas perspectivas: uma perspectiva autogestionária e participativa, por um lado; e uma perspectiva de gestão democrática, baseada no princípio da autoridade política, característica predominante do Estado brasileiro. Pretende-se também discutir como a SENAES vem buscando construir uma agenda baseada em alternativas em relação à simples forma da constituição e do Estado, envolvendo também processos de autonomia, conquista e consolidação de discussões e implementação de ações em diferentes dimensões da sociedade civil. Para tanto, a realização deste objetivo se apoia em duas perspectivas gerais: a discussão da ampliação do processo democrático no país a partir da expansão das instâncias e mecanismos de participação institucional; e os avanços e limites que esta institucionalização representada aqui pela economia solidária, vivenciam concretamente na execução de suas políticas públicas. 4. Forma de abordagem e Metodologia SANTOS (2002) alerta para a construção de um ‘modelo de produção e sociabilidade’, no qual despontam formas inovadoras de produção mais justas,solidárias, democráticas e capazes de criar novos padrões de convivência humana, sendo que as políticas públicas de economia solidária vislumbram tais padrões. Dentro deste cenário de experimentação de formas emergentes de sociabilidade, gestão e participação, a criação da SENAES em 2003 torna-se protagonista de uma travessia entre a democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2007) para uma democracia mais plural e participativa. Para apontar os eventuais problemas que podem ocorrer na participação democrática junto ao Estado, BURGOS (2007), enfatiza que os atores, ao defender projetos na esfera Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 pública a partir da perspectiva de uma ação coletiva mais ampliada, disputam espaços de poder. Diante disso, a participação nos processos de criação e gestão de políticas traz um novo terreno que exige diferentes estratégias e outro nível de complexidade, de forma que sejam evitadas possíveis situações onde as atividades da SENAES transformem-se em meras políticas compensatórias absorvidas pela regulação estatal. É a demodiversidade (SANTOS, 2007), caracterizada por uma relação mais estreita entre democracia representativa e participativa que constrói espaços institucionais efetivos. Entretanto, vale ressaltar que o Estado ainda ocupa uma posição central, porém os espaços de participação são protagonistas de uma nova configuraçãopolítica da relação Estado e sociedade. No caso da economia solidária, esta participação se dá na representação política da SENAES mediante a complexificação que a própria abertura democrática trás em si, visto que há maiores demandas que começam a aparecer, assim como novos atores e dinâmicas. 5. Conclusão e análise dos resultados Como esta pesquisa configura-se em um projeto de doutorado em andamento, os apontamentos estão ligados sobretudoà escolha das referências bibliográficas que contextualizam a discussão no âmbito do movimento da democracia,entendida como uma forma de sociabilidade e, dentro desta perspectiva, as vivências concretas da democracia participativa com seus atores e dinâmicasda economia solidária. Desta forma, os estudos se debruçam em: a) cenário de transição atual no Brasil caracterizado pela ampliação da democracia participativa, buscando monitorar os avanços e retrocessos; b) institucionalização da SENAES como um dos resultados desta participação democrática e as limitações e possibilidades que estão ligadas à configuração e dinâmica do embate entre controle democrático por parte do Estado, que buscou, ao longo da história do Brasil, gerenciar e controlar as instâncias de participação e a ampliação da participação da SENAES no sentido de minimizar as distâncias entre representação e participação. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 6. Bibliografia BRASIL. Secretaria Nacional da Economia Solidária. http://portal.mte.gov.br/ecosolidaria/atribuicoes-da-secretaria-nacional-de-economiasolidaria.htm. BOBBIO, Norberto. 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Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 ________, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2005. ________, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007. SILVA, Marcelo Kunrath. Dos objetos às relações: esboço de uma proposta teóricometodológica para a análise dos processos de participação social no Brasil in Dagnino, Evelina; Tatagiba, Luciana (Orgs). Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007. SINGER, Paul. SOUZA, André Ricardo. A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. ________, Paul. A economia solidária no governo federal. IPEA, Mercado de trabalho, n 24, 2004. ________, Paul. 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A família é considerada base da sociedade, núcleo comunitário mais básico a partir do qual os indivíduos se relacionam com as demais esferas da sociedade. Por isso, é a família o principal alvo das políticas assistenciais. No entanto, a política assistencial para a população em situação de rua define este público pela fragilidade ou ausência dos vínculos familiares, extrema pobreza e uso do espaço público para moradia ou sobrevivência. Pesquisas estatísticas realizadas por órgãos públicos demonstram que esta é uma população majoritariamente masculina, que tem como principais causas para a vida na rua a ruptura com a família, uso de álcool e drogas e o desemprego. Diante disso, a reconstituição dos laços familiares aparece como um dos principais objetivos da política social para a população em situação de rua. No entanto, ao pressupor a família como núcleo da sociedade desconsideramse as várias relações possíveis de serem constituídas na vida da rua. Este trabalho visa, então, trazer elementos empíricos a fim de refletir acerca de algumas noções de família identificadas na vida da rua. A pesquisa foi realizada a partir do acompanhamento de dois moradores de rua membros de dois distintos grupos de rua na cidade de São Carlos-SP. Palavras-chave: Política Assistencial, população em situação de rua, família. 1. Introdução Neste texto, pretendo trazer subsídios para uma discussão acerca da diversidade de significados da família entre moradores de rua. O interesse em dedicar esta reflexão às noções família surgiu como parte da pesquisa de doutorado que tem como objetivo a compreensão da política assistencial pública destinada a essa população. Inevitavelmente a pesquisa empírica traz elementos que permitem pensar e contrapor a diversidade de situações vivenciadas na rua às categorias fixas dadas pela política pública. * Doutoranda em Sociologia pela UFSCar, realiza pesquisa a respeito da política assistencial para população em situação de rua e usuários de drogas. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 A Constituição Federal afirma ser a família a base da sociedade brasileira 1 e a entende como núcleo da reprodução social que deve ser protegido pelo Estado. Sendo assim, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) na sua lógica interna apresenta um conjunto de conceitos a partir dos quais todos os serviços e programas assistenciais são elaborados: a família2 e o território3 das políticas públicas. Para este paper irei me atentar no conceito de família embora o território também seja um aspecto a ser pensado em relação a moradores de rua uma vez que eles são encontrados em locais específicos da cidade e ali constroem relações relativamente fixas. A «População em situação de rua» como público-alvo das políticas de assistência é definida como uma população heterogênea, extremamente pobre, tendo vínculos familiares interrompidos ou fragilizados; inexistência de habitação regular, e que usa dos espaços públicos como moradia e sustento, assim como, as unidades de acolhimento como moradia provisória (Decreto n. 5073, 2009). Como se percebe, a falta da família é parte da própria definição dessa categoria que define este público-alvo da política pública de assistência social. Quando se toma os dados de qualquer pesquisa sobre população em situação de rua, tem-se que um dos principais motivos “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” (Constituição Federal de 1988). 2 O conceito presente na Política de Assistência Social é a matricialidade sociofamiliar. Ele significa que a família é considerada base da sociedade, núcleo comunitário mais básico a partir do qual os indivíduos se relacionam com as demais esferas da sociedade. Por isso, é a família o principal alvo das políticas assistenciais. E a partir desse conceito vários serviços assistenciais e programas são direcionados às populações pobres direcionadas a famílias ou a alguns de seus integrantes. Por exemplo, crianças e adolescentes (por exemplo, o Programa de Erradicação do Trabalho infantil e o Projovem), mulheres (serviço de proteção a mulheres vítimas de violência e o benefício do Bolsa Família), idosos (Benefício de Prestação Continuada). Entre os serviços a famílias, por exemplo, há o de Proteção de Atendimento à Família e ao Indivíduo (PAEFI) e o de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Já como benefício, o mais conhecido é Programa governamental de transferência de renda do país, o Bolsa Família. 3 Segundo os princípios desta política pública, o recorte territorial é uma forma de atingir o beneficiário considerando que ele está inserido em contexto social e comunitário localizado espacialmente. A identificação de uma família em um território se dá por meio da residência, um endereço fixo. Porém, a própria definição de população em situação de rua indica para a inexistência de uma residência fixa. Além disso, uma das características de uma parcela da população de rua é a itinerância, sem sequer ter uma cidade fixa para estar. 1 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 para a ida para a vida nas ruas é o rompimento com os laços familiares4. A Política assistencial se coloca então com o objetivo de preservar e reconstituir laços familiares e redes de apoio, garantir que a família faça um papel de proteção de seus membros e não de agressão. Especialmente quando se pensa a questão da população de rua, reatar vínculos familiares se torna quase sinônimo de sair da situação de rua, pois a família envolve moradia e sustento de seus membros. Mas a família do morador de rua é pouco compreendida, seja pelo Estado, seja pela própria literatura acadêmica onde ela também tende a ser vista em suas rupturas e ausências. Desde a década de 1970 moradores de rua são estudados na sociologia e a principal pergunta de pesquisa embutida nos trabalhos até início dos anos 2000 é: como se chega a viver na rua? Inicialmente, os estudos procuram compreender a mendicância dos adultos (Stoffels, 1977) e a delinquência das crianças de rua (Ferreira, 1979). Nas décadas de 1980 e 1990, busca-se compreender o processo que leva as pessoas a irem viver na rua a partir da perda do trabalho, da migração e das rupturas familiares (Neves, 1983, Escorel, 1999, Rosa,1999, Bursztyn, 2000 e Vieira, 2004). Este processo de ida às ruas é apreendido nas pesquisas principalmente por histórias de vida. No que se refere às relações familiares, ressalto o trabalho de Rosa (1999) que leva em 4 Segundo a Pesquisa Nacional da População em situação de rua, divulgada em 2009, 82% dessa a população é constituída por homens, sendo que entre as causas para viverem na rua, para 29% deles, estão as desavenças familiares, também o alcoolismo e drogas (35,5%) e desemprego (29,1%). Dos entrevistados pela pesquisa nacional 51,9% tem parentes na cidade onde vivem porém 38, 9% deles não mantém contato com estes familiares, 14,5% mantém contato em períodos espaçados entre meses e outros 34, 3% mantém contatos mais frequentes, diários ou semanais. No censo feito na cidade de São Paulo (11.821.876 habitantes), que foi realizado segundo outra metodologia, há outras informações sobre a relação com família. Os desentendimentos familiares aparecem como a causa mais frequente para a ida para as ruas (42% dos casos) e o desemprego é a segunda principal causa (16%). Sobre as causas dos desentendimentos familiares, tem-se que 40,4% responderam que são as brigas o motivo, outros 26,3% disseram ser o consumo de álcool, 23,2% o consumo de drogas e 6,7% alegaram o desemprego. Em 2008, em São Carlos, foi feita uma pesquisa pela Prefeitura a fim de produzir dados que subsidiassem a implementação de uma instituição de atendimento a esse público. Esta pesquisa contabilizou um total de 95 pessoas em situação de rua na cidade. Dentre estes, 88% eram homens, 49% natural da cidade, outros 24% vindos de outras cidades do estado, 73% tinha familiares na cidade, 48% eram solteiros e 40% divorciados. Em 2010, foi feita uma nova pesquisa com 40 pessoas a fim de produzir uma melhor caracterização deste público. Dos entrevistados, 60% se disseram solteiros e 25% separados, 75% tinha algum familiar na cidade mas 67% disseram não ter contato com eles. Aqueles que disseram ter familiares na cidade 43% se referiram a mãe/pai, 57% tem filhos na cidade, 63% também citaram outros parentes que não cônjuge. Dentre os motivos alegados para ida às ruas, 45% alegaram os conflitos familiares e 25% o alcoolismo, 17,5% a drogadição e 17,5 alegaram o desemprego. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 conta o processo de rupturas familiares a partir da migração do homem em busca de trabalho para grandes cidades mas que se vê impossibilitado de retornar à cidade de origem. Também ressalto o trabalho de Neves (2010) que aponta a perda do trabalho como central na trajetória de ida às ruas e também das rupturas familiares. Neves fez estudo com famílias pobres e catadores de lixo para compreender essas relações que se conectam com a vida nas ruas. Segundo a autora, também a perda da posição de homem-chefe de família e, consequentemente, os conflitos familiares e a bebida fazem parte desse processo. A desvinculação com o trabalho e a família é interpretado como central na dinâmica de exclusão social que leva à vida na rua (Escorel, 1999). Nos anos 2000, um maior número de pesquisas são realizadas multiplicando os temas abordados e perguntas de pesquisa. Para dar alguns exemplos: relações de gênero (Rodrigues, 2009), o corpo produzido na relação com a rua (Frangella, 2004), representações sociais sobre moradores de rua (Giorgetti, 2007), entidades de assistência social (De Lucca, 2007), a trajetória de vida e identidade existente na população de rua (Mendes, 2007), ação coletiva e movimentos sociais ( Melo, 2011). E destaco também uma série de trabalhos feitos na cidade de São Carlos que visam compreender as relações que moradores de rua travam nos espaços urbanos e nas instituições assistenciais: por exemplo, a relação de moradores de rua e meio ambiente em espaço urbano (Granado, 2010), trajetórias urbanas de itinerantes e a rede assistencial (Martinez, 2011), dispositivos assistenciais de gestão dessa população, seja nos grupos de rua (Oliveira, 2012) ou dentro da instituição de cuidado (Pereira, 2012). Além da pergunta como se chega a viver na rua também aparece a pergunta como se mantém uma vida na rua? Como um fenômeno urbano, a vida na rua chama a investigação para a busca da relação das pessoas com o espaço urbano e também seu movimento nele. Os modos de vida, as práticas cotidianas são enfatizadas principalmente pelas pesquisas, sem mais buscar análises das perdas e rupturas, mas sim, enfatizar aquilo que está presente na vida de rua. Para dar alguns exemplos: não mais se estuda a categoria mendicância mas sim as práticas do “mangueio”(Martinez, 2011). Não se pensa que o trabalho seja uma categoria central para a identidade, mas sim, uma dentre outras tantas práticas de sobrevivência, incluindo atividades ilícitas (Melo, 2011). Não se pensa na falta de moradia, mas sim, as várias formas de abrigamento, como lonas, marquises, mocós, albergues (Kasper, 2006). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 A falta de família também não é mais o foco das pesquisas quando se busca compreender as organizações dos grupos que vivem nas ruas e as relações entre si. É interessante notar que dentro das pesquisas sobre moradores de rua a família de origem não é pesquisada e a ruptura com ela está sempre presente como motivo para a ida para rua. Ou ainda, aparecem nos trabalhos famílias de moradores de rua, por exemplo, um casal, ou uma mãe com filhos (Frangella, 2004). Mas, para a grande maioria de homens adultos que compõem a população de rua a família aparece como ruptura, seja no casamento ou na relação com os pais. Quando não se encontram famílias na rua baseadas na conjugalidade ou consanguinidade, então, se pensa em grupos de moradores de rua, as “bancas” (Martinez, 2011; Oliveira, 2012). As famílias - ou as noções de famílias- estão, assim, misturadas no convívio da “banca”. Diante do que foi exposto, este texto pretende trazer para a discussão as noções de família presentes em “bancas” em moradores de rua como objeto a ser melhor pesquisado e compreendido em estudos a respeito de moradores de rua. Sem pretender tirar conclusões precipitadas mas sim apontar o interesse e importância em se fazer essa observação acerca das noções de família, uma vez que esta população está sob o olhar e cuidados de instituições assistenciais que desenvolvem concepções de família baseada no entendimento de que ela é a base da sociedade brasileira, núcleo da reprodução física, social e moral com papel de proteção e afeto entre seus membros. Por isso, iniciarei a exposição pelas noções de família que pude captar a partir de dois moradores de rua na cidade de São Carlos. Pelas trajetórias de dois indivíduos pode-se perceber diferentes percursos traçados para a ida a rua, com rupturas com a família de origem e constituição de “bancas” de rua, onde outras concepções de família são possíveis. 2. Noções de família na rua Os dois personagens principais dos relatos que se seguem são Cláudio e Hilário, nomes fictícios - assim como todos os demais nomes que vão aparecer nos relatos. Eu os conheci no período em que trabalhei no Centro-pop em 2010, instituição da política de Assistência Social destinada a atender moradores de rua. Em 2010, fiz entrevistas com cada um deles e continuei mantendo contatos com ambos. Por isso, os relatos a seguir são baseados Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 nas entrevistas com ambos acrescidas dos meus relatos acerca das trajetórias que ambos tomaram posteriormente. Cláudio faleceu ainda em 2010 e Hilário saiu da vida na rua em 2013. Estes dois personagens do meu relato se encontravam em espaços urbanos e grupos de rua distintos. Eles não chegaram a se conhecer. Hilário vivia no centro da cidade, na marquise da Estação Ferroviária, já Claúdio vivia em um terreno baldio de um bairro residencial afastado no núcleo urbano, à beira da rodovia Washington Luiz. O terreno é chamado por ele de “matinho” ou ainda de “escritório” por agrupar várias pessoas ao seu redor. Os motivos para terem ido viver na rua, a ruptura com a família de origem e o entendimento do grupo de rua, a “banca” como família, ficará explicitado a seguir. 2.1. Trajetória de Cláudio e a reciprocidade da “família” do “matinho” Cláudio tinha 38 anos e era natural de Jales mas vivia em São Carlos desde os 18 anos. Estudou até a sexta série. Em 2010, quando o entrevistei, Cláudio vivia na rua havia 3 anos, sempre em um mesmo local. O local onde se encontrava Cláudio é o Jd. Tangará, bairro afastado do centro da cidade onde habitava um terreno vazio próximo à rodovia. Do terreno via-se o fluxo dos carros na rodovia mas a distância era suficiente para não correr risco de ser afetado por ela. Em sua infância, Cláudio perdeu os pais e viveu em um orfanato entre os 4 a 12 anos. Sabe apenas que tem 4 irmãos mas não os conhece. Anos depois o orfanato se transformou em semi-internato e ele foi viver com uns tios em Jales. Quando adulto voltou para São Carlos e conseguiu trabalho. Com 19 anos de idade começou a usar álcool e aos 22 passou a fumar cigarros. Já experimentou maconha e cocaína mas não gostou. Tem uma experiência de trabalho de cerca de 20 anos sendo a maioria trabalhos formais. Como garçom trabalhou 12 anos, também já cortou cana sob contrato temporário de 6 meses, o que ao todo somam 3 anos trabalhando com o corte de cana. Também foi técnico de manutenção de elevadores, operador de máquina e auxiliar de montagem ao longo de 2 anos. Já fez serviços como servente de pedreiro como “bico”. Cláudio conta sua trajetória de trabalho mostrando que é um trabalhador e diz que seria fácil conseguir um novo trabalho com sua extensa experiência. Como garçom Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 conseguiria bicos aos fins de semana facilmente e diz que gostaria de ter um canto para morar e trabalhar. No entanto, diz não procura trabalho porque precisa “tomar vergonha na cara”. Ele acha bom passar o dia no “matinho” e beber com os amigos. Gostaria de poder conciliar as duas situações, trabalhar e beber com os amigos ali naquele terreno próximo da rodovia. Em sua fala, sair da situação de rua não seria difícil, bastaria “ter emprego e tudo se acerta”. No entanto, o contexto é mais complexo. Não seria em um terreno vazio próximo da rodovia e distante do centro comercial que alguém encontraria trabalho facilmente. Cláudio ocupou este espaço nesse bairro periférico para ficar próximo da casa da exesposa e de suas filhas. Viveu com uma mulher durante 7 anos e tem duas filhas, porém, tinha conflitos com a sogra que morava junto. A filha mais velha é de um outro relacionamento da mulher e a sogra não queria que Cláudio chegasse perto da menina pois ela já está uma mocinha (12 anos). Esse receio da sogra está fundado no seu histórico de “bagunceiro”, diz Cláudio. Quando casado, mentia para a mulher dizendo que ia trabalhar até tarde e na verdade saía para beber com os amigos e encontrar mulheres. Nessas “bagunças” já chegou a ficar alguns fins de semana sem voltar para casa. As brigas conjugais eram frequentes, e então, ele saia de casa e ia dormir na rua. Mas depois terminavam por se reconciliar e ele voltava para casa. Isso aconteceu várias vezes. Toda vez que brigavam ele ia para a rua até que um dia não houve mais reconciliação e ele ficou definitivamente na rua. Há 3 anos ele vive no terreno vazio há poucos quarteirões da casa da ex-mulher. Ele sente falta das filhas e às vezes vai até a escola para ver se as encontra em horário de saída da aula, o que gera conflito com a ex-mulher e ex-sogra que não querem mais vê-lo. No “matinho”, como chama o terreno vazio, Cláudio é o membro mais antigo de uma “banca” que se formou em torno dele. Ele e seu amigo Altair passam o dia juntos a conversar e beber pinga. Altair tem pais e irmão morando há 2 quarteirões do terreno mas passa dias seguidos no “matinho” sem voltar para casa. Ele não rompeu com seus vínculos familiares mas o grave alcoolismo o impele a procurar os amigos de rua mais do que os pais. Quando Altair dorme em casa, pela manhã Cláudio vai buscá-lo e o leva para o “matinho”. Frequentemente um irmão de Altair vai ao “matinho” conversa com ele, a mãe também vai às vezes levar marmita na hora do almoço para o grupo e quando Altair quer Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 voltar para casa o ajudam a andar. Altair tem problemas de saúde grave, suas pernas doem, incham e formam feridas. Ele não consegue andar direito, precisa sempre ter alguém como apoio. A família de Altair gostaria de uma internação para tratá-lo do alcoolismo mas ele não aceita. Altair tem 34 anos e não tem condição de trabalhar por ter uma saúde muito precária, o alcoolismo consome todo o seu tempo, seu corpo e sua mente e sequer tem resistência física para ficar em pé sozinho. Cláudio e Altair são o núcleo fixo da “banca” que se formou no terreno vazio. Ali também se reúnem outras pessoas para beber pinga e com eles permanecem com mais ou menos frequência. No “matinho” encontrei Durval, um senhor de quase 60 anos que tinha parentes na cidade mas residência em Avaré. Ele queria retornar para casa mas não conseguia dinheiro para os dois ônibus necessários até Avaré. Ele dormia em um depósito de pedras não muito longe dali, onde também fazia alguns serviços. O dono do local deixava que Durval dormisse no depósito para não ficar na rua. Mas frequentemente Durval passava o dia e noite com os amigos no “matinho”. Durval sofria de muitas dores no estômago mas dizia que era porque comia muita pimenta – o que ninguém acreditava. Em algum momento Durval sumiu e Cláudio não sabia porquê, pensava que ele tivesse conseguido voltar para Avaré. Ninguém soube mais de Durval. Lino, um rapaz na faixa dos 30 anos, trabalhava em um depósito de reciclagem informalmente onde também podia dormir mas costumava passar algumas horas, e às vezes dias, com Cláudio e os colegas. Lino tinha irmãs na cidade que o procuravam para ajudá-lo e queriam sua internação para tratamento do alcoolismo antes de levá-lo para casa. Uma das irmãs procurou pelo serviço do Centro-pop a fim de conseguir apoio para a internação mas Lino não aceitou. Como todos, Lino não tinha boa saúde e convulsionava frequentemente, sendo atendido pelos colegas do “matinho” que seguravam sua língua e jogavam água na sua cabeça. Lino sempre se recusava a ir ao hospital. Rodrigo, também na faixa de 30 anos, havia saído de uma outra “banca” onde foi Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 acusado de tocar fogo em um homem que terminou morrendo no hospital. Rodrigo não tinha familiares na cidade, fazia alguns serviços de servente de pedreiro e pintor, dormia no “matinho” ou em casa do senhor José, amigo do grupo e também frequentador da “banca”. José, senhor de mais de 60 anos, aposentado, tinha uma pequena casa de 2 cômodos no mesmo bairro. Costumava catar material reciclável que acumulava no terreno de sua casa. A precariedade e sujeira do local era enorme, pior que o “matinho”, porém, com uma construção com 4 paredes que era sua casa. Ali ele abrigava a si e outras pessoas, e mesmo a todos, quando necessário. Amanda também passou a habitar o “matinho”, antes trabalhava cuidando de um senhor enfermo do bairro e morava na casa dele. Contudo, o senhor morreu e ela foi para a rua. Sua família não a aceitava e Amanda não mais os procurava. Ela era homossexual e já usou crack. Teve um filho resultado de um estupro. Ele era o único familiar de quem ela sentia falta. Amanda era muito séria e não falava de sua vida, apenas se comovia com a lembrança do filho que às vezes ia até lá vê-la. Ela se envergonhava quando o filho a via ali. A “banca” também recebia outros visitantes que lá iam para compartilhar a pinga e depois retornar para casa. Cláudio dizia que ali não faltava nada para eles, as pessoas do bairro davam comida e roupas pois sabiam que eles só bebiam pinga e conversavam. Também não pediam dinheiro, às vezes, só pediam comida. Tudo o que conseguiam em doações dividiam no grupo. Cada marmita, cada garrafa ou cigarro. Cláudio dizia que ali era como uma família. Percebia-se que ele e Altair eram o núcleo moral do grupo. Eram chamados pelos outros de “os fundadores” e eram quem mais falavam e prezavam por essa regra de compartilhamento das coisas. Cláudio também deixava claro que ali não tinha crack, só pinga. Não gostava que pessoas fossem no terreno usar drogas para “não confundir as coisas” pois polícia aparece quando há uso de crack. Cláudio diz não dar isqueiro para quem quer fumar pedra e considera que este é um vício caro pois com R$5,00 - preço de uma pedra de crack Cláudio compra um sandwich, um cigarro e pinga. Ele sabe que a pinga lhe prejudica a saúde como um todo mas “não altera a cabeça” como as drogas, diz ele. Cláudio sempre foi muito resistente a frequentar instituições assistenciais, assim como Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 os seus colegas de “banca”. Porém, quando Cláudio decidia ir até o Centro-pop, outras pessoas da “banca” o acompanhavam. Cláudio disse não gostar de frequentar essas instituições porque não tem assunto com as pessoas que lá estão, os assuntos são diferentes, “o santo não bate”. Não quis explicar o que haveria de diferente e apenas comentou que prefere conversar com quem já conhece. Cláudio partilha com a “banca” que se formou ao seu redor um novo sentido de família onde há divisão de tarefas, de coisas, comida, espaço, ajuda mútua e também um senso de respeito e justiça, regras em torno de atividades que podem ou não acontecer no terreno, tudo isso sob a vigilância de Cláudio. Ele era quem afastava as pessoas que não desejava como usuários de crack ou trecheiros/itinerantes que não soubessem dividir as coisas. Cláudio era o “fundador” e também o núcleo moral da “banca”. Talvez assim entendesse desempenhar o papel similar ao de um pai de família. Trecheiros/itinerantes também eram acolhidos pelo grupo do “matinho”. Viajantes que passavam caminhando pela rodovia, encontravam o “matinho” e permaneciam por alguns dias e depois seguiam viagem. É o caso de Cassiano, que ficou na “banca” por cerca de um mês porque foi acolhido “como em uma família”, como ele disse certa vez. Mas Cassiano não chegou a seguir viagem, foi atropelado na rodovia. Sua morte marcou a todos da “banca”. As pessoas se entristeceram e se dispersaram, ou mesmo, passaram a usar o espaço de modo diferente. Não ficavam mais no “matinho” o tempo todo. Mesmo Cláudio, que nunca saia do “matinho”, passou a dormir na casa de José, assim como Amanda. Altair dormia na casa da família, Rodrigo ocupou um carro abandonado, Lino dormia em seu local de trabalho. Nunca mais se viu todos reunidos no “matinho” como antes, onde chegavam a montar varais nas árvores, juntar colchões e sofás velhos sobre a terra, fazer fogueira. A morte de Cassiano foi o início do fim do grupo. Meses depois Altair morreu por motivo de saúde. Cláudio ficou sem seu melhor amigo e no mesmo ano também faleceu doente. Com a morte dos “fundadores” a “banca” se desfez. Rodrigo passou a frequentar o Centro-pop, descobriu um câncer já avançado e meses depois morreu. Lino morreu por atropelamento. Amanda procurou a mãe novamente. O senhor José não foi mais visto. 2.2. A trajetória de Hilário e a autoridade “familiar” na Estação Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 Hilário tem 46 anos, nascido em São Carlos e tem pais e irmãos na cidade. Há mais de 20 anos vive na rua. Deixou a escola na segunda série do ensino fundamental e apenas lê um pouco. Deixou os estudos porque os pais queriam que ele trabalhasse. Trabalhou desde os 14 anos registrado em carteira até os 23 anos. Já cortou cana e foi motorista de trator. Mas aos 23 anos decidiu levar uma vida própria e sair pelo mundo. Segundo ele, naquela época era fácil encontrar trabalho em qualquer cidade, na construção civil tinha até alojamento pra morar, mas depois isso acabou e ele ficou andando pelo mundo. Hilário tinha problemas familiares, não concordava com os pais e irmãos e desde então evitar encontrá-los, diz que fica irritado com a convivência com eles. Prefere não explicitar os problemas mas diz que há irmão que rouba os pais, por isso, Hilário prefere nem saber o que acontece entre eles. Hilário fez uma escolha de vida de não viver com sua família de origem. Sua irmã quando o encontra na rua pára para conversar e o chama a visitá-la mas ele não vai procurar por ninguém da família. Hilário “saiu para o trecho” (viajar sem um rumo certo) por onde passou muitos anos da vida. Ele não conta sua história de forma linear, mas relata várias situações vivenciadas que lhe foram marcantes. Ele percorreu várias cidades de vários estados, por exemplo, Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e Paraná. Em alguns lugares ficou em albergues, outras vezes, fazia alguma amizade e passava a viajar em conjunto. Ele ficava em um lugar até que se cansasse e partia para outra cidade, de preferência, para lugares que não conhecia. Seguia conforme surgisse uma oportunidade de viajar, por exemplo, se alguém o chamasse para ir a outra cidade, Hilário aceitava a fim de conhecer um novo lugar. Hilário já fez trabalhos informais como pedreiro e também fazia artesanatos como brincos, pulseiras e colares de miçangas, penas, etc. Seguia um estilo de vida hippie. O dinheiro obtido era suficiente apenas para alimentação, cachaça e maconha. Às vezes também pedia comida ou mangueava5. Assim como se cansava de um lugar e viajava, Hilário também se cansou de viajar e voltou para São Carlos no fim dos anos 1990. Se fixou na Estação 5 Conseguir dinheiro, comida ou qualquer doação a partir de uma história contada, uma encenação, a história triste, como é chamado por Tomás Melo (2011) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 Ferroviária onde conheceu Willian, senhor de perto de 60 anos, não é nascido na cidade mas vive nesse território urbano há mais de 15 anos. Hilário e Willian se alojaram na marquise da Estação Ferroviária. Esta é uma grande construção do fim do século XIX e atualmente é tombada como patrimônio histórico municipal. Nela funciona o museu da cidade, arquivo e fundação cultural do município. A cobertura da marquise os protege da chuva mas não do sol da tarde, do vento e do frio. Há um espaço grande na marquise onde se pode mesmo colocar colchões, juntar objetos pessoais, roupas, cobertores. Na frente da Estação passa uma avenida de grande fluxo de carros e ônibus urbano. Atravessando essa avenida há uma praça onde se situa uma das principais estações de ônibus urbano de São Carlos, havendo um guichê da empresa de transporte. A praça serve para os usuários de ônibus e também para motoristas e cobradores que ali fazem trocas de turno. Ao redor da praça há comércio com lanchonetes, bares e outras lojas de produtos eletrônicos, móveis usados, um comércio popular. Hilário e Willian passam muito tempo juntos nos arredores da Estação, onde também recebem outras pessoas que vão até lá para compartilhar do abrigo e também da pinga. Hilário e Willian são muito amigos e se chamam de “irmão”. Willian, assim como Cláudio, é o núcleo fixo da “banca”, o mais velho, conhecido por “vô” pelos mais novos, enquanto que Hilário às vezes é chamado de “tio”. Eles próprios não assumem essas nomeações baseadas em relações familiares e até mesmo ironizam aqueles que os mais novos que os chamam assim, mas assumem sua relação de “irmãos”. É interessante notar que essas nomeações familiares apesar de não serem recíprocas, são formas de os mais jovens e novos no território demonstrarem respeito aos mais velhos e núcleos fixos da “banca”. Willian já foi casado e teve filhos que já são adultos. Ele não gosta de falar a respeito do que lhe aconteceu mas se mostrou bastante emotivo e pensativo depois que um dos filhos veio de outra cidade para lhe visitar. Hilário já teve companheiras na rua mas nunca teve filhos. Durante um período foi viver com uma mulher em uma casa abandonada para ter privacidade e sumiu da Estação, porém, tempos depois estava de volta pois o relacionamento não deu certo e a mulher pegou o trecho. Este grupo de moradores de rua é bastante visível no espaço urbano, além disso, ocupa Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 um prédio público tombado. A Estação é um desses lugares da cidade em que a dinâmica diurna difere da vida noturna. À noite há uso de drogas e o álcool existe o dia todo. De dia, Hilário e Willian não costumam ter conflito com os comerciantes locais onde conseguem doações de marmitas e lanches. Na praça em frente a Estação, Hilário gostava de tocar violão, vender seu artesanato e jogar dama com os cobradores de ônibus em um tabuleiro feito no banco de cimento e com peças que eram tampas de garrafas. Eles não passavam o dia todo na Estação e circulavam pelo centro da cidade, mas geralmente se via algum objeto na marquise marcando a ocupação do local por eles. Alguns objetos como o violão, Hilário carregava consigo para não ser roubado, mas copos, garrafas e cobertores ficavam na marquise. Viaturas de policiais e guardas passam em ronda durante o dia mas não os abordam, apenas quando há alguma ligação reclamando de algum comportamento do grupo como brigas, discussões. Nesses casos, os policiais mandam sair do local e circular. Quando havia esse tipo de abordagem policial, Hilário e Willian costumavam ir para a praça Santa Cruz, também no centro da cidade. E à noite voltavam para a Estação. A Estação, assim como o “matinho” do Jd. Tangará, também acolhia trecheiros em trânsito pela cidade, ou ainda, moradores da cidade que iam passar uma noitada de bebedeira mas depois retornavam para suas casas. Mas, ao contrário de Cláudio no “matinho”, Willian partilhava do uso de crack. Na Estação se encontrava homens mais velhos como núcleo permanente, ao contrário de “bancas” onde há predomínio de jovens, e os mais velhos não permanecem por muito tempo. Em geral, os jovens se integravam à “banca” da Estação à noite quando também havia o uso do crack. Na Estação dormia Ricardo, com cerca de 30 anos. Ele percorria várias “bancas”, albergue noturno, Cetro-pop, a favela -onde obtinha drogas- ou ainda, casas abandonadas que reuniam usuários de drogas. Assim como outros jovens com perfil similar de uso de drogas, circulava entre espaços da rua, instituições assistenciais e casa de familiares. A cada 6 meses a “banca” já tinha outra configuração mas sempre contando com a presença de Willian, o “vô”, quem por poucas vezes saiu da Estação. Por um pequeno período, Willian foi morar com Hilário em uma casa abandonada, mas por algum conflito Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 decidiram sair da casa e voltar para a Estação. Às vezes, Willian também frequentava locais de uso de crack, o que Hilário nunca fazia. Em 2012, Hilário adoeceu gravemente devido a um problema gastrointestinal. Disse que chegou perto da morte e renasceu. Depois disso parou de beber definitivamente, passou um tempo frequentando as instituições assistenciais e a partir delas retomou o contato com a irmã, quem o ajudou a conseguir uma moradia. Atualmente, Hilário recebe um benefício social e mora em um pequeno apartamento alugado da Cohab. Em 2014, se inscreveu no Programa Minha Casa Minha Vida a fim de conseguir uma casa própria. Diz que seria bom pois vai poder viajar e sempre ter pra onde voltar, mas não sabe se vai aceitar pois o bairro é muito longe. Apesar da mudança de vida, Hilário vai na Estação conversar com o amigo Willian quase todo dia. Já Willian permanece na Estação, de onde não pretende sair, e continua sendo o núcleo da “banca” de homens mais velhos e jovens passageiros. 3. Reciprocidade e autoridade nas noções de família na rua De modo breve, deixo aqui explícito que há estudos sobre família nas ciências sociais há muito tempo. Desde as considerações de Gilberto Freire sobre a família patriarcal como elemento fundante da sociedade brasileira, ou ainda, DaMatta em sua distinção entre a casa e a rua como princípio norteador das relações público-privado no Brasil. A família está no cerne do pensamento social brasileiro. Os estudos urbanos também trazem análises sobre a família das pobres urbanos, imigrantes, trabalhadores. Para citar alguns, há os trabalhos de Durhaim (2004), Correa (1993) e Zaluar (1994). As primeiras interpretações da década de 1970 consideravam a família dos trabalhadores o núcleo da reprodução da força de trabalho explorada pelo capital. A Família dos pobres urbanos, com sua divisão de trabalho em relação a gênero e geração, tem importância para as estratégias de sobrevivência das classes populares (Couto, 2005). Sarti (1996) chama a atenção para os aspectos simbólicos da família onde há valores morais atribuídos a homens e mulheres e um código de lealdade, reciprocidades e hierarquia da família tradicional. As considerações sobre o trabalho feminino e a dominação masculina na Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 família (Salem, 1981; Santos, 2011) vão se desenvolver em um campo de estudo todo dedicado a questões de gênero, não necessariamente ligado a família (Couto, 2005). Nessas reflexões finais como compreensão das noções de família entre moradores de rua a questão de gênero não é secundária, o que irei considerar é principalmente que a família é um ambiente moral (Sarti, 1996) com normas, nomeações e princípios valorativos que são extrapolados para fora dela e também vão aparecer nos grupos de rua. As duas trajetórias relatadas nesse texto - a de Claúdio e Hilário- apresentam vários elementos para pensar a vida na rua. A ida para a rua se deu de modo muito diferente para ambos. Cláudio perdeu os pais, viveu em orfanato e na casa dos tios, de quem não tem mais notícias. Portanto, não há um grupo familiar duradouro desde sua infância. Tal situação de vida é similar a outras histórias de moradores de rua que, sendo órfãos, passaram por internatos ou pela Febem, e se viram, na vida adulta, sem uma rede familiar a quem recorrer quando o casamento acaba ou quando perdem o emprego. É na idade adulta que Claúdio constrói uma família ao se juntar com uma mulher e sua filha e com ela tem mais uma criança. Família (nuclear) e trabalho marcam a vida adulta de Cláudio. Esse tipo de trajetória de vida é estudada por pesquisas sobre famílias pobres (Sarti, 1996; Zaluar, 1994; Durham, 2004) cuja moral é marcada pela autoridade do homem provedor e por códigos de reciprocidade entre homem e mulher e também entre pais e filhos. Para os pobres, a casa é o locus da família e espaço para as obrigações de reciprocidade, onde há a obrigação de dar, receber e retribuir. Sarti traz uma passagem em seu livro onde aparece uma briga entre marido e mulher, e ele, bêbado, a ameaça. Ela com ajuda das filhas já grandes controlam o homem e termina por dizer “eu não preciso mais de você”. Essa cena é interessante para pensar as rupturas conjugais que podem culminar com a ida do homem à rua. O homem não provedor perde seu respeito da família e a hierarquia familiar é alterada. A quebra do vínculo familiar, principalmente conjugal, devido ao fim da provisão do homem e do respeito por ele é comum nas histórias de uma geração de moradores de rua da qual Claúdio faz parte. A identidade de trabalhador, as obrigações da rede familiar tão presente na moralidade dos pobres (Sarti, 1996) é visível no caso de Cláudio. Acrescido a isso, há a sociabilidade masculina em torno da bebida e do encontro com mulheres como Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 fatores de crise conjugal. Tal sociabilidade é comum entre homens solteiros mas é reprovada para homens casados, sendo motivo para conflitos conjugais. É interessante mencionar que é comum ouvir de homens de mais de 30 anos que começaram a beber e a fumar ainda quando menores de idade a exemplo do pai. Ou ainda, os hábitos com bebida e fumo se iniciam no início da vida de trabalho compondo o conjunto da identidade masculina de homem trabalhador, que ao fim do dia de trabalho vai beber com os amigos. Conciliar trabalho e beber com os amigos faz parte do ideal de vida de Cláudio. Um outro exemplo que ilustra a formação da identidade masculina tem o trabalho e vício como um elemento importante que está presente na história de vida de um senhor de cerca de 50 anos. Ele me contou certa vez que começou a trabalhar na roça com o pai quando ainda era menino. Quando começou a fumar o cigarro do pai este lhe bateu e disse que “um homem de verdade deve ter dinheiro para seu próprio cigarro”. Este senhor seguiu uma trajetória de vida de homem provedor da família mas quando perdeu o emprego, passou a beber e a mulher o abandonou. Assim foi viver na rua e nela morreu. Este é mais um exemplo que mostra o resultado da ruptura dessa moral pautada no homem-trabalhador-provedor da casa que leva a conflitos conjugais e até mesmo à rua. Já a história de Hilário vai no sentido oposto. Ele não foi abandonado pelos pais na infância, ao contrário, foi ele quem decidiu por se afastar da família de origem. Ele seguiu, de início, uma trajetória de filho-trabalhador, que ajuda no sustento da casa. Hilário tem 2 irmãs e um irmão e provavelmente sentiu o peso das obrigações de homem que deve ajudar a prover a casa. Teve mesmo que sair da escola para trabalhar ainda na infância. Hilário aos 23 anos decidiu se afastar da família e do trabalho e seguir um outro estilo de vida. Para isso, saiu da cidade, passou a ser itinerante. A maconha já estava presente em sua vida nessa época e de modo importante pois em todos os seus relatos de lugares onde esteve, a erva está presente, inclusive, ele consegue avaliar as qualidades do fumo de cada lugar onde passou. Hilário não casou oficialmente, as mulheres aparecem em seus relatos como cenas passageiras de quando viveu viajando. Tanto as mulheres como as redes de reciprocidade na rua são efêmeras. Tem sempre alguém “que passa a perna nos outros” e vai embora. As mulheres na rua são minoria. Cerca de 15% segundo estatísticas oficiais. A rua é Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 um universo masculino. Entre as mulheres é significativa a presença de homossexuais que se identificam com roupas e comportamentos masculinos, como era o caso de Amanda no “matinho”. Em grupos de rua, há mulheres que se relacionam com um homem apenas e que dizem ser seu “marido”. Quando falam em “casar” se referem a um relacionamento fixo, mesmo que não dure por muito tempo. “Casar” é viver junto, um relacionamento fixo que não necessariamente envolve uma formalização e nem viver em uma casa, mas pressupõe uma reciprocidade entre homem e mulher. O homem protege a mulher de outros homens e para ele, a mulher cuida e obedece. “Casar” pode implicar buscar uma moradia para o casal, como fez certa vez Hilário com uma companheira. Há inclusive homens que dizem que só sairiam da rua se casassem e há outros que realmente saem da rua quando conhecem uma mulher e vai morar com ela. Nesses casos, ele próprio diz que “casou”. A mulher fortalece a autoridade de um homem no grupo de rua e também participa dos pedidos de dinheiro, ou “mangueios”. Se homens jovens conseguem pouco dinheiro na rua pois sobre eles recai a obrigação social do trabalho, sem o qual são considerados “vagabundos”, já a mulher, por sua vez, consegue mais dinheiro por parecer mais frágil, inofensiva para os transeuntes. A moral dos pobres (Sarti, 1996) baseada na reciprocidade e na autoridade masculina e geracional fica evidente nos estudos de famílias nucleares, mas esta moral vai além deste núcleo familiar e também aparece nos grupos de rua, principalmente nas “bancas” de maior permanência. Cláudio era quem desempenhava o papel de autoridade, garantidor da ordem e da reciprocidade entre o grupo do “matinho”, formado por uma maioria de homens de faixa etária similar e maioria solteiros. Neste grupo, a família aparece como uma representação de união e solidariedade. Como Cassiano, o trecheiro, comentou, ali ele encontrou uma “verdadeira família” o que não tinha em sua família de sangue. Na “banca” de Cláudio haviam idosos que não eram o núcleo da “banca”, por exemplo, Durval e José. O primeiro devido a seus problemas de saúde era alguém que recebia cuidados dos outros, já José era o senhor que cuidava dos demais e os acolhia a todos na sua casa, fazendo dela uma extensão do “matinho”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 18 Na Estação, ambiente igualmente muito masculino, mas com maior rotatividade de membros e com uma clara clivagem geracional, o ideal de família unida e solidária não está presente. O que se percebe são nomeações baseadas nas categorias familiares. Essas nomeações como “vô” e “tio” marcam diferenças geracionais e a autoridade é dirigida a indivíduos específicos, os mais velhos. Se há um conflito entre os mais novos, eles se resolvem entre si, mas se há um conflito em que o “vô” esteja envolvido, todos vão defendêlo. Ele é a autoridade reconhecida para o grupo. A igualdade e união é vivenciada apenas entre “irmãos”, Hilário e Willian, que assim nomeiam sua forte amizade com esta categoria familiar. Percebe-se que a família é vivenciada na rua como uma metáfora para as relações de reciprocidade e autoridade e ideais de solidariedade e união que perpassam as relações entre os membros de um grupo de rua. Se a ideia de família unida do “matinho” expressa igualdade entre os membros, já na “banca” da Estação as nomeações familiares servem para marcar diferenciação e autoridade baseada na geração. Contudo, os grupos de rua não são jamais considerados como família por profissionais da Assistência Social que levam em conta os laços de consanguinidade e conjugalidade assim como a residência fixa e não os princípios morais e regras de reciprocidade e autoridade que perpassam os grupos de rua assim como as famílias pobres urbanas. 4. Considerações finais Para finalizar, quero fazer ainda algumas breves considerações que apontem como objeto de estudo a família e as concepções de família de moradores de rua. As pesquisas sobre população de rua buscaram compreender a vida daqueles que estão vivendo na rua, e dessa forma, há uma lacuna a se compreender: a visão das famílias que tiveram ou tem algum dos seus membros vivendo na rua. Acho isso importante, pois, como apontei a há uma geração que sofreu com a ruptura do padrão moral de família provida pelo homem. Mas também há a vida na rua como escolha do indivíduo que se recusa a seguir os modelos de família e trabalho, como é o caso de Hilário. E há ainda uma nova geração que está indo viver na rua tendo a sociabilidade ligada ao uso de crack e ao tráfico, o que pouco mencionei aqui, mas são aqueles rejeitados por Cláudio no “matinho” mas aceitos por Willian na Estação, os jovens Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 19 usuários de crack, que estão introduzindo novas características e sociabilidades à população de rua. A população de rua é heterogênea, como diz a definição estatal, é também dinâmica, o que a concepção estatal pouco consegue captar. Na sua heterogeneidade, há clivagens geracionais, de gênero, etc. E nas suas dinâmicas, há diferentes espacialidades, conflitos e reciprocidades, etc. Enquanto os trabalhos sociológicos se preocupam em compreender um lado dessa relação (família- morador de rua) que é o universo da vida na rua, as regras das “bancas” e modos de vida; as famílias dos moradores de rua, são observadas e compreendidas por assistentes sociais, que, quando a serviço do Estado, vão buscar nas residências dos familiares do morador de rua modos de “reatar os laços”, “devolver às famílias” aqueles que estão na rua. Nesse raciocínio sair da rua é sinônimo de voltar para a família. A história de Hilário é a prova de que essa não é necessariamente a “solução” para a situação de rua. Ele saiu da rua sem que a família faça parte da sua vida, embora o amigo “irmão” da rua, Willian, sim. Este trabalho não visa trazer conclusões acerca de todas as noções de família e possibilidades de trajetórias de vida entre moradores de rua mas sim chamar a atenção para a importância de se continuar a compreender as relações entre família-moradores de rua (inclusive, suas regras e moralidades) e também estas em relação ao Estado. 5.Referências Bibliográficas BURSZTYN, M.(org). No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado. 1988. Disponível em: ttp://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_07.05.2015/index.shtm. Acesso em:19 de maio de 2015. BRASIL. Presidência da República. Decreto n. 5073 de 23 de dezembro de 2009 (Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm. Acesso em 19 de maio de 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 20 BRASIL. Governo Federal. Política Nacional para inclusão social da população em situação de rua, Brasília, 2008. Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/acoes_afirmativas/Pol.NacionalMorad.Rua.pdf. Acesso em 19 de maio de 2015. COUTO, M. T. Estudos de famílias populares urbanas e a articulação com gênero. Revista Anthropológicas, ano 9, v. 16, p. 197-216, 2005. DE LUCCA, D. A rua em movimento. Experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. (dissertação de mestrado) Campinas-SP. Universidade Estadual de Campinas. 2007. DURHAM, E. R. A dinâmica da cultura: ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ESCOREL, S. Vidas ao léu. Trajetória de exclusão social. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. 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Sustentado pela imersão etnográfica, busco descrever relações fronteiriças observadas na Praça Raposo Tavares, logradouro localizado no centro da cidade. Múltiplos sujeitos permanecem ou passam por essa praça produzindo uma série de fenômenos sociais e de classificações. Além disso, narro como a partir desta praça se desenvolvem relações entre o que chamo de sujeitos com experiência de rua e religiosos cristãos. Palavras-chave: Moradores de Rua, produção social, Crack, Religião. INTRODUÇÃO Nos últimos anos tem crescido o interesse das ciências sociais pelo estudo das chamadas populações marginais e entre elas o estudo dos chamados “moradores de rua” ou, segundo a nomenclatura governamental, “pessoas em situação de rua”. Especialmente sociólogos e antropólogos de diferentes centros acadêmicos têm chamado a atenção para a centralidade que esses espaços e sujeitos têm ganhado para as políticas públicas e para o desenvolvimento de tecnologias de gestão e controle do conflito social contemporâneo. Via de regra, tais estudos têm sustentado que a criação de “pessoas em situação de rua” produz um 1 Professor do Instituto Federal do Paraná. Graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFSCar). Pesquisador do NaMargem – Núcleo de Pesquisas Urbanas (CEM-UFSCar) e bolsista da Coordenação de Pessoal de Nível Superior. [email protected] Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 aparato estatal e não estatal cuja principal característica é o controle social da pobreza e a manutenção dos conflitos que daí emergem em níveis toleráveis. O objetivo deste texto é descrever etnograficamente situações do cotidiano de “moradores de rua” no município de Maringá-PR buscando alargar o debate sobre produção social em torno da na noção de “moradores de rua”. É inegável há uma rede estatal ou não composta por inúmeros mecanismos e dispositivos que atuam ao mesmo tempo produzindo e controlando “moradores de rua”. No entanto, o argumento deste artigo é que para além de gestão, inúmeras outras coisas estão sendo produzidas nesse contexto e é preciso que o analista olhe também para elas, a fim de garantir um conhecimento mais amplo e preciso dessa realidade social. Sem deixar de considerar a gestão como uma produção importante, o que pretendo descrever são múltiplas relações travadas nesse espaço, as vezes fronteiriços, fazendo com que emerja uma quantidade de representações e práticas sociais bem maior que meramente gestão. É importante salientar que as reflexões aqui tecidas são frutos de uma pesquisa de campo ainda incipiente, o que me leva a alertar o leitor de que as considerações analíticas aqui feitas são muito provisórias e passíveis de reformulações. Em certa medida, escrevo este texto como um relatório parcial de pesquisa. Ao deslocar o campo de estudos sobre “moradores de rua” de grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro, optei por realizar uma etnografia no município de Maringá, cidade do norte do Estado Paraná, onde busco imergir no cotidiano desses sujeitos2. Desde as primeiras idas a campo, pude observar a multiplicidade de sujeitos que passam parte do seu dia nas ruas e praças, desenvolvendo atividades de lazer, entretenimento e obtenção de renda. Assumo que esses sujeitos não simplesmente “moram” ou “sobrevivem” passivamente nas ruas, mas realizam e produzem um grande número de significados e práticas sociais. Mergulhar em seu cotidiano, permite, portanto, observar como essas práticas e significados são produzidos no momento mesmo de sua produção. A pesquisa etnográfica tem me permitido supor que os sujeitos nomeados como “moradores de rua” estão muito distantes dos estereótipos atribuídos a esse grupo social. Neste artigo, abordo especificamente a 2 CEFAÏ, VEIGA e MOTA (2011) e DAS (2007) inspiram metodologicamente este trabalho. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 liminaridade de sujeitos tomados ora como “moradores de rua” ora usuários de crack3 ou noias e as relações entre essas experiências de rua e as religiões cristãs4. A PRAÇA RAPOSO TAVARES: UM ESPAÇO DE FRONTEIRAS No início do ano de 2013 fui contratado para atuar como sociólogo numa equipe interdisciplinar (composta por uma assistente social, por um psicólogo e por mim) para realizar oficinas psicossociais com “moradores de rua” no Centro de Referência especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) de Maringá-PR5. Foi então que soube da existência de uma política pública para o que foi nomeado de “pessoas em situação de rua” 6 e que tal política, segundo os documentos estatais, tinha como objetivo primordial a proteção social e a criação de novos projetos de vida para essas “pessoas”. Observando essas situações e as dificuldades que tínhamos em efetivar a “proteção social” e a auxiliá-los na elaboração de “novos projetos de vida” fui cada vez mais desenvolvendo um interesse de pesquisa sobre essa temática. Foi então que elaborei o projeto desta pesquisa e, após muitas leituras, cheguei a pesquisa de campo que agora realizo. Embora já existia um contato prévio com parte dos “moradores de rua” de Maringá, a entrega em campo foi custosa. Fiz a opção de entrada em campo sem mediadores. Era de meu conhecimento que há na cidade de Maringá vários pontos de concentração de “moradores de rua” – ou ao menos sujeitos que eu os identificava como tais –, mas não conhecia esses pontos claramente nem sabia por onde começar. Planejei então tentar contato a partir da Praça Raposo Tavares, a praça central da cidade e um ponto de passagem de boa parte da população de toda a região. Sabia que nessa praça havia sujeitos que podiam ser identificados como “moradores de rua”, “garotas de programa”, “flanelinhas”, usuários de “drogas ilícitas”, além 3 Ver RUI (2012). A bibliografia sobre “moradores de rua” tem crescido nos últimos anos. Destaco MARTINEZ (2011), Melo (2011), Oliveira (2012), De Lucca (2007) e Frangella (2004). 5 Importa salientar que o vínculo de trabalho não foi o usual contrato temporário ou efetivo pela prefeitura. Na realidade, fui contratado por uma empresa sediada no município de Curitiba, a qual executava um edital no Centro Pop de Maringá. Tal empresa exigiu que eu abrisse (assim como os demais colegas) uma microempresa (MEI) para trabalhar como prestador de serviços. Deveria emitir uma nota fiscal ao final de cada mês para que pudesse receber os vencimentos. Era, portanto, um microempresário, atuando a serviço da empresa curitibana num órgão da prefeitura de Maringá, onde deveria cumprir horário e me submeter ao chefe do Centro Pop. É interessante informar também que minha contratação se deu em decorrência do afastamento do sociólogo anterior. Este, juntamente com a equipe psicossocial, estimulou os moradores de rua a reivindicarem melhorias no serviço público e a prefeitura, incomodada, acabou pedindo o seu desligamento. 6 Sobre o processo de construção da “política nacional para pessoas em situação de rua” ver Ferro (2011). 4 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 de ser um espaço público de circulação de muitas pessoas e também de manifestações de movimentos sociais. Artistas de rua, rodas de capoeira, feiras rurais, ciganas, vendedores ambulantes também estão, eventualmente, presentes nesse local. No entanto, reconheço que embora soubesse de tudo isso, nunca tinha reconhecido efetivamente essa diversidade social. Conforme o trabalho de campo foi se desenrolando, fui percebendo que muitas dessas categorias são móveis, plásticas e, às vezes, imprecisas. Não demorou muito para eu começar a pensar sobre a pluralidade disponível ali na Praça Raposo Tavares. O logradouro com nome de bandeirante pareceu-me então um microcosmo da vida social7. Foi então que efetivamente comecei a vê-la, a redescobri-la como algo além de um ponto de passagem. Construída ainda durante os anos 1960, no centro da planejada Maringá, a praça é formada por uma quadra, localizada entre as Avenidas Brasil 8 e Joubert de Carvalho, e entre as travessas Guilherme de Almeida e Júlio de Mesquita Filho. A um quarteirão dali fica o terminal rodoviário urbano, de onde “circulares9” partem para levar passageiros, em geral trabalhadores, pelos bairros e para trazê-los ao centro. Alguns ônibus metropolitanos10 possuem o ponto final numa das laterais da praça. Também há em frente à praça um grande estacionamento no local onde antigamente se localizava a rodoviária11 da “cidade canção”12. Para o sociólogo interessado em questões micro esta praça é um fabuloso e inesgotável laboratório de pesquisa. Na praça, há localizada duas bancas de revista, um estande de sorvetes. Eventualmente ocorrem feiras nesse local. Ela é formada por partes gramadas e partes calçadas. Possui muitos bancos espalhados em diferentes partes. No centro da praça há um palco e de frente para o palco há uma pequena arquibancada. Na parte de trás há placas de 7 O jornalista Alexandre Gaioto registrou uma reflexão parecida. Ver: <http://digital.odiario.com/zoom/noticia/1292089/raposas-e-raposos-da-praca-tavares/>. Acesso em: 02 mai. 2015. 8 Na Avenida Brasil, nos arredores da praça, se localizam as principais lojas Maringaenses, além de vários bancos. 9 Expressão usada na região para se referir aos ônibus de transporte coletivo urbano e metropolitano. 10 Coletivos que baldeiam passageiros para cidades vizinhas a Maringá. 11 A chamada rodoviária velha foi demolida entre maio e junho de 2011. Nos anos que antecederam a demolição, depois das atividades de transporte serem transferidas para um novo prédio, esse local se tornou um centro de comércio de produtos populares, do tipo R$ 1,99. A demolição foi objeto de críticas de comerciantes locais e de ativistas sociais, que defendiam o tombamento do local. A prefeitura se comprometeu a construir um centro cultural no local, mas até a presente data o espaço é usado como estacionamento regulamentado. Ver http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/maringa/prefeitura-de-maringa-comeca-a-demolir-arodoviaria-velha-4ovswwqqp5zaj5s7gx9yhotam Acesso em 30 mai. 2015. 12 Expressão como a cidade também é conhecida, em decorrência da canção de Joubert de Carvalho, intitulada Maringá, a qual originou o nome oficial e o apelido da cidade. Ver http://www.maringa.com/historia/historia.php acesso em 30 mai. 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 concreto que compõem a arquitetura do palco. Há também um monumento em que está fixada uma placa de homenagem a políticos e homens “importantes” da cidade. Em outro local da praça há outra placa. A leitura cinzenta como que a faço no parágrafo acima foi ganhando cores e matizes à medida que o trabalho de campo foi prosseguindo. De fato, os “segredos” da praça estão sendo me revelados aos poucos. Ao conhecimento prévio e homogêneo que já tinha do local, muitas nuances nada desprezíveis estão emergindo ao longo do trabalho de pesquisa, as quais me levam a supor que esta praça pode ser analisada como um campo de fronteiras ou como um lócus em que identidades são mobilizadas, refeitas e transformadas, não sem antes muitas delas se cruzarem, sem que os sujeitos possam se assumir duradouramente em nenhuma delas. Enfim, parece tratar-se de um espaço liminar. Tentemos entender isso melhor por meio da descrição etnográfica. Aqueles que eu tomava por “moradores de rua” costumam se concentrar num dos bancos que fica atrás de uma das bancas de revista. Há um banco largo, que permite várias pessoas sentadas uma ao lado da outra. Ao seu lado, há uma maior quantidade de bancos fixados separadamente numa pequena mureta. Diferentemente do outro, nestes não é possível deitar. Aquele pedaço da praça parece pertencer a eles. Embora outras pessoas por ali passem e eventualmente sentem, é nessa região da praça que se concentram para conversar, beber, vender e comprar crack e maconha, bem como consumi-los. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 Imagem 1: Região da praça onde sujeitos com experiência de rua se reúnem. Fonte: Arquivo Próprio Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Imagem 2: Palco localizado na praça Raposo Tavares. As placas de parte de trás do palco, ficam de frente ao local onde os sujeitos estudados se concentram. Essas placas são usadas para se esconderem enquanto consomem crack. Fonte: Arquivo próprio. Depois de alguns dias sem sair para o trabalho de campo, retomei o contato com meus interlocutores numa quinta-feira na parte da tarde. Cheguei por ali. Como não vi nenhum conhecido, sentei-me em um dos bancos. Um rapaz me cumprimentou. Devolvi o cumprimento. Depois de alguns segundos ele veio até mim. Pediu se eu poderia lhe pagar um lanche. Garantiu-me que não era para usar “droga”, que era para comer mesmo, porque estava com fome, e que se eu quisesse eu poderia ir com ele, comprar o alimento e entregar a ele. Como não tinha dinheiro no bolso, propus que fossemos a algum lugar que aceitasse pagamento com cartão. No caminho, uma moça grávida se juntou a nós. Ele disse a ela que eu lhes pagaria um alimento. Grávida de setes meses, a moça também estava com fome. Contaram-me que estavam em Maringá para realizarem exames e que moram na cidade de Mandaguari. Os levei a um restaurante ali por perto. Sentei-me e os esperei. Enquanto eles comiam, conversávamos. Estava interessado em saber mais sobre a história e como se tornaram “moradores de rua”, pois assim tinham se apresentando para mim. O rapaz contou que mora nas ruas faz mais ou menos um ano, enquanto a moça mora na casa da mãe, mas sai frequentemente para consumo de drogas e acaba permanecendo na rua. Contei que estava fazendo um trabalho sobre “moradores de rua”. Perguntaram-me o que eu já tinha descoberto no meu estudo. Comentei então que achava que os “moradores de rua” que ficam na praça Raposo Tavares são diferentes dos que conheci em outros pontos da cidade. A moça então respondeu que “aqueles ali não são moradores de rua não, são tudo uns vagabundos, eles tem casa, ficam na rua porque querem”. De fato, tal assertiva coaduna com outras pistas semelhantes. Tatiana13, uma jovem que costuma permanecer naquele local, comentou comigo que não é “moradora de rua”. Relatou morar com a tia. No entanto, permanece a maior parte do tempo na rua e costuma dormir em algum mocó14. Fábio fez um comentário semelhante ao me afirmar que ali não havia moradores de rua, que estes estão em outros pontos da cidade. Em outra ocasião, o mesmo rapaz comenta que faz um bom tempo que não volta para casa. Jéssica me informou que mora em Sarandi, município vizinho a Maringá. Caso semelhante é o de Edson. 13 14 Os nomes são fictícios. Abrigado improvisado. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Frequentemente o encontro na praça ou em outros pontos da cidade, participando de grupos de “moradores de rua”, mas garante que tem casa. Pedro, por outro lado, costuma permanecer naquela praça e me relatou ser “morador de rua” desde os doze anos de idade. Agora tem mais de trinta. Inclusive me deu boas-vindas a sua casa, apontando para a praça, como quem pretende indicar que ali é seu espaço. Caso semelhante é o de Valdir. Certa noite estava na praça Raposo Tavares. Tinha levado algumas peças de roupas para distribuir. Valdir ficou com duas camisetas. A polícia chegou e iniciou a revista de alguns rapazes. Imediatamente Valdir me chamou para sair dali. Quando a polícia chega todos correm risco. Circulamos então pela cidade. Vitor mangueou15 um dinheiro e depois gastou com o crack. Me confidenciou que já é morador de rua faz muito tempo. Disse que desde então eu seria seu irmão. Ao partir, perguntei onde poderia encontrá-lo no outro dia (tinha prometido que levaria uma blusa a ele) e ele me informou que estaria onde o vento lhe levar, ou seja, não tem paradeiro fixo. Com efeito, encontrei Valdir apenas mais algumas vezes circulando pelo centro de Maringá. Ao que tudo indica, nesse espaço a rigidez classificatória se esvai. Abre-se um espaço entre o estabelecimento domiciliar e a moradia definitiva nas ruas. Vidas se produzem nas fronteiras. Entre o “noia” e o “consumidor”, entre o “trabalhador” e o “bandido”, entre o “traficante” e o “usuário”. Parte desses sujeitos com quem interajo possuem uma casa familiar onde podem, eventualmente, se abrigar, mas costumam permanecer boa parte de seus dias nas ruas e mesmo dormir em algum mocó ali por perto. Bebem pinga e consomem crack sentados naquele banco da praça ou escorados numa das barras de concreto atrás do palco. Frequentemente pessoas aparecem por ali, negociam uma pequena quantidade de maconha ou crack com eles e logo vão embora. Dinheiro circula nas mãos deles o tempo todo. O consumo e a venda de crack se misturam. O gosto pelo crack predomina e “corres16” são feitos para levantar dinheiro para consumo. Parece-me, diferentes identidades sociais estão sendo mobilizadas e deslocadas constantemente nesse logradouro. Entre o “morador de rua” e o “morador domiciliado” há uma fissura na qual esses sujeitos transitam. Alguns se assumem “moradores de rua”, outros vivem nos interstícios entre a rua e a casa e há outros ainda que 15 Expressão utilizada pelos sujeitos pesquisados para se referir ao trabalho de pedir dinheiro na rua. Corre é uma expressão utilizada pelos sujeitos de pesquisa para se referir a toda forma de levantamento de dinheiro ou bens materiais. Pode ser o trabalho de cuidador de carro, de mangueio ou mesmo de furto. 16 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 não querem ser confundidos com “moradores de rua” ou “noias” passam por ali rapidamente, adquirem o seu “produto” e “saem fora”. É notório, embora mais difícil de aprender empiricamente, que pessoas da “sociedade” ali recorrem para conseguir a substância que desejam: maconha ou crack. Chegam com pressa, negociam, pegam o que precisam o logo vão embora. Não trocam muitas palavras. Talvez não queiram ser confundidos com os que ali permanecem. Igualmente interessante é o caso de mulheres que permanecem em outro pedaço daquela praça. Costumam ficar sentadas no lado oposto ao que estes sujeitos ficam. Entre elas, o caso de Márcia é interessante. Uma mulher negra, por volta dos 40 anos, costuma usar saia na altura do joelho e uma blusa com mangas e sem decote. Muito falante, Márcia gosta de acolher as pessoas com um abraço, um beijo no rosto e falar de deus. Certa vez Márcia quis saber o que eu fazia ali na praça. Expliquei que estava fazendo um trabalho para a universidade. Então perguntei a ela como foi parar ali. Ela disse que não era dali, que tinha sua casa, onde cozinhava, dormia, etc. e que trabalha como empregada doméstica com carteira registrada. Contou que só vai ali pra passar um tempo e ganhar um dinheiro extra. Nesta ocasião disse que estava esperando um amigo, mas que logo iria embora. Explicou um pouco sobre o que ela fazia ali. Ela tenta se diferenciar dos rapazes que passam o dia na praça e das garotas de programa que atuam por ali. Salienta que para chegar ao ponto de fazer sexo com alguém, antes essa pessoa precisa se tornar seu amigo. O candidato a parceiro sexual precisa antes ligar pra ela, falar com ela, ir ao mercado e fazer um compra pra ela, passar tempo juntos, fazer companhia. Sexo só depois de consolidar uma relação de amizade. Perguntei se ela não se considerava garota de programa, ela disse que não, que garota de programa eram outras mulheres que ficavam por ali. Como tentei brevemente demonstrar nas notas acima, o conjunto de sujeitos que realizam atividades nas ruas é muito variado. As categorias “moradores de rua” e sobretudo “pessoas em situação de rua” foram criadas para tentar abarcar a pluralidade de vidas que são produzidas nas ruas e minimizar preconceitos. De qualquer forma, ambas mantém grande centralidade na noção de moradia ou sobrevivência nas ruas. Embora não seja minha intenção entrar na batalha pelas definições, julgo ser necessário a utilização de uma categoria descritiva e analítica que permita ampliar o número de sujeitos narrados sem homogeneizá-los, que possa em vez de restringir as possibilidades de práticas de ruas, jogar luz em outras possibilidades que se não resumam a sobrevivência e moradia. É neste sentido que proponho Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 descritivamente o uso do termo sujeitos ou grupos com experiência de rua. Com este termo, pretendo refletir sobre sujeitos ou grupos que em graus diferentes realizam experiências de rua, ou seja, passam boa parte do seu dia – ou sua noite – na rua, realizando atividades de trabalho, lazer, recreação ou entretenimento. Portanto, neste trabalho, quando pretender descrever os múltiplos sujeitos que permanecem nas ruas, utilizo a expressão “sujeitos ou grupos com experiência de rua”, enquanto que expressões “moradores de rua”, “população em situação de rua”, “noias” são utilizadas sempre no sentido êmico. A RUA E A RELIGIÃO: OUTRAS DISPUTAS Também neste território batalhas religiosas cristãs pela conversão de “moradores de rua”, “viciados” e “garotas de programa” são travadas. A recepção dessas mensagens cristãs, contudo, parecem ser incorporadas de maneira particular por esses sujeitos. Em certa medida minha interação com os sujeitos de pesquisa me jogou para dentro dessa disputa e fez daí emergir certos discursos que em outras situações não apareceriam. Com efeito, refletir sobre a relação entre sujeitos com experiência de rua e religiões me obriga a refletir sobre minha própria trajetória e sobre minha inserção em campo. É ao mesmo tempo um dever e um componente importante para as reflexões que emergiram do meu contato com tais sujeitos informar minha trajetória cristã e reconhecer que tal experiência possivelmente está inscrita em meu habitus ainda nos dias atuais, produzindo percepções peculiares sobre mim. É muito provável que minha presença na rua tenha ativado nos meus interlocutores imagens religiosas-cristãs, assim como eu próprio passei a ativar memórias de experiências dessa natureza. Fiz a opção de entrar em campo sem a mediação de quaisquer sujeitos, como relatado brevemente acima. Entendi que a entrada em campo dessa forma produziria certas interações diferentes das que emergiriam caso tivesse entrado por meio de algum mediador. Com efeito, ao examinar retrospectivamente a forma como vários dos sujeitos de rua se relacionavam comigo fui percebendo certas coisas. Claro que minha postura em campo criava condições pra isso. Participava das rodas de conversa, de bebida e de consumo de maconha e crack, mas não aceitava consumir qualquer dessas substâncias. Várias vezes quiseram saber se eu “usava droga”. Respondia que não. Por outro lado, ali estava participando daquelas rodas, sem criticar o comportamento de ninguém e até ajudando no consumo. Importante salientar que sempre me apresentei como estudante universitário e pesquisador da temática “moradores Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 de rua”. Ainda assim, para eles eu poderia figurar como um “irmão de igreja17” disposto a estar entre eles18. Numa das minhas primeiras idas a campo conheci Pedro. Denis, um sujeito com experiência de rua, me apresentou a ele dizendo que queria conhecer mais sobre “moradores de rua”. Prontamente, Pedro, um homem negro, baixa estatura, aproximadamente 30 anos, afirmou que está nas ruas desde os doze anos de idade. No entanto, a conversa não se estendeu nesse dia. Denis e Pedro provavelmente tinham “corres19” para fazer e foram embora. No outro dia saí de casa de manhã e parti para a praça Raposo Tavares. Passei este dia inteiro nas ruas do centro, a maior parte junto com o pessoal da praça. Logo na chegada, dei de frente com o Pedro. Acolheu-me calorosamente. Logo começou a falar sobre músicas evangélicas. Cantou diversos hinos nessa manhã. Relatou não entender bem as palavras bíblicas, mas que os hinos lhe fazem muito bem. Salientou que canta músicas gospel o tempo todo mesmo durante o consumo de “drogas”, o que gera advertência por parte dos pares. Dizem ser pecado. Ele acredita, porém, que deve estar com deus o tempo todo, mesmo no momento do “pecado”. Dois rapazes vieram até ele. Não os deixou falar na minha frente: “é irmão de igreja, tem que respeitar”. Escondidos numa das placas do palco da praça, trocam alguma coisa, supus ser crack. Ele volta e continua conversando comigo. Me ofereço para pagar um lanche a ele. Ele se recusa. Disse já ter comigo algo que alguém lhe pagou. Durante este dia todo fiquei por ali. Fiquei admirado com a quantidade de crack que Pedro e outros consumiram. A pinga também esteve muito presente, quase exclusivamente armazenada em garrafas de água mineral. 17 Outra possibilidade era ser confundindo com o policial infiltrado, o chamado P2. No entanto, essa possibilidade, parece-me, nunca foi levada muito a sério. Certa ver conheci Adriano. Conversamos um pouco e ele me chamou para dar uma volta com ele e um amigo. “Disseram que não se importavam de andar comigo, mesmo que eu fosse polícia disfarçado, que não ia adiantar nada eu chegar na cadeia com dois „drogados‟, que nem ninguém ia valorizar isso. Eu disse que não era p2. Depois, um pouco mais a frente, disseram que era bom andar comigo porque eu dava proteção contra a polícia, pelo modo como estava vestido. Disse então que todos estávamos vestidos bem” (Caderno de Campo, 20 mar. 2015). 18 De fato, eu não sou um “irmão de igreja”. Rompi com as igrejas cristãs há bastante tempo. No entanto, a partir da imersão em campo, as máximas evangélicas encontradas nas escrituras passaram a emergir da minha memória. Jesus Cristo, de fato, nos Evangelhos, costuma procurar os “marginais” da época, como prostitutas e leprosos, e afirma que o que for feito a “esses pequeninos” é a ele que seria feito. Em minha caminhada na igreja católica, participava de grupos tomavam por grande valia “os irmãos de rua”, os preferidos de Jesus, aqueles por meio dos quais Jesus Cristo se revelaria a nós. 19 Ver nota 16. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 Nesse dia algumas frentes de reflexão se abriram para mim. Notei que assim como o Pedro, outros também me viam como “irmão de igreja”, mesmo eu nunca tendo evocado essa imagem. Embora sempre me apresento como pesquisador, em vários contatos fui classificado como um “irmão”. Foi, por exemplo, o que Valdir me disse certa vez. Circulei com ele pelo centro, o acompanhei no consumo de crack e no mangueio. Certa hora sentamos numa mureta e ele exclamou: “você agora vai ser o meu irmão”. Não ficou plenamente claro se este conceito de irmão seria o religioso, mas é fato que Vitor me relatou ser um evangélico “desviado20” e mostrou devoção. Outra vez, já depois de um tempo de campo, estava conversando com Kelly, uma moça loira. Relatou que fazia programas, mas que sua profissão é cabeleireira. Ela comprou uma cerveja e ordenou que eu bebesse um pouco. A Andressa, uma mulher negra que já tinha travado certo contato, viu e falou para a Kelly: “Não, ele não pode”. Ela não explicou o motivo. Mas supus que estaria associado a uma representação religiosa sobre mim. O que já percebera desde a época do Centro POP foi ganhando substância: as representações religiosas, sobretudo de cunho evangélico, parecem estar presentes o tempo todo no universo dos “moradores de rua”. Assim como aquela praça que, apesar de ser central numa cidade conhecida pela grande influência do bispo católico Dom Jaime21, ostenta um monumento aos evangélicos de Maringá, muitos desses moradores de rua se declaram evangélicos, embora se reconheçam como “desviados” ou “afastados22”. De fato, a praça Raposo Tavares também é ponto de partida de atuação de diversas igrejas cristãs na pregação para os sujeitos com experiência de rua. Na própria praça, inscrições religiosas, oficiais ou informais, proliferam. É importante destacar a presença de um monumento que reproduz uma frase bíblica e logo abaixo há uma placa assinada pelo prefeito municipal e pela ordem dos pastores evangélicos, ainda nos idos de 1979. Além da inscrição oficial, há no palco da praça, em pintura em estilo grafite, várias mensagens 20 Certa vez, na praça, conversando com uma moça que por ali estava, perguntei se ela era evangélica, ela disse que sim. Perguntei se estava desviada, então ela me respondeu que “desviada não, afastada, que quem é desviado é o diabo”. 21 Ver Silva (2011). 22 Ver nota 20. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 bíblicas. Interessante salientar que entre as gravuras e frases religiosas, figura a sigla PCC23, grafada numa das placas, na parte de trás do palco. Imagem 3 - Monumento evangélico de 25 de novembro de 1979. Destaque para a frase bíblica: “disse Jesus: errais não conhecendo as escrituras nem o poder de deus” (Mt. 22,29) Fonte: Arquivo Pessoal 23 Uma linha interessante de reflexão seria as imbricações entre o discurso religioso e os princípios de respeito e humildade, muito presente nas falas dos meus interlocutores. Tais princípios também parecem ser estruturantes para o Primeiro Comando da Capital (BIONDI, 2009). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 Imagem 4: Placa fixada no monumento em 25 de novembro de 1979. Fonte: Arquivo Pessoal O número de instituições religiosas que passam pela praça entregando alimento e mensagens cristãs aos sujeitos com experiência de rua é grande. Uma delas é a Igreja Assembleia de Deus Madureira, dirigida pelo Pastor Pedro Paulo. O Pastou vai pessoalmente à praça entregar alimentos. O encontro por lá numa sexta-feira no início da noite. Ao me ver acena para mim e avisa que tem comida. Confundiu-me com um “morador de rua”. Vou até ele, apresento-me como sociólogo e falo brevemente sobre minha pesquisa. Muito interessado, o pastor se mostra conhecedor do mundo acadêmico. Relata ser graduado em teologia e mestre teologia e também graduado em psicologia. Quer saber como avalio o mundo atual. Inevitavelmente preciso falar de política com ele. O pastor se mostra tolerante e um tanto quanto progressista. Enquanto conversamos, entrega marmitas a pessoas que passam pela praça. Conta-me que entregar aquelas marmitas é um ato de evangelização e que não necessariamente precisa fazer uma pregação. Afirma ser diferente dos demais pastores e relata não seguir protocolos com os “moradores de rua”. O pastor quis saber de minha história e porque deixei a igreja católica. Relatei alguns motivos e ele me afirmou que a igreja católica, bem como as protestantes são diabólicas. Então fez toda uma retomada da história da igreja, passando pela igreja católica medieval e pela reforma protestante, afirmando que tanto uma quanto outras deixaram de seguir a Jesus Cristo. Advertiu-me por não portar uma máquina fotográfica em mãos e me mostrou a placa da praça, fazendo menção aos evangélicos. Surpreendi-me que na cidade onde Dom Jaime, Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 um bispo católico, é uma das maiores personalidades, ali na praça central da cidade houvesse espaço para os evangélicos24. Falei isso a ele e ele deixou subentendido que os evangélicos também têm força em Maringá. Conversamos mais um pouco. O pastor me convidou para a atividade que realiza as terças-feiras na praça. Disse que eu era convidado e que poderia bater uma fotografia do culto. Disse também que eu era um escolhido de deus. Na próxima terça-feira lá estava eu. Cheguei um pouco antes das oito horas da noite. Não havia ninguém. Circulei rapidamente pelo centro e voltei a praça. Vi que um homem chegava com uma caixa. Outro chegou e começou a varrer o palco e a arquibancada. Em pouco tempo a estrutura estava montada. Som, guitarra, uma luz e alimentos. Membros da igreja cantavam e pregavam no palco. Um jovem acompanhava na arquibancada. Alguns indígenas passaram por ali, receberam alimentos e oração. Outras pessoas passavam e recebiam marmita das mãos do Pastor Pedro. Também havia as opções de água, suco e café. Imagem 5: Igreja Evangélica Assembleia de Deus Madureira realiza atividade religiosa e distribui alimentos aos sujeitos que por ali passam. Fonte: Arquivo Pessoal. Um homem de terno, ao terminar sua mensagem, chamou o pastor Pedro Paulo “para falar o que deus mandar”. Este subiu ao palco, fez uma pregação, na qual salientou que 24 No livro A Igreja que Brotou da Mata, o autor, Pe. Orivaldo Robles (2007), narra o crescimento da Igreja Católica juntamente com o crescimento da cidade de Maringá. Segundo o livro, Dom Jaime, primeiro bispo e arcebispo de Maringá, exerceu papel fundamental na consolidação da igreja e da própria região de Maringá. Silva (2011) aborda criticamente esse processo, dando destaque especial para o processo da construção da Catedral de Maringá (com 124 metros de altura, em formato cônico), relacionando a construção do templo a uma narrativa ufanista sobre a cidade. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 somente Jesus cristo liberta. A arquibancada estava vazia, mas o pastor parecia falar para todos que por ali circulavam e que podiam ouvir. Salientou que “o homem busca preencher seu coração nas drogas, no roubo, na prostituição, mas somente na pessoa de Jesus está a cura, a libertação da pobreza, da prostituição, da miséria, do desemprego. Mas não está em uma igreja, numa denominação, seja qual for. Está na pessoa bendita e única do senhor Jesus Cristo”. Citou Zaqueu, um personagem do evangelho bíblico25, como exemplo de fé e cantou a música “como Zaqueu, quero subir o mais alto que eu puder, só pra te ver ... entra na minha casa, entra na minha vida, Mexe com minha estrutura, Sara todas as feridas, Me ensina a ter santidade, Quero amar somente a ti Porque o senhor é o meu bem maior, Faz o milagre em mim”. Outro grupo evangélico que tive contato a partir da imersão na Praça Raposo Tavares foi o projeto amor26, realizado pela Igreja Batista da Vila Sete. Era uma sexta-feira à noite. Cheguei à praça no final da tarde. Por volta das 18h uma denominação evangélica (Igreja Assembleia de Deus, localizada no Jardim liberdade) distribuía sanduíches e cantava e pregava no palco. Fiquei por ali, interagindo com meus interlocutores. Um pouco mais tarde, um grupo de jovens da Renovação Carismática Católica (RCC)27 passa distribuindo pães com presunto e refrigerante. Contam-me que organizaram um grupo de “pastoral de rua” com jovens de diversos grupos de oração da RCC de arquidiocese de Maringá. Saem as quartas e sextas-feiras para entregarem alimento e fazerem oração com os “irmãos de rua28”. Após a partida deles, chega outro grupo, agora evangélicos. Esses são os batistas. Apresento-me a eles e pergunto sobre o trabalho que realizam. Contam-me então que às sextas-feiras na parte da tarde recebem os “moradores de rua” na sede da sua igreja, onde lhe oferecem banho, roupas e alimentação. Na sexta-feira seguinte fui então à igreja deles conhecer aquele grupo. Fui bem acolhido e inclusive me alimentei da comida que é servida aos “moradores de rua” que os procuram. Os sujeitos de rua começam a chegar por volta das 15h30. Tomam banho (não 25 A figura de Zaqueu costuma ser evocada como exemplo de fé. Diz as escrituras que ele era um homem baixo e, como tal, não poderia ver quando jesus passasse. Zaqueu então subiu numa árvore para poder ver cristo passar. Jesus o viu na árvore e escolheu sua casa para ficar. Muitos ficaram revoltados por cristo escolher a casa de um pecador cobrador de impostos. Zaqueu, por sua vez, segundo o texto bíblico, imediatamente se compromete a dar metade de seus bens aos pobres e devolver quatro vezes mais o que possivelmente fraudou. (Ver Lucas 19,110). 26 Ver http://www.ibv7.com.br/ministerioInterna/7 Acesso em 30 maio 2015. 27 Movimento da Igreja Católica, de caráter pentecostal. 28 Forma como alguns movimentos da igreja católica (entre eles a RCC e a Aliança de Misericórdia) costumam designar sujeitos com experiência de rua. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 obrigatório), recebem uma roupa nova e se alimentam. Um dos religiosos fez uma pregação na qual salienta os malefícios do “vício em crack” e a exclusividade de Deus na “libertação do vício”. Este “irmão” também negocia com sujeitos de rua para os internarem em comunidades terapêuticas. Após todos os sujeitos de rua terminarem seus banhos e refeições e irem embora, os batistas se reúnem em uma sala onde fazem uma oração. Participei também desta atividade. Me explicaram que a forma como eles “oram” é diferente das dos católicos (tinha contado que fui católico). Me explicam a diferença entre “oração” e “reza” e afirmam que a oração deles é espontânea, sem repetição e que simplesmente falam diretamente com deus. Cada um de nós teve um momento para fazer uma prece ou um agradecimento. Na minha vez, agradeço pela acolhida e me disponibilizo para ajudá-los em algo. Eles se mostram contentes com isso. Após o termino da oração, eles foram às ruas distribuir o alimento que sobrara. Os católicos, por sua vez, também buscam difundir sua mensagem entre os sujeitos com experiência de rua. Além do albergue Santa Luiza de Marilac e da ação dos jovens da RCC, a comunidade católica Aliança de Misericórdia realiza influente trabalho de acolhida a “irmãos de rua” em Maringá. Tal instituição é uma velha conhecida minha, desde os idos de 2002/2003 quando ouvíamos as pregações do Padre Antonello, fundador dessa comunidade. Segundo o site da Aliança, “Junto aos trabalhos de evangelização, o Movimento realiza diversas obras sociais junto à população carente das periferias e ruas, conjugando harmoniosamente evangelização e caridade como faces de uma só moeda29”. Em Maringá, além de possuírem uma casa de acolhida para “dependentes químicos e moradores de rua”, um grupo de membros da Aliança, normalmente as quintas-feiras à noite, realiza a pastoral de rua. Tenho acompanhando essa atividade nos últimos meses. Membros da comunidade Aliança de Misericórdia se reúnem em frente à catedral e dali saem em carros para a distribuição de alimentos, oração e convite para o internamento na casa de acolhida. O alimento servido aos “irmãos de rua” pode ser a tradicional marmitex quando é possível prepará-la. A Darcy, como é chamada a senhora que cozinha o alimento, é capaz de fazer até vinte marmitas. Quando não é possível, pizzas são encomendadas e fazem as vezes da marmitex. Sempre fui acolhido muito bem de modo mesmo que me consideram um membro do grupo. Saímos de frente catedral, passamos pela praça localizada em frente às Lojas Pernambucanas de Maringá. Raramente há “irmãos de rua” por ali. O ponto seguinte é a 29 Ver: http://www.misericordia.com.br/portal/movimento.php# Acesso em 05 jun. 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 18 Praça Raposo Tavares. O alimento é entregue ali, normalmente acompanhando de refrigerante. Bate-se um papo com os “irmãos”, um dos membros da aliança os aconselha a deixar a vida nas ruas para trás e informa sobre a possibilidade de acolhida na casa, que é exclusivamente masculina. Em alguns casos, é feita uma oração, às vezes acompanhada de cânticos animados por um violão. Em seguida outros pontos de concentração de “irmãos de rua” da cidade são visitados. Entrega-se o alimento, troca umas palavras e comenta sobre a casa. Oração e pregação formal nem sempre é feita. Os que se dispõem são imediatamente levados para a casa de acolhida, que se localiza em Iguatemi, distrito de Maringá. Nestas incursões, é digno de nota a quantidade de hinos, passagens bíblicas e máximas cristãs proferidas pelos “irmãos de rua” durante o processo de abordagem religioso. Em vários momentos, eles tomam às vezes do religioso que ali se encontra e entoam eles próprios um cântico, uma oração ou uma pregação. Nesses momentos de interação, os sujeitos com experiência de rua costumam também reconhecer seus pecados, acusar o crack de culpado por todos os males de sua vida e relembrar como sua vida era boa antes do início do consumo dessa substância. É sintomático que esse discurso seja operacionalizado diante da liderança religiosa que está ali a lhe oferecer alimentação e possibilidades de internamento numa comunidade terapêutica. É de se supor, embora investigações e reflexões mais demoradas poderão esclarecer melhor isso, que o alimento oferecido, o discurso religioso, e a possibilidade de internamento sejam apropriados pelos sujeitos com experiência de rua como mecanismos utilizados por ele para gestão de sua vida e de seu corpo. Desse modo, a pregação cristã que sai das bocas dos religiosos, sejam católicos ou protestantes, produzem efeitos diferentes nesses e nos sujeitos com experiência de rua. Em ambos os casos, talvez, essa matriz discursiva pode ter efeito importante na manutenção dos respectivos padrões de vida. Considerando que essas investidas religiosas compõem apenas uma parte das instituições cristãs que procuram sujeitos com experiência de rua para evangelização fica mais fácil compreender o motivo pelo qual as representações religiosas figuram tão centralmente no discurso de meus interlocutores. Embora não seja possível explorar nesse momento, é preciso levar em conta que outros espaços que tais sujeitos frequentam, como as prisões e comunidades terapêuticas, também parecem possuir uma forte presença religiosa. Relatos de campo apontam para isso. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 19 CONSIDERAÇÕES FINAIS Objetivei neste artigo apresentar algumas reflexões ainda muito incipientes sobre a etnografia que venho desenvolvendo com sujeitos com experiência de rua na cidade de Maringá-PR. A aposta pela pesquisa por meio da imersão etnográfica tem permitido o contato e a observação de elementos da vida social dificilmente aprendidos por outros métodos, assim como o alargamento do estudo do fenômeno para além de grandes centros urbanos. Parto da aposta de que a produção social em torno dos chamados “moradores de rua” é muito mais ampla do que a produção de um aparato gestionário desse grupo social. A partir da observação e da descrição de discursos e práticas encontrados na participação do cotidiano de sujeitos localizados na Praça Raposo Tavares, centro da cidade de Maringá, intentei argumentar que aquele é um espaço de fronteiras onde diversas identidades sociais são produzidas, mobilizadas e transformadas. Sujeitos se situam nas fissuras que se abrem entre a “rua” e a “casa” e transitam entre um espaço e outro. Daí o entendimento de que a expressão sujeitos com experiência de rua é capaz de permitir a análise de um maior número de atividades que se desenvolvem nas ruas. É também a partir da participação das sociabilidades desse espaço, que pude perceber o quanto discursos cristãos são mobilizados pelos sujeitos com experiência de rua. Diversas instituições cristãs seguem ao encontro desses grupos com alimentos, pregações religiosas e o convite para o internamento em suas respectivas instituições terapêuticas. Os sujeitos com experiência de rua, por sua vez, parecem receber tais investidas e processá-las de modo particular. Provavelmente, enquanto a casa de acolhida ou comunidade terapêutica figure para os líderes religiosos como espaços de tratamento e conversão, para os sujeitos com experiência de rua, tais lugares aparecem como espaços para “tirarem um descanso” e gerirem seus corpos e sua vida nas ruas. É importante, contudo, assinalar que tais reflexões são inteiramente provisórias. Somente o avanço da pesquisa e o aprofundamento dessas reflexões podem confirmá-las ou refutá-las. REREFÊNCIAS ALIANÇA de Misericórdia. A Aliança de Misericórdia. Disponível em: <1 Ver: http://www.misericordia.com.br/portal/movimento.php#> Acesso em 05 jun. 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 20 AYRES, Marcus. Prefeitura de Maringá começa a demolir a Rodoviária Velha. Gazeta do Povo. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-ecidadania/maringa/prefeitura-de-maringa-comeca-a-demolir-a-rodoviaria-velha4ovswwqqp5zaj5s7gx9yhotam>. Acesso em 30 mai. 2015 BIONDI, Karina. Tudo Junto e Misturado: imanência e transcendência no PCC. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos, 2009. CEFAÏ, Daniel; VEIGA, Felipe Berocan; MOTA, Fábio Reis. Introdução. In: CEFAÏ, Daniel; MELO, Marco Antonio da Silva; MOTA, Fábio Reis; VEIGA, Felipe Berocan (Org). Arenas Públicas: por uma etnografia da vida associativa. Niteroi: editora da UFF, 2011. DAS, Venna. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Los Angeles; London: University of California Press, 2007. DE LUCCA, Daniel. A Rua em Movimento: Experiências Urbanas e Jogos Sociais em Torno da População de Rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). 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Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2012. ROBLES, Orivaldo. A Igreja que Brotou da Mata: 50 Anos da Diocese de Maringá. Maringá-PR: Dental Press, 2007. RUI, Taniele Cristina. Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack. Tese (Doutorado em Antropologia social). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2012. SILVA, Jonas Jorge da. O templo e a cidade: memórias sobre a construção da catedral de Maringá. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-graduação em ciências Sociais, Universidade Estadual de Maringá, 2011. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 1 POLÍTICAS DE ACESSO À EDUCAÇÃO SUPERIOR E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES SOCIAIS: para além dos conflitos sociais? Márcia Lopes Reis - UNESP1 Proyecto Accedes/Alfa GT 3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política RESUMO Os efeitos que as políticas de cunho neoliberal adotadas, principalmente, a partir da década de 1990, tiveram na centralidade do Estado, bem como numa das suas formas de compreensão, como parte das lutas de classes. Na área da educação, estes ideais marcam a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDBEN, bem como o Plano Nacional de Educação – PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC. Tais dispositivos legais, ao lado de um conjunto de políticas afirmativas tendem a revisitar as classes sociais como categorias analíticas para utilizar as „minorias sociais‟ como foco de inclusão social. Esse processo histórico, mas recente, teria iniciado no primeiro mandato de FHC, com o debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil. Em 1996, constituiu-se um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo governo e por representantes dos movimentos sociais, que definiu as ações afirmativas como medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado espontânea ou compulsoriamente, visando eliminar desigualdades historicamente acumuladas. Assim, esse trabalho objetiva compreender as políticas de ações afirmativas de ingresso no ensino superior, a partir dos princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro, analisando-as como política pública que inclui outras categorias analíticas que não somente as classes sociais. Introdução Historicamente, as políticas públicas tem resultado de forças sociais contraditórias, o que faz com que a forma e o conteúdo das mesmas estejam diretamente associadas à conjugação de fatores estruturais e conjunturais do processo de construção do país. Especificamente, no Brasil, A educação, na Constituição Federal de 88, é um direito humano, o qual visa superar as desigualdades do cenário social, promovendo a cidadania. No entanto, é no contexto histórico e político das últimas décadas, que as instituições de ensino público, e de modo mais específico à universidade pública brasileira, vêm utilizando a categoria de „minorias sociais‟ em seus processos de expansão e inclusão. 1 Doutora em Sociologia - UnB (1999), Mestre em Educação - UnB (1994), Especialista em Supervisão e Currículo, UFMT (1991), graduada em Pedagogia pela AEUDF (1987). Realizou estágio sênior na Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha, 2011) e realizou estudos na Universidade Católica de Argentina (Buenos Aires, 2013) sobre o tema das políticas de inclusão e permanência na educação superior. Professora assistente doutor da UNESP na Faculdade de Ciências em Bauru. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 Para compreender o contexto dessa mudança no contexto brasileiro, deve-se retomar o cenário das políticas neoliberais adotadas, principalmente, a partir da década de 1990. Essas ações tiveram como centralidade a reforma do Estado, e na área da educação, estes ideais marcam a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDB e o Plano Nacional de Educação – PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC. Tais dispositivos legais apontaram para a desresponsabilização do Estado com relação à educação pública, ao lado da ampliação do setor privado, com abertura para entrada de recursos privados para manutenção e ampliação das instituições públicas, bem como a transferência de recursos públicos para esse setor privilegiado, o privado. É neste período - durante o primeiro mandato de FHC – que tem início o debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil, numa sobreposição aos debates sobre o acesso das classes menos favorecidas à universidade. Deixam de lado, neste momento, importantes estudos como de Boudon (1981) em A desigualdade de oportunidades ou Ponce (1981) em Educação e Luta de Classes ou, ainda, Althusser (1987) em Aparelhos Ideológicos de Estado. Em 1996, constituiu-se um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo governo e por representantes dos movimentos sociais, que definiu as ações afirmativas como medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas. Diante deste cenário, pretende-se compreender as políticas de ações afirmativas de ingresso no ensino superior, a partir dos princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro, analisando-as como política pública que inclui outras variáveis que não somente as classes sociais, que demanda uma retomada. 1. Afinal, do que estamos falando quando tratamos das classes sociais como categoria de análise? Desde o advento da vida em sociedade, tem sido possível descrever a divisão da sociedade em estratos ou camadas. Na modernidade, foi possível conhecer outra abordagem da divisão social, baseada no conceito de classes sociais ainda que estejamos acostumados a lidar com o sinônimo de camada ou estrato. No entanto, neste artigo, o conceito de classe social tal como é abordado na literatura sociológica foi, inicialmente, desenvolvido pelo pensador alemão Karl Marx (1878). Esse conceito parte de premissas próprias, segue critérios específicos e sua Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 aplicação leva a conclusões diferentes das que podem ser encontradas nos estudos que analisam a sociedade segundo o modelo descritivo da estratificação social. Para Marx, a história da humanidade é "a história da luta de classes". Em suas análises, a classe social é acima de tudo uma categoria histórica. Ao se referir às duas grandes classes do capitalismo - a burguesia e o proletariado - está designando duas forças motrizes e concretas do modo de produção capitalista, um sistema econômico historicamente determinado. O próprio Marx, no entanto, não reivindicava a descoberta das classes sociais nem da luta de classes, mas sim a "demonstração de que a existência das classes só se liga a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção". Marx atribuía uma importância particular aos conflitos entre as classes. Para ele, são esses conflitos que constituem o principal fator de mudança social. Seriam esses conflitos, portanto, que imprimiriam movimento e dinamismo à sociedade. Por outro lado, as classes sociais mudam ao longo do tempo, conforme as circunstâncias econômicas, políticas e sociais. As contradições que mantêm entre si forjam e estruturam a própria sociedade. Quando os conflitos chegam a um ponto insuportável, ocorre uma revolução que transforma a sociedade, modificando o modo de produção. Foi o que ocorreu, como vimos, com o feudalismo: uma nova classe (a burguesia) derrubou um velho estamento (a nobreza), abrindo caminho para o desenvolvimento das forças produtivas e para a afirmação da sociedade capitalista. A Revolução Francesa de 1789 foi uma das expressões dessa transformação. Mas a nova sociedade capitalista, na concepção de Marx, já começou dividida em duas grandes classes conflitantes: a burguesia (proprietária dos meios de produção) e o proletariado, ou classe operária, que só tem de seu a força de trabalho. Lenin (1874-1924), líder da Revolução Russa de 1917 e um dos grandes pensadores marxistas, definiu o sistema de classes da seguinte forma: "As classes são grupos de homens relacionados de tal forma que uns podem apropriar-se do trabalho de outros por ocupar posições diferentes num regime determinado de economia social". Segundo essa definição, os homens e mulheres que formam as classes sociais se diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na produção. Alguns desempenham cargos de direção e são proprietários de fábricas e empresas de todo tipo (meios de produção); outros, apenas executam as tarefas determinadas pelos chefes em troca de um salário: são os Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 trabalhadores. Dessa forma, é a propriedade privada dos meios de produção que constitui a base econômica da divisão de nossa sociedade em classes. Assim, a teoria das classes não se limita a descrever as divisões da sociedade em camadas, como faz o modelo da estratificação social, mas procura explicar como e por que elas ocorrem historicamente. As classes sociais só existem a partir da relação que estabelecem entre si. Dessa forma, além de antagônicas, elas são necessariamente complementares. A burguesia, por exemplo, não pode existir sem o proletariado. Da mesma forma, no começo da formação do capitalismo, o proletariado precisou da burguesia para obter emprego e se afirmar como classe. Na previsão marxista, porém, essa dependência da classe operária em relação à burguesia acabaria no momento em que o avanço das forças produtivas entrasse em conflito com as relações burguesas de produção. Nesse momento, segundo Marx e Engels, teria de ocorrer uma revolução, por meio da qual a classe trabalhadora se libertaria, destruindo a dominação burguesa e substituindo o modo de produção capitalista pelo modo de produção socialista. Essa previsão, contudo, não se confirmou. Ao contrário do que esperavam Marx e Engels, a primeira revolução proletária se excetuarmos a rápida experiência da Comuna de Paris, em 1871 ocorreu em um país “atrasado” (a Rússia, em 1917), no qual as forças produtivas capitalistas ainda não haviam se desenvolvido plenamente. Talvez por isso mesmo, o Estado criado por essa revolução, a União Soviética, não conseguiu sobreviver a pouco mais de sete décadas de competição com os países onde as forças produtivas capitalistas continuaram a se desenvolver - Estados Unidos, Japão, Alemanha, entre outros. Não obstante esses fatos históricos, a contribuição de Marx para o pensamento sociológico e historiográfico contribui à compreensão da condição de modernidade. Tanto a crítica ao capitalismo realizada por ele quanto a teoria da luta de classes continuam a ser importantes instrumentos de análise do mundo contemporâneo, desde que não se pretenda atribuir a elas um valor de verdade absoluta que renegan histórias de vida mostram que alguns indivíduos, numa sociedade capitalista aberta, podem chegar a ocupar diferentes posições sociais - ou estratos - durante sua existência. Assim, pessoas que integram o estrato de baixa renda (camada C), podem eventualmente ascender ao estrato de renda média (camada B) ou, mais raramente, ao de renda alta (camada A). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 Em contrapartida, pessoas da camada A podem ter sua renda diminuída, passando a integrar as camadas B ou C. Do ponto de vista sociológico, os dois fenômenos são caracterizados como manifestações de mobilidade social. Mobilidade social é a mudança de posição social, ou seja, de status, de uma pessoa (ou grupo de pessoas) num determinado sistema de estratificação social. Quando as mudanças de posição social ocorrem no sentido ascendente ou descendente na hierarquia social, dizemos que a mobilidade social é vertical. Quando a mudança de uma posição social a outra se opera dentro da mesma camada social, diz-se que houve mobilidade social horizontal. Assim, a mobilidade social vertical pode ser: ascendente ou de ascensão social - quando a pessoa melhora sua posição no sistema de estratificação social, passando a integrar um grupo economicamente superior a seu grupo anterior; descendente ou de queda social - quando a pessoa piora de posição no sistema de estratificação, passando a integrar um grupo economicamente inferior. Nesse contexto, o filho de um operário que, por meio do estudo, passa a fazer parte da classe média é um exemplo de ascensão social, ou de mobilidade social ascendente. Em contrapartida, a falência e o consequente empobrecimento de um comerciante é um exemplo de queda social, ou mobilidade social descendente. Assim, tanto a subida quanto a descida na hierarquia social são manifestações de mobilidade social vertical. 2. O conceito de classes em movimento - como funcionaria a mobilidade social nas democracias? O fenômeno da mobilidade social varia de uma sociedade para outra. Em algumas sociedades ela ocorre mais facilmente; em outras, praticamente inexiste no sentido vertical ascendente. É mais fácil ascender socialmente nos Estados Unidos, por exemplo, do que no interior da Índia, ainda dominado pela estratificação social em castas. A mobilidade social ascendente é mais frequente numa sociedade democrática aberta, que estimula e enaltece a escalada rumo ao topo de indivíduos de origem humilde - como nos Estados Unidos - do que numa sociedade de tradição aristocrática, como a Inglaterra. Neste caso, temos duas sociedades democráticas, uma com tradições de sociedade estamental (a Inglaterra), a outra sem essa tradição (os Estados Unidos, país que não conheceu o feudalismo, pois foi formado entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 Entretanto, mesmo na sociedade capitalista mais aberta, a mobilidade social vertical não ocorre de maneira igual para todos os indivíduos. A ascensão social depende muito da origem de classe de cada indivíduo, ou mesmo de sua origem étnica. No Brasil, as pessoas brancas pertencentes às camadas sociais mais elevadas têm mais oportunidades e condições de se manter nesse nível, ascender ainda mais e se sair melhor do que as originárias das classes inferiores, sobretudo se são negras. Isso pode ser facilmente verificado no caso dos jovens que pretendem fazer o curso superior. Aqueles que, desde o início de sua vida escolar, frequentaram boas escolas e, além disso, estudaram em cursinhos preparatórios de boa qualidade, têm mais possibilidades de aprovação nos vestibulares das universidades públicas e privadas do que os jovens provenientes das classes de baixa renda. 3. As políticas públicas e as políticas sociais como transição para a inclusão das minorias: A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer novos princípios e diretrizes para as políticas públicas realizadas pelo Estado brasileiro, definiu parâmetros precisos ao processo de elaboração e fiscalização das diferentes políticas setoriais. Não obstante, quase vinte anos pós-promulgação da Constituição Federal, é possível identificar alguns componentes que aproximam e/ou distanciam a efetividade desses novos princípios e diretrizes. A universalização do atendimento proposta no sistema de proteção social brasileiro, por exemplo, encontra-se, objetivamente, muito aquém do pretendido por esse princípio constitucional. A descentralização político-administrativa, tanto no tocante a formulação, quanto no financiamento e no controle social, encontra resistências político-burocráticas apesar de avanços na normatização de áreas como a saúde, a educação e a assistência social. Sem a pretensão de esgotar esse tema, cabe lembrar que as políticas públicas, em particular àquelas denominadas de políticas sociais em uma sociedade capitalista, remetem à necessidade de termos que compreender que essas políticas apresentam em sua constituição uma complexidade histórica, uma vez que surgem em uma íntima relação com as características históricas de cada realidade social em que emergem. Talvez, por isso, seja necessário contextualizar as políticas públicas, haja vista que resultam de forças históricas contraditórias. Portanto, a forma e o conteúdo das políticas Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 públicas estão diretamente associados a conjugação de fatores estruturais e conjunturais de cada processo histórico de um determinado país. Desse modo, a particularidade mais comum nas políticas sociais, independente no país que são formuladas, é que nascem no cerne de um conflito econômico-político e social em que as contradições sociais se avolumam ao ponto de gerarem uma mudança na estratégia adotada pelos governos para manterem a sua governabilidade. Isto quer dizer que as políticas sociais têm em comum um marco histórico que identifica o seu registro de nascimento. Um marco que sinaliza uma conjuntura social em que os conflitos sociais não podem mais ser enfrentados unicamente com os instrumentos tradicionais para a solução das questões sociais: as ações repressivas. A história econômica, política e social de cada país desenha o momento em que as políticas sociais passam a ser adotadas como estratégia de governabilidade. Assim, as políticas sociais adquirem a coloração específica das conjunturas históricas de cada país. Por isso mesmo, a forma como as políticas sociais foram implantadas e operacionalizadas no Brasil tem o seu desenho próprio. Também nesse contexto, as políticas públicas de educação brasileiras tenham tido uma marca explicitamente repressiva. O Estado atuava junto a sociedade como aquele que tinha que garantir a ordem e a paz social. A implicação desta conotação é de que as políticas públicas eram organizadas a partir de uma total desconsideração das questões sociais que assolavam a realidade nacional. Por outro lado é o próprio processo histórico que faz com que o papel das políticas públicas mude, haja vista as inúmeras lutas sociais que colocaram, e ainda colocam em cheque as ações repressivas como estratégia para o enfrentamento da chamada questão social. Desse modo, a questão social, constituída em torno do pauperismo e da miséria das massas, representou o fim de uma concepção idealista de que a sociedade, por si só ou, quando muito, acossada pela polícia, pudesse encontrar soluções para os problemas sociais. A partir desse momento histórico, o Estado passa a assumir uma característica em especial, o seu papel regulador, ou seja, passa a intervir diretamente nas questões de natureza econômica, política e social da sociedade para manter a sua legitimidade. Isto evidencia outra característica comum nas políticas sociais que é destacada por Behring (1998, p. 168 ), uma vez que passaram a integrar “a estratégia global anticrise do capital após 1929”. Isto quer Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 dizer que as políticas sociais foram adotadas nos países capitalistas como parte de uma estratégia de superação das crises cíclicas do capital. É assim que as políticas públicas, especialmente as políticas sociais, se tornaram importantes estratégias na manutenção das relações de poder que o Estado representa. Por isso mesmo Galper (1986) destaca que as políticas sociais nos países de Estado de Bem Estar tem duas funções básicas, uma função econômica já que os recursos gastos nas políticas sociais contribuem para a manutenção das taxas de lucro do capital, e uma função de legitimação, uma vez que mantém uma imagem de preocupação do Estado com os interesses da classe trabalhadora e, assim, garantem a conservação do controle social. 4. A introdução das minorias no debate nacional: Mais próximo da contemporaneidade, podemos destacar uma série de medidas políticas, econômicas e sociais adotadas pelo governo brasileiro, que desde a década de 90 tem repercutido significativamente na forma e no conteúdo das políticas públicas: as medidas neoliberais do Consenso de Washington da ampla abertura comercial; da desregulamentação dos fluxos financeiros; da privatização das empresas estatais; da ampla reforma administrativa do Estado (para acabar com estabilidade no emprego público e para abrir os serviços públicos a iniciativa privada); e da reforma dos direitos sociais. Essas medidas têm gerado fortíssimos reflexos no conjunto dos direitos sociais reconhecidos pela constituição federal de 1988, pois se constituíram em uma nova investida do capital no momento em que outra crise cíclica atingia o sistema. A solução encontrada para manter a lucratividade exigia, entre outras coisas, o desmonte dos sistemas de bem estar social que, segundo os neoliberais, eram os grandes responsáveis pelos gastos públicos e as crises fiscais que os Estados passavam. Assim, “a reestruturação produtiva vem sendo conduzida em combinação com o ajuste neoliberal, o qual implica a desregulamentação de direitos, o corte dos gastos sociais, deixar milhões de pessoas à sua própria sorte e „mérito‟ individuais” (BEHRING, 1998 p.180). Nesse conjunto de elementos contemporâneos, as políticas sociais são taxadas ideologicamente como políticas paternalistas que não contribuem para a autonomia do indivíduo e impedem o estabelecimento de uma “saudável desigualdade” geradora de uma “necessária concorrência” (SADER e GENTILI, 1995). Desta forma: Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 A política social entra no cenário como paternalismo, como geradora de desequilíbrio, como algo que deve ser acessado via mercado, e não como direito social. Daí as tendências de desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social pelo Estado, o que, aos poucos, vai configurando um Estado mínimo para os trabalhadores e um Estado máximo para o capital (BEHRING, 1998 p.186). Como consequência, as políticas sociais assumem a orientação da focalização enquanto finalidade de ação, o que reforça o deslocamento do princípio da universalização dos direitos inscrito da CF de 1988. O resultado direto do conjunto de forças que atacam e destroçam as políticas sociais no Brasil é a instituição de uma compreensão e uma conduta passiva que gradativamente aceita a argumentação de que grande parte dos serviços públicos deveria “ter como clientela somente as camadas mais pobres da população, que encontram-se desorganizadas e possuem uma pequena capacidade de pressão política” (ARAÚJO, 1998 p.23). É a consolidação de uma cultura que acredita que os serviços públicos devem ser destinados para os pobres. Essa cultura corrobora com as ações políticas do neoliberalismo que destina parte significativa da população para os serviços privados. Esse panorama cria aquilo que Sposati (1995) chama de inclusão excludente, ou aquilo que Albuquerque (1986) refletindo sobre o poder em instituições chama de reconhecimento e desconhecimento. Esses binômios expõem que o reconhecimento do usuário como sujeito de direitos no momento que ele é incluído em serviços públicos descartáveis, de péssima qualidade, ou por meio do processo imputador de uma ressocialização virulenta junto ao usuário, na realidade, acaba excluindo o cidadão atendido de sua condição política enquanto cidadão e também gera um desconhecimento de sua expressão inteira como ser humano, pois passa a ser identificado e reconhecido a partir de sua carência social ou de um número identificador do atendimento recebido. É no percurso das mudanças da forma e do conteúdo das políticas públicas que podemos encontrar pistas ao mapeamento da construção efetiva da cidadania. Isso ocorre porque a mudança e ampliação/diminuição das políticas públicas está diretamente associada a mudança e ampliação/diminuição do próprio conceito de cidadania. Para Campos (2001 p. 13) a cidadania significa o conjunto e a conjugação de direitos civis, sociais e políticos assegurados aos membros de uma determinada sociedade. Tais direitos adquirem efetividade através Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 do exercício das liberdades individuais, da participação política e do acesso a bens de consumo e à proteção social pública. Isto quer dizer que a medida que a cidadania vai sendo expandida ou diminuída em decorrência do conjunto das lutas sociais, é possível encontrar uma estreita relação com a expansão ou diminuição das políticas públicas, uma vez que o reconhecimento de direitos de cidadania implica em uma correlação direta com a organização, a sistematização e a implementação das políticas públicas pelo Estado. Em função dessa compreensão, pode-se dizer que as políticas sociais são: o conjunto de ações públicas, governamentais ou não, destinadas à satisfação de necessidades coletivas. Estas ações públicas integram o elenco de estratégias utilizadas pelo Estado com vistas à reprodução da força de trabalho e a preservação de ordem sócio-econômica e política vigente (CAMPOS, 2001 p. 13). Assim, a compreensão da complexa relação entre as políticas públicas e a cidadania é relevante, pois “embora o Estado não seja condição suficiente para a emergência e consolidação de um determinado padrão de cidadania, somente a esfera pública tem se revelado, historicamente capaz de reduzir os impactos competitivos do mercado” (CAMPOS, 2001 p.13) Desse modo, as lógicas que orientam o mercado e a cidadania são ao mesmo tempo distintas e conflitantes. Talvez, isso queira dizer que aceitar as ideias que defendem a condição de um cidadão que pode e deve encontrar no mercado os meios para a sua reprodução social é, no mínimo, uma posição ingênua. A cidadania é um produto construído em um ambiente contraditório em que a organização social e a participação cidadã são fundamentais para o reconhecimento e a legitimação dos indivíduos enquanto cidadãos. É por isso que deve ser vistas com muita reserva as adjetivações dadas constantemente para o cidadão, como por exemplo, o de cidadão consumidor, uma vez que estas qualificações tendem a destituir o caráter político que está contido no cerne do conceito de cidadão e de cidadania. Devemos então perguntar: qual é o ambiente que nutre e alimenta a própria cidadania e, por correspondência fortalece o papel do cidadão no controle das políticas públicas? Obviamente que esse lugar é o ambiente democrático. Isto quer dizer, que um ambiente democrático tem um grande efeito sobre a constituição de um Estado de direitos, que por princípio, se organiza para atender as necessidades sociais das maiorias sociais. Em parte, por isso, os direitos sociais são aqueles que Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 representam a via por meio da qual a sociedade penetra no Estado, procurando: conhecê-lo, controlá-lo e interferir na sua estrutura administrativa, nos seus processos de legitimação e regulação, nas suas prioridades e objetivos (PEREIRA, 2002 p.34). Não obstante o processo de conquista dos direitos cidadãos, não é homogêneo e linear, o que faz com que o reconhecimento da cidadania nem sempre ocorra sob a perspectiva da universalidade. É assim que, na história dos direitos de cidadania no Brasil, “muitos dos direitos sociais foram implantados através de um viés corporativista, visando atender as demandas dos segmentos mais organizados dos trabalhadores e com maior capacidade de pressão política, e, portanto, não se tornaram universais” (ARAÚJO, 1998 p. 22). A força do corporativismo nas políticas sociais brasileiras deixou muitas cicatrizes, uma vez que tendeu a deslocar a questão da universalidade dos direitos sociais. Uma vez deslocada a questão da universalidade, as políticas sociais organizadas para operacionalizar direitos sociais puderam assumir configurações e formatações de menor alcance, com qualidade questionável e com uma fragmentação irresponsável. É isso que fez com que Sposati (1995) afirmasse a existência do componente “assistencial, como mecanismo presente nas políticas sociais” (p.30). O componente assistencial presente nas políticas sociais desloca o direito e reitera o usuário como assistido, beneficiário, ou favorecido. Isso quer dizer, que o cidadão, neste formato de política social, não é reconhecido como tal, mas como um indivíduo que tende a receber um serviço público sem reconhecê-lo como direito, como público. Desta forma, “a existência formal de direitos não garante a existência de um espaço público” e de uma “sociabilidade política que a prática regida pela noção de direitos é capaz de criar” (TELLES, 1999 p.71). Ou seja, o reconhecimento formal do direito, a despeito de sua relevância e importância não é condição suficiente para a sua efetivação. Especialmente quando somos uma nação em que a presença do autoritarismo fincou raízes fortes na imagem individual e coletiva de um Brasil (CHAUÍ, 2001) que se aquiesce e se submete as várias ações governamentais depreciativas dos direitos dos cidadãos. 5. O caminho para as minorias como categoria de análise e de intervenção: Por isso, o caminho que vai do direito formal a efetivação deste pode ser entrecortado com atalhos e desvios que acabam confiscando o direito social, seja porque os instrumentos Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 construídos para dar operacionalidade ao direito (leis, decretos, burocracia institucional, procedimentos operativos, e outros) podem dificultar o acesso em vez de torná-lo exequível, seja porque o campo institucional em que o direito é operacionalizado pode formar um processo de ressocialização em que a sociabilidade realizada pelo usuário acaba submetendoo conformadamente ao poder avassalador da instituição para que ele não perca o “direito” ao serviço oferecido. O movimento democratizador que precedeu a Constituição Federal de 1988 foi produto de uma intensa mobilização de diferentes segmentos sociais, que procuravam sedimentar no processo constituinte propostas de cunho democrático. As organizações da sociedade civil que participaram intensamente do processo da constituinte brasileira traduziram a conjunção de lutas que amadureceram qualitativamente e se ampliaram quantitativamente desde o regime militar. A unificação das demandas localizadas se fez ao redor de setores problemáticos do social. Embora houvesse um cruzamento intenso de formas organizacionais de setores das camadas médias (lutas das mulheres, dos estudantes, dos ecologistas, dos negros etc.) com setores das classes populares (lutas por equipamentos coletivos, bens e serviços públicos, pela habitação e pelo acesso à terra), havia alguns denominadores comuns: a construção de identidades através das semelhanças pelas carências; o desejo de se ter aceso a direitos mínimos e básicos dos indivíduos e grupos enquanto cidadãos; e fundamentalmente, a luta contra o status quo predominante: o regime militar (GOHN, 1991, p. 13). A construção de uma identidade comum, a partir das carências sociais, de certa forma, embasou o esforço em torno da luta pela consolidação de direitos básicos do cidadão, voltados a gravar na nova Constituição Federal os fundamentos de uma moderna cultura social: a cultura dos direitos sociais. Assim, a atual Constituição brasileira, como produto de interesses conflitivos, em decorrência das pressões organizadas de grupos, instituições e segmentos identificados com os interesses populares, trouxe para a esfera legal a consolidação de diversas reivindicações das classes populares. Em que pese o congresso constituinte ter sido marcado por um perfil conservador, observou-se que este incorporou (sob pressão) demandas e reivindicações democráticas. De certa forma legislaram sob o signo de um novo tempo. Por isso, a Constituição de 1988 inaugurou medidas importantes como na Seguridade, na Assistência Social, na Criança e Adolescente, e outros. Mais tarde, outros documentos regulatórios como Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 o Estatuto do Idoso e, especificamente, no campo da educação, as políticas de cotas para negros ou para os alunos oriundos da escola pública reconfiguram o potencial teórico que as classes possuem por si para a compreensão da realidade nacional em tempos de contemporaneidade. À guisa de conclusão Nesses tempos, falando em ações afirmativas, dentre os vários efeitos e análises que se possam aprofundar, parece haver uma importância particular o fato de despertar a universidade para o cumprimento de sua função social de incluir a todos. Nesse sentido, a obrigação inadiável de formar futuros professores capacitados para combater o racismo em si próprios, na sala de aula e na escola. Esta questão precisa ser incluída no currículo dos cursos de pedagogia e nas licenciaturas, além dos clássicos estudos sobre as lutas de classes, ainda que sejam parte da explicação dessa condição. Parece não se trata apenas de uma abordagem teórica e abstrata dos males do racismo. Trata-se de capacitar os professores para diagnosticar situações de preconceito e exclusão na prática da sala de aula, para buscar formas de combatêlo e conscientizá-los da importância, para os estudantes, do estímulo de um professor que reconhece as contradições sociais e vai além das clássicas formas de vislumbrar a sociedade desde o prisma da luta de classes. Desta forma, a universidade contribuirá para sanar o mal pela raiz, isto é, no próprio ensino fundamental. Assim, a conjunção dos estudos sobre as classes sociais, bem como sobre o sentido das „minorias sociais‟ contribuirá para diminuir a desigualdade educacional no Brasil, para além das situações de conflitos entre grupos que, antes de serem antagônicos, são complementares e devem ser contemplados nas sociedades que se identificam como democráticas. Referências ALBUQUERQUE. J. A. Guilhon. Instituição e Poder – 2ª ed. 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Naira Luan Sousa e Silva (UFPI) 1 [email protected] FAPEPI/CAPES GT 3 - Conflitos sociais, instituições e políticas públicas Desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu a presidência da República em 2003, ampliaram-se as políticas publicas de enfrentamento à pobreza e à miséria e os canais para a participação da sociedade civil sob o ideal da democracia participativa. Apesar do aspecto otimista desse acontecimento, vários dilemas tem se apresentado no âmbito das relações entre Estado e Sociedade Civil, relacionadas, por exemplo, à autonomia da ação coletiva organizada. Nessa perspectiva, esse trabalho fornece uma discussão acerca das conquistas e amarras que se apresentam com a institucionalização do movimento de economia solidária no Piauí através das políticas públicas. Parto da hipótese de que o encaminhamento da economia solidária a partir das políticas públicas desfigura o propósito de superação do modo de produção capitalista porque a possibilidade de geração de trabalho e renda sobrepõe-se ao ideal de projeto revolucionário socialista. Nesse exercício analítico, em primeiro lugar, recorro às formulações teóricas de Melucci (2001), (1989) sobre os movimentos sociais nas sociedades complexas a fim de entender os significados dos processos revolucionários no cenário atual. Também participam da discussão aqui apresentada Scherer-Warren (1999), Bocayuva (2003), Silva; Oliveira (2012), Silva (2012) e Singer (1998). Em segundo lugar, apresentarei a trajetória e as estratégias do Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina (FMEPS) dos atores no interior desse espaço. 1 Introdução Este artigo tem o propósito de contribuir com a discussão acerca do processo de institucionalização do Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária no município de Teresina – PI, priorizando o debate em torno da relação do movimento de economia solidária com a experiência de política pública na capital piauiense2. Atualmente, as transformações no mundo do trabalho nas sociedades capitalistas apontam números preocupantes em relação ao desemprego e a informalidade até de trabalhadores tidos como “qualificados”. Isso tanto em épocas de crise como em épocas mais 1 Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI - ingresso no ano de 2014), atua na investigação sobre o fenômeno do movimento social de economia solidária em Teresina – Piauí. Aluna bolsista da FAPEPI/CAPES. Graduada em Administração pela UFPI/Picos desde 2012. 2 O estudo constitui parte das primeiras reflexões sobre o fenômeno de economia solidária no Piauí a partir da análise da rede das relações entre os sujeitos sociais coletivos que participam dos espaços dos fóruns de economia solidária em Teresina, objeto de minha dissertação de mestrado, ainda em andamento. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 prósperas. As tendências “destrutiva e excluidora” do capitalismo3 expostas por Paul Singer são percebidas sem muito esforço pelos indivíduos (SINGER, 1998, p. 117). E é esse cenário que obriga aqueles trabalhadores “excluídos” do mercado de trabalho a buscarem alternativas para “inclusão”, as quais podem vir por vias do empreendedorismo individual ou coletivo, ou ainda através das lutas reivindicatórias para a ampliação das práticas solidárias entre homens e mulheres no âmbito da comunidade. Na contramão dessa lógica, uma solução não capitalista para o desemprego e exclusão social recebe determinada parcela de investimento governamental: o empreendedorismo coletivo ou grupo de atividade econômica solidária, em que as relações patrão de empregado e lucro se desfazem e os trabalhadores protagonizam uma forma de produção que se estabelece sobre os alicerces da solidariedade. Nessa perspectiva, nosso estudo interessa-se pelo empreendedorismo coletivo, forma de produção que se contrapõe à economia tradicional4; e que se orienta pelos princípios de autogestão e repartição igualitária dos “lucros”, a economia solidária. Dada à amplitude dos aspectos que podem ser investigados sobre o fenômeno em questão – produção, comercialização, crédito, consumo, políticas públicas, etc; deter-nosemos sobre os processos articulatórios desenvolvidos no interior do Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina – Piauí. Acreditamos que esse espaço comporta uma série de atores coletivos que interagem protagonizando o movimento social de economia solidária e, além disso, todas as ideias potenciais de reconhecimento político passam pelas discussões realizadas no e através do fórum. Participam das discussões três segmentos de atores sociais: os gestores públicos, as entidades de apoio e fomento e os empreendimentos solidários. 3 Paul Singer (1998) observa a capacidade do sistema capitalista em destruir a cada ciclo, durante as crises, os ofícios consolidados pelos homens como aconteceu depois da Revolução Industrial na qual, trabalhos manuais foram substituídos por máquinas (tendência destruidora). A tendência excluidora, por sua vez, refere-se à acentuação do desemprego e com ele da pobreza o que consequentemente amplia a exclusão social percebida, não só no que diz respeito à renda, mas também ao status social. 4 Aqui nos referimos à economia tradicional no sentido das práticas econômicas hegemônicas, ou seja, correspondem às atividades exercidas pelos agentes econômicos, relacionadas ao modo de produção capitalista. Essas atividades são frequentemente e socialmente aceitas como atividades formais de trabalho, fato que rechaça os modos de produção não capitalistas ao campo da informalidade, apesar de suas bases estenderem-se anteriormente à revolução capitalista, por ter seu fundamento nos princípios do comunismo primitivo, como por exemplo, àquele vivido nas tribos indígenas intocadas pelo modelo civilizatório europeu; e, da impossibilidade intrínseca à natureza estrutural do sistema capitalista de abrigar todos os homens e mulheres na “formalidade” do mercado de trabalho (ARROYO; SCHUCH, 2006). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 Os fóruns de articulação de economia solidária são constituídos por uma pluralidade de sujeitos sociais coletivos e fornecem um rico material empírico à análise do movimento social de economia solidária, desde documentos produzidos pelos atores durante a realização e mediação de debates em torno das questões relacionadas ao marco legal e integração de políticas públicas, até informações sobre a formação e o assessoramento prestado aos empreendimentos solidários. A partir desse estudo, acreditamos ser possível uma contribuição ao fenômeno dos movimentos de economia solidária, isso porque nos propomos alargar a compreensão da atuação dos movimentos e compreensão do sentido da economia solidária no Piauí. Para nós, essa pesquisa na temática da economia solidária coloca-se também como uma oportunidade de contribuir na divulgação dos princípios e práticas de resistência dos trabalhadores dessa outra economia. Portanto, esperamos que nosso presente trabalho sirva de referência aos estudiosos que desejem compreender as especificidades do movimento de economia solidária no Piauí, a partir de sua atuação na capital Teresina, no que diz respeito à dinâmica dos atores sociais no Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina. 2 Os novos movimentos sociais e os canais de participação para a sociedade civil No Brasil, é possível distinguir duas fases na trajetória dos movimentos sociais que mereceram diferentes interpretações sociológicas: “a emergência heroica dos movimentos” (na década de 1970 até início da década de 1980) e a institucionalização da participação dos movimentos (início da década de 1980 até os dias atuais). Durante a primeira fase, os estudos ressaltavam a espontaneidade e a autonomia dos movimentos sociais, o potencial que esses tinham para construir uma “nova cultura política”, por outro lado, na segunda fase, os cientistas sociais tiveram dificuldades em assimilar qual tipo de processo de diálogo se estabelece entre movimento social e agências públicas (CARDOSO, 1994). Hoje é necessário enfrentar a questão da cidadania como algo que se constrói na relação entre Estado e sociedade civil e dessa forma investigar como se dá a incorporação dos direitos coletivos pelo Estado, uma vez que a “a esfera pública é responsável pelo atendimento ou pela resposta a esses direitos, o que não quer dizer que o faça, mas significa que isso já está legitimado” (CARDOSO, p. 90, 1994). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 Nesse sentido, os movimentos sociais devem ser examinados como sistemas de ação e, portanto, a análise deve valorizar as relações das ações concretas dos sujeitos e não o que os movimentos dizem de si. Dessa forma: A ação tem de ser considerada como uma interação de objetivos, recursos e obstáculos, como uma orientação intencional que é estabelecida dentro de um sistema de oportunidades e coerção. Os movimentos são sistemas de ação que operam num campo sistêmico de possibilidades e limites. É por isso que a organização se torna um ponto crítico de observação, um nível analítico que não pode ser ignorado. O modo como os atores constituem sua ação é a conexão concreta entre orientação e oportunidades e coerções sistêmicas (MELUCCI, 1989, p. 52). Para Melucci (1989) os participantes da ação coletiva não orientam as suas ações somente por orientações econômicas, ou seja, calculando benefícios próprios, mas buscam também estabelecer vínculos de identidade e solidariedade. Além disso, os conflitos sociais contemporâneos não são apenas políticos, partilham de aspectos culturais mutantes que aumentam as incertezas das sociedades complexas. O desenvolvimento capitalista tem requerido uma contínua intervenção nas relações sociais, nos sistemas simbólicos, nas identidades individuais e nas necessidades humanas. Nas sociedades complexas os bens materiais “são produzidos e consumidos com a mediação dos gigantescos sistemas informacionais e simbólicos” (MELUCCI, 1989, p. 58). E dessa forma, os movimentos sociais trabalham a dimensão do conflito, da solidariedade e o rompimento dos limites do sistema, esse último corresponde ao aspecto aceitável das variações em nível sistêmico. Em relação à esfera da ação dos movimentos contemporâneos, “as lutas podem produzir algumas mudanças na política, mas com muita frequência o conflito reaparece em outras áreas da estrutura social” (MELUCCI, 1989, p. 57). Levam um projeto de sociedade, e, portanto, como comportamento antagônico não pode ser inteiramente integrado, uma vez que pregam novos modelos culturais alternativos. Nessa perspectiva, diante dos desafios relacionados com a globalização da economia atual, dois modelos emergem como proposta de enfrentamento aos problemas sociais, políticos e econômicos: o neoliberalismo e outro alternativo a ele dirigido por um conjunto de sujeitos sociais que constituem a sociedade civil. E esse “modelo alternativo” é possível graças ao sentimento de indignação compartilhado pelos sujeitos frente a uma multiplicidade de problemas, tais como, a ideia de exclusão social, a fragilidade das práticas da cidadania e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 democracia e ainda os processos de massificação da cultura global (SCHERER-WARREN, 1999). Melucci (2001) nos aponta um caminho para análise dos movimentos sociais, explicando alguns princípios necessários para tal: perceber a ação coletiva como expressão de um conflito e não resposta a uma crise, o conflito está associado a uma disputa permanente pelos recursos valorizados para atores que se opõem. Nesse sentido, a solidariedade é uma característica indispensável no interior de um movimento social, a partir dela os indivíduos se reconhecem uns nos outros, o que é importante para que o caráter de unidade seja mantido pelo grupo. A ação coletiva pressupõe a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema no qual a ação se realiza, uma crítica ao sistema hegemônico, podendo estabelecer-se como movimento reivindicativo, movimento político ou movimento antagonista5. 3 O Movimento de Economia Solidária em Teresina – Piauí Ao estabelecer a relação do movimento de economia solidária com o movimento dos trabalhadores é necessário considerar a autonomia dos trabalhadores (propriedade coletiva dos meios de produção) como elemento indispensável para que se processe uma verdadeira transição das formas de produção capitalista para as formas coletivas, em que haja uma revolução cultural dirigida de baixo para cima pelos trabalhadores (BOCAYUVA, 2003). Na proposta da economia solidária enquanto movimento social e parte de uma revolução social socialista6 “fica aberta a questão clássica de se as sementes plantadas no terreno do modo de produção capitalista podem se expandir até o ponto de ruptura” (BOCAYUVA, 2003, p. 25). Nosso estudo não tem a finalidade de fazer previsões acerca das possibilidades ou impossibilidades da economia solidária como implante socialista, mas pretende discutir as interações, entre os diversos atores do movimento nas relações de articulação desses sujeitos em um canal de participação política como são os fóruns. 5 O movimento reivindicativo supõe a rejeição das regras do jogo e a luta por vantagens negadas ao grupo, no entanto, tende a assumir também uma ação propositiva, no sentido de produção de normas; o movimento político, por sua vez, atua para dirimir as diferenças de poder decisório no esquema político, visando, com isso, ampliar os canais de participação política; o movimento antagonista discute o objetivo da produção econômica e o próprio desenvolvimento humano (MELUCCI, 2001). 6 O sentido da revolução social socialista está relacionado com o processo de mudança entre as formações sociais na qual se estabeleça a hegemonia do modo de produção socialista. A implantação de instituições anticapitalistas como cooperativas e sindicatos indica que essa revolução está em curso, sem, contudo ser reconhecida com êxito (SINGER, 1998). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 Diante dessa abordagem, questiona-se o modo de construção do movimento social de economia solidária no Piauí, ao considerar que entre os principais motivos para criação dos empreendimentos solidários no Nordeste aparecem os seguintes: alternativa ao desemprego (46%), complementação de renda dos sócios (40%), acesso a financiamentos (34%), obtenção de maiores ganhos (33%), e possibilidade de gestão coletiva (26%) (SENAES, 2009). Através desses dados podemos perceber em partes, como se forma a unidade do movimento de economia solidária no Nordeste, quais motivos levam os diferentes atores a partilhar de uma causa em comum. O que desejamos entender está pra além dessa informação, pois analisaremos o processo de organização dos atores bem como suas estratégias e práticas, ou seja, os resultados das suas crenças no movimento de economia solidária no Piauí. O Piauí é um estado do nordeste brasileiro marcado por necessidades econômicas e sociais, isso pode ser comprovado pela sua posição no ranking estadual de desenvolvimento humano, onde ocupa a 24° (vigésima quarta) posição, acima apenas dos estados do Pará, Maranhão e Alagoas, respectivamente, conforme Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil em levantamento realizado no ano de 2010 (ATLAS BRASIL, 2015). Nesse cenário, a economia solidária recebe relativa atenção na gestão pública. Na esfera estadual a consolidação do Fórum Estadual de Economia Popular e Solidária, no ano de 2004, representou um grande avanço no debate das políticas públicas voltadas para as demandas dos empreendimentos econômicos solidários. Outra conquista significativa do movimento foi a aprovação da Lei Ordinária Estadual n. 6.057, de janeiro de 2011, na qual se institui a Política Estadual de Fomento à Economia Solidária, onde o Estado se compromete com a geração de trabalho e renda a partir da cultura empreendedora baseada nos valores da economia solidária (SILVA, 2012). Em relação a gênese dos empreendimentos solidários no Piauí, é possível demarcar dois modos pelos quais os tais se formaram: ora através da gênese autônoma, ora mediante gênese induzida. Quanto a essa última destaca-se a atuação da Secretaria de Assistência Social e Cidadania (SASC) através do Programa Economia Solidária em Desenvolvimento, executado durante o triênio 2004/2006. No referido programa foram aplicados R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) com a implantação inicial de 180 grupos, aonde se sobressaiam as atividades de costura, bordados e artesanato. Desses grupos, o percentual de 55% assimilaram os valores da economia solidária, no entanto permanecem os desafios relacionados às práticas Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 da economia solidária no Estado, desde a capacitação dos grupos até a comercialização dos produtos e serviços (SILVA, 2012). No Piauí são 1.472 (mil quatrocentos e setenta e dois) empreendimentos econômicos solidários em 149 (cento e quarenta e nove) municípios, sendo que apenas em Teresina, capital piauiense, foram identificados 124 (cento e vinte e quatro) empreendimentos solidários (SENAES, 2009). É importante ressaltar que dois dos municípios do estado possuem leis de fomento e regulamentação da economia solidária: São João do Arraial e Pedro II. Esses municípios também vivem a experiência da implantação da moeda solidária, a moeda do primeiro município foi chamada de cocais e a segunda, mais recente, denominada opala. No ano de 2013, foi criada na capital piauiense a Secretaria Municipal de Economia Solidária de Teresina (SEMEST), essa atende dezesseis Centros de Produção, oito Lavanderias Comunitárias, o Shopping da Cidade, o Polo Cerâmico Poti velho, Artesões, Grupos Culturais, Hortas Comunitárias, Bordadeiras, Mestres Santeiros, Shopping da Natureza e Desenvolvedores de Tecnologia da Informação (TERESINA, 2015). No Plano Plurianual 2014/2017, através do Programa Implantação da Economia Criativa e Solidária no contexto das atividades econômicas do município de Teresina, a Prefeitura de Teresina destinará uma quantia de R$ 36. 492. 392, 00 (trinta e seis milhões, quatrocentos e noventa e dois mil, trezentos e noventa e dois reais) Ao analisarmos o perfil dos atores atendidos pela SEMEST visualizamos um número expressivo de sujeitos que não atuam em conformidade com os fundamentos da economia solidária, empreendedores individuais, uma vez que, suas atividades econômicas não possuem caráter coletivo, prevalecem relações de trabalho assalariado. No entanto, por meio de provocação da própria SEMEST junto ao Fórum Estadual de Economia Popular e Solidária, foi criado, em 2014, o Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina (FMEPST), tratado na secção a seguir. 4 Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina (FMEPST) Instalado em 20 de fevereiro de 2014, o Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina – FMEPST, resultado da provocação da Secretaria Municipal de Economia Solidária de Teresina (SEMEST) junto aos integrantes dos movimentos de economia solidária participantes do FEEPSPI. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Os objetivos do FMEPST são: fortalecer os empreendimentos econômicos solidários, difundir o conceito e a prática de economia solidária no município de Teresina, e, representar o movimento diante da sociedade civil e dos órgãos governamentais. Para tanto, o FMEPST está organizado por uma Plenária Municipal, uma Coordenação Geral, uma Secretaria Executiva e Grupos Temáticos de Trabalho. Atualmente o FMEPST está composto por 50 (cinquenta) instâncias participativas, dentre as quais, 37 (trinta e sete) são empreendimentos econômicos solidários, 12 (doze) entidades de assessoria e fomento, e 1 (um) gestor público. O FMEPST está sediado dentro da própria Secretária Municipal de Economia e Solidária (SEMEST). Conforme quadro abaixo: Quadro 1: Instâncias Representativas do FMEPST Fonte: Secretaria Executiva do FMEPST, 2015. Empreendimentos Econômicos Solidários – EES Lavanderia Planalto Uruguai Associação de Micro Empreendedores do Shopping da Cidade Centro de Produção Monte Horebe Associação dos Horticultores do São Joaquim Associação de Costureiras do Parque Wall Ferraz Associação dos Mini e Pequenos Produtores Centro de Produção Dirceu Centro de Produção Vila Maria Lavanderia Comunitária Santa Isabel Grupo Cultural Afro Condart Grupo de Mulheres Centro de Produção Buenos Aires Grupo de Mulheres Bordadeiras do Parque do Piauí Associação Teresinense dos Profissionais em Olarias Associação das lavanderias Morro da Esperança Lavanderia Planalto Ininga Pastoral do Povo de Rua Fazenda da Paz Centro de Produção Promorar TECEART Centro de Produção Mão Santa Oportunidade de Renda Solidária Centro de Produção Dirceu I Associação Cultural Reisado do Piauí Associação dos Fieis de Santa Joana Dar’c Brincando de Boneca Mistura de Arte Centro de Produção Parque Wall Ferraz Horticultores Beira Rio Associação Filantrópica Oficina do Amor Bioart Associação de Moradores do Mocambinho Ponto de Cultura Intercâmbio e Arte Comunidade Kolping de Buenos Aires Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 Centro de Produção do São Joaquim Associação dos Micro Empreendedores Individuais – Vila Cidade Jardim Entidades de Apoio e Fomento – EAF Setorial de Economia Solidária do Partido dos Trabalhadores Rede Social Solidária Instituto Camilo Filho Instituto Samara Sena Núcleo de Economia Solidária da Santa Maria da Codipi Rede de Educadores e Educadoras de Economia Solidária do Estado do Piauí Comitê Lagoa do Norte Rede de Mulheres Produtoras do Piauí Instituto de Negócios do Piauí Rede de Educação Cidadã Comunidade Kolping Centro Cultural Aroeira Poder Público – PP Secretaria Municipal de Economia Solidária de Teresina Apesar do pouco tempo em que o FMEPST está instalado no município, percebe-se uma expressiva participação dos atores sociais do movimento de economia solidária no mesmo, uma vez que dos 124 empreendimentos solidários mapeados na capital piauiense, 37 possuem assento no FMEPST, o que significa um percentual de aproximadamente 30% dos empreendimentos com assento. Sobre a percepção que os empreendimentos solidários possuem acerca da importância de participarem de um fórum de economia solidária, recortamos a seguinte fala de uma empreendedora solidária: O positivo do grupo cultural AFROCONDART e outros empreendimentos fazer parte do fórum municipal desde sua emancipação é a questão de que o fórum tem toda uma preocupação de consolidar as políticas de economia solidária e as políticas de economia solidária são constituídas por todos os integrantes do fórum municipal (que integrantes são esses?) são entidades de fomento e empreendimentos. E o fórum tem uma vantagem porque nós podemos estar construindo nosso plano e garantindo nesse plano as necessidades hoje que os empreendimentos solidários enfrentam junto a uma cidade, estado, país, capitalista, onde por meio do fórum nós estamos aí até a secretaria de economia solidária reivindicando de fato os recursos destinados pra o desenvolvimento desses empreendimentos que tem suas dificuldades na questão de recursos, na questão de sua produção, mas, a importância de estar em um fórum é a troca de experiência. (...) Então o fórum é esse espaço de troca de experiência, o espaço de crescimento de política mesmo de economia solidária, não adianta dizer que economia solidária, fazer economia solidária sem saber de sua importância hoje né, que nós estamos aí que é uma nova economia, é um contraponto ao capitalismo, então nós estamos fazendo ela, acreditando. E o fórum com certeza é o espaço que possibilita essa conversa, esse diálogo, as coisas acontecerem, a gente se reunir em plenária pra gente poder avaliar, pra gente poder começar, pra gente poder encaminhar nosso plano, nossas necessidades. E aí os gestores por meio dessa organização vão respondendo de acordo com a força do movimento, quanto mais se produz, quanto mais tem algo pra colocar no mercado algo de diferente, então isso sensibiliza que o poder público condicione recurso para Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 atender as políticas de economia solidária (ENTREVISTA, FÁTIMA ZUMBI – GRUPO CULTURAL AFROCONDART, 2015). A entrevistada relata em seu depoimento dois aspectos relevantes para a compreensão da construção do movimento de economia solidária no município de Teresina através do FMEPST: 1) a necessidade de consolidar as políticas públicas de economia solidária na cidade através do diálogo, da cobrança direta às agências públicas; e, 2) a possibilidade de troca de experiências entre os empreendedores solidários no espaço do fórum. Convidamos o representante da SEMEST que possui assento no FMEPST para compartilhar conosco, os principais dilemas na relação do poder público com o movimento de economia solidária em Teresina: No momento a secretaria não pode deixar de ver a questão da venda ambulante, do shopping da cidade, das pessoas que trabalham no calçadão, das pessoas que trabalham no troca-troca, que é uma questão cultural, uma questão de memória. A gente não pode afrontar, a política de economia solidária não é pra afrontar, tanto no âmbito do fórum, do conselho, ou da secretaria. A política de economia solidária é pra dialogar. É um processo, nada pode ser mudado assim da noite pro dia (ENTREVISTA – CLÁUDIO RODRIGUES – SEMEST, 2015). O entrevistado procura justificar os motivos que fazem com que a SEMEST atenda também os empreendedores individuais, uma questão cultural. Dessa forma, na opinião do entrevistado é necessário estabelecer um processo de diálogo com esses atores que ainda não atuam no Campo da Economia Solidária. 5 Conclusão Desde a década de 1990 existe uma intersecção Estado – Movimento Social que não deve ser desconsiderada, essa relação oportuniza novas formas de organização e atuação dos movimentos sociais e foi justamente nesse intercâmbio que o movimento de economia solidária se fortaleceu como uma política institucionalizada, a exemplo da organização no Rio Grande do Sul. Assim, ao analisar o movimento de economia solidária verificaremos a ideia de que a articulação desse movimento com o Estado é uma espécie de “cooptação” (SILVA; OLIVEIRA, 2012). No entanto, existe nessa relação Estado – Movimento Social uma imbricação complexa. No caso do movimento de economia solidária percebe-se que os novos canais de participação provocam uma determinada “simbiose entre movimento social e governo democratizante”, onde a “estrutura do Estado potencializa a ação dos movimentos e vice- Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 versa”, “não há contradição desde que uma esfera não subordine à outra” (CRUZ, 2002, p. 123). No caso do movimento de economia solidária no Piauí, percebemos pelo exposto que a economia solidária configura-se como uma estratégia de desenvolvimento econômico local no estado, por isso, integra o quadro dos programas de políticas públicas e políticas sociais de combate ao desemprego, no entanto, nessa relação se estabelece uma contradição inerente: uma estrutura estatal capitalista desenvolvendo uma política que empodera a classe trabalhadora. Diante disso, percebe-se que a estratégia da política pública de economia solidária é incompleta, porque a intenção e a interpretação que o Estado faz da própria equivale tão somente ao mecanismo de geração de trabalho e renda, ou seja, o que existe é uma preparação técnica dos empreendimentos solidários para que desfrutem de relativa viabilidade econômica. Então, é no Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina que os atores que compõe o movimento de economia solidária tem a oportunidade de preparar politicamente os empreendimentos solidários com vistas a alcançar tanto a viabilidade econômica como também a solidariedade interna. Dessa forma, esse espaço público terá a função não de institucionalizar o movimento, mas “fazer a sociedade ouvir suas mensagens e traduzir suas reivindicações na tomada de decisão política, enquanto os movimentos mantêm sua autonomia” (MELUCCI, 1989, p. 64). Referências ARROYO, J. C. T; SCHUCH, F. C. Economia Popular e Solidária: a alavanca para um desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. BOCAYUVA, Pedro Cláudio Cunca. Transição, revolução social socialista e economia solidária. In: Proposta. Jun/Ago 2003. p. 17-27. BRASIL. ATLAS BRASIL. Disponível em http://atlasbrasil.org.br/2013/ranking CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. A trajetória dos movimentos sociais. 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Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas Autogestão e Participação Acionária – ANTEAG. São Paulo: Todos os bichos, 2009. SILVA, Marcelo Kunrath; OLIVEIRA, Gerson de Lima. A face oculta(da) dos movimentos sociais: trânsito institucional e intersecção Estado-Movimento – uma análise do movimento de Economia Solidária no Rio Grande do Sul. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 13, no 28, set./dez. 2011, p. 86-124. SILVA, Naiara de Moraes e. As garantias constitucionais trabalhistas e a política pública de economia solidária em Teresina – PI. 2012. 142 fls. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas). Universidade Federal do Piauí. Teresina, 2012. SILVA, Naiara de Moraes e; CHAVES, Oriana; LIMA, Solimar Oliveira. Economia Solidária no Piauí: a solidariedade na reinvenção do espaço público. In: Informe econômico a. 11, n. 23, nov. 2010. SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. TERESINA. PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESINA. REVISTA DA SEMEST. Economia Criativa e Solidária. 54 fls. 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 1 GT 3 - CONFLITOS SOCIAIS, INSTITUIÇÕES E POLÍTICA – SESSÃO 2 COORDENADXR E DEBATEDXR: DR. GABRIEL DE SANTIS FELTRAN 17 DE JUNHO DE 2015 – 14H LOCAL: AUDITÓRIO 3 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE DO ESTIGMA AO ORGULHO, ENTRE O PROBLEMA E A SOLUÇÃO: A REINVENÇÃO DA FAVELA E DOS FAVELADOS DE VILA PRUDENTE Kassia Beatriz Bobadilla - UNIFESP1 [email protected] Agência Financiadora: CAPES GT 3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política Resumo O presente trabalho visa discutir as construções sociais sobre a favela e os favelados e de como isso repercute sobre os processos identitários vivenciados pelos moradores da Favela de Vila Prudente. A partir das transformações ocorridas nessa favela e em seu entorno, busco acompanhar os deslocamentos dessas representações sociais. Para isso, privilegio a análise do período pós-1990, quando a favela passa a ser positivada e celebrada pelo mercado, indústria cultural e organizações sociais, e de como esses processos são apropriados e reificados pelos próprios favelados. Perpassando a trajetória e experiência de um jovem morador da favela, mostro como esse “jovem empreendedor” vem vivenciando esses processos identitários e apropriando-se de construções sociais sobre ele, seus pares e seu local de moradia. Para isso, mostro como esse jovem promove a ressignificação da favela e do que é “ser favelado” através de suas práticas e apropriações, sejam essas no lazer ou como forma de “ganhar a vida”. 1 Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (2011), com Especialização em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2014). Trabalhou como Analista de Pesquisas Socioeducacionais no Instituto Unibanco (2012-2014), com ênfase nos estudos sobre juventude e ensino médio no Brasil. Atualmente, desenvolve o Mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 Introdução Engendrada nos interstícios entre os bairros da Mooca, Ipiranga e Vila Prudente está localizada a favela mais antiga de São Paulo, a Favela de Vila Prudente 2. Vista historicamente pelos signos da precariedade, pobreza e ausência, essa, assim como outras favelas paulistanas, foi alvo de inúmeras tentativas de remoção e campanhas para sua eliminação entre as décadas de 1960 e 1980. Não só presente no imaginário social, Valladares (2005) chama atenção para um possível ciclo de estigmatização das favelas também no meio acadêmico, as quais tendiam a ser retratadas nos estudos e pesquisas apenas como território da pobreza e dos problemas sociais. Consequentemente, o termo “favelado”, alcunhado ao habitante da favela, também ganharia uma conotação estigmatizante e pejorativa, sendo empregado para designar um morador pobre, imerso em problemas e desajustes sociais. Como observa Chalhoub (1996), isso corroborou com a fixação da ideia de que as favelas seriam habitadas por “classes perigosas”. Problemas ou marcas de uma “desorganização social” em territórios habitados por classes pobres também foram concepções iniciais caras aos estudos da Escola de Chicago, norteados por uma concepção ecológica da estrutura urbana3. A partir da década de 1990, a Favela de Vila Prudente passou a ser interpretada sob um novo discurso. Carregando o símbolo de resistência das lutas por moradia empreendidas durante a década de 1980, a favela também passou a ser vista como território de “potencialidades” e “oportunidades”, atraindo o interesse de organizações filantrópicas e “empreendedores sociais” do emergente mundo do Terceiro Setor. Projetos sociais e iniciativas de ONGs, igrejas e empresas passaram a fazer parte do cotidiano dos moradores da favela. O jovem favelado tornou-se a peça central dessa engrenagem do Terceiro Setor, sendo-lhe atribuída uma posição ambivalente: de “protagonista” e de objeto de intervenção dessas ações. 2 Sobre o surgimento dos primeiros núcleos de favela em São Paulo, ver TASCHNER (2001) e LARA (2012) 3 Sobre os principais estudos da Escola de Chicago ver HANNERZ (1980); JOSEPH (2005). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 Dando centralidade à trajetória de um jovem morador da favela, utilizo-a como dispositivo analítico para compreender a dinâmica própria dessas formas de ação coletiva na favela e seus deslocamentos ao longo do tempo. Enfatizo nesse ponto os agenciamentos de meu interlocutor, bem como de diversos jovens da favela, ao promover ressiginifcações e reapropriações no uso de termos e categorias que uma vez lhe foram atribuídos e impostos, por atores externos à favela. Orientada pelas lições da Escola de Manchester, tenho me atentado em apreender e dar dimensão de como a noção de identidade é algo situacional. Sob essa perspectiva busco extrapolar o campo da análise de representações, para focar “a vida social „real‟ na qual as normas e valores frequentemente contraditórios entre si, seriam utilizados de acordo com a racionalidade do agente social em situações sociais concretas” (FRY, 2011, p. 5). A discussão aqui proposta busca articular dados empíricos da etnografia que venho realizando entre os moradores da favela4, com a produção acadêmica mais recente sobre o tema. Para isso, faço uso de alguns referenciais teóricos sobre favelas cariocas e periferias paulistanas por reconhecer nessa literatura a existência de alguns pontos consonantes com o território estudado. Detenho-me, porém, a não sobrepô-los à especificidade dessa favela e à realidade percebida e observada. O presente texto está dividido em três parte. Num primeiro momento busco apresentar um breve histórico das principais transformações vivenciadas pela favela e por seus moradores, no que concerne às transformações locais no espaço urbano e também a incidência de políticas macroestruturais, como as reformas neoliberais na década de 1990 e as políticas de redistribuição de renda nos anos 2000. A segunda parte do texto dá focalidade justamente a esse recorte temporal e aproxima as lentes para a análise da trajetória do jovem Cristiano. Na última seção do texto, a partir da trajetória 4 Minha inserção em campo se deu em julho de 2013, na ocasião em que realizava uma pesquisa sobre as trajetórias de lideranças comunitárias da favela. Atualmente, no âmbito do mestrado, e sob orientação do Profº Drº Lindomar Carvalho de Albuquerque, meus esforços da pesquisa estão direcionados a compreender as formas e os significados de ação política entre gerações de moradores da Favela de Vila Prudente. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 de Cristiano, passo a discorrer sobre as experiências de uma geração de jovens moradores da favela com esse território e de como se dão os processos identitários nesse meio. O Favelão em transformação e a identidade do favelado em constante construção A Favela de Vila Prudente, ou Favelão, como popularmente alcunhada por seus moradores, está localizada na zona leste de São Paulo, em uma região também delimitada como “centro expandido5”. A favela ocupa uma área de 38.241 m² às margens da movimentada Avenida Luiz Ignácio de Anhaia Mello e tangenciada lateralmente pela Rua Dianópolis. Com base em informações fornecidas pelo Movimento de Defesa do Favelado (MDF), estima-se que lá residam cerca de 9.000 moradores em pouco mais de 1.200 imóveis, contabilizando barracos de madeira e casas de alvenaria. Percorrer as transformações do Favelão é colocar a cidade em perspectiva e tê-la como plano de referência6 para os deslocamentos e práticas dos diversos atores que aventam esse território e que por assim acabam produzindo-o por meio de seus atos e mobilidades. Como enunciou Machado da Silva (1967), a favela não é uma comunidade isolada e, portanto, está intrinsicamente ligada às condições estruturais da própria sociedade global. Isso torna-se evidente quando percebemos que a própria origem dessa 5 O Centro Expandido da cidade de São Paulo é uma área localizada ao redor do centro histórico da cidade, e delimitada pelo chamado minianel viário, composto pelas marginais Tietê e Pinheiros, as avenidas Salim Farah Maluf, Afonso d'Escragnolle Taunay, Bandeirantes, Juntas Provisórias, Presidente Tancredo Neves, Luís Inácio de Anhaia Melo e o Complexo Viário Maria Maluf. 6 Venho atentando-me à questão e à necessidade de considerar o território estudado como “plano de referência” – e não como “pano de fundo” – da pesquisa que venho desenvolvendo. Por entender que sob essa ótica, posso situar as práticas dos atores ali presentes e colocá-las em perspectiva numa relação intrínseca com a produção do próprio território e suas dinâmicas. Essa reflexão foi formulada a partir da fala da Profª Vera Telles, durante sua participação na II Oficina de Estudos Urbanos, realizada em setembro de 2014 e fruto da parceria entre os núcleos de pesquisa GEAC (USP), o Na Margem (UFSCar) e o LEU (CPDOC-FGV). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 favela coincide com a crise de habitação que atingiu a cidade no final da década de 1940 (BONDUKI, 1994). O morar na favela era tido como algo provisório pelos muitos migrantes nordestinos que ali se fixaram; um período temporário para se estabelecer plenamente na grande metrópole. O Estado corroborava com essa concepção ao lidar com a favela, considerando-a como um “problema” e tratando as condições de moradia ali existentes como ilegal e/ou irregular. Nessa tônica, a imprensa da época contribuía com o processo de estigmatização daquele território e de seus habitantes, como mostram as notícias a seguir: “Mil e um rumores em o fim da mais imunda favela de São Paulo: Vai ser extinta a favela de Vila Prudente. Da miséria à delinquência, apenas um passo – Tristemente famosa: a mais perigosa, a mais sórdida, a mais imunda e a mais criminosa das favelas de São Paulo.” (Folha da Manhã, 14/05/1955) “Centenas de casos de gripe na Favela de Vila Prudente: Seria o caso de isolarse a favela? Caso isso não venha a ser feito, os moradores daquela favela, embora curados da doença, poderão constituir-se em veículos ativos de sua transmissão em toda a cidade”. (Folha da Manhã 24/09/1957) A vivência comunitária era intensa no Favelão, brigas e solidariedade coexistiam entre os moradores. A arte de conviver cotidianamente numa relação de proximidade e repetição geraria o que Mayol (1994) denominou de “engajamento social” entre vizinhos de bairro, nesse caso, da favela. Os favelados passariam a construir uma identidade em comum a partir desse cotidiano que compartilhavam e dos laços de parentesco e vizinhança que constituíam. Cabe ressaltar que isso não impedia que outras identidades continuassem latentes entre os favelados, principalmente aquelas que expressavam seus locais de origem como “nortistas”, “nordestinos”, “paraíba”, “pernambucano”, etc. As manifestações e expressões culturais trazidas por esses migrantes também contribuíram para construção da identidade dos favelados. As festas e celebrações, sejam elas religiosas ou não, demarcariam o pertencimento e clivagens entre os moradores, que em certo momento também seriam diluídas tornando-se uma expressão cultural “dos favelados” de forma geral. A própria escola de samba da favela, a Cabeções de Vila Prudente7, é um retrato de como essas manifestações populares 7 A G.R.C.E.S.Cabeções de Vila Prudente existe há quase 50 anos e atrai desde então diversos moradores da região para os ensaios e festas no barracão. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 possibilitavam aos favelados afirmarem-se positivamente e estreitarem os laços com os demais moradores da cidade, mesmo que somente no período da festividade Para Machado da Silva (2002), é a condição de moradia dos favelados que pautaria a construção de uma identidade coletiva a partir da qual passariam a atuar politicamente. Como também analisou no caso das periferias paulistanas, D‟Andrea (2013) demonstra que a situação urbana concreta vivida pelas classes pobres articularia alguns interesses em comum, como a permanência e regularização de suas moradias ou minimamente a melhoria das condições de vida naquele território. Dessa forma, os favelados passaram a perceber que frente a segmentariedade da máquina pública e dos entraves do diálogo com o Estado, a constituição de uma identidade que articulasse seus interesses comuns lhe proporcionaria espaço e reconhecimento político. A expressão desta identidade tornar-se-ia possível com a fundação da Associação de Amigos da Favela de Vila Prudente no final da década de 1950 e, mais intensamente, com o surgimento do Movimento de Defesa do Favelado (MDF) na década de 1970. A presença do termo “favela” e “favelado” no discurso público dessas organizações fortaleceria ainda mais a ideia de singularidade e especificidade das demandas desse território e de seus moradores, em contraste com os demais habitantes da cidade. Foi na década de 1980, em que as lutas dos movimentos sociais urbanos ganharam espaço e quando algumas conquistas foram alcançadas por meio da atuação do MDF. Como relatam algumas lideranças do movimento, a cada conquista aflorava entre eles o sentimento de pertencimento à favela e o orgulho de se identificar como favelado, associado nessa situação e contexto histórico como um ator político e importante integrante das lutas sociais da esquerda8. Se por um lado as atividades mobilizatórias estavam a pleno vapor, por outro, a criminalidade e violência acirravam-se na favela durante o mesmo período. Esse feito do aumento da violência nos anos 1980, justamente nas comunidades onde também era maciça a atuação dos movimentos sociais, seria atribuído à ação dos justiceiros9. Uma 8 Sobre as lutas sociais empreendidas pelas classes populares e intelectuais da esquerda na cidade de São Paulo durante a década de 1980, ver SADER (1988) e KOWARICK (1994). 9 Sobre a ação dos justiceiros nas periferias paulistas ver MANSO (2012). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 solução homicida e de limpeza social em que os justiceiros, apoiados por lideranças e policiais militares, chegavam a se unir em defesa dos “trabalhadores” promovendo círculos de vingança e assassinatos na calada da noite. A atuação de uma família de justiceiros na Favela de Vila Prudente perpetuou até o final da década de 1990, período em que também prevalecem os relatos de disputas sangrentas pelas biqueiras e acerto de contas entre traficantes na região10. O jornal do bairro noticiava frequentemente as mortes e prisões realizadas na favela que disseminavam a ideia do favelado como indivíduo potencialmente criminoso ou conivente com a ação dos traficantes. Como nota Caldeira (2000), o aumento da criminalidade e violência nas favelas e periferias foi acompanhado pelo aumento dos abusos e violências cometidos pelas instituições de segurança, principalmente, nas ações arbitrárias das polícias militar e civil. Ainda na década de 1990, o país enfrentou uma forte recessão econômica e situação de desemprego estrutural que foram sentidas de forma violenta pelas famílias mais pobres. As reformas neoliberais levaram à fragilização das conquistas sociais dos anos anteriores e promoveram uma retração das funções estatais no campo das políticas sociais. Os relatos de alguns moradores sobre esse período são marcados por histórias de desemprego, “bicos” e outros tipos de trabalho informal em que até as crianças da família passam a ajudar. Nesse cenário fortalecem-se as iniciativas de ONGs e das áreas de responsabilidade social de empresas11 que viram na favela o lócus e nos favelados o público-alvo para projetos educacionais, culturais e de inserção no mercado de trabalhos. Como mostrarei na seção a seguir, a presença e atuação desses novos atores na favela atravessará décadas, trazendo implicações e incidindo sobre as trajetórias dos jovens favelados. 10 Em dezembro de 1999, a imprensa noticia existir uma “guerra do tráfico” na região de Vila Prudente. Traficantes disputam alguns pontos de venda de droga na região e na extinta Favela do Paraguai; a qual se tornaria palco de uma grande e trágica chacina que contabilizou a morte de 18 pessoas, entre as quais estavam mulheres e crianças familiares de traficantes. Em 2006, os acusados de participar da chacina foram condenados há mais de 100 anos de prisão. 11 Sobre o tema, ver Tatiana de Amorim Maranhão, “O sentido político das práticas de responsabilidade social empresarial no Brasil, em Roberto Cabanes et al, Saídas de emergência, cit., p. 237-256. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Já nos anos 2000, a melhoria das condições de vida dos moradores foi proporcionada pelo fortalecimento e ampliação de programas sociais, sobretudo os de transferência de renda. Um efeito marcante dessas políticas seria ampliação do acesso e poder de consumo de bens e serviços pelas classes populares. Esse período também é marcado pelo reordenamento das atividades criminais nas periferias e favelas paulistanas, agora centralizadas nas mãos dos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC)12 que passaram a operar a gestão da ordem local e reivindicar para si o monopólio do uso da violência nesses territórios. A “paz entre ladrões” promoveu uma significativa queda na taxa de homicídios13 em bairros periféricos e favelas. A última das mortes por “acerto de contas” no Favelão ocorreu em 2003, quando um antigo traficante é assassinado e o controle do tráfico de drogas é centralizado na mão de quatro jovens moradores da favela. O bairro de Vila Prudente, já concebido como parte da periferia da zona leste de São Paulo14 também sofreu intensas mudanças na última década, com um boom de empreendimentos imobiliários de alto padrão e de obras de mobilidade urbana na região. Tais elementos tendem a refutar qualquer traço que a caracterizaria como região periférica. Essas transformações da favela e do seu entorno, inerentes à própria dinâmica do espaço urbano, acabam incidindo de alguma forma sobre os projetos de vida e mobilidade dos favelados, implicando assim, “num processo único de rearranjo das condições de existência” (GRAFMEYER, 1994, p.89). Se por um lado estarem próximos de áreas com um poder aquisitivo maior proporciona aos favelados vantagens em termos de infraestrutura urbana e oportunidades de trabalho, tornava-se mais visível os contrastes da segregação e das desigualdades sociais da favela e de seus moradores com o entorno. Os interesses do mercado imobiliário pelo território da favela também 12 Para citar apenas algumas pesquisas pioneiras obre o tema, ver FELTRAN (2011a); BIONDI (2010) e MARQUES (2010). 13 Para uma análise temporal da taxa de homicídio juvenil e interpretação da violência em São Paulo, ver MIRAGLIA (2011). 14 Um fator relevante sobre as os estudos de Feltran é que na realização e escrita de sua pesquisa, o autor referia-se ao bairro de Vila Prudente como parte da “periferia leste de São Paulo”. Ver, Feltran (2005). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 vêm ameaçando seus moradores e gerando incertezas sobre a situação de suas moradias, sobretudo após a anunciação de futuras obras na região15. De jovens favelados a “jovens protagonistas”: construções e apropriações Diferentemente da geração de seus pais, os jovens nascidos entre o final da década de 1980 e meados de 1990 não vivenciaram os períodos de intensa mobilizações na favela e as recorrentes ameaças de remoção e despejo nas décadas anteriores. Como analisa Feltran (2011a, 2011b), esses jovens viram-se imersos em um período de exclusão profunda, que promoveria um deslocamento e ruptura entre as crenças de ascensão social e da própria relação com o mercado de trabalho em comparação com seus pais; principalmente pela combinação da tríade “desemprego-drogas- criminalidade” que abarcava essa nova geração de moradores de favelas e periferias. Sendo assim, não é difícil ouvir de meus interlocutores histórias sobre amigos de infância que se “perderam” no crime e nas drogas ou que se “encontram” nas igrejas e projetos sociais que proliferaram na favela. Em 1990, quando o caminho para o “mundo do crime” passa a espreitar e atrair muitos jovens favelados pelo prestígio e lucratividade conferidos pelas atividades criminais, surgem diversos projeto e ações de atores externos e da própria favela que buscavam “resgatar” os jovens do que seria esse “caminho sem volta”. O MDF que nas décadas anteriores figurava no campo da militância na área de da habitação, funda o Centro Cultural de Vila Prudente (CCVP) visando oferecer atividades educacionais e culturais para crianças e adolescentes da favela. As atividades oferecidas desde o início englobam artes plásticas, música e reforço escolar. Tendo completado 25 anos de existência, o CCVP conta hoje com uma equipe de profissionais da área de pedagogia, sete educadores e oferece novos cursos como ballet, aulas de francês e percussão. Esse 15 Em 2013, foram anunciadas a futura obra da Linha 15-Prata do monotrilho e a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí. Ambas intervenções atingirão o terreno em que a favela está localizada. Ainda não há previsão de entrega das obras, mas estima-se que o prazo seja 2018. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 deslocamento das atividades do movimento não representou rupturas, mas na verdade uma “adequação” aos novos tempos, como assim analisa Vera Telles (2006): Entramos na “era dos projetos” e das parcerias; é a linguagem do Terceiro Setor alterand a anterior gramática política dos movimentos sociais e redefinindo a paisagem local, conforme a maior ou menor presença de ONGs com seus projetos, parcerias e vinculações em redes de extensão variada. Na prática, o “velho” e o “novo” se confundem, as fronteiras não são lá muito claras, até porque tudo acontece por vezes nos mesmos espaços e territórios, e os personagens – também não poucas vezes – passam e transitam entre um e outro. (TELLES, 2006, p.83) Nessa tônica e com a escassez de recursos disponíveis para a atuação, o CCVP firma parceria com a Fundação Abrinq e assina um convênio com a Prefeitura Municipal de São Paulo. Enquanto o MDF, fortalece sua relação com organizações internacionais de fomento a projetos, sobretudo, as de caráter religioso como a CAFOD (Catholic Agency for Overseas Development)16 e Cáritas17. Em 2001, um grupo de franceses também estabelece na favela a ONG franco-brasileira Associação Arca do Saber (inicialmente nomeada Arca de Noé), que destaca entre seus objetivos de atuação “evitar a marginalização de crianças em situação de grande pobreza através da integração social”18. Foi observando reordenamentos semelhantes a esse que Magalhães (2011) assinala uma mudança nas relações entre as associações populares que passaram das pautas de reivindicação conjuntas para a explícita concorrência por financiamentos, prêmios, relações privilegiadas com financiadores de projetos sociais e, por que não, público alvo para seus projetos. Passou a fazer parte da gramática e discurso desses atores e instituições (executoras e financiadoras) o uso de verbetes e termos que qualificam e remetem-se a favela e seus moradores como “vulneráveis”, “em situação de risco”, “em situação de exclusão social” e “marginalizados”. A resposta para reverter esse quadro também seria dada por meio do uso retórico de outros termos como “empoderamento” (empowerment), “quebra do ciclo da pobreza”, “inclusão social” e o mais sagaz deles, 16 http://www.cafod.org.uk 17 http://www.caritas.org.au/ 18 Fragmento extraído do site da organização, content/uploads/2011/12/ArcaDoSaberPlaquettePO.pdf link: http://arcadosaber.org/wp- Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 “promover o protagonismo dos sujeitos”19. Na tentativa de compreender o campo que se forma em torno da inclusão social nesse período, Abílio (2011) enfatiza a sua potencialidade gestionária e, sobretudo, mercadológica. Nesse aspecto, “a inclusão social parece ter se tornado mais uma mercadoria. Estado e ONGs são parceiros no mercado da cidadania” (ABÍLIO, 2011, p.298). Subsidiados pelas estatísticas de violência juvenil, desemprego, gravidez não desejada na adolescência e baixas taxas de rendimento escolar no ensino médio a juventude mostrou-se um necessário e potencial “campo de intervenção” (TOMMASI, 2014) para esses atores e seus projetos. Em consonância com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, a imagem do “jovem problema” deveria ser assim superada para que ele fosse concebido como “sujeito de direito”. Porém, como analisa Tommasi (2012; 2014), a maneira enfática com que projetos sociais e políticas públicas passaram a trabalhar a questão juvenil foi de conceber o jovem como “futuro da nação” e “protagonistas do desenvolvimento local”. Longe de reconhecer veemente as potencialidades da juventude pobre, as organizações passaram a trabalhar sob a lógica da “gestão de riscos”, operando dispositivos de gestão da população jovem. A ocupação do tempo livre e a orientação para o engajamento em ações sociais em suas comunidades foram algumas das estratégias trabalhadas. Foi assim que Cristiano20, com apenas 17 anos na época, passou a frequentar os encontros do grupo de jovens da igreja e a fazer parte da juventude do MDF. Ele e sua irmã caçula frequentavam as atividades e reuniões após o trabalho e durante os finais de semana. A mãe os incentivava a participar, pois era uma forma de mantê-los protegidos das agressões corriqueiras do pai e também dos amigos considerados “más companhias”. Cristiano trabalhava como camelô no centro da cidade e tinha um histórico bastante precoce de trabalho infantil; iniciou aos 6 anos como auxiliar de uma 19 Esses termos e verbetes mencionados no texto foram extraídos de sites de fundações empresariais e de documentos e materiais das organizações citadas. Por ter trabalhado anteriormente numa fundação empresarial com foco na juventude, também consultei alguns textos e linguagens que eram comumente utilizados no cotidiano dessa instituição 20 Assim como em outros textos que produzi, Cristiano decidiu manter seu verdadeiro nome. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 mecânica. Bastante articulado e dotado de um senso crítico e carisma notáveis, o jovem tornou-se uma das apostas do MDF. Junto com outros jovens ligados a comunidades eclesiais de base (CEBs) da zona leste, Cristiano viajou para Alemanha e Espanha para participar da Jornada Mundial da Juventude. Participou de algumas edições do Curso de Dinâmica para Líderes21 (CDL) organizados pela Pastoral da Juventude e dos Cursos de Verão oferecidos anualmente pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Com os conteúdos e temas trabalhados nesses cursos, Cristiano começou a interessar-se pelas vertentes do “empreendedorismo”. Pensava em guardar dinheiro para abrir “seu próprio negócio”, uma ideia bastante comum entre os jovens de todas classes sociais que sentem-se “incitados a viver como se fossem projetos, a tornar-se, cada um, um empresário de si mesmo” (VELAZCO & TOMMASI, 2013, p.39). Como formulou uma das lideranças do MDF, “pensar nessa ideia do empreendedorismo na favela é com juntar a fome com a vontade de comer”. E é assim que se explica a criação da Cooperativa Recifavela; concebida por um grupo de jovens da favela e sob orientação de um profissional com expertise na área de economia solidária contratado pelo MDF. Cristiano foi eleito o primeiro presidente da cooperativa e reeleito por mais duas vezes. Pude acompanhar ao longo do desenvolvimento da pesquisa, o quanto sua trajetória pessoal e profissional desperta o interesse dos mais diversos tipos de financiadores de projetos, jornalistas e até missionários. Considerado um exemplo de “jovem empreendedor” e “jovem protagonista”, sob essas designações, Cristiano consegue obter reconhecimento e prestígio entre instituições e empresas que patrocinam a cooperativa, bem como acesso facilitado a recursos financeiros para os projetos que realiza e dos quais participa. O jovem mostra saber lidar muito bem com esse capital, articulando-o e utilizando-o de forma estratégica em prol de sua atuação. Pela frequência com que é convidado e participa de eventos e reuniões, Cristiano domina um 21 O Curso de Dinâmica para Líderes (CDL) é oferecido pelo Centro de Cursos para Formação da Juventude (CCJ), desde 1997. Conforme reproduzidos do site, o CDL tem por objetivo ser uma ferramenta na ampliação da capacidade de liderança dos jovens, além de treinar monitores com o compromisso de reproduzir e multiplicar os conhecimentos do curso. O CDL divide-se em: CDL 1º Nível (Nacional e Local) e CDL 2º Nível (Nacional). Mais informações em: http://www.ccj.org.br/cdl-curso.php?op=VerCurso&idCur=1 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 discurso público repleto de jargões do Terceiro Setor que soam como música nos ouvidos dos investidores e filantropos. Empossado recentemente como presidente da Rede Paulista de Comercialização Solidária de Materiais Recicláveis o jovem queria mais. Por circular no meio das cooperativas de reciclagem e viajar para diferentes cantos do país, Cristiano elencava modelos de organização a serem seguidos, estratégias de mobilização eficazes e outras competências que considerava necessárias para a Recifavela e Rede Paulista. Contavame dos planos que tinha para ampliar a atuação da cooperativa, “vamos começar a ver uns editais da área de educação e cultura também, para fazer projetos na área e envolver os cooperados e os moradores da favela”. Essa forma de inserção produtiva e geração de renda buscadas por Cristiano, as quais privilegiam atividades coletivas, relacionam-se com o que Cabanes (2011) identificou como “alternativas” ao individualismo selvagem ou ao mundo do crime. Quando ainda inclinado a pensar algo para os jovens da favela, Cristiano percebeu a crise de legitimidade e representação da Igreja e do MDF em meio a essa nova geração de moradores. Junto com alguns amigos idealizou uma iniciativa que privilegiasse o uso das tecnologias e do ambiente virtual: “A gente se conheceu quando a gente participava do MDF (...). Aí a gente passou a fazer uns cursos pela Nova Escola22 e lá a gente começou a discutir o que é ser favelado, coisas novas que podíamos fazer na favela. A organização não tava nem aí pra isso, mas a gente queria. Aí eu comecei a reparar que tinha uma molecada muito boa lá, pra um debate mesmo sabe? Falei pra Miriam [mãe de dois de seus filhos] e pra Joice [prima de Miriam] que eu queria fazer uma „articulação‟ aí. Montar um blog mesmo pra manter notícias e aí falei pra gente chamar essa molecada e ver no que vai dar. Comecei a chamar, começamos a trocar uma ideia. Ficamos uns 4 meses nos reunindo, pra montar o nome, a ideologia, o porquê, qual o foco... Aí beleza, começou a surgir as ideias e aí lançamos o Eco.” [Cristiano] Surge assim o Coletivo EcoInformação que representava uma nova forma de pensar a participação e envolvimento dos jovens nas questões inerentes à favela. A utilização de uma nova linguagem que privilegiasse a tecnologia e formas lúdicas de expressão, por meio do graffiti e de produções audiovisuais, era a guinada que o Eco 22 A ONG Nossa Escola atua desde 1988 na região de Vila Prudente com projetos de geração de renda, voltados para dois públicos: jovens com deficiência intelectual e moradores da favela de Vila Prudente. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 pretendia trazer. Por meio da formação em produção de curta-metragem, oferecida pela Associação Kinofórum23, os jovens do coletivo passaram a produzir alguns curtas e documentários e a promover a exibição desses nas favelas da Vila Prudente. Sendo um fenômeno também presente nas periferias paulistanas, a produção dos coletivos artísticos ganhou espaço como forma de sociabilidade entre os jovens. Pois, além de simbolizar uma forma de “pacificação” de um contexto tido como violento e novas possibilidades de exercício da ação política entre os jovens; a produção cultural também gerou formas de sobrevivência econômica (D‟ANDREA, 2013). O Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI)24 tornou-se uma importante fonte de renda e financiamento dos projetos desses coletivos. Foi assim que em 2013, o EcoInformação teve o projeto EcoCineFavela, voltado para exibição de curtas na favela, aprovado no VAI e pode remunerar todos os jovens envolvidos e ampliar sua rede de contatos. Nesse período, as sessões de cinema na favela atraíram moradores do bairro, das demais favelas da região e também da imprensa25. #SouFavela: a multiplicidade do jovem favelado nos dias atuais “(...). Passou um tempo e eu comecei com a frase „Eu sou Favela‟, porque no próprio grupo do Eco já tinha gente que não gostava disso, de falar que é favelado. E eu falava, „não, eu sou favela mesmo‟. Queriam colocar numa camiseta que era a favela mais antiga de São Paulo, mas ia ficar uma frase muito grande. Aí eu comecei a bater na tecla „sou favela‟, e aí saiu a camiseta. Mas no momento todo mundo usou [a camiseta] meio que sem saber o que significava. Aí na rua quando o pessoal da favela comentava, reconhecia ... o pessoal começou a ter mais orgulho do que estava vestindo. Mas a „ideologia‟ não foi essa, virar um modelo pra favela sabe... Mas uma identidade de fato! Aí no grupo começou eu e o Nego Bala, a tirar foto da favela e colocar no Face: “#soufavela”. Sabe umas fotos do sol no meio dos becos e escrever lá “#sou favela”. E aí começou, algumas pessoas começaram a fazer isso também. [Cristiano] 23 http://www.kinoforum.org/ 24 O Programa Vai é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que tem como finalidade apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Mais informações em: http://programavai.blogspot.com.br/ 25 Vídeo produzido pela Tv Folha: Moradores de Favela fazem sessões de Cinema a céu aberto, https://www.youtube.com/watch?v=143eZBzxw4g Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 A forte aderência e persistência em utilizar o termo favela é algo muito marcante nos discursos de Cristiano, como ele faz questão de enunciar em suas falas e suas publicações nas redes sociais. O jovem indica assim uma ressignificação do termo, de modo a lhe atribuir positividade e, nesse sentido, expressar um conteúdo político de afirmação do local de moradia. O que socialmente era associado ao signo de estigma, declarar-se e reconhecer-se como “favelado”, passa a ser lido como motivo de orgulho e luta para o jovem. “Ser favelado” funciona mais do que como mero marcador identitário para Cristiano; lhe dá possibilidade para a construção e estabelecimento de vínculos de identificação política, processo que, para Aderaldo (2013), envolveria a própria forma de repensar as questões políticas e sociais ali presentes. Não tão tarde, a hashtag #SOUFAVELA ganhou destaques nos perfis dos jovens da favela de Vila Prudente em meio às redes sociais. O sol nascendo entre as vielas e becos estreitos, os amigos no baile funk e as casas de tijolos à vista numa selfie tirada da laje de casa. Para além das fotos, diversas frases e trechos de música de rap e funk são postados exaltando o orgulho de ser favelado, seja esse associado à luta cotidiana de trabalhadores ou ao corre dos irmãos26 da Vila Prudente no mundo do crime. A coexistência desses múltiplos usos e significados ao identificar-se como favelado, entre essa geração, traria o que Aderaldo (2012) percebeu como a insustentabilidade de qualquer tentativa de homogeneização passível de reificar esse universo, no caso, o território da favela. A atuação do Coletivo EcoInformação, associada a outros projetos culturais já existentes, como o Centro Cultural de Vila Prudente e o projeto Samba no Beco27, fez com que a favela passasse a incluir em seu bojo os elementos arte e cultura concomitantes a significados antes apenas restritos a pobreza e violência (D‟ANDREA, 2012). Um exemplo dessa projeção do Favelão se deu em 2011, quando ele foi palco do 26 O termo irmãos refere-se aos membros batizados pelo PCC e que dessa forma prestam obediência – “correm” – segundo as ordens e mandados da organização. 27 O projeto surgiu em 2007, e realiza em todo primeiro sábado do mês uma roda de samba ao ar livre, na confluência de três becos da favela. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 videoclipe da música “Favela Fashion Week”28. Produzido por um famoso grupo de pagode, o vídeo mostra uma roda de samba e o trânsito de jovens por entre os becos; exaltando a beleza da mulher favelada por meio do refrão “Ê Nosso Morro É Coisa Chic/É Favela Fashion Week/ Nossa Gisele Bundchen É Preta/ E Ela Faz Acontecer!”. Os vídeos de funk produzidos pelo estúdio Made in Favela, dirigido por um jovem morador da favela, também vêm se apropriando dos becos e vielas como cenário para as narrativas musicais de jovens MC’s de funk da região. Exibindo motos e artigos de luxo, esses jovens celebram a estética do funk ostentação e renegam a ideia da favela como território da pobreza, justamente pela ampliação do poder de compra de seus moradores. Realizando o que D‟Andrea (2013) chamou de “uma celebração mercadológica dos pobres”, o mercado visualizou nessa situação uma oportunidade de fomentar o mercado de consumo popular da “nova classe média” ou “classe C”. Em recente pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular, em que foram ouvidas 2 mil pessoas em 63 favelas do Brasil, estima-se que os quase 12 milhões de moradores de favelas movimentaram, somente no ano de 2013, mais de R$ 63 bilhões. Se por um lado a favela e os favelados tornaram-se uma parcela disputada pelo mercado de consumo e indústria cultural; por outro, seus moradores ainda vivenciam no cotidiano uma condição de cidadania subalterna. A favela de Vila Prudente ainda lida com diversos problemas de infraestrutura acarretados pela sua não urbanização, a qual ainda não tem previsão para acontecer. Identificar-se como morador da favela em entrevistas de empregos ou fornecer seu endereço no cadastro de uma loja, por exemplo, ainda ocasiona uma visível discriminação e preconceito. O próprio Cristiano conta gostar de “provocar” e “chocar” as demais pessoas ao se declarar favelado, mas também conta ter fornecido o endereço de parentes nessas situações para “evitar possíveis problemas”. Entre os jovens do sexo masculino, a identificação como morador da favela, muitas vezes embasada na construção de um estereótipo social, implica riscos maiores, pois eles são os principais alvo de abordagens, ameaças e ações truculentas da polícia. 28 Link: https://www.youtube.com/watch?v=utf9xaN5CQ0 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 Considerações Finais Com base nessa concisa reconstituição histórica, torna-se possível perceber os deslocamentos das construções e representações sociais sobre a favela e o favelado, sempre em consonância com as transformações estruturais da cidade, dos interesses econômicos e da sociedade, de forma geral. Mesmo com a escassez de estudos qualitativos sobre as transformações das favelas no contexto paulistano29, os estudos sobre periferias aqui trabalhados evidenciam muitos pontos em comuns com a realidade dessa favela estudada. A proliferação de organizações do Terceiro Setor, a mercantilização da produção cultural e fomento de um novo nicho de mercado impulsionado pela “nova classe C” são alguns dos fenômenos comuns a esses territórios. A partir da trajetória de Cristiano, torna-se notável como as designações “jovem favelado” e “jovem protagonista” são reificadas e reapropriadas por esse jovem, na forma com que esse ele articula e apropria-se ardilosamente dessas representações em prol de prestígio, reputação e recursos financeiros para a realização de seus projetos pessoais e profissionais. As ressignficações e reapropriações criativas da identidade de favelado por esse meu interlocutor também demarcam diversas formas de agenciamento possíveis, do cotidiano de trabalho às práticas de lazer na favela. Dessa forma, o jovem e sua atuação são produtos dessas transformações ao mesmo tempo em que as produz; cabendo aqui enfatizar o reconhecimento de uma relação bastante assimétrica nesse aspecto. Nesse ponto, Tommasi (2013) alerta sobre os perigos e perversidades de uma possível “armação identitária”, a qual “pode virar uma etiqueta que limita as possibilidades de experimentação, tanto em termos estéticos como de conteúdo” (TOMMASI, 2013: 27). Uma questão bastante relevante para se 29 Refiro-me aqui ao entrelaçamento entre a experiência urbana periférica e a experiência urbana favelada no contexto paulistano que fez, e ainda faz, com que essas muitas vezes sejam tidas como análogas. Como o território aqui estudado diferencia-se desse padrão, pelo fato da favela estar localizada numa região mais central da cidade, demarco essa especificidade e escassez de referenciais teóricos nesse aspecto. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 18 pensar num contexto de imposição de padrões e critérios definidos por financiadores externos para fomento a projetos culturais de grupos e coletivos juvenis. Mesmo reconhecendo a existência de heterogeneidade socioeconômica nessa favela, é a homogeneidade das práticas e vivência cotidiana num mesmo local que cria e renova os seus símbolos de identidade. Os laços ali presentes não são fixos, nem definitivos, mas estão constantemente sendo renovados e reinterpretados. Pois como analisa Agier (2001), “toda identidade, ou melhor, toda declaração identitária, tanto individual quanto coletiva (mesmo se, para um coletivo, é mais difícil admiti-lo), é então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que como um fato” (AGIER, 2001, p.10). Nessa multiplicidade de identificações que envolve declarar-se favelado coexistem o orgulho e o estigma. Ao mesmo tempo em que a favela é celebrada pela mídia, as incursões da polícia, por exemplo, não deixaram de acontecer; muito menos os preconceitos que os favelados ainda enfrentam com relação a sua situação de moradia. Referências Utilizadas ADERALDO, Guilhermo. Reinventando a cidade: disputas simbólicas em torno da produção e exibição audiovisual de “coletivos culturais” em São Paulo. Tese (Doutorado em Antropologia). FFLCH-USP, 2013. ABÍLIO, Ludmila Costhek. A gestão do social: continuidades e descontinuidades. In: CABANES et al. Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo, 2011. AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de globalização. In: Mana, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, pp. 7-33, 2001. BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. In: Revista Análise Social. São Paulo, v. 29, 1994. CABANES, Robert. Proletários em meio à tormenta neoliberal. In: CABANES et al. 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GT 03: Conflitos sociais, Instituições e Política Resumo O texto ora apresentado é resultante de um processo de pesquisa ainda em curso, que objetiva identificar e estudar as principais questões de cunho socioeconômico, político e geopolítico presentes num trecho da fronteira física Brasil-Bolívia, na porção sudoeste do estado de Mato Grosso. A região de estudo denomina-se Ponta do Aterro, bem como, parte de suas cercanias, localiza-se no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, entre os municípios de Pontes e Lacerda e Porto Espiridião, dentro da Amazônia legal. O recorte temporal do estudo abrange o período de 1940-2012. A investigação se propõe a tecer uma análise sociológica e discutir a questão da territorialidade social construída pelos sujeitos fronteiriços na região delimitada, composta por: trabalhadores rurais, pequenos produtores, fazendeiros e os povos tradicionais, mestiços, denominados “Chiquitano”. Os resultados preliminares da investigação apontam que a região configura-se num espaço de confrontos e disputas, de enfrentamentos nos dilemas cotidianos, que se fazem presentes nas relações sociais e nos modos de ser e viver daqueles sujeitos. A partir dos estudos da Teoria Social, e do leque de suas possibilidades de análise, utilizo os recursos metodológicos oferecidos pela História oral, memória, histórias de vida e suas fontes, além do levantamento documental. Busca-se, a partir do levantamento das questões citadas, o desvelamento dos aspectos da territorialidade vivenciada pela população fronteiriça, interpelar a sua interpretação e os significados atribuídos à terra, trabalho, nacionalidade, pertencimento e construção de sua identidade social, bem como, de suas estratégias de enfrentamento dos dilemas cotidianos. 1 Licenciada e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso; Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos UFSCar, na linha de pesquisa Urbanização, ruralidades, desenvolvimento e sustentabilidade ambiental. Docente e Pesquisadora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - IFMT, Campus Fronteira Oeste - Pontes e Lacerda. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Mato Grosso - FAPEMAT. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 Palavras-chave: conflitos, sociedade e fronteiriços Situando a fronteira: A região em estudo dista aproximadamente 680 km de Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, rumo Oeste. Trata-se de uma área da faixa de fronteira2, localiza-se na intersecção dos limites físicos entre Brasil-Bolívia, inserida na Amazônia legal. Tomada como objeto investigativo, o local denomina-se Ponta do Aterro, bem como, parte de suas cercanias. Tratase de um povoamento localizado no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, que por sua vez, limita-se com os municípios de Pontes e Lacerda e Porto Espiridião, no sudoeste de Mato Grosso. Vale ressaltar que, o município de Vila Bela da Santíssima Trindade foi a 1ª capital de Mato Grosso, no período de 1752-1820, temporalidade inserida no contexto do Brasil colônia. A região da Ponta do Aterro e parte de suas cercanias, compõe-se por 13 Comunidades, a saber: Santa Clara, Aparecida, São Miguel, Ponto Chique, Morrinhos, São Paulo, Santa Maria, Santa Lúcia, Cruzes, São Vicente, Santa Mônica, Fazenda São Marcos e Fazenda São Lucas, reúne aproximadamente 180 famílias3, grande parte composta por migrantes originários de movimentos de ocupação da Amazônia Legal, descendentes de indígenas e povos de nacionalidade boliviana e ou mestiça, habitantes da fronteira, os “Chiquitano”. Na região da Ponta do Aterro, a Comunidade mais estruturada é a Santa Clara, chamada de “Vila” pelos habitantes locais, com aproximadamente 100 casas. Na localidade funciona a Sub Prefeitura do município de Vila Bela da Santíssima Trindade, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Ponta do Aterro/ Escola Estadual 11 de Agosto4, o comércio e também os serviços públicos disponíveis. O espaço fronteiriço investigado, constitui-se por um misto de grandes propriedades rurais (as fazendas), minifúndios derivados 2 Conforme a Lei n° 6634 de 02 de maio de 1979, que dispõe sobre a faixa de fronteira, considera em seu artigo 1º. : É considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 Km (cento e cinqüenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira. 3 Dados levantados junto à Sub Prefeitura de Vila Bela da Santíssima Trindade, na Comunidade Santa Clara. 4 Ambas as unidades escolares funcionam no mesmo prédio e atendem a aproximadamente 420 alunos. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 de projetos de assentamentos rurais, a população habitante da “vila Santa Clara” e das demais comunidades mencionadas. A escolha da área de estudo fundamentou-se em dois aspectos: 1 – localização geográfica e posição geopolítica, isto porque, entendeu-se a priori que, trata-se de uma região de fronteira física com a Bolívia e portanto, o “lugar” da materialização do movimento das territorialidades, e que este é permeado por relações de poder sobre o espaço, o que neste entendimento, muito poderá contribuir no sentido de desvelar o sentido da “fronteira” para a população local; 2 – Levantamento da necessidade emergente de aprofundar a análise sobre a territorialidade social constituída na fronteira, avaliando-a nesta perspectiva, como um extenso e instigante campo aberto à investigações e reinterpretações. O trajeto metodológico pauta-se nos estudos construídos pela Teoria Social e no levantamento documental, associado às ferramentas oferecidas pela História oral: memória, histórias de vida e suas fontes. Intenta-se desvendar, na perspectiva dos habitantes locais e dos conflitos instalados, o “sentido e a fluidez” dos limites da fronteira dos Estados- Nação Brasil e Bolívia. A fronteira e os fronteiriços: Territorialidades e Conflitos Discute-se nesta seara, o sentido de “fronteira” no espaço pesquisado. A trajetória da análise sobre espacialidades contemporâneas nas áreas fronteiriças remete à compreensão dos diferentes sentidos e significados contidos na designação da fronteira. Repensar as fronteiras pressupõe compreender a relação entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal. A apropriação física do espaço na fronteira sudoeste de Mato Grosso, inscreveu-se num canteiro de poder simbólico, político e econômico, cuja interface se dá com o “sentido” de apropriação por parte dos migrantes, e que, ao mesmo tempo, colide com a presença de uma população de descendência indígena, os Chiquitano. Originou-se daí uma questão latente: a identidade dos fronteiriços, quem são? Índios? Brasileiros? Bolivianos? Portanto, à guisa de entendimento, é necessário considerar que na região da fronteira em estudo, há uma discussão pautada no aspecto da etnicidade, o que envolve e, em certa Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 medida, opõe aqueles que se consideram não índios aos que se consideram indígenas de origem chiquitano. Para melhor situar a presença indígena na área investigada, tomamos por referência os estudos de Silva (2008), que, com base no Mapa etno-histórico de Alfred Mètraux, de 1948, conceitua que: Chiquitano refere-se ao amálgama de inúmeras nações indígenas. Não são bolivianos ou estrangeiros no Brasil, estavam em solo nacional anteriormente à ocupação portuguesa. Portanto, antes da chegada dos portugueses, esses povos ocupavam as margens do rio Guaporé no Brasil, até as planícies bolivianas. O povo constituía-se num continuum e a fronteira geopolítica tratou de transformar em estrangeiros povos que viviam comprovadamente nessa região há muitos séculos, a divisão territorial transformouse em dois países: O Brasil e a Bolívia.5 No contexto geopolítico dessa região fronteiriça, ainda de acordo com os estudos de Silva (2008), a partir de 1768 os chiquitanos foram incorporados ao trabalho nas fazendas. No Séc. XIX eram capturados para trabalhar na extração da borracha, nos seringais ou “gomales”. Com relação ao trabalho, são considerados exímios trabalhadores em fazendas de criação de gado, uma habilidade herdada da convivência com os Jesuítas, no período colonial brasileiro. Segundo a estudiosa acima citada, na fronteira sudoeste de MT com a Bolívia, que se estende cerca de 500 quilômetros, há 32 comunidades chiquitanas. O conflito interétnico permeia as relações sociais estabelecidas na fronteira BrasilBolívia ora perscrutado, pois, traz à tona a divergência entre: os grupos indígenas, os grandes proprietários rurais e os fazendeiros, no que se refere à posse e propriedade das terras. Inegavelmente, há muitos confrontos de interesses, fomentados por um lado, pela possibilidade de demarcação da área e transformação desta em reserva indígena por parte do Estado Brasileiro, e por outro, a expansão das possibilidades de exploração para produção de soja e instalação do agronegócio. 5 SILVA, J.A.F. Identidades e conflitos na Fronteira. Poderes locais e os chiquitanos. Revista Memória Americana 16 (2), 2008, pag. 119-148. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 Num outro viés, vale destacar que a descendência chiquitano na fronteira também é carregada pela vertente do racismo e da discriminação, é comum a denominação pejorativa de “bugre” a esta parcela da população fronteiriça. Sobre o significado do uso do termo bugre na faixa de fronteira, Silva (2008, p. 135) ensina que: “ Bugre, naquele contexto não queria dizer exatamente povo, mas uma espécie de gente, muito procurada para o trabalho, porém, pouco qualificada enquanto ser humano. Um exemplo brutal de etnocentrismo e do estranhamento”6. É possível verificar a formação de grupos políticos de interesse regional na fronteira e porque não dizer, nas terras da fronteira, grupos estes que vão, ao longo do tempo e das relações, sendo reconhecidos e legitimados. Em contrapartida, também é possível observar nas falas e nas reações implícitas das comunidades investigadas, o “ocultamento da identidade chiquitano”, que fortalece a confirmação da hipótese de que se trata de um conjunto de ações estratégicas de autoproteção. Na região fronteiriça em estudo, há vários assentamentos regulamentados pelo INCRA 7 , os pequenos proprietários, em grande parte, os grupos descendentes de chiquitanos são assentados, fazem jus aos benefícios sociais, tais como: bolsa-família e aposentadoria rural. Mesmo com as suas pequenas propriedades, é prática comum os homens trabalharem como vaqueiros nas grandes fazendas de criação de gado, enquanto os demais membros da família se revezam em cultivos e cuidados com a propriedade e os trabalhos domésticos. Nota-se no contexto do trabalho do sujeito fronteiriço, uma intensa precarização das condições nas fazendas, entretanto, segundo alguns entrevistados, atualmente o trabalho escravo foi abolido, principalmente em decorrência de intensas e frequentes fiscalizações por parte da Justiça do Trabalho brasileira, a aplicação de multas trabalhistas e outras ações inibidoras de tal prática. Quanto a prática da dominação e da violência, especialmente no que tange à posse e propriedade das terras, são marcas implícitas naquela paisagem, ocultadas sob a égide de uma 6 SILVA, J.A.F. Identidades e conflitos na Fronteira. Poderes locais e os chiquitanos. Revista Memória Americana 16 (2), 2008, pag. 119-148. 7 INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, responsável pela regulamentação das terras destinadas à reforma agrária. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 suposta convivência social harmônica. Ainda assim, percebe-se o domínio e o centro de poder nos “fazendeiros criadores de gado” representados pelos grupos sociais proprietários de terras sobre as populações compostas por trabalhadores rurais, mestiços e chiquitano. No sentido de compreender melhor a questão, o primeiro grupo, comumente se autointitula de “desbravadores”, que dentre o rol de argumentos, faz com que se legitimem como elites políticas e econômicas locais e exercem o “controle” sobre os demais a partir da exploração da força de trabalho, muitas vezes com total precarização das condições de trabalho e sobrevivência. Em última instância, o controle social é exercido pela definição de “quem vive ou quem morre”, é comum ainda na região, a ocorrência do extermínio de pessoas e famílias por assassinato. Isso decorre principalmente com o propósito de domínio da terra, ou, do território. Constata-se que, no exercício do controle social, a posse e propriedade da terra são a principal causa de conflitos que demandam as mais diversas formas de violência e intimidação por parte dos interessados, os jogos de interesse se colocam na linha de frente das questões, no choque das relações de poder estabelecidas. No sentido da ocupação do espaço de investigação, ou seja, o espaço da fronteira sudoeste de MT, região que também está inserida no limite internacional entre Brasil e Bolívia, há que se fazer a leitura deste como um espaço de confrontos e disputas, que se fazem presentes nas relações sociais e nos modos de ser daqueles sujeitos. Pode-se estabelecer a partir de Bourdieu (2002)8 uma crítica à “naturalização” das relações sociais de dominação, a partir do conceito de habitus e sua propagação por meio de ações irrefletidas. Bourdieu viabiliza a percepção da dominação e desigualdade onde outros percebem harmonia e pacificação. Na análise social das sociedades centrais ou periféricas constata-se corriqueiramente a dominação simbólica sobre a ideologia de igualdade, o que origina uma imagem de consenso social e político, que, de certa forma, obscurece as relações de desigualdade. 8 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 A faixa de fronteira Brasil-Bolívia recorrentemente constitui-se em espaços marginalizados pelo discurso político, que insiste em deixá-las sob a penumbra da ilicitude, destacando-se de forma preconceituosa: o tráfico de drogas, a prostituição, o contrabando, roubos de veículos e outros crimes, o que confere às áreas de fronteira no Brasil um aspecto hostil e perigoso, transformada pela imagem mitificada, que se perpetua, não encontrando rival ou, não se oportunizando a construção da concepção do contraditório. São lugares de desordem? Ou, locais onde o Estado não conseguiu impor sua ordem? Nesta perspectiva, a fronteira não pode e não deve ser analisada e menos ainda, compreendida somente como o “lugar” de ilicitude e/ou da transgressão. Trata-se de um exercício reflexivo frente à importância e necessidade de compreensão dos elementos institucionais e sociais na fronteira mencionada, bem como, suas formas intrínsecas de movimentação, ordenamento, interações e desdobramentos na reprodução de tal espacialidade, de caráter sociológico. O Estado Brasileiro e a constituição da fronteira Brasil-Bolívia: uma breve contextualização Constatou-se neste recorte de estudo que, na atualidade, tal processo de configuração da fronteira no Sudoeste de Mato Grosso, na Amazônia Legal pelo Estado brasileiro, decorreu de diferentes momentos da articulação capitalista, inserindo neste processo ainda, mudanças estruturais e conjunturais acerca de desenvolvimento econômico e político, perpassando ainda, pelas esferas do simbólico e cultural. O conjunto de ações desencadeadas pelo Estado Brasileiro e pelas forças políticas, podem explicitar de maneira segura um quadro ou uma chave teórica que justifique a forma de ocupação e o modelo produtivo instituído na fronteira. Neste entendimento, todos os contextos que influenciaram a organização do espaço social na região de fronteira delimitada na pesquisa, relacionam-se a priori, com a gênese da Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 formação do Estado Brasileiro, neste exercício considerou-se adequado tomar por base a concepção de Estado formulada por Gramsci (1991, P.234), pois, conforme este teórico, “ o Estado deve ser interpretado como um complexo de atividades práticas e teóricas constituídas pelas esferas da sociedade política e da sociedade civil. Nesse caso, na sociedade política (Estado restrito) predominaria a coerção e na sociedade civil, o consenso”9. Para entender melhor o processo de ocupação do oeste brasileiro e também da região pesquisada, é necessário discorrer sobre a implementação do Marcha para o Oeste, que foi uma iniciativa do Estado Brasileiro, tratada como uma política estatal de desenvolvimento do país, o movimento se efetivou na década de 40, caracterizado pelo desencadeamento de um intenso processo migratório, com o intuito de promover a “ocupação dos espaços vazios na Amazônia e no Oeste do País”. Constatou-se a influência e o desdobramento de tais ações na formação dos espaços rurais e urbanos no contexto da fronteira citada, notadamente, a partir do mesmo período. Ou seja, a partir desta década acima mencionada. Desse modo, é possível pensar a “Marcha para o Oeste”, assim como outros movimentos posteriores de “ocupação” das regiões de fronteira neste país como consequência de processos dimensionalmente maiores e mais profundos quanto à ocupação do espaço, englobando para isso, tanto a ordem posta no sistema colonial quanto posteriormente, à definição de uma política de Estado para o Brasil, pautada no domínio territorial e controle social. Posteriormente à Marcha para Oeste, outros movimentos migratórios foram desencadeados com o aval do Estado como forma de dissipar as pressões sociais nos grandes centros, sob o pretexto de ocupar “espaços vazios” e de ampliação de oportunidades de elevação econômica e de qualidade de vida da população que se dispusesse a ocupar tais espaços. A despeito desta análise, constatou-se que na atualidade, tal processo de configuração da fronteira no Sudoeste de Mato Grosso, na Amazônia Legal pelo Estado brasileiro, decorreu de momentos da articulação capitalista, inserindo neste processo ainda, mudanças estruturais 9 GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo, 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991 (1991, p.234) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 e conjunturais acerca de desenvolvimento econômico e político, perpassando ainda, pelas esferas do simbólico e cultural. A leitura de Gramsci acerca da “Ideologia da Hegemonia” trazida à luz do conjunto de ações desencadeadas pelo Estado Brasileiro e pelas forças políticas, explicitam um quadro ou uma chave teórica que justifique a forma de ocupação e o modelo produtivo instituído na fronteira. Estudos e levantamentos documentais realizados sobre o tema de pesquisa na região, demonstraram a interação entre as políticas de desenvolvimento do país e o contexto social e político, estabelecendo forças motrizes na configuração das espacialidades contemporâneas nas áreas fronteiriças. A segunda metade do século XX no Brasil, é marcada por uma intensificação na formação espacial de cidades, modificações urbanas e reorganização dos espaços fronteiriços. Notadamente, a partir de 1964, com a instauração de um governo militar, foram muitas as transformações sociais e econômicas e que possibilitaram a consolidação do capitalismo no país. Neste percurso, observou-se na leitura disponível que, muitas são as contradições no processo histórico de acumulação capitalista, inserindo-se aqui a realidade matogrossense. Na fronteira Brasil-Bolívia, região selecionada para estudo, sob determinado aspecto, observa-se a “naturalização da desigualdade social, típica de países periféricos como o Brasil”, que neste entendimento pode traduzir-se como uma “suposta herança pré-moderna e personalista”, decorrente de um forte movimento de modernização observado no Brasil e alguns outros países da América Latina, atribuído em grande parte, à transferência do modelo de produção industrial e paulatinamente, à expressão de novas formas vida e quadros sociais, pautados em novas relações instituídas entre rural-urbano, uma vez que o País vivenciou uma intensa transformação de cunho socioeconômico a partir de meados do Séc. XX, altera-se de forma acentuada e acelerada a sua situação de agrário-exportador para urbano-industrial. As ações modernizantes embutidas no “discurso político do crescimento econômico” propagada pelo Estado brasileiro a partir da segunda metade do Séc. XX, não explicam a extensão de tal modernidade à condição periférica de grande parte da sociedade brasileira, ou, às dramáticas contradições sociais observadas no território brasileiro e talvez de maneira mais Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 intensificada, nas vastas faixas de fronteira entre o Brasil e grande parte dos países latinoamericanos, dentre os quais destaca-se nesta investigação a fronteira Brasil-Bolívia, que só em Mato Grosso estende-se por aproximadamente 500 quilômetros. Esta modernização das sociedades periféricas teve lugar de destaque no debate internacional, o que estimulou o avanço das ciências sociais, atingindo o seu ápice no pós guerra, acompanhando o esforço norte-americano na reorganização política do mundo livre. Para discutir a territorialidade e o papel desempenhado pelo Estado na fronteira, propomos um exercício de compreensão do quadro da desigualdade social brasileira, o que neste entendimento, está inserido nas mazelas sociais dos países periféricos, assim como o Brasil, presentes na desigualdade e sua naturalização, na marginalização dos setores expressivos da população, na dificuldade de consolidação de uma ordem democrática e de mercado competitiva. No intuito de compreender a grande complexidade da paisagem social na faixa de fronteira estudada, faz-se necessário desvelar e igualmente compreender o papel desempenhado pelo Estado Brasileiro quanto à territorialidade e ações desencadeadas com o objetivo de estabelecer e/ou fortalecer a segurança nacional. Para explorar tais sentidos, considerou-se pertinentes as seguintes indagações: Por que houve o desencadeamento de um intenso processo migratório rumo às regiões de fronteira? Em que medida tais movimentos se constituíram ideologicamente ou com o intuito de promover a ocupação dos espaços vazios na Amazônia e no Oeste do País? Quais são os desdobramentos destas ações na formação dos espaços rurais e urbanos no contexto da fronteira citada, notadamente, a partir da década de 40? Seria a fronteira o “lugar da exclusão” e do “vazio de direitos”? Nesse movimento interpretativo, somado à muitos embates teóricos e reflexões, podese entender que: “Todo Estado tem margem. O sujeito pode estar dentro ou fora dos critérios estabelecidos para estar INCLUÍDO ou EXCLUÍDO entre margem e centro”. No que se concerne às relações inter-regionais, as regiões de fronteira, em especial o recorte em estudo, Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 que engloba espaços que margeiam a Amazônia e Bolívia, constituem-se numa região geográfica periférica do país. A desigualdade e a exclusão na territorialidade da fronteira, considerando o paradigma da modernidade, são discutidas como uma condição de exceção, que está relacionada diretamente à forma de organização societal. No contexto do sistema capitalista, considera-se como uma espécie de questão originada no desenvolvimento do modelo capitalista, portanto, justifica-se a necessidade de implementação de políticas sociais que minimizem tais excepcionalidades. Na perspectiva de Marx ( 1969) 10 e Focault (2003)11, os grupos sociais que constituem a desigualdade e a exclusão estabelecem cada um, uma hierarquia de pertença ao sistema, constituindo-se em dois “tipos ideais”. A desigualdade pode ser caracterizada como um fenômeno socioeconômico, enquanto a exclusão está sedimentada como um fenômeno cultural e social, próprio da civilização. Afirma que: “ em ambas as formas de hierarquização se pretende uma integração subordinada pelo trabalho”. As combinações complexas de tais sistemas de pertença dentro de uma hierarquia, passam por um modelo de regulação social por parte do “Estado moderno” em sua gestão capitalista, ou seja, a desigualdade e a exclusão ao mesmo tempo em que, de certa forma se constituem em forças motrizes do sistema, são devidamente monitoradas pela própria gestão no sentido de se “controlar os extremismos”, nesse sentido, os mecanismos de controle ou de monitoração conforme denominamos, permitem sob determinada perspectiva alguma emancipação dos grupos sociais pertencentes às situações de desigualdade e exclusão. Partindo da premissa que a faixa de fronteira em estudo Brasil-Bolívia é também um lugar de exclusão e desigualdade, e ao mesmo tempo, um espaço inegável de materialização da ideologia de “segurança nacional sobre a territorialidade”, são comuns diversos conflitos sociais aos quais se pode agregar as seguintes características: etnização da força de trabalho; luta pela posse da terra; coexistência de diferentes nacionalidades e identidades étnicas; 10 11 MARX, K. Ideologia alemã. Cidade do México: Fonte de Cultura, 1969 FOCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 atuação de forças decorrentes do processo de globalização da cultura; descontextualização das culturas locais. Percebe-se portanto, nessa espacialidade, a inserção de uma nova ordem mundial, globalizada e multicultural. Neste quadro reflexivo, no contexto das contradições acerca do processo histórico de ocupação da Amazônia brasileira, e nesta o recorte da porção sudoeste de MT, deve-se lançar um olhar crítico também sobre o processo de acesso à terra pública e/ou devoluta, bem como sobre a violência implícita na desfaçatez, e que é praticada contra nações indígenas, dentre as quais destaca-se na área estudada a presença dos chiquitano, os migrantes colonos e os posseiros. Há que se indagar o propósito das políticas públicas de cunho “desenvolvimentista”, bem como as suas consequências para a região de estudo. Ainda quanto ao objeto de estudo presente no foco deste texto, vale ressaltar que, levantamentos e observações realizadas revelaram uma intensa degradação ambiental nos referidos municípios localizados na fronteira sudoeste de Mato Grosso, em conseqüência particularmente, das atividades produtivas/econômicas historicamente praticadas, desde o início da ocupação tais como: atividade garimpeira, atualmente desempenhada por indústrias da mineração, o extrativismo a partir da exploração da madeira, nem sempre dentro do contexto da legalidade e também, das inter-relações estabelecidas entre as atividades produtivas e “os modos de ser e de viver” daquela sociedade. Os espaços sociais se constituem nas relações sociais. Na concepção de Michel Foucault12, tais espaços se configuram antes de tudo, em relações de poder, o que por sua vez, são decorrentes de diferentes mecanismos e estratégias deliberadas pelos indivíduos e pelas instituições. Nesse sentido, para o referido Teórico, no exercício de compreensão dos espaços sociais há necessidade de se estabelecer uma prática analítica no intuito de desvelar estes mecanismos e estratégias. A reflexão do autor leva a constatação que o poder se institui a partir de uma multiplicidade de fatores que perpassam pelo pelas seguintes instituições: o poder disciplinar, o “biopoder”, os discursos e as técnicas do direito, a obrigação legal e a soberania, entre 12FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975/1976). Martins Fontes: São Paulo, 1979. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 outros. São fatores que influenciarão diretamente as práticas de sujeição do indivíduo e/ou dos grupos sociais, uma forma de dominação contida na legitimidade do poder soberano, dos direitos legítimos e da obrigação “legal” de obediência. Foucault questiona as relações de poder e práticas de sujeição nas sociedades ditas democráticas, discute as possibilidades de utilização do modelo estratégico da guerra no contexto das análises das relações de poder. No sentido de construir uma metodologia de compreensão das relações de poder (e não do poder em si), o autor elenca algumas precauções importantes para a compreensão da sua teoria, refere-se à questões do método, nos quais destaca: a necessidade de compreender o poder nas extremidades, o que permite ir além das regras do direito,( que para ele organiza e limita as relações de poder), sustenta que o poder tem sua essência na intencionalidade e objetivos, portanto, não está centrado num indivíduo e/ou instituição. Na análise de Foucault o poder se constitui numa rede de relações, num jogo de forças constante entre ambos os lados, as relações são dinâmicas, complexas e contraditórias. O Estado nesta reflexão, não seria apenas e tão somente uma Instituição centralizadora do poder, embora não se possa negar a influência de tal poder, mas o teórico ensina que o poder circula, transita nos espaços de todo o corpo social. Dessa forma, as redes de poder culminam com a formação de um sistema de saber. Assim, o poder exerce-se com base na formação e organização de um saber . Verifica-se nesta esteira reflexiva, que as relações entre os indivíduos são relações de poder, e não há um grupo social coeso, portanto não há poder estático ou centrado unicamente em algo ou alguém, embora, mesmo nas sociedades “ditas democráticas” como o Brasil, as instituições tenham uma certo privilégio ou talvez uma certa centralidade no exercício do poder em função do papel que desempenham no bojo das relações sociais, inclusive de vigilância, controle e garantia dos direitos civis fundamentais dos indivíduos. Na tentativa de análise e compreensão do espaço social em estudo, inegavelmente, por se tratar de um espaço de fronteira, percebeu-se que, em diferentes momentos da história do Brasil, especialmente a partir da segunda metade do Século XX , disseminou-se a ideologia e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 as políticas públicas voltadas a manutenção da soberania nacional ( do Estado) sobre o território, especificamente na faixa de fronteira do país. Se por um lado as políticas de desenvolvimento voltaram-se a garantir e fortalecer o poder Estatal e suas estratégias de dominação em tais espaços, paradoxalmente, conforme se observa, a mesma faixa de fronteira em questão é carregada de contradições, práticas e ações que configuram e de certa forma, legitimam uma realidade pautada em diversas formas de violência e abandono. E o movimento nas relações de poder? E os sujeitos fronteiriços? Partindo da premissa em que o sentido de poder consiste e coincide necessariamente com uma forma de saber e/ou com diversos saberes, pode-se pensar o sujeito fronteiriço e sua movimentação nos seus grupos sociais sobre diferentes contextos, pode-se constatar que na área de estudo não há um grupo social coeso e as relações de poder se materializam de um lado entre o Estado e os indivíduos fronteiriços, e de outro, entre estes no seu próprio grupo social, forjou-se um certo “ordenamento” nos exercícios de poder, o que, por sua vez legitima um “modo de ser e de viver”. Estes modos "de ser e viver” internalizados pelos grupos sociais que constituem o espaço social da fronteira, talvez propositadamente propague o predomínio da rudeza nas relações entre os grupos sociais, concedendo à sua territorialidade um aspecto “perigoso”, fortalecido inclusive no imaginário social, reiterando então, a ideia da faixa de fronteira como uma “terra sem lei” ou a “terra no fim do mundo”13, o que origina e acirra um certo preconceito na sentido centro-periferia do país. Neste enfoque entende-se que, sob o prisma de Foucault, nas relações entre o Estado e os grupos sociais fronteiriços e entre estes e seus pares, há um exercício de poder permanente, contido nas disputas pela posse e propriedade das extensões de terra; nos movimentos reivindicatórios por maior e melhor qualidade de vida (moradia, condições de sanitárias, assistência médica e transporte públicos); conflitos sociais de diversas ordens estão sempre em estado de “ebulição” na região. 13 Anotações retiradas de entrevistas preliminares com habitantes da faixa de fronteira em estudo. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 Sobre o papel desempenhado pelo Estado na faixa de fronteira em estudo (BrasilBolívia, inserida na Amazônia), consegue-se perceber muitas contradições, conforme a ocasião, interesse e conveniência constata-se a sua presença ou ausência. A formulação de outra versão para a ideia de constituição da fronteira, num sentido não atrelado apenas à sua configuração física e/ou espacial ou seja, extrapolando à sua organização apenas em decorrência do papel do Estado e de suas ações nos moldes do desenvolvimento capitalista, mas, abarcando também, a sua forma particular de constituição, que se faz presente na mobilização de forças e na forma de inserção dos sujeitos sociais nesse espaço de estudo, implica portanto, neste entendimento, em olhar a fronteira a partir do movimento relacionado às relações sociais, reações, vivências, formas de ser que e de se articular no “mundo fronteiriço”. Algumas Constatações Com relação ao controle social exercido pelo Estado, entende-se que este recorrentemente transita paradoxalmente nas margens da legitimidade e ilegitimidade. Tomando por empréstimo uma referência de Agamben, constata-se que, no desempenho do seu o papel, o Estado, sob a ótica da omissão ou da “negação de direitos” básicos aos fronteiriços, também constitui-se na fronteira Brasil-Bolívia como um Estado de Exceção, o que talvez possa justificar o aspecto de violência a abandono nessa paisagem, pois, não frequentemente os direitos básicos são negados àquela população e por vezes, a ausência e a ineficiência das instituições protetivas e básicas para a vida social implicam numa decisão deliberada sobre quem deve “viver ou morrer”. Pode-se, a título de exemplo, citar as condições precárias de higiene e saúde vivenciada pela população fronteiriça, especialmente as de menor poder aquisitivo que compõe a camada empobrecida, a saber: trabalhadores rurais, mestiços, chiquitano e descendentes de negros, (que vivem nas áreas de remanescentes de quilombos). No recorte de estudo, ou seja, na fronteira Brasil-Bolívia, pode-se entender os conflitos como parte das estratégias de exercício de poder, tanto por parte do Estado quanto Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 das camadas sociais entre si, delineiam-se situações que envolvem diretamente o processo de “assujeitamento do outro”, o que demanda as mais diversas formas de violência e intimidação, disfarçada, na maioria das vezes. Visualiza-se os jogos de interesse, que se colocam na linha de frente das questões, no choque das relações de poder estabelecidas. Ainda quanto à constituição do poder do Estado brasileiro e de seus significados na organização do aspecto político da fronteira, outra observação importante está pautada na vida política local, elemento de fundamental importância para se analisar a existência ou inexistência dos sujeitos a partir do contexto da inclusão e/ou exclusão do cenário político. Essa relação se destaca no sentido de pertencimento a uma comunidade e o seu reconhecimento enquanto ser político, elemento que habilita o indivíduo e/ou grupos sociais à condição de manutenção e garantias da vida individual e de acesso aos direitos na vida social e coletiva, no Estado de exceção a vida dos “seres humanos” reduz-se à sua dimensão biológica, apolítica e sem direitos. Num confronto entre os referenciais teóricos arrolados e a realidade investigada na fronteira estudada, pode-se concluir portanto que, no universo das contradições fronteiriças, ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro afirma o caráter universal do seu ordenamento jurídico, que define teoricamente, “condições de igualdade” no acesso e proteção aos direitos dos sujeitos que compõe a sociedade de fronteira, nesse quadro, os seres que não se “constituem politicamente”, estarão sempre à margem de, ou seja, implica em concretamente, estar “dentro” e simultaneamente estar “fora”, numa condição de sobrevivência pautada na exclusão e na precarização da vida cotidiana. De uma forma bastante genérica, pode-se dizer que, a organização social da “modernidade” inseriu-se em um modelo capitalista de produção, forjando um modelo de constituição social à luz da perspectiva do pensamento Europeu, que se desdobrou trazendo novas complexidades para a interpretação das relações sociais, de produção e trabalho na fronteira. . Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, G. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 2002. _____________, G. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996 ______________, Pierre. O poder simbólico. 5 ed. 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Abordando esse fenômeno social, que representam esses conflitos, pretendemos destacar o papel muito relevante que a religião e a política desempenham neles, sem esquecer sua participação do processo de mudança social que se iniciou no Haiti contemporâneo a partir de 1990 – data à qual corresponde o início dos conflitos armados que se estendem até hoje. Com efeito, esta proposta, procurando entender por que os conflitos armados são tão freqüentes e repetitivos nesse município e como o poder político os administra, consistirá em abordar os conflitos armados não como fatalidade ou anomalia, nem como patologia social, mas como elemento ou fator de mudança social, enquanto o papel das religiões dominantes: o catolicismo, o protestantismo e o vodu, será analisado como espaço ou arena social e religiosa de reconstrução, de reorganização e de restruturação dos elos sociais, praticamente rompidos em situações de conflitos armados. Assim, além de procurar entender as causas e os impactos desses conflitos na lógica de mudança social no Haiti, os resultados dessa pesquisa pretenderão contribuir a ter um mínimo de compreensão da sociedade haitiana na sua complexidade em geral, assim como ressaltar, em particular, alguns elementos capazes de explicar por que os cidadãos do município de Cité Soleil estão mergulhados, de um lado, nessa situação de pobreza e de miséria crônica, nessa mobilidade social constante do outro. Palavras-chave: Haiti-Cité Soleil. Conflito armado. Conflito social. Religião. Gestão Política. Mudança social. ABSTRACT Doutorando em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a bolsa da CAPES, Jean FABIEN é Mestre em Sociologia pela mesma universidade e foi bolsista do CNPq no âmbito do programa PEC_PG. Sua dissertação defendida na área da Teoria Sociológica, sendo uma comparação teórica entre Durkheim e Weber, tem ênfase em Religião analisada como crença, instituição e cultura. As áreas de pesquisa pelas quais se interessa são: religião, teoria social, cultura, conflito social e mudança social. Possui duas Graduações, sendo a primeira em Ciências Sociais com ênfase em História e Geografia, pela Escola Normal Superior (2010), a segunda em Direito com interesse aos Direitos Humanos, pela Faculdade de Direito e Ciências Econômicas (2008), ambas as unidades pertencem à Universidade do Estado do Haiti (UEH). Sua pesquisa de doutoramento, que está em andamento, sendo inscrita na teoria da sociologia de conflito social, abrange os temas como religião, cultura política, gestão política e conflitos armados. * Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 This research is articulated around a central problem: armed conflict in the municipality of Cité Soleil, a city north of the capital Port-au-Prince Haiti. On this social issue, representing these conflicts, we intend to highlight the very important role that religion and politics play them, without forgetting its share of the social change process that began in contemporary Haiti since 1990 - the date that corresponds to the beginning of armed conflicts that extend to today. Indeed, this proposal, seeking to understand why armed conflicts are so frequent and repetitive in this city and how political power manages, is to address the armed conflict not as a fatality or anomaly, or as a social pathology, but as an element or factor social change, while the role of the dominant religions: Catholicism, Protestantism and voodoo, will be analyzed as space or social and religious arena reconstruction, reorganization and restructuring of social ties, almost broken in armed conflict situations. So in addition to trying to understand the causes and impacts of these conflicts in the logic of social change in Haiti, the results of this research will want to contribute to have a minimum of understanding of Haitian society in its complexity in general, as well as noting in particular some elements able to explain why the citizens of the municipality of Cité Soleil are dipped on the one hand, this situation of poverty and chronic poverty, that constant social mobility on the other. Keywords: Haiti-Cité Soleil. Armed conflict. Social conflict. Religion. Policy management. Social change. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 INTRODUÇÃO Esse artigo se refere a uma parte da nossa pesquisa teórica e empírica que será desenvolvida no Haiti, mais precisamente, no município de Cité Soleil, seu objetivo principal consiste em analisar e criticar, de um lado, a metodologia da gestão dos conflitos armados pelo poder político, o papel e o lugar das religiões neles a fim de compreender por que esses conflitos são tão freqüentes e repetitivos no município de Cité Soleil e quais seriam seus impactos no processo de mudança social, do outro. Com efeito, este estudo pretende ter um caráter inovador no sentido de que ela quer abordar um problema crucial muito pouco pesquisado, no entanto, não somente, os fatos e os dados estatísticos (qualitativos e quantitativos) relativos a esse fenômeno estão disponíveis; mas sobretudo, ele permanece no país há mais que 25 anos. É por isso que uma maior parte das nossas análises será baseada nesses dados estatísticos. Além disso, os conflitos sociais e violentos entre diferentes grupos armados em Cité Soleil fazem dele uma cidade mundialmente reconhecida pela freqüência desse tipo de fenômeno social. Contudo, para evitar toda interpretação e percepção errada, precisamos entender, em primeiro lugar, que esses conflitos – bem que a religião tenha um papel e um lugar interessantes neles – não são religiosos e nem têm a religião como causa originária, em segundo lugar, apesar de serem sociais e ligados a outros problemas econômicos muito complexos como desemprego, pobreza, repartição desigual das riquezas, eles são um problema político de segurança nacional, pois, segundo a ONU é da inteira responsabilidade do Estado de prevenir, gerir, resolver e transformar os conflitos armados a fim de garantir a segurança de cada cidadão e facilitar a paz social na sociedade. Duas razões principais justificam nossa preferência por Cité Soleil como nosso campo da pesquisa empírica. A primeira diz respeito ao aspecto histórico, como vamos ver adiante. É que dentre os municípios do Haiti, Cité Soleil foi o primeiro em que esses conflitos começaram a aparecer e a ocorrer, assim, a cidade passou a representar não somente o baluarte da repetição dos conflitos armados que, cada vez mais, fragilizam as relações sociais e complicam a vida social e econômica dos indivíduos, como também o bairro mais populoso e pobre do país. A segunda razão leva em consideração a posição geopolítica e estratégica de Cité Soleil enquanto um dos espaços geográficos mais Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 apropriados para analisar, por um lado, o processo de mudança social no qual os conflitos armados deveriam ter um papel importante assim como a fraqueza das políticas públicas relativas ao plano de segurança, questionar a racionalidade e a efetividade desse plano por outro. De fato, ao analisar e criticar o papel das religiões e as ações políticas do governo na gestão desse fenômeno que representam os conflitos armados, nossa ambição é tentar, a partir das teorias sociológicas de conflito social, de mudança social e do papel da religião nos conflitos, explicar cientificamente por que os conflitos armados em Cité Soleil são tão frequentes e repetitivos. Assim, começando por uma apresentação resumida da delimitação geográfica e do contexto histórico no qual nasceram os conflitos armados, esse ensaio se articulará acerca, primeiro, da teoria social do conflito, tratar-se-á de ver em que sentido esses estudos teóricos poderiam ajudar-nos a entender a essência dos conflitos armados em Cité Soleil; segundo, da teoria do papel das religiões na situação dos conflitos em que vamos tentar analisá-la enquanto espaço de reconstrução das relações sociais; por fim, terceiro, de uma crítica da gestão política feita pelo governo desse fenômeno, nesse aspecto vamos tentar salientar a falta de racionalidade e de efetividade no programa CNDDR. DELIMITAÇÃO GEOGRÁFICA E DADOS DEMOGRÁFICOS DE CITÉ SOLEIL Pela lei de 26 de março de 2002 Cité Soleil passa do estatuto de uma secção municipal ao estatuto de município. Esta lei define sua composição e sua delimitação. Composto com efeito de duas secções municipais Varreux 1 e Varreux 2, e de vinte nove distritos muito vizinhos, Cité Soleil tem os bairros mais vulneráveis aos conflitos armados do país dentre os quais podemos sublinhar Boston, Bois-Neuf, Soleil 1, Soleil 2 e Projet Drouillard1. Cité Soleil está limitado do leste para este a partir de Wharf Jérémie até o cruzamento Aviação, ao norte a partir da estrada Nacional 1 até o cruzamento Damiens e se termina no sul de Wharf Jérémie. Zona litorânea muito estratégica do ponto de vista econômico e geopolítico, Cité Soleil tem uma superfície de 22 km² e é cercado pelas zonas industriais e manufaturais no noroeste, pelas praias mais Esse bairro se tornou uma localidade de conflitos violentos entre grupos armados nos anos 2000, mais precisamente em 2004, após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide em 29 de fevereiro de 2004. 1 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 atraentes e bonitas no sul2 e pelo mar3 no nordeste. Ele está perto das grandes empresas que representam o pulmão econômico do país entre os quais podemos notar Brasserie National, La Couronne, Barbancourt (empresas de bebidas), Aciérie d´Haiti, Parc Industriel SONAPI, dentre outros. Porém, essas empresas e outras não são sob a jurisdição administrativa de Cité Soleil. Com uma população de 252.960 habitantes e uma densidade de 11.498,18 habitantes por quilômetros quadrados (IHSI4, 2003), o município de Cité Soleil é, não apenas, a favela mais populosa e pobre do país, mas também do Caribe inteiro. Segundo o último censo de 2013, 54,59% da população que mora lá tem dezoito anos, muito jovem, mas jovens que estão sem emprego, sem acesso à escola pública, aos serviços sanitários, alimentares, sociais e culturais básicos5. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DO INÍCIO DOS CONFLITOS ARMADOS EM CITÉ SOLEIL É difícil dizer exatamente quando e como os conflitos armados começaram em Cité Soleil, decifrar as estratégias de formação dos grupos armados. Essa dificuldade pode ser explicada pelo fato de que esses conflitos se inserem num contexto da historia contemporânea haitiana, ora, por outro lado, a historiografia contemporânea haitiana é ainda, do ponto de vista teórica e científica, muito pobre em matéria bibliográfica. Porém, apesar dessa dificuldade, resta que a maior parte da segunda metade (1950) da historia contemporânea haitiana foi marcada por regimes ditatoriais sucessivos cujo último é a ditadura dos Duvalier (1971), portanto, partindo desse pressuposto historiográfico, poderíamos apontar que os conflitos armados se iniciaram a partir dos anos 1990, alguns anos depois do fim, em 1986, da ditadura militar dos Duvalier (pai e filho) que durou quase 30 anos. Isso significa também que os conflitos armados estão estreita e paradoxalmente ligados ao fim desse regime autoritário e ao advento em 1987 do que é chamado de “transição democráticaˮ. Trata-se de uma zona chamada Côte des Archadins que, sendo situada na região norte, constitui o pulmão da indústria turística mais lucrativa do país sem esquecer também as praias bonitas do sul. 3 O bordo do mar representa o fundão de Cité Soleil e é povoado de construções anárquicas em papelão ou em chapa onde está vivendo a maior parte da população de Cité Soleil numa situação infra-humana e catastrófica. Por falta de infraestrutura, essa zona é muito pouco acessível aos policiais, aos serviços sanitários, aos negócios etc. 4 Instituto Haitiano de Estatística e de Informática 5 Dados geográficos e demográficos do Ministère de l´Intérieur et des Collectivités Territoriales (Ministério do Interior e das Coletividades Territoriais). Disponível em: http://www.mict.gouv.ht/Commune/147. 2 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 A ampliação e degeneração desse fenômeno acontecem sob o regime democrático. A negligência das autoridades governamentais causou que alguns grupos envolvidos em violências coletivas começaram a tomar o controle desse município teorizando a população e a enfrentarem-se violentamente entre si a partir dos anos 1995, enquanto a situação social e econômica dos indivíduos deteriorou. Antes do uso frequente das armas de fogo, até o fim de 1993, as relações entre os diferentes grupos sociais eram marcadas por confrontações não violentas, ou seja, conflitos sociais sempre tiveram na comunidade de Cité Soleil, como isso acontece normalmente em qualquer sociedade, mas, não se tratam de conflitos armados a um nível tão elevado hoje. Além disso, é importante sublinhar que o período da transição democrática, que se iniciou com uma nova constituição a de 29 de março de 1987, foi caracterizado por grandes turbulências políticas, econômicas e sociais, estas tiveram conseqüências sobre cada parte do país em particular as zonas desfavorecidas e pobres, neste caso Cité Soleil, Martissant, La Saline, Solino, Bel Air dentre outros. Portanto, antes dos anos 1990 os conflitos sociais entre os cidadãos de Cité Soleil eram, porém, pacíficos, sem violência e não tinham todos esses efeitos negativos de hoje. Assim, é importante salientar que no momento em que os grupos armados têm começado a se confrontar violentamente em num espaço que se chama Cité Soleil para tentar controlá-lo, neste contexto histórico o país sofreu uma instabilidade política marcada por golpes e sucessões de regimes militares (PIERRE-CHARLES, 1967; LEHMANN, 2005; NICOLAS, 2006). Com efeito, após ter ganhado as eleições presidenciais em novembro de 1989, Jean-Bertrand Aristide foi vítima, em 1990, de um golpe militar e exilado para os Estados Unidos. Consequentemente, o país passou 4 anos a ser governado por um contingente militar dirigido pelo general Raoul Cédras6. Foi exatamente após esse golpe brutal que alguns jovens começaram a se envolver em crimes organizados e violências coletivas em Cité Soleil, sem poder saber a origem e as razões de um armamento que se fazia clandestinamente. Nesse sentido, podemos dizer que esse golpe de 1990, que acabou de fragilizar a transição democrática, tem certas relações causais com o inicio dos conflitos armados assim como de outros tipos de crime e de violência que a população de Cité Soleil passou a sofrer. Assim, após a queda da ditadura duvalierista, 6 Raoul Cédras é uma das grandes personalidades da CIA no Haiti que foi utilizado pelos Estados Unidos para organizar com o exercito haitiano o golpe de 1990. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Haiti falhou um momento crucial, a transição democrática, para mudar seu sistema político, seu projeto de democracia continuou a enfraquecer e seu sistema político se tornou cada vez mais vulnerável e frágil. A partir de 1995, após o retorno de Aristide em 1994, os conflitos armados já atingiram um estádio muito pior até 2001: O período que marcou a grande degeneração dessa situação que acabou de escapar ao controle das autoridades governamentais e locais. Entre 2001 e 2003, as violências aumentaram consideravelmente em Cité Soleil e o transformaram em quase um campo de guerra. Essa situação catastrófica, que afetou principalmente as famílias que vivem lá fragilizando sua vida social, foi uma das causas do segundo exilo de Aristide em 2004 para a África do Sul. Se, segundo alguns atores políticos da oposição democrática nesse período, o exilo de Aristide seria uma solução à crise política e à diminuição das violências coletivas, a realidade mostrou o contrário, pois, após esse exilo, os conflitos armados se tornam piores e, no caso de Cité Soleil, a cidade passou acerca três anos a ser controlada por grupos armados sem a presença das autoridades policiais e judiciárias. Todavia, entre o fim de 2008 e o início de 2010 antes do terremoto, Cité Soleil passou por um momento de calma superficial, os conflitos armados diminuíram um pouco, as atividades sociais, culturais e econômicas voltaram timidamente, de certa forma, a seu ritmo mais ou menos normal. Na verdade, não se trata de uma diminuição real ou de um fim dos conflitos, pois são latentes. É o que chamou nossa atenção em Freund quando sustenta que, em certas situações, os conflitos podem parar por causas independentes da vontade dos atores e sem a intervenção de um terceiro que, segundo ele, é sempre importante na resolução dos conflitos (FREUND, 1983, p. 287-301). Como vamos ver adiante, apesar da contribuição do programa CNDDR7 na criação desse clima de paz aparente, não se trata de uma metodologia de resolução e de transformação dos conflitos armados. Além disso, após o terremoto de 2010 que destruiu a quase totalidade da capital do país a situação dos conflitos armados em Cité Soleil se agravou, porque as prisões civis formam atingidas e dentre vários indivíduos que fugiram, se encontram chefes de grupos armados que, sendo muito perigosos para a sociedade, foram envolvidos em crimes organizados. Isso acabou de complicar mais o trabalho dos policiais e a 7 Comissão Nacional de Desarmamento, Desmobilização e Reinserção. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 comunidade de Cité Soleil se encontrou numa situação muito delicada e quase isolada. Isso acabou também de aumentar os confrontos armados entre os grupos, assim, o crescimento dos atos de criminalidade e do número de grupos armados são dentre as principais conseqüências desse terremoto sobre a situação do conflito armado que se desenvolve em Cité Soleil, uma cidade que permanece vulnerável sobre o plano demográfico e econômico. Até hoje, Cité Soleil permanece a cidade cuja população está crescendo a um ritmo exponencial sem um plano político de planejamento territorial, ela aparece ser rompida com o resto da sociedade vivendo num complexo isolamento. Os olhos do mundo inteiro e da comunidade internacional se projetam sobre ele mais precisamente a partir dos anos 2001 para classificá-lo na lista das zonas vermelhas. Assim, a vida socioeconômica nesse bairro fica cruel e infra-humana: 7/10 habitantes gastam por dia menos que um dólar americano (1 U$) para sobreviver, 60% da população com a idade de trabalhar está sem emprego (MICT, ibid). Ademais, as atividades econômicas são pouco lucrativas, o que impede ao município ter seu próprio orçamento de funcionamento que depende em maior parte do orçamento do governo central. Portanto, Cité Soleil não gera suficientemente receitas fiscais próprias que lhe permitiriam criar mais atividades econômicas e ter sua autonomia financeira. Esse percurso histórico nos oferece um panorama da situação de violência que cresce em Cité Soleil e que permanece até hoje, mas, do ponto de vista teórica, até lá ainda nada foi dito sobre a teoria social do conflito, o que essa teoria tem a dizer-nos e como ela, em particular no caso de Cité Soleil, poderia ajudar-nos a entender melhor essa realidade para problematizar mais nosso objeto de pesquisa. É o ponto a abordar agora. A TEORIA SOCIAL DO CONFLITO O conceito de conflito é de uso muito comum, e como todo conceito é suscetível ser vítima de um uso abusivo, sobretudo quando ele é confundido com as noções como problema, competição (forma clássica de conflito como diz Weber8), desacordo, tensão e violência. O conflito se encontra em todos os níveis da vida social: família, grupos de amigos, equipes, empresas, universidade etc. Qualquer situação da vida pode ser um catalisador de conflito, e podemos dizer que um conflito nasce a partir dos objetivos 8 Max Weber. Économie et Société. Paris: Plon, 1971, p. 24-26. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 incompatíveis (FREUND, Op. cit, p. 19; ONU, 2001, p. 4). Nesse sentido, precisamos ficar atentos que o conflito faz parte das regras da vida humana e social. O conflito é uma fase normal pela qual a sociedade tem que passar, então não precisa dramatizá-lo. Segundo Freund, um conflito é definido pela dissolução de um terceiro e a constituição de dois grupos antagônicos: os amigos e os inimigos (Op. cit. p. 14). O conflito não é um simples desacordo, segundo Burton (1997, 1998, 2001), mesmo que todo conflito comesse a parti daí, mas é um fenômeno social que deve ser analisado segundo os métodos analíticos. Isso quer dizer que, entendido como uma prática social tão velha como a humanidade, o conflito se apresenta, segundo Heráclito de Efésia citado por Christine Marsan9, como a melhor fonte originária da verdadeira harmonia social. O sociólogo alemão Lewis Coser (1967) destacou que os conflitos surgem a partir do momento em que uma organização falha a seu papel de resolver os problemas considerados como fundamentais por seus membros. Para ele, os conflitos são fenômenos sociais normais na sociedade e têm como a missão de manter a ordem social e fortalecer a identidade e a organização social. Ele acrescenta que o conflito tem a ver com as demandas insatisfeitas da população que encontram um obstáculo em comparação aos interesses burocráticos que ele chama “interesses criadosˮ (COSER, 1967, p. 34-35). A teoria social do conflito de Reimann (2004) chama nossa atenção sobre três maneiras fundamentais de abordar o conflito na sociedade. Primeiro, como um problema de ordem política, segundo, como um catalisador de mudança social, e terceiro, como uma luta não violenta pela justiça social (REIMANN, 2004, p. 7). Numa abordagem objetiva, acrescenta ele, a origem do conflito se encontra no caráter social e político assim como na estrutura da sociedade, o que significa que o conflito sofrido pela sociedade pode não ter nada a ver com as percepções e os sentimentos das partes que se envolvem nele10. Freund, por sua vez, chama também nossa atenção sobre o 9 « A oposição dos contrários é condição da evolução das coisas e ao mesmo tempo princípio da lei. O estado de estabilidade, de concórdia e de paz é apenas a confusão das coisas na iluminação geral (...) O que é contrário é útil e é do que está em luta que nasce a mais linda harmonia; tudo se faz por discórdia...O combate é pai e rei de todas coisas; de alguns, ele criou deuses, de alguns homens, dos uns escravos, dos outros homens livres. » (MARSAN, 2008, p. 11) (Nossa tradução) 10Cordula, Reimann. Assessing the state of the art in conflict transformation. Assessing the State of the Art in Conflict Transformation. In: Berghof Handbook for Conflict Transformation. Berghof FoundationOnline, 2004, p. 3 a 7. Disponível em: http://www.berghofPrograma de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 mesmo aspecto sublinhando os fatores exteriores ao conflito. Nascido num espaço de relação social, todo conflito é imposto por um contexto social bem definido exterior aos atores e estes entram em conflito pela causa desse contexto social. Se eles conseguem resolver o conflito antes da sua explosão violenta, isso é bom para a sociedade, todavia, isso não significa que o conflito que não existe mais, mas porque o contexto social, histórico e político no qual se insere mudou assim como as conjunturas (Op. cit. p. 2021). O argumento de Honneth leva em conta a questão da individualidade para ressaltar a natureza social do conflito. Segundo ele, o fenômeno do individualismo, que está conhecendo um desenvolvimento vertiginoso nas sociedades contemporâneas, está na base do conflito social pelo reconhecimento e pela identidade, assim, a individualidade se torna, apesar de tudo, uma das suas diversas características. Para ele, o conflito social passa pela luta do indivíduo por reconhecimento de sua própria identidade, de seus próprios valores culturais. Ele considera essa luta por reconhecimento como um desenvolvimento social. Quando os indivíduos, diz ele, entram em conflito não é porque querem uma auto conservação ou um aumento do seu poder, como Hobbes e Maquiavel o percebem, mas porque a identidade pessoal ou coletiva deles está ameaçada, por isso, precisam lutar para fazê-la respeitar defendendo sua moral (HONNETH, 2003, p. 15-17). Em regra geral, a teoria social do conflito nos ensina que um conflito tem objetivos: primeiro, mostrar a fraqueza, a força e a vulnerabilidade do sistema social e a necessidade de mudá-lo parcialmente ou integralmente, segundo, permitir entender as diversas dimensões e facetas da sociedade, enfim terceiro, salientar a fragilidade e a complexidade das relações humanas e sociais. O CONFLITO COMO VECTOR DE RELAÇÃO SOCIAL Se cada relação humana que se constrói é uma nova possibilidade de conflito que se cria, então a relação humana é em si mesma conflituosa. E se a relação humana é conflituosa isso significa também que a conflitualidade é inerente e imanente à vida humana, e como os seres humanos são atores sociais, então o conflito caminha para uma foundation.org/fileadmin/redaktion/Publications/Handbook/Articles/reimann_handbook.pdf. Acesso em: 30 maio 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 construção de relação social, seja durável ou efêmera. Portanto, qualquer tipo de relação social é conflituoso, pois o conflito é da ordem da vida imediata e nos leva a criar outras relações sociais. Nesse sentido, Freund sustenta: “O que convém a esclarecer, é que o conflito pertence à ordem das relações sociais que na sua reciprocidade incluem uma discórdia que pode ir até a inimizade (...) Importam pouco as razões circunstanciais de ordem reivindicativa, ideal ou afetiva que o motivam, o conflito nasce da escolha diferente que fazem os participantes de uma relação social recíproca que, por seu sentido visado subjetivamente, envolve um desacordo. O que tem de observar do ponto de vista sociológico, é que essa escolha não é inteiramente livre, pois é condicionada, ao menos indiretamente, pelo contexto socialˮ (FREUND, Op. cit. p. 21) (Nossa tradução). A teoria social de conflito de Simmel (1983) nos ensina que não devemos continuar a enxergar o conflito como um monstro destruidor e devastador das relações humanas, como um fenômeno que complica, destrói ou bloqueia o funcionamento da sociedade. Ao contrário, o conflito precisa ser entendido numa perspectiva construtiva, pois pode levar a um melhor andamento do corpo social. Simmel apresenta o conflito como aquele fenômeno poderoso suscetível permitir aos membros de um grupo uma melhor integração social. Segundo ele, os comportamentos antagonistas não têm só uma finalidade social negativa, mas permitem a cada um de nós conhecer melhor seu caráter, sua atitude e seu comportamento a fim de chegar a uma vida de relação social equilibrada11. O conflito social tende ao progresso da sociedade, em outras palavras, os conflitos sociais participam também do processo de criação de valor e de desenvolvimento da sociedade (Op. cit.). Coser, por sua vez, considera que os conflitos sociais têm um papel crucial de mudança social. Para ele, a sociedade é dinâmica e não estática, e os conflitos fazem parte desse dinamismo. Os conflitos, como, por exemplo, os conflitos violentos e armados tendem, apesar dos efeitos negativos, geralmente a um sinal de mudança social. Ele afirma: “El conflicto es el tábano del pensamiento. Estimula nuestra percepción y nuestra memoria. Fomenta la investigación. Sacude neustra pasividad de ovejas, incitándonos a observar y a crear (...) El conflicto es el sinequa non de la reflexión y la inventivaˮ (COSER, 1967, p. 26). A oposição de um membro do grupo a um companheiro, por exemplo, não é um fator social puramente negativo, quando vezes tal oposição pode tornar a vida ao menos possível com as pessoas realmente insuportáveis (...) Nossa oposição nos faz sentir que não somos completamente vítimas das circunstâncias. Permite-nos colocar nossa força à prova conscientemente e só dessa maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das quais, sem esse corretivo, nos afastaríamos a todo custo. (SIMMEL, 1983, p. 127). 11 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 Nesse sentido, os conflitos armados em Cité Soleil, apesar da sua natureza violenta que poderia ser objeto de um estudo mais profundo pela sociologia do crime ou da violência, podem ser um índice a ajudar-nos a entender melhor a mudança social que está acontecendo no Haiti contemporâneo. Em resumo, essa abordagem teórica do conflito social nos permite entender que o conflito entre grupos sociais é uma condição da vitalidade da existência coletiva (TERRIER e MÜLLER, 2013, p. 6). Ele é uma situação que nós somos condenados a viver cada dia e com a qual devemos acostumarnos. Baseando-nos nesse breve percurso histórico em Cité Soleil e partindo dessa fundamentação teórica da sociologia do conflito analisada em cada um dos autores, podemos levantar três paradigmas para prosseguir nossa pesquisa: primeiro, os conflitos armados em Cité Soleil são de ordem social e política, segundo, eles se escrevem numa dinâmica de mudança social no comportamento dos indivíduos, na sua vida social e relacional, enfim, terceiro, eles são ao mesmo tempo de natureza interna e externa. O PAPEL DA RELIGIÃO NOS CONFLITOS ARMADOS E A SITUAÇÃO RELIGIOSA EM CITÉ SOLEIL. Existe uma teoria do papel social ou político da religião nos conflitos armados? É uma pergunta que não será respondida nesse artigo, mas, vista como instituição, espaço social de organização das relações sociais, a religião pode ter, segundo Garde (2003), Yakira e Sela (2003), Marshall ([199-?]) e Mori (2010), um papel significativo nos conflitos, sejam eles violentos, armados ou não. Portanto, apesar dessa fraqueza teórica nesse domínio, algumas pistas chegam a enfatizar o papel da religião nos conflitos em três abordagens. Primeiro, no âmbito do seu papel moral, a religião pode ajudar na prevenção e na resolução do conflito desempenhando um papel de interlocutor ou de mediador para chegar à paz entre os grupos rivais. Num relatório preparado por um grupo de crentes cristãos, judeus e muçulmanos reunido na Suécia, lemos o seguinte: “In such encounters religious communities can find ways both to prevent conflicts and to minimise violence when conflicts appear (...) We were concerned with the double role we can perceive when religion is used sometimes to raise or stirup conflicts and at other times to prevent or stop violent actionsˮ.12 12 Christian Council of Sweden (Org.) e al., 2005, p. 6. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 Em segundo lugar, a religião pode ser uma das fontes do conflito, seu canal de alimentação e de provocação, ou seja, apesar de uma ancoragem social e política, o conflito pode ter suas raízes dentro da religião si mesma. Nesse sentido, podemos falar de conflitos religiosos ou guerra das religiões (YAKIRA e SELA, 2003; GARDE, 2003). Em terceiro lugar, – e é esse último aspecto que gostaríamos de investigar mais adiante apesar da fraqueza bibliográfica –, no âmbito do seu papel de fundamento de elo social e de solidariedade social, nos conflitos a religião pode se tornar a última alternativa em matéria de restabelecimento e de fortalecimento das relações sociais num espaço de conflitos sociais. Os dois últimos aspectos fazem lembrar, entretanto, um duplo papel dicotômico da religião: Essa astúcia de ser ao mesmo tempo um pomo de discórdia e um cimento social. Infelizmente, a tendência de hoje é esquecer ou ignorar esse papel significativo das religiões nos conflitos, sequer as pesquisas científicas não a levam em conta como lamenta Katherine Marshall: “Someone did a survey of over 1,000 academic articles on conflict, and only three had given systematic attention to the role of religionˮ (MARSHALL, [199-?], p. 1). Essa ignorância concerne também os conflitos armados em Cité Soleil. Quando isso acontece, esquece-se que a religião poderia ter um papel a desempenhar nesse fenômeno, para se concentrar somente nas questões política e econômica. Com certeza, ela, a religião, tem um papel significativo nesses conflitos. Por isso, dentre as três maneiras de enxergar o envolvimento da religião13 nos conflitos, a que consiste em ver na religião o fundamento da coesão social nos interessa mais e, no caso de Cité Soleil, as religiões catolicismo, protestantismo e vodu, do ponto de vista institucional e organizacional, serão estudadas como estrutura social que consegue reorganizar, restabelecer e fortalecer as relações sociais dentro de um espaço de conflitos armados. Sendo a religião predominante no Haiti, 54,7% da população pertencem ao catolicismo, vem depois o protestantismo composto de várias confissões religiosas cujas mais influentes são os Baptistas 15,4% e os pentecostais 7,9%. Os que se dizem sem A religião entendida do ponto de vista de instituição, de organização, de cultura, de crença e de prática social e espiritual na vida cotidiana dos Haitianos. 13 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 religião são de 10,2%14. Porém, a religião popular e enraizada na história social e cultural do país é o vodu: Expressão simbólica da resistência negra durante todas as guerras que levaram à independência. Marginalizado e discriminado, é difícil dizer, estatisticamente, o número de crentes que pertencem ao vodu, todavia, isso não impede que seja tecido à cultura social e religiosa dos Haitianos (HURBON, 2002; FRIDOLIN, 2000; FOUCHARD GUIGNARD, 1993). Embora seja difícil dizer também exatamente – ainda por falta de dados estatísticos – quantas igrejas católicas, protestantes e quantos templos de vodu, les péristyles, existem em Cité Soleil, mas podemos dizer que os cultos e ritos dessas principais religiões são, não apenas, presentes na comunidade de Cité Soleil, mas sobretudo, desempenham um papel crucial nas situações de conflitos armados enquanto espaço que consegue recoser essa solidariedade social que os habitantes procuram. Ou seja, o espaço religioso vira em situações de conflitos violentos a arena social de reorganização da vida social e de reconstrução das relações sociais entre os indivíduos. Com efeito, durante os conflitos armados em Cité Soleil, temos feito algumas observações etnográficas interessantes. A primeira observação se traduz pela atitude mesma das religiões que, chamando muito nossa atenção, se oferecem como alternativa de integração social e demonstraram a capacidade de ser o centro de reconforto social para uma comunidade em aflição e em busca de uma vida de relação humana melhor, isto é, um espaço de coesão social, o no qual, apesar de tudo, os elos sociais se fortalecem, e as relações sociais dos fiéis entre si e destes com o resto da comunidade podem ser revitalizadas. Do outro lado, não são somente as Igrejas que vão até as pessoas através dos programas de evangelização, mas também, as pessoas procuram as Igrejas sobretudo nesses momentos de conflitos além de manifestarem contra isso. Particularmente nesses momentos de conflitos, as igrejas tanto católicas como cristãs e les péristyles são transformados em lugar de efervescência coletiva e de terapia social. Nesses espaços os indivíduos conseguem construir uma vida de relação social, em suma, em período de conflito armado, a vida social real está dentro da arena religiosa. Assim, a religião ajudou os indivíduos a ter coragem e força nessas situações difíceis, a 14 Dados disponíveis no site de l´Institut Haitien de Statistique et d´Informatique (IHSI) (Instituto Haitiano de Estatística e de Informática). Disponível em: http://www.ihsi.ht/ .Acesso em: 2 abr. 2014. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 ter esperança e confiança em uma ascensão social e em um progresso econômico no futuro. A segunda observação que, no desenrolamento dos conflitos armados em Cité Soleil, chamou nossa atenção é o profundo respeito dos grupos que se enfrentam tanto para as Igrejas, templos e outros espaços religiosos ou lugares de culto como para os símbolos religiosos, por exemplo, a cruz, de um lado; tanto para os dias de atividades religiosas principalmente os cultos dominicais15, como para os atores religiosos (pastores, padres, fiéis, hougans etc.). É interessante observar isso por que já, a partir daí, temos algumas pistas para aprofundar nossas análises criticas, pois, o que pode explicar a origem e as razões desse sentimento de respeito; por que durante os conflitos em Cité Soleil, a maioria das Igrejas católicas e protestantes, templos de vodu e de outras denominações, foi protegida; por que durante os conflitos armados em Cité Soleil as demandas de religiosidade aumentam; se a religião desempenha esse papel relevante de reconstrução das relações sociais por que os conflitos continuam sendo frequentes e repetitivos em Cité Soleil, como as Igrejas (católicas ou protestantes) e les péristyles foram transformados em lugar de efervescência coletiva e de terapia social nos períodos de conflitos armados; são dentre as principais perguntas às quais tentaremos responder ao longo da nossa pesquisa. Assim, um dos méritos dessa pesquisa será tentar abordar essa realidade social e empírica baseando-nos na teoria e na metodologia em sociologia que permitem construir um problema sociológico, pois, de qualquer jeito, estamos em frente de um problema sociológico a analisar. RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E CONFLITOS ARMADOS Hoje em dia, no que dizem respeito aos conflitos armados em Cité Soleil ou em qualquer outro município vulnerável do país onde existem as violências coletivas, as principais perguntas que se colocam são seguintes: Quais são as relações entre os dirigentes políticos, passados ou presentes, e os grupos armados? Qual é o papel do governo na gestão dos conflitos armados? Com efeito, desde a ditadura dos Duvalier até hoje, na cultura política haitiana, para que um governo possa se manter no poder, ele procura o apoio sistemático de um Os conflitos armados, como são latentes e momentâneos, aconteceram raramente no domingo, dia ao qual corresponde a maioria das atividades religiosas tanto em Cité Soleil como no Haiti em geral. 15 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 grupo armado chamado milícia – corpo paralelo à instituição policial – formada geralmente dos indivíduos com mais necessidades sociais e econômicas, ou seja, os que são vulneravelmente expostos à exploração, a maioria dentre eles é jovens, desempregados e analfabetos. Nesse sentido, para se proteger contra um eventual golpe ou assassinato, o ditador François Duvalier criou em 1957 os Tontons macoutes (PIERRE-CHARLES, Idid). Após o golpe de 1990, les Fraph foram a milícia formada paralelamente ao exercito haitiano pelo regime militar provisório dirigido pelo general Raoul Cédras para fortalecer e proteger o sistema autoritário (DANROC e ROUSSIÈRE, 1995). Seguindo essa trajetória, em 2001 conhecemos outra apelação dos grupos armados além do corpo policial16, a saber, “les chimèresˮ, milícia mais desorganizada que as duas primeiras, que fez seu aparecimento acerca 2002 sob o governo de Aristide e que, aparentemente, segundo algumas críticas17, lhe teria ajudado a combater os que se têm oposto ao seu governo entre 2001 e 2004. Esse último caso nos permite enxergar como, infelizmente, uma administração política central, explorando os grupos sociais vulneráveis, poderia estar atrás dos conflitos armados ao invés de resolvê-los e transformá-los em proveito da sociedade. Aí vem essa pergunta: Quais são as políticas públicas do governo haitiano para tentar agir sobre esse problema? A CNDDR18: SEU SUCESSO E SUAS FRAQUEZAS Do ponto de vista político e de segurança nacional Cité Soleil representa uma zona de grande desafio para as autoridades tanto em nível nacional, municipal como internacional19. Sim, existe uma prefeitura, representante direta do governo, que tem como papel executar o plano do governo, há um deputado e alguns delegados do governo. No que diz respeito à segurança, há uma delegacia policial composta de um 16 O exercito haitiano foi, pela primeira vez desde a independência haitiana, desmontado de acordo com os dirigentes haitianos. O principal ator internacional desse desmantelamento são os Estados Unidos. 17 Essas críticas são sobretudo de natureza mediática, isto é, feitas por atores políticos em artigos publicados nos jornais ou em intervenções feitas na mídias. O mais famoso é o cotidiano Le Nouvelliste. Disponível em: http://www.lenouvelliste.com/. Acesso em: 30 abr. 2013. 18 Comissão Nacional de Desarmamento, Desmobilização e Reinserção. 19 A Minustah simboliza a presença física da comunidade internacional no município de Cité Soleil em particular e no Haiti em geral. Mas, essa presença, ao invés de ser vista como uma solução, é sempre considerada como uma provocação, uma ameaça aos direitos dos habitantes considerando os casos de estupros, de agressões sexuais e de outros crimes cujos soldados onusianos são acusados. Cabe ressaltar, por outro lado, que a Minustah chegou no Haiti em 2004 segundo a resolução 1529 adoptada pelo Conselho de Segurança da ONU. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 pequeno número de policiais. Porém, apesar desse aparato administrativo isso não impede que os conflitos armados se reproduzam cada vez mais. Essa fraqueza precisa ser analisada a partir do plano político de segurança chamado CNDDR. Com efeito, auxiliado pelo PNUD, a CNDDR nasceu em 2006 para aplicar a política pública do governo relativa à segurança nacional. A meta principal é a de restabelecer a segurança nas zonas de grandes violências coletivas e armadas, principalmente, em Cité Soleil, enquanto a metodologia é a entrega das armas e a reinserção social dos indivíduos envolvidos em situações de violência armada nas atividades culturais e educacionais da sociedade. Apesar de alguns resultados positivos em termos materiais, como a reconstrução do Tribunal de Paz, da Prefeitura Policial, a criação de algumas atividades sociais e culturais, embora efêmeras e fracas do ponto de vista de conteúdo, a CNDDR foi fortemente criticada e, no caso de Cité Soleil, ele conheceu um fracasso enorme como vamos vê-lo adiante. Se uma maioria dos habitantes de Cité Soleil enxergou na aplicação do programa CNDDR uma esperança, uma coisa positiva para que a paz possa voltar ao município, alguns atores políticos e econômicos da sociedade a criticaram, pois, segundo eles, trata-se de um programa do governo para proteger os bandidos, ele não tem nada a ver com a melhoria da segurança dos cidadãos em Cité Soleil. Em consequência, em segundo lugar, ele foi percebido como uma espécie de refúgio para esconder os bandidos e dar continuidade à impunidade. Terceiro, as principais autoridades de Cité Soleil, a saber, o deputado e o prefeito foram acusados e se acusaram reciprocamente por aproveitar desse programa para politizar os conflitos armados, ganhar dinheiro e proteger seus próprios grupos nos quais poderiam se encontrar pessoas envolvidas nos conflitos armados. Portanto, o programa da CNDDR foi um grande fracasso no caso de Cité Soleil por ao menos duas razões principais. Primeiro, em vez de desempenhar um papel de mediador para tentar transformar os conflitos, a CNDDR agiu como agente de força, de pressão e de repressão por conta do governo deixando de lado a metodologia e a técnica de abordagem dos conflitos propostas por alguns autores como Carré (2013), Marsan (2006), Pekar (2008), segundo esses autores, a etapa fundamental para abordar um conflito consiste em ter plena consciência da complexidade e da fragilidade desse conflito implicando os atores. A ONU (Op. cit.), por sua vez, inspirando teoricamente Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 18 desses autores e de outros, sublinha a importância da comunicação na abordagem dos conflitos, ou seja, segundo a ONU, é preciso saber comunicar com os atores dos conflitos, comunicar significa escutar e compreender suas necessidades sem, no entanto, precisar concordar com eles. A finalidade da metodologia proposta por esses autores e pro ONU consiste em chegar a transformar o conflito social em oportunidade de desenvolvimento. A segunda razão é que, sendo politizada, a CNDDR só levou em conta os aspectos políticos dos conflitos armados ignorando os aspectos sociais, culturais, religiosos e econômicos. Assim, a situação de conflitos em Cité Soleil permanece iminente e latente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados possíveis a atingir na análise do papel das religiões nos conflitos e da gestão política que o governo fazem deles se baseiam nas hipóteses segundo as quais, em primeiro lugar, a repetição e a frequência dos conflitos armados em Cité Soleil resulta de uma fraqueza nas políticas públicas empregadas pela administração central na abordagem desse fenômeno, isso acabou de gerar nesse município um problema de exploração social que aumenta a pobreza e a miséria, fragiliza a vida econômica; em segundo lugar, no cumprimento do seu papel de coesão social, a religião, de certa forma, se substituiu ao Estado como pacificador e organizador das relações sociais. Os conflitos armados lhe abrem um caminho para se tornar mais forte e indispensável na comunidade de Cité Soleil, portanto, o espaço religioso se torna uma arena de reestruturação das relações sociais e de revalorização dos indivíduos como seres portadores de dignidade e de direitos. Assim, apesar dos seus efeitos negativos, os conflitos armados em Cité Soleil traduzem um sinal de mudança social no Haiti e podem ser explorados para transformar a vida dos habitantes nesse município. BIBLIOGRAFIA SELETIVA BURTON, John. Conflict provention as political system. The International Journal of Peace Studies, v. 5, n. 1, spring 2001. Disponível em: http://www.gmu.edu/programs/icar/ijps/vol6_1/Burton2.htm. Acesso em: 10 ago. 2014. ______________. Conflict resolution: Towards problem solving. The International Journal of Peace Studies. Disponível em: www.gmu.edu/programs/icar/pcs/burton.html. Acesso em: 10 ago. 2014 ______________. Conflict resolution: The human dimension. The International Journal of Peace Studies, v. 3, n. 1, jan. 1998. Disponível em: http://www.gmu.edu/programs/icar/ijps/vol3_1/burton.htm. Acesso em: 10 ago. 2014. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 19 CARRÉ, Christophe. Sortir des conflits: Le conflit c´est la vie! Paris: Eyrolles, 2013. 181 p. CHRISTIAN COUNCIL OF SWEDEN (Org.) e al. Report from an Inter-Religious Peace Conference: Tools For Peace? The role of religion in conflict. Sweden, 2005. Disponível em: http://www.skr.org/wp-content/uploads/2005/10/Tools_for_Peace.pdf. Acesso em: 3 maio 2015. DANROC, Gilles e ROUSSIÈRE, Daniel. La répression au quotidien en Haïti, 19911994. Gonaïves, 1995. FOUCHARD GUIGNARD, Mercédes. La legende des loa, vodou haïtien. Port-auPrince: Déita, 1993. FRIDOLIN, Saint-Louis. Le vodou haitien: reflet d´une société bloquée. Paris: L´Harmattan, 2000. GARDE, Paul. Le role des religions dans les conflits balkaniques. Cairn. info, v. 2, n. 14, 2003, p. 91-104. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-cites-2003-2-page-91.htm. Acesso em: 3 maio 2014. HURBON, Laënnec. Dieu dans le vaudou haïtien. Paris : Payot, 1972, Port-au-Prince : Éd. 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E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 20 SIMMEL, Georg. "A natureza sociológica do conflito". In: MORAES FILHO, de Evaristo (Org.). Georg Simmel: Sociologia. Ática: São Paulo, 1983, p. 121-134. _____________. "A competição" in MORAES FILHO, Evaristo (Org.). Georg Simmel: Sociologia. Ática: São Paulo, 1983, p. 135-149. WEBER, Max. Économie et Société. Paris: Plon, 1971. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 1 Para além da discussão entre Estado e Movimentos Sociais: a experiência dos sujeitos em luta no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) Marina Ferreira Giaquinto - UFSCar1 [email protected] Agência financiadora: Capes GT: Conflitos Sociais, Instituições e Política RESUMO No decorrer da década de 90, a implantação do neoliberalismo no Brasil e as conquistas objetivadas na constituição de 1988 alteraram o cenário de atuação anteriormente vivido pelos movimentos sociais das décadas de 70 e 80. Este novo contexto será marcado, de um lado, pela ampliação de espaços institucionais de participação política da população e desenvolvimento de políticas públicas e, do outro, pelo enfraquecimento de parte destas organizações envolvidas nas lutas sociais. Com as novas problemáticas que assolam o país e, em especial, com a ascensão dos governos petistas nos anos 2000, a bibliografia específica sobre movimentos sociais rediscuti as diversas possibilidades de se fazer “política”. Para isso, terão como um dos principais focos de análise a reflexão sobre as relações de aproximação e distanciamento estabelecidas entre os movimentos sociais e o Estado. Delineando tal debate, este trabalho propõe, a partir da análise do “Movimento dos Trabalhadores Sem Teto” (MTST), problematizar a forma homogeneizante com que parte da bibliografia trabalha hoje a discussão sobre movimentos sociais. Propondo um olhar voltado para dentro dos movimentos, e mais especificamente para a experiência de luta dos sujeitos, busca-se no trabalho de campo novos indícios sobre o atual contexto dos conflitos sociais. Palavras chave: direito, participação, movimentos sociais, experiência INTRODUÇÃO (…) o que está fundamentalmente em disputa são os parâmetros da democracia, as próprias fronteiras do que se deve ser definido como a arena política: seus participantes, instituições, processos, agenda e campo de ação. (ALVAREZ, 2000, 1 Formada em Ciências Sociais na licenciatura e no bacharel pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara. Como bolsista Capes/Cnpq participou por dois anos do PIBID (Programa de Iniciação à Docência), tendo paralelamente uma pesquisa não financiada sobre a configuração dos movimentos sociais nas décadas de 70 e 80 no Brasil. Hoje, mestranda em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e bolsista Capes, atua na área de pesquisa sobre movimentos sociais. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 p.15 ) O objetivo de analisar os movimentos sociais na contemporaneidade vem sendo novamente desbravado por diversos pesquisadores. Tendo seu auge a década de 70 e 80, a problematização sobre os movimentos parece ter se reduzido junto ao seu encolhimento no cenário das disputas políticas da década de 90. Com os atuais conflitos trazidos a tona pela sociedade, o debate sobre movimentos sociais volta a ganhar abrangência através de reflexões diretamente referenciadas nas transformações ocorridas no país: quais sejam, a emergência do neoliberalismo, a elaboração da constituição cidadã e a ascensão dos governos petistas. Sendo fruto de uma pesquisa ainda em andamento, o presente trabalho surgiu de parte das reflexões levantadas durante o período que pude acompanhar a ocupação Chico Mendes, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Como um reflexo das problemáticas que assolam o Brasil após a década de 90, o MTST irá se formar em 1997 a partir de um objetivo central: organizar a classe trabalhadora que vive na cidade. Hoje, já organizado em âmbito nacional, assume um lugar de destaque no que se refere aos conflitos sociais. Assim sendo, também se tornou foco da análise e crítica teórica e social. Diante disso, busca-se neste trabalho recuperar algumas mudanças sofridas no cenário de atuação dos movimentos sociais. Dando destaque a busca por uma nova forma de se compreender a própria concepção de “política”, resgato os movimentos sociais dos anos 70 e 80 e as transformações sofridas neste contexto pela ascensão do neoliberalismo e da constituição de 1988. Em um quadro aparentemente problemático, destaco a chegada do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal e as novas transformações que isso acarreta no quadro dos conflitos nacionais e, mais especificamente, na relação entre os movimentos sociais e o governo. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto aparecerá destacado como uma forma colocar em cena um dos frutos de toda essa transformação. Diante disso, e partir dele, procuro ainda questionar a forma como a relação entre movimentos sociais e Estado são, por vezes problematizadas. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 Os Novos Movimentos Sociais: a ressignificação da noção de direito. Na década de 70 e 80 surgiram diversos movimentos sociais organizados a partir do próprio cotidiano da população. Especificamente no cenário brasileiro, tiveram destaque nessa época tanto os “movimentos sociais urbanos” – ou seja, aqueles que colocavam em questão a educação, saúde, transporte, saneamento, moradia e, de forma mais abrangente, por exemplo, a questão do custo de vida –, quanto o chamado “novo sindicalismo”. Em terceiro, mas não menos importante, ganharam destaque os movimentos que se organizavam em torno das questões “identitárias”, como o debate de gênero, raça e sexualidade. (SADER, 1988; DOIMO, 1995) Denominados pela literatura como “Novos Movimentos Sociais2”, ganham destaque tanto pela forma como se organizavam, quanto pela forma como se colocavam no debate público. Conseguindo através de suas diferenças abrir um espaço comum de conflito, assumem visibilidade política enquanto “sujeitos sociais coletivos”. (CHAUÍ, 2005) Porém, ao que se deve o caráter “novo” atribuído pelos intelectuais a esses movimentos? As explicações são diversas e, na maioria delas os argumentos encontram-se assentados nas diferenças existentes entre estes movimentos e aqueles formatados a partir da compreensão clássica do marxismo. No entanto, darei aqui o enfoque explicativo ao sentido singularmente atribuído a dinâmica social brasileira. Segundo Paoli (1989), o conjunto dos trabalhadores veio ao longo das décadas exigindo novas legislações, direitos ou a interferência do Estado frente ao não cumprimento da lei. Este processo, teria mantido em suas lutas a legitimidade na capacidade do Estado de regulamentar as diversas demandas da população. Valendo-se disso, a democracia teria se desenvolvido através de um caráter ambíguo: apesar de ceder a algumas pressões populares, não se permitia que a estrutura fosse alterada ao ponto de levar a uma integração social. Dessa forma, a experiência dos sujeitos sob a democracia, vigorava sempre no distanciamento entre o legalmente instituído e o socialmente vivido. Nos Novos Movimentos Sociais, o que aparece em questão é o próprio questionamento da capacidade de regulação exclusiva e, portanto, excludente, do Estado. Partindo dos problemas sociais que enfrentavam em seus cotidianos, os diversos 2 Sobre a origem do termo “Novos Movimentos Sociais” e sobre os embates criados em torno deste, ver Doimo, 1995 e Gohn, 1997. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 sujeitos, a partir de diversas percepções, passavam a se organizar a fim de discutir sobre os problemas que enfrentavam e as formas de solucioná-los. Sem uma identidade coletiva pré estabelecida, esses grupos só passam a criar um reconhecimento enquanto tal a partir da própria construção interna do diálogo e da dinâmica que construíam ao longo do tempo. Dessa forma, na organização de suas práticas e na defesa de seus interesses imediatos, se constroem enquanto sujeito coletivo que, descentralizado, é fruto de uma Pluralidade de sujeitos cujas identidades são resultado de suas interações em processos de reconhecimento recíprocos e cujas composições são mutáveis e intercambiáveis. (...) [Na qual] a racionalidade da situação não se encontra na consciência de um ator privilegiado, mas é também resultado do encontro de várias estratégias. (SADER, 1988, p. 55) Configurando, a partir da situação ditatorial em que se encontrava o Estado, um princípio por autonomia, esses movimentos procuravam-se manter independentes tanto dos partidos quanto do Estado, partindo para a ação direta como forma de luta pelos recursos ou mudanças pleiteadas. Sem pleitear a intervenção estatal através da noção de necessidades 3 , reclamam por suas conquistas através da órbita do direito. Mais precisamente, o “direito a conquistar o próprio direito à cidadania” (CHAUÍ apud PAOLI, 1989, p.43). Ou seja, o reconhecimento social de que se faz parte da sociedade e de que, como tal, possui o direito de partilhar do “bem comum”. Buscavam no “reconhecimento público do direito a ter direitos” (PAOLI, 1989, p.43), inserir a população excluída político e socialmente das dimensões da construção efetiva do país. Ao transcender a dimensão meramente institucional (ou seja, da representatividade apenas a partir do voto) criam uma nova percepção sobre a noção de sujeito político, ressignificando a ideia de direito, de democracia e da própria realização da política. Colocados na ótica da sociedade, os direitos não dizem respeito apenas às garantias inscritas na lei e nas instituições. Não se trata aqui, é preciso esclarecer, de negar a importância da ordem legal e da armadura institucional garantidora da cidadania e da democracia. A questão é outra. O que se está aqui propondo é pensar a questão dos direitos em um outro registro. Pois, pelo ângulo da dinâmica societária, os direitos dizem respeito, antes de mais nada, ao modo como as relações sociais se estruturam. Seria possível dizer que, na medida em que são reconhecidos, os direitos estabelecem uma forma de sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como sujeito de interesses validos, valores pertinentes e demandas legítimas. (…) [Os 3 Para esclarecer a diferença colocada em questão sobre necessidade e direito, ver “Considerações sobre a democracia e os obstáculos à sua concretização” de Marilena Chauí. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 direitos] constroem uma gramática civil que baliza práticas e interações sociais por referência ao que é reconhecido como medida de justiça, medida que é sempre alvo de questionamento e reformulações nos embates e litígios de posições e interesses, valores e opiniões, mas que é sempre solidária com critérios, muitas vezes implícitos, não redutíveis a prescrições legais, que fazem partilha entre o legítimo e o ilegítimo, entre o permitido e o interdito, o obrigatório e o facultativo. Não seria demais enfatizar que, se tudo isso passa pela normatividade legal e institucional da vida social, depende sobretudo de uma cultura pública democrática que se abra ao reconhecimento da legitimidade dos conflitos e da diversidade dos valores e interesses demandados pelos direitos. (TELLES apud FELTRAN, 2005, p.26) É fundamental que se compreenda a passagem da luta pela necessidade à luta por direitos. Saindo da dimensão privada, esses movimentos retiram os problemas sociais (seja a escassez, ou o reconhecimento) do problema individual e os colocam como um questionamento da naturalização da ordem social estabelecida, questionando o que antes era estabelecido enquanto justo e injusto no seio de “bem comum”4. Retiram os problemas concebidos como de “ordem privada”, e os colocam como um questionamento de ordem pública. É essa a importância aqui atribuída ao cotidiano, agora, compreendido como um espaço de construção política. Romper com o processo de simples apreensão dos direitos já formatados seria, aqui, romper com o que Dagnino (1996; 2000) compreende por autoritarismo social. Ou seja, romper com as naturalizações reproduzidas socialmente, reestabelecendo a noção de “bem comum” através do questionamento da estrutura desigual preestabelecida e propagada culturalmente. Nesse papel, partindo da pluralidade dos sujeitos e de suas opiniões, os movimentos sociais se apresentariam aqui como a forma legítima de representação social. Assim, a luta pelo reconhecimento dos Movimentos Sociais na interlocução com o Estado, coloca mais do que a disputa por demandas imediatas. Coloca a possibilidade de construção de uma democracia que reconhece enquanto legítima a existência de um poder popular. (CHAVES, 2005) Entretanto, para que se mantivesse a efetividade política dos movimentos – a pluralidade, o diálogo, a não centralização e, o mais importante: seu caráter combativo – era essencial que se mantivessem em uma postura autônoma frente ao Estado e aos partidos políticos. Seria esse o caráter que permitiria manter a contestação sem que retrocedessem a uma relação de tutela e clientelismo. Porém, qual o limite da aproximação que comprometeria a autonomia do movimento? 4 Sobre essa reflexão, ver Rancière 1996. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 Entre a Constituição de 1988 e o desenvolvimento do Neoliberalismo Segundo Rocha (2008), com o fim do período ditatorial e o reestabelecimento da chamada ordem democrática, foi apresentada a Assembleia Constituinte uma proposta de garantia de iniciativa popular. Com a aceitação do manifesto, foi adotado no Regimento Interno da Assembleia Constituinte a adesão de emendas populares através das quais a sociedade poderia participar da construção da nova Constituição Nacional. Segundo Ulisses Guimarães, esse processo possibilitou que se transcendesse a participação através das emendas, tendo diversos membros da sociedade civil atuando através de sua própria presença. (…) pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam livremente, as onze entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça de favela, de fábrica, de trabalhadores, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. (GUIMARÃES apud ROCHA, 2008) Introduzindo a Constituição diversos pontos colocados em causa pelos movimentos sociais e representações plurais da sociedade civil, conquista-se avanços significativos a órbita dos diretos sociais, e, principalmente da participação social. Ficando conhecida como “Constituição Cidadã”, foram abertas através dela a institucionalização de canais destinados a participação e controle das políticas públicas e gestão da máquina estatal5. Como um mecanismo necessário a realização da cidadania, a Constituição de 88 passa a reconhecer o caráter participativo em esferas da gestão pública. Através do fomento a ação participativa, a construção de conselhos em âmbito federal, estadual e municipal passam a renovar parcelas das esferas políticas. Lentamente concebido, diversas dessas novas “experiências participativas” foram implementadas por governos municipais antes mesmo da sua aprovação constitucional. Dentre elas, possuem destaque algumas prefeituras assumidas pelo Partido dos 5 Dentre elas, Rocha (2008) destaca a criação do Sistema único de Saúde; o reconhecimento da função social da propriedade e da cidade, atribuindo um caráter participativo ao planejamento e gestão das cidades; a elaboração do estatuto da criança e do adolescente e o reconhecimento da assistência social como um direito. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Trabalhadores (PT), partido o qual, segundo Caccia Bava (2005), durante a redemocratização (…) foi uma espécie de vocalização das demandas dos movimentos sociais, uma espécie de intérprete na esfera política – nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas, no Congresso Nacional – do que são as demandas, as posições, as proposições dos movimentos e deste campo político popular e democrática. Dentre as políticas que valorizavam esse novo modo de participação social, têm-se destaque tanto a implantação dos chamados Orçamentos Participativos 6 (OP), quanto o incentivo de políticas autogestionárias7, como no caso da habitação. No que diz respeito a gestão urbana, as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) já vinham sendo aplicadas por algumas prefeituras na década de 80. Entretanto, em 2001 se consegue a promulgação de um importante mecanismo de controle das desigualdades urbanas pelo Estado. O chamado Estatuto da Cidade 8 passa a exigir a configuração de planos diretores que mapeiem como o espaço territorial poderá ser ocupado, designando as áreas para a construção de escolas, moradias, indústrias, etc. Com a constituição de 1988, a construção e planejamento das cidades precisam necessariamente responder a uma função social, impedindo que seu desenvolvimento seja usado apenas para fomentar os interesses privados. Tornando as ZEIS um mecanismo garantido pelo Estatuto da cidade, deve-se em cada plano diretor, a partir dos problemas locais, designar zonas especiais que possibilitem a construção de moradia digna, a legalização de favelas, e a proteção de áreas ambientais. Obrigando o controle participativo, são previstos legalmente pelo Estatuto das Cidades a construção, implementação e controle de planos diretores junto a população local. Entretanto, de modo quase paralelo ao desenvolvimento e ampliação das diversas instâncias voltadas a participação democrática, o Brasil imersa de modo efetivo em um projeto nacional de desenvolvimento de neoliberal. Aderindo aos princípios delimitados pelo Consenso de Washington para retirar os países Latino Americanos da profunda crise, FHC expande a entrada de empresas estrangeiras no país através da flexibilização da legislação e da garantia de lucros. 6 7 8 “O Eclipse da Sociedade Política nos Estudos sobre o Orçamento Participativo” de Wagner Romão e os textos de Rizek e Bello em “A era da indeterminação”. A importância da autogestão enquanto possibilidade de construção de novas sociabilidades, ver “A economia socialista” de Paul Singer. Ver http://www.senado.gov.br/senado/programas/estatutodacidade/perguntas.htm acessado em 28/05/2015. E ver Ferreira (2010) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Realizando uma política orçamentária que prevê a configuração de um “Estado mínimo”, passa a escoar parte significativa do orçamento público para o pagamento das dívidas internas e externas do país. Com a redução dos recursos públicos, passam a privatizar grande parte das empresas Estatais, entregando ao setor privado importantes delegações que eram de responsabilidade do poder público. E aqui, no entanto, me parece possível utilizar a reflexão de Oliveira sobre a configuração proposta por um “Estado mínimo”. (…) o que é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão do tipo “mal infinito” do capital 9. (OLIVEIRA, 1988) Reduzindo a dimensão dos espaços estatais se reduzem também os espaços reconhecidos como de âmbito público e, portanto, de controle social da população. Trazendo a lógica privada, mercadológica, como a racionalidade fundante dos mais importantes serviços públicos, rompe-se de modo prático com grande parte das conquistas conseguidas pelos movimentos da década de 70 e 80 e, fundamentalmente, com a lógica proposta pela “Constituição Cidadã”. Quando, em 70 e 80 se consegue a passagem da questão da necessidade para a questão do direito, cria-se um conflito capaz de retirar os problemas sofridos socialmente da órbita particular dos indivíduos, os recolocando em discussão como um problema do “bem comum”. É nessa chave que a Constituição de 1988 vigora, reconhecendo a população como um interlocutor legítimo e fazendo dos problemas sofridos no cotidiano um problema da órbita do “bem comum”. Com o neoliberalismo, se realiza o caminho contrário. Entregando os espaços públicos a lógica dos interesses privados, rompe-se com a compreensão do “bem comum”, recolocando os problemas sociais na espera individual. A fim de suprir os serviços fundamentais já não mais fornecidos pelo Estado e restringidos pelo mercado a aqueles que possuem poder de aquisição, surge um novo ator no cenário político da época, as ONGS (Organizações Não Governamentais). Apesar de já existirem anteriormente, as ONGS ganham um amplo espaço no cenário da supressão das necessidades imediatas, sejam essas voltadas para as populações empobrecidas ou, até 9 Em diversos de seus textos Oliveira deixa isso claro ao mostrar a importância da intervenção ou flexibilização do Estado para a manutenção de lucratividade do capital privado. Dentre elas, por exemplo, insere-se de modo explícito o caso da privatização das estatais. Sobre isso, ver Oliveira 1999 e 2007. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 mesmo, para a discussão de questões identitárias. Na chave da “responsabilidade social”, grandes empresários passam a investir na manutenção de produção de ONGS. Reduzindo seus gastos ficais junto ao poder público e ganhando maior visibilidade no mercado competitivo, grande parte das ONGS passaram a ser uma via de mão dupla, auxiliando na manutenção de condições de existência a medida que se mostravam lucrativas para seus investidores. Nesse cenário, têm-se, na década de 90 um abrupto crescimento das Organizações Não Governamentais e uma profunda desmobilização dos Movimentos Sociais. A justificativa para esse fato aparecem na bibliografia de modos diversos. Ao que parece, a crise financeira que atingiu principalmente a população empobrecida junto as novas mudanças causas pela imersão do neoliberalismo parecem ter delineado parte de seu enfraquecimento. O surgimento dos Movimento dos Trabalhadores Sem Teto Estabelecendo-se como um movimento classista, o MTST tem como preocupação central a organização da classe trabalhadora urbana. Porém, para tal tarefa, o movimento se recai diretamente sob as novas problemáticas trazidas pela transformação nas questões do trabalho a partir a partir de 1990. Com o processo de reestruturação produtiva e de desindustrialização, reconfigurase o quadro produtivo no Brasil, demitindo uma parte significativa dos trabalhadores industriais. Estes, enfrentando grandes dificuldades de reingressarem no mercado formal de trabalho, passam a sobreviver através de vínculos empregatícios temporários e/ou através de trabalhos informais. Rompendo com uma estrutura mínima de estabilidade, o trabalhador informal e/ou temporário ficam submetidos a uma situação economia e social ainda mais vulnerável do que a que já possuíam antes.10 Estruturalmente essencial à nova dinâmica capitalista de produção, esse montante de trabalhadores fora dos sistemas formais de trabalho, não se apresenta mais como uma crise temporária do sistema capitalista, mas como uma forma intrínseca a sua estrutura 11. 10 Sobre o tema, Goulart (2011) irá se referir diretamente sobre o MTST. Porém, será em Paul Singer (1981) que buscará suas bases explicativas, fundamentando o processo de reestruturação produtiva de modo específico ao quadro econômico e social do Brasil. 11 Harvey, 1996; Singer, 1981; Oliveira,2000 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 Este processo, criando uma diferença na posição ocupada pelo trabalhador na estrutura produtiva e em suas condições de trabalho e de vulnerabilidade, causa, segundo o MTST, um fracionamento na construção da luta da classe trabalhadora (GOULART, 2011). Distanciados das organizações sindicais voltadas aos trabalhadores formais e possuindo vínculos empregatícios instáveis, grande parte dos trabalhadores informais ou temporários terão grande dificuldade de se organizar a partir de seus locais de trabalho. Compreendendo a necessidade de não ignorar as transformações ocorridas na classe trabalhadora, o MTST absorve esse contexto a seu projeto político visando, a partir do movimento popular, engendrar uma resposta a essa reconfiguração de classe12. (BOULOS, 2012). Não se reconhecendo como um movimento de moradia, o MTST irá se valer desta como um modo de organizar a luta da classe trabalhadora. Propondo uma forma de organização congregada, aglutinam o segmento de classe à relação que possuem com o território. Segundo Boulos (2014) essa proposição não se faz, por si só, uma proposta nova entre os movimentos de moradia. Sob um esforço planejado, contínuo e consciente, o movimento se utilizará de sua estratégia territorial de luta, no entanto, para colocar em prática o caráter central do movimento: sua proposição anticapitalista. Nas palavras do autor/coordenador: Se o movimento não tem condições de parar a produção de mercadorias, já demonstrou ter condições de parar a circulação (...). Da mesma forma, se não lutam diretamente contra os patrões, têm grande potencial de luta contra o Estado capitalista. (...) Ou seja, obstruindo-se a circulação da unidade de produção ao mercado de consumo, obstrui-se o processo de reprodução do capital. Além disso, [n]a luta por direitos básicos dirigida contra o Estado, (...) se o capitalismo não se mostra capaz de resolver o problema crônico da falta de moradia, a luta por essa demanda – quando levada às últimas consequências – ganham um sentido de enfrentamento do capital. (...) Portanto, o afastamento da relação direta entre capital e trabalho não inviabiliza uma estratégia anticapitalista constituída a partir da intervenção territorial. (BOULOS, 2014, p. 92) Conjugada intrinsecamente com a dinâmica de acumulação de capital, a moradia se mostra sob um caráter mercadológico, definindo o direito a sua posse através da 12 Considerando que o operariado industrial já não representa mais o “sujeito revolucionário” apontado por Marx, o movimento não se proporá, no entanto, a substituir a figura deste pela a dos trabalhadores informais e temporários. O que por eles se coloca, é a necessidade de reconfigurar as estratégias de luta a fim de abarcar ambas frações da classe trabalhadora, recompondo, assim, a potencialidade de luta da classe como “um todo”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 possibilidade de seu pagamento.13 Fazendo da cidade um meio em si de acumulação de capital, conjugam-se os altos índices de exploração do trabalho com um processo crescente de segregação socioespacial, reduzindo o salário do trabalhador e expulsando-o para as franjas urbanas da cidade. (KOWARICK, 2000) Defrontando a precarização da vida do trabalhador com a acumulação de capital, o MTST faz da periferia seu lócus de ação e da moradia um meio de organizar a luta da classe trabalhadora. É nesse contexto que se insere a base social do MTST. Trata-se de um segmento de classe mais vulnerável às oscilações do mercado de trabalho. Em geral, são trabalhadores com menor qualificação formal, renda familiar menor que três salários mínimos e exercendo relações de trabalho temporárias, informais (...). É o segmento que há anos a sociologia vem tentando definir, a partir de diferentes conceitos: “subproletariado”, “pobretariado”, “excluídos”, dentre outros. (BOULOS, 2014, p.84) A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal e a busca pela “política”. Com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal, parte considerável da sociedade brasileira passou a admitir uma nova possibilidade de mudança que retomasse o desenvolvimento a partir do mercado interno e, fundamentalmente, da base social. Isso porque, como já citado acima por Caccia Bava, o PT 14 foi, tanto na elaboração da “Constituição Cidadã” quanto na elaboração dos governos municipais, um partido de forte representatividade dos interesses populares. Obviamente, sua história transcende em muito esses seus feitos, mas, particularmente na gestão pública, também vinha se mostrando engajado ao projeto de participação popular. E, de fato, seus feitos não foram poucos ao assumir a presidência da república. Instaura-se o Ministério das Cidades a fim de romper com a gestão fracionada do território; criam importantes conselhos e fóruns a fim de problematizar a situação social no país; formam-se os programas sociais e agregam diversos membros antes combativos na 13 O tema da mercantilização da habitação foi amplamente abordado por diversos teóricos referidos a diversos tempos históricos no Brasil. Sobre tal problematização, ver Maricato (2013); Rolnik (2000); Kpwarick (2000); Klintowits (2011); Ferreira (2010); Rodrigues (2011). 14 Sobre a mudança ocorrida no Partido dos Trabalhadores e, particularmente, na CUT, ver “O sindicalismo e a questão democrática na história recente do Brasil: o que se pode esperar?” de Véras de Oliveira. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 sociedade civil a gestão pública. Entretanto, como já se apontava na “Carta ao povo brasileiro 15 ”, o Partido dos Trabalhadores mantem em grande parte o compromisso neoliberal assumido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Isso, tanto na governança de Lula quanto de Dilma – salvo o conjunto de diferenças que desembocaram ao longo de seus mandatos. E a permanência não demorou a ser notada, já em um congresso em 2004, na procura por avaliar a participação no governo petista, Caccia Bava coloca: A primeira questão é que, independente de toda a trajetória de lutas sociais, organização sindical, organização dos movimentos sociais, de toda experiência de combate dos 30 anos da história mais recente do país, contraditoriamente, este governo está capturado pela lógica do pensamento único. Por que digo isso? Porque a política praticada por esse governo, no sentido de “P” maiúsculo, quer dizer, olhando para a macroeconomia, para as estratégias, é uma política de aprofundamento da estratégia anterior neoliberal, com todas as repercussões que conhecemos. Isso define um cenário. O ciclo de financeirização dessa política, o compromisso de pagamento do serviço da dívida, o compromisso com a rentabilidade do setor financeiro, estão sendo as âncoras de organização das políticas federais, e elas geram conseqüências. (CACCIA BAVA, 2005, P.33) Rompendo com as expectativas de mudança na estrutura social, o PT veio em âmbito federal diminuindo a qualidade deliberativa da participação popular e mantendo através dos programas populares o fomento a lucratividade das empresas privadas, recusando em grande medida sua qualidade de regulador social. E então, voltamos a reflexão de Caccia Bava. Como operamos neste cenário e que conseqüências trouxe este novo governo (...)?(2005, p.34) Este parece o ponto em que se localiza grande parte do pensamento social, ainda hoje. Em suas diversas abordagens, tanto os teóricos quanto a própria base social trouxeram importantes análises a partir de uma leitura ampla ou fracionada sobre as mudanças e permanências nas estruturas sociais e políticas do país. Ao que se refere especificamente a análise sobre os movimentos sociais, algumas características aparecem sobressaltadas, quais sejam: a entrada de lideranças populares para a gestão do governamental e, a partir disso, o questionamento sobre a posição atual dos movimentos sociais. Um contraponto social ao consenso lulista? 15 http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml acessado em 30/05/ 2015 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 A fim de esclarecer o posicionamento que o MTST propõe frente ao quadro social de hoje e, mais especificamente, seu posicionamento frente ao Governo Federal, Boulos (2014) afirma que a base social a que incidem faz parte do que André Singer (2012) chama de consenso lulista 16 , no qual o subproletariado teria se aproximado do Partido dos Trabalhadores a partir de um realinhamento eleitoral pós 2006. No entanto, declara que se opondo a isso, o MTST se apresentará como um “contraponto popular ao consenso lulista”. Partindo da questão da moradia, Boulos destaca com frequência em suas entrevistas o questionamento feito a governabilidade petista no âmbito federal. Admitindo que o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) 17 efetiva-se como o maior programa popular de moradia já feito no Brasil, o coordenador nacional do MTST destacará, no entanto, que o programa seria tão eficiente quanto “enxugar gelo”. Criado em 2009 como medida de fomento ao mercado imobiliário – abalado pela crise de 2008 ocorrida nos EUA –, o PMCMV será fruto de uma política combinada do Estado. Realizando um papel de facilitador18, o Estado injeta dinheiro, de um lado, nas empreiteiras que privilegiam a construção de casas de padrão popular e, de outro, oferece subsídio aos compradores das moradias a partir da renda familiar do comprador. O programa possui dois grandes avanços para a classe popular e para movimentos sociais: primeiro, uma porcentagem, ainda que pequena, destinada aos compradores que possuem de 0 a 3 salários mínimos, com maior valor dos subsídios e com parcelas mensais reduzidas; em segundo, o “setor” denominado entidades, possui uma reserva financeira destinada a famílias cooperadas, ONG’s e movimentos sociais. 16 O que André Singer (2012) pontua como “consenso lulista” parte de dois deslocamentos centrais. O distanciamento que a classe média realiza enquanto eleitorado do Partido dos Trabalhadores a partir do “escândalo do mensalão”, e a aproximação do chamado “subproletariado” a partir da política petista de diminuição da miséria. Para o autor, esse eleitorado encontra-se fortemente concentrado na região nordeste, a região que possui maior porcentagem de subproletariados e de população em situação de miséria. Apontando essa “fração” de classe a partir de um certo conservadorismo, defende que tal deslocamento eleitoral só foi possível porque o PT não apresenta uma pauta de transformação radical da sociedade. Administrando a relação entre classes, o PT teria deslocado sua discussão política da questão do trabalhador para a questão da pobreza. 17 O PMCMV colocado aqui em destaque foi apenas uma das políticas habitacionais realizadas em âmbito federal realizada na governabilidade do PT. Entre tantas outras, também existem duras críticas e também consideráveis avanços. Infelizmente, por escassez de espaço não será possível abordar essa temática. Porém, como problematização geral sobre o tema, ver: Rodrigues (2011); Bonduki (2009) 18 A discussão sobre a mudança do papel de provedor do Estado (no qual o Estado era o responsável por prover a habitação) para seu papel de facilitador (no qual o Estado apenas torna-se um meio de relação entre o produto oferecido no mercado e seu comprador, dando mais segurança a promoção de negócios) pauta uma discussão muito mais ampla que propriamente a crítica ao governo petista. Sendo, em grande medida, sustentada na problematização do papel do Estado a partir da flexibilização do capital. Ver: Klintowits (2011); Ferreira (2010) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 Proporcionalmente, os estudos mostram que os investimentos destinados a esses dois setores são muito diminutos quando comparados a quantidade de investimento injetado no mercado imobiliário pelo Estado. A partir disso, Boulos destaca que para além do fomento da economia, o programa possui o objetivo de atender parcialmente as demandas de moradia, acarretando uma diminuição das mobilizações populares que rogam por essas. Aqui, destacam-se dois fatores essenciais para a análise do projeto. Primeiro, o fato da fragilidade das regulamentações do PMCMV possibilitar um crescimento da especulação imobiliária19. Assim, ao mesmo tempo em que produz novas moradias, produz também novos sem tetos que não conseguem pagar seus aluguéis. Segundo, que o MTST, em vez de enfraquecer suas mobilizações no período de criação e efetivação do programa, passa por um alto índice de crescimento de sua base social, nacionalizando-se no período. Esse contínuo processo de valorização fez com que entre 2008 e 2013 o preço médio dos imóveis aumentasse 195,2%, praticamente triplicando. No mesmo período, o aluguel sofre uma variação de 95,1%, quase que duplicando 20 . Segundo Boulos, esse processo, atingindo diretamente as populações periféricas, fez com que a partir de julho de 2013 surgisse uma série de novas ocupações, levando a um amplo aumento na luta dos movimentos por moradia. Mas [um] espírito de porco pode perguntar ainda: Se este problema existe há vários anos, por que as ocupações só explodiram agora, a partir da metade de 2013? (BOULOS, 2014) Em julho de 2013 o Brasil viveu uma das maiores mobilizações de sua história. (...) As tarifas baixaram pelo país a fora. Seria ingenuidade acreditar que este acontecimento não deixaria lições e consequências na consciência popular. Embora a maior parte dos trabalhadores das periferias não tenham ido às ruas em julho (...) não deixaram, por outro lado, de receber o impacto destas mobilizações. O recado de junho foi claro: se o povo for às ruas em massa e de forma organizada pode obter conquistas. Afinal, a 19 Tal processo se explica pelo fato do programa proporcionar um alto fomento no mercado imobiliário sem, entretanto, colocar regulamentações que restrinjam suas condições de expansão. Dessa forma, as frações mais populares do programa são sempre realizadas em áreas periféricas, diminuindo o custo do terreno para a construtora. Outro fator de grande crítica do MTST ao programa, refere-se a qualidade das moradias. Produzindo sob a metragem mínima que o programa permite, as moradias passam por uma supervalorização incompatível com a metragem e qualidade do apartamento. Com o MCMV entidades, o próprio movimento é responsável por realizar o projeto de moradia, administrando o dinheiro empreendido. Pela ausência do lucro envolvido na produção, conseguem produzir moradias mais amplas, chegando a ter creches, unidades básicas de saúde e espaços para reuniões para além dos espaços de lazer. Em decorrência de uma série de mobilizações realizadas com essa temática, o movimento conseguiu inserir algumas de suas críticas na reformulação do programa. (BOULOS, 2014) 20 Boulos (2014) retira esses dados do índice Fipe/Zap do mercado imobiliário. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 tarifa baixou. As mobilizações populares, que estavam desacreditadas no Brasil, voltaram para a ordem do dia. (BOULOS, 2014) Segundo Boulos (2013), esse abrupto aumento das lutas se deram na sociedade como um todo, impulsionadas pelas Jornadas de Junho que explicitaram a força que a ação popular possui. Sendo o MTST parte desse processo combativo, o crescimento específico à sua base, surge como um resultado da força política que o movimento ganha. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esboçando o quadro analítico pós anos 90, Feltran (2003) destaca que as análises desembocam predominantemente em duas leituras, que, por sua vez, se complementam. Uma, que denomina enquanto “construção” e outra enquanto “desmanche”. Ambas as análises partem dos pressupostos aqui delimitados: os avanços sociais trazidos pelos movimentos sociais da década de 70 e 80, destacando a ressignificação do direito, da democracia e a ampliação do espaço público; os avanços trazidos pela Constituição de 1988 no que se refere a instauração de espaços participativos; e das amplas problematizações e retrocessos que o neoliberalismo recoloca para os avanços de um Estado verdadeiramente democrático. Entretanto, a diferença central entre as leituras se refere ao que me parece a mesma indagação destaca acima por Caccia Bava. Ou seja, no questionamento sobre quais as consequências das transformações e imbricações desses processos. Colocando diretamente em questão a dimensão do “espaço público”, reconhecido enquanto público, se tem na primeira “corrente” um enfoque sobre as possibilidades de construção ainda existentes – mesmo com a guinada do neoliberalismo. E, na segunda, a compreensão de que tal correlação de forças trouxe o desmanche do espaço público anteriormente conquistado, sendo estes ocupados pela lógica privada do mercado e pelo recolhimento dos sujeitos sociais a perspectivas individualistas. Ainda sobre a chave das possibilidades, me parece, ainda, surgir uma nova “corrente” que com o mesmo intuito se reclina sobre o cenário atual rediscutindo, entretanto, os princípios admitidos pelas outras leituras, como, por exemplo, a questão da autonomia, do conflito, da representação e, por fim, a própria ideia de democracia e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 política. Participando de um quadro de questionamentos amplos e diferenciados, destacarei aqui apenas superficialmente alguns autores e ideias. Possuindo uma importante crítica a forma como as análises sobre movimentos sociais vem se desenvolvimento atualmente, Marcelo Kunrath Silva (2010; 2011) chama atenção para dois apontamentos principais: primeiro, a crítica ao caráter normativo, em que se analisa o movimento social a partir do papel que ele supostamente deveria ter na sociedade e não, propriamente, sobre a forma como se realiza; e, em segundo, a crítica a oposição rigorosa criada entre movimentos sociais e Estado – a qual, parte para o autor, de uma compreensão errônea da “autonomia” colocada em questão pelos movimentos sociais da década de 70 e 80, descolando seus princípios da realidade ditatorial sobre a qual viviam. Diante disso, o autor irá propor a análise dessa relação como um continnum, a partir do qual movimentos e Estado se relacionam através de relações mais ou menos conflitivas. A partir de tal análise, o autor passa a compreender que a relação de aproximação ou afastamento entre movimento e Estado não determina, per si, nenhuma forma de ação ou pertencimento ou não a um caráter combativo. Tatagiba (2014), Rebeca Abers e Marisa Von Bülow (2011), parecem trazer algumas proximidades ao pensamento de Silva. Tatagiba, especificamente, conceberá a formação do Estado atual sobre uma ótica “pluralista”, admitindo que a entrada de diferentes atores social para a gestão do Estado traz o conflito para o espaço de elaboração da própria gestão. Abers e Büllow, por sua vez, tentam também romper com a oposição colocada entre movimentos sociais e Estado a fim de admitir uma importante dimensão propositiva na relação entre eles – seja esta estabelecida ou não através do conflito. Eugenia Carlos (2011), também reconhecendo a relação estabelecida entre eles, enfatiza a importância de acompanhar as mudanças no padrão de ação e comportamento de dentro dos movimentos frente a relação estabelecida com o Estado. Realizando uma contraposição explicita as análises denominadas por “construção” e “desmanche”, as leituras acima já não colocam mais em questão a concepção de um “espaço público” como anteriormente concebido. Assim como Dagnino (2000) defende existir uma clara disputa de significado entre as percepções sobre direito, política e democracia entre a luta dos movimentos sociais e o sistema neoliberal; me parece, que o mesmo passa a acontecer agora a partir das próprias Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 interpretações intelectuais, em que se buscam novos significados e apreensões da realidade. No entanto, considerado que em sua maioria, apesar dos enormes esforços analíticos dos autores em analisar situações e espaços particulares na nova “organização participativa”, os esforços analíticos realizados perdem uma importante dimensão da análise social. Qual seja, os seus próprios atores. Buscando transcender a luta por moradia, o MTST possui estratégias de luta direcionadas a efetivação de um movimento capaz de organizar a classe trabalhadora em uma ação anticapitalista. A partir disso, suas ocupações e mobilizações são sempre organizadas da mesma forma, unindo-se aos movimentos locais sempre a partir de um objetivo específico que estrutura o movimento. Como passado brevemente acima, antes de realizar a ocupação em um bairro, o movimento, além de estudar muito bem o terreno e de se aproximar das lideranças comunitárias do local, também realizam reuniões com a população interessada explicando toda a lógica e as regras organizativas do movimento. Essa aparência duramente estruturada, no entanto, adquire no cotidiano da luta um contingente de relações que tornam a construção do movimento ainda mais complexa. É essencial que se saiba a que se propõe o movimento e as órbitas de luta a que este se encontra inserido. Porém, também é de fundamental importância saber que o movimento aparentemente unívoco, que age como um corpo congruente e autônomo, possui também as dimensões internas de sua construção. Porque, afinal, argumento isso. Partindo da análise do MTST, pude evidenciar uma grande preocupação externa ao movimento quanto a sua aproximação ou distanciamento do Estado. No entanto, acompanhando uma de suas ocupações – denominada Chico Mendes – pude perceber que pouco das questões que tangiam a relação do Movimento com o Estado adentrava a órbita de luta interna da ocupação. No que se refere ao grupo de acampados, ou seja, a base social, isso parece ocorrer de modo mais claro em apenas três momentos: primeiro, quando a relação entre o movimento e o Estado diz respeito a negociação da própria ocupação da qual fazem parte; e em segundo, a partir dos atos que são convocados a participar; e em terceiro, da imagem do movimento que acaba por se refletir neles enquanto acampados. Apenas isso já seria capaz de trazer o desdobramento de diversas questões sobre a própria dinâmica do movimento e, principalmente, sobre o sentido que os acampados atribuem a luta e ao próprio movimento. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 18 Assim sendo, vale questionar. Quando a bibliografia coloca em questão a relação entre os movimentos sociais e o Estado, ao que se refere? O que pressupõe que ocorre dentro dos movimentos quando se faz tal indagação? A isso que me refiro como sendo uma análise homogeneizadora dos movimentos sociais. Não quero com isso dizer que tais análises não são válidas. Mas, o que procuro ressaltar é que da forma como são feitas perdem de vista uma dimensão importante. Pautada nesse questionamento, indago-me se nessa problematização em específico, existiriam tantas diferenças nas análises sobre os movimentos. Seja para dizer que o espaço público encontra-se desmanchado, seja para afirmar que não ou para colocar os movimentos sociais sobre novas bases de análise. É necessário que nos voltemos para dentro dos movimentos sociais – e ai sim coloco em destaque a análise de Kunrath Sila – de modo não normativo para que se possa compreender a experiência de luta dos sujeitos mobilizados. Como a relação com o Estado, como o conflito ou a ausência deste, são percebidos pelos sujeitos que participam do movimento e como isso pode ou não levar a transformações nas relações sociais. Particularmente o MTST, sendo um movimento nacional, possuindo constantes multiplicações de ocupações e milhares de famílias em luta, é um exemplo claro disso. A forma esses conflitos influenciam as ocupações, me parece, esta diretamente imbricada a forma particular como se decorre a ocupação. É possível prever certos âmbitos, mas não todos. E dentre estes, a compreensão do que acontece em sua base social. Seja no âmbito de debate teórico ou em relação as preocupações do próprio movimento. É necessário uma análise interna que parta da experiência de seus sujeitos para que se possa aprofundar a análise sobre os conflitos sociais hoje. BIBLIOGRAFIA ABERS, Rebeca, BÜLLOW, Marisa Von. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? . 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E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 20 democratização das cidades no brasil e o risco de um “urbanismo às avessas”, In: Oliveira, francisco de; Braga, ruy; Rizek, cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. são paulo: boitempo editorial, 2010. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola 1997 GOULART, C. D. O anticapitalismo do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto – MTST. Tese de Doutorado.Universidade Estadual Paulista (Unesp) Marília-sp 2011 HARVEY, David. Do Fordismo à Acumulação Flexível. In: Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 6a edição, p.135-176, 1996 KLINTOWITZ, D.C. Como as reformas habitacionais se inserem nos contextos de reforma do Estado? A experiência recente do Brasil. Revista Pensamento & Realidade. v. 26 n° 3/2011 KOWARICK, Lúcio . Escritos Urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000. MIAGUSKO, Edson. 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Busca-se, assim, discutir a ação no ambiente urbano mediado e sobre a constituição de espaços públicos de ação mediados. Este artigo explora, principalmente, o fator tecnológico que motivou a grande adesão da população paulistana aos atos, procurando investigar os efeitos e os papeis das mídias sociais e sua apropriação nos protestos de junho de 2013 em São Paulo. Muito se pode dizer sobre Junho de 2013, o mês em que brasileiros e brasileiras sacudiram diversas cidades dentro e fora do país. Neste texto será feita uma análise voltada para a exploração de formas emergentes de contestação ligadas aos novos meios de comunicação que se expressaram em junho. É importante ressaltar que dizer que existem formas de contestação que emergem não significa dizer que elas são completamente diferentes de tudo que vimos até então. Junho está inserido em um contexto histórico de lutas sociais brasileiras que, por ser este um artigo, não haverá espaço para ser explorado com detalhes. É importante que as histórias de Junho sejam contadas e ninguém melhor para fazêlo do que quem participou, de alguma forma, desta recente mobilização social. Considero que não haja uma História, mas as histórias são múltiplas, são constituídas por quem age e 1 Juliana Laet é mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela Unesp, campus de Marília com mestrado a ser concluído em fevereiro de 2016. Possui graduação em Relações Internacionais. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 são contadas como narrativas de vida que se erguem a partir de inúmeras teias de relações humanas (ARENDT, 2011). As pessoas fizeram e viveram Junho estando juntas e agindo. Neste trabalho busco, com a contribuição delas, contar uma parte desta história a partir das vivências que compartilharam comigo e da minha própria experiência como manifestante e pesquisadora nos protestos de junho de 2013 em São Paulo. A partir disto, pretendo discorrer sobre a ação num ambiente urbano mediado e sobre a constituição de espaços públicos de ação mediados. As histórias contadas aqui são resultado de entrevistas realizadas com participantes dos protestos de junho para minha pesquisa de mestrado a ser concluída em 2016 e também de um questionário publicado durante os protestos em minha própria página do Facebook, em páginas de dois dos “Grandes Atos Contra o Aumento da Passagem” organizados pelo MPL e em um grupo de discussão de que eu fazia parte e que discutia os protestos à época. As entrevistas foram feitas a partir do questionário, isto é, contatei novamente as pessoas que haviam respondido o questionário para entrevistá-las2 e também a partir de contatos que fiz nas ruas durante as manifestações. E cada uma dessas pessoas me indicou outra pessoa com quem eu poderia conversar. Apesar da alta contribuição com o questionário (tive 52 respondentes), este processo de entrevistas me rendeu apenas 19 contribuições, mas extremamente ricas no sentido de seu conteúdo. Como o espaço é pequeno, não poderei explorar a fundo estas contribuições, mas apenas destacar algumas delas. Creio que quase todas as pessoas que viviam em São Paulo naquele mês sabiam dos protestos que ocorriam na cidade e acabaram formulando uma opinião favorável a respeito. Uma pesquisa do Datafolha (2013a) demonstra que 94% dos entrevistados no dia 13 de junho de 2013 tomaram conhecimento dos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo. E 55% afirmaram ser a favor dos protestos. No protesto do dia 18 de junho, 77% dos entrevistados estavam a favor da pauta de reivindicação das manifestações (DATAFOLHA, 2013b). Não tenho dados do início das manifestações, mas o crescimento do apoio foi visível e se deveu a diversos fatores. Este artigo explora, principalmente, o fator tecnológico, procurando investigar os efeitos e os papeis das mídias sociais e sua apropriação nos protestos de junho de 2013 em São Paulo. 2 Esta técnica de amostragem é chamada de bola de neve (HECKATORN, 2011). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 A vida urbana é tecnológica. Isso significa que nós, habitantes de uma megalópole como São Paulo, navegamos através de formas tecnológicas de vida social e cultural (LASH, 2002). A sociabilidade existe através da máquina não somente como mediadora as relações, mas como constitutiva de nossa sociabilidade e de nossa vida cultural (CARPIGNANO, 1999). Os meios são formas materiais pelas quais percebemos, pensamos e definimos a realidade. Sustento aqui que as tecnologias não são somente instrumentos que utilizamos, mas são elementos que moldam nosso próprio modo de pensar. Dessa forma, as mudanças na natureza dos meios transformam a própria natureza da comunicação e as maneiras pelas quais interagimos e interpretamos as mensagens recebidas bem como nossa experiência em relação a essas tecnologias (CARPIGNANO, 1999) e, conseqüentemente, em relação à cidade e em relação a formas de ação. Quando falamos de junho, podemos dizer que nossas formas de vida tecnológicas se expressam na ação política que ocorre no ambiente urbano mediado e a ação, portanto, dá-se a partir da nossa experiência com os novos meios de comunicação. A ação para Arendt (2011) carrega um sentido de publicização do agente por meio do discurso. Isto é, existir em público é agir e discursar estando com outras pessoas. Agir, para ela, é iniciar algo, começar uma nova história. A ação acontece com o falar, com a narrativa em uma condição de pluralidade, isto é, quando o indivíduo se relaciona com outros no espaço público. Logo, estar junto potencialmente gera ação e discurso. Os protestos em Junho são interpretados dessa maneira, como a ação que ocorre no espaço público por meio da qual os agentes constroem sua própria história. O espaço público é outro ponto importante na obra de Arendt e para este texto. A ação e o discurso necessariamente ocorrem no espaço público, um espaço de aparência, onde os agentes se revelam e se desvelam. Tal espaço, porém, não existe sem que as pessoas estejam agindo e discursando, mas ele pode ser formado sempre que elas se reúnem. Onde quer que estejam os agentes eles “são passíveis [...] de constituir mundo público” (SILVA e SILVA, 2011, p. 8). Assim, o espaço físico em que as pessoas se reúnem por si só não são espaços públicos para ação, mas as pessoas, ao estarem agindo em concerto, constituem e formam o espaço público. Para Arendt (2011, p. 248), a polis, isto é, a cidade tem um papel importante na ação. A cidade-estado “é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 conjunto”. Suas estruturas físicas, erguidas por conta da ação, tornam-se a condição material mais importante para que a ação tenha possibilidade de ocorrer pois mantém as pessoas unidas o que, potencialmente, gerará a ação. A cidade tem esse duplo aspecto: de suporte material para a ação e de local criado pela ação mesma. Ao pensarmos em junho de 2013, que espaços são estes que se erguem como locais de ação? Como se caracterizam? Na esfera pública o debate político surge sempre que um público se dispõe a discutir as normas sociais e políticas que incidem sobre si (HABERMAS, 2003). Tanto o espaço público de Arendt quanto a esfera pública para Habermas são locais fluidos formados a partir de uma relação dialógica entre as pessoas. Para Habermas essa esfera pública é local em que aqueles atingidos por normas sociais e decisões políticas coletivas podem ter voz ativa em sua formulação, estipulação e adoção (BENHABIB, 1992). Os conceitos de ambos os autores como expostos até aqui são ferramentas úteis para pensarmos as manifestações de junho como a formação de uma esfera pública em que aqueles atingidos pelas normas impostas pelos governantes se colocam a fim de contestarem tais normas e tentar modificá-las de acordo com seus interesses. Habermas (2003) dá destaque à mediação na esfera pública. Antes da esfera pública tomar uma configuração política, ela tem uma conformação literária onde o público burguês letrado discute sobre si mesmo num “processo de autocompreensão das pessoas privadas em relação às genuínas experiências da sua nova privacidade” (HABERMAS, 2003, p. 44) a partir da literatura e também de outras artes transformando sua crítica em uma crítica política. A cidade, além de centro econômico, torna-se o “centro vital da sociedade burguesa” (HABERMAS, 2003, p. 45) modificando a esfera pública, anteriormente, ligada à corte e ao poder público. As instituições que sustentam essa emergente esfera pública são tipicamente urbanas. O público aos poucos vai criando suas próprias instituições e se mantém reunido através da imprensa em clubes de livros, livrarias públicas, círculos de leitura onde lêem literatura e jornais periódicos que falam sobre a vida da própria burguesia. Os jornais impressos e periódicos serão os principais meios utilizados por esse público para produzir uma crítica política direcionada ao poder público. A mediação, assim, é importante para que o público seja capaz de criar condições de formular um discurso racional sobre si mesmo e é o elemento que mantém o público Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 reunido para que possa deliberar, isto é, aparece como mediadora das relações que se estabelecem entre os membros que formam o público. Diante disso, é possível pensarmos o meio, a mediação não somente como a fonte de informações para que o público possa se informar sobre si mesmo. Ela é a motivação para o estar junto e, mais do que isso, é o meio material pelo qual este público pode se manter junto mesmo que não esteja presente num mesmo espaço. O público de que fala Habermas lê as mesmas coisas, tem as mesmas informações e seus membros têm vivências semelhantes, dessa forma, compartilha um conhecimento comum, experiências comuns. Em análises recentes de Scott McQuire (2008) e Massimo di Felice (2009) sobre a presença ubíqua dos meios de comunicação e informação na metrópole expõem novas formas de vivenciar e habitar este espaço urbano mediado. Temos reconstituído este espaço através de uma experiência subjetiva com ele. Diante disso, perguntamos então como se dá o diálogo político entre os públicos nos novos meios? Para nós que vivemos num território urbano altamente mediado, de que maneira o público ou os públicos presentes na cidade têm conseguido estabelecer e criar espaços públicos diversos a partir da sua experiência digital? Qual a importância dos novos meios neste processo hoje? Nosso modo de vida tecnológico (LASH, 2002) se expressa de maneira evidente nas cidades, local de habitação da maioria da população mundial nesta segunda década do século XXI (UNITED NATIONS, 2014). A presença da tecnologia é, na verdade, algo intrínseco ao urbano. Lewis Mumford (1961) discorre sobre a cidade em diversos momentos da história européia em que é possível observar que a cidade está associada à técnica e à tecnologia. Para Massimo Di Felice (2009) habitar é uma prática comunicativa e as transformações técnicas e tecnológicas comunicativas ocorridas historicamente transformaram nosso modo de habitar o espaço urbano. Para Benjamin (2012) a mudança nos nossos modos de percepção do espaço tem uma origem téncia. Isto significa que a experiência tecnológica dos meios de comunicação está profundamente ligada a formas arquitetônicas da cidade. As transformações tecnológicas na cidade são paralelas às transformações dos espaços urbanos, das suas estruturas arquitetônicas e mesmo dos espaços da casa que vai se tornando altamente tecnológica. Embora cada uma das tecnologias com que temos contato em nosso cotidiano urbano se traduza em uma diferente experiência pessoal e coletiva na cidade e da cidade, as Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 diferentes culturas comunicativas (DI FELICE, 2009) que delas advêm coexistem. Isto é, não existe uma linearidade em que uma tecnologia sai de cena para entrada de outra, uma cultura se sobrepondo à outra, mas elas se relacionam. Friederich Kitler (1996) afirma que “a cidade é meio”: suas estruturas, as casas, os monumentos, a arquitetura urbana, a arte, os hábitos de associação, todos formam nós conectados em redes complexas que comunicam e informam. Assim, todo tipo de tecnologia urbana, para Kitler, é informação. Seja através das tecnologias mais antigas como os registros em pedras, pergaminhos, papiro, monumentos, as navegações, os transportes, as estradas, seja por meio das mais modernas como eletricidade, telefone, rádio, telégrafo, televisão e internet, todas elas comunicam e informam. Não terei espaço para explorar a fundo essa imbricação entre espaço urbano e mídia historicamente. Diversas tecnologias que existem no espaço urbano foram relativamente bem assimiladas por nós. Uma tecnologia que chega não necessariamente substitui outra que era utilizada antes dela de uma forma linear, mas existe uma continuidade e uma incorporação de usos e conhecimentos de itens antigos aos novos. O computador com internet e o smartphone, assim como a TV, são tecnologias que emergem no contexto tecnológico urbano que acumula diversas tecnologias. Ou seja, a computação e a telecomunicação convergem com outras mídias mais antigas como a fotografia, o cinema, o rádio e a televisão. São continuidade ao mesmo tempo em que trazem mudanças importantes. A televisão, por exemplo, é inventada no contexto que costurava fotografia, cinema, telégrafo e o rádio os quais já anunciavam sua chegada (WILLIAMS, 1990). Não é que a televisão é apenas uma combinação ou desenvolvimento de tecnologias anteriores, obviamente que ela emerge desse contexto, mas possui suas particularidades. Falamos de ação até aqui de maneira genérica. Gostaria de passar à descrição das Jornadas de Junho para podermos analisar alguns pontos já ressaltados até aqui. Voltemos a maio de 2013. No final deste mês, o Movimento Passe Livre (MPL) começa a articular atos contra o aumento de 20 centavos na passagem do transporte coletivo anunciado pelo governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, e pelo prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad. Os primeiros atos foram feitos por secundaristas de duas escolas, uma em Pirituba, zona norte da cidade, e outra no centro e pelo MPL. Nestes atos, em seu Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 perfil do Facebook3 e em seu site (MPL-SP, 2013), o MPL divulga o Primeiro Grande Ato contra o Aumento da Passagem que estava marcado para ocorrer no centro da cidade no dia 06 de junho de 2013. Já no primeiro ato, o Estado usa a Polícia Militar para reprimir os manifestantes. A repressão policial que sofreram ou que viram em vídeos da internet e leram em relatos de manifestantes é tópico recorrente na fala de meus colaboradores. Dois de meus interlocutores relatam sua experiência do primeiro dia de maneira detalhada. Cito aqui a fala de Gabriel: O primeiro [ato] começou entre a prefeitura e o palácio municipal. Nem deu tempo de começar na verdade, o ato seguia para a nove de julho e a polícia já tentou destruir o ato no momento em que ele saiu. [...]A gente ficou muito assustado, [tinha] muita polícia. E bomba, bomba, bomba. Até que o ato conseguiu chegar na Paulista e a gente conseguiu se somar com as pessoas. A repressão não parou e a gente foi até o fim da Paulista no sentido Paraíso e ficou ali tensionando muito até que uma galera entrou no shopping [Paulista] e a polícia trancou o shopping. Lucas que entrou no shopping conta o que vivenciou lá dentro: [...] na praça Oswaldo Cruz [...] a polícia começou a tacar muita bomba e não deixou [o ato] dispersar. Ela começou a tacar bomba da Paulista em direção ao shopping pra gente não conseguir correr pra Paulista pra pegar metrô até porque tava tudo fechado. [...] eu fui com outra galera que arrombou a porta do shopping e ficou lá dentro. A gente entrou correndo e os seguranças fecharam a porta do shopping, só que a polícia começou a jogar bomba de gás, pedir pros seguranças abrirem a porta e jogar bom de gás lá dentro. Mas não tinha nenhuma saída, era bem sádico da parte deles. Teve uma hora que o próprio segurança chegou pra gente e falou: “tem uma saída de emergência, foge logo antes que os caras entrem aqui e prendam todo mundo”. Aí ele abriu a saída de emergência pra gente sair por trás. aí uma galera que moscou lá dentro acabou sendo presa, eu saí. [...] tinha trabalhador do shopping lá dentro ainda. Tinha um quiosque do Starbucks e duas minas ficaram por lá, talvez com medo de largar o posto de trabalho. Aí uma delas desmaiou e um amigo meu que emprestou vinagre pra ela, ajudou ela. A polícia não tava nem aí. A Avenida Paulista é um símbolo de São Paulo. Não somente como cartão postal, mas é um dos centros financeiros mais importantes da cidade. Paradoxalmente, ela é, ao mesmo tempo, a Wall Street paulistana e leito da população em situação de rua. Por lá passam inúmeras marchas, protestos e manifestações populares. Artísticas e políticas. 3 O endereço da página do MPL-SP é o seguinte: < https://www.facebook.com/passelivresp?fref=ts>. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Resumidamente, é um local onde se manifestam os mais variados tipos de conflito social. A ocupação da Avenida Paulista e a interrupção de seu tráfego eram vistas pelos manifestantes como uma conquista importante do movimento. E para a polícia, aparentemente, estas ações deveriam ser evitadas. Após o primeiro protesto a polícia acusa os manifestantes de terem depredado diversas áreas da cidade. O Metrô calcula em R$ 70 mil o prejuízo que manifestantes causaram às estações (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013). O MPL comenta no Facebook sobre as depredações, mas afirma não ter controle sobre tudo o que ocorre durante os protestos: As depredações só se iniciaram depois de um segundo momento de repressão brutal e prisões, realizadas na região da Avenida Paulista. O Movimento Passe Livre não incentiva a violência em momento algum de suas manifestações, mas é impossível controlar a frustração e a revolta de milhares de pessoas com o poder público e com a violência da Polícia Militar. (MPL-SP, 2013) O MPL utilizava bastante o Facebook e seu site para se comunicar com as pessoas que estavam interessadas no movimento. A fonte de informação primordial de meus interlocutores, desde o início, era a internet, principalmente o Facebook. No questionário publicado na internet, 85% das respostas apontam para o uso desta rede social como fonte de informação. Em pesquisa do Ibope, 62% dos manifestantes entrevistados no dia 17 de junho souberam das manifestações pelo Facebook, 29% pela internet (BRASIL..., 2013). O alcance das redes sociais foi, portanto, bem grande. Para além de obterem informação, muitos de meus interlocutores utilizaram a internet como local para publicarem relatos sobre sua experiência nas ruas. Laura diz: A gente organizava os atos pela própria internet, a gente só sabia quando os atos iam acontecer através do Facebook. E a partir disso a gente começava a divulgar o ato, compartilhando o evento do ato e também a gente compartilhava muitas matérias sobre a repressão que a gente estava sofrendo nos atos, acho que esse era o principal conteúdo das coisas que eu postava. Denunciando a repressão e como o aumento da tarifa era abusivo. Cláudia escreve: “eu usava bastante o Facebook pra divulgar os próximos. Pra fazer chamadas. E pra contar e também relatando as experiências de cada ato”. Pedro, à época, trabalhava com edição de vídeos, e achou que uma forma de divulgar o que acontecia nos Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 atos fazendo um contraponto ao que era veiculado pela televisão, era postar vídeos no YouTube4. Lúcio, com quem encontrei na manifestação do dia 17 de junho, disse que, apesar de ter ido à rua apenas naquele dia, já havia feito vídeos estimulando as pessoas a comparecerem aos outros atos. Mesmo com manifestantes presos e a intensa repressão policial ao primeiro protesto, o MPL agenda o Segundo Grande Ato contra o Aumento da Passagem para o dia seguinte, 07 de junho. O local de encontro seria o Largo da Batata. No ato do dia 07, os manifestantes se concentraram às 17h e começaram a andar saindo do Largo da Batata pela Avenida Faria Lima. Gabriel relata de forma detalhada o que viveu naquele dia e o que sentiu: O ato começou no Largo da Batata. Foi um ato convocado de um dia pro outro. No Largo a gente começou o ato, pegamos a Faria Lima, viramos na Rebouças, até aí eu já estava achando o máximo. A Faria Lima e a Rebouças. Aí eu pensei: "puta, para onde a gente vai? Será que a gente vai ocupar a reitoria da USP? Tamo indo em direção ao Palácio do Governo?" E de repente a galera toma a Marginal [Pinheiros]. Foi animador demais! O ato continua pela Avenida das Nações Unidas, a Marginal Pinheiros, com repressão, porém menor, na avaliação do Gabriel, do que aquela do dia 06. Quando os primeiros ataques policiais começam, algumas pessoas tentam manter os manifestantes unidos para resistirem à PM gritando: “não corre, não corre”, diz Gabriel. Marcante nos protestos de junho foi a presença dos black blocs5 que se colocavam à frente dos manifestantes buscando resistir aos ataques policiais e impedir que a manifestação se dispersasse. Neste dia, uma postagem no Facebook ganha enorme repercussão nas redes. O promotor de justiça Rogério Leão Zagallo publica uma mensagem em seu perfil na rede 4 YouTube é uma rede social de compartilhamento de vídeos. Endereço: <http://www.youtube.com/>. O Black Bloc nasceu na Alemanha em 1980 e era composto por manifestantes vestidos de preto e mascarados para evitar sua identificação por parte da polícia. Seu intuito principal, no fim dos anos 80, era “oferecer proteção às passeatas, impedindo a infiltração de agentes provocadores e protegendo os manifestantes dos ataques da polícia” (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013, p. 37). Posteriormente, nos anos 1990, o Black Bloc ressurge nos Estados Unidos nos protestos contra a Organização Mundial do Comércio em Seattle e orienta sua ação à destruição da propriedade privada como forma de protesto (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013). Nos atos contra o aumento, os black blocs se colocavam na linha de frente da manifestação num confronto direto com a polícia. O grupo também foi responsável pela destruição de agências bancárias e grandes lojas gerando controvérsia entre os manifestantes que não apoiavam esse tipo de ação. 5 Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 social em que pede a morte dos manifestantes: “Estou há duas horas tentando voltar para casa mas tem um bando de bugios revoltados parando a avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial” (ARAÚJO, 2014). O MPL chama, então, o Terceiro Grande Ato Contra o Aumento da Passagem para o dia 11 de junho. A página do evento no Facebook “viraliza” – termo muito usado na internet para se referir a publicações que obtêm grande alcance – e 28 mil perfis confirmam participação no ato. Obviamente que nem todos os perfis confirmados correspondiam a pessoas que realmente compareceriam ao ato. É normal no Facebook que, para dar força a determinado evento, os usuários da rede confirmem presença mesmo que não possam ir. Como explica Fabio Malini (2013): A dinâmica do Facebook ilustra curiosamente a articulação rua e rede. Há aqueles que estão presente na primeira; há aqueles que estão na segunda. Os primeiros enunciam; Os segundos anunciam. Os primeiros, de dentro da mobilização, relatam. Os segundos, de dentro da rede, espalham e comovem. O evento no Facebook funciona então como um mural noticioso das lutas e uma construção heterogênea de narrativas comuns, que podem ser curtidas (popularizadas), seguidas (valorizadas em termos de atenção), comentadas (discutidas e virarem polêmicas num espaço público) e, a mais radical da ação peer-to-peer, compartilhadas (difundidas pelos perfis)” (MALINI, 2013). Para além de ser um “mural noticioso” como escreve Malini, estar na internet era uma forma de participar das manifestações. Quase que a totalidade de meus entrevistados, quando lhes perguntei “de que formas você participou dos protestos?” colocam que participaram indo às ruas e postando e compartilhando coisas no Facebook. No questionário publicado online, muitos mencionam também essa modalidade de participação associada ou não à saída às ruas e à participação nos atos. Interessante aqui apontar para a internet sendo constituída enquanto espaço público de ação. Nos protestos de junho, vemos que o acesso amplo à tecnologia na cidade permitiu a criação de espaços públicos de ação dentro da própria internet. Espaços estes que estavam em imbricação com os espaços físicos da cidade durante a ação já que as pessoas Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 habitam e transitam por estes múltiplos espaços. O espaço, nas mobilizações ocorridas em junho, tem alguns diferentes sentidos: o espaço físico da cidade mídia no qual os agentes se colocam fisicamente (e que é um espaço de relações imbricado com as tecnologias de informação e comunicação); e o espaço público que, no sentido arendtiano, é o espaço onde as pessoas se reúnem e que é constituído pelos agentes durante a ação. Se, para a constituição do espaço público, é necessária a presença de pessoas agindo, temos esta possibilidade que se concretiza em junho: a constituição de um espaço público midiático. Assim, estar no protesto ou participar de uma mobilização deixa de ser somente sair às ruas. A confusão dos espaços, na fala de meus colaboradores, fica evidente, na medida em que “participar ativamente” do protesto pode ser considerado o apoio dado na internet, no compartilhamento de conteúdos, na publicação de opiniões nas redes. McLuhan (2005) considera que os meios podem se constituir enquanto ambientes (environments). Para ele, “qualquer nova tecnologia, qualquer extensão ou ampliação das faculdades humanas quando toma forma material, tende a criar um novo ambiente6” (MCLUHAN, 2005, p. 84). Esta modalidade de participação irá se intensificar e se concretizar alguns atos mais tarde. Convém narrarmos ainda alguns acontecimentos para compreendermos em que contexto ela emerge. A concentração para o Terceiro Grande Ato seria na Praça do Ciclista, no cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, no dia 11 de junho de 2013. O grupo era plural, mas as pessoas não eram ricas, isso era visível. Havia muitos estudantes. Houve um primeiro impasse com a polícia quando tentamos continuar pela Rua da Consolação indo sentido centro. Fomos impedidos, mas o ataque policial não conseguiu dispersar os manifestantes. O segundo impasse se deu no Terminal Parque Dom Pedro quando uma “parede” de policiais militares se formou impedindo nossa entrada no terminal. As bombas, mais uma vez, ao invés de desanimarem os manifestantes, apenas as estimulavam a continuar. A cada resistência frente à polícia, mais o ânimo das pessoas crescia e mais elas se uniam para dar continuidade ao ato. 6 Tradução da autora para: “Any new technology, any extension or amplification of human faculties when given material embodiment, tends to create a new environment”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 Chegamos à Praça da Sé depois de quase 4 horas de ato. Os manifestantes foram subindo as escadas da Catedral e sentando no chão, apenas comemorando o ato para finalizá-lo. Foi quando vimos uma “chuva de bombas” vindo em nossa direção. A imagem desta chuva de bombas, assim como outros vídeos do mesmo ato, será icônica nas redes sociais. Depois deste episódio o ato se dividiu em várias partes. Algumas pessoas seguiram pelo bairro da Liberdade outras foram para a Paulista. Neste dia, a manifestação durou quase 6 horas, 20 pessoas foram presas e duas foram atropeladas (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013). As fianças exigidas para liberação dos presos giravam em torno de R$ 20 mil reais (SOARES, 2013a). O MPL publica em seu Facebook uma conta bancária para arrecadação do dinheiro para pagar as fiança dos presos. As palavras “vandalismo” e “baderna” são utilizadas pelo governador Geraldo Alckmin para se referir aos manifestantes em seu Twitter7. Na televisão e nos jornais Folha de São Paulo e Estadão, o discurso é semelhante. As imagens de locais depredados, barricadas, lixos pelas ruas se espalham pela mídia e pela internet. Paralelamente a isso, centenas de relatos e imagens feitas pelos manifestantes são compartilhados nas redes sociais. Enquanto a grande mídia foca nas depredações (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013), os relatos dos participantes aparecem no sentido de denunciar o tratamento dado a eles pela polícia. Vídeos que viralizam na internet mostram a violência policial. Em um vídeo muito compartilhado na rede, policiais cercam e espancam um jornalista (JORNALISTA..., 2013). Meus interlocutores mencionam que uma das maneiras que encontraram de buscar apoio ao movimento era divulgar esse material para sua lista de amigos no Facebook, apoiando os manifestantes e contando sua própria história. Laura, Gabriel, Pedro, Cláudia publicaram seus próprios relatos em seus perfis com o intuito de oferecerem essa outra versão dos fatos. Espalhou-se também pela rede, após o ato do dia 11 de junho, publicações sobre como lidar com gás lacrimogêneo ou como confeccionar máscaras antigás (TERROR, 2013). Com base em informações de que o vinagre seria um neutralizador do gás, as pessoas começam a levar garrafas de vinagre para os atos. O MPL marcou o Quarto Grande Ato Contra o Aumento da Passagem para dia 13 de junho. A concentração seria, novamente, em frente ao Teatro Municipal. Horas antes do 7 Twitter do governador: <https://twitter.com/geraldoalckmin_>. Acesso em 25 mai. 2015. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 ato a polícia já começa a se concentrar no local. Pessoas que passavam pelo local ou trabalhavam por perto postaram no Facebook e Twitter fotos da concentração policial em frente ao local. O policiamento começa cedo e pessoas são revistadas na saída do metrô ou em ruas próximas ao Teatro Municipal. Bolsas e mochilas são revistadas e pessoas são detidas por porte de vinagre (SOARES, 2013b). Estas notícias corriam rapidamente as redes sociais e viraram piada na internet. Estava se formando na rede a “Revolta do Vinagre”. O “fatídico dia 13”, como descreve Gabriel, foi um dia marcado pela violência policial. A repressão foi tamanha que a repercussão foi instantânea, tanto nas redes sociais quanto na televisão. Os meios de comunicação tradicionais, as grandes redes de televisão, os jornais e até mesmo revistas semanais que estavam contra os atos, começam a apoiar as manifestações. O apoio cresce enormemente e se expande pelo Brasil e até mesmo para fora do país. A partir deste momento as pautas das manifestações foram aos poucos se tornando difusas e diversas outras demandas começaram a surgir. A televisão dá atenção à difusão de pautas (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013) e nas redes sociais isso é cada vez mais notável8. O Quinto Grande Ato Contra o Aumento da Passagem é marcado para o dia 17 de junho novamente no Largo da Batata. A página do evento do ato no Facebook tem mais de 250 mil pessoas confirmadas. Outros protestos foram organizados em inúmeras cidades do Brasil. Os debates múltiplos foram transportados para as ruas. Vi pessoas com cartazes os mais diversos: pela educação, pela saúde, contra a corrupção, “saímos do Facebook” ou “é tanta coisa que nem cabe nesse cartaz”. Não somente eu, mas muitos de meus interlocutores observam uma mudança drástica nos atos. Quase não há policiamento, os participantes são ainda mais plurais, há famílias, idosos, crianças. E há muita, muita gente. A marcha seguiu pela Faria Lima, um evento organizado no Facebook pedia às pessoas das casas próximas aos locais pelos quais passariam os manifestantes, que colocassem lençóis brancos nas janelas demonstrando 8 O Facebook permite que um/a usuário/a organize o que chamam de “Eventos” pelo site. É criada uma página em que se colocam informações sobre o evento, local e horário em que este ocorrerá. As páginas criadas pelo MPL como chamada para os protestos já não existem. Os dados foram colhidos em 17 de junho de 2013 no seguinte endereço: <https://www.facebook.com/events/388686977904556/392429110863676/?ref=notif¬if_t=plan_mall_act ivity>. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 apoio e que deixassem o wi-fi livre. Consegui conectar em algumas redes durante a manifestação já que o serviço de telefonia não auxiliou em nada a comunicação. O ponto alto do protesto foi quando a multidão, ao andar pela Avenida Brigadeiro Faria Lima, viu-se projetada num enorme prédio espelhado. Pessoas gritaram extasiadas. Bateram palmas para si mesmas, tiraram fotos, fizeram vídeos. O protesto deste dia se dividiu em diversas frentes. Grupos enormes foram para a Ponte Estaiada, Palácio do Governo e Paulista. Ele foi em sua maior, nesta região, parte pacífico, com poucos focos de conflitos. Em outros locais da cidade, houve conflito mais direto entre manifestantes e policiais. É interessante resgatarmos um pouco sobre uma forma já consagrada da política a que estamos acostumados: a política imagética. Discorri brevemente a imbricação entre espaço urbano e tecnologias de comunicação e informação (TICs). Como também já foi mencionado, as tecnologias modificam a maneira como nos relacionamos com os espaços que habitamos. Se poderíamos encarar a TV como uma tecnologia privada, isto é, presente no espaço privado da casa, ela significou, desde sua chegada até os dias de hoje, embora em menor intensidade por conta da transmidiação, uma saída do espaço público. Segundo McQuire (2008, p. 140): Conforme a casa se torna um centro midiático, um nó dentro da rede televisiva e radiofônica, a vida social se torna cada vez mais caracterizada por um recolhimento ao privado. Este é o contexto para a emergência de uma política plenamente baseada na imagem, acima de tudo, sendo que a televisão se torna o meio politicamente dominante9. (itálico do autor) Mas mesmo com este movimento de saída do espaço público para o espaço privado da casa, a TV possui a capacidade de nos conectar e nos convidar a habitar espaços. Segundo Carpignano (1999), assistimos à televisão, isto é, habitamos seu fluxo contínuo fazendo com que estes espaços aconteçam. Esta forma de experiência do espaço e do tempo existentes a partir de nosso uso da TV gera formas importantes de sociabilidade e vivências comuns entre quem assiste aos programas modificando a noção de público e de esfera pública (CARPIGNANO, 1999). Existe uma espécie de diálogo silencioso entre o 9 Tradução da autora para: “As the home becomes a media centre, a node within radio and television networks, social life is increasingly characterized by a retreat to the private. This is the context for the emergence of a fully fledged image politics which depends, above all, on television becoming the dominant political medium”. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 público que a TV cria e que está acompanhando o fluxo televisivo (PAIT, 2007). Esse público participa, vive estes momentos midiáticos sendo, através da mídia, tirado de dentro do seu espaço caseiro para o mundo que a televisão lhe oferece. Para Habermas (2003) este movimento significa uma perda da esfera pública. Dayan e Katz (1996) demonstram também uma vivência privatizada de eventos que seriam públicos, mas que agora são vistos dentro das casas pela família reunida que não mais se desloca até os espaços públicos tradicionais como a praça, a rua. A saída do espaço público não se limita ao habitante comum da cidade que se recolheria à casa para se reunir em frente à televisão. Ele sai para assistir a alguém com quem ele deveria se encontrar no espaço público. Quer dizer, quem é visto na televisão? Os eventos midiáticos de que falam Dayan e Katz (1996) são os eventos das pessoas públicas, aquelas ligadas à esfera do poder público ou então de celebridades artísticas. A figura da pessoa pública existe não porque todos na rua a conhecem, mas porque ela aparece na televisão, fala no rádio. A presidente fala conosco através de pronunciamentos públicos diretamente para dentro de nossas casas. A publicidade, portanto, passou a estar ligada à presença na mídia. Quando vemos, então, esta saída em massa às ruas, vemos uma intensificação do número de entradas na internet relacionada a este evento. Em pesquisa realizada pela Hitwise da Serasa Experian (MADUREIRA e BOUÇAS, 2013), o Facebook atingiu um pico de acessos durante o mês de junho de 2013, representando uma fatia de 70% de participações entre as redes sociais mais utilizadas no país. Esta mesma pesquisa registra um volume de 17,7 milhões de tuites, isto é, publicações feitas na rede social Twitter, relacionados aos protestos. Outro dado interessante que a Hitwise traz é que o número de usuários de celulares com a tecnologia 3G que enviou dados a partir da Avenida Paulista durante os protestos cresceu 14% na rede da Telefônica/Vivo. Disso podemos considerar que, ao mesmo tempo em que o agir político na era da internet se baseia numa forte relação entre política e imagem, como ocorre com a TV; ela também representa uma volta às ruas, isto é, funciona como um ímã que atrai as pessoas para o espaço público para que elas apareçam na mídia e dêem a sua “cara” a essa mídia. Selfies, fotos tiradas pelas próprias pessoas de si mesmas, são postadas incansavelmente nas redes a partir dos protestos do dia 17. As pessoas queriam e tinham que mostrar que Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 estavam lá, na rua, e aqui, na rede. Ou, lá na rua e lá na rede, locais que se confundem o tempo todo. Neste momento também fica generalizada a constituição do espaço público neste ambiente mediado. Não há perda do espaço público, mas uma mudança da experiência política com a chegada dos novos meios. Rem Koolhas (1991 apud MCQUIRE, 2008) nos leva a refletir sobre essa mudança ao dizer que o domínio público está em transformação e a penetração das mídias é tal que, em alguma medida, dispensa a interação física nestes espaços públicos tradicionais. O espaço da cidade mídia (media city – McQuire, 2008) é um ambiente dinâmico que, assim como o ambiente urbano, sofre modificações constantemente. Na cidade mídia (media city) as tecnologias de informação e comunicação estão imbricados com os espaços urbanos físicos das cidades. A cidade, assim, não é somente o espaço físico que a delimita, suas estruturas arquitetônicas e de transporte e outras infraestruturas tipicamente urbanas. O espaço urbano é também um espaço de relações, de experiências e sensações (HANDLYKKEN, 2013). Ou, como colocaria McQuire (2008: IX), um “espaço relacional” (relational space) em que a experiência e a vivência na metrópole são refeitas subjetivamente através das tecnologias com as quais as pessoas interagem e que estão presentes no espaço urbano. O espaço relacional tem a ver com a mobilidade das tecnologias de mídia na cidade que permitem que as pessoas tenham uma experiência individual e subjetiva de habitar a cidade e agir nela. A presença ubíqua das mídias em imbricação com o as estruturas urbanas causam um certo estranhamento em nós quando tentamos lidar com os espaços e localidades e também nossa noção de pertencimento, de presença e de participação (MCQUIRE, 2008). Se voltarmos a Arendt e a seu conceito de espaço público, temos que o local físico não é espaço público por si só. Neste sentido, com a penetração e ubiqüidade das novas mídias digitais e móveis, podemos dizer que os novos meios são também um suporte material que nos mantêm juntos e podem ser constituídos como espaços públicos de ação. O ato do dia 20, um ato comemorativo pela vitória das manifestações, marcado para acontecer na Paulista, é também presidido por milhares de pessoas. Nesta ocasião fica evidente a tal imbricação dos espaços de ação. Algumas pessoas começam a argumentar nas redes sociais contra o uso de bandeiras de partidos políticos nos atos. Este debate fica Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 visível durante o ato na Paulista. Carlos e Maurício mencionam terem estranhado a briga que ocorreu entre militantes do PT e alguns manifestantes que arrancaram as bandeiras das mãos deles e queimaram. Também presenciei esta cena durante o ato e conversei com uma moça que teve a bandeira arrancada de sua mão e estava com o dedo da mão roxo por conta da agressão. As disputas pelos espaços nessa nova mídia, portanto, ficam manifestas nos atos nas ruas. A internet aparece como um meio em que a pessoa pode associar sua própria imagem à sua ação dando-lhe a “cara” que deseja, a sua própria cara, apropriandose deste espaço midiático e produzindo conteúdo, escrevendo e ilustrando sua própria história. REFERÊNCIAS ARAÚJO, T. D. 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Parte-se do pressuposto de que as políticas desenvolvidas para a formação de professores não têm buscado efetivamente atender às demandas de formação, mas apenas cumprir metas de certificação de professores em massa, em curto espaço de tempo sem atentar para a autonomia e melhor qualificação das práticas docentes destes profissionais. Busca-se também a compreensão do histórico da formação de professores da micro região de Ribeirão Preto (DRE de Ribeirão Preto), em particular dos educadores das escolas estaduais que oferecem o Ensino Fundamental, seu desenvolvimento nestes últimos dez anos e os impactos na sua prática docente no período de 2002 a 2012. Neste estudo tentaremos focar a temática da formação de professores com a utilização das TDIC no tempo e espaço, delineando o cenário da globalização, da indústria cultural e semiformação e todas as implicações que afetam nossa sociedade e a educação. Esse novo contexto educacional, traçado a partir das revoluções da informática, da microeletrônica, da criação da internet e da modernização dos recursos tecnológicos por meio de organismos internacionais, da mídia e órgãos estatais, desencadearam uma investigação do significado desta mudança em termos educacionais. É fundamental repensarmos o papel da educação e dos educadores para construção de uma sociedade mais emancipada, menos administrada e autônoma no contexto desta nova ordem mundial. Utilizando as categorias da Teoria Critica da Escola de Frankfurt como, semiformação, indústria cultural, autonomia e emancipação, buscar-se-á uma análise do processo de formação dos professores que atuam no Ensino Fundamental nos anos iniciais. Palavras chave: formação cultural; semiformação; novas tecnologias e indústria cultural. 1 Licenciado em Filosofia e Pedagogia (UNIVALE-1977); Mestre em Políticas Públicas e Sistemas Educativos pela UNICAMP (2004); Doutor em Educação pela UNIMEP (2015); Diretor Titular de cargo na EE Dona Sinhá Junqueira – Ribeirão Preto e Professor da FATEC Mococa. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 TEORIA CRITICA E TDIC: PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA “(...) a minha questão não é acabar com a escola, é mudá-la completamente, é radicalmente fazer que nasça dela um novo ser tão atual quanto a tecnologia. Eu continuo lutando no sentido de por a escola à altura do seu tempo. E por a escola à altura de seu tempo não é soterrá-la, mas refazêla.” Paulo Freire (2003) Introdução O objetivo deste estudo é analisar a Política de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica no Brasil, em especial para o Ensino Fundamental (1º. ao 5º. Ano), no contexto da semiformação, indústria cultural e emancipação do educando e do educador. Partimos do pressuposto de que as políticas desenvolvidas para a formação de professores não têm buscado efetivamente atender às demandas de formação, mas apenas cumprir metas de certificação de professores em massa, em curto espaço de tempo. Buscase, ainda, a compreensão do histórico da formação de professores da micro região de Ribeirão Preto (DRE de Ribeirão Preto), em particular dos educadores das escolas estaduais que oferecem o Ensino Fundamental, seu desenvolvimento nestes últimos dez anos e os impactos na sua prática docente no período de 2002 a 2011. Neste estudo tentaremos focar a temática da formação de professores com a utilização das TDIC no tempo e espaço, delineando o cenário da globalização, da indústria cultural e semiformação e todas as implicações que afetam nossa sociedade e a educação. Esse novo contexto educacional, traçado a partir das revoluções da informática, da microeletrônica, da criação da internet e da modernização de outros recursos tecnológicos por meio de organismos internacionais, da mídia e órgãos estatais, desencadearam uma investigação do significado desta mudança em termos educacionais. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 É fundamental repensarmos o papel da educação e dos educadores para construção de uma sociedade mais emancipada, menos administrada e mais autônoma no contexto desta nova ordem mundial. Utilizando as categorias da Teoria Critica da Escola de Frankfurt como, semiformação, indústria cultural, autonomia e emancipação, busca-se uma análise do processo de formação dos professores que atuam no Ensino Fundamental nos anos iniciais. Pucci (2009) ao colocar esta questão, assim se expressa: Na época da “Teoria da semiformação” a ratio instrumental mercantilizada dominava ideologicamente a sociedade e a escola, instalando unilateralmente o esquema da adaptação e da dominação progressiva, a ponto de Adorno, naquela época, afirmar que “as condições da própria produção material dificilmente toleram o tipo de experiência sobre a qual se assentavam os conteúdos formativos tradicionais”. Nos dias de hoje, a aceleração da aceleração tecnológica e a articulação do desenvolvimento tecnocientífico com o capital global, aumentaram assustadoramente a presença e o poder dessa mesma ratio no interior da sociedade e da escola: somos controlados nos ambientes sociais pelos objetos tecnológicos por nos mesmos construídos; as máquinas estão substituindo os homens em seus afazeres, inclusive nas salas de aula; amplia-se indefinidamente a hegemonia do saber pragmático em um mundo dominantemente funcional. (PUCCI, 2009, p. 77). As TDIC estão presentes na vida das pessoas e aos poucos começam invadir as salas de aula, a administração das escolas, o dia a dia de nossas crianças e adolescentes, e também, de forma tímida, a vida de nossos educadores. É preciso uma reflexão profunda para compreender as radicas transformações que estas tecnologias estão trazendo para dentro das escolas. Nesta pesquisa foi necessário realizar um estudo teórico, através de uma ampla leitura de textos dos pensadores da Escola de Frankfurt e outros educadores atuais, em especial de Theodor W. Adorno, para finalmente proceder a uma análise dos mesmos para evidenciar os elementos buscados: crítica social; crítica da escola e da educação. A teoria crítica da educação de Adorno e sua apropriação para análise das questões atuais sobre a práticas escolares trazem significativas contribuições para o debate sobre a função social da escola na atualidade e sua potencialidade para o debate quanto à emancipação do educando e do educador; fornece ainda subsídios para uma crítica Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 consistente aos projetos que surgiram nos últimos anos e que não foram capazes de construir uma educação emancipador. A Teoria Crítica, as TDIC e a Educação na Sociedade do Conhecimento. Vivemos em tempos confusos e de transição entre diferentes formas de sociedade; faz-se necessário repensarmos o papel da escola, dos educadores e das ferramentas que utilizamos para acompanhar de forma critica tudo que esta em nosso entorno. É fundamental que analisemos as categorias intelectuais que podem provocar nos educadores uma ruptura entre o que ai está e o processo de construção de uma educação que provoque várias transformações sociais, tecnológicas, econômicas e culturais importantes para a emancipação dos educandos, educadores e da própria sociedade. Podemos nos perguntar, como Adorno (1971), qual Pedagogia seria capaz de trabalhar de forma construtiva com as crianças do século XXI, quando os vários recursos midiáticos impõem valores e preconceitos que tornam a convivência mais intrigante entre as diferentes culturas? Vejamos: No sentido de uma Pedagogia contra o preconceito seria importante encorajar as amizades individuais e não ironizá-las ou difamá-las; ao contrario, tanto quanto possível, trabalhar contra as gangues fanfarronas e outros grupos do mesmo tipo, especialmente quando eles buscam poder. A estrutura de formação de gangues na escola é um fenômeno central. Como em um micro cosmos desenha-se o problema de toda a sociedade em geral. (ADORNO, 1971, p. 124) Vaz (2009), ao comentar este texto de Adorno, expressa um sentimento de compaixão em relação aos professores, pois não só as crianças do Ensino Fundamental, como também as os jovens adolescentes do Ensino Médio, e também, as famílias e as mídias de massa apresentam e defendem modelos reacionários que parecem caminhar para um enrijecimento crescente e uma frieza burguesa desumanizadora. Vaz vai mais fundo nesta questão e nos indaga: Como é possível, num ambiente escolar tão duro e desolador, como este que Adorno toma como ponto de partida para suas reflexões, ainda se falar em conhecimento, sua produção e socialização? Como pensar ainda em formação se, como dizem Horkheimer e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 Adorno, “A pseudo individualidade é um pressuposto para compreender e tirar da tragédia sua virulência: e só porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras tendências das encruzilhadas do universal, é possível reintegrá-los totalmente na universalidade.” (DE, p.145; DA, p. 178) O sujeito parece não ser mais possível porque não há mais experiência e porque o trabalho do conceito está, na base, danificado, e no lugar dele nada foi posto: o semiculto (semiformado) dedica-se à conservação de si mesmo sem um si mesmo. (VAZ, 2009, p. 63). A urgência de uma nova abordagem da cultura, da educação, da economia e da sociedade em que vivemos é caracterizada pelos constantes conflitos que marcam o inicio do século XXI; mudanças drásticas ocorrem por todo lugar e presenciamos uma corrida sem precedentes pelo conhecimento, riqueza e poder, mas também percebemos a reação dos descontentes e marginalizados deste processo, quer sob a forma do fundamentalismo religioso, da crise ambiental simbolizada pelas mudanças climáticas, pela incapacidade do Estado em lidar com os problemas globais e demandas sociais, e mesmo, de um nacionalismo que isola o país do mundo globalizado. É neste caos que a educação emancipadora se coloca como um novo e gigantesco desafio para todos os educadores e gestores da escola pública. Nós, seres humanos, vivenciamos o tempo e o espaço de diferentes maneiras, dependendo de como nossas vidas foram estruturadas e praticadas ao longo de nosso processo de formação. As práticas e percepções, bem como, os intervalos e ritmos foram diferentes, dependendo da organização social, da tecnologia, da cultura e da capacidade de a escola influir decisivamente em nossas escolhas. Com o avanço do Capitalismo e da Tecnologia, tempo virou dinheiro à medida que tudo precisa gerar mais e mais lucro o tempo todo, Castells (2010) assim nos alerta: Quanto mais rápido você conseguisse obter seu retorno e reinvestisse o capital, maior seria o lucro. As finanças passaram a ser construídas em torno da venda de tempo monetizado. O crédito se baseava no tempo. A velocidade se tornou essencial nas transações financeiras. Quanto mais o Capital se globalizava, mas as diferenças de fuso horário possibilitavam a proliferação de mercados financeiros independentes para garantir a movimentação do capital o tempo todo. (CASTELLS, 2010, p. XXVI). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 Com as tecnologias surgindo e desaparecendo como uma brisa sobre o efeito da luz solar, ocorreram mudanças significativas na sociedade do conhecimento e nos processos de formação e educação de nossas crianças e jovens. É o mesmo Castells (2010) que aponta para estas mudanças: Nós também mudamos com a tecnologia, assim como as potencias tecnológicas dominantes, cansadas da hesitação de seus cidadãos em particular de guerras longas e caras, almejavam travar o que chamei de “Guerras Instantâneas”, usando bombas e mísseis inteligentes controlados à distancia para infligir danos insuportáveis ao inimigo, forçando-o, assim, a uma rendição rápida. (CASTELLS, 2010, p. XXVII). As tendências verificadas nos últimos anos parecem respaldar a relevância da transformação do tempo, pois a globalização acelerou o ritmo de produção, gestão e distribuição de bens e serviços em todo o planeta, o que também ocorreu e vem ocorrendo de forma acelerada na educação. Adorno, no texto “Teoria da Semicultura”, aponta com maestria o significado de algumas categorias presentes na sociedade moderna e que tem afetado profundamente a educação. O advento da TV e da Internet trouxe uma crise da formação cultural que não interessa apenas aos educadores e sociólogos, mas deve provocar uma reflexão séria sobre os métodos da educação e dos meios de comunicação de massa. Algumas categorias adornianas precisam de muita reflexão como: formação, semicultura, semiformação, semiformação socializada, racionalidade vazia, socialização da semicultura, indústria cultural, autonomia do sujeito, etc... Que formação cultural nossas escolas têm oferecidos aos jovens e crianças da sociedade digital da informação e comunicação? Para ilustrar a preocupação de Adorno, vejamos seus escritos: A formação cultural agora se converte em uma semiformação socializada na onipresença do espírito alienado, que segundo sua gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da socialização. Nada fica intocado na natureza, mas sua rusticidade – a velha ficção – preserva a vida e se reproduz de maneira ampliada. (ADORNO, 1972-1980, p. 01) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Na sociedade das TDIC é preciso estar vigilante para não produzirmos somente adaptação aos valores de mercado e descuidarmos das pulsões humanas como um processo social, vital à própria sociedade como um todo, de acordo com o mesmo Adorno. A revolução tecnológica afetou drasticamente as tecnologias de comunicação e a engenharia genética, que continuam aumentando o ritmo das mudanças e afetando a base material de nossas vidas. Temos redes interligadas e organizadas em todos os campos da atividade humanas. Isto não pode suscitar apenas acomodação, é preciso um olhar critico para que a escola não reproduza este estado de coisas. Vejamos: A adaptação não ultrapassa a sociedade, que se mantém cegamente restrita. A conformação às relações se debate com as fronteiras do poder. Todavia, na vontade de se organizar essas relações de uma maneira digna de seres humanos, sobrevive o poder como princípio que se utiliza da conciliação. Desse modo, a adaptação se reinstala e o próprio espírito se converte em fetiche, em superioridade do meu organizado universal sobre todo fim racional e no brilho da falsa racionalidade vazia. (ADORNO, 1972-1980, p. 02) Essa consciência falsa e a racionalidade vazia, presentes na educação burguesa, precisam ser combatidas para que possamos desenvolver um processo educativo emancipador e que torne os sujeitos aprendentes mais lúcidos e prontos para uma sociedade mais humana e justa. É possível construir uma sociedade sem status e sem exploração quando se postula no trabalho pedagógico a ideia de formação cultural numa sociedade racional e livre da dominação. Adorno reforça esta ideia ao afirmar: A formação não foi apenas sinal da emancipação da burguesia, nem apenas o privilegio pelo qual os burgueses se avantajaram em relação às pessoas de pouca riqueza e aos camponeses. Sem a formação cultural, dificilmente o burguês teria se desenvolvido como empresário, como gerente ou como funcionário. Assim que a sociedade burguesa se consolida e já as coisas se transformam em termos de classes sociais. (ADORNO, 1972-1980, p. 03). Neste momento em que os usos das tecnologias digitais estão definindo as formas de produção e socialização das informações e do conhecimento, as relações das pessoas entre si e com o meio cultural, caracterizam grandes desafios da educação e dos Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 educadores. Praticas educativas, formais, inovadoras e os contextos informais, mediados pelas tecnologias, nos convidam a reconhecer o valor da pluralidade. Adorno ilustra esta situação com esta assertiva: Os dominantes monopolizam a formação cultural numa sociedade vazia. A desumanização implantada pelo processo capitalista de produção negou aos trabalhadores os pressupostos para a formação e, acima de tudo, o ócio. As tentativas pedagógicas de remediar a situação se transformaram em caricaturas. Toda a chamada “educação popular” – a escolha dessa expressão demandou muito cuidado – nutriu-se da ilusão de que a formação, por si mesma e isolada, poderia revogar a exclusão do proletariado, que sabemos ser uma realidade socialmente construída. (ADORNO, 1972-1980, p. 03). É preciso pensar e compreender que as TDIC são ferramentas que os educadores e educandos utilizarão para sua autonomia e superação da semicultura, semiformação e, ainda segundo Adorno, “da necrose da formação cultural e da socialização da semicultura ou semiformação” e também para fugir das malhas da semiformação socializada (TV, Internet, mídias digitais de péssima qualidade). Vamos começar nos perguntando quais são as principais mudanças que a cultura digital tem colocado para a sociedade do conhecimento e para a educação? Como os educadores e educandos usam os recursos midiáticos e as tecnologias em suas vidas pessoais e profissionais? Como a sociedade do consumo usa os produtos culturais e o que faz em seu tempo livre? Dependendo do como usamos os meios midiáticos, os produtos culturais e o processo de formação dos educadores em mídia-educação entenderemos os rumos que tem tomado a formação cultural no contexto da chamada mundialização da cultura; ou estaremos diante de um processo de semicultura que “favorece a mitologização através de uma consciência indigente”, como salienta Adorno em Teoria da Semicultura (1972-1980). Outra preocupação é com a indústria cultural mercantilizada que fecha as portas à tudo que não atenda aos padrões e interesses econômicos daqueles que manipulam nossos gostos e percepções do belo. Vejamos: Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 Assim a indústria cultural, o estilo mais inflexível de todos, revelase justamente como a mera daquele liberalismo ao qual se censurava a falta de estilo. Não só as suas categorias e os seus conteúdos irrompem da esfera liberal, tanto do naturalismo domesticado como da opereta e do teatro de revista; os modernos trustes culturais são o lugar econômico onde continua, provisoriamente, a sobreviver, com os tipos correspondentes de empresários, uma parte da esfera tradicional da circulação, em vias de aniquilamento no restante da sociedade. (DUARTE, 2002, p. 23). Como produzir uma obra cultural desvinculada dos valores que a semiformação socializada pela grande mídia insiste em chamar de produtos ou consumos culturais? Adorno nos alerta de forma enfática que “não se quer a volta do passado e nem que se abrande a crítica a ele”, mas não podemos fazer vistas grossas a esta pluralidade desprovida de qualquer valor estético ou cultural que permeia nossa sociedade. Adorno é direto: No clima da semiformação, os conteúdos objetivos, coisificados e com caráter de mercadoria da formação cultural, perduram à custa de seu conteúdo de verdade e de suas relações vivas com o sujeito vivo, o qual, de certo modo, corresponde à sua definição. [...] Da formação só participam, para sua dita ou desdita, indivíduos singulares que não caíram inteiramente neste crisol e grupos profissionalmente qualificados, que se caracterizam a si mesmos, com muita boa vontade, como elites. (ADORNO, 1972-1980, p. 04). A formação do educador não pode ser entendida como algo fora do mesmo, mas que existe também como autoformação, sendo desta forma, objeto e instrumento daquilo que nos constitui e que somos. Não se pode esperar que apenas e tão somente um diploma universitário torne uma pessoa um educador emancipador. Fantin e Rivoltella (2012) nos ensinam que: Nessa perspectiva, o termo “formação inicial”, utilizado para se referir à formação universitária, parece desconsiderar toda a trajetória que forma o sujeito até sua chegada à universidade, como se ali, de fato, houvesse a “iniciação”. No entanto, mesmo sabendo Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 que o termo “inicial” se refere a outra etapa de formação, mas especificamente ligada ao inicio de uma formação profissional, é importante pontuar e recuperar tal sentido de formação como possibilidade de reelaborar criticamente aspectos da vivencia e da experiência do sujeito e sua relação com o conhecimento para vislumbrar a perspectiva da autoformação, condição para entender a formação como transformação ( FANTIN e RIVOLTELLA, 2012, p. 58). A dimensão da sedução está diretamente ligada à relação professor/aluno e pode se caracterizar pela persuasão ou resistência; pode significar a capacidade de encantamento da realidade e da verdade que pode significar para o educando domínio e poder do educador sobre sua pessoa. Não podemos descartar a sedução entre as pessoas e as tecnologias com um potencial de encantamento e de resistência que se apresenta de diferentes formas. Há aqueles que são fascinados pelo encanto e lucidez das informações tecnológicas e aqueles que resistem e não compreendem o ato de ensinar-aprender com estas ferramentas. Fantin e Rivoltella (2012) concluem: Assim, ao mesmo tempo em que a formação implica intencionalidade, criação e encantamento, também envolve territórios e relações de poder. É nessa paisagem formativa que pretendemos alcançar o sentido da cidadania, da cultura e do conhecimento, a experiência da significação pode ter lugar de destaque na formação da mídia-educação, que pode ser entendida como formação cultural crítico-reflexiva, teórico-prática, éticoestético e como autoformação e transformação (FANTIN e RIVOLTELLA, 2012, p. 60). É preciso concordar com Fantin e Rivoltella (2012) que afirmam que “as transformações tecnológicas e estéticas ao longo dos tempos não apenas subvertem a produção cultural, artística e política de cada época como provocam mutações na percepção” e tudo isto acaba por influenciar nas experiências e práticas educativas dos educadores e educandos que buscam uma educação emancipadora. Precisamos estar atentos para não cometermos “os abusos sociais da semicultura que não é possível mudar isoladamente o que é produzido e reproduzido por situações objetivas dadas que mantém impotente a esfera da consciência; para aguçar a percepção Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 das “totalidades contraditórias” e buscar um projeto de autonomia e formação cultural e profissional que nos capacite para o exercício docente emancipador. Considerações Finais Mesmo com o processo de redemocratização de nosso país a partir da década de 1980 com o fim da ditadura militar, que aqui se instalou após o Golpe de 1964, com o processo de neopolitização de tendência neoliberal, os movimentos políticos e sociais de diferentes tendências, se unem por uma nação mais democrática e capaz de corrigir as distorções e injustiças agravadas durante o período da ditadura militar. Com as eleições de 1982 os militares viram seu sonho de permanecer no poder por mais tempo ruir, pois na maioria dos estados venceu o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) partido de oposição que fica com os governadores e prefeitos das principais cidades do Brasil. No campo da educação demorou um pouco mais; é só com a Nova República que a esperança de uma educação como meio de emancipação dos sujeitos volta a ser cogitada. Durante a Assembleia Nacional Constituinte trava-se uma batalha entre os conservadores e os da vanguarda política que pleiteavam mais avanços. Florestan Fernandes teve seu projeto reescrito por Darcy Ribeiro e muito do que havia sido colocado no Projeto de LDB foi jogado fora para atender os conservadores e os proprietários das escolas particulares. Belloni (2012) assim descreve este período: A década é plena de novas possibilidades de mudanças. Surgem ideias e propostas de políticas públicas transformadoras da escola, entre elas, a mais notável é, sem dúvidas, o Programa Especial de Educação de Darcy Ribeiro, que tornou possível a experiência dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps/RJ): primeira experiência de educação integral, em grandeza real no Brasil, com uso intensivo de mídias (televisão, radio, HQ, imprensa) e voltado para as crianças e adolescentes das classes populares (educação popular). (FANTIN e RIVOLTELLA, 2012, p. 44). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 Os projetos de educação pública mudam à medida que mudam os políticos que ocupam os cargos de Ministro da Educação, Secretários Estaduais da Educação e Coordenadores ou Secretários Municipais de Educação e, muitas vezes, também conforme a gestão e formação da equipe escolar em cada unidade de ensino. Diante deste quadro, é possível falarmos de uma escola que educa para a emancipação? Pereira e Teixeira (1998) in Brzezinski (org) assim explicam este período: A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional introduz mudanças significativas na educação básica de nosso país. Importantes avanços, resultantes da participação da sociedade civil, na etapa inicial de construção da lei, foram consagrados, apesar do longo e conflituoso processo de sua tramitação no Congresso Nacional e das inúmeras tentativas de eliminar as conquistas obtidas (Brzezinski, 1998, p. 87). Embora tenhamos que reconhecer alguns avanços, não podemos deixar de concordar com Adorno, quando em Teoria da Semicultura, assim se expressa: Elementos formativos inassimilados fortalecem a reificação da consciência que deveria justamente ser extirpada pela formação. Assim, para um novato que se utiliza da ética de Espinosa sem conhecê-la em conexão com a doutrina cartesiana de substancia e com as dificuldades da mediação entre a res extensa e a res cogitans, as definições com que começa esta obra assumem certa opacidade dogmática e um caráter de arbitrariedade confusa, que se desfazem somente se entende a concepção e a dinâmica do racionalismo juntamente com o papel que as definições desempenham nele (ADORNO, 1972-1980, p. 08) Talvez a escola que possa produzir a emancipação de educandos e educadores ainda seja um projeto a ser construído coletivamente, pois conforme Adorno nos ensina: “o semiculto se dedica à conservação de si mesmo sem si mesmo”, não podemos construir esta escola sem a “experiência e o conceito” que subjetivamente possibilite a formação cultural emancipadora. Nas nossas atividades do cotidiano estamos às voltas com decisões, escolhas e duvidas, algumas que dependem só de nós mesmos e outras que dependem de outras pessoas e algumas que dependem muito de ferramentas tecnológicas, sociais, culturais e Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 econômicas. Não é diferente no interior de nossas escolas. É isto que espero comprovar na pesquisa empírica que realizarei nas escolas de ensino fundamental da Diretoria de Ensino de Ribeirão Preto. Não há duvidas de que a revolução das tecnologias digitais da informação e comunicação penetrou de forma definitiva em todas as esferas das atividades humanas. A vida econômica, social, religiosa, educacional e cultural não pode prescindir destas ferramentas para melhor atender as demandas dos processos socais suscitados pelas mesmas transformações tecnológicas. Castells (2010) assim se expressa sobre esta questão: Nem a sociedade escreve o curso da transformação, uma vez que muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora, intervém no processo da descoberta cientifica, inovação tecnológica e aplicações sociais, de forma que o resultado final depende de um complexo padrão interativo. Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas (CASTELLS, 2010, p. 43). A presença do computador e da internet e de outras tecnologias digitais em nossas vidas é um divisor de águas que pode ser facilmente comprovado. Porto (2012) in Fantin e Rivoltella, assim expressa sua visão e experiência com as TDIC: Muito tenho aprendido e pesquisado. O computador, em especial a internet, mudou a forma como vivo, trabalho e me relaciono com os outros. Aprendi que o computador e seus aplicativos são utilizados, na conexão e na comunicação com o mundo: fazem parte de uma complexidade e multiplicidade de pessoas, instituições, serviços, processos e segmentos da sociedade em geral, sociedade esta que transforma as tecnologias, apropriando-se delas, experimentando-as e modificando-as, segundo suas necessidades e envolvimentos (PORTO, 2012, p. 169). Nas nossas escolas o trabalho com tecnologias requer constante atualização, qualificação e formação dos usuários, bem como, parecerias e convênios que garantam o funcionamento continuo destes recursos. Não podemos correr o risco de capacitações Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 individuais e isoladas, mas buscar um trabalho coletivo que possibilite criação, invenção e configuração dinâmica para todos os trabalhadores da educação. A presença das tecnologias nas escolas, ainda que fosse com todas as condições de trabalho ideais, não deve ser tomada como salvação da educação. Barreto (2009) adverte para esta questão, quando afirma: Conferir ao simples acesso às TIC o lugar de redentoras da escola, pela máxima de que, se, há tecnologia, há avanço, e onde há avanço, há qualidade, novos paradigmas educacionais, melhor preparo profissional, maior democratização da informação e do conhecimento, maior justiça social, é admitir que não compete mais ao professor as múltiplas dimensões do seu trabalho, mas talvez o simples gerenciar de um tempo/espaço em que ele pode não estar sequer inscrito como sujeito. Além disso, são creditadas às TIC alternativas de sociabilidade, estabelecidas nas relações entre cultura, sujeito e sociedade, e de aumento de empregabilidade, em atendimento às demandas de um “mundo globalizado” (BARRETO, 2009, p. 126). Adorno (2002) no livro Indústria Cultural e Sociedade no capitulo que trata da critica cultural e sociedade, é enfático para que não aceitemos quaisquer modismos sem uma análise profundo da sua função para a sociedade. Acrítica cultural tem uma função importante para a percepção de como e quais são os valores importantes para o humano na sociedade tecnológica. A crítica cultural encontra-se diante do último estagio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas. Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo em uma contemplação autossuficiente, não será capaz de enfrentar a reificação absoluta, que pressupõe o progresso do espírito como um de seus elementos, e que hoje se prepara para absorvê-lo inteiramente (ADORNO, 2002, p. 102). No uso das TDIC na educação e na formação cultural, como ferramentas para a busca de informação e conhecimento, é fundamental nos perguntar que humano estamos Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 15 formando no interior de nossas escolas e na vida em sociedade. Em “Teoria Critica e Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação”, (2012) Brito nos alerta: O ser cultivado está na ordem necessária de que o homem deve saber escamotear de maneira bem educada o mal, a violência e a barbárie, a fim de que seu egoísmo, sua sede pela competitividade, pelo prazer do lucro, não sejam expostos de forma desavergonhada. Este tipo de cultura não deixa de produzir os últimos-homens. Assim, a instrumentalização do sistema afetou de forma cruel a própria constituição formativa do homem, contudo, é importante ressaltar que isso não significa que não possa ser modificada (PUCCI, COSTA e DURÃO, 2012, p. 116). Os trabalhadores da educação: professores, pesquisadores e gestores precisam estar atentos para que as TDIC sejam utilizadas de forma critica e consciente como um meio de instruir e formar sujeitos aptos a intervir na sociedade para uma transformação que nos torne mais humanos e justos. Neste sentido, vale a pena citar Pucci (2009) que afirma: A realidade virtual, uma das criações mais espetaculares do mundo fictício, inventado pelas novas tecnologias, está se instalando entre nós e o mundo contemporâneo. Ela é, a partir de relação homemmáquina, a geração de um mundo artificial, em que o usuário pode habitar, interagir, amar, sofrer, gozar e até pensar, um mundo alternativo. Para muitos, a realidade virtual vai se tornando a sua realidade do dia a dia (PUCCI, ALMEIDA e LASTÓRIA, 2009, p. 73). O estudo analítico das TDIC nas escolas públicas poderá nos proporcionar outras formas de interação, socialização e transmissão de informações e conhecimentos, demonstrando que a cultura digital participa de nossa busca incessante por uma melhor compreensão do mundo atual. Pensar criticamente essa realidade poderá nos ajudar a construir novos projetos de educação básica em que o educador utilize estas ferramentas para a critica dos que as criou e mercantilizou. Não obstante, essas mesmas ferramentas, com a contribuição da Filosofia, Sociologia e Economia, podem contribuir para a construção de uma “cidadania digital” na sociedade multicultural globalizada. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 16 Há uma grande interpenetração entre os diferentes recursos digitais e as redes interativas de comunicação baseadas na internet. Como trabalhar com estes recursos de forma critica, sem correr o risco de produzir semicultura, semicultos, de cair no engodo desta indústria cultural mercantilizada, de aceitar o falso brilho da “racionalidade vazia”; de construir uma falsa autonomia dos sujeitos; enfim de acentuar a semiformação e semicultura e não construir uma formação para a emancipação da pessoa? Adorno, na Teoria da Semicultura, já nos alerta: Deste modo, a liberdade e a humanidade, em certo grau, perderam sua força resplandecente no interior da totalidade que se enclausurou num sistema coercitivo, já que lhes impede totalmente a sobrevivência. Tampouco permanece sua obrigatoriedade estética, pois as formas espirituais que encarnam são vistas como algo esmaecido, cheio de frases e recheado de ideologia. Não somente estão desregrados os bens da formação cultural para aqueles que não são cultos, mas também em si mesmos por seu conteúdo de verdade. A verdade não é atemporal, invariável, como queria o idealismo, mas tem vida na dinâmica histórico-social, como os homens, e pode esvanecer-se (ADORNO, 1972-1980, p. 07) Nesta reflexão, busca-se um equilíbrio critico que conduza à autonomia dos homens, levando em conta as condições a que se encontram subordinados “na produção e reprodução da vida humana em sociedade”, de tal forma, que o espaço escolar possa discutir a expansão da sociedade consumista, a imposição da indústria cultural, a perda da dimensão emancipadora, as formas de dominação do sistema capitalista e construir um projeto que busque a integração social, combatendo a semiformação que tem impedido o desenvolvimento de uma pedagogia emancipadora em nossas escolas. As políticas públicas voltadas para a formação docente precisam ser repensada para a utilização das TDIC como ferramenta importante para uma prática educacional que busque explorar os novos ambientes virtuais e reais que melhor conduza à formação de um cidadão autônomo e participativo na vida social. Referências Bibliográficas: Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 17 ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Trad. Julia Elizabeth Levy. SãoPaulo: Paz e Terra, 2002. ______. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1991. ______. Teoria da semicultura. In.: Educação e Sociedade. n 56, ano XVII, dezembro de 1996. ______. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. BARRETO, R. Goulart. Discursos, tecnologias e educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer e a dialética do esclarecimento. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. FANTIN, Monica e RIVOLTELLA, PierCesare (orgs.). Cultura Digital e Escola: pesquisa e formação de professores. Campinas – SP: Papirus, 2012. LASTÓRIA, L. A. C. Nabuco; COSTA, Belarmino C. G. e PUCCI, Bruno. Teoria Critica, ética e educação. Piracicaba/Campinas - SP: Ed. Unimep/Ed. Aut. Associados, 2001. MATOS, Olgária. A escola de Frankfurt: luzes e sombras do iluminismo. 2 ed. São Paulo: Ed. Moderna, 2005. PUCCI, B.; COSTA, Belarmino C. G. e DURÃO, Fábio A. (orgs.) Teoria Critica e crises: reflexões sobre cultura, estética e educação. Campinas – SP: Autores Associados, 2012. PUCCI, Bruno; ALMEIDA, Jorge de e LASTÓRIA, L. A. Calmon Nabuco. (orgs.).Experiência Formativa e Emancipação. São Paulo: Nankin, 2009. ZUIN, Antônio A. S.; LASTÓRIA, L. A. Calmon Nabuco e GOMES, Luiz Roberto. Teoria Critica e formação cultural: aspectos filosóficos e sociopolíticos. Campinas – SP: Autores Associados, 2012. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 1 FRANCISCO CAMPOS E A EDUCAÇÃO: a construção da sociedade de massas no Brasil. Rodrigo Pereira da Silva (UNESP)1. [email protected] GT3- Conflitos Sociais, Instituições e Política. Resumo O presente trabalho abarca o pensamento de Francisco Campos no que concerne a sua concepção sobre a educação. O cenário social de 1920 é levado em consideração para ter maior compreensão dos fatos ocorridos. A trinca de crises: crise econômica, política e social corroboraram para os fatos ocorridos após a Revolução de 1930. A trajetória de Campos relacionada à educação inicia quando atuava junto ao Governo de Antonio Carlos no final da década de 1920. Após a Revolução, Campos assumiu o recém-criado Ministério da Educação e da Saúde Pública e implantou reforma no sistema educacional que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos. O conjunto de ações tanto no âmbito mineiro quanto junto ao Governo Federal representou o desenvolvimento do plano político de Campos. O trabalho tenta assim, abordar o pensador e político mineiro sob a ótica da educação, mas sem deixar de lado a dimensão política. Assim, a tentativa é demonstrar como as ações de Campos no campo educacional permitiram a construção de uma sociedade moderna, que para o mineiro seria a sociedade de massas. Palavras chaves: Francisco Campos; sociedade de massas; Reforma Francisco Campos. I. Apresentação O presente trabalho é fruto do início de pesquisa que visa à elaboração de projeto para doutorado. Neste trabalho há a tentativa de exploração do objeto principal da pesquisa: Francisco campos. O pensamento de Francisco Campos em trabalhos acadêmicos normalmente é abordado a respeito de seu pensamento político e sua concepção de Estado. Aqui, a tentativa é de rever o pensamento de Francisco Campos relacionado à educação e a construção da sociedade de massas, que para o político mineiro, era o que representava a concepção de sociedade moderna em sua época e pensamento. A estrutura deste trabalho tenta seguir ordem cronológica a partir da década de 1920 no sentindo de introduzir o cenário social da sociedade brasileira de forma geral, passando pelos aspectos de organização do Estado brasileiro e sua relação com a educação, situação econômica do país e como era o quadro educacional. A partir de então, o trabalho segue tratando com Francisco Campos e educação, primeiro em sua 1 Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESPAraraquara. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 2 trajetória no estado de Minas Gerais quando contribuiu com o Presidente de Minas Gerais Antonio Carlos a fazer reforma no sistema de base da educação. Depois o trabalho prossegue durante a Era Vargas (1930-1945), dando ênfase ao período em Campos foi Ministro a frente do Ministério da Educação e Saúde Pública. A pesquisa está no campo do pensamento social brasileiro, e a metodologia empregada foi a revisão bibliográfica, além da analise de documentos e discursos produzidos por Francisco Campos. Há contribuição de autores como Jorge Nagle e Celso Rui Beisegel para compreensão da situação educacional do período pelo trabalho abordado, além de outros autores que serão mencionados no decorrer do texto e que corroboram com a ideia central. II. A sociedade brasileira na década de 1920. A década de 1920 no Brasil foi momento que representou a busca pelo moderno em diversos segmentos da sociedade brasileira. No campo das artes, das lutas sociais e do pensamento social brasileiro do período a questão do Brasil moderno e quais os caminhos necessários para alcançar o patamar de desenvolvimento da nação foi debatido. O período apresentou trinca de crises formado pela crise social representada pelo descompasso entre Estado e sociedade; crise política, sobretudo, no final do período com a formação da Aliança Liberal e sua desembocadura na Revolução de 1930; e a crise econômica agravada com o Clash de 1929 e o alto endividamento do Estado na prática da política de proteção ao café. A década de 1920 finda com o Estado sendo questionado pelos movimentos sociais da época, crise hegemônica entre as oligarquias e crise nas finanças públicas. A composição da sociedade ao final da Primeira República contrastava bastante do quadro apresentado em seu início no ano de 1891. O fim do trabalho escravo e opção pela mão de obra branca europeia representou a tentativa de branqueamento da sociedade brasileira (IANNI, 2004). Os imigrantes vieram para o Brasil na recém-formada República para ocupar postos de trabalhos na indústria que ainda era incipiente e na lavoura2. O trabalho assalariado e o complexo cafeeiro 2 De acordo com Perissiontto (1997) houve concorrência entre o setor urbano industrial e a lavoura. “Para se ter uma ideia de como o setor urbano-industrial competia com a lavoura, basta notar que, em 1872, a mão de obra estrangeira era de 109.455, e 52% estavam alocados na agricultura, 10.1% na indústria e 34.7% no setor de serviços. Já em 1920, o total era de 867.067, e 44.5% na agricultura, subindo o percentual da indústria a 24.4%. O que indignava a lavoura era ter esse importante fator produtivo absorvido por uma atividade artificial em prejuízo da vocação natural do país, isto é, agrária”. (p.59) Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 3 fomentaram processo endógeno de crescimento. Junto dos trabalhadores também chegaram novas ideias que semearam os movimentos sociais da década de 1920, e movimentaram a luta pelos direitos sociais3. A relação do Estado republicano brasileiro com a sociedade que estava em plena modificação foi descompassada. A organização liberal proposta na Constituição de 1891 garantiu o liberalismo econômico que prevaleceu nas relações externas, nas relações internas, entre os setores que compunham a sociedade brasileira, sobressaía o patrimonialismo4. No final da República outros segmentos da sociedade também manifestaram posição contrária ao Estado. [Os segmentos] irão posteriormente unir-se. Têm em comum o fato de representarem oposição ao governo. O primeiro é das massas populares, desempregadas, revoltadas, desalojadas de suas casas e que vinham sofrendo cada vez mais a situação calamitosa; o segundo é do grupo de políticos da oposição, com o apoio dos positivistas, e ligados aos meios operários; o terceiro é de militares e alunos das Escolas Militares, também de orientação positivista. Todos são hostis ao governo. (CARONE, 1969, p. 43). O clima de contestação foi resultado da ineficiência republicana em melhorar a qualidade de vida da sociedade. O Estado liberal manteve a ordem social ainda do tempo anterior, quando a sociedade vivia ordem escravocrata. O liberalismo não conseguiu levar o desenvolvimento social, e gerou má condição de vida para os trabalhadores. O clima entre Estado e movimento sociais era tenso e de repressão por parte do poder público. Os movimentos sociais que surgiram na década de 1920 reivindicavam como ressalta CANO (2012), através de vários eventos (moções, greves, manifestos, congressos, etc.) direitos trabalhistas como férias, jornada de trabalho, trabalho do menor, acidente de trabalho, etc.- quase sempre eram acompanhadas de 3 Libertou forças econômicas e políticas interessadas na agricultura, na indústria e comércio. Favoreceu a imigração de braços para a lavoura, povoadores para as colônias em terras devolutas e artesãos para a indústria. Ao mesmo tempo, jogava na europeização, ou no branqueamento da população, para acelerar o esquecimento dos séculos de escravismo. Recebeu, inclusive, o que não imaginava, em termos de ideias sociais, propostas sindicais, anarquistas, socialistas e outras. Houve uma ampla fermentação de ideias e movimentos sociais, principalmente nos centros urbanos maiores e nas zonas agrícolas mais amplamente articuladas com os mercados externos. (IANNI, 2004, p. 20-21). 4 Octavio Ianni (2004) diz que esse patrimonialismo compreendia tanto o patriarcalismo da casa-grande e sobrado como a mais brutal violência contra os movimentos populares no campo e na cidade. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 4 reivindicações de direitos civis, como liberdade de sindicato e de sua imprensa, voto secreto, liberdade de reunião5. A organização política permitiu que a oligarquia que estava no centro decisório controlasse a máquina pública de acordo com interesses particulares6. O federalismo permitiu a manutenção dessa classe no topo do poder. O poder coercitivo do Estado através do coronelismo7 também corroborou para esse quadro. A administração pública não obedecia a padrões de racionalização e o seu trabalho era influenciado pelo mundo político numa relação de espólio. A administração pública, até o governo Washington Luís, era mascarada pelo desempenho de funções compensatórias e tentava absorver o excedente de mão de obra que provinha do sistema produtivo do país, mas também possuía papel positivo, pois garantiu posição e função a um significativo número de pessoas letradas. Desta maneira corroborou para a formação de parte das elites nacionais. A burocracia estatal com seu padrão superior de racionalidade, eficiência e organicidade ficaria debilitada devido à intimidade entre os mundos privado e público. III. A educação na década de 1920. A relação de distancia da administração com os interesses da sociedade brasileira estava presente em diversos ambitos. Na educação o quadro não era diferente. O Governo Federal na Constituição de 1891 manteve a organização e a interpretação desde o tempo do Império, quando a responsabilidade do ensino primário ficava a cargo dos estados e o ensino superior seria de sua alçada. A República recebeu uma herança marcada pelo fervor ideológico e sistemática tentativa de evangelização. Nesse período democracia, federação e educação constituíram categorias inseparáveis apontando a redenção do país (NAGLE, 2009). 5 Os direitos trabalhistas deveriam ter sido atendidos desde o Tratado de Versailles (1919) em que o Brasil foi signatário, e comprometeu-se no âmbito internacional a adotar legislação trabalhista que garantisse proteção aos trabalhadores perante a forte exploração do empresariado, mas foram postergados graças à ação da burguesia (OSÓRIO, 1997). 6 O domínio do centro do poder ocorreu pela associação de interesses no inicio da República “... o que venceu foi o interesse da cafeicultura do oeste paulista, em aliança com os dos canavieiros, pecuária, seringais e outros, em diversas regiões do país. Prevaleceram os interesses de setores burgueses, combinados com os preexistentes, remanescentes”. (IANNI, 2004, p. 21). 7 O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral, bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental. O coronel é aquele que protege, socorre, hominiza e sustenta materialmente os seus agregados, por sua vez, exige deles a vida, a obediência e a fidelidade. É por isto que coronelismo significa força política e força militar. (CARONE, 1969, p. 67). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 5 O trato feito pelo Governo republicano na educação não permitiu a instrução e alfabetização das massas. A educação servia para a manutenção da elite brasileira. O quadro na década de 1920 demonstra alta taxa de analfabetismo, e durante a década o debate sobre a educação é intensificado. Os discursos e apontamentos foram feitos por pedagogos. O momento foi de efervescência ideológica e de inquietação social. O analfabetismo era considerado responsável pelo atraso do país, porque desorganizava o mercado criado pela produção capitalista que dava seus passos iniciais com a industrialização (OLIVEIRA; CARVALHO, 2014). A partir de 1915 iniciam-se as discussões e pressionamentos para um amplo desenvolvimento do sistema escolar; começa um maior esforço para se incorporar ao Estado liberal uma orientação intervencionista. O desejo intervencionista é manifestado pelos próprios republicanos desiludidos com o próprio regime. Tratava-se de “republicanização da República” através da difusão do processo educacional. Foi um movimento tipicamente estadual, de matriz nacionalista e principalmente voltada para a escola primária, escola popular. O nacionalismo toma força. Em 1916 é formada a Liga da Defesa Nacional, possui dois focos de combate: combate ao perigo externo representado pela cobiça internacional que caberia ao serviço militar; foco na instrução, para combater o perigo interno, que se manifestava pela quebra da unidade e pelo definhamento do patriotismo. No ano de 1917 surge a Liga Nacionalista de São Paulo, menos vinculada às preocupações militares e mais comprometida com os temas políticos. A Liga se propôs a combater a abstenção eleitoral; as fraudes que corrompem e viciam o exercício do voto; luta contra o analfabetismo, pois o analfabetismo no Brasil oferece condições desoladoras e faz com que a vontade nacional seja substituída pela vontade da minoria que fala, vota e determina. Alfabetizar representava a aquisição de direitos políticos, pois só os letrados poderiam votar. No limite, os quadros do pensamento apresentam a seguinte formulação: a ignorância reinante era a causa de todas as crises; a educação do povo era à base da organização social; portanto, o primeiro problema nacional. A difusão da instrução era a chave para a solução de todos os problemas sociais, econômicos, políticos e outros. O pensamento produzido pela reflexão da matriz nacionalista revelava uma interpretação romântica, acreditava-se que a educação pudesse realizar um processo Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 6 regenerador do homem, regenerador de toda a sociedade. Era sabido que as condições econômica e financeira não propiciavam as condições necessárias para a tessitura de uma sociedade aberta, assim como a questão oligárquica. As oligarquias só poderiam ser combatidas pelo esclarecimento que a educação proporciona, pois elas se sustentam graças à ignorância popular; fruto da falta de patriotismo e da ausência de cultura “prática” ou de formação técnica, as dificuldades econômico-financeiras são eliminadas por virtude da educação, formadora de caráter e das forças produtivas; os empecilhos à formação de uma sociedade aberta encontram-se na grande massa analfabeta e na pouca disseminação da escola secundária e superior, que impedem o alargamento na composição das “elites”, bem como o necessário processo de sua formação. Na década de 1920 as discussões saem do âmbito do Congresso Nacional, alarga-se o grupo de profissionais interessado na temática da educação- é nessa época que apareceram os “educadores profissionais”. Ocorreu o aumento do número de obras a respeito da educação, provocados até pela criação do serviço editorial como a Biblioteca de Educação e a Coleção Pedagógica. Ocorreram outras ações durante a década de 1920 como: Ano Ação 1920 Criação da Universidade do Rio de Janeiro (a primeira universidade brasileira) 1927 Criação da Universidade de Minas Gerais 1925 Reorganização da escola secundária e superior 1926 Reformulação da escola técnico-profissional 1920 Reforma Sampaio Dória, São Paulo. 1923 Reforma Lourenço Filho, Ceara. 1925 Reforma Anísio Teixeira, Bahia. 1927 Reforma Francisco Campos, Minas Gerais. 1928 Reforma Fernando de Azevedo, Distrito Federal. 1929 Reforma Carneiro Leão, Pernambuco. 1930 Reforma de Lourenço Filho, São Paulo. Fonte: NAGLE, J. A educação na Primeira República. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 7 Os Estados procedem a administração escolar, bem como ao uso de instrumentos de planejamento, como os recenseamentos escolares. Dá-se novo passo no sentido de ampliação da rede e da clientela escolares. No ano de 1922 foi emitido relatório que apresentou a situação lamentável da educação. De acordo com os dados estatísticos da época a matrícula nas escolas primárias em todo o país era de 1.030.752 alunos, a taxa de frequência era de 678.684 alunos, representando em números percentuais 29% da população escolar, embora em alguns estados a frequência fosse distinta em relação à média nacional. ESTADOS FREQUÊNCIA Distrito Federal 41% Santa Catarina 43% Rio Grande do Sul 44% São Paulo 56% Goiás 95% Piauí 95% Alagoas 94% Fonte: NAGLE, J. A educação na Primeira República. A precária situação fez despertar o interesse do Governo Federal e dos Estados em alterar o quadro educacional, por isso se justifica as reformas ocorridas nos estados durante a década de 1920. No estado de Minas Gerais presidido pelo Sr. Antonio Carlos houve reforma educacional enquanto Francisco Campos era Secretário da Educação no estado. O político mineiro, assim como outros ilustres políticos de sua época, refletiu sobre a situação da nação e os caminhos necessários para o Brasil ser uma nação moderna, desenvolvida. IV. A Reforma mineira na educação. Francisco Campos teve participação ativa como membro do campo político e do pensamento social brasileiro. Suas ideias contemplavam a forma como deveria ser organizado o Estado brasileiro, economia, sociedade e a educação. Sua visão era autoritária, pois para ele, o Estado moderno seria o Estado autoritário capaz de trazer o desenvolvimento econômico e social. Outros pensadores contemporâneos a Francisco Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 8 Campos pensaram sobre as formas de organização da sociedade como: Oliveira Vianna, Alberto Torres, Azevedo Amaral8. O trabalho de Francisco Campos na frente da Secretária da Educação do estado de Minas Gerais atuou no âmbito do ensino primário. A intenção nas palavras de Campos era de “organizar a instrução em moldes simples e concisos, de modo a facilitar e incrementar a sua intensa difusão”. A reforma na educação tinha como objetivo invadir as escolas e perturbar [...] sua ordem, e prática, os processos, o seu mecanismo, os seus hábitos, a sua paz, a sua preguiça exigindo-lhes que se adaptem as necessidades do mundo contemporâneo, aos imperativos de sua sciencia, da sua indústria, de seu trabalho e da sua cultura. (CAMPOS, 1930 Apud CARVALHO, 2012). A visão de Campos na educação era uma extensão de seu plano em relação ao Estado. Na educação, Campos demonstrou ter uma visão libertadora alinhada ao movimento escolanovista, porém, sem deixar de lado seu projeto político. O seu lema era a educação para o que der e vier. Para o político mineiro a escola deveria fornecer as ferramentas necessárias para que os desafios da sociedade moderna pudessem ser enfrentados (MEDEIROS, 1978). Esse pensamento era alinhado ao seu projeto político, uma vez que, para Campos, o Estado autoritário seria capaz de controlar as massas. A sua reforma educacional em Minas Gerais propôs o que a natureza não poderia fazer: a adaptar o indivíduo ao controle social, subordinação aos poderes naturais e a regras sociais (CARVALHO, 2012), assim, de acordo com Campos estaria adaptado à vida moderna. A reforma tinha como missão levar a modernização educacional ao estado mineiro. Essa modernização era de acordo com os parâmetros políticos de Campos e do Presidente de Minas Gerais, Antonio Carlos. No período de 1927 a 1930 a educação foi um dos principais assuntos de ambos. Apresentando ideário republicano projetavam para a educação a função de promover o progresso e modernização do país, em especial de Minas Gerais (OLIVEIRA; CARVALHO, ano). A modernização era necessária devida à precariedade das escolas estaduais e pela modernidade que a implantação da Reforma traduziria. [...] a escola primária como instrumento de educação, tal o postulado sobre a qual v. excia. annunciou, deveria descançar „a reconstrução‟ do apparelhamento do ensino publico em Minas. Este o princípio que norteou „a 8 Sobre as ideias dos pensadores sociais supracitados ver: MEDEIROS, J. A ideologia autoritária Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 9 reforma‟ que hoje tenho a honra de propor á consideração de v. Excia (CAMPOS, 1930, p. 11 apud CARVALHO, 2012, p. 189). Após atuar no plano interno da política mineira Francisco Campos9 trabalhou para articular a aliança entre as oligarquias mineira e gaúcha para a formação da Aliança Liberal. O Governo Provisório (1930-1934) instaurado após a Revolução de 1930 reformulou o Estado, criou novas instituições dentre as quais estava o Ministério da Educação e Saúde Pública. Francisco Campos foi Ministro implantou ampla reforma no sistema educacional, e que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos. V. A educação durante a Era Vargas. A gestão de Getúlio Vargas a frente do Governo Federal foi centralizadora do ponto de vista político e administrativo. A estrutura montada pelo Governo através de decretos dotou o Estado brasileiro de poderes que até então não lhe eram garantidos. O Estado brasileiro foi construído de maneira forte, centralizadora e com capacidade para desempenhar políticas nacionais. O campo educacional também sofreu os efeitos do mundo político através das ações do recém-criado ministério. Francisco Campos levou até o Presidente Vargas diversas medidas para serem sancionadas. O significado das propostas de Campos estava profundamente articulado com as tensões e os conflitos liberados pela crise econômica e política que se objetivou durante aquele período. O novo quadro institucional gerado pela chegada do novo Governo varguista foi terreno fértil para a gestação de políticas educacionais em nível nacional. Francisco Campos por onde atuou sempre manteve seu plano político e ideológico. Na atuação no MES, as reformas, as alianças, sua intensa atividade em articulações políticas no estado mineiro e no âmbito do Executivo Federal apontaram seu projeto político e ideológico. O campo da educação foi mediação privilegiada para o fortalecimento de suas posições. 9 A escolha de Francisco Campos como ministro foi uma escolha política. “As forças revolucionárias mineiras, tendo à frente o presidente Olegário Maciel, se sentiram prejudicadas na divisão dos ministérios. Até aquele momento, apenas Afrânio de Melo Franco representava Minas Gerais no novo governo, ocupando o Ministério das Relações Exteriores. Embora os mineiros ambicionassem o Ministério da Justiça, a pasta política por excelência, já estava ocupada por Osvaldo Aranha. Um acordo superou a crise e Minas Gerais "ganhou" o Ministério da Educação e Saúde Pública, recém-criado pelo Governo Provisório e que durante todo o período Vargas foi efetivamente ocupado por mineiros: Francisco Campos, Belizário Pena, Washington Pires e Gustavo Capanema” (Moraes, 1990, p.299). Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 10 A Reforma Francisco Campos10 permitiu a construção de um aparelho nacional de ensino, com códigos e leis elaboradas tendo em vista estabelecer diretrizes, normas de funcionamento e formas de organização para os diversos ramos e níveis da educação no país. As medidas tomadas pelo MES permitiram o fornecimento de uma estrutura orgânica ao ensino secundário, comercial e superior. Era a primeira vez na história da educação nacional que uma reforma se aplicou a vários níveis de ensino e objetivava alcançar o país todo. O novo Governo e seus componentes pensavam em construir a nação através de suas ações políticas. No discurso de posse no MES Campos disse que o Brasil não era mais um país de liberais, mas de produtores, e era preciso moldar o sistema de ensino a nova realidade (MORAES, 1992). As ideias políticas e educacionais refletiam a crença de que a reforma da sociedade seria feita junto à reforma da escola, tal como a necessidade de formação adequada de cidadãos e da produção e modernização das elites11. A Reforma Francisco Campos implantou um sistema de ensino dicotomizado e demonstrou a influencia positivista em seu pensamento. Na escola primária tratou-se de formar o futuro cidadão, o trabalhador disciplinado e adaptado ao meio social, com seu caráter moldado de acordo com a “ordem intelectual e moral reconhecida, a um dado momento, como ordem necessária e natural a convivência humana” (CAMPOS, 1930, p. 15 apud MORAES, 1992, p. 297). Já a universidade era destinada a formação das elites, de cuja inteligente solução dependerá o futuro das instituições políticas brasileiras12. No limite, a Reforma acabou por estabelecer na 10 A Reforma foi efetivada através de uma série de decretos expedidos pelo MES e sancionados pelo Presidente Vargas. 1. Decreto nº 19.850, de 11 de abril de 1931, que criou o Conselho Nacional de Educação; 2. Decreto nº 19.851, da mesma data, que dispôs sobre a organização do ensino superior no Brasil e adotou o regime universitário; 3. Decreto nº 19.852, também da mesma data, que dispôs sobre a organização da Universidade do Rio de Janeiro; 4. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931, que dispôs sobre a organização do ensino secundário; 5. Decreto nº 19.941, de 30 de abril de 1931, que instituiu o ensino religioso como matéria facultativa nas escolas públicas do País; 6. Decreto nº 20.158, de 30 de junho de 1931, que organizou o ensino comercial e regulamentou a profissão de contador; 7. Decreto nº 21.241, de 14 de abril de 1932, que consolidou as disposições sobre a organização do ensino secundário. (MORAES, 1992, p. 295-296) 11 O Governo Provisório, aliás, não descuidou da formação das elites tomando as medidas necessárias para a instituição do sistema universitário no Brasil (Decreto nº 19.851). Não obstante as ambiciosas palavras que podem ser lidas no decreto que instituiu o Estatuto das Universidades Brasileiras, a universidade foi concebida mais como um instrumento político do que como um espaço para a produção científica. (MORAES, 1992, p. 298). 12 Esse pensamento de Campos está de acordo com a sua visão sobre a administração pública do Estado por ele idealizado. Campos acreditava que uma elite técnica seria capaz de tomar as decisões corretas para Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 11 prática o antigo projeto de educação diferenciada, uma educação para pensar e outra para produzir. A educação para produzir era para formação daqueles destinados “aos grandes organismos econômicos que regulam, nutrem e enriquecem as nações” (CAMPOS, 1940, p. 130 apud MORAES, 1992, p. 305). Para eles havia a modalidade do ensino profissional ao qual, Campos, atribuía a função de preparar elites para o mercado. Foi com essa finalidade que havia transformado “o antigo ensino comercial em vários cursos técnicos, dando como cúpula ao edifício o curso superior de economia e finança” (CAMPOS, 1940, p. 130 apud MORAES, 1992, p. 305). Mas a rígida estrutura de ensino praticamente impedia que as elites para o mercado matriculadas nos cursos profissionais tivessem acesso à universidade. Assim, a Reforma Francisco Campos marginalizou inteiramente o ensino primário e normal. As medidas tomadas a frente do MES foram o inicio de medidas centralizadoras que refletiram o contexto político e social da época. A Constituição de 1934 deu continuidade a essa orientação centralizadora. Fernando de Azevedo fez observações quanto os dispositivos constitucionais relacionados à educação, e que definiam as orientações que prevaleceram: Estabelecendo ao Governo Central caberia “fixar um plano nacional de educação compreensivo de todos os graus e ramos, comuns e especializados, e coordenar e fiscalizar a sua execução em todo o território do país” (art. 150), criando o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais de Educação (art. 152) e determinando a aplicação de nunca menos de 10% da parte dos Municípios e nunca menos de 20% da parte dos Estados, da renda resultante dos impostos, na “manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos” (art. 156), a Constituição de 16 de julho de 1934 fazia o país entrar numa política nacional de educação de conformidade com os postulados e as aspirações vitoriosas na Conferência de Niterói, em 1932, e no manifesto dos pioneiros pela reconstrução educacional do Brasil. (AZEVEDO, 1958, p. 691-692 apud BEISEGEL, p. 479). Na Constituição de 1937 prevaleceu a organização de 1934. A Constituição que abriu caminho para o período do Estado Novo (1937-1945) foi escrita por Francisco Campos, em um momento de sua trajetória que ele ficou conhecido como reformador, pois reformou diversos códigos constitucionais. Para Campos, a Constituição de 1937 é o Estado brasileiro colocando a vontade da nação acima de qualquer vontade pessoal. Assim, a administração estaria dotada da elite técnica do país. A partir de 1934 foi instituído o concurso público, este que seria o meio racional de seleção dos candidatos mais aptos a servir o Estado dentro do corpo da elite formada pelo sistema educacional. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 12 que realizava a Revolução de 1930, pois, segundo o mineiro uma Revolução só teria efeito se mudasse o sistema econômico, político ou social, e para ele a Constituição de 1934 foi apenas uma revisão da Carta Constitucional de 1891 (MEDEIROS, 1978). Francisco Campos depois abandona o Governo Federal alegando que havia tornado uma ditadura particular de Vargas. Assim, encerrava sua contribuição direta à política e a educação. VI. Conclusão O trabalho de Campos como político e o contexto social da época permitiu que ele colocasse em prática seu projeto político para o país. Sua visão era autoritária sobre a forma do Estado brasileiro. O seu projeto para educação demonstrou estar ligado ao projeto político por conta das ações centralizadoras, das reformas educacionais tanto em Minas Gerais quanto no Governo Federal. A construção da sociedade moderna, que em sua visão era a sociedade das massas demonstrava o pensamento social da época e de seus pares que viam na educação o papel de transformar a sociedade. A nova massa de letrados foi absorvida pelo mercado e pelo Estado. O poder público foi reforçado, novas instituições foram criadas. Houve processo de racionalização, sobretudo após 1937, quando as mudanças sofrem influência weberiana. O concurso público instituído em 1934 começou a partir de 1936 com a criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil, anterior a criação do DASP (1938). Assim, o Estado adotou dispositivos para a seleção dos candidatos mais aptos dentre a elite formada pelas instituições de ensino. A grande massa de trabalhadores, a qual Campos chamava de elite para produzir, foi ocupar os postos de trabalhos na indústria e viu durante o período Vargas o processo de industrialização do país e do desempenho de capitalismo autárquico. Segundo Oliveira, a entrada dessa massa de novos trabalhadores contribuiu para a industrialização, pois, serviu como exército industrial de reserva e fez que houvesse regulação dos salários. No limite, o pensamento de Campos sobre a educação refletiu sua idealização do homem social para o modelo de Estado autoritário que ele almejava. O fato de possibilitar a educação não significava a liberdade, mas sim a adaptação das massas a ordem social por Campos considerada como moderna. O Estado autoritário é que seria capaz de lidar com as grandes, e a educação proporcionada por esse Estado Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 13 atuaria para fornecer as ferramentas necessárias para lidar com os problemas modernos, além de fazer com as massas entendessem a ordem estabelecida. A nova ordem social e estatal permitiria levar o Brasil a um patamar de nação desenvolvida, dotaria o Estado com elite técnica capaz de tomar as decisões necessárias e faria com que a indústria tivesse mão de obra qualificada para os postos de trabalhos. Além disso, como diz Pécault (1990), permitira que Francisco Campos e sua claque continuassem a ocupar o centro de poder da política nacional brasileira. VII. Bibliografia BEISEGEL, Celso de R. Educação e sociedade no Brasil após 1930. In: In: Fausto, B. (Org.). História geral da civilização brasileira. 2. ed. São Paulo: Difel, 1986. t. 3, v. 4, p. 381-416. CANO, Wilson. Da década de 1920 à de 1930: Transição Rumo à crise e à Industrialização no Brasil. In: Revista EconomiA, Brasília(DF), v.13, n.3b, p.897–916, set/dez 2012. CARONE, Edgar. A primeira república (1889-1930). São Paulo: DIFEL, 1969. CARVALHO. Carlos H. Escola nova, educação e democracia: o projeto Francisco Campos para a escola em Minas Gerais. In: Acta Scientiarum. 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E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673 14 OLIVEIRA, F. M. C.. Crítica à Razão Dualista. O Ornitorrinco. 2. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. OLIVEIRA, Pâmela F. CARVALHO, Carlos H. Educação e modernização em Minas Gerais: Proposta reformista na ação conservadora (1926-1930). In: História da Educação, Porto Alegre, v. 18, n. 42, jan./abr., 2014. PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990. PERISSINOTTO, Renato M. Classes dominantes, Estado e os conflitos políticos na Primeira República em São Paulo: sugestões para pensar a década de 1920. In: LORENZO, Helena C; COSTA, Wilma P (Org.) A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora UNESP, 1997. SILVA, Lígia O. A crise política no quadriênio Bernardes: Repercussões políticas do “Caso Itabira Iron”. In: LORENZO, Helena C; COSTA, Wilma P (Org.) A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora UNESP, 1997. Programa de Pós Graduação em Sociologia Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia. E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673