do descampado de ninguém a um câncer social

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do descampado de ninguém a um câncer social
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GT 3 - CONFLITOS SOCIAIS, INSTITUIÇÕES E POLÍTICA – SESSÃO 1
COORDENADXR E DEBATEDXR: DRA. ISABEL GEORGES
16 DE JUNHO DE 2015 – 14H
LOCAL: AUDITÓRIO 3 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE
OS GÊNEROS DO “TRABALHO DO ESTADO”
Tarcísio Perdigão Araújo Filho - PPGS - UFSCar
[email protected]
Agencia fomentadora: CAPES
GT3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política
Resumo: Neste texto proponho-me a discutir imbricações entre construções de gênero e
determinadas frentes do “trabalho do Estado”, colocando em perspectiva comparada duas das
“frentes” possíveis dos governos contemporâneos: as atividades profissionais do care, como o
trabalho das assistentes sociais ou das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS); e as atividades
do controle estatal, como o trabalho policial ou o do fiscal. Trata-se de refletir sobre o Estado
pelos desvelamentos que suas interfaces diretas e cotidianas com o público oferecem, como
no caso, pelo trabalho de implementação das políticas ou serviços públicos. Por isso, trago
como insumo de minhas análises exemplos de pesquisas etnográficas e de cunho
microssociológico que tratem dos dilemas individuais ligados ao trabalho dos
implementadores, ou burocratas do nível de rua. Dessa maneira, acredito ser possível debater
gênero, trabalho e governança de maneira cruzada. A escolha por esta abordagem dá a
possibilidade de análises aproximadas às relações de poder, configuradas, a uma só vez, como
aspectos das construções de gênero e do governo.
Introdução
Neste texto, proponho-me a discutir imbricações entre construções de gênero e
determinadas frentes do “trabalho do Estado”, colocando em perspectiva comparada duas
frentes de atuação de governo: as atividades profissionais do care e da assistência social; e o
trabalho do controle estatal (como o trabalho policial ou da vigilância). Essas categorias
profissionais nos permitem uma reflexão sobre o Estado em termos de suas interfaces diretas
com o público e como são refletidas no cotidiano, pelo trabalho de implementação das
políticas ou serviços públicos. Por isso, trago como insumo de minhas análises dados de
pesquisas, principalmente etnográficas ou de cunho microssociológico, que tratem dos
dilemas individuais ligados ao trabalho dos implementadores, ou burocratas do nível de rua
(LIPSKY, 1980). A escolha por esta abordagem dá a possibilidade de análises específicas,
concentradas e localizadas, afinal, “é ao nível da negociação quotidiana, das interacções
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carregadas de poder, das reformulações das narrativas de vida, que o gênero como processo e
prática pode ser apreendido” (ALMEIDA, 1996, p.3). Dessa maneira, acredito ser possível
debater gênero, trabalho e governança de maneira cruzada.
A fim de analisar a dimensão do gênero nos serviços associados ao controle social,
meu foco principal neste trabalho, levanto questões relacionadas à investigação que
desenvolvo acerca do âmbito operacional da fiscalização sobre irregularidades na cidade de
Belo Horizonte, protagonizada exclusivamente por trabalhadores homens, os chamados
auxiliares de fiscalização. Com o intuito de traçar um paralelo tencionado pelo viés do gênero,
mobilizo pesquisas que analisam o trabalho de mulheres operadoras da assistência social e da
assistência à saúde, compreendidos como trabalho “do cuidado” (MOLINIER, 2012;
SOARES, 2012; HIRATA & GUIMARÃES, 2012; GEORGES & SANTOS, 2010; 2012;
2013; 2014), supostamente uma vocação feminina. Textos como estes me inspiraram a pensar
como o Estado se produz, ao nível do cotidiano (DAS & POOLE, 2004), também pelo viés
das construções de gênero.
Neste trabalho não ambiciono discutir amplamente as questões conceituais
fundamentais que envolvem as variadas ações do Estado Moderno. Assistência e controle
social são tipologias gerais e ideais que servem de base para elucidar a diversidade de frentes
possíveis de atuação do Estado contemporâneo brasileiro, a partir de suas bases operacionais.
Através de certa noção de divisão do trabalho, ressalto alguns dos desdobramentos típicos de
cada uma dessas frentes possíveis da governança, a partir do ponto de vista das interações
sociais.
Portanto, não se trata apenas de discutir
questões gerais relacionadas a burocracias
do nível de rua (LIPSKY, 1980), mas abordar determinadas questões relativas às experiências
nas camadas mais subalternizadas das agências estatais brasileiras e contemporâneas,
contextualizadas pela descentralização da implementação de políticas estatais e das
flexibilizações dos empregos públicos (LIMA & COCKELL, 2008). Este aspecto é levado em
consideração como fator estruturante das experiências analisadas, inclusive pelo ponto de
vista da construção dos papéis de gênero.
Os auxiliares de fiscalização da Prefeitura de Belo Horizonte
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Há mais de dois anos desenvolvo pesquisa sobre o os auxiliares de fiscalização,
funcionários terceirizados que atuam nas “linhas de frente” da Prefeitura de Belo Horizonte
(PBH). Trata-se de uma categoria de trabalhadores responsáveis por variadas demandas
associadas, principalmente, ao controle de práticas ditas irregulares/ilegais em espaços
públicos da cidade. O trabalho dos auxiliares de fiscalização chama a atenção por se tratar de
uma função alocada nas pontas do controle sobre irregularidades no espaço público: eles
lidam com a rotina da operacionalização das regras de conduta nas ruas da cidade e em
contato direto com os cidadãos (LIPSKY, 1980).
Um ponto crucial para se compreender a função dos auxiliares, de modo geral, é que
se trata de uma ocupação exclusivamente masculina. Segundo a gerência da secretaria da
PBH responsável pela gestão destes trabalhadores, “ser homem” é o pré-requisito básico
exigido na seleção. Vale comparar que, entre os “fiscais integrados” (os fiscais superiores,
“oficiais”), esta condição não existe: há tanto fiscais homens, quanto mulheres no quadro de
funcionários. O preenchimento dessas vagas se dá mediante um concurso, ao passo que no
caso dos auxiliares acontece por meio de uma seleção aberta realizada pelas empresas
terceirizadas. Apesar de não ter averiguado justificativas formais acerca desta exigência na
seleção dos auxiliares, fica claro que existe uma estruturação proposital baseada em certa
expectativa sobre o que seria uma qualificação ideal de funcionários nessa posição, baseado,
por sua vez, em uma clara ideia de papel de gênero: trata-se de um trabalho masculino.
Por meio dos dados de pesquisa gerados até então por meio de entrevistas em
profundidade e observação direta do trabalho realizado pelos agentes da Prefeitura no Centro
de Belo Horizonte, foi possível traçar as principais características da ocupação: (1) estes
trabalhadores estão alocados na base da cadeia hierárquica da burocracia municipal; (2) sua
função predominante (e diária) é a da vigilância ostensiva em espaços públicos onde há
grande movimentação de pessoas (o plantão), cujo objetivo central é o controle do comércio
ambulante irregular; (3) os auxiliares, atualmente, não recebem capacitações técnicas ou
teóricas sobre como atuar e conhecem pouco sobre o conteúdo das legislações que
operacionalizam atualmente1. Amplamente, reconhecem que o que sabem foi aprendido “na
1
Desde o início dos anos 2000, existe uma única peça jurídica que demarca legalmente práticas em espaço
público na cidade, o Código de Posturas de Belo Horizonte (2003) – cunhado como Lei. 8.616. Este marco
regulatório das “posturas” conta com mais de 300 normas, criadas ao longo dos anos desde 1930. Há uma
variada gama de normas relacionadas aos usos e práticas nos espaços públicos: utilização das calçadas,
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prática”, “nas ruas”, “na tora”. (4) O objetivo anunciado pela maioria deles sobre sua atuação
prioritária é o de “manter as ruas limpas”, referindo-se a sua atribuição principal: a inibição e
controle, nos espaços públicos, de uma vasta gama de práticas consideradas irregulares pela
legislação, mas com o foco claro no comércio ambulante irregular.
Apesar disso, o que também marca a experiência de trabalho desses homens é (5) a
participação enquanto “auxiliares” em várias outras atividades realizadas pela PBH, estas
executadas eventualmente, quer dizer, a depender de demanda. A maioria delas ainda está
associada ao controle de práticas ditas irregulares, como o auxílio nas operações, modalidade
da fiscalização entendida como complementar ao plantão no modelo de gestão urbana belohorizontina
(ARAÚJO
FILHO,
2015).
Genericamente
chamadas
de
“operações”,
compreendem-se as operações de fiscalização nas mediações dos grandes eventos, operações
de abordagem à população em situação de rua, operações de fiscalização em shoppings
populares, patrulhas de fiscalização em estabelecimentos comerciais, operações de
desapropriação e etc. A participação dos auxiliares nas equipes que executam as operações
(nem todas coordenadas pela Secretaria Municipal Adjunta de Fiscalização - SMAFIS) se
limita, pelo menos a princípio, ao “trabalho braçal”, considerado por muitos auxiliares como
uma espécie de “trabalho sujo” (HUGHES, 1957), a parte que ninguém mais quer fazer:
carregar caixas, entulhos, guardar e lacrar os materiais apreendidos, carregar e descarregar
caminhões. De fato, a lista de atribuições é bastante extensa e não termina aqui2.
Ponto crucial desde minhas impressões iniciais no campo foi que, especialmente no
contexto de sua atribuição principal, o da vigilância ostensiva nas ruas (o plantão), estes
agentes possuem relativo poder de decisão sobre quais irregularidades serão de fato
controladas, em nome da tarefa de manter a “limpeza”, a ordem. Devido a condições
situacionais diversas (quase sempre adversas, pelo ponto de vista dos sujeitos) para sua
atuação como agente de controle, formas variadas de “resolução” dos problemas rotineiros
podem ser tomadas por eles, uma vez que existem poucas possibilidades para que sigam
procedimentos de atuação rígidos e disciplinados. Em outras palavras, como observado, o
instalação de faixas, instalação de publicidade, regularização de obras privadas, incluindo direcionamentos sobre
solicitações de alvarás, e etc.
2
Além das situações citadas eles se envolvem também com outras atividades “braçais” com a montagem e
desmontagem das grades que cercam a Feira Hippie, realizada todos os domingos na região do Centro da capital,
o carregamento e descarregamento de caixas pesadas dos/para os caminhões que levam os materiais para o/do
depósito, entre outros. Escutei, ao longo do meu contato com o campo, vários apelidos para estes trabalhadores
decorrentes dessa característica, entre eles: “faz-tudo”, “quebra-galho”, “severino”.
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trabalho desempenhado por estes trabalhadores é fortemente marcado por um relativo poder
discricionário e por condições de atuação que não os enrijece em protocolos concretos e bem
definidos (ARAÚJO FILHO, 2014, 2015).
A saber, o “procedimento padrão” básico dos plantões é, basicamente, permanecer
num ponto fixo (podendo às vezes se movimentar por alguns quarteirões próximos) para
coibir que pessoas venham a realizar algum tipo de irregularidade naquelas mediações e, desta
forma, promover uma espécie de controle imediato das práticas naquele microterritório. Ao
notar alguma irregularidade, o agente deve se dirigir ao infrator e comunicá-lo que está em
situação irregular, convencendo-o a não persistir. Trata-se do “primeiro contato”, como
descrevem comumente os auxiliares. Caso não haja sucesso, o agente se comunica, via
telecomunicador “HT”, com as chamadas “equipes de apoio” (ou simplesmente Apoio), para
que elas se desloquem ao local e “resolvam a situação”. Desta forma é pensada a participação
do Apoio pelos sujeitos.
Dada a situação, por exemplo, de um comerciante ambulante que “incomoda” o
plantão, a equipe de Apoio é acionada a fim de realizar, de forma imediata, a apreensão das
mercadorias. Esta equipe é liderada por um fiscal integrado (funcionário concursado da PBH
que possui legalmente a autoridade para assinar os autos de apreensão e aplicar todas as
sanções previstas no Código de Posturas), acompanhado por um policial militar (cuja função
se limita ao resguardo da segurança da equipe) e por um grupo de (normalmente quatro)
auxiliares de fiscalização, que já à primeira vista se diferenciam por não usarem uniformes - o
colete e boné azuis - como os outros. Estes são os auxiliares que compõem o Apoio3. O papel
desempenhado por estes auxiliares é completamente distinto do realizado pelos “azuizinhos”,
assim como sua experiência no “serviço”. Sua tarefa principal continua sendo o de auxílio,
mas nesse caso se limita às ações de apreensão, em atendimento aos chamados originados no
plantão.
No caso do Apoio, o trabalho não é comunicativo, mas incisivo: ao chegarem ao local
indicado, cercam os ambulantes apontados pelo plantão e “pulam” nas mercadorias expostas
para venda. O fiscal integrado participa da ação apenas como a figura que a autoriza e a
legitima, assinando o auto de apreensão. Todo o esforço e risco envolvidos na ação são
assumidos pelos auxiliares do Apoio, desde o recebimento do chamado, a própria apreensão,
3
Muitas vezes, os próprios auxiliares do Apoio são chamados de “apoio”, ou “meninos do apoio”, ou “caras do
apoio”.
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até o lacramento das mercadorias nos invólucros e o descarregamento dos mesmos no
depósito da Prefeitura.
Há um ponto muito importante a ser ressaltado nessa descrição. Durante meu contato
com o campo, percebi que existe uma grande distância (e uma suposta hierarquia) entre as
duas modalidades de auxiliares, que parecem opostas, pelo ponto de vista das representações
que elaboram de si e sobre o outro. Os auxiliares que compõem as equipes de Apoio durante a
semana4 não se reconhecem como auxiliares. Como não usam uniformes, muitas vezes
precisei pergunta-los se eram auxiliares, uma vez que se confundiam com os seus superiores supervisores, gerentes -, que também usam roupas casuais: calça jeans, camiseta, tênis. A
primeira resposta de muitos foi: “sou do Apoio”. Apesar de receberem o mesmo salário,
trabalharem sob a mesma carga horária e ter a Carteira de Trabalho assinada da mesma forma,
as funções que exercem os “azuizinhos” e os “meninos do Apoio” e a representação que
fazem de si é absolutamente distinta e diferenciadora.
Chamo a atenção, a seguir, para aspectos dessa distância aparente, presente em uma
representação do “drama social do trabalho” (no sentido atribuído por HUGHES, 1976), a
partir do ponto de vista de três agentes5. As narrativas delineiam um pouco sobre as
sociabilidades (masculinas) no emprego de auxiliar, desdobramentos das socializações no
ambiente de trabalho, entendido aqui como um processo que “conecta permanentemente
situações e percursos, tarefas a realizar e perspectivas a seguir, relações com outros e consigo
(self), concebido como um processo em construção permanente” (DUBAR, 2012, p.8).
Márcio e Gustavo
Conheci os agentes Márcio e Gustavo enquanto acompanhei por alguns dias o trabalho
de uma das equipes6 do Apoio. Dentro da Kombi, um clima bastante descontraído (piadas,
4
Nos finais de semana, outros auxiliares compõem as equipes de Apoio, os mesmos que participam dos plantões
de segunda a sexta. Todos os auxiliares trabalham em pelo menos um dia do final de semana, e exercem, na
maioria das vezes, alguma função diferente da realizada nos outros dias.
5
Nota-se que não trago informações precisas sobre os sujeitos e suas origens, uma vez que o único contato que
obtive com estes foi na rua, durante o período de serviço. Embora este seja um objetivo para os próximos meses
de pesquisa, não consegui entrevistá-los utilizando um gravador. Além disso, devo lembrar que os nomes dos
auxiliares atribuídos nas narrativas são fictícios, como uma maneira de resguardar-lhes as identidades.
6
Vale explicar que submetidas à Regional Centro-Sul existem várias as equipes de Apoio, cada uma responsável
por “cobrir” uma sub-região do Centro, dentre as que apresentam maior demanda: Savassi, Barro Preto, Área
Hospitalar e Hipercentro. Cada uma delas é denominada segundo a mesma lógica e a mesma nomenclatura de
policiamento territorializada da Polícia Militar mineira, na qual cada “Cia” (por exemplo, 6ª Cia, 4ª Cia)
corresponde por um território. A fim de proteger os meus interlocutores, preferi não expor qual das Cias Márcio
e Gustavo fazem parte, mas é preciso dizer que ela corresponde a um dos territórios mais “torados” e
problemáticos da cidade.
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“zuações”, casos do final de semana, joguinhos no celular, assovios e cantadas para mulheres
que passavam na rua), se alternava com as tarefas e os assuntos de trabalho. Minha presença
parecia não causas grandes perturbações7. Pude presenciar algumas ações de apreensão, mas
também, entre um chamado e outro, participei de conversas e de momentos de descontração
entre os auxiliares. Presenciar os momentos de ação foi tão importante, pelo ponto de vista da
pesquisa, quanto os momentos mais relaxados.
Márcio trabalha há dois anos para a PBH e Gustavo há oito; Márcio tem vinte e
poucos anos e Gustavo quase trinta. Há pouco mais de um ano, eles integram a mesma
equipe. Os dois foram os meus principais interlocutores do grupo e fizeram questão de me
apresentar o “serviço”, e com certo orgulho. Márcio conta que essa equipe é resultado de
muita “peneira”, afinal, “muitos desistem porque não aguentam a pressão”, o ritmo e os riscos
da atividade, e então pedem transferência para o plantão. Márcio relata que muita gente não
entende porque ele continua nesse trabalho, e ele responde que é por que “gosta da
adrenalina” e que não suportaria o trabalho dos “azuizinhos” no plantão, pois julga ser “muito
parado”. Diz também que sentiria certa sensação de impotência diante dos conflitos com os
camelôs: diferente do Apoio, os outros auxiliares “não podem reagir de nenhuma forma”, a
não ser chamando o Apoio e a Polícia Militar como últimas instâncias.
Disseram que o trabalho no Hipercentro é muito difícil, mas que eles têm conseguido
bons resultados. Gustavo me mostrou uma foto das mercadorias da última apreensão que
realizaram, segundo ele a maior apreensão de cigarro contrabandeado já realizada em Belo
Horizonte. Também havia uma foto tirada de uma espécie de cartaz feito em reconhecimento
do feito, que seria exposta em algum mural da sede, junto à foto da apreensão e a outra de
todos os responsáveis pela ação. Pedi as fotos para Gustavo que não se incomodou em me
enviar, utilizando o bluetooth do celular. Gustavo me mostra também uma cicatriz que tem no
tórax, resultado de uma facada que tomou durante um conflito com camelôs, após uma ação
de apreensão arriscada perto da Rodoviária. “Já levei paulada, pedrada, facada”, conta
espontaneamente logo no meu primeiro dia na Kombi da companhia. Márcio confirma o fato
de que estejam vulneráveis às agressões e as situações de violência na rua, mas faz questão de
7
Penso que por ser homem, foi possível criar algum tipo de identificação entre os sujeitos na Kombi e eu, ao
passo que não pareciam constrangidos de forma alguma, por exemplo, ao fazerem piadas de cunho machista,
quando flertavam com mulheres na rua ou conversavam entre si sobre assuntos constrangedores. Na verdade,
penso que toda minha inserção no campo foi facilitada por este mesmo motivo, uma vez que quase todos os
meus interlocutores são homens.
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dizer que não deixa barato: “Tem vez que eu apanho, mas quando é assim, eu mais bato do
que apanho.”
Wagner
Conheci Wagner já na primeira vez que fui a campo acompanhar uma ação
concentrada da fiscalização nas mediações da passarela que liga a Praça Rio Branco e o
Bairro Lagoinha, região onde tradicionalmente circulam muitos comerciantes ambulantes.
Esta ação durou vários dias, o que se tornou uma oportunidade para eu acompanhar um pouco
da rotina dos plantões. Ao longo desses dias, enquanto Wagner trabalhava, conversamos
bastante.
Wagner tem mais ou menos trinta anos e trabalha há quatro como auxiliar (desde
quando saiu de sua cidade no interior de Minas Gerais), atuando nos dias de semana em
plantões na região da Rodoviária. Diz que até conhece de vista alguns dos ambulantes que
têm “ponto” por ali. Apesar de ter achado curioso, Wagner gostou muito de saber que havia
alguém estudando a fiscalização e, por isso, fez questão de dar atenção às minhas perguntas.
Constantemente se lembrava de alguma informação que ele julgava ser “interessante para a
pesquisa”.
O auxiliar me descreve o seu trabalho como uma atividade que depende muito do que
ele chamou de “técnica”, isto é, uma maneira de dizer que existe um comportamento
adequado nesse tipo de serviço, “como tudo que se faz”, explica. Segundo ele, um aspecto
determinante do trabalho é a maneira de realizar a abordagem, que deve ser tranquila e bem
medida, quer dizer, o auxiliar deve saber entender “até onde pode ir”, e aponta: “até policial
sabe a hora que tem que recuar”, “se você sabe como evitar [problemas, confusões], por que
não evitar né?!” Diz ainda que é comum que alguns ambulantes acatem mais tranquila e
rapidamente seu pedido para dispersarem em respeito à forma gentil, “com educação”, com
que lhes trata.
A fim de fazer um contraste à sua conduta “técnica”, conta-me sobre alguns outros
auxiliares que, segundo ele, extrapolam o seu papel como auxiliar. Ele se referia a
determinados auxiliares do Apoio (ainda que alguns azuizinhos também tenham esse tipo de
atitude), e os denominou como “vibradores”, “sangue nos olhos”. Conta que não se identifica
com estes colegas pois eles excedem o que o serviço e as situações demandam: agem com
truculência, ameaçam os ambulantes, tomam as mercadorias (às vezes sem a presença ou a
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ordem do fiscal), correm atrás de assaltantes, e mais, segundo Wagner, pensam
o seu
território de atuação como sendo “área deles”. Ele se pergunta: “por que não fazem concurso
pra polícia então?”. De fato, muitos dos auxiliares, do Apoio e do plantão, me relataram ter
planos, e já estarem estudando, para prestar o concurso 2015 para soldado da Polícia Militar.
Wagner reclama que acha o trabalho um pouco monótono, mas afirma estar satisfeito
com o emprego mesmo assim. Já se acostumou a ficar tantas horas parado e em pé.
A divisão sexual do “trabalho do Estado”
Neste texto, assumo análises que denotam a proposta de imbricação de categorias de
trabalho e gênero. Não há determinismo (ou naturalizações) com relação à associação do
gênero masculino ao trabalho do controle (policiais, seguranças, porteiros, soldados, fiscais),
por exemplo, uma vez que existe espaço, ainda que limitado, para as mulheres nesses
mercados de trabalho. Trata-se de uma maneira de apontar que determinadas atividades
parecem se conformar e se popularizar enquanto apropriações de processos mais amplos de
construção do gênero na sociedade, o que, de fato, traz consequências reais para os
trabalhadores e trabalhadoras. Aspectos de gênero são definidores para a delimitação de
tarefas, atividades, sociabilidades, hierarquias e etc.
Em uma pesquisa sobre a entrada das mulheres na Polícia Militar paulista, Denari
(2014) revela que a elas, normalmente, são separadas funções não combativas dentro da
organização (como as administrativas ou as relacionadas ao policiamento comunitário),
funções estas notoriamente de menor prestígio segundo a lógica da sociabilidade e das
hierarquias policiais.
Ainda sobre as organizações militares – nesse caso especificamente o Exército
Brasileiro – Rosa Reis (2007), sob a ótica bourdieusiana, ressalta a existência de um campo
militar, onde é possível identificar a emergência de um habitus correspondente, o habitus
militar. Segundo ele, sendo este campo uma construção social protagonizada por homens,
enquanto elaboradores das regras do mesmo, estes jogam o seu próprio jogo com vistas na
reprodução de suas estruturas. O autor discute sobre a associação entre o habitus militar e o
habitus masculino, diz que a combinação Homem-Militar torna-se naturalizada, inscrita na
“ordem das coisas” (BOURDIEU, 1999, WACQUANT, 2002, apud REIS, 2007). Esse
quadro se manifesta quando se traduz em violência simbólica dentro da organização. Segundo
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o autor, as mulheres que, por sua vez tiveram uma entrada efetiva no Exército Brasileiro
apenas recentemente, acabam encontrando como a única opção viável diante de sua
participação marginal no campo de forças a conformação às regras já vigentes e às
possibilidades
de
movimentação
subjacentes
nas
dinâmicas
masculinas-militares
estabelecidas tradicionalmente, a “conversão” ao habitus militar.
Nessa perspectiva, outros autores como Paula Poncioni (2005), Paulo Storani (2010) e
Jaqueline Muniz (1999) apontam que faz parte da narrativa e da justificação do trabalho
policial (militar), determinadas simbologias e comportamentos que evidenciam que a
identificação policial está sedimentada no que se chama de ethos guerreiro (combatente, viril,
masculino). Reproduz-se, desta forma, um padrão de comportamento que legitima
simbolicamente o trabalho policial, à vista de todos, encorajando a agressividade como fator
necessário para o cumprimento de suas obrigações públicas, ao mesmo tempo, em que se
afirma enquanto homem (PONCIONI, 2005).
Estes estudos fazem-me pensar sobre como os “trabalhos do Estado” estão inseridos
em uma “divisão sexual do trabalho” análoga. A formulação de Hirata & Kergoat (2007), já
renovada com relação às abordagens teóricas/políticas tradicionais, a princípio, diz sobre a
desigualdade na distribuição de homens e mulheres no mundo do trabalho e para a designação
diferenciada entre ambos para ofícios, profissões e atividades. Elas chamam a atenção para a
“divisão sexual do trabalho” como uma forma de divisão social do trabalho decorrente das
relações de poder entre os sexos, e chamam a atenção para o aspecto “prioritário” dessa
“nova” divisão para a configuração da própria desigualdade social. Nesse mesmo sentido,
Araújo (2005), ressalta que as relações de classe e gênero devem ser pensadas como fatores
estruturantes da sociedade, na medida em que se sobrepõem: “as relações de classe são
sexuadas, assim como as relações de gênero são perpassadas por pontos de vista de classe” (p.
90). Daí a importância de se ter em mente “quais” mulheres e homens inserimos em nossas
pesquisas.
Por uma mirada feminista, e a fim de adequarem o conceito aos novos modos de
organizações socioeconômicas, Hirata e Kergoat (2007) ressaltam a necessidade de ampliação
do conceito de “trabalho”, incluindo agora os trabalhos domésticos, os diversos trabalhos nãoremunerados e os trabalhos decorrentes da chamada “informalidade”. Trata-se de um olhar
voltado para uma divisão fundamental e hierárquica do mundo do trabalho (de modo geral)
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observada em vários de seus aspectos, entre atividades, tarefas e técnicas (além de profissões),
assentados em opostos sexuados: espaço público e privado; produção e reprodução; “trabalho
masculino” e “trabalho feminino”.
Parece-me adequada a transposição desse esquema ao campo dos trabalhadores
(subalternos) do Estado. Quando analisamos cargos de baixo escalão nessa divisão do
trabalho, observa-se que, em sua maioria, os empregos tipicamente masculinos proporcionam
atividades voltadas para as dinâmicas de uma esfera pública (“para fora”) - como fica claro
pelo caso dos auxiliares de fiscalização, que lidam com a imposição de regras, do controle de
práticas, com “a rua” -, enquanto que os empregos tipicamente femininos estariam voltados
para a esfera privada ou do doméstico (“para dentro”) - como as trabalhadoras do care, que
tem suas raízes nos vínculos familiares (SOARES, 2012), tratando sobre interesses
supostamente não-públicos8.
Avançando nesta discussão, em face às novas abordagens que os programas sociais
brasileiros têm desenvolvido, e consequentemente às novas ocupações femininas decorrentes
destas, Georges & Santos (2014) dizem que a moralidade feminina tradicional se configura
como um dos motivos pelos quais, nesses espaços de atuação, as mulheres pobres têm se
lançado em determinada (e relativa) esfera pública quando ocupam empregos na
implementação de programas sociais e de atenção à saúde. A ampla expectativa de um
comportamento tipicamente materno – que preza pelo cuidado do outro – e a capacidade
dessas mulheres de manterem uma comunicação estreita com os assistidos (de sua mesma
classe social e moradores da mesma comunidade) têm otimizado o alcance e a eficiência
desses programas nas comunidades pobres.
No caso do trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS)9, as mulheres não só
têm um pertencimento social próximo às assistidas, como também são dispõem de um capital
social nas localidades que facilita a conquista de laços de confiança e a obtenção de
informações sobre os hábitos domésticos ligados à higiene e à saúde, sustentando a eficácia
8
Isso não quer dizer que o que se seria considerado uma função não-pública esteja desprovida de capacidade de
produção de política. Susan Okin (2008) traz uma importante discussão sobre o “quanto do pessoal é político”,
ela traz dois pontos principais: (1) chama a atenção para as dinâmicas de poder entre os sexos, ainda que em
ambientes domésticos; (2) e diz sobre a completa independência das relações sociais domésticas com as relações
sociais não-domésticas.
9
A atuação dessas mulheres faz parte das diretrizes do Programa Saúde da Família (PSF) e integrado ao Sistema
Único de Saúde (SUS), que objetiva atuar no sentido de promover a prevenção e a identificação de doenças,
assim como a educação sanitária, por meio de uma abordagem comunitária de proximidade entre as agentes e as
usuárias (GEORGES & SANTOS, 2010).
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dos novos programas de saúde (LIMA & COCKELL, 2008; LIMA & MOURA, 2005).
Portanto, não há exatamente uma inversão de papéis nos novos programas sociais, mas sim
uma funcionalização das supostas disposições femininas de sociabilidade para o cuidado em
nome do sucesso de uma política pública.
Georges e Santos (2010) chamam a atenção para as Agentes Comunitárias de Saúde
que, estando “nas pontas” das políticas de saúde e lidando com os usuários direta e
constantemente em suas residências, acabam por extrapolar suas atribuições oficiais. Elas
agem como reguladoras de diversos assuntos (privados e públicos) da comunidade, o que
oferece a oportunidade de provocar a demanda das famílias pelos vários serviços públicos, o
que se mostra como um efeito da autonomia típica de ação. Investigando também sobre as
ACS, Lotta (2012) observou ainda que, na interação com os usuários, elas mobilizam saberes
técnicos juntamente com saberes locais. Ainda que este procedimento não esteja previsto
institucionalmente, as trabalhadoras utilizam-se destes conhecimentos a fim de se fazer
entender bem entre os usuários e usuárias, ao mesmo tempo em que lidam com o desafio da
exequilibilidade do programa.
A proximidade entre operadoras das pontas e o público parece ser uma chave
importante para entender o contexto dos novos programas sociais, uma vez que eles
pretendem capilarizar-se nas comunidades periféricas. Em pesquisa sobre a implementação do
Programa Saúde da Família (PSF) em uma “comunidade carente” em São Paulo, Georges e
Santos (2013) chamam a atenção para um efeito importante desse tipo de política de saúde: as
titulares do programa (as usuárias) tornam-se alvos diretos de atividades de “moralização”,
que visam, sobretudo, a “transformação social” dessas mulheres, o que, na realidade, está
previsto como norte do programa e das entidades que o executa. A pesquisa demonstra que
existe uma forte relação entre a maneira com que as operadoras do programa elaboram um
repertório moral, embasadas nas orientações da instituição e na maneira com elas mesmas se
veem no mundo social enquanto mulheres, e as expectativas comportamentais reverberadas
nas usuárias. O caráter de continuidade de valorações morais no intere da implementação é
central, passada por meio da interação entre assistentes e assistidas, ela produz “rótulos”
referenciados pela adesão ou “desvio” aos propósitos do programa pelas usuárias. O estudo
demonstra que se trata de uma “gestão sexuada da assistência” de cunho familista, que incide
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no sentido do engessamento das mulheres pobres assistidas à função materna como
opção/atividade central. Conclui as autoras que:
... fica evidente que a definição do acesso ao programa, assim como a definição da
categoria dos beneficiários – ou a sua “rotulação” -, o estabelecimento de regras a
seu respeito e a sua justificação implica uma tarefa central da atividade dos
trabalhadores sociais de forma geral. Constitui o coração dessa atividade ainda
emergente, em via de constituição e de profissionalização, e forma a base de suas
lógicas de legitimação. (GEORGES & SANTOS, 2013, p.76)
O foco está posto, portanto, sobre a natureza das interações que envolvem a(o)s
agentes do Estado e as construções de gênero ali assentadas como condicionantes. Neste
sentido, pensar na noção de trabalho emocional (HOCHSCHILD, 1983) pode ser elucidativo
para discutir as diferenças das experiências de trabalho entre os trabalhadores e trabalhadoras,
e o peso do fator gênero para as diferentes funções públicas. Soares (2012, 2013) chama a
atenção para a existência de uma divisão sexual das emoções, remetendo à expressão das
emoções no trabalho. Seu ponto de vista é que as emoções são socialmente construídas,
portanto homens e mulheres não expressam e vivem emoções no trabalho de forma
equivalente. Primeiramente, isso acontece porque, no geral, estão alocados em ocupações
distintas, e mais abrangentemente a situações sociais distintas, levando-se em conta uma série
de expectativas sobre papéis e comportamentos de gênero na composição de suas atividades e
de suas interações.
O trabalho do care, efetuado majoritariamente pelas mulheres, denota tanto uma
prática (profissionalizada ou não) quanto uma disposição para o cuidado do outro (HIRATA
& GUIMARÃES, 2012). Atividades, empregos ou serviços que se assentam no cuidado ou no
“dar atenção” (MOLINIER, 2012) condicionam e são condicionadas por um trabalho
emocional típico. Estas executam tarefas que exigem um traquejo social típico, envolvendo a
ternura, gentileza, delicadeza, intuição, sensibilidade, doçura (SOARES, 2013). Num jogo
interacional, as trabalhadoras devem gerir suas emoções de forma a satisfazer as expectativas
da relação entre elas e os usuários, a fim de sustentar uma relação que se torna complicada,
dividida entre a intimidade e o profissionalismo, buscando “um equilíbrio entre o limite de
suas emoções e a exequibilidade do seu trabalho” (GEORGES & SANTOS, 2014)
Do “outro lado” na divisão sexual do trabalho, a busca por este equilíbrio também se
mostra uma necessidade diária, o que fica explícito no discurso dos auxiliares de fiscalização.
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A experiência dos agentes da PBH está repleta de situações em se exige um outro tipo de
trabalho emocional, também marcado pela necessidade do “equilíbrio”. Por outro lado, nos
trabalhos masculinos, as tarefas exigem algum grau de agressividade, rudeza, dureza e frieza
(SOARES, 2013), o que fica radicalizado no contexto de atividades mais subalternizadas do
controle estatal, como já descrito anteriormente. Os auxiliares de fiscalização se incluem.
Um forte pilar das rotinas dos auxiliares é a interação direta e constante com o seu
público nos espaços urbanos – camelôs, moradores de rua, artistas de rua – num cenário de
controle social ativo, de imposição de regras (BECKER, 1963). Não somente os agentes do
Apoio estão suscetíveis a se defrontar fisicamente com os ambulantes, mas também os
auxiliares que fazem plantão. Escutei várias vezes: “a gente nunca deve ficar de costas para a
rua”. A convivência com xingamentos, ameaças e o medo de ser surpreendidos é real:
É igual juiz de futebol, tem que ter um monte de manha, tem que aguentar um
monte de gente mal educada na rua que te chamam de cachorro do governo, „vai
pegar vagabundo em favela‟, „vai pegar droga em favela‟. A primeira coisa que eles
veem é isso. [...] A gente é chamado de tudo que é nome na rua. Estou escaldado já.
[Extrato de entrevista realizada com L em 06/06/2013]
Uma vez que, por várias vezes ao dia, são mobilizados a fazerem abordagens aos
sujeitos infratores, se sujeitam potencialmente a atritos que podem culminar em violência
verbal ou física. Desde quando são testados no processo seletivo para o cargo, os agentes tem
impressões sobre possíveis situações de violência no trabalho. Segundo um dos auxiliares
entrevistados, L, há oito anos, quando participou do processo seletivo para o emprego, teve
que realizar um teste que consistia em algumas perguntas que serviam para testar a reação do
candidato a determinadas situações adversas. Segue o relato de uma das questões da prova:
Olha, na prova que eu me lembro que fiz... se eu estiver de plantão com um colega
meu e esse colega meu arrumar um atrito com um camelô, porque eles não gostam
que a gente chega pra falar pra dar licença... aí, se gerar um confronto lá, se eu vou
correr ou se eu vou ajudar o amigo. Eu falei o óbvio. Eu não vou deixar um colega
meu apanhar sozinho. Ou nós vamos apanhar junto ou nós vamos bater nele junto.
Aí nisso que era baseada a prova. [Extrato de entrevista realizada com L em
06/06/2013]
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A preocupação da instituição acerca de certo “preparo” do candidato para o cargo
indica a expectativa de que as relações estabelecidas no trabalho podem ser bastante violentas.
No decorrer das entrevistas, surpreendeu a grande quantidade de relatos espontâneos sobre
conflitos e a intensidade com que eram contados, principalmente porque ressaltavam o medo
e a precisão ora do “sangue frio”, ora da reação. Seguem alguns dos relatos:
Tem, tem um pouco [de risco], seria um pouco né. Trabalhar com o público tem
sempre um pouco de risco né. Num é aquele risco eminente não, mas pode vir uma
pedra, um... a gente não sabe, né, como é que a pessoa vai reagir. Geralmente é
tranquilo. A gente não sabe como é que a pessoa saiu de casa... [Extrato de
entrevista realizada com M em 02/09/2013]
O que me marcou foi um tumulto que teve com a gente aqui na Carijós. Nós de um
lado, camelô do outro, e o Choque no meio. Pedra comendo solto no meio da rua.
[...] Aí a polícia chega, te ajuda a abordar e pega a mercadoria toda e naquilo ali,
uma palavra mal falada de um que está passando já gera aquela bola de neve. Aí
começa as agressões. Primeiro começa a verbal, aí já começa a física que é
empurrão, soco. E aí já começa. Essa marcou para mim. [...] Esse serviço nosso
aqui... quem não tá acostumado com esse tipo de serviço, não fica. [Extrato de
entrevista realizada com L em 06/06/2013]
Se colocar a mão na gente, o trem fica feio para o lado dele porque é muito
azulzinho. Teve uma vez na Santa Rosa, por exemplo, teve um cara lá que passou
com o carrinho cheio de água e pipoca e ali é um lugar que não pode mesmo! Ali
toda hora o Carlão passa, o gerente. Se vê, dá galho para nós! Nós chegamos e o
cara todo maloqueiro, todo malandrinho. [...] Ele falou para nós que para tirar ele
tinha que ser quatro ´nego‟, precisava de „quatro de vocês‟. Aí foi e nós saímos de
perto. Quando nós voltamos, trocamos ideia com ele na boa, pedimos com educação
e ele falou „não vou sair daqui não. Tem que ser muito homem para me tirar daqui‟.
Nós chamamos no rádio e chegou dez azulzinhos. O que ele fez? Pegou o carrinho e
foi embora pedindo desculpa. [Extrato de entrevista realizada com C em
26/09/2013]
Considerações finais
A partir de dados etnográficos sobre a assistência e o controle social no Brasil
contemporâneo, foram elaboradas reflexões acerca do trabalho do Estado, a partir de suas
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“linhas de frente”. Tanto no caso das pesquisas sobre os auxiliares de fiscalização como
sobre as Agentes Comunitárias de Saúde, o encontro face-a-face e a construção de vínculos
diretos com o público, são determinantes para se pensar na socialização profissional - “a
construção de si” (DUBAR, 2012). Desta forma, o gênero se torna um mote privilegiado
frente a este objetivo, uma vez que ele perspectiva a maneira com que os sujeitos se
compreendem, são compreendidos e se relacionam com os demais. Ao captar as moralidades
(masculinas e femininas) mobilizadas em campo, é possível elucidar o estabelecimento de
relações de poder e de hierarquias típicas. Pelo ponto de vista das construções de gênero
inscritas na categoria “trabalho”, é possível conectar as peculiaridades dos trabalhos do
Estado - seus alcances, limitações e dimensões - nos níveis locais com formas enunciativas
mais amplas, como proposto, por exemplo, pela discussão sobre a “divisão sexual do
trabalho”, inserida também pelas frentes de atuação estatais.
Portanto, o olhar aproximado a essas realidades, atento às minúcias que integram às
funções e às sociabilidades, nos leva a desvelar por quais caminhos percorrem os modos de
governança, estruturados pelas relações de gênero. Dados os casos estudados, é impossível
distinguir quais aspectos das relações de poder são próprios das relações de gênero e quais são
advindos da administração pública. Há uma imbricação, mas não uma confusão entre as
dimensões. No caso da fiscalização urbana em Belo Horizonte, o papel desempenhado pelos
auxiliares - nas variadas modalidades e situações em que se envolvem - apresenta-se como
uma peça fundamental para o formato proposto de controle social dos espaços públicos. Sua
autoridade relativa por participar da “ordem pública”, na medida de sua condição de
trabalhador homem e subalterno permite, coloca-os na condição de receber e amortecer os
efeitos das tensões “da rua”. De modo análogo, o Estado mobiliza, por meio de suas
operadoras nas pontas das novas políticas de assistência, moralidades e aspectos “funcionais”
das atribuições socialmente construídas sobre o “trabalho feminino”, como instrumentos de
gestão positivados, especialmente, por seu alcance diferenciado às esferas domésticas.
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1
“UM SORRISO E O BATOM”: AS NARRATIVAS SOBRE A HISTÓRIA
DA INSERÇÃO E PERMANÊNCIA DAS MULHERES NA POLÍCIA
MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO.
Giulianna Bueno Denari (UFSCar) 1
[email protected]
CAPES
GT3: Conflitos Sociais, Instituições e Política
A inserção da mulher na Polícia Militar do Estado de São Paulo teve como principal
justificativa a necessidade de levar para a instituição uma nova imagem, que fosse mais
maternal, com características de mais cuidado para com a comunidade, prevenção e assistência.
O Corpo Feminino de Policiamento, criado em 1955 e com atuação exclusiva na capital, tinha
como público alvo crianças, idosos e doentes que buscassem auxílio ou estivessem em situação
de rua. Sendo socialmente atribuída a mulher as características do cuidado, do carinho, atenção,
dever de educar e servir de exemplo aos mais jovens, as policiais deveriam então, dar
assistências àqueles que estavam nas ruas, sem comida e sem abrigo, ou então, chegassem a
capital sem ter onde morar ou trabalhar. A presente proposta tem como objetivo discutir e
analisar a passagem da função assistencial das policiais para as funções gerais de policiamento,
ou seja, quando passaram a exercer as mesmas funções que os homens, buscando entender os
modelos de policiamento que existem nesse processo. O foco é na Polícia Militar do Estado de
São Paulo e, para tal proposta, serão tratados dados de campo construídos durante o mestrado
em andamento que consistem em entrevistas a policiais militares ainda em atividade e
reformadas, e material documental obtido em pesquisa no Museu da Polícia Militar do Estado
de São Paulo, sendo a metodologia de análise qualitativa. A proposta contribui para a
compreensão da história da mulher na polícia militar e os modelos de policiamento da
instituição ao longo dos anos relatados pelas interlocutoras da pesquisa.
1
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos com ênfase em Sociologia. Mestranda
em Sociologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de São Carlos. Integra
o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da UFSCar (GEVAC).
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Introdução
A primeira mulher a entrar para a Polícia Militar no Brasil foi Hilda Macedo, falecida
em 2005, 50 anos após a aprovação do decreto que possibilitou a construção de sua carreira
como policial. A ideia da criação de tal efetivo partiu de uma palestra realizada pela mesma
no 1º Congresso Brasileiro de Medicina Legal e Criminologia, na qual ela defendeu a
importância da mulher para a Polícia Militar. A partir do que começou com uma ideia, foi
assinado no ano de 1955, em 12 de maio, o decreto nº 24.548, pelo governador de então, Jânio
Quadros, criando o Corpo Feminino de Policiamento.
A primeira turma de mulheres começou com 12 aspirantes, sob o mando da então
comandante, Hilda Macedo. Pela estética militar, um pelotão (composto por até 30 policiais)
só pode ser comandado por um oficial e neste caso, criando-se o Corpo Feminino de
Policiamento, este deveria ser comandado por uma coronel, fazendo com que Hilda Macedo
ascendesse ao posto imediatamente.
Em dezembro daquele mesmo ano, foi feita a comemoração pela formação das 12
mulheres, que juntamente com a precursora, ficaram conhecidas como “as 13 mais corajosas
de 1955”. Na época ainda não existia a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP)
como conhecemos hoje: e o recém-criado policiamento feminino foi designado ao
policiamento civil.
A partir de então, sucederam-se mais decretos em relação a efetivação do quadro de
mulheres na polícia militar, determinando funções, armamento e vestimentas adequadas. Até
o ano de 2011, a instituição contou com 8 coronéis, sendo elas Hilda Macedo, Janette Ribeiro
Fiúza, Denisa Della Nina, Sylvia Binelli, Dyarsi Teixeira Ferraz, Vera Maria Fávaro, Hilda
Magro e Vitória Brasília de Souza Lima. No presente ano são três coronéis na ativa, ocupando
diferentes funções de comando na instituição, sendo que são apenas pouco mais de 50
policiais que ocupam o posto de coronel, só ascendendo ao posto um novo coronel, quando
algum entra para a reserva.
No início dos anos 2000, ficou instituído em São Paulo que as funções dos efetivos
masculino e feminino não seriam mais separadas, possibilitando uma maior abrangência de
atuação das mulheres nas funções de policial militar. Em 2001, o então governador do estado,
Geraldo Alckmin, criou o Dia do Policial Militar Feminino, a ser comemorado em maio.
Essas são algumas das primeiras mudanças em relação ao efetivo feminino. Alguns anos mais
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tarde, os quadros do efetivo policial seriam unificados, possibilitando assim, que toda e
qualquer função na PMESP seja exercida legalmente por mulheres.
A presente proposta tem como objetivo discutir e analisar a passagem da função
assistencial das policiais para as funções gerais de policiamento, ou seja, quando passaram a
exercer as mesmas funções que os homens, buscando entender os modelos de policiamento
que existem nesse processo. A discussão será focada nos dados de campo construídos durante
a pesquisa de mestrado, a partir de entrevistas qualitativas realizadas com policiais militares
de diferentes patentes e funções, em diferentes cidades paulistas. Também serão trazidos nesta
proposta os dados produzidos a partir de pesquisa no Museu da Polícia Militar do Estado de
São Paulo, o qual possui vasto acerto sobre a história legal das policiais militares.
Busca por inserção e permanência: narrativas de policiais
A figura abaixo ilustra o fardamento das policiais e o título representa a imagem
passada através do Corpo de Policiamento Feminino, de um policiamento carinhoso,
atencioso e cuidadoso. O uniforme na época era composto por uma saia-calça, sapatos de
pouco salto e uma bolsa de couro, que carregava uma arma de pequeno calibre.
Figura 1 – Publicação comemorativa da formatura da primeira turma de mulheres policiais
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Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo
Já na época elas realizavam policiamento a pé, de dia, próximo às estações de trem,
principalmente a Estação da Luz em São Paulo, na qual chegavam migrantes de todo o país e
elas os auxiliavam a conseguir moradia e trabalho. Tal uniforme permaneceu até a década de
1990, quando as mulheres passaram a usar o fardamento atual: calça e coturno, como os
homens. Na época, o fardamento mostrava qual o modelo de policiamento as mulheres
poderiam realizar: assistencial, como elas mesmas contam nas entrevistas.
Mas, assim, ela era desconfortável, porque você imagina: você está com uma
bermuda aqui, aí você faz o movimento da perna e a bermuda vem aqui
assim. A bermuda sobe... Então era saia-calça. Se eu abrisse a perna assim,
ía aparecer uma calça. Mas ela era desconfortável para você trabalhar no
serviço operacional. Ela era bem desconfortável. Era uma coisa mais social,
sabe assim? Para você ficar numa instituição, num lugar assim... entendeu?!
Não para atender ocorrência, trabalhar na linha de frente. Ela não era prática.
E sem contar que a gente tinha que usar meia-calça e a meia a cada serviço
eram 2 ou 3 meias, porque ela desfiava tudo. (Policial feminino, oficial,
reformada).
Moreira (2011) faz um levantamento histórico desde a criação, em 1955, até o ano de
1964 do então Corpo de Policiamento Feminino do estado de São Paulo. Segundo a autora, as
primeiras intenções da criação desse corpo de policiamento feminino partiram das sufragistas
na década de 30, que lutavam não por uma igualdade na profissão, mas pela necessidade em
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ter um efetivo feminino que lidasse com um público “frágil”, que requeria um cuidado mais
“maternal”.
[...] Não é que os policiais sejam maus ou incompetentes. Não, mil vezes
não! É que lhes falta para êste trabalho sobremodo delicado, aquela
sensibilidade própria da mulher, tornando os, portanto, falhos, por falta de
capacidade especifica... É de se notar, por outro lado que a recíproca é
verdadeira. (MOREIRA, 2011: 75)
De acordo com os documentos analisados pela autora, os textos de criação do Corpo
Feminino de Policiamento também previam essa ação maternal das mulheres policiais, que
deveriam administrar conflitos que envolvessem mulheres, crianças, jovens infratores, idosos
e migrantes. Destaca também a normatividade em relação às ações dos policiais para com as
mulheres que ingressavam na profissão: a obrigatoriedade de um respeito extremo para com
as mulheres, oficiais ou não. Não deveriam ser olhadas por muito tempo, deveriam
permanecer afastadas dos efetivos masculinos e apenas amparadas em caso de necessidade em
suas abordagens. Exigia-se um cuidado com a figura feminina que extrapolava a estética
militar. Tais características permaneceram por muitos anos na instituição, como relata uma
das entrevistadas:
No começo tinha muito disso. Quando eu ingressei, por uns anos, eles nos
viam muito como... eles eram nossos protetores, tá? Nós éramos um grupo
até pequeno na época, então ai se eu tivesse fazendo policiamento, ai se
alguém mexesse com uma policial feminina. Eles ficavam...era como se
tivesse mexendo com uma filha, com a mulher deles. Eles sempre nos viram
muito como protetores, mas mudou, mudou... hoje já não tem mais isso.
(Policial feminino, oficial, reformada).
A visão do assistencialismo estatal incorporado nessas mulheres é bem representado
pela então deputada Bertha Luz:
[...] exercer, em cooperação com a justiça e a Polícia Civil, a vigilância
social e preventiva em beneficio da infância e da mocidade desamparadas e
ameaçadas pelo abandono e exploração moral, intelectual ou física; receber,
acompanhar, recolher e vigiar mulheres delinquentes e criminosas.
(MOREIRA, 2011: 45).
Colocar essas mulheres sob olhar e vigilância de todos, assim como aponta Soares e
Musumeci (2005), para mudar a visão de até então da polícia: repressora. Há no Museu da
PMESP acervo com diversas fotografias, imagens e reportagens representando a mulher
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policial como uma extensão familiar da mãe protetora: sempre as representavam segurando
crianças pequenas, ajudando pessoas idosas ou sendo admiradas na rua. Como exemplificam
as figuras a seguir.
Figura 2 – Imagem de reportagem exaltando o cuidado das policiais para com a população
Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo
Figura 3 – Imagem retirada de jornal de uma policial amamentando uma criança encontrada
nas ruas
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Fonte: Acervo do Museu da Polícia Militar do Estado de São Paulo
Com o aumento de interioranos migrando para a capital, a autora aponta que a policial
era vista como vigilante dessas novas figuras na cidade, que causavam medo e insegurança.
“O pressuposto de um feminino como sinônimo de moralidade, bondade, compreensão e
sensibilidade garantia a salvaguarda de mulheres e crianças nas mãos de policiais mulheres.”
(idem: 58/9).
A postura da policial feminina deveria seguir padrões determinados, para garantir sua
moralidade e integridade. Não era qualquer mulher que deveria fazer parte do policiamento:
como aponta Moreira, em uma discussão entre Esther Ferraz e um deputado:
[...] já incide em erro o Sr. Costa Rêgo, quando coloca na Polícia Feminina a
Angélica – pequena boneca de porcelana, quebradiça, fútil e inexperiente
como uma “debutante” que aguarda seu primeiro baile, e cujo programa
diário se esgota com as visitas à modista, à massagista, à manicura, ao
cabeleireiro, sonhando com a eventualidade de ser eleita “glamour girl”,
garota 53”, ou “miss planalto”. Pois a Polícia Feminina não é mesmo para a
Angélica, para nenhuma Angélica do mundo, que o papel da Angélica é o de
brilhar nos salões, nas praias e nas piscinas, atraindo olhares para seu
encanto e graça, exigindo proteção para sua fragilidade. A Polícia Feminina
requer mulheres adultas, independentes, experientes – como tantas que
conheço – que tem olhos abertos para tôdas as realidades da vida, sabem
como enfrentar essas realidades e possuem aquelas qualidades de
inteligência, de caráter e de coração indispensáveis a quem pretende
esquecer-se de si para servir ao próximo e ser útil a coletividade. (idem:
79/80)
Subordinado inicialmente a Guarda Civil, o Corpo Feminino de Policiamento tinha
suas características administrativas, de proteção e previdência muito bem marcadas como
funções necessárias das policiais. Ao contrário do que era então a Força Pública, que ficara
então responsável pelo patrulhamento ostensivo das cidades. Uma das justificativas da
inserção feminina na Guarda Civil era tirar da responsabilidade dos homens as ações “menos
nobres” de administração, permitindo que a ação destes ficasse cada vez mais restrita as
“atividades fim”.
A figura feminina tinha então, o intuído de dar uma fachada civilizatória à polícia da
época. Por ser símbolo de ordem e moralidade, as mulheres representavam as ações
civilizadas de atuação com a população, ou seja, menos violentas, mais comedidas e
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controladas, não só pelos superiores, mas por elas mesmas e por toda a população. Devido a
isso, quando uma mulher praticava um ato violento contra qualquer cidadão, tal ato causava
extremo estranhamento e repulsa por parte da população. Como relata Moreira (2011), em um
determinado momento, logo após a criação do Corpo Feminino de Policiamento, uma policial
foi flagrada pela população agredindo uma moradora de rua. Tal fato causou comoção, uma
vez que uma mulher não deveria agredir outra. Houve uma quebra da imagem frágil e
maternal que a policial deveria exercer no cuidado com a população também frágil e indefesa.
Essa restrição do trabalho dos policiais femininos (apesar de mulheres, são chamadas
comumente por elas e seus pares de “policial feminino”) ou Fox2 é relatada tanto na principal
pesquisa realizada sobre a inserção da mulher na PMESP, quanto nas falas das policiais
entrevistadas nesta pesquisa. Mesmo havendo uma distância de mais de 40 anos desde a
primeira mulher policial da instituição, as soldados entrevistadas ainda relatam tais restrições,
na atuação, no fardamento e os preconceitos da época, o que mostra que a história dessas
mulheres ainda é referência, de alguma forma, ainda hoje. Uma das entrevistadas relata que se
não houvesse oportunidade de tratar sobre a história das mulheres na polícia, quando
chegassem aos Batalhões de Policiamento Femininos, as comandantes faziam questão de
relatar e manter presente a história das policiais até então.
Esse contexto histórico é trazido nos discursos principalmente para diferenciar o que
seria o contexto dessas mulheres hoje: livre concorrência nos concursos e livre concorrência
para ascensão na carreira. Porém, foi apenas no ano de 2013 que foi realizado o primeiro
concurso em igual concorrência entre homens e mulheres para o ingresso na carreira: até
então, existia uma cota máxima de mulheres que poderia ingressar a cada novo concurso
realizado. Isso se devia ao fato dos quadros do efetivo policial serem separados, ou seja,
existia um quadro do efetivo masculino, com cerca de 90% das vagas e outro quadro do
efetivo feminino, com cerca de 10% das vagas.
Algumas coisas pra gente eram limitadas, hoje não é mais. Porque a própria
constituição estadual limitava. Um exemplo, o maior exemplo: é, a
constituição do estado diz que pra ser comandante geral o coronel tem que
2
Outra nominação dada às policiais, cuja justificativa ainda é diversa. Entrevistas exploratórias realizadas com
policiais na cidade de São Paulo indicam que o termo não é estranho às policiais, porém, não sabem ao certo o
porquê são assim chamadas. Ao perguntar se há alguma relação com a tradução direta do inglês para “raposa”,
foi negado imediatamente. Em outras entrevistas a justificativa para o termo foi o código internacional também
usado pela PMESP, o “Código Q”, no qual a letra F é traduzida como Fox.
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ser QOPM: quadro de oficial policiais militares. As mulheres eram quadro
de oficiais policiais femininas militares, então até não modificar tudo isso, eu
não podia, por lei, ser comandante geral. Hoje pode. (Policial feminino,
oficial, reformada).
A justificativa para tal era que a inteligência da PMESP realizou estudos que
justificavam o número expressivamente menor de mulheres na instituição, mas a entrevistada
em questão, não sabia dizer quais estudos e baseados em quais elementos. Mas ela própria
tem uma justificativa: a necessidade de força física para atuação policial restringe em muito a
presença da mulher na PM.
O feminino, ela vai ter atuação um pouco mais específica do que o
masculino. Porque o masculino, não pode dar geral em mulher...entendeu?
Então cada equipe tem que ter um feminino. Mas não seria coerente, por
exemplo, ter uma equipe inteira só de mulher. Até por conta da necessidade
da força física e tudo mais que é necessário e que a mulher não tem a mesma
capacidade física que o homem.(Policial feminino, praça, aposentada).
A valorização da força como a principal característica de um policial militar, ou ao
menos, saber usar de sua força física, para proteger a população e a si mesmo, mostra qual a
importância do biológico, do físico para diferenciar e demarcar a separação das atuações na
instituição. “(...) a mulher, como o homem, é seu corpo, mas seu corpo não é ela, é outra
coisa.” (BEAUVOIR, 1970:49). Ou seja, estar sujeito a seu corpo não é um problema: todos
estão presos, no limite à sua própria biologia. Mas à mulher, cabem funções que a tiram de
seu próprio corpo, que a levam a obrigações sociais que extrapolam sua individualidade e seu
próprio organismo.
Para além das mudanças latentes quando da unificação das funções como, por
exemplo, a inserção das mulheres nos mesmos locais de trabalho que os homens, a
necessidade de adequar batalhões e prédios para que elas pudessem ali trabalhar. Os policiais
até agora entrevistados entendem que a instituição como um todo está passando por mudanças
e isso afeta diretamente o trabalho dos policiais, principalmente aqueles que exercem funções
de policiamento ostensivo, ou “de rua”. No discurso sobre o policiamento atual, há uma
junção nas funções até então existentes, fazendo com que seja “trabalho de polícia” as funções
ostensivas e as de “cuidado”. Homens e mulheres policiais foram alocados discursivamente
na categoria “policiais militares”, talvez como uma tentativa de minimizar as diferenças no
trabalho policial até então existentes.
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As mudanças apontadas estão voltadas ao trato com a população, expondo sempre que
a atuação comunitária tem sido prioridade de atuação policial. O trabalho feminino estaria em
destaque nesse cenário por ter uma história de assistencialismo e policiamento comunitário,
porém, não há indícios de que mais mulheres ocupem as funções comunitárias da polícia. Tais
mudanças são mais apontadas pelos homens entrevistados que as mulheres.
Figura 4 – Capa da revista Segurança Policial na edição em homenagem às policiais
Fonte: Página na rede social da revista Segurança Policia3.
Porém, é constante que as/os entrevistados destaquem a importância do trabalho
repressivo a partir da força física da PM. Sendo esse trabalho importante, não seria possível
que as mulheres ocupem todas as funções ou se tornem a maioria do efetivo, pois isso
inviabilizaria a atuação policial. Apesar disso, as imagens que circulam em grandes redes
sociais, jornais e revistas, exaltam hoje a imagem de uma policial “guerreira”, portando
armas, algo bem diferente do que existia até a década de 1990, como a imagem acima. Porém,
não há um abandono completo de elementos socialmente considerados femininos na
3
Acesso
em
31/maio/2015
<
https://www.facebook.com/pages/Revista-Seguran%C3%A7aPolicial/1403305303220033?sk=photos_stream>.
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representação das policiais: a maquiagem (destaque ao batom), as crianças, o cuidado, são
algumas das características ainda representadas na imagem da mulher policial, como mostra a
figura a seguir.
Figura 5 – Imagem de exaltação das mulheres policiais em uma página na rede social voltada
a homenageá-las
Fonte: Página Mulheres de Farda em rede social 4.
Todas as mudanças que ocorreram que envolvessem as mulheres policiais são tratadas
pelos policiais entrevistados como uma “evolução social”, pois a PMESP acompanharia tais
mudanças, seria algo “natural” ao curso social. Como se chamam de “legalistas”, tudo que
está presente e determinado por lei, tratado por eles como algo a ser cumprido e seguido. A
maioria dos policiais, homens e mulheres, apontam uma não atuação feminina visando
mudanças, mas uma determinação que ocorre a partir do Comando Geral da PMESP e esta
que acompanharia as mudanças sociais para determinar a atuação da polícia como um todo.
Porém não é uma fala unanime. Algumas entrevistas indicam que houve movimentos,
mesmo que isolados, para acelerar as mudanças em relação ao gênero na PMESMP. Em uma
das falas das entrevistadas, por exemplo, a oficial descreve o momento de sua formatura há
alguns anos. Ela tinha o sonho de ser parte da cavalaria da PM, grupo com funções
consideradas de elite e masculinas, e nenhuma mulher havia feito o curso até então. Ela conta
que precisou se esforçar e mostrar sempre suas capacidades em acompanhar o restante da
4
Acesso
em
31/maio/2015
<
https://www.facebook.com/fardadas/photos/pb.162099723879825.2207520000.1433098985./775143005908824/?type=3&theater> .
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turma, toda composta por homens. Ao final do curso, ficou em primeiro lugar, o que lhe daria
direito a ganhar o sabre da cavalaria, símbolo de honra do grupo.
E como primeira colocada, faria jus receber o sabre das mãos do governador.
Só que por conta do quadro, que até então, existia um quadro feminino. Um
quadro gerado por questão de gênero, que é uma coisa meio absurda, até
constitucionalmente. Mas enfim, era um quadro feminino....apesar de toda
formação foi igual, todo treinamento foi igual, a gente foi submetida às
mesmas coisas que os rapazes. (...) Eu acabei por não recebendo o sabre de
primeira colocada de cavalaria, então o segundo colocado foi lá e recebeu. E
eu lembro que eu chorei de raiva na minha formatura, pelo fato assim de
entender que eu me fazia merecedora e não tive o reconhecimento na época,
por quê? Porque era mulher. Isso me causou, assim, uma frustração, mas ao
mesmo tempo me deu mais vontade ainda de falar assim: nós somos capazes,
a gente tem como fazer uma carreira bonita, então, me tornou mais
determinada ainda, em vez de desanimar eu fiquei mais...querendo fazer as
coisas. (Policial feminino, oficial, administrativo).
A determinação da mudança das funções, bem como a unificação dos quadros do
efetivo é legal e algumas falas das entrevistadas indicam que houve movimentos isolados para
que a mudança acontecesse antes mesmo dos anos 1990, mas sem mais explicações, elas
dizem não ter sido possível fazer a unificação dos quadros e funções.
A partir das mudanças, legalmente as mulheres podem exercer e ocupar os mesmos
cargos que os homens ocupam e exercem na PMESP. Devido à estética militar, muitas
oficiais acabaram por “comer balão”, como eles chamam, ou seja, subiram de patente antes
que seus colegas homens de turma. Isso se deu quando da unificação dos quadros, permitindo
que mulheres mais novas de instituição chegassem a postos mais altos pela necessidade de
ocupar os cargos. De acordo com os relatos dos entrevistados, em quase sua totalidade, esse é
o principal motivo de ainda haver determinados setores que mal vejam a presença feminina na
polícia e seria uma questão de tempo, até que as turmas se igualassem nas hierarquias, para
que não houvesse quaisquer outros problemas em ter mulheres em todas as funções policiais.
Considerações finais
A passagem das formas de policiamento das policiais na PMESP se deu de forma
gradual e contínua ao longo dos recém-completados 60 anos da primeira turma de mulheres
na instituição. Essas mudanças refletem também as formas de policiamento que a própria
instituição adotou ao longo dos anos. As principais justificativas seguem a linha de atender
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aos pedidos da sociedade e uma tentativa de aproximação da PMESP e sociedade. Mas
também não significam que ao mudar, abandonaram por completo antigos padrões.
Os discursos hoje não giram mais em torno do gênero dos policiais: a necessidade de
uma aproximação com a população seria uma obrigação de todo e cada policial, destacando
assim, uma tentativa de mudança institucional geral. Mas o movimento da atuação feminina
não deixa de existir apesar disso: contratadas inicialmente com funções assistenciais, muitas
mulheres tiveram que se adaptar às novas funções ainda no exercício da carreira, em posição
de comando. Ou seja, muitas policiais, que entraram sob a estética de cuidado e
assistencialismo tiveram que adotar a lógica do policiamento ostensivo a partir de meados dos
anos 19805.
O que, segundo alguns relatos, causou conflitos entre as policiais: as mais antigas
entendiam que as funções das mulheres deveriam ser as mesmas, sendo as armas das
mulheres “um sorriso e o batom”, ou seja, que elas não deveriam nem usar armas de fogo. As
policiais que entraram a partir da década de 1980, já ingressavam com outros interesses e
vidões do que deveria ser o policiamento: mesmas funções que os homens já exerciam e
vontade do “combate ao crime”.
A atuação feminina na PMESP hoje se encontra em todos os ramos existentes do
policiamento ostensivo e nas divisões administrativas. As mudanças nos padrões de
policiamento feminino refletem em alguns pontos sobre a própria atuação da polícia como um
todo. A questão neste trabalho não é avaliar se as mudanças são ou não efetivas, mas mostrar
as diferentes formas de discurso sobre esse policiamento. As diferentes representações das
imagens das policiais ao longo dos anos de sua permanência na PMESP retratam como os
discursos sobre o policiamento militar no estado de São Paulo também mudam de alguma
forma. Mostram, de forma inicial também, as estratégias que as policiais mobilizaram para
permanecerem na profissão.
Referências
5
Apesar de legalmente só serem autorizadas a realizar funções assistencialistas, a partir de meados da década de
1970, algumas atuações pontuais passaram a ser realizadas pelas policiais, como o policiamento do trânsito e
segurança em estádios.
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1
ECONOMIA SOLIDÁRIA E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA:
IMPASSES E AVANÇOS DA EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL DA
SECRETARIA NACIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA.
Fernanda Cristina de Carvalho Mello
Universidade Federal de São Carlos
[email protected]
Agência financiadora: CNPq/Capes
GT 03: Conflitos Sociais, Instituições e Política – Dra. Isabel Georges
Resumo
Esta proposta pretende discutir a democracia participativa no Brasil mediante a ampliação do
processo democrático a partir da incorporação de novos sujeitos advindos dos movimentos
sociais a partir da década de 80 e as vivências e resultados que passam a ser construídos a
partir do momento em que são institucionalizados junto ao Estado. Esta reflexão é
concretizada pelo estudo da economia solidária e a criação da Secretaria Nacional de
Economia Solidária (SENAES) dentro do Ministério do Trabalho. O objetivo central é
analisar o encontro de duas lógicas políticas diferentes – uma perspectiva autogestionária que
ampara a administração da SENAES; e uma perspectiva hierarquizada e de gestão
democrática baseada no princípio da autoridade política representada pelo Estado.
Os dilemas do processo democrático-participativo são um dos temas a serem refletidos pela
teoria democrática contemporânea. Neste contexto político, algumas iniciativas alcançam
participação direta na governança pública a partir do momento em que são institucionalizadas,
de forma que, se por um lado configuram-se como um avanço na democracia de baixa
intensidade (SANTOS, 2009), por outro, abrem um novo campo de disputas dentro da
máquina estatal, pois são novos atores em ação, com novas perspectivas de participação e
representação política, sobretudo quando no próprio nome da iniciativa institucionalizada está
inscrita a palavra ‘solidária’.
A partir do pressuposto de que a SENAES representa a materialização de possibilidades de
vivências democráticas dentro do Estado, propomos reflexões sobre as perspectivas atuais da
governança participativa e a prática no campo da democracia vislumbrada pela
institucionalização da SENAES.
Palavras-chave: Economia solidária; Democracia; Democracia participativa; Secretaria
Nacional de Economia Solidária
1. Introdução
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Em um regime democrático, ‘o estar em transformação’ é seu estado natural. A
democracia, em sua definição formal, é concebida como uma forma de governo baseada em
um conjunto de regras que pautam a formação das decisões coletivas, em que a participação
dos interessados está prevista pelo Estado. Entretanto, o período atual merece ser analisado
através de teorias que conceituem a democracia como uma forma de sociabilidade e não
somente como uma forma de governar. Desta forma, a democracia atual refere-se ao próprio
princípio da política.
Segundo SANTOS (2005), as últimas décadas foram anos de intensa experimentação
social, com a afirmação política de novos sujeitos bem representada pelos movimentos
sociais, sobretudo nos países da América Latina a partir da década de 1980. Estes movimentos
foram e continuam sendo formulações de alternativas em maior ou menor intensidade de
oposição ao modelo de desenvolvimento econômico e social do capitalismo e os impactos
sociaisvalem ser analisados, visto que as transformações que ocorreram ao longo da história
são decorrentes das diferentes formas de participação vivenciadas pelas sociedades e por seus
Estados.
Ao longo da história brasileira, o sufrágio foi um dos maiores argumentos para o
Estado reiterar que a democracia está presente no cenário político, porém, todas as outras
dimensões da prática social perderam força política e, com isso, foram mantidas longe do
exercício da cidadania, configurando, desse modo,a oposição marcada entre Estado e
sociedade civil e a predominância da democracia representativa no cenário político.
Porém, a história também se constrói a partir da busca pornovos espaços para o
exercício de novas formas de democracia. Uma das possíveis vivências da democracia
participativa se dá através da ampliação dos canais institucionais de participação e
acolhimento de demandas advindas da sociedade, de forma a proporcionar um melhor
desempenho de governo.(ROMÃO, 2014).
No Brasil, a prática dademocracia – denominada como nova por ter uma participação
mais efetiva nas instâncias de tomadas de decisão e poder - é vivenciada por inúmeras
iniciativas, dentre as quais destaca-sea economia solidária.
Neste contexto, a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) no
Ministério do Trabalho em 2003, abre caminho para uma maior presença social, legitimidade
política e ampliação da democracia participativa. A partir do marco jurídico da SENAES, a
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economia solidária torna-se institucionalizada e cria um espaço governamental para ampliar a
capacidade de democratizar as decisões em políticas públicas.
A formação deste novo campo político traz uma nova agenda para o processo
democrático, pois a SENAES é uma criação que parte de um movimento social, ou seja, da
sociedade civil e ocupa um lugar dentro do Estado, de forma que esta institucionalização nos
leva às seguintes reflexões: como uma secretaria construída a partir de valores de autogestão e
democracia participativa dialoga com os mecanismos de controle democrático que pemeiam o
Estado? Quais são os principais dilemas e êxitos de uma secretaria concebida a partir dos
valores da economia solidária que vislumbra a emancipação1no diálogo com o governo
federal?
2. Definição do problema e objeto
Este trabalho está inserido dentro do projeto de doutorado ainda em construção e
busca retratar alguns dos dilemas do processo democrático-participativo que pode ser
refletido pela teoria democrática contemporânea. Tendo isto como uma informação
importante, visto que ainda não há resultados a serem analisados, a pretensão é discutir o
contexto político de algumas iniciativas que alcançam participação direta na governança
pública a partir do momento em que são institucionalizadas, de forma que, se por um lado
configuram-se comoum avanço na democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2009), por
outro, abrem um novo campo de disputas dentro da máquina estatal, pois são novos atores em
ação, com novas perspectivas de participação e representação política, sobretudo quando no
próprio nome da iniciativa institucionalizada está inscrita a palavra ‘solidária’.
O movimento democrático é assim um duplo movimento de transgressões dos
limites, um movimento para estender a igualdade do homem público a outros
domínios da vida comum e, em particular, a todos que são governados pela
ilimitação capitalista da riqueza, um movimento também para reafirmar o
pertencimento dessa esfera pública incessantemente privatizada a todos e qualquer
um. (RANCIÈRE, 2014, p. 75).
1
O sentido de emancipação aqui adotado parte do conceito de SANTOS (2009, p. 107), e é definida como
“formas de emancipação que são construídas a partir da vivência de sociabilidades alternativas em cada um dos
espaços estruturais. A emancipação (também definida pelo autor como novo senso comum solidário) deve ser
conquistada a partir de três dimensões: a solidariedade (dimensão ética), a participação (dimensão política) e o
prazer (dimensão estética) e é contrária à qualquer regulação rígida.
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Nestes movimentos de transgressões de limites, a ampliação da vivência participativa
contempla as ambiguidades contidas em todo processo de transformação social. Nas palavras
de SANTOS (2009, p. 175):
Embora todas estas transformações tenham contribuído para fragilizar ainda mais as
condições para o exercício da solidariedade horizontal a que o princípio da
comunidade faz apelo, deve salientar-se que, nas últimas décadas, este princípio foi
de certo modo reativado, não através de uma forma derivada e centrada no Estado,
como no segundo período, mas de uma nova forma aparentemente mais autônoma.
Trata-se de um processo bastante ambíguo que abrange um vasto espectro de
cenários ideológicos.
O movimento da democracia pretende, dessa forma, dissolver os marcos de referência
da certeza - representados pela ordem tradicional -e apontar cada vez mais para uma
democracia com outros padrões de representação e espaços de discussão, impulsionados pelo
intuito de transformação social (RANCIÈRE, 2014).
Na onda das potências de transformação a economia solidária se insere, visto que o
Brasil atualmente possui mais de 21 mil grupos produtivos e envolve pelo menos 1,8 milhão
de trabalhadores2. A partir da década de 1990, tais iniciativas começaram a passar por um
processo de consolidação que não ficou restrito às práticas cotidianas e demonstraram a
necessidade de uma maior articulação entre os empreendimentos, concretizado por meio de
conferências municipais, estaduais e nacionais configurando um relacionamento mais amplo
com as esferas estatais.
Neste contexto, aSENAES nasce diante da perspectiva de uma necessária integração
entre Estado e atores da sociedade civil, criando um processo que se sustenta mediante a
busca por uma maior efetividade da execução das políticas públicas de economia solidária.
O cenário da transição democráticaestá concretizado e, isto posto, vale investigar a
qualidade da relação estabelecida entre os atores. Tal análise não deve ficar restrita aos
espaços institucionais, pois a democracia habita justamente a intersecção entre um conjunto
de práticas cotidianas de relacionamento entre sociedade civil, Estado e demais instituições
políticas, sendo que constitui-se (a democracia) como“nem uma sociedade a governar nem um
governo da sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve,
em última análise, descobrir-se fundamentado(RANCIÈRE,2014,p. 65).
2
Estes dados são do Atlas da Economia Solidária de 2007, o dado oficial mais recente. Considera-se que estes
números tenham ampliado, seguindo a linha crescente: em 1980 havia 468 empreendimentossolidários;de 1980
até 1990 surgiram mais 1.903 novos empreendimentos, e de 1991 a 2000 mais 8.554. No período compreendido
entre 2001 e 2007, outros 10.653 EES foram criados.
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5
A partir disso, começa a se configurar os pressupostos e os objetivos: analisar os
avanços e impedimentos da vivência concreta da democracia participativa que ocorrem à
SENAES.Partimos da hipótese de que a institucionalização da SENAESé uma efetiva
participação democrática em nível federal, entretanto, somente a institucionalização é a
garantia de uma ampliação do processo democrático, fatores que valem ser analisados.
3. Objetivo
O principal objetivo é investigar a interface entre o movimento da economia solidária,
representada na institucionalização da Secretaria Nacional de Economia Solidária e a gestão
pública federal, diante do encontro de duas perspectivas: uma perspectiva autogestionária e
participativa, por um lado; e uma perspectiva de gestão democrática, baseada no princípio da
autoridade política, característica predominante do Estado brasileiro.
Pretende-se também discutir como a SENAES vem buscando construir uma agenda
baseada em alternativas em relação à simples forma da constituição e do Estado, envolvendo
também processos de autonomia, conquista e consolidação de discussões e implementação de
ações em diferentes dimensões da sociedade civil.
Para tanto, a realização deste objetivo se apoia em duas perspectivas gerais: a
discussão da ampliação do processo democrático no país a partir da expansão das instâncias e
mecanismos de participação institucional; e os avanços e limites que esta institucionalização representada aqui pela economia solidária, vivenciam concretamente na execução de suas
políticas públicas.
4. Forma de abordagem e Metodologia
SANTOS (2002) alerta para a construção de um ‘modelo de produção e sociabilidade’,
no qual despontam formas inovadoras de produção mais justas,solidárias, democráticas e
capazes de criar novos padrões de convivência humana, sendo que as políticas públicas de
economia solidária vislumbram tais padrões.
Dentro deste cenário de experimentação de formas emergentes de sociabilidade,
gestão e participação, a criação da SENAES em 2003 torna-se protagonista de uma travessia
entre a democracia de baixa intensidade (SANTOS, 2007) para uma democracia mais plural e
participativa.
Para apontar os eventuais problemas que podem ocorrer na participação democrática
junto ao Estado, BURGOS (2007), enfatiza que os atores, ao defender projetos na esfera
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pública a partir da perspectiva de uma ação coletiva mais ampliada, disputam espaços de
poder. Diante disso, a participação nos processos de criação e gestão de políticas traz um
novo terreno que exige diferentes estratégias e outro nível de complexidade, de forma que
sejam evitadas possíveis situações onde as atividades da SENAES transformem-se em meras
políticas compensatórias absorvidas pela regulação estatal. É a demodiversidade (SANTOS,
2007), caracterizada por uma relação mais estreita entre democracia representativa e
participativa que constrói espaços institucionais efetivos.
Entretanto, vale ressaltar que o Estado ainda ocupa uma posição central, porém os
espaços de participação são protagonistas de uma nova configuraçãopolítica da relação Estado
e sociedade.
No caso da economia solidária, esta participação se dá na representação política da
SENAES mediante a complexificação que a própria abertura democrática trás em si, visto que
há maiores demandas que começam a aparecer, assim como novos atores e dinâmicas.
5. Conclusão e análise dos resultados
Como esta pesquisa configura-se em um projeto de doutorado em andamento, os
apontamentos estão ligados sobretudoà escolha das referências bibliográficas que
contextualizam a discussão no âmbito do movimento da democracia,entendida como uma
forma de sociabilidade e, dentro desta perspectiva, as vivências concretas da democracia
participativa com seus atores e dinâmicasda economia solidária. Desta forma, os estudos se
debruçam em:
a) cenário de transição atual no Brasil caracterizado pela ampliação da democracia
participativa, buscando monitorar os avanços e retrocessos;
b) institucionalização da SENAES como um dos resultados desta participação
democrática e as limitações e possibilidades que estão ligadas à configuração e dinâmica do
embate entre controle democrático por parte do Estado, que buscou, ao longo da história do
Brasil, gerenciar e controlar as instâncias de participação e a ampliação da participação da
SENAES no sentido de minimizar as distâncias entre representação e participação.
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1
PENSANDO A NOÇÃO DE FAMÍLIA A PARTIR DE GRUPOS DE
MORADORES DE RUA
Natália Maximo e Melo (UFSCar)*
[email protected]
FAPESP
GT Conflitos Sociais, Instituições e Politica
Resumo: Este trabalho discute os significados atribuídos à família entre dois grupos de
moradores de rua. A família é considerada base da sociedade, núcleo comunitário mais básico
a partir do qual os indivíduos se relacionam com as demais esferas da sociedade. Por isso, é a
família o principal alvo das políticas assistenciais. No entanto, a política assistencial para a
população em situação de rua define este público pela fragilidade ou ausência dos vínculos
familiares, extrema pobreza e uso do espaço público para moradia ou sobrevivência.
Pesquisas estatísticas realizadas por órgãos públicos demonstram que esta é uma população
majoritariamente masculina, que tem como principais causas para a vida na rua a ruptura com
a família, uso de álcool e drogas e o desemprego. Diante disso, a reconstituição dos laços
familiares aparece como um dos principais objetivos da política social para a população em
situação de rua. No entanto, ao pressupor a família como núcleo da sociedade desconsideramse as várias relações possíveis de serem constituídas na vida da rua. Este trabalho visa, então,
trazer elementos empíricos a fim de refletir acerca de algumas noções de família identificadas
na vida da rua. A pesquisa foi realizada a partir do acompanhamento de dois moradores de rua
membros de dois distintos grupos de rua na cidade de São Carlos-SP.
Palavras-chave: Política Assistencial, população em situação de rua, família.
1. Introdução
Neste texto, pretendo trazer subsídios para uma discussão acerca da diversidade de
significados da família entre moradores de rua. O interesse em dedicar esta reflexão às noções
família surgiu como parte da pesquisa de doutorado que tem como objetivo a compreensão da
política assistencial pública destinada a essa população. Inevitavelmente a pesquisa empírica
traz elementos que permitem pensar e contrapor a diversidade de situações vivenciadas na rua
às categorias fixas dadas pela política pública.
*
Doutoranda em Sociologia pela UFSCar, realiza pesquisa a respeito da política assistencial para
população em situação de rua e usuários de drogas.
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2
A Constituição Federal afirma ser a família a base da sociedade brasileira 1 e a entende
como núcleo da reprodução social que deve ser protegido pelo Estado. Sendo assim, a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS) na sua lógica interna apresenta um conjunto de
conceitos a partir dos quais todos os serviços e programas assistenciais são elaborados: a
família2 e o território3 das políticas públicas. Para este paper irei me atentar no conceito de
família embora o território também seja um aspecto a ser pensado em relação a moradores de
rua uma vez que eles são encontrados em locais específicos da cidade e ali constroem relações
relativamente fixas.
A «População em situação de rua» como público-alvo das políticas de assistência é
definida como uma população heterogênea, extremamente pobre, tendo vínculos familiares
interrompidos ou fragilizados; inexistência de habitação regular, e que usa dos espaços
públicos como moradia e sustento, assim como, as unidades de acolhimento como moradia
provisória (Decreto n. 5073, 2009).
Como se percebe, a falta da família é parte da própria definição dessa categoria que
define este público-alvo da política pública de assistência social. Quando se toma os dados de
qualquer pesquisa sobre população em situação de rua, tem-se que um dos principais motivos
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.” (Constituição Federal de 1988).
2
O conceito presente na Política de Assistência Social é a matricialidade sociofamiliar. Ele significa que
a família é considerada base da sociedade, núcleo comunitário mais básico a partir do qual os indivíduos se
relacionam com as demais esferas da sociedade. Por isso, é a família o principal alvo das políticas assistenciais.
E a partir desse conceito vários serviços assistenciais e programas são direcionados às populações pobres
direcionadas a famílias ou a alguns de seus integrantes. Por exemplo, crianças e adolescentes (por exemplo, o
Programa de Erradicação do Trabalho infantil e o Projovem), mulheres (serviço de proteção a mulheres vítimas
de violência e o benefício do Bolsa Família), idosos (Benefício de Prestação Continuada). Entre os serviços a
famílias, por exemplo, há o de Proteção de Atendimento à Família e ao Indivíduo (PAEFI) e o de Proteção e
Atendimento Integral à Família (PAIF). Já como benefício, o mais conhecido é Programa governamental de
transferência de renda do país, o Bolsa Família.
3
Segundo os princípios desta política pública, o recorte territorial é uma forma de atingir o
beneficiário considerando que ele está inserido em contexto social e comunitário localizado espacialmente. A
identificação de uma família em um território se dá por meio da residência, um endereço fixo. Porém, a própria
definição de população em situação de rua indica para a inexistência de uma residência fixa. Além disso, uma
das características de uma parcela da população de rua é a itinerância, sem sequer ter uma cidade fixa para estar.
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3
para a ida para a vida nas ruas é o rompimento com os laços familiares4.
A Política assistencial se coloca então com o objetivo de preservar e reconstituir laços
familiares e redes de apoio, garantir que a família faça um papel de proteção de seus membros
e não de agressão. Especialmente quando se pensa a questão da população de rua, reatar
vínculos familiares se torna quase sinônimo de sair da situação de rua, pois a família envolve
moradia e sustento de seus membros.
Mas a família do morador de rua é pouco compreendida, seja pelo Estado, seja pela
própria literatura acadêmica onde ela também tende a ser vista em suas rupturas e ausências.
Desde a década de 1970 moradores de rua são estudados na sociologia e a principal
pergunta de pesquisa embutida nos trabalhos até início dos anos 2000 é: como se chega a
viver na rua? Inicialmente, os estudos procuram compreender a mendicância dos adultos
(Stoffels, 1977) e a delinquência das crianças de rua (Ferreira, 1979). Nas décadas de 1980 e
1990, busca-se compreender o processo que leva as pessoas a irem viver na rua a partir da
perda do trabalho, da migração e das rupturas familiares (Neves, 1983, Escorel, 1999,
Rosa,1999, Bursztyn, 2000 e Vieira, 2004). Este processo de ida às ruas é apreendido nas
pesquisas principalmente por histórias de vida.
No que se refere às relações familiares, ressalto o trabalho de Rosa (1999) que leva em
4
Segundo a Pesquisa Nacional da População em situação de rua, divulgada em 2009, 82% dessa a
população é constituída por homens, sendo que entre as causas para viverem na rua, para 29% deles, estão as
desavenças familiares, também o alcoolismo e drogas (35,5%) e desemprego (29,1%). Dos entrevistados pela
pesquisa nacional 51,9% tem parentes na cidade onde vivem porém 38, 9% deles não mantém contato com estes
familiares, 14,5% mantém contato em períodos espaçados entre meses e outros 34, 3% mantém contatos mais
frequentes, diários ou semanais.
No censo feito na cidade de São Paulo (11.821.876 habitantes), que foi realizado segundo outra
metodologia, há outras informações sobre a relação com família. Os desentendimentos familiares aparecem
como a causa mais frequente para a ida para as ruas (42% dos casos) e o desemprego é a segunda principal causa
(16%). Sobre as causas dos desentendimentos familiares, tem-se que 40,4% responderam que são as brigas o
motivo, outros 26,3% disseram ser o consumo de álcool, 23,2% o consumo de drogas e 6,7% alegaram o
desemprego.
Em 2008, em São Carlos, foi feita uma pesquisa pela Prefeitura a fim de produzir dados que
subsidiassem a implementação de uma instituição de atendimento a esse público. Esta pesquisa contabilizou um
total de 95 pessoas em situação de rua na cidade. Dentre estes, 88% eram homens, 49% natural da cidade, outros
24% vindos de outras cidades do estado, 73% tinha familiares na cidade, 48% eram solteiros e 40% divorciados.
Em 2010, foi feita uma nova pesquisa com 40 pessoas a fim de produzir uma melhor caracterização deste
público. Dos entrevistados, 60% se disseram solteiros e 25% separados, 75% tinha algum familiar na cidade mas
67% disseram não ter contato com eles. Aqueles que disseram ter familiares na cidade 43% se referiram a
mãe/pai, 57% tem filhos na cidade, 63% também citaram outros parentes que não cônjuge. Dentre os motivos
alegados para ida às ruas, 45% alegaram os conflitos familiares e 25% o alcoolismo, 17,5% a drogadição e 17,5
alegaram o desemprego.
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conta o processo de rupturas familiares a partir da migração do homem em busca de trabalho
para grandes cidades mas que se vê impossibilitado de retornar à cidade de origem. Também
ressalto o trabalho de Neves (2010) que aponta a perda do trabalho como central na trajetória
de ida às ruas e também das rupturas familiares. Neves fez estudo com famílias pobres e
catadores de lixo para compreender essas relações que se conectam com a vida nas ruas.
Segundo a autora, também a perda da posição de homem-chefe de família e,
consequentemente, os conflitos familiares e a bebida fazem parte desse processo. A
desvinculação com o trabalho e a família é interpretado como central na dinâmica de exclusão
social que leva à vida na rua (Escorel, 1999).
Nos anos 2000, um maior número de pesquisas são realizadas multiplicando os temas
abordados e perguntas de pesquisa. Para dar alguns exemplos: relações de gênero (Rodrigues,
2009), o corpo produzido na relação com a rua (Frangella, 2004), representações sociais sobre
moradores de rua (Giorgetti, 2007), entidades de assistência social (De Lucca, 2007), a
trajetória de vida e identidade existente na população de rua (Mendes, 2007), ação coletiva e
movimentos sociais ( Melo, 2011). E destaco também uma série de trabalhos feitos na cidade
de São Carlos que visam compreender as relações que moradores de rua travam nos espaços
urbanos e nas instituições assistenciais: por exemplo, a relação de moradores de rua e meio
ambiente em espaço urbano (Granado, 2010), trajetórias urbanas de itinerantes e a rede
assistencial (Martinez, 2011), dispositivos assistenciais de gestão dessa população, seja nos
grupos de rua (Oliveira, 2012) ou dentro da instituição de cuidado (Pereira, 2012).
Além da pergunta como se chega a viver na rua também aparece a pergunta como se
mantém uma vida na rua? Como um fenômeno urbano, a vida na rua chama a investigação
para a busca da relação das pessoas com o espaço urbano e também seu movimento nele. Os
modos de vida, as práticas cotidianas são enfatizadas principalmente pelas pesquisas, sem
mais buscar análises das perdas e rupturas, mas sim, enfatizar aquilo que está presente na vida
de rua. Para dar alguns exemplos: não mais se estuda a categoria mendicância mas sim as
práticas do “mangueio”(Martinez, 2011). Não se pensa que o trabalho seja uma categoria
central para a identidade, mas sim, uma dentre outras tantas práticas de sobrevivência,
incluindo atividades ilícitas (Melo, 2011). Não se pensa na falta de moradia, mas sim, as
várias formas de abrigamento, como lonas, marquises, mocós, albergues (Kasper, 2006).
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A falta de família também não é mais o foco das pesquisas quando se busca
compreender as organizações dos grupos que vivem nas ruas e as relações entre si. É
interessante notar que dentro das pesquisas sobre moradores de rua a família de origem não é
pesquisada e a ruptura com ela está sempre presente como motivo para a ida para rua. Ou
ainda, aparecem nos trabalhos famílias de moradores de rua, por exemplo, um casal, ou uma
mãe com filhos (Frangella, 2004). Mas, para a grande maioria de homens adultos que
compõem a população de rua a família aparece como ruptura, seja no casamento ou na relação
com os pais. Quando não se encontram famílias na rua baseadas na conjugalidade ou
consanguinidade, então, se pensa em grupos de moradores de rua, as “bancas” (Martinez,
2011; Oliveira, 2012). As famílias - ou as noções de famílias- estão, assim, misturadas no
convívio da “banca”.
Diante do que foi exposto, este texto pretende trazer para a discussão as noções de
família presentes em “bancas” em moradores de rua como objeto a ser melhor pesquisado e
compreendido em estudos a respeito de moradores de rua. Sem pretender tirar conclusões
precipitadas mas sim apontar o interesse e importância em se fazer essa observação acerca das
noções de família, uma vez que esta população está sob o olhar e cuidados de instituições
assistenciais que desenvolvem concepções de família baseada no entendimento de que ela é a
base da sociedade brasileira, núcleo da reprodução física, social e moral com papel de
proteção e afeto entre seus membros.
Por isso, iniciarei a exposição pelas noções de família que pude captar a partir de dois
moradores de rua na cidade de São Carlos. Pelas trajetórias de dois indivíduos pode-se
perceber diferentes percursos traçados para a ida a rua, com rupturas com a família de origem
e constituição de “bancas” de rua, onde outras concepções de família são possíveis.
2. Noções de família na rua
Os dois personagens principais dos relatos que se seguem são Cláudio e Hilário,
nomes fictícios - assim como todos os demais nomes que vão aparecer nos relatos. Eu os
conheci no período em que trabalhei no Centro-pop em 2010, instituição da política de
Assistência Social destinada a atender moradores de rua. Em 2010, fiz entrevistas com cada
um deles e continuei mantendo contatos com ambos. Por isso, os relatos a seguir são baseados
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nas entrevistas com ambos acrescidas dos meus relatos acerca das trajetórias que ambos
tomaram posteriormente.
Cláudio faleceu ainda em 2010 e Hilário saiu da vida na rua em 2013.
Estes dois personagens do meu relato se encontravam em espaços urbanos e grupos de
rua distintos. Eles não chegaram a se conhecer. Hilário vivia no centro da cidade, na marquise
da Estação Ferroviária, já Claúdio vivia em um terreno baldio de um bairro residencial
afastado no núcleo urbano, à beira da rodovia Washington Luiz. O terreno é chamado por ele
de “matinho” ou ainda de “escritório” por agrupar várias pessoas ao seu redor.
Os motivos para terem ido viver na rua, a ruptura com a família de origem e o
entendimento do grupo de rua, a “banca” como família, ficará explicitado a seguir.
2.1. Trajetória de Cláudio e a reciprocidade da “família” do “matinho”
Cláudio tinha 38 anos e era natural de Jales mas vivia em São Carlos desde os 18 anos.
Estudou até a sexta série. Em 2010, quando o entrevistei, Cláudio vivia na rua havia 3 anos,
sempre em um mesmo local. O local onde se encontrava Cláudio é o Jd. Tangará, bairro
afastado do centro da cidade onde habitava um terreno vazio próximo à rodovia. Do terreno
via-se o fluxo dos carros na rodovia mas a distância era suficiente para não correr risco de ser
afetado por ela.
Em sua infância, Cláudio perdeu os pais e viveu em um orfanato entre os 4 a 12 anos.
Sabe apenas que tem 4 irmãos mas não os conhece. Anos depois o orfanato se transformou em
semi-internato e ele foi viver com uns tios em Jales. Quando adulto voltou para São Carlos e
conseguiu trabalho. Com 19 anos de idade começou a usar álcool e aos 22 passou a fumar
cigarros. Já experimentou maconha e cocaína mas não gostou.
Tem uma experiência de trabalho de cerca de 20 anos sendo a maioria trabalhos
formais. Como garçom trabalhou 12 anos, também já cortou cana sob contrato temporário de
6 meses, o que ao todo somam 3 anos trabalhando com o corte de cana. Também foi técnico
de manutenção de elevadores, operador de máquina e auxiliar de montagem ao longo de 2
anos. Já fez serviços como servente de pedreiro como “bico”.
Cláudio conta sua trajetória de trabalho mostrando que é um trabalhador e diz que
seria fácil conseguir um novo trabalho com sua extensa experiência. Como garçom
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conseguiria bicos aos fins de semana facilmente e diz que gostaria de ter um canto para morar
e trabalhar. No entanto, diz não procura trabalho porque precisa “tomar vergonha na cara”.
Ele acha bom passar o dia no “matinho” e beber com os amigos. Gostaria de poder conciliar
as duas situações, trabalhar e beber com os amigos ali naquele terreno próximo da rodovia.
Em sua fala, sair da situação de rua não seria difícil, bastaria “ter emprego e tudo se
acerta”. No entanto, o contexto é mais complexo. Não seria em um terreno vazio próximo da
rodovia e distante do centro comercial que alguém encontraria trabalho facilmente.
Cláudio ocupou este espaço nesse bairro periférico para ficar próximo da casa da exesposa e de suas filhas. Viveu com uma mulher durante 7 anos e tem duas filhas, porém, tinha
conflitos com a sogra que morava junto. A filha mais velha é de um outro relacionamento da
mulher e a sogra não queria que Cláudio chegasse perto da menina pois ela já está uma
mocinha (12 anos). Esse receio da sogra está fundado no seu histórico de “bagunceiro”, diz
Cláudio. Quando casado, mentia para a mulher dizendo que ia trabalhar até tarde e na verdade
saía para beber com os amigos e encontrar mulheres. Nessas “bagunças” já chegou a ficar
alguns fins de semana sem voltar para casa. As brigas conjugais eram frequentes, e então, ele
saia de casa e ia dormir na rua. Mas depois terminavam por se reconciliar e ele voltava para
casa. Isso aconteceu várias vezes.
Toda vez que brigavam ele ia para a rua até que um dia não houve mais reconciliação e
ele ficou definitivamente na rua. Há 3 anos ele vive no terreno vazio há poucos quarteirões da
casa da ex-mulher.
Ele sente falta das filhas e às vezes vai até a escola para ver se as encontra em horário
de saída da aula, o que gera conflito com a ex-mulher e ex-sogra que não querem mais vê-lo.
No “matinho”, como chama o terreno vazio, Cláudio é o membro mais antigo de uma
“banca” que se formou em torno dele. Ele e seu amigo Altair passam o dia juntos a conversar
e beber pinga. Altair tem pais e irmão morando há 2 quarteirões do terreno mas passa dias
seguidos no “matinho” sem voltar para casa. Ele não rompeu com seus vínculos familiares
mas o grave alcoolismo o impele a procurar os amigos de rua mais do que os pais. Quando
Altair dorme em casa, pela manhã Cláudio vai buscá-lo e o leva para o “matinho”.
Frequentemente um irmão de Altair vai ao “matinho” conversa com ele, a mãe
também vai às vezes levar marmita na hora do almoço para o grupo e quando Altair quer
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voltar para casa o ajudam a andar. Altair tem problemas de saúde grave, suas pernas doem,
incham e formam feridas. Ele não consegue andar direito, precisa sempre ter alguém como
apoio.
A família de Altair gostaria de uma internação para tratá-lo do alcoolismo mas ele não
aceita. Altair tem 34 anos e não tem condição de trabalhar por ter uma saúde muito precária, o
alcoolismo consome todo o seu tempo, seu corpo e sua mente e sequer tem resistência física
para ficar em pé sozinho.
Cláudio e Altair são o núcleo fixo da “banca” que se formou no terreno vazio. Ali
também se reúnem outras pessoas para beber pinga e com eles permanecem com mais ou
menos frequência.
No “matinho” encontrei Durval, um senhor de quase 60 anos que tinha parentes na
cidade mas residência em Avaré. Ele queria retornar para casa mas não conseguia dinheiro
para os dois ônibus necessários até Avaré. Ele dormia em um depósito de pedras não muito
longe dali, onde também fazia alguns serviços. O dono do local deixava que Durval dormisse
no depósito para não ficar na rua. Mas frequentemente Durval passava o dia e noite com os
amigos no “matinho”.
Durval sofria de muitas dores no estômago mas dizia que era porque comia muita
pimenta – o que ninguém acreditava. Em algum momento Durval sumiu e Cláudio não sabia
porquê, pensava que ele tivesse conseguido voltar para Avaré. Ninguém soube mais de
Durval.
Lino, um rapaz na faixa dos 30 anos, trabalhava em um depósito de reciclagem
informalmente onde também podia dormir mas costumava passar algumas horas, e às vezes
dias, com Cláudio e os colegas. Lino tinha irmãs na cidade que o procuravam para ajudá-lo e
queriam sua internação para tratamento do alcoolismo antes de levá-lo para casa. Uma das
irmãs procurou pelo serviço do Centro-pop a fim de conseguir apoio para a internação mas
Lino não aceitou.
Como todos, Lino não tinha boa saúde e convulsionava frequentemente, sendo
atendido pelos colegas do “matinho” que seguravam sua língua e jogavam água na sua
cabeça. Lino sempre se recusava a ir ao hospital.
Rodrigo, também na faixa de 30 anos, havia saído de uma outra “banca” onde foi
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acusado de tocar fogo em um homem que terminou morrendo no hospital. Rodrigo não tinha
familiares na cidade, fazia alguns serviços de servente de pedreiro e pintor, dormia no
“matinho” ou em casa do senhor José, amigo do grupo e também frequentador da “banca”.
José, senhor de mais de 60 anos, aposentado, tinha uma pequena casa de 2 cômodos no
mesmo bairro. Costumava catar material reciclável que acumulava no terreno de sua casa. A
precariedade e sujeira do local era enorme, pior que o “matinho”, porém, com uma construção
com 4 paredes que era sua casa. Ali ele abrigava a si e outras pessoas, e mesmo a todos,
quando necessário.
Amanda também passou a habitar o “matinho”, antes trabalhava cuidando de um
senhor enfermo do bairro e morava na casa dele. Contudo, o senhor morreu e ela foi para a
rua. Sua família não a aceitava e Amanda não mais os procurava. Ela era homossexual e já
usou crack. Teve um filho resultado de um estupro. Ele era o único familiar de quem ela
sentia falta. Amanda era muito séria e não falava de sua vida, apenas se comovia com a
lembrança do filho que às vezes ia até lá vê-la. Ela se envergonhava quando o filho a via ali.
A “banca” também recebia outros visitantes que lá iam para compartilhar a pinga e
depois retornar para casa.
Cláudio dizia que ali não faltava nada para eles, as pessoas do bairro davam comida e
roupas pois sabiam que eles só bebiam pinga e conversavam. Também não pediam dinheiro,
às vezes, só pediam comida. Tudo o que conseguiam em doações dividiam no grupo. Cada
marmita, cada garrafa ou cigarro.
Cláudio dizia que ali era como uma família.
Percebia-se que ele e Altair eram o núcleo moral do grupo. Eram chamados pelos
outros de “os fundadores” e eram quem mais falavam e prezavam por essa regra de
compartilhamento das coisas. Cláudio também deixava claro que ali não tinha crack, só pinga.
Não gostava que pessoas fossem no terreno usar drogas para “não confundir as coisas” pois
polícia aparece quando há uso de crack. Cláudio diz não dar isqueiro para quem quer fumar
pedra e considera que este é um vício caro pois com R$5,00 - preço de uma pedra de crack Cláudio compra um sandwich, um cigarro e pinga. Ele sabe que a pinga lhe prejudica a saúde
como um todo mas “não altera a cabeça” como as drogas, diz ele.
Cláudio sempre foi muito resistente a frequentar instituições assistenciais, assim como
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os seus colegas de “banca”. Porém, quando Cláudio decidia ir até o Centro-pop, outras
pessoas da “banca” o acompanhavam. Cláudio disse não gostar de frequentar essas
instituições porque não tem assunto com as pessoas que lá estão, os assuntos são diferentes,
“o santo não bate”. Não quis explicar o que haveria de diferente e apenas comentou que
prefere conversar com quem já conhece.
Cláudio partilha com a “banca” que se formou ao seu redor um novo sentido de
família onde há divisão de tarefas, de coisas, comida, espaço, ajuda mútua e também um
senso de respeito e justiça, regras em torno de atividades que podem ou não acontecer no
terreno, tudo isso sob a vigilância de Cláudio. Ele era quem afastava as pessoas que não
desejava como usuários de crack ou trecheiros/itinerantes que não soubessem dividir as
coisas. Cláudio era o “fundador” e também o núcleo moral da “banca”. Talvez assim
entendesse desempenhar o papel similar ao de um pai de família.
Trecheiros/itinerantes também eram acolhidos pelo grupo do “matinho”. Viajantes que
passavam caminhando pela rodovia, encontravam o “matinho” e permaneciam por alguns dias
e depois seguiam viagem. É o caso de Cassiano, que ficou na “banca” por cerca de um mês
porque foi acolhido “como em uma família”, como ele disse certa vez. Mas Cassiano não
chegou a seguir viagem, foi atropelado na rodovia. Sua morte marcou a todos da “banca”. As
pessoas se entristeceram e se dispersaram, ou mesmo, passaram a usar o espaço de modo
diferente. Não ficavam mais no “matinho” o tempo todo. Mesmo Cláudio, que nunca saia do
“matinho”, passou a dormir na casa de José, assim como Amanda. Altair dormia na casa da
família, Rodrigo ocupou um carro abandonado, Lino dormia em seu local de trabalho.
Nunca mais se viu todos reunidos no “matinho” como antes, onde chegavam a montar
varais nas árvores, juntar colchões e sofás velhos sobre a terra, fazer fogueira. A morte de
Cassiano foi o início do fim do grupo. Meses depois Altair morreu por motivo de saúde.
Cláudio ficou sem seu melhor amigo e no mesmo ano também faleceu doente. Com a morte
dos “fundadores” a “banca” se desfez. Rodrigo passou a frequentar o Centro-pop, descobriu
um câncer já avançado e meses depois morreu. Lino morreu por atropelamento. Amanda
procurou a mãe novamente. O senhor José não foi mais visto.
2.2. A trajetória de Hilário e a autoridade “familiar” na Estação
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Hilário tem 46 anos, nascido em São Carlos e tem pais e irmãos na cidade. Há mais de
20 anos vive na rua. Deixou a escola na segunda série do ensino fundamental e apenas lê um
pouco. Deixou os estudos porque os pais queriam que ele trabalhasse. Trabalhou desde os 14
anos registrado em carteira até os 23 anos. Já cortou cana e foi motorista de trator. Mas aos 23
anos decidiu levar uma vida própria e sair pelo mundo. Segundo ele, naquela época era fácil
encontrar trabalho em qualquer cidade, na construção civil tinha até alojamento pra morar,
mas depois isso acabou e ele ficou andando pelo mundo.
Hilário tinha problemas familiares, não concordava com os pais e irmãos e desde então
evitar encontrá-los, diz que fica irritado com a convivência com eles. Prefere não explicitar os
problemas mas diz que há irmão que rouba os pais, por isso, Hilário prefere nem saber o que
acontece entre eles.
Hilário fez uma escolha de vida de não viver com sua família de origem. Sua irmã
quando o encontra na rua pára para conversar e o chama a visitá-la mas ele não vai procurar
por ninguém da família.
Hilário “saiu para o trecho” (viajar sem um rumo certo) por onde passou muitos anos
da vida. Ele não conta sua história de forma linear, mas relata várias situações vivenciadas
que lhe foram marcantes. Ele percorreu várias cidades de vários estados, por exemplo, Mato
Grosso, Minas Gerais, Goiás e Paraná.
Em alguns lugares ficou em albergues, outras vezes, fazia alguma amizade e passava a
viajar em conjunto. Ele ficava em um lugar até que se cansasse e partia para outra cidade, de
preferência, para lugares que não conhecia. Seguia conforme surgisse uma oportunidade de
viajar, por exemplo, se alguém o chamasse para ir a outra cidade, Hilário aceitava a fim de
conhecer um novo lugar.
Hilário já fez trabalhos informais como pedreiro e também fazia artesanatos como
brincos, pulseiras e colares de miçangas, penas, etc. Seguia um estilo de vida hippie. O
dinheiro obtido era suficiente apenas para alimentação, cachaça e maconha. Às vezes também
pedia comida ou mangueava5. Assim como se cansava de um lugar e viajava, Hilário também
se cansou de viajar e voltou para São Carlos no fim dos anos 1990. Se fixou na Estação
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Conseguir dinheiro, comida ou qualquer doação a partir de uma história contada, uma
encenação, a história triste, como é chamado por Tomás Melo (2011)
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Ferroviária onde conheceu Willian, senhor de perto de 60 anos, não é nascido na cidade mas
vive nesse território urbano há mais de 15 anos.
Hilário e Willian se alojaram na marquise da Estação Ferroviária. Esta é uma grande
construção do fim do século XIX e atualmente é tombada como patrimônio histórico
municipal. Nela funciona o museu da cidade, arquivo e fundação cultural do município. A
cobertura da marquise os protege da chuva mas não do sol da tarde, do vento e do frio. Há um
espaço grande na marquise onde se pode mesmo colocar colchões, juntar objetos pessoais,
roupas, cobertores.
Na frente da Estação passa uma avenida de grande fluxo de carros e ônibus urbano.
Atravessando essa avenida há uma praça onde se situa uma das principais estações de ônibus
urbano de São Carlos, havendo um guichê da empresa de transporte. A praça serve para os
usuários de ônibus e também para motoristas e cobradores que ali fazem trocas de turno. Ao
redor da praça há comércio com lanchonetes, bares e outras lojas de produtos eletrônicos,
móveis usados, um comércio popular.
Hilário e Willian passam muito tempo juntos nos arredores da Estação, onde também
recebem outras pessoas que vão até lá para compartilhar do abrigo e também da pinga. Hilário
e Willian são muito amigos e se chamam de “irmão”. Willian, assim como Cláudio, é o núcleo
fixo da “banca”, o mais velho, conhecido por “vô” pelos mais novos, enquanto que Hilário às
vezes é chamado de “tio”. Eles próprios não assumem essas nomeações baseadas em relações
familiares e até mesmo ironizam aqueles que os mais novos que os chamam assim, mas
assumem sua relação de “irmãos”. É interessante notar que essas nomeações familiares apesar
de não serem recíprocas, são formas de os mais jovens e novos no território demonstrarem
respeito aos mais velhos e núcleos fixos da “banca”.
Willian já foi casado e teve filhos que já são adultos. Ele não gosta de falar a respeito
do que lhe aconteceu mas se mostrou bastante emotivo e pensativo depois que um dos filhos
veio de outra cidade para lhe visitar. Hilário já teve companheiras na rua mas nunca teve
filhos. Durante um período foi viver com uma mulher em uma casa abandonada para ter
privacidade e sumiu da Estação, porém, tempos depois estava de volta pois o relacionamento
não deu certo e a mulher pegou o trecho.
Este grupo de moradores de rua é bastante visível no espaço urbano, além disso, ocupa
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um prédio público tombado. A Estação é um desses lugares da cidade em que a dinâmica
diurna difere da vida noturna. À noite há uso de drogas e o álcool existe o dia todo.
De dia, Hilário e Willian não costumam ter conflito com os comerciantes locais onde
conseguem doações de marmitas e lanches. Na praça em frente a Estação, Hilário gostava de
tocar violão, vender seu artesanato e jogar dama com os cobradores de ônibus em um
tabuleiro feito no banco de cimento e com peças que eram tampas de garrafas.
Eles
não
passavam o dia todo na Estação e circulavam pelo centro da cidade, mas geralmente se via
algum objeto na marquise marcando a ocupação do local por eles. Alguns objetos como o
violão, Hilário carregava consigo para não ser roubado, mas copos, garrafas e cobertores
ficavam na marquise.
Viaturas de policiais e guardas passam em ronda durante o dia mas não os abordam,
apenas quando há alguma ligação reclamando de algum comportamento do grupo como
brigas, discussões. Nesses casos, os policiais mandam sair do local e circular. Quando havia
esse tipo de abordagem policial, Hilário e Willian costumavam ir para a praça Santa Cruz,
também no centro da cidade. E à noite voltavam para a Estação.
A Estação, assim como o “matinho” do Jd. Tangará, também acolhia trecheiros em
trânsito pela cidade, ou ainda, moradores da cidade que iam passar uma noitada de bebedeira
mas depois retornavam para suas casas. Mas, ao contrário de Cláudio no “matinho”, Willian
partilhava do uso de crack.
Na Estação se encontrava homens mais velhos como núcleo permanente, ao contrário
de “bancas” onde há predomínio de jovens, e os mais velhos não permanecem por muito
tempo. Em geral, os jovens se integravam à “banca” da Estação à noite quando também havia
o uso do crack.
Na Estação dormia Ricardo, com cerca de 30 anos. Ele percorria várias “bancas”,
albergue noturno, Cetro-pop, a favela -onde obtinha drogas- ou ainda, casas abandonadas que
reuniam usuários de drogas. Assim como outros jovens com perfil similar de uso de drogas,
circulava entre espaços da rua, instituições assistenciais e casa de familiares.
A cada 6 meses a “banca” já tinha outra configuração mas sempre contando com a
presença de Willian, o “vô”, quem por poucas vezes saiu da Estação. Por um pequeno
período, Willian foi morar com Hilário em uma casa abandonada, mas por algum conflito
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decidiram sair da casa e voltar para a Estação. Às vezes, Willian também frequentava locais
de uso de crack, o que Hilário nunca fazia.
Em 2012, Hilário adoeceu gravemente devido a um problema gastrointestinal. Disse
que chegou perto da morte e renasceu. Depois disso parou de beber definitivamente, passou
um tempo frequentando as instituições assistenciais e a partir delas retomou o contato com a
irmã, quem o ajudou a conseguir uma moradia. Atualmente, Hilário recebe um benefício
social e mora em um pequeno apartamento alugado da Cohab. Em 2014, se inscreveu no
Programa Minha Casa Minha Vida a fim de conseguir uma casa própria. Diz que seria bom
pois vai poder viajar e sempre ter pra onde voltar, mas não sabe se vai aceitar pois o bairro é
muito longe.
Apesar da mudança de vida, Hilário vai na Estação conversar com o amigo Willian
quase todo dia. Já Willian permanece na Estação, de onde não pretende sair, e continua sendo
o núcleo da “banca” de homens mais velhos e jovens passageiros.
3. Reciprocidade e autoridade nas noções de família na rua
De modo breve, deixo aqui explícito que há estudos sobre família nas ciências sociais
há muito tempo. Desde as considerações de Gilberto Freire sobre a família patriarcal como
elemento fundante da sociedade brasileira, ou ainda, DaMatta em sua distinção entre a casa e
a rua como princípio norteador das relações público-privado no Brasil. A família está no cerne
do pensamento social brasileiro.
Os estudos urbanos também trazem análises sobre a família das pobres urbanos,
imigrantes, trabalhadores. Para citar alguns, há os trabalhos de Durhaim (2004), Correa
(1993) e Zaluar (1994).
As primeiras interpretações da década de 1970 consideravam a família dos
trabalhadores o núcleo da reprodução da força de trabalho explorada pelo capital. A Família
dos pobres urbanos, com sua divisão de trabalho em relação a gênero e geração, tem
importância para as estratégias de sobrevivência das classes populares (Couto, 2005). Sarti
(1996) chama a atenção para os aspectos simbólicos da família onde há valores morais
atribuídos a homens e mulheres e um código de lealdade, reciprocidades e hierarquia da
família tradicional. As considerações sobre o trabalho feminino e a dominação masculina na
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família (Salem, 1981; Santos, 2011) vão se desenvolver em um campo de estudo todo
dedicado a questões de gênero, não necessariamente ligado a família (Couto, 2005).
Nessas reflexões finais como compreensão das noções de família entre moradores de
rua a questão de gênero não é secundária, o que irei considerar é principalmente que a família
é um ambiente moral (Sarti, 1996) com normas, nomeações e princípios valorativos que são
extrapolados para fora dela e também vão aparecer nos grupos de rua.
As duas trajetórias relatadas nesse texto - a de Claúdio e Hilário- apresentam vários
elementos para pensar a vida na rua. A ida para a rua se deu de modo muito diferente para
ambos. Cláudio perdeu os pais, viveu em orfanato e na casa dos tios, de quem não tem mais
notícias. Portanto, não há um grupo familiar duradouro desde sua infância. Tal situação de
vida é similar a outras histórias de moradores de rua que, sendo órfãos, passaram por
internatos ou pela Febem, e se viram, na vida adulta, sem uma rede familiar a quem recorrer
quando o casamento acaba ou quando perdem o emprego.
É na idade adulta que Claúdio constrói uma família ao se juntar com uma mulher e sua
filha e com ela tem mais uma criança. Família (nuclear) e trabalho marcam a vida adulta de
Cláudio. Esse tipo de trajetória de vida é estudada por pesquisas sobre famílias pobres (Sarti,
1996; Zaluar, 1994; Durham, 2004) cuja moral é marcada pela autoridade do homem
provedor e por códigos de reciprocidade entre homem e mulher e também entre pais e filhos.
Para os pobres, a casa é o locus da família e espaço para as obrigações de reciprocidade, onde
há a obrigação de dar, receber e retribuir.
Sarti traz uma passagem em seu livro onde aparece uma briga entre marido e mulher, e
ele, bêbado, a ameaça. Ela com ajuda das filhas já grandes controlam o homem e termina por
dizer “eu não preciso mais de você”. Essa cena é interessante para pensar as rupturas
conjugais que podem culminar com a ida do homem à rua. O homem não provedor perde seu
respeito da família e a hierarquia familiar é alterada.
A quebra do vínculo familiar, principalmente conjugal, devido ao fim da provisão do
homem e do respeito por ele é comum nas histórias de uma geração de moradores de rua da
qual Claúdio faz parte. A identidade de trabalhador, as obrigações da rede familiar tão
presente na moralidade dos pobres (Sarti, 1996) é visível no caso de Cláudio. Acrescido a
isso, há a sociabilidade masculina em torno da bebida e do encontro com mulheres como
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fatores de crise conjugal. Tal sociabilidade é comum entre homens solteiros mas é reprovada
para homens casados, sendo motivo para conflitos conjugais.
É interessante mencionar que é comum ouvir de homens de mais de 30 anos que
começaram a beber e a fumar ainda quando menores de idade a exemplo do pai. Ou ainda, os
hábitos com bebida e fumo se iniciam no início da vida de trabalho compondo o conjunto da
identidade masculina de homem trabalhador, que ao fim do dia de trabalho vai beber com os
amigos. Conciliar trabalho e beber com os amigos faz parte do ideal de vida de Cláudio.
Um outro exemplo que ilustra a formação da identidade masculina tem o trabalho e
vício como um elemento importante que está presente na história de vida de um senhor de
cerca de 50 anos. Ele me contou certa vez que começou a trabalhar na roça com o pai quando
ainda era menino. Quando começou a fumar o cigarro do pai este lhe bateu e disse que “um
homem de verdade deve ter dinheiro para seu próprio cigarro”. Este senhor seguiu uma
trajetória de vida de homem provedor da família mas quando perdeu o emprego, passou a
beber e a mulher o abandonou. Assim foi viver na rua e nela morreu.
Este é mais um exemplo que mostra o resultado da ruptura dessa moral pautada no
homem-trabalhador-provedor da casa que leva a conflitos conjugais e até mesmo à rua.
Já a história de Hilário vai no sentido oposto. Ele não foi abandonado pelos pais na
infância, ao contrário, foi ele quem decidiu por se afastar da família de origem. Ele seguiu, de
início, uma trajetória de filho-trabalhador, que ajuda no sustento da casa. Hilário tem 2 irmãs
e um irmão e provavelmente sentiu o peso das obrigações de homem que deve ajudar a prover
a casa. Teve mesmo que sair da escola para trabalhar ainda na infância.
Hilário aos 23 anos decidiu se afastar da família e do trabalho e seguir um outro estilo
de vida. Para isso, saiu da cidade, passou a ser itinerante.
A maconha já estava presente em sua vida nessa época e de modo importante pois em
todos os seus relatos de lugares onde esteve, a erva está presente, inclusive, ele consegue
avaliar as qualidades do fumo de cada lugar onde passou.
Hilário não casou oficialmente, as mulheres aparecem em seus relatos como cenas
passageiras de quando viveu viajando. Tanto as mulheres como as redes de reciprocidade na
rua são efêmeras. Tem sempre alguém “que passa a perna nos outros” e vai embora.
As mulheres na rua são minoria. Cerca de 15% segundo estatísticas oficiais. A rua é
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um universo masculino. Entre as mulheres é significativa a presença de homossexuais que se
identificam com roupas e comportamentos masculinos, como era o caso de Amanda no
“matinho”. Em grupos de rua, há mulheres que se relacionam com um homem apenas e que
dizem ser seu “marido”. Quando falam em “casar” se referem a um relacionamento fixo,
mesmo que não dure por muito tempo. “Casar” é viver junto, um relacionamento fixo que não
necessariamente envolve uma formalização e nem viver em uma casa, mas pressupõe uma
reciprocidade entre homem e mulher. O homem protege a mulher de outros homens e para ele,
a mulher cuida e obedece.
“Casar” pode implicar buscar uma moradia para o casal, como fez certa vez Hilário
com uma companheira. Há inclusive homens que dizem que só sairiam da rua se casassem e
há outros que realmente saem da rua quando conhecem uma mulher e vai morar com ela.
Nesses casos, ele próprio diz que “casou”.
A mulher fortalece a autoridade de um homem no grupo de rua e também participa dos
pedidos de dinheiro, ou “mangueios”. Se homens jovens conseguem pouco dinheiro na rua
pois sobre eles recai a obrigação social do trabalho, sem o qual são considerados
“vagabundos”, já a mulher, por sua vez, consegue mais dinheiro por parecer mais frágil,
inofensiva para os transeuntes.
A moral dos pobres (Sarti, 1996) baseada na reciprocidade e na autoridade masculina e
geracional fica evidente nos estudos de famílias nucleares, mas esta moral vai além deste
núcleo familiar e também aparece nos grupos de rua, principalmente nas “bancas” de maior
permanência.
Cláudio era quem desempenhava o papel de autoridade, garantidor da ordem e da
reciprocidade entre o grupo do “matinho”, formado por uma maioria de homens de faixa
etária similar e maioria solteiros. Neste grupo, a família aparece como uma representação de
união e solidariedade. Como Cassiano, o trecheiro, comentou, ali ele encontrou uma
“verdadeira família” o que não tinha em sua família de sangue.
Na “banca” de Cláudio haviam idosos que não eram o núcleo da “banca”, por
exemplo, Durval e José. O primeiro devido a seus problemas de saúde era alguém que recebia
cuidados dos outros, já José era o senhor que cuidava dos demais e os acolhia a todos na sua
casa, fazendo dela uma extensão do “matinho”.
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Na Estação, ambiente igualmente muito masculino, mas com maior rotatividade de
membros e com uma clara clivagem geracional, o ideal de família unida e solidária não está
presente. O que se percebe são nomeações baseadas nas categorias familiares. Essas
nomeações como “vô” e “tio” marcam diferenças geracionais e a autoridade é dirigida a
indivíduos específicos, os mais velhos. Se há um conflito entre os mais novos, eles se
resolvem entre si, mas se há um conflito em que o “vô” esteja envolvido, todos vão defendêlo. Ele é a autoridade reconhecida para o grupo.
A igualdade e união é vivenciada apenas entre “irmãos”, Hilário e Willian, que assim
nomeiam sua forte amizade com esta categoria familiar.
Percebe-se que a família é vivenciada na rua como uma metáfora para as relações de
reciprocidade e autoridade e ideais de solidariedade e união que perpassam as relações entre
os membros de um grupo de rua. Se a ideia de família unida do “matinho” expressa igualdade
entre os membros, já na “banca” da Estação as nomeações familiares servem para marcar
diferenciação e autoridade baseada na geração.
Contudo, os grupos de rua não são jamais considerados como família por profissionais
da Assistência Social que levam em conta os laços de consanguinidade e conjugalidade assim
como a residência fixa e não os princípios morais e regras de reciprocidade e autoridade que
perpassam os grupos de rua assim como as famílias pobres urbanas.
4. Considerações finais
Para finalizar, quero fazer ainda algumas breves considerações que apontem como
objeto de estudo a família e as concepções de família de moradores de rua. As pesquisas sobre
população de rua buscaram compreender a vida daqueles que estão vivendo na rua, e dessa
forma, há uma lacuna a se compreender: a visão das famílias que tiveram ou tem algum dos
seus membros vivendo na rua. Acho isso importante, pois, como apontei a há uma geração
que sofreu com a ruptura do padrão moral de família provida pelo homem. Mas também há a
vida na rua como escolha do indivíduo que se recusa a seguir os modelos de família e
trabalho, como é o caso de Hilário. E há ainda uma nova geração que está indo viver na rua
tendo a sociabilidade ligada ao uso de crack e ao tráfico, o que pouco mencionei aqui, mas são
aqueles rejeitados por Cláudio no “matinho” mas aceitos por Willian na Estação, os jovens
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usuários de crack, que estão introduzindo novas características e sociabilidades à população
de rua.
A população de rua é heterogênea, como diz a definição estatal, é também dinâmica, o
que a concepção estatal pouco consegue captar. Na sua heterogeneidade, há clivagens
geracionais, de gênero, etc. E nas suas dinâmicas, há diferentes espacialidades, conflitos e
reciprocidades, etc.
Enquanto os trabalhos sociológicos se preocupam em compreender um lado dessa
relação (família- morador de rua) que é o universo da vida na rua, as regras das “bancas” e
modos de vida; as famílias dos moradores de rua, são observadas e compreendidas por
assistentes sociais, que, quando a serviço do Estado, vão buscar nas residências dos familiares
do morador de rua modos de “reatar os laços”, “devolver às famílias” aqueles que estão na
rua. Nesse raciocínio sair da rua é sinônimo de voltar para a família. A história de Hilário é a
prova de que essa não é necessariamente a “solução” para a situação de rua. Ele saiu da rua
sem que a família faça parte da sua vida, embora o amigo “irmão” da rua, Willian, sim.
Este trabalho não visa trazer conclusões acerca de todas as noções de família e
possibilidades de trajetórias de vida entre moradores de rua mas sim chamar a atenção para a
importância de se continuar a compreender as relações entre família-moradores de rua
(inclusive, suas regras e moralidades) e também estas em relação ao Estado.
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1
FRAGMENTOS DO COTIDIANO DE “MORADORES DE RUA”:
SOCIABILIDADES, CRACK E RELIGIÃO
Josimar Priori (UFSCar/IFPR)1
[email protected]
CAPES
GT 3: Conflitos Sociais, Instituições e Política
RESUMO
O objetivo deste texto é descrever etnograficamente situações do cotidiano de “moradores de
rua” no município de Maringá-PR buscando alargar o debate sobre produção social em torno
da na noção de “moradores de rua”. É inegável há uma rede estatal ou não composta por
inúmeros mecanismos e dispositivos que atuam ao mesmo tempo produzindo e controlando
“moradores de rua”. No entanto, o argumento deste artigo é que para além de gestão,
inúmeras outras coisas estão sendo produzidas nesse contexto. Sustentado pela imersão
etnográfica, busco descrever relações fronteiriças observadas na Praça Raposo Tavares,
logradouro localizado no centro da cidade. Múltiplos sujeitos permanecem ou passam por
essa praça produzindo uma série de fenômenos sociais e de classificações. Além disso, narro
como a partir desta praça se desenvolvem relações entre o que chamo de sujeitos com
experiência de rua e religiosos cristãos.
Palavras-chave: Moradores de Rua, produção social, Crack, Religião.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos tem crescido o interesse das ciências sociais pelo estudo das
chamadas populações marginais e entre elas o estudo dos chamados “moradores de rua” ou,
segundo a nomenclatura governamental, “pessoas em situação de rua”. Especialmente
sociólogos e antropólogos de diferentes centros acadêmicos têm chamado a atenção para a
centralidade que esses espaços e sujeitos têm ganhado para as políticas públicas e para o
desenvolvimento de tecnologias de gestão e controle do conflito social contemporâneo. Via
de regra, tais estudos têm sustentado que a criação de “pessoas em situação de rua” produz um
1
Professor do Instituto Federal do Paraná. Graduado e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Maringá e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UFSCar). Pesquisador do NaMargem –
Núcleo de Pesquisas Urbanas (CEM-UFSCar) e bolsista da Coordenação de Pessoal de Nível Superior.
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2
aparato estatal e não estatal cuja principal característica é o controle social da pobreza e a
manutenção dos conflitos que daí emergem em níveis toleráveis.
O objetivo deste texto é descrever etnograficamente situações do cotidiano de
“moradores de rua” no município de Maringá-PR buscando alargar o debate sobre produção
social em torno da na noção de “moradores de rua”. É inegável há uma rede estatal ou não
composta por inúmeros mecanismos e dispositivos que atuam ao mesmo tempo produzindo e
controlando “moradores de rua”. No entanto, o argumento deste artigo é que para além de
gestão, inúmeras outras coisas estão sendo produzidas nesse contexto e é preciso que o
analista olhe também para elas, a fim de garantir um conhecimento mais amplo e preciso
dessa realidade social.
Sem deixar de considerar a gestão como uma produção importante, o que pretendo
descrever são múltiplas relações travadas nesse espaço, as vezes fronteiriços, fazendo com
que emerja uma quantidade de representações e práticas sociais bem maior que meramente
gestão. É importante salientar que as reflexões aqui tecidas são frutos de uma pesquisa de
campo ainda incipiente, o que me leva a alertar o leitor de que as considerações analíticas aqui
feitas são muito provisórias e passíveis de reformulações. Em certa medida, escrevo este texto
como um relatório parcial de pesquisa.
Ao deslocar o campo de estudos sobre “moradores de rua” de grandes centros como
São Paulo e Rio de Janeiro, optei por realizar uma etnografia no município de Maringá,
cidade do norte do Estado Paraná, onde busco imergir no cotidiano desses sujeitos2. Desde as
primeiras idas a campo, pude observar a multiplicidade de sujeitos que passam parte do seu
dia nas ruas e praças, desenvolvendo atividades de lazer, entretenimento e obtenção de renda.
Assumo que esses sujeitos não simplesmente “moram” ou “sobrevivem” passivamente nas
ruas, mas realizam e produzem um grande número de significados e práticas sociais.
Mergulhar em seu cotidiano, permite, portanto, observar como essas práticas e significados
são produzidos no momento mesmo de sua produção. A pesquisa etnográfica tem me
permitido supor que os sujeitos nomeados como “moradores de rua” estão muito distantes dos
estereótipos atribuídos a esse grupo social. Neste artigo, abordo especificamente a
2
CEFAÏ, VEIGA e MOTA (2011) e DAS (2007) inspiram metodologicamente este trabalho.
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3
liminaridade de sujeitos tomados ora como “moradores de rua” ora usuários de crack3 ou
noias e as relações entre essas experiências de rua e as religiões cristãs4.
A PRAÇA RAPOSO TAVARES: UM ESPAÇO DE FRONTEIRAS
No início do ano de 2013 fui contratado para atuar como sociólogo numa equipe
interdisciplinar (composta por uma assistente social, por um psicólogo e por mim) para
realizar oficinas psicossociais com “moradores de rua” no Centro de Referência especializado
para População em Situação de Rua (Centro POP) de Maringá-PR5. Foi então que soube da
existência de uma política pública para o que foi nomeado de “pessoas em situação de rua” 6 e
que tal política, segundo os documentos estatais, tinha como objetivo primordial a proteção
social e a criação de novos projetos de vida para essas “pessoas”.
Observando essas situações e as dificuldades que tínhamos em efetivar a “proteção
social” e a auxiliá-los na elaboração de “novos projetos de vida” fui cada vez mais
desenvolvendo um interesse de pesquisa sobre essa temática. Foi então que elaborei o projeto
desta pesquisa e, após muitas leituras, cheguei a pesquisa de campo que agora realizo.
Embora já existia um contato prévio com parte dos “moradores de rua” de Maringá, a entrega
em campo foi custosa. Fiz a opção de entrada em campo sem mediadores. Era de meu
conhecimento que há na cidade de Maringá vários pontos de concentração de “moradores de
rua” – ou ao menos sujeitos que eu os identificava como tais –, mas não conhecia esses pontos
claramente nem sabia por onde começar. Planejei então tentar contato a partir da Praça
Raposo Tavares, a praça central da cidade e um ponto de passagem de boa parte da população
de toda a região. Sabia que nessa praça havia sujeitos que podiam ser identificados como
“moradores de rua”, “garotas de programa”, “flanelinhas”, usuários de “drogas ilícitas”, além
3
Ver RUI (2012).
A bibliografia sobre “moradores de rua” tem crescido nos últimos anos. Destaco MARTINEZ (2011), Melo
(2011), Oliveira (2012), De Lucca (2007) e Frangella (2004).
5
Importa salientar que o vínculo de trabalho não foi o usual contrato temporário ou efetivo pela prefeitura. Na
realidade, fui contratado por uma empresa sediada no município de Curitiba, a qual executava um edital no
Centro Pop de Maringá. Tal empresa exigiu que eu abrisse (assim como os demais colegas) uma microempresa
(MEI) para trabalhar como prestador de serviços. Deveria emitir uma nota fiscal ao final de cada mês para que
pudesse receber os vencimentos. Era, portanto, um microempresário, atuando a serviço da empresa curitibana
num órgão da prefeitura de Maringá, onde deveria cumprir horário e me submeter ao chefe do Centro Pop. É
interessante informar também que minha contratação se deu em decorrência do afastamento do sociólogo
anterior. Este, juntamente com a equipe psicossocial, estimulou os moradores de rua a reivindicarem melhorias
no serviço público e a prefeitura, incomodada, acabou pedindo o seu desligamento.
6
Sobre o processo de construção da “política nacional para pessoas em situação de rua” ver Ferro (2011).
4
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4
de ser um espaço público de circulação de muitas pessoas e também de manifestações de
movimentos sociais. Artistas de rua, rodas de capoeira, feiras rurais, ciganas, vendedores
ambulantes também estão, eventualmente, presentes nesse local. No entanto, reconheço que
embora soubesse de tudo isso, nunca tinha reconhecido efetivamente essa diversidade social.
Conforme o trabalho de campo foi se desenrolando, fui percebendo que muitas dessas
categorias são móveis, plásticas e, às vezes, imprecisas.
Não demorou muito para eu começar a pensar sobre a pluralidade disponível ali na
Praça Raposo Tavares. O logradouro com nome de bandeirante pareceu-me então um
microcosmo da vida social7. Foi então que efetivamente comecei a vê-la, a redescobri-la como
algo além de um ponto de passagem. Construída ainda durante os anos 1960, no centro da
planejada Maringá, a praça é formada por uma quadra, localizada entre as Avenidas Brasil 8 e
Joubert de Carvalho, e entre as travessas Guilherme de Almeida e Júlio de Mesquita Filho. A
um quarteirão dali fica o terminal rodoviário urbano, de onde “circulares9” partem para levar
passageiros, em geral trabalhadores, pelos bairros e para trazê-los ao centro. Alguns ônibus
metropolitanos10 possuem o ponto final numa das laterais da praça. Também há em frente à
praça um grande estacionamento no local onde antigamente se localizava a rodoviária11 da
“cidade canção”12.
Para o sociólogo interessado em questões micro esta praça é um fabuloso e inesgotável
laboratório de pesquisa. Na praça, há localizada duas bancas de revista, um estande de
sorvetes. Eventualmente ocorrem feiras nesse local. Ela é formada por partes gramadas e
partes calçadas. Possui muitos bancos espalhados em diferentes partes. No centro da praça há
um palco e de frente para o palco há uma pequena arquibancada. Na parte de trás há placas de
7
O
jornalista
Alexandre
Gaioto
registrou
uma
reflexão
parecida.
Ver:
<http://digital.odiario.com/zoom/noticia/1292089/raposas-e-raposos-da-praca-tavares/>. Acesso em: 02 mai.
2015.
8
Na Avenida Brasil, nos arredores da praça, se localizam as principais lojas Maringaenses, além de vários
bancos.
9
Expressão usada na região para se referir aos ônibus de transporte coletivo urbano e metropolitano.
10
Coletivos que baldeiam passageiros para cidades vizinhas a Maringá.
11
A chamada rodoviária velha foi demolida entre maio e junho de 2011. Nos anos que antecederam a demolição,
depois das atividades de transporte serem transferidas para um novo prédio, esse local se tornou um centro de
comércio de produtos populares, do tipo R$ 1,99. A demolição foi objeto de críticas de comerciantes locais e de
ativistas sociais, que defendiam o tombamento do local. A prefeitura se comprometeu a construir um centro
cultural no local, mas até a presente data o espaço é usado como estacionamento regulamentado. Ver
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/maringa/prefeitura-de-maringa-comeca-a-demolir-arodoviaria-velha-4ovswwqqp5zaj5s7gx9yhotam Acesso em 30 mai. 2015.
12
Expressão como a cidade também é conhecida, em decorrência da canção de Joubert de Carvalho, intitulada
Maringá,
a
qual
originou
o
nome
oficial
e
o
apelido
da
cidade.
Ver
http://www.maringa.com/historia/historia.php acesso em 30 mai. 2015.
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5
concreto que compõem a arquitetura do palco. Há também um monumento em que está fixada
uma placa de homenagem a políticos e homens “importantes” da cidade. Em outro local da
praça há outra placa.
A leitura cinzenta como que a faço no parágrafo acima foi ganhando cores e matizes à
medida que o trabalho de campo foi prosseguindo. De fato, os “segredos” da praça estão
sendo me revelados aos poucos. Ao conhecimento prévio e homogêneo que já tinha do local,
muitas nuances nada desprezíveis estão emergindo ao longo do trabalho de pesquisa, as quais
me levam a supor que esta praça pode ser analisada como um campo de fronteiras ou como
um lócus em que identidades são mobilizadas, refeitas e transformadas, não sem antes muitas
delas se cruzarem, sem que os sujeitos possam se assumir duradouramente em nenhuma delas.
Enfim, parece tratar-se de um espaço liminar. Tentemos entender isso melhor por meio da
descrição etnográfica.
Aqueles que eu tomava por “moradores de rua” costumam se concentrar num dos
bancos que fica atrás de uma das bancas de revista. Há um banco largo, que permite várias
pessoas sentadas uma ao lado da outra. Ao seu lado, há uma maior quantidade de bancos
fixados separadamente numa pequena mureta. Diferentemente do outro, nestes não é possível
deitar. Aquele pedaço da praça parece pertencer a eles. Embora outras pessoas por ali passem
e eventualmente sentem, é nessa região da praça que se concentram para conversar, beber,
vender e comprar crack e maconha, bem como consumi-los.
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Imagem 1: Região da praça onde sujeitos com experiência de rua se reúnem.
Fonte: Arquivo Próprio
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7
Imagem 2: Palco localizado na praça Raposo Tavares. As placas de parte de trás do palco, ficam de frente ao
local onde os sujeitos estudados se concentram. Essas placas são usadas para se esconderem enquanto consomem
crack.
Fonte: Arquivo próprio.
Depois de alguns dias sem sair para o trabalho de campo, retomei o contato com meus
interlocutores numa quinta-feira na parte da tarde. Cheguei por ali. Como não vi nenhum
conhecido, sentei-me em um dos bancos. Um rapaz me cumprimentou. Devolvi o
cumprimento. Depois de alguns segundos ele veio até mim. Pediu se eu poderia lhe pagar um
lanche. Garantiu-me que não era para usar “droga”, que era para comer mesmo, porque estava
com fome, e que se eu quisesse eu poderia ir com ele, comprar o alimento e entregar a ele.
Como não tinha dinheiro no bolso, propus que fossemos a algum lugar que aceitasse
pagamento com cartão. No caminho, uma moça grávida se juntou a nós. Ele disse a ela que eu
lhes pagaria um alimento. Grávida de setes meses, a moça também estava com fome.
Contaram-me que estavam em Maringá para realizarem exames e que moram na cidade de
Mandaguari. Os levei a um restaurante ali por perto.
Sentei-me e os esperei. Enquanto eles comiam, conversávamos. Estava interessado em
saber mais sobre a história e como se tornaram “moradores de rua”, pois assim tinham se
apresentando para mim. O rapaz contou que mora nas ruas faz mais ou menos um ano,
enquanto a moça mora na casa da mãe, mas sai frequentemente para consumo de drogas e
acaba permanecendo na rua. Contei que estava fazendo um trabalho sobre “moradores de
rua”. Perguntaram-me o que eu já tinha descoberto no meu estudo. Comentei então que
achava que os “moradores de rua” que ficam na praça Raposo Tavares são diferentes dos que
conheci em outros pontos da cidade. A moça então respondeu que “aqueles ali não são
moradores de rua não, são tudo uns vagabundos, eles tem casa, ficam na rua porque querem”.
De fato, tal assertiva coaduna com outras pistas semelhantes. Tatiana13, uma jovem
que costuma permanecer naquele local, comentou comigo que não é “moradora de rua”.
Relatou morar com a tia. No entanto, permanece a maior parte do tempo na rua e costuma
dormir em algum mocó14. Fábio fez um comentário semelhante ao me afirmar que ali não
havia moradores de rua, que estes estão em outros pontos da cidade. Em outra ocasião, o
mesmo rapaz comenta que faz um bom tempo que não volta para casa. Jéssica me informou
que mora em Sarandi, município vizinho a Maringá. Caso semelhante é o de Edson.
13
14
Os nomes são fictícios.
Abrigado improvisado.
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8
Frequentemente o encontro na praça ou em outros pontos da cidade, participando de grupos
de “moradores de rua”, mas garante que tem casa.
Pedro, por outro lado, costuma permanecer naquela praça e me relatou ser “morador
de rua” desde os doze anos de idade. Agora tem mais de trinta. Inclusive me deu boas-vindas
a sua casa, apontando para a praça, como quem pretende indicar que ali é seu espaço. Caso
semelhante é o de Valdir. Certa noite estava na praça Raposo Tavares. Tinha levado algumas
peças de roupas para distribuir. Valdir ficou com duas camisetas. A polícia chegou e iniciou a
revista de alguns rapazes. Imediatamente Valdir me chamou para sair dali. Quando a polícia
chega todos correm risco. Circulamos então pela cidade. Vitor mangueou15 um dinheiro e
depois gastou com o crack. Me confidenciou que já é morador de rua faz muito tempo. Disse
que desde então eu seria seu irmão. Ao partir, perguntei onde poderia encontrá-lo no outro dia
(tinha prometido que levaria uma blusa a ele) e ele me informou que estaria onde o vento lhe
levar, ou seja, não tem paradeiro fixo. Com efeito, encontrei Valdir apenas mais algumas
vezes circulando pelo centro de Maringá.
Ao que tudo indica, nesse espaço a rigidez classificatória se esvai. Abre-se um espaço
entre o estabelecimento domiciliar e a moradia definitiva nas ruas. Vidas se produzem nas
fronteiras. Entre o “noia” e o “consumidor”, entre o “trabalhador” e o “bandido”, entre o
“traficante” e o “usuário”. Parte desses sujeitos com quem interajo possuem uma casa familiar
onde podem, eventualmente, se abrigar, mas costumam permanecer boa parte de seus dias nas
ruas e mesmo dormir em algum mocó ali por perto. Bebem pinga e consomem crack sentados
naquele banco da praça ou escorados numa das barras de concreto atrás do palco.
Frequentemente pessoas aparecem por ali, negociam uma pequena quantidade de maconha ou
crack com eles e logo vão embora. Dinheiro circula nas mãos deles o tempo todo. O consumo
e a venda de crack se misturam. O gosto pelo crack predomina e “corres16” são feitos para
levantar dinheiro para consumo. Parece-me, diferentes identidades sociais estão sendo
mobilizadas e deslocadas constantemente nesse logradouro. Entre o “morador de rua” e o
“morador domiciliado” há uma fissura na qual esses sujeitos transitam. Alguns se assumem
“moradores de rua”, outros vivem nos interstícios entre a rua e a casa e há outros ainda que
15
Expressão utilizada pelos sujeitos pesquisados para se referir ao trabalho de pedir dinheiro na rua.
Corre é uma expressão utilizada pelos sujeitos de pesquisa para se referir a toda forma de levantamento de
dinheiro ou bens materiais. Pode ser o trabalho de cuidador de carro, de mangueio ou mesmo de furto.
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não querem ser confundidos com “moradores de rua” ou “noias” passam por ali rapidamente,
adquirem o seu “produto” e “saem fora”.
É notório, embora mais difícil de aprender empiricamente, que pessoas da “sociedade”
ali recorrem para conseguir a substância que desejam: maconha ou crack. Chegam com
pressa, negociam, pegam o que precisam o logo vão embora. Não trocam muitas palavras.
Talvez não queiram ser confundidos com os que ali permanecem. Igualmente interessante é o
caso de mulheres que permanecem em outro pedaço daquela praça. Costumam ficar sentadas
no lado oposto ao que estes sujeitos ficam. Entre elas, o caso de Márcia é interessante. Uma
mulher negra, por volta dos 40 anos, costuma usar saia na altura do joelho e uma blusa com
mangas e sem decote. Muito falante, Márcia gosta de acolher as pessoas com um abraço, um
beijo no rosto e falar de deus.
Certa vez Márcia quis saber o que eu fazia ali na praça. Expliquei que estava fazendo
um trabalho para a universidade. Então perguntei a ela como foi parar ali. Ela disse que não
era dali, que tinha sua casa, onde cozinhava, dormia, etc. e que trabalha como empregada
doméstica com carteira registrada. Contou que só vai ali pra passar um tempo e ganhar um
dinheiro extra. Nesta ocasião disse que estava esperando um amigo, mas que logo iria
embora. Explicou um pouco sobre o que ela fazia ali. Ela tenta se diferenciar dos rapazes que
passam o dia na praça e das garotas de programa que atuam por ali. Salienta que para chegar
ao ponto de fazer sexo com alguém, antes essa pessoa precisa se tornar seu amigo. O
candidato a parceiro sexual precisa antes ligar pra ela, falar com ela, ir ao mercado e fazer um
compra pra ela, passar tempo juntos, fazer companhia. Sexo só depois de consolidar uma
relação de amizade. Perguntei se ela não se considerava garota de programa, ela disse que
não, que garota de programa eram outras mulheres que ficavam por ali.
Como tentei brevemente demonstrar nas notas acima, o conjunto de sujeitos que
realizam atividades nas ruas é muito variado. As categorias “moradores de rua” e sobretudo
“pessoas em situação de rua” foram criadas para tentar abarcar a pluralidade de vidas que são
produzidas nas ruas e minimizar preconceitos. De qualquer forma, ambas mantém grande
centralidade na noção de moradia ou sobrevivência nas ruas. Embora não seja minha intenção
entrar na batalha pelas definições, julgo ser necessário a utilização de uma categoria descritiva
e analítica que permita ampliar o número de sujeitos narrados sem homogeneizá-los, que
possa em vez de restringir as possibilidades de práticas de ruas, jogar luz em outras
possibilidades que se não resumam a sobrevivência e moradia. É neste sentido que proponho
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descritivamente o uso do termo sujeitos ou grupos com experiência de rua. Com este termo,
pretendo refletir sobre sujeitos ou grupos que em graus diferentes realizam experiências de
rua, ou seja, passam boa parte do seu dia – ou sua noite – na rua, realizando atividades de
trabalho, lazer, recreação ou entretenimento. Portanto, neste trabalho, quando pretender
descrever os múltiplos sujeitos que permanecem nas ruas, utilizo a expressão “sujeitos ou
grupos com experiência de rua”, enquanto que expressões “moradores de rua”, “população em
situação de rua”, “noias” são utilizadas sempre no sentido êmico.
A RUA E A RELIGIÃO: OUTRAS DISPUTAS
Também neste território batalhas religiosas cristãs pela conversão de “moradores de
rua”, “viciados” e “garotas de programa” são travadas. A recepção dessas mensagens cristãs,
contudo, parecem ser incorporadas de maneira particular por esses sujeitos. Em certa medida
minha interação com os sujeitos de pesquisa me jogou para dentro dessa disputa e fez daí
emergir certos discursos que em outras situações não apareceriam. Com efeito, refletir sobre a
relação entre sujeitos com experiência de rua e religiões me obriga a refletir sobre minha
própria trajetória e sobre minha inserção em campo. É ao mesmo tempo um dever e um
componente importante para as reflexões que emergiram do meu contato com tais sujeitos
informar minha trajetória cristã e reconhecer que tal experiência possivelmente está inscrita
em meu habitus ainda nos dias atuais, produzindo percepções peculiares sobre mim.
É muito provável que minha presença na rua tenha ativado nos meus interlocutores
imagens religiosas-cristãs, assim como eu próprio passei a ativar memórias de experiências
dessa natureza. Fiz a opção de entrar em campo sem a mediação de quaisquer sujeitos, como
relatado brevemente acima. Entendi que a entrada em campo dessa forma produziria certas
interações diferentes das que emergiriam caso tivesse entrado por meio de algum mediador.
Com efeito, ao examinar retrospectivamente a forma como vários dos sujeitos de rua se
relacionavam comigo fui percebendo certas coisas. Claro que minha postura em campo criava
condições pra isso. Participava das rodas de conversa, de bebida e de consumo de maconha e
crack, mas não aceitava consumir qualquer dessas substâncias. Várias vezes quiseram saber se
eu “usava droga”. Respondia que não. Por outro lado, ali estava participando daquelas rodas,
sem criticar o comportamento de ninguém e até ajudando no consumo. Importante salientar
que sempre me apresentei como estudante universitário e pesquisador da temática “moradores
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de rua”. Ainda assim, para eles eu poderia figurar como um “irmão de igreja17” disposto a
estar entre eles18.
Numa das minhas primeiras idas a campo conheci Pedro. Denis, um sujeito com
experiência de rua, me apresentou a ele dizendo que queria conhecer mais sobre “moradores
de rua”. Prontamente, Pedro, um homem negro, baixa estatura, aproximadamente 30 anos,
afirmou que está nas ruas desde os doze anos de idade. No entanto, a conversa não se
estendeu nesse dia. Denis e Pedro provavelmente tinham “corres19” para fazer e foram
embora. No outro dia saí de casa de manhã e parti para a praça Raposo Tavares. Passei este
dia inteiro nas ruas do centro, a maior parte junto com o pessoal da praça. Logo na chegada,
dei de frente com o Pedro. Acolheu-me calorosamente. Logo começou a falar sobre músicas
evangélicas. Cantou diversos hinos nessa manhã. Relatou não entender bem as palavras
bíblicas, mas que os hinos lhe fazem muito bem. Salientou que canta músicas gospel o tempo
todo mesmo durante o consumo de “drogas”, o que gera advertência por parte dos pares.
Dizem ser pecado. Ele acredita, porém, que deve estar com deus o tempo todo, mesmo no
momento do “pecado”.
Dois rapazes vieram até ele. Não os deixou falar na minha frente: “é irmão de igreja,
tem que respeitar”. Escondidos numa das placas do palco da praça, trocam alguma coisa,
supus ser crack. Ele volta e continua conversando comigo. Me ofereço para pagar um lanche a
ele. Ele se recusa. Disse já ter comigo algo que alguém lhe pagou. Durante este dia todo fiquei
por ali. Fiquei admirado com a quantidade de crack que Pedro e outros consumiram. A pinga
também esteve muito presente, quase exclusivamente armazenada em garrafas de água
mineral.
17
Outra possibilidade era ser confundindo com o policial infiltrado, o chamado P2. No entanto, essa
possibilidade, parece-me, nunca foi levada muito a sério. Certa ver conheci Adriano. Conversamos um pouco e
ele me chamou para dar uma volta com ele e um amigo. “Disseram que não se importavam de andar comigo,
mesmo que eu fosse polícia disfarçado, que não ia adiantar nada eu chegar na cadeia com dois „drogados‟, que
nem ninguém ia valorizar isso. Eu disse que não era p2. Depois, um pouco mais a frente, disseram que era bom
andar comigo porque eu dava proteção contra a polícia, pelo modo como estava vestido. Disse então que todos
estávamos vestidos bem” (Caderno de Campo, 20 mar. 2015).
18
De fato, eu não sou um “irmão de igreja”. Rompi com as igrejas cristãs há bastante tempo. No entanto, a partir
da imersão em campo, as máximas evangélicas encontradas nas escrituras passaram a emergir da minha
memória. Jesus Cristo, de fato, nos Evangelhos, costuma procurar os “marginais” da época, como prostitutas e
leprosos, e afirma que o que for feito a “esses pequeninos” é a ele que seria feito. Em minha caminhada na igreja
católica, participava de grupos tomavam por grande valia “os irmãos de rua”, os preferidos de Jesus, aqueles por
meio dos quais Jesus Cristo se revelaria a nós.
19
Ver nota 16.
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Nesse dia algumas frentes de reflexão se abriram para mim. Notei que assim como o
Pedro, outros também me viam como “irmão de igreja”, mesmo eu nunca tendo evocado essa
imagem. Embora sempre me apresento como pesquisador, em vários contatos fui classificado
como um “irmão”. Foi, por exemplo, o que Valdir me disse certa vez. Circulei com ele pelo
centro, o acompanhei no consumo de crack e no mangueio. Certa hora sentamos numa mureta
e ele exclamou: “você agora vai ser o meu irmão”. Não ficou plenamente claro se este
conceito de irmão seria o religioso, mas é fato que Vitor me relatou ser um evangélico
“desviado20” e mostrou devoção.
Outra vez, já depois de um tempo de campo, estava conversando com Kelly, uma
moça loira. Relatou que fazia programas, mas que sua profissão é cabeleireira. Ela comprou
uma cerveja e ordenou que eu bebesse um pouco. A Andressa, uma mulher negra que já tinha
travado certo contato, viu e falou para a Kelly: “Não, ele não pode”. Ela não explicou o
motivo. Mas supus que estaria associado a uma representação religiosa sobre mim. O que já
percebera desde a época do Centro POP foi ganhando substância: as representações religiosas,
sobretudo de cunho evangélico, parecem estar presentes o tempo todo no universo dos
“moradores de rua”. Assim como aquela praça que, apesar de ser central numa cidade
conhecida pela grande influência do bispo católico Dom Jaime21, ostenta um monumento aos
evangélicos de Maringá, muitos desses moradores de rua se declaram evangélicos, embora se
reconheçam como “desviados” ou “afastados22”.
De fato, a praça Raposo Tavares também é ponto de partida de atuação de diversas
igrejas cristãs na pregação para os sujeitos com experiência de rua. Na própria praça,
inscrições religiosas, oficiais ou informais, proliferam. É importante destacar a presença de
um monumento que reproduz uma frase bíblica e logo abaixo há uma placa assinada pelo
prefeito municipal e pela ordem dos pastores evangélicos, ainda nos idos de 1979. Além da
inscrição oficial, há no palco da praça, em pintura em estilo grafite, várias mensagens
20
Certa vez, na praça, conversando com uma moça que por ali estava, perguntei se ela era evangélica, ela disse
que sim. Perguntei se estava desviada, então ela me respondeu que “desviada não, afastada, que quem é desviado
é o diabo”.
21
Ver Silva (2011).
22
Ver nota 20.
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bíblicas. Interessante salientar que entre as gravuras e frases religiosas, figura a sigla PCC23,
grafada numa das placas, na parte de trás do palco.
Imagem 3 - Monumento evangélico de 25 de novembro de 1979. Destaque para a frase bíblica: “disse Jesus:
errais não conhecendo as escrituras nem o poder de deus” (Mt. 22,29)
Fonte: Arquivo Pessoal
23
Uma linha interessante de reflexão seria as imbricações entre o discurso religioso e os princípios de respeito e
humildade, muito presente nas falas dos meus interlocutores. Tais princípios também parecem ser estruturantes
para o Primeiro Comando da Capital (BIONDI, 2009).
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Imagem 4: Placa fixada no monumento em 25 de novembro de 1979.
Fonte: Arquivo Pessoal
O número de instituições religiosas que passam pela praça entregando alimento e
mensagens cristãs aos sujeitos com experiência de rua é grande. Uma delas é a Igreja
Assembleia de Deus Madureira, dirigida pelo Pastor Pedro Paulo. O Pastou vai pessoalmente
à praça entregar alimentos. O encontro por lá numa sexta-feira no início da noite. Ao me ver
acena para mim e avisa que tem comida. Confundiu-me com um “morador de rua”. Vou até
ele, apresento-me como sociólogo e falo brevemente sobre minha pesquisa. Muito
interessado, o pastor se mostra conhecedor do mundo acadêmico. Relata ser graduado em
teologia e mestre teologia e também graduado em psicologia. Quer saber como avalio o
mundo atual. Inevitavelmente preciso falar de política com ele. O pastor se mostra tolerante e
um tanto quanto progressista. Enquanto conversamos, entrega marmitas a pessoas que passam
pela praça. Conta-me que entregar aquelas marmitas é um ato de evangelização e que não
necessariamente precisa fazer uma pregação. Afirma ser diferente dos demais pastores e relata
não seguir protocolos com os “moradores de rua”.
O pastor quis saber de minha história e porque deixei a igreja católica. Relatei alguns
motivos e ele me afirmou que a igreja católica, bem como as protestantes são diabólicas.
Então fez toda uma retomada da história da igreja, passando pela igreja católica medieval e
pela reforma protestante, afirmando que tanto uma quanto outras deixaram de seguir a Jesus
Cristo. Advertiu-me por não portar uma máquina fotográfica em mãos e me mostrou a placa
da praça, fazendo menção aos evangélicos. Surpreendi-me que na cidade onde Dom Jaime,
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um bispo católico, é uma das maiores personalidades, ali na praça central da cidade houvesse
espaço para os evangélicos24. Falei isso a ele e ele deixou subentendido que os evangélicos
também têm força em Maringá. Conversamos mais um pouco. O pastor me convidou para a
atividade que realiza as terças-feiras na praça. Disse que eu era convidado e que poderia bater
uma fotografia do culto. Disse também que eu era um escolhido de deus.
Na próxima terça-feira lá estava eu. Cheguei um pouco antes das oito horas da noite.
Não havia ninguém. Circulei rapidamente pelo centro e voltei a praça. Vi que um homem
chegava com uma caixa. Outro chegou e começou a varrer o palco e a arquibancada. Em
pouco tempo a estrutura estava montada. Som, guitarra, uma luz e alimentos. Membros da
igreja cantavam e pregavam no palco. Um jovem acompanhava na arquibancada. Alguns
indígenas passaram por ali, receberam alimentos e oração. Outras pessoas passavam e
recebiam marmita das mãos do Pastor Pedro. Também havia as opções de água, suco e café.
Imagem 5: Igreja Evangélica Assembleia de Deus Madureira realiza atividade religiosa e distribui alimentos aos
sujeitos que por ali passam.
Fonte: Arquivo Pessoal.
Um homem de terno, ao terminar sua mensagem, chamou o pastor Pedro Paulo “para
falar o que deus mandar”. Este subiu ao palco, fez uma pregação, na qual salientou que
24
No livro A Igreja que Brotou da Mata, o autor, Pe. Orivaldo Robles (2007), narra o crescimento da Igreja
Católica juntamente com o crescimento da cidade de Maringá. Segundo o livro, Dom Jaime, primeiro bispo e
arcebispo de Maringá, exerceu papel fundamental na consolidação da igreja e da própria região de Maringá.
Silva (2011) aborda criticamente esse processo, dando destaque especial para o processo da construção da
Catedral de Maringá (com 124 metros de altura, em formato cônico), relacionando a construção do templo a uma
narrativa ufanista sobre a cidade.
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somente Jesus cristo liberta. A arquibancada estava vazia, mas o pastor parecia falar para
todos que por ali circulavam e que podiam ouvir. Salientou que “o homem busca preencher
seu coração nas drogas, no roubo, na prostituição, mas somente na pessoa de Jesus está a cura,
a libertação da pobreza, da prostituição, da miséria, do desemprego. Mas não está em uma
igreja, numa denominação, seja qual for. Está na pessoa bendita e única do senhor Jesus
Cristo”. Citou Zaqueu, um personagem do evangelho bíblico25, como exemplo de fé e cantou
a música “como Zaqueu, quero subir o mais alto que eu puder, só pra te ver ... entra na minha
casa, entra na minha vida, Mexe com minha estrutura, Sara todas as feridas, Me ensina a ter
santidade, Quero amar somente a ti Porque o senhor é o meu bem maior, Faz o milagre em
mim”.
Outro grupo evangélico que tive contato a partir da imersão na Praça Raposo Tavares
foi o projeto amor26, realizado pela Igreja Batista da Vila Sete. Era uma sexta-feira à noite.
Cheguei à praça no final da tarde. Por volta das 18h uma denominação evangélica (Igreja
Assembleia de Deus, localizada no Jardim liberdade) distribuía sanduíches e cantava e
pregava no palco. Fiquei por ali, interagindo com meus interlocutores. Um pouco mais tarde,
um grupo de jovens da Renovação Carismática Católica (RCC)27 passa distribuindo pães com
presunto e refrigerante. Contam-me que organizaram um grupo de “pastoral de rua” com
jovens de diversos grupos de oração da RCC de arquidiocese de Maringá. Saem as quartas e
sextas-feiras para entregarem alimento e fazerem oração com os “irmãos de rua28”. Após a
partida deles, chega outro grupo, agora evangélicos. Esses são os batistas. Apresento-me a
eles e pergunto sobre o trabalho que realizam. Contam-me então que às sextas-feiras na parte
da tarde recebem os “moradores de rua” na sede da sua igreja, onde lhe oferecem banho,
roupas e alimentação.
Na sexta-feira seguinte fui então à igreja deles conhecer aquele grupo. Fui bem
acolhido e inclusive me alimentei da comida que é servida aos “moradores de rua” que os
procuram. Os sujeitos de rua começam a chegar por volta das 15h30. Tomam banho (não
25
A figura de Zaqueu costuma ser evocada como exemplo de fé. Diz as escrituras que ele era um homem baixo
e, como tal, não poderia ver quando jesus passasse. Zaqueu então subiu numa árvore para poder ver cristo passar.
Jesus o viu na árvore e escolheu sua casa para ficar. Muitos ficaram revoltados por cristo escolher a casa de um
pecador cobrador de impostos. Zaqueu, por sua vez, segundo o texto bíblico, imediatamente se compromete a
dar metade de seus bens aos pobres e devolver quatro vezes mais o que possivelmente fraudou. (Ver Lucas 19,110).
26
Ver http://www.ibv7.com.br/ministerioInterna/7 Acesso em 30 maio 2015.
27
Movimento da Igreja Católica, de caráter pentecostal.
28
Forma como alguns movimentos da igreja católica (entre eles a RCC e a Aliança de Misericórdia) costumam
designar sujeitos com experiência de rua.
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obrigatório), recebem uma roupa nova e se alimentam. Um dos religiosos fez uma pregação
na qual salienta os malefícios do “vício em crack” e a exclusividade de Deus na “libertação do
vício”. Este “irmão” também negocia com sujeitos de rua para os internarem em comunidades
terapêuticas.
Após todos os sujeitos de rua terminarem seus banhos e refeições e irem embora, os
batistas se reúnem em uma sala onde fazem uma oração. Participei também desta atividade.
Me explicaram que a forma como eles “oram” é diferente das dos católicos (tinha contado que
fui católico). Me explicam a diferença entre “oração” e “reza” e afirmam que a oração deles é
espontânea, sem repetição e que simplesmente falam diretamente com deus. Cada um de nós
teve um momento para fazer uma prece ou um agradecimento. Na minha vez, agradeço pela
acolhida e me disponibilizo para ajudá-los em algo. Eles se mostram contentes com isso.
Após o termino da oração, eles foram às ruas distribuir o alimento que sobrara.
Os católicos, por sua vez, também buscam difundir sua mensagem entre os sujeitos
com experiência de rua. Além do albergue Santa Luiza de Marilac e da ação dos jovens da
RCC, a comunidade católica Aliança de Misericórdia realiza influente trabalho de acolhida a
“irmãos de rua” em Maringá. Tal instituição é uma velha conhecida minha, desde os idos de
2002/2003 quando ouvíamos as pregações do Padre Antonello, fundador dessa comunidade.
Segundo o site da Aliança, “Junto aos trabalhos de evangelização, o Movimento realiza
diversas obras sociais junto à população carente das periferias e ruas, conjugando
harmoniosamente evangelização e caridade como faces de uma só moeda29”. Em Maringá,
além de possuírem uma casa de acolhida para “dependentes químicos e moradores de rua”,
um grupo de membros da Aliança, normalmente as quintas-feiras à noite, realiza a pastoral de
rua. Tenho acompanhando essa atividade nos últimos meses.
Membros da comunidade Aliança de Misericórdia se reúnem em frente à catedral e
dali saem em carros para a distribuição de alimentos, oração e convite para o internamento na
casa de acolhida. O alimento servido aos “irmãos de rua” pode ser a tradicional marmitex
quando é possível prepará-la. A Darcy, como é chamada a senhora que cozinha o alimento, é
capaz de fazer até vinte marmitas. Quando não é possível, pizzas são encomendadas e fazem
as vezes da marmitex. Sempre fui acolhido muito bem de modo mesmo que me consideram
um membro do grupo. Saímos de frente catedral, passamos pela praça localizada em frente às
Lojas Pernambucanas de Maringá. Raramente há “irmãos de rua” por ali. O ponto seguinte é a
29
Ver: http://www.misericordia.com.br/portal/movimento.php# Acesso em 05 jun. 2015.
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Praça Raposo Tavares. O alimento é entregue ali, normalmente acompanhando de
refrigerante. Bate-se um papo com os “irmãos”, um dos membros da aliança os aconselha a
deixar a vida nas ruas para trás e informa sobre a possibilidade de acolhida na casa, que é
exclusivamente masculina. Em alguns casos, é feita uma oração, às vezes acompanhada de
cânticos animados por um violão. Em seguida outros pontos de concentração de “irmãos de
rua” da cidade são visitados. Entrega-se o alimento, troca umas palavras e comenta sobre a
casa. Oração e pregação formal nem sempre é feita. Os que se dispõem são imediatamente
levados para a casa de acolhida, que se localiza em Iguatemi, distrito de Maringá.
Nestas incursões, é digno de nota a quantidade de hinos, passagens bíblicas e máximas
cristãs proferidas pelos “irmãos de rua” durante o processo de abordagem religioso. Em vários
momentos, eles tomam às vezes do religioso que ali se encontra e entoam eles próprios um
cântico, uma oração ou uma pregação. Nesses momentos de interação, os sujeitos com
experiência de rua costumam também reconhecer seus pecados, acusar o crack de culpado
por todos os males de sua vida e relembrar como sua vida era boa antes do início do consumo
dessa substância. É sintomático que esse discurso seja operacionalizado diante da liderança
religiosa que está ali a lhe oferecer alimentação e possibilidades de internamento numa
comunidade terapêutica. É de se supor, embora investigações e reflexões mais demoradas
poderão esclarecer melhor isso, que o alimento oferecido, o discurso religioso, e a
possibilidade de internamento sejam apropriados pelos sujeitos com experiência de rua como
mecanismos utilizados por ele para gestão de sua vida e de seu corpo. Desse modo, a
pregação cristã que sai das bocas dos religiosos, sejam católicos ou protestantes, produzem
efeitos diferentes nesses e nos sujeitos com experiência de rua. Em ambos os casos, talvez,
essa matriz discursiva pode ter efeito importante na manutenção dos respectivos padrões de
vida.
Considerando que essas investidas religiosas compõem apenas uma parte das
instituições cristãs que procuram sujeitos com experiência de rua para evangelização fica
mais fácil compreender o motivo pelo qual as representações religiosas figuram tão
centralmente no discurso de meus interlocutores. Embora não seja possível explorar nesse
momento, é preciso levar em conta que outros espaços que tais sujeitos frequentam, como as
prisões e comunidades terapêuticas, também parecem possuir uma forte presença religiosa.
Relatos de campo apontam para isso.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Objetivei neste artigo apresentar algumas reflexões ainda muito incipientes sobre a
etnografia que venho desenvolvendo com sujeitos com experiência de rua na cidade de
Maringá-PR. A aposta pela pesquisa por meio da imersão etnográfica tem permitido o contato
e a observação de elementos da vida social dificilmente aprendidos por outros métodos, assim
como o alargamento do estudo do fenômeno para além de grandes centros urbanos. Parto da
aposta de que a produção social em torno dos chamados “moradores de rua” é muito mais
ampla do que a produção de um aparato gestionário desse grupo social.
A partir da observação e da descrição de discursos e práticas encontrados na
participação do cotidiano de sujeitos localizados na Praça Raposo Tavares, centro da cidade
de Maringá, intentei argumentar que aquele é um espaço de fronteiras onde diversas
identidades sociais são produzidas, mobilizadas e transformadas. Sujeitos se situam nas
fissuras que se abrem entre a “rua” e a “casa” e transitam entre um espaço e outro. Daí o
entendimento de que a expressão sujeitos com experiência de rua é capaz de permitir a análise
de um maior número de atividades que se desenvolvem nas ruas.
É também a partir da participação das sociabilidades desse espaço, que pude perceber
o quanto discursos cristãos são mobilizados pelos sujeitos com experiência de rua. Diversas
instituições cristãs seguem ao encontro desses grupos com alimentos, pregações religiosas e o
convite para o internamento em suas respectivas instituições terapêuticas. Os sujeitos com
experiência de rua, por sua vez, parecem receber tais investidas e processá-las de modo
particular. Provavelmente, enquanto a casa de acolhida ou comunidade terapêutica figure para
os líderes religiosos como espaços de tratamento e conversão, para os sujeitos com
experiência de rua, tais lugares aparecem como espaços para “tirarem um descanso” e gerirem
seus corpos e sua vida nas ruas. É importante, contudo, assinalar que tais reflexões são
inteiramente provisórias. Somente o avanço da pesquisa e o aprofundamento dessas reflexões
podem confirmá-las ou refutá-las.
REREFÊNCIAS
ALIANÇA de Misericórdia. A Aliança de Misericórdia. Disponível em: <1 Ver:
http://www.misericordia.com.br/portal/movimento.php#> Acesso em 05 jun. 2015.
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20
AYRES, Marcus. Prefeitura de Maringá começa a demolir a Rodoviária Velha. Gazeta do
Povo.
Disponível
em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/vida-ecidadania/maringa/prefeitura-de-maringa-comeca-a-demolir-a-rodoviaria-velha4ovswwqqp5zaj5s7gx9yhotam>. Acesso em 30 mai. 2015
BIONDI, Karina. Tudo Junto e Misturado: imanência e transcendência no PCC. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social). Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal de São Carlos, 2009.
CEFAÏ, Daniel; VEIGA, Felipe Berocan; MOTA, Fábio Reis. Introdução. In: CEFAÏ, Daniel;
MELO, Marco Antonio da Silva; MOTA, Fábio Reis; VEIGA, Felipe Berocan (Org). Arenas
Públicas: por uma etnografia da vida associativa. Niteroi: editora da UFF, 2011.
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21
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POLÍTICAS DE ACESSO À EDUCAÇÃO SUPERIOR E AS NOVAS
CONFIGURAÇÕES SOCIAIS: para além dos conflitos sociais?
Márcia Lopes Reis - UNESP1
Proyecto Accedes/Alfa
GT 3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política
RESUMO
Os efeitos que as políticas de cunho neoliberal adotadas, principalmente, a partir da
década de 1990, tiveram na centralidade do Estado, bem como numa das suas formas de
compreensão, como parte das lutas de classes. Na área da educação, estes ideais marcam a Lei
de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDBEN, bem como o Plano Nacional de
Educação – PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC. Tais
dispositivos legais, ao lado de um conjunto de políticas afirmativas tendem a revisitar as
classes sociais como categorias analíticas para utilizar as „minorias sociais‟ como foco de
inclusão social. Esse processo histórico, mas recente, teria iniciado no primeiro mandato de
FHC, com o debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil. Em 1996, constituiu-se um
Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo governo e por representantes dos
movimentos sociais, que definiu as ações afirmativas como medidas especiais e temporárias,
tomadas ou determinadas pelo Estado espontânea ou compulsoriamente, visando eliminar
desigualdades historicamente acumuladas. Assim, esse trabalho objetiva compreender as
políticas de ações afirmativas de ingresso no ensino superior, a partir dos princípios do Estado
Democrático de Direito brasileiro, analisando-as como política pública que inclui outras
categorias analíticas que não somente as classes sociais.
Introdução
Historicamente, as políticas públicas tem resultado de forças sociais contraditórias, o
que faz com que a forma e o conteúdo das mesmas estejam diretamente associadas à
conjugação de fatores estruturais e conjunturais do processo de construção do país.
Especificamente, no Brasil, A educação, na Constituição Federal de 88, é um direito humano,
o qual visa superar as desigualdades do cenário social, promovendo a cidadania. No entanto, é
no contexto histórico e político das últimas décadas, que as instituições de ensino público, e
de modo mais específico à universidade pública brasileira, vêm utilizando a categoria de
„minorias sociais‟ em seus processos de expansão e inclusão.
1
Doutora em Sociologia - UnB (1999), Mestre em Educação - UnB (1994), Especialista em Supervisão e
Currículo, UFMT (1991), graduada em Pedagogia pela AEUDF (1987). Realizou estágio sênior na Universitat
Autònoma de Barcelona (Espanha, 2011) e realizou estudos na Universidade Católica de Argentina (Buenos
Aires, 2013) sobre o tema das políticas de inclusão e permanência na educação superior. Professora assistente
doutor da UNESP na Faculdade de Ciências em Bauru.
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Para compreender o contexto dessa mudança no contexto brasileiro, deve-se retomar o
cenário das políticas neoliberais adotadas, principalmente, a partir da década de 1990. Essas
ações tiveram como centralidade a reforma do Estado, e na área da educação, estes ideais
marcam a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional – LDB e o Plano Nacional de
Educação – PNE, ambos aprovados no governo de Fernando Henrique Cardoso – FHC. Tais
dispositivos legais apontaram para a desresponsabilização do Estado com relação à educação
pública, ao lado da ampliação do setor privado, com abertura para entrada de recursos
privados para manutenção e ampliação das instituições públicas, bem como a transferência de
recursos públicos para esse setor privilegiado, o privado. É neste período - durante o primeiro
mandato de FHC – que tem início o debate sobre as políticas de ação afirmativa no Brasil,
numa sobreposição aos debates sobre o acesso das classes menos favorecidas à universidade.
Deixam de lado, neste momento, importantes estudos como de Boudon (1981) em A
desigualdade de oportunidades ou Ponce (1981) em Educação e Luta de Classes ou, ainda,
Althusser (1987) em Aparelhos Ideológicos de Estado.
Em 1996, constituiu-se um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI, composto pelo
governo e por representantes dos movimentos sociais, que definiu as ações afirmativas como
medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado espontânea ou
compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas.
Diante deste cenário, pretende-se compreender as políticas de ações afirmativas de ingresso
no ensino superior, a partir dos princípios do Estado Democrático de Direito brasileiro,
analisando-as como política pública que inclui outras variáveis que não somente as classes
sociais, que demanda uma retomada.
1. Afinal, do que estamos falando quando tratamos das classes sociais como categoria de
análise?
Desde o advento da vida em sociedade, tem sido possível descrever a divisão da sociedade
em estratos ou camadas. Na modernidade, foi possível conhecer outra abordagem da divisão
social, baseada no conceito de classes sociais ainda que estejamos acostumados a lidar com o
sinônimo de camada ou estrato. No entanto, neste artigo, o conceito de classe social tal como
é abordado na literatura sociológica foi, inicialmente, desenvolvido pelo pensador alemão
Karl Marx (1878). Esse conceito parte de premissas próprias, segue critérios específicos e sua
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aplicação leva a conclusões diferentes das que podem ser encontradas nos estudos que
analisam a sociedade segundo o modelo descritivo da estratificação social.
Para Marx, a história da humanidade é "a história da luta de classes". Em suas análises, a
classe social é acima de tudo uma categoria histórica. Ao se referir às duas grandes classes do
capitalismo - a burguesia e o proletariado - está designando duas forças motrizes e concretas
do modo de produção capitalista, um sistema econômico historicamente determinado. O
próprio Marx, no entanto, não reivindicava a descoberta das classes sociais nem da luta de
classes, mas sim a "demonstração de que a existência das classes só se liga a determinadas
fases históricas de desenvolvimento da produção". Marx atribuía uma importância particular
aos conflitos entre as classes. Para ele, são esses conflitos que constituem o principal fator de
mudança social. Seriam esses conflitos, portanto, que imprimiriam movimento e dinamismo à
sociedade.
Por outro lado, as classes sociais mudam ao longo do tempo, conforme as circunstâncias
econômicas, políticas e sociais. As contradições que mantêm entre si forjam e estruturam a
própria sociedade. Quando os conflitos chegam a um ponto insuportável, ocorre uma
revolução que transforma a sociedade, modificando o modo de produção. Foi o que ocorreu,
como vimos, com o feudalismo: uma nova classe (a burguesia) derrubou um velho estamento
(a nobreza), abrindo caminho para o desenvolvimento das forças produtivas e para a
afirmação da sociedade capitalista. A Revolução Francesa de 1789 foi uma das expressões
dessa transformação.
Mas a nova sociedade capitalista, na concepção de Marx, já começou dividida em duas
grandes classes conflitantes: a burguesia (proprietária dos meios de produção) e o
proletariado, ou classe operária, que só tem de seu a força de trabalho. Lenin (1874-1924),
líder da Revolução Russa de 1917 e um dos grandes pensadores marxistas, definiu o sistema
de classes da seguinte forma: "As classes são grupos de homens relacionados de tal forma que
uns podem apropriar-se do trabalho de outros por ocupar posições diferentes num regime
determinado de economia social".
Segundo essa definição, os homens e mulheres que formam as classes sociais se
diferenciam entre si pelo lugar que ocupam na produção. Alguns desempenham cargos de
direção e são proprietários de fábricas e empresas de todo tipo (meios de produção); outros,
apenas executam as tarefas determinadas pelos chefes em troca de um salário: são os
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trabalhadores. Dessa forma, é a propriedade privada dos meios de produção que constitui a
base econômica da divisão de nossa sociedade em classes.
Assim, a teoria das classes não se limita a descrever as divisões da sociedade em camadas,
como faz o modelo da estratificação social, mas procura explicar como e por que elas ocorrem
historicamente. As classes sociais só existem a partir da relação que estabelecem entre si.
Dessa forma, além de antagônicas, elas são necessariamente complementares. A burguesia,
por exemplo, não pode existir sem o proletariado.
Da mesma forma, no começo da formação do capitalismo, o proletariado precisou da
burguesia para obter emprego e se afirmar como classe. Na previsão marxista, porém, essa
dependência da classe operária em relação à burguesia acabaria no momento em que o avanço
das forças produtivas entrasse em conflito com as relações burguesas de produção. Nesse
momento, segundo Marx e Engels, teria de ocorrer uma revolução, por meio da qual a classe
trabalhadora se libertaria, destruindo a dominação burguesa e substituindo o modo de
produção capitalista pelo modo de produção socialista. Essa previsão, contudo, não se
confirmou. Ao contrário do que esperavam Marx e Engels, a primeira revolução proletária se excetuarmos a rápida experiência da Comuna de Paris, em 1871 ocorreu em um país
“atrasado” (a Rússia, em 1917), no qual as forças produtivas capitalistas ainda não haviam se
desenvolvido plenamente. Talvez por isso mesmo, o Estado criado por essa revolução, a
União Soviética, não conseguiu sobreviver a pouco mais de sete décadas de competição com
os países onde as forças produtivas capitalistas continuaram a se desenvolver - Estados
Unidos, Japão, Alemanha, entre outros.
Não obstante esses fatos históricos, a contribuição de Marx para o pensamento
sociológico e historiográfico contribui à compreensão da condição de modernidade. Tanto a
crítica ao capitalismo realizada por ele quanto a teoria da luta de classes continuam a ser
importantes instrumentos de análise do mundo contemporâneo, desde que não se pretenda
atribuir a elas um valor de verdade absoluta que renegan histórias de vida mostram que alguns
indivíduos, numa sociedade capitalista aberta, podem chegar a ocupar diferentes posições
sociais - ou estratos - durante sua existência. Assim, pessoas que integram o estrato de baixa
renda (camada C), podem eventualmente ascender ao estrato de renda média (camada B) ou,
mais raramente, ao de renda alta (camada A).
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Em contrapartida, pessoas da camada A podem ter sua renda diminuída, passando a
integrar as camadas B ou C. Do ponto de vista sociológico, os dois fenômenos são
caracterizados como manifestações de mobilidade social. Mobilidade social é a mudança de
posição social, ou seja, de status, de uma pessoa (ou grupo de pessoas) num determinado
sistema de estratificação social. Quando as mudanças de posição social ocorrem no sentido
ascendente ou descendente na hierarquia social, dizemos que a mobilidade social é vertical.
Quando a mudança de uma posição social a outra se opera dentro da mesma camada social,
diz-se que houve mobilidade social horizontal. Assim, a mobilidade social vertical pode ser:
ascendente ou de ascensão social - quando a pessoa melhora sua posição no sistema de
estratificação social, passando a integrar um grupo economicamente superior a seu grupo
anterior; descendente ou de queda social - quando a pessoa piora de posição no sistema de
estratificação, passando a integrar um grupo economicamente inferior.
Nesse contexto, o filho de um operário que, por meio do estudo, passa a fazer parte da
classe média é um exemplo de ascensão social, ou de mobilidade social ascendente. Em
contrapartida, a falência e o consequente empobrecimento de um comerciante é um exemplo
de queda social, ou mobilidade social descendente. Assim, tanto a subida quanto a descida na
hierarquia social são manifestações de mobilidade social vertical.
2. O conceito de classes em movimento - como funcionaria a mobilidade social nas
democracias?
O fenômeno da mobilidade social varia de uma sociedade para outra. Em algumas
sociedades ela ocorre mais facilmente; em outras, praticamente inexiste no sentido vertical
ascendente. É mais fácil ascender socialmente nos Estados Unidos, por exemplo, do que no
interior da Índia, ainda dominado pela estratificação social em castas. A mobilidade social
ascendente é mais frequente numa sociedade democrática aberta, que estimula e enaltece a
escalada rumo ao topo de indivíduos de origem humilde - como nos Estados Unidos - do que
numa sociedade de tradição aristocrática, como a Inglaterra. Neste caso, temos duas
sociedades democráticas, uma com tradições de sociedade estamental (a Inglaterra), a outra
sem essa tradição (os Estados Unidos, país que não conheceu o feudalismo, pois foi formado
entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea).
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Entretanto, mesmo na sociedade capitalista mais aberta, a mobilidade social vertical não
ocorre de maneira igual para todos os indivíduos. A ascensão social depende muito da origem
de classe de cada indivíduo, ou mesmo de sua origem étnica. No Brasil, as pessoas brancas
pertencentes às camadas sociais mais elevadas têm mais oportunidades e condições de se
manter nesse nível, ascender ainda mais e se sair melhor do que as originárias das classes
inferiores, sobretudo se são negras.
Isso pode ser facilmente verificado no caso dos jovens que pretendem fazer o curso
superior. Aqueles que, desde o início de sua vida escolar, frequentaram boas escolas e, além
disso, estudaram em cursinhos preparatórios de boa qualidade, têm mais possibilidades de
aprovação nos vestibulares das universidades públicas e privadas do que os jovens
provenientes das classes de baixa renda.
3. As políticas públicas e as políticas sociais como transição para a inclusão das
minorias:
A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer novos princípios e diretrizes para as
políticas públicas realizadas pelo Estado brasileiro, definiu parâmetros precisos ao processo
de elaboração e fiscalização das diferentes políticas setoriais. Não obstante, quase vinte anos
pós-promulgação da Constituição Federal, é possível identificar alguns componentes que
aproximam e/ou distanciam a efetividade desses novos princípios e diretrizes.
A universalização do atendimento proposta no sistema de proteção social brasileiro,
por exemplo, encontra-se, objetivamente, muito aquém do pretendido por esse princípio
constitucional. A descentralização político-administrativa, tanto no tocante a formulação,
quanto no financiamento e no controle social, encontra resistências político-burocráticas
apesar de avanços na normatização de áreas como a saúde, a educação e a assistência social.
Sem a pretensão de esgotar esse tema, cabe lembrar que as políticas públicas, em
particular àquelas denominadas de políticas sociais em uma sociedade capitalista, remetem à
necessidade de termos que compreender que essas políticas apresentam em sua constituição
uma complexidade histórica,
uma vez que surgem em uma íntima relação com as
características históricas de cada realidade social em que emergem.
Talvez, por isso, seja necessário contextualizar as políticas públicas, haja vista que
resultam de forças históricas contraditórias. Portanto, a forma e o conteúdo das políticas
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públicas estão diretamente associados a conjugação de fatores estruturais e conjunturais de
cada processo histórico de um determinado país. Desse modo, a particularidade mais comum
nas políticas sociais, independente no país que são formuladas, é que nascem no cerne de um
conflito econômico-político e social em que as contradições sociais se avolumam ao ponto de
gerarem uma mudança na estratégia adotada pelos governos para manterem a sua
governabilidade.
Isto quer dizer que as políticas sociais têm em comum um marco histórico que
identifica o seu registro de nascimento. Um marco que sinaliza uma conjuntura social em que
os conflitos sociais não podem mais ser enfrentados unicamente com os instrumentos
tradicionais para a solução das questões sociais: as ações repressivas. A história econômica,
política e social de cada país desenha o momento em que as políticas sociais passam a ser
adotadas como estratégia de governabilidade. Assim, as políticas sociais adquirem a
coloração específica das conjunturas históricas de cada país. Por isso mesmo, a forma como
as políticas sociais foram implantadas e operacionalizadas no Brasil tem o seu desenho
próprio.
Também nesse contexto, as políticas públicas de educação brasileiras tenham tido uma
marca explicitamente repressiva. O Estado atuava junto a sociedade como aquele que tinha
que garantir a ordem e a paz social. A implicação desta conotação é de que as políticas
públicas eram organizadas a partir de uma total desconsideração das questões sociais que
assolavam a realidade nacional.
Por outro lado é o próprio processo histórico que faz com que o papel das políticas
públicas mude, haja vista as inúmeras lutas sociais que colocaram, e ainda colocam em
cheque as ações repressivas como estratégia para o enfrentamento da chamada questão social.
Desse modo, a questão social, constituída em torno do pauperismo e da miséria das massas,
representou o fim de uma concepção idealista de que a sociedade, por si só ou, quando muito,
acossada pela polícia, pudesse encontrar soluções para os problemas sociais.
A partir desse momento histórico, o Estado passa a assumir uma característica em
especial, o seu papel regulador, ou seja, passa a intervir diretamente nas questões de natureza
econômica, política e social da sociedade para manter a sua legitimidade. Isto evidencia outra
característica comum nas políticas sociais que é destacada por Behring (1998, p. 168 ), uma
vez que passaram a integrar “a estratégia global anticrise do capital após 1929”. Isto quer
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dizer que as políticas sociais foram adotadas nos países capitalistas como parte de uma
estratégia de superação das crises cíclicas do capital.
É assim que as políticas públicas, especialmente as políticas sociais, se tornaram
importantes estratégias na manutenção das relações de poder que o Estado representa. Por isso
mesmo Galper (1986) destaca que as políticas sociais nos países de Estado de Bem Estar tem
duas funções básicas, uma função econômica já que os recursos gastos nas políticas sociais
contribuem para a manutenção das taxas de lucro do capital, e uma função de legitimação,
uma vez que mantém uma imagem de preocupação do Estado com os interesses da classe
trabalhadora e, assim, garantem a conservação do controle social.
4. A introdução das minorias no debate nacional:
Mais próximo da contemporaneidade, podemos destacar uma série de medidas
políticas, econômicas e sociais adotadas pelo governo brasileiro, que desde a década de 90
tem repercutido significativamente na forma e no conteúdo das políticas públicas: as medidas
neoliberais do Consenso de Washington da ampla abertura comercial; da desregulamentação
dos fluxos financeiros; da privatização das empresas estatais; da ampla reforma administrativa
do Estado (para acabar com estabilidade no emprego público e para abrir os serviços públicos
a iniciativa privada); e da reforma dos direitos sociais.
Essas medidas têm gerado fortíssimos reflexos no conjunto dos direitos sociais
reconhecidos pela constituição federal de 1988, pois se constituíram em uma nova investida
do capital no momento em que outra crise cíclica atingia o sistema. A solução encontrada para
manter a lucratividade exigia, entre outras coisas, o desmonte dos sistemas de bem estar social
que, segundo os neoliberais, eram os grandes responsáveis pelos gastos públicos e as crises
fiscais que os Estados passavam. Assim, “a reestruturação produtiva vem sendo conduzida em
combinação com o ajuste neoliberal, o qual implica a desregulamentação de direitos, o corte
dos gastos sociais, deixar milhões de pessoas à sua própria sorte e „mérito‟ individuais”
(BEHRING, 1998 p.180).
Nesse conjunto de elementos contemporâneos, as políticas sociais são taxadas
ideologicamente como políticas paternalistas que não contribuem para a autonomia do
indivíduo e impedem o estabelecimento de uma “saudável desigualdade” geradora de uma
“necessária concorrência” (SADER e GENTILI, 1995). Desta forma:
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A política social entra no cenário como paternalismo, como geradora
de desequilíbrio, como algo que deve ser acessado via mercado, e não
como direito social. Daí as tendências de desresponsabilização e
desfinanciamento da proteção social pelo Estado, o que, aos poucos,
vai configurando um Estado mínimo para os trabalhadores e um
Estado máximo para o capital (BEHRING, 1998 p.186).
Como consequência, as políticas sociais assumem a orientação da focalização
enquanto finalidade de ação, o que reforça o deslocamento do princípio da universalização
dos direitos inscrito da CF de 1988. O resultado direto do conjunto de forças que atacam e
destroçam as políticas sociais no Brasil é a instituição de uma compreensão e uma conduta
passiva que gradativamente aceita a argumentação de que grande parte dos serviços públicos
deveria “ter como clientela somente as camadas mais pobres da população, que encontram-se
desorganizadas e possuem uma pequena capacidade de pressão política” (ARAÚJO, 1998
p.23).
É a consolidação de uma cultura que acredita que os serviços públicos devem ser
destinados para os pobres. Essa cultura corrobora com as ações políticas do neoliberalismo
que destina parte significativa da população para os serviços privados.
Esse panorama cria aquilo que Sposati (1995) chama de inclusão excludente, ou aquilo
que Albuquerque (1986) refletindo sobre o poder em instituições chama de reconhecimento e
desconhecimento. Esses binômios expõem que o reconhecimento do usuário como sujeito de
direitos no momento que ele é incluído em serviços públicos descartáveis, de péssima
qualidade, ou por meio do processo imputador de uma ressocialização virulenta junto ao
usuário, na realidade, acaba excluindo o cidadão atendido de sua condição política enquanto
cidadão e também gera um desconhecimento de sua expressão inteira como ser humano, pois
passa a ser identificado e reconhecido a partir de sua carência social ou de um número
identificador do atendimento recebido.
É no percurso das mudanças da forma e do conteúdo das políticas públicas que
podemos encontrar pistas ao mapeamento da construção efetiva da cidadania. Isso ocorre
porque a mudança e ampliação/diminuição das políticas públicas está diretamente associada a
mudança e ampliação/diminuição do próprio conceito de cidadania. Para Campos (2001 p. 13)
a cidadania significa o
conjunto e a conjugação de direitos civis, sociais e políticos assegurados aos
membros de uma determinada sociedade. Tais direitos adquirem efetividade através
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do exercício das liberdades individuais, da participação política e do acesso a bens de
consumo e à proteção social pública.
Isto quer dizer que a medida que a cidadania vai sendo expandida ou diminuída em
decorrência do conjunto das lutas sociais, é possível encontrar uma estreita relação com a
expansão ou diminuição das políticas públicas, uma vez que o reconhecimento de direitos de
cidadania implica em uma correlação direta com a organização, a sistematização e a
implementação das políticas públicas pelo Estado. Em função dessa compreensão, pode-se
dizer que as políticas sociais são:
o conjunto de ações públicas, governamentais ou não, destinadas à satisfação de
necessidades coletivas. Estas ações públicas integram o elenco de estratégias
utilizadas pelo Estado com vistas à reprodução da força de trabalho e a preservação
de ordem sócio-econômica e política vigente (CAMPOS, 2001 p. 13).
Assim, a compreensão da complexa relação entre as políticas públicas e a cidadania é
relevante, pois “embora o Estado não seja condição suficiente para a emergência e
consolidação de um determinado padrão de cidadania, somente a esfera pública tem se
revelado, historicamente capaz de reduzir os impactos competitivos do mercado” (CAMPOS,
2001 p.13) Desse modo, as lógicas que orientam o mercado e a cidadania são ao mesmo
tempo distintas e conflitantes.
Talvez, isso queira dizer que aceitar as ideias que defendem a condição de um cidadão
que pode e deve encontrar no mercado os meios para a sua reprodução social é, no mínimo,
uma posição ingênua. A cidadania é um produto construído em um ambiente contraditório em
que a organização social e a participação cidadã são fundamentais para o reconhecimento e a
legitimação dos indivíduos enquanto cidadãos. É por isso que deve ser vistas com muita
reserva as adjetivações dadas constantemente para o cidadão, como por exemplo, o de cidadão
consumidor, uma vez que estas qualificações tendem a destituir o caráter político que está
contido no cerne do conceito de cidadão e de cidadania.
Devemos então perguntar: qual é o ambiente que nutre e alimenta a própria cidadania
e, por correspondência fortalece o papel do cidadão no controle das políticas públicas?
Obviamente que esse lugar é o ambiente democrático. Isto quer dizer, que um ambiente
democrático tem um grande efeito sobre a constituição de um Estado de direitos, que por
princípio, se organiza para atender as necessidades sociais das maiorias sociais. Em parte, por
isso, os direitos sociais são aqueles que
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representam a via por meio da qual a sociedade penetra no Estado, procurando:
conhecê-lo, controlá-lo e interferir na sua estrutura administrativa, nos seus
processos de legitimação e regulação, nas suas prioridades e objetivos (PEREIRA,
2002 p.34).
Não obstante o processo de conquista dos direitos cidadãos, não é homogêneo e linear,
o que faz com que o reconhecimento da cidadania nem sempre ocorra sob a perspectiva da
universalidade. É assim que, na história dos direitos de cidadania no Brasil, “muitos dos
direitos sociais foram implantados através de um viés corporativista, visando atender as
demandas dos segmentos mais organizados dos trabalhadores e com maior capacidade de
pressão política, e, portanto, não se tornaram universais” (ARAÚJO, 1998 p. 22).
A força do corporativismo nas políticas sociais brasileiras deixou muitas cicatrizes,
uma vez que tendeu a deslocar a questão da universalidade dos direitos sociais. Uma vez
deslocada a questão da universalidade, as políticas sociais organizadas para operacionalizar
direitos sociais puderam assumir configurações e formatações de menor alcance, com
qualidade questionável e com uma fragmentação irresponsável.
É isso que fez com que Sposati (1995) afirmasse a existência do componente
“assistencial, como mecanismo presente nas políticas sociais” (p.30). O componente
assistencial presente nas políticas sociais desloca o direito e reitera o usuário como assistido,
beneficiário, ou favorecido. Isso quer dizer, que o cidadão, neste formato de política social,
não é reconhecido como tal, mas como um indivíduo que tende a receber um serviço público
sem reconhecê-lo como direito, como público.
Desta forma, “a existência formal de direitos não garante a existência de um espaço
público” e de uma “sociabilidade política que a prática regida pela noção de direitos é capaz
de criar” (TELLES, 1999 p.71). Ou seja, o reconhecimento formal do direito, a despeito de
sua relevância e importância não é condição suficiente para a sua efetivação. Especialmente
quando somos uma nação em que a presença do autoritarismo fincou raízes fortes na imagem
individual e coletiva de um Brasil (CHAUÍ, 2001) que se aquiesce e se submete as várias
ações governamentais depreciativas dos direitos dos cidadãos.
5. O caminho para as minorias como categoria de análise e de intervenção:
Por isso, o caminho que vai do direito formal a efetivação deste pode ser entrecortado
com atalhos e desvios que acabam confiscando o direito social, seja porque os instrumentos
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construídos para dar operacionalidade ao direito (leis, decretos, burocracia institucional,
procedimentos operativos, e outros) podem dificultar o acesso em vez de torná-lo exequível,
seja porque o campo institucional em que o direito é operacionalizado pode formar um
processo de ressocialização em que a sociabilidade realizada pelo usuário acaba submetendoo conformadamente ao poder avassalador da instituição para que ele não perca o “direito” ao
serviço oferecido.
O movimento democratizador que precedeu a Constituição Federal de 1988 foi
produto de uma intensa mobilização de diferentes segmentos sociais, que procuravam
sedimentar no processo constituinte propostas de cunho democrático. As organizações da
sociedade civil que participaram intensamente do processo da constituinte brasileira
traduziram a conjunção de lutas que amadureceram qualitativamente e se ampliaram
quantitativamente desde o regime militar.
A unificação das demandas localizadas se fez ao redor de setores
problemáticos do social. Embora houvesse um cruzamento intenso de
formas organizacionais de setores das camadas médias (lutas das
mulheres, dos estudantes, dos ecologistas, dos negros etc.) com
setores das classes populares (lutas por equipamentos coletivos, bens e
serviços públicos, pela habitação e pelo acesso à terra), havia alguns
denominadores comuns: a construção de identidades através das
semelhanças pelas carências; o desejo de se ter aceso a direitos
mínimos e básicos dos indivíduos e grupos enquanto cidadãos; e
fundamentalmente, a luta contra o status quo predominante: o regime
militar (GOHN, 1991, p. 13).
A construção de uma identidade comum, a partir das carências sociais, de certa forma,
embasou o esforço em torno da luta pela consolidação de direitos básicos do cidadão,
voltados a gravar na nova Constituição Federal os fundamentos de uma moderna cultura
social: a cultura dos direitos sociais.
Assim, a atual Constituição brasileira, como produto de interesses conflitivos, em
decorrência das pressões organizadas de grupos, instituições e segmentos identificados com
os interesses populares, trouxe para a esfera legal a consolidação de diversas reivindicações
das classes populares. Em que pese o congresso constituinte ter sido marcado por um perfil
conservador, observou-se que este incorporou (sob pressão) demandas e reivindicações
democráticas. De certa forma legislaram sob o signo de um novo tempo. Por isso, a
Constituição de 1988 inaugurou medidas importantes como na Seguridade, na Assistência
Social, na Criança e Adolescente, e outros. Mais tarde, outros documentos regulatórios como
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o Estatuto do Idoso e, especificamente, no campo da educação, as políticas de cotas para
negros ou para os alunos oriundos da escola pública reconfiguram o potencial teórico que as
classes possuem por si para a compreensão da realidade nacional em tempos de
contemporaneidade.
À guisa de conclusão
Nesses tempos, falando em ações afirmativas, dentre os vários efeitos e análises que se
possam aprofundar, parece haver uma importância particular o fato de despertar a
universidade para o cumprimento de sua função social de incluir a todos. Nesse sentido, a
obrigação inadiável de formar futuros professores capacitados para combater o racismo em si
próprios, na sala de aula e na escola. Esta questão precisa ser incluída no currículo dos cursos
de pedagogia e nas licenciaturas, além dos clássicos estudos sobre as lutas de classes, ainda
que sejam parte da explicação dessa condição. Parece não se trata apenas de uma abordagem
teórica e abstrata dos males do racismo. Trata-se de capacitar os professores para diagnosticar
situações de preconceito e exclusão na prática da sala de aula, para buscar formas de combatêlo e conscientizá-los da importância, para os estudantes, do estímulo de um professor que
reconhece as contradições sociais e vai além das clássicas formas de vislumbrar a sociedade
desde o prisma da luta de classes. Desta forma, a universidade contribuirá para sanar o mal
pela raiz, isto é, no próprio ensino fundamental. Assim, a conjunção dos estudos sobre as
classes sociais, bem como sobre o sentido das „minorias sociais‟ contribuirá para diminuir a
desigualdade educacional no Brasil, para além das situações de conflitos entre grupos que,
antes de serem antagônicos, são complementares e devem ser contemplados nas sociedades
que se identificam como democráticas.
Referências
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1
O MOVIMENTO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA EM TERESINA (PI):
os dilemas da institucionalização do fórum municipal.
Naira Luan Sousa e Silva (UFPI) 1
[email protected]
FAPEPI/CAPES
GT 3 - Conflitos sociais, instituições e políticas públicas
Desde que o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu a presidência da República em 2003,
ampliaram-se as políticas publicas de enfrentamento à pobreza e à miséria e os canais para a
participação da sociedade civil sob o ideal da democracia participativa. Apesar do aspecto
otimista desse acontecimento, vários dilemas tem se apresentado no âmbito das relações entre
Estado e Sociedade Civil, relacionadas, por exemplo, à autonomia da ação coletiva
organizada. Nessa perspectiva, esse trabalho fornece uma discussão acerca das conquistas e
amarras que se apresentam com a institucionalização do movimento de economia solidária no
Piauí através das políticas públicas. Parto da hipótese de que o encaminhamento da economia
solidária a partir das políticas públicas desfigura o propósito de superação do modo de
produção capitalista porque a possibilidade de geração de trabalho e renda sobrepõe-se ao
ideal de projeto revolucionário socialista. Nesse exercício analítico, em primeiro lugar,
recorro às formulações teóricas de Melucci (2001), (1989) sobre os movimentos sociais nas
sociedades complexas a fim de entender os significados dos processos revolucionários no
cenário atual. Também participam da discussão aqui apresentada Scherer-Warren (1999),
Bocayuva (2003), Silva; Oliveira (2012), Silva (2012) e Singer (1998). Em segundo lugar,
apresentarei a trajetória e as estratégias do Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária
de Teresina (FMEPS) dos atores no interior desse espaço.
1 Introdução
Este artigo tem o propósito de contribuir com a discussão acerca do processo de
institucionalização do Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária no município de
Teresina – PI, priorizando o debate em torno da relação do movimento de economia solidária
com a experiência de política pública na capital piauiense2.
Atualmente, as transformações no mundo do trabalho nas sociedades capitalistas
apontam números preocupantes em relação ao desemprego e a informalidade até de
trabalhadores tidos como “qualificados”. Isso tanto em épocas de crise como em épocas mais
1
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI - ingresso no ano de 2014), atua na
investigação sobre o fenômeno do movimento social de economia solidária em Teresina – Piauí. Aluna bolsista
da FAPEPI/CAPES. Graduada em Administração pela UFPI/Picos desde 2012.
2
O estudo constitui parte das primeiras reflexões sobre o fenômeno de economia solidária no Piauí a partir da
análise da rede das relações entre os sujeitos sociais coletivos que participam dos espaços dos fóruns de
economia solidária em Teresina, objeto de minha dissertação de mestrado, ainda em andamento.
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2
prósperas. As tendências “destrutiva e excluidora” do capitalismo3 expostas por Paul Singer
são percebidas sem muito esforço pelos indivíduos (SINGER, 1998, p. 117). E é esse cenário
que obriga aqueles trabalhadores “excluídos” do mercado de trabalho a buscarem alternativas
para “inclusão”, as quais podem vir por vias do empreendedorismo individual ou coletivo, ou
ainda através das lutas reivindicatórias para a ampliação das práticas solidárias entre homens e
mulheres no âmbito da comunidade.
Na contramão dessa lógica, uma solução não capitalista para o desemprego e exclusão
social recebe determinada parcela de investimento governamental: o empreendedorismo
coletivo ou grupo de atividade econômica solidária, em que as relações patrão de empregado e
lucro se desfazem e os trabalhadores protagonizam uma forma de produção que se estabelece
sobre os alicerces da solidariedade. Nessa perspectiva, nosso estudo interessa-se pelo
empreendedorismo coletivo, forma de produção que se contrapõe à economia tradicional4; e
que se orienta pelos princípios de autogestão e repartição igualitária dos “lucros”, a economia
solidária.
Dada à amplitude dos aspectos que podem ser investigados sobre o fenômeno em
questão – produção, comercialização, crédito, consumo, políticas públicas, etc; deter-nosemos sobre os processos articulatórios desenvolvidos no interior do Fórum Municipal de
Economia Popular e Solidária de Teresina – Piauí. Acreditamos que esse espaço comporta
uma série de atores coletivos que interagem protagonizando o movimento social de economia
solidária e, além disso, todas as ideias potenciais de reconhecimento político passam pelas
discussões realizadas no e através do fórum. Participam das discussões três segmentos de
atores sociais: os gestores públicos, as entidades de apoio e fomento e os empreendimentos
solidários.
3
Paul Singer (1998) observa a capacidade do sistema capitalista em destruir a cada ciclo, durante as crises, os
ofícios consolidados pelos homens como aconteceu depois da Revolução Industrial na qual, trabalhos manuais
foram substituídos por máquinas (tendência destruidora). A tendência excluidora, por sua vez, refere-se à
acentuação do desemprego e com ele da pobreza o que consequentemente amplia a exclusão social percebida,
não só no que diz respeito à renda, mas também ao status social.
4
Aqui nos referimos à economia tradicional no sentido das práticas econômicas hegemônicas, ou seja,
correspondem às atividades exercidas pelos agentes econômicos, relacionadas ao modo de produção capitalista.
Essas atividades são frequentemente e socialmente aceitas como atividades formais de trabalho, fato que rechaça
os modos de produção não capitalistas ao campo da informalidade, apesar de suas bases estenderem-se
anteriormente à revolução capitalista, por ter seu fundamento nos princípios do comunismo primitivo, como por
exemplo, àquele vivido nas tribos indígenas intocadas pelo modelo civilizatório europeu; e, da impossibilidade
intrínseca à natureza estrutural do sistema capitalista de abrigar todos os homens e mulheres na “formalidade” do
mercado de trabalho (ARROYO; SCHUCH, 2006).
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3
Os fóruns de articulação de economia solidária são constituídos por uma pluralidade
de sujeitos sociais coletivos e fornecem um rico material empírico à análise do movimento
social de economia solidária, desde documentos produzidos pelos atores durante a realização
e mediação de debates em torno das questões relacionadas ao marco legal e integração de
políticas públicas, até informações sobre a formação e o assessoramento prestado aos
empreendimentos solidários.
A partir desse estudo, acreditamos ser possível uma contribuição ao fenômeno dos
movimentos de economia solidária, isso porque nos propomos alargar a compreensão da
atuação dos movimentos e compreensão do sentido da economia solidária no Piauí. Para nós,
essa pesquisa na temática da economia solidária coloca-se também como uma oportunidade
de contribuir na divulgação dos princípios e práticas de resistência dos trabalhadores dessa
outra economia.
Portanto, esperamos que nosso presente trabalho sirva de referência aos estudiosos que
desejem compreender as especificidades do movimento de economia solidária no Piauí, a
partir de sua atuação na capital Teresina, no que diz respeito à dinâmica dos atores sociais no
Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina.
2 Os novos movimentos sociais e os canais de participação para a sociedade civil
No Brasil, é possível distinguir duas fases na trajetória dos movimentos sociais que
mereceram diferentes interpretações sociológicas: “a emergência heroica dos movimentos”
(na década de 1970 até início da década de 1980) e a institucionalização da participação dos
movimentos (início da década de 1980 até os dias atuais). Durante a primeira fase, os estudos
ressaltavam a espontaneidade e a autonomia dos movimentos sociais, o potencial que esses
tinham para construir uma “nova cultura política”, por outro lado, na segunda fase, os
cientistas sociais tiveram dificuldades em assimilar qual tipo de processo de diálogo se
estabelece entre movimento social e agências públicas (CARDOSO, 1994).
Hoje é necessário enfrentar a questão da cidadania como algo que se constrói na
relação entre Estado e sociedade civil e dessa forma investigar como se dá a incorporação dos
direitos coletivos pelo Estado, uma vez que a “a esfera pública é responsável pelo
atendimento ou pela resposta a esses direitos, o que não quer dizer que o faça, mas significa
que isso já está legitimado” (CARDOSO, p. 90, 1994).
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4
Nesse sentido, os movimentos sociais devem ser examinados como sistemas de ação e,
portanto, a análise deve valorizar as relações das ações concretas dos sujeitos e não o que os
movimentos dizem de si. Dessa forma:
A ação tem de ser considerada como uma interação de objetivos, recursos e
obstáculos, como uma orientação intencional que é estabelecida dentro de um
sistema de oportunidades e coerção. Os movimentos são sistemas de ação que
operam num campo sistêmico de possibilidades e limites. É por isso que a
organização se torna um ponto crítico de observação, um nível analítico que não
pode ser ignorado. O modo como os atores constituem sua ação é a conexão
concreta entre orientação e oportunidades e coerções sistêmicas (MELUCCI, 1989,
p. 52).
Para Melucci (1989) os participantes da ação coletiva não orientam as suas ações
somente por orientações econômicas, ou seja, calculando benefícios próprios, mas buscam
também estabelecer vínculos de identidade e solidariedade. Além disso, os conflitos sociais
contemporâneos não são apenas políticos, partilham de aspectos culturais mutantes que
aumentam as incertezas das sociedades complexas.
O desenvolvimento capitalista tem requerido uma contínua intervenção nas relações
sociais, nos sistemas simbólicos, nas identidades individuais e nas necessidades humanas. Nas
sociedades complexas os bens materiais “são produzidos e consumidos com a mediação dos
gigantescos sistemas informacionais e simbólicos” (MELUCCI, 1989, p. 58). E dessa forma,
os movimentos sociais trabalham a dimensão do conflito, da solidariedade e o rompimento
dos limites do sistema, esse último corresponde ao aspecto aceitável das variações em nível
sistêmico.
Em relação à esfera da ação dos movimentos contemporâneos, “as lutas podem
produzir algumas mudanças na política, mas com muita frequência o conflito reaparece em
outras áreas da estrutura social” (MELUCCI, 1989, p. 57). Levam um projeto de sociedade, e,
portanto, como comportamento antagônico não pode ser inteiramente integrado, uma vez que
pregam novos modelos culturais alternativos.
Nessa perspectiva, diante dos desafios relacionados com a globalização da economia
atual, dois modelos emergem como proposta de enfrentamento aos problemas sociais,
políticos e econômicos: o neoliberalismo e outro alternativo a ele dirigido por um conjunto de
sujeitos sociais que constituem a sociedade civil. E esse “modelo alternativo” é possível
graças ao sentimento de indignação compartilhado pelos sujeitos frente a uma multiplicidade
de problemas, tais como, a ideia de exclusão social, a fragilidade das práticas da cidadania e
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5
democracia e ainda os processos de massificação da cultura global (SCHERER-WARREN,
1999).
Melucci (2001) nos aponta um caminho para análise dos movimentos sociais,
explicando alguns princípios necessários para tal: perceber a ação coletiva como expressão de
um conflito e não resposta a uma crise, o conflito está associado a uma disputa permanente
pelos recursos valorizados para atores que se opõem. Nesse sentido, a solidariedade é uma
característica indispensável no interior de um movimento social, a partir dela os indivíduos se
reconhecem uns nos outros, o que é importante para que o caráter de unidade seja mantido
pelo grupo. A ação coletiva pressupõe a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema no
qual a ação se realiza, uma crítica ao sistema hegemônico, podendo estabelecer-se como
movimento reivindicativo, movimento político ou movimento antagonista5.
3 O Movimento de Economia Solidária em Teresina – Piauí
Ao estabelecer a relação do movimento de economia solidária com o movimento dos
trabalhadores é necessário considerar a autonomia dos trabalhadores (propriedade coletiva dos
meios de produção) como elemento indispensável para que se processe uma verdadeira
transição das formas de produção capitalista para as formas coletivas, em que haja uma
revolução cultural dirigida de baixo para cima pelos trabalhadores (BOCAYUVA, 2003).
Na proposta da economia solidária enquanto movimento social e parte de uma
revolução social socialista6 “fica aberta a questão clássica de se as sementes plantadas no
terreno do modo de produção capitalista podem se expandir até o ponto de ruptura”
(BOCAYUVA, 2003, p. 25). Nosso estudo não tem a finalidade de fazer previsões acerca das
possibilidades ou impossibilidades da economia solidária como implante socialista, mas
pretende discutir as interações, entre os diversos atores do movimento nas relações de
articulação desses sujeitos em um canal de participação política como são os fóruns.
5
O movimento reivindicativo supõe a rejeição das regras do jogo e a luta por vantagens negadas ao grupo, no
entanto, tende a assumir também uma ação propositiva, no sentido de produção de normas; o movimento
político, por sua vez, atua para dirimir as diferenças de poder decisório no esquema político, visando, com isso,
ampliar os canais de participação política; o movimento antagonista discute o objetivo da produção econômica e
o próprio desenvolvimento humano (MELUCCI, 2001).
6
O sentido da revolução social socialista está relacionado com o processo de mudança entre as formações sociais
na qual se estabeleça a hegemonia do modo de produção socialista. A implantação de instituições anticapitalistas
como cooperativas e sindicatos indica que essa revolução está em curso, sem, contudo ser reconhecida com êxito
(SINGER, 1998).
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Diante dessa abordagem, questiona-se o modo de construção do movimento social de
economia solidária no Piauí, ao considerar que entre os principais motivos para criação dos
empreendimentos solidários no Nordeste aparecem os seguintes: alternativa ao desemprego
(46%), complementação de renda dos sócios (40%), acesso a financiamentos (34%), obtenção
de maiores ganhos (33%), e possibilidade de gestão coletiva (26%) (SENAES, 2009).
Através desses dados podemos perceber em partes, como se forma a unidade do
movimento de economia solidária no Nordeste, quais motivos levam os diferentes atores a
partilhar de uma causa em comum. O que desejamos entender está pra além dessa informação,
pois analisaremos o processo de organização dos atores bem como suas estratégias e práticas,
ou seja, os resultados das suas crenças no movimento de economia solidária no Piauí.
O Piauí é um estado do nordeste brasileiro marcado por necessidades econômicas e
sociais, isso pode ser comprovado pela sua posição no ranking estadual de desenvolvimento
humano, onde ocupa a 24° (vigésima quarta) posição, acima apenas dos estados do Pará,
Maranhão e Alagoas, respectivamente, conforme Atlas do Desenvolvimento Humano no
Brasil em levantamento realizado no ano de 2010 (ATLAS BRASIL, 2015).
Nesse cenário, a economia solidária recebe relativa atenção na gestão pública. Na
esfera estadual a consolidação do Fórum Estadual de Economia Popular e Solidária, no ano de
2004, representou um grande avanço no debate das políticas públicas voltadas para as
demandas dos empreendimentos econômicos solidários. Outra conquista significativa do
movimento foi a aprovação da Lei Ordinária Estadual n. 6.057, de janeiro de 2011, na qual se
institui a Política Estadual de Fomento à Economia Solidária, onde o Estado se compromete
com a geração de trabalho e renda a partir da cultura empreendedora baseada nos valores da
economia solidária (SILVA, 2012).
Em relação a gênese dos empreendimentos solidários no Piauí, é possível demarcar
dois modos pelos quais os tais se formaram: ora através da gênese autônoma, ora mediante
gênese induzida. Quanto a essa última destaca-se a atuação da Secretaria de Assistência
Social e Cidadania (SASC) através do Programa Economia Solidária em Desenvolvimento,
executado durante o triênio 2004/2006. No referido programa foram aplicados R$ 900.000,00
(novecentos mil reais) com a implantação inicial de 180 grupos, aonde se sobressaiam as
atividades de costura, bordados e artesanato. Desses grupos, o percentual de 55% assimilaram
os valores da economia solidária, no entanto permanecem os desafios relacionados às práticas
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da economia solidária no Estado, desde a capacitação dos grupos até a comercialização dos
produtos e serviços (SILVA, 2012).
No Piauí são 1.472 (mil quatrocentos e setenta e dois) empreendimentos econômicos
solidários em 149 (cento e quarenta e nove) municípios, sendo que apenas em Teresina,
capital piauiense, foram identificados 124 (cento e vinte e quatro) empreendimentos solidários
(SENAES, 2009).
É importante ressaltar que dois dos municípios do estado possuem leis de fomento e
regulamentação da economia solidária: São João do Arraial e Pedro II. Esses municípios
também vivem a experiência da implantação da moeda solidária, a moeda do primeiro
município foi chamada de cocais e a segunda, mais recente, denominada opala.
No ano de 2013, foi criada na capital piauiense a Secretaria Municipal de Economia
Solidária de Teresina (SEMEST), essa atende dezesseis Centros de Produção, oito
Lavanderias Comunitárias, o Shopping da Cidade, o Polo Cerâmico Poti velho, Artesões,
Grupos Culturais, Hortas Comunitárias, Bordadeiras, Mestres Santeiros, Shopping da
Natureza e Desenvolvedores de Tecnologia da Informação (TERESINA, 2015). No Plano
Plurianual 2014/2017, através do Programa Implantação da Economia Criativa e Solidária no
contexto das atividades econômicas do município de Teresina, a Prefeitura de Teresina
destinará uma quantia de R$ 36. 492. 392, 00 (trinta e seis milhões, quatrocentos e noventa e
dois mil, trezentos e noventa e dois reais)
Ao analisarmos o perfil dos atores atendidos pela SEMEST visualizamos um número
expressivo de sujeitos que não atuam em conformidade com os fundamentos da economia
solidária, empreendedores individuais, uma vez que, suas atividades econômicas não possuem
caráter coletivo, prevalecem relações de trabalho assalariado.
No entanto, por meio de provocação da própria SEMEST junto ao Fórum Estadual de
Economia Popular e Solidária, foi criado, em 2014, o Fórum Municipal de Economia Popular
e Solidária de Teresina (FMEPST), tratado na secção a seguir.
4 Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina (FMEPST)
Instalado em 20 de fevereiro de 2014, o Fórum Municipal de Economia Popular e
Solidária de Teresina – FMEPST, resultado da provocação da Secretaria Municipal de
Economia Solidária de Teresina (SEMEST) junto aos integrantes dos movimentos de
economia solidária participantes do FEEPSPI.
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Os objetivos do FMEPST são: fortalecer os empreendimentos econômicos solidários,
difundir o conceito e a prática de economia solidária no município de Teresina, e, representar
o movimento diante da sociedade civil e dos órgãos governamentais. Para tanto, o FMEPST
está organizado por uma Plenária Municipal, uma Coordenação Geral, uma Secretaria
Executiva e Grupos Temáticos de Trabalho.
Atualmente o FMEPST está composto por 50 (cinquenta) instâncias participativas,
dentre as quais, 37 (trinta e sete) são empreendimentos econômicos solidários, 12 (doze)
entidades de assessoria e fomento, e 1 (um) gestor público. O FMEPST está sediado dentro da
própria Secretária Municipal de Economia e Solidária (SEMEST). Conforme quadro abaixo:
Quadro 1: Instâncias Representativas do FMEPST
Fonte: Secretaria Executiva do FMEPST, 2015.
Empreendimentos Econômicos Solidários – EES
Lavanderia Planalto Uruguai
Associação de Micro Empreendedores do Shopping da Cidade
Centro de Produção Monte Horebe
Associação dos Horticultores do São Joaquim
Associação de Costureiras do Parque Wall Ferraz
Associação dos Mini e Pequenos Produtores
Centro de Produção Dirceu
Centro de Produção Vila Maria
Lavanderia Comunitária Santa Isabel
Grupo Cultural Afro Condart
Grupo de Mulheres Centro de Produção Buenos Aires
Grupo de Mulheres Bordadeiras do Parque do Piauí
Associação Teresinense dos Profissionais em Olarias
Associação das lavanderias Morro da Esperança
Lavanderia Planalto Ininga
Pastoral do Povo de Rua
Fazenda da Paz
Centro de Produção Promorar
TECEART
Centro de Produção Mão Santa
Oportunidade de Renda Solidária
Centro de Produção Dirceu I
Associação Cultural Reisado do Piauí
Associação dos Fieis de Santa Joana Dar’c
Brincando de Boneca
Mistura de Arte
Centro de Produção Parque Wall Ferraz
Horticultores Beira Rio
Associação Filantrópica Oficina do Amor
Bioart
Associação de Moradores do Mocambinho
Ponto de Cultura Intercâmbio e Arte
Comunidade Kolping de Buenos Aires
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Centro de Produção do São Joaquim
Associação dos Micro Empreendedores Individuais – Vila Cidade Jardim
Entidades de Apoio e Fomento – EAF
Setorial de Economia Solidária do Partido dos Trabalhadores
Rede Social Solidária
Instituto Camilo Filho
Instituto Samara Sena
Núcleo de Economia Solidária da Santa Maria da Codipi
Rede de Educadores e Educadoras de Economia Solidária do Estado do Piauí
Comitê Lagoa do Norte
Rede de Mulheres Produtoras do Piauí
Instituto de Negócios do Piauí
Rede de Educação Cidadã
Comunidade Kolping
Centro Cultural Aroeira
Poder Público – PP
Secretaria Municipal de Economia Solidária de Teresina
Apesar do pouco tempo em que o FMEPST está instalado no município, percebe-se
uma expressiva participação dos atores sociais do movimento de economia solidária no
mesmo, uma vez que dos 124 empreendimentos solidários mapeados na capital piauiense, 37
possuem assento no FMEPST, o que significa um percentual de aproximadamente 30% dos
empreendimentos com assento.
Sobre a percepção que os empreendimentos solidários possuem acerca da importância
de participarem de um fórum de economia solidária, recortamos a seguinte fala de uma
empreendedora solidária:
O positivo do grupo cultural AFROCONDART e outros empreendimentos fazer
parte do fórum municipal desde sua emancipação é a questão de que o fórum tem
toda uma preocupação de consolidar as políticas de economia solidária e as políticas
de economia solidária são constituídas por todos os integrantes do fórum municipal
(que integrantes são esses?) são entidades de fomento e empreendimentos. E o
fórum tem uma vantagem porque nós podemos estar construindo nosso plano e
garantindo nesse plano as necessidades hoje que os empreendimentos solidários
enfrentam junto a uma cidade, estado, país, capitalista, onde por meio do fórum nós
estamos aí até a secretaria de economia solidária reivindicando de fato os recursos
destinados pra o desenvolvimento desses empreendimentos que tem suas
dificuldades na questão de recursos, na questão de sua produção, mas, a importância
de estar em um fórum é a troca de experiência. (...) Então o fórum é esse espaço de
troca de experiência, o espaço de crescimento de política mesmo de economia
solidária, não adianta dizer que economia solidária, fazer economia solidária sem
saber de sua importância hoje né, que nós estamos aí que é uma nova economia, é
um contraponto ao capitalismo, então nós estamos fazendo ela, acreditando. E o
fórum com certeza é o espaço que possibilita essa conversa, esse diálogo, as coisas
acontecerem, a gente se reunir em plenária pra gente poder avaliar, pra gente poder
começar, pra gente poder encaminhar nosso plano, nossas necessidades. E aí os
gestores por meio dessa organização vão respondendo de acordo com a força do
movimento, quanto mais se produz, quanto mais tem algo pra colocar no mercado
algo de diferente, então isso sensibiliza que o poder público condicione recurso para
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atender as políticas de economia solidária (ENTREVISTA, FÁTIMA ZUMBI –
GRUPO CULTURAL AFROCONDART, 2015).
A entrevistada relata em seu depoimento dois aspectos relevantes para a compreensão
da construção do movimento de economia solidária no município de Teresina através do
FMEPST: 1) a necessidade de consolidar as políticas públicas de economia solidária na
cidade através do diálogo, da cobrança direta às agências públicas; e, 2) a possibilidade de
troca de experiências entre os empreendedores solidários no espaço do fórum.
Convidamos o representante da SEMEST que possui assento no FMEPST para
compartilhar conosco, os principais dilemas na relação do poder público com o movimento de
economia solidária em Teresina:
No momento a secretaria não pode deixar de ver a questão da venda ambulante, do
shopping da cidade, das pessoas que trabalham no calçadão, das pessoas que
trabalham no troca-troca, que é uma questão cultural, uma questão de memória. A
gente não pode afrontar, a política de economia solidária não é pra afrontar, tanto no
âmbito do fórum, do conselho, ou da secretaria. A política de economia solidária é
pra dialogar. É um processo, nada pode ser mudado assim da noite pro dia
(ENTREVISTA – CLÁUDIO RODRIGUES – SEMEST, 2015).
O entrevistado procura justificar os motivos que fazem com que a SEMEST atenda
também os empreendedores individuais, uma questão cultural. Dessa forma, na opinião do
entrevistado é necessário estabelecer um processo de diálogo com esses atores que ainda não
atuam no Campo da Economia Solidária.
5 Conclusão
Desde a década de 1990 existe uma intersecção Estado – Movimento Social que não
deve ser desconsiderada, essa relação oportuniza novas formas de organização e atuação dos
movimentos sociais e foi justamente nesse intercâmbio que o movimento de economia
solidária se fortaleceu como uma política institucionalizada, a exemplo da organização no Rio
Grande do Sul. Assim, ao analisar o movimento de economia solidária verificaremos a ideia
de que a articulação desse movimento com o Estado é uma espécie de “cooptação” (SILVA;
OLIVEIRA, 2012).
No entanto, existe nessa relação Estado – Movimento Social uma imbricação
complexa. No caso do movimento de economia solidária percebe-se que os novos canais de
participação provocam uma determinada “simbiose entre movimento social e governo
democratizante”, onde a “estrutura do Estado potencializa a ação dos movimentos e vice-
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versa”, “não há contradição desde que uma esfera não subordine à outra” (CRUZ, 2002, p.
123).
No caso do movimento de economia solidária no Piauí, percebemos pelo exposto que
a economia solidária configura-se como uma estratégia de desenvolvimento econômico local
no estado, por isso, integra o quadro dos programas de políticas públicas e políticas sociais de
combate ao desemprego, no entanto, nessa relação se estabelece uma contradição inerente:
uma estrutura estatal capitalista desenvolvendo uma política que empodera a classe
trabalhadora.
Diante disso, percebe-se que a estratégia da política pública de economia solidária é
incompleta, porque a intenção e a interpretação que o Estado faz da própria equivale tão
somente ao mecanismo de geração de trabalho e renda, ou seja, o que existe é uma preparação
técnica dos empreendimentos solidários para que desfrutem de relativa viabilidade
econômica.
Então, é no Fórum Municipal de Economia Popular e Solidária de Teresina que os
atores que compõe o movimento de economia solidária tem a oportunidade de preparar
politicamente os empreendimentos solidários com vistas a alcançar tanto a viabilidade
econômica como também a solidariedade interna.
Dessa forma, esse espaço público terá a função não de institucionalizar o movimento,
mas “fazer a sociedade ouvir suas mensagens e traduzir suas reivindicações na tomada de
decisão política, enquanto os movimentos mantêm sua autonomia” (MELUCCI, 1989, p. 64).
Referências
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nesic.
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MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades
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SILVA, Marcelo Kunrath; OLIVEIRA, Gerson de Lima. A face oculta(da) dos movimentos
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TERESINA. PREFEITURA MUNICIPAL DE TERESINA. REVISTA DA SEMEST.
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GT 3 - CONFLITOS SOCIAIS, INSTITUIÇÕES E POLÍTICA – SESSÃO 2
COORDENADXR E DEBATEDXR: DR. GABRIEL DE SANTIS FELTRAN
17 DE JUNHO DE 2015 – 14H
LOCAL: AUDITÓRIO 3 DA BIBLIOTECA – ÁREA NORTE
DO ESTIGMA AO ORGULHO, ENTRE O PROBLEMA E A
SOLUÇÃO: A REINVENÇÃO DA FAVELA E DOS FAVELADOS
DE VILA PRUDENTE
Kassia Beatriz Bobadilla - UNIFESP1
[email protected]
Agência Financiadora: CAPES
GT 3 - Conflitos Sociais, Instituições e Política
Resumo
O presente trabalho visa discutir as construções sociais sobre a favela e os favelados e
de como isso repercute sobre os processos identitários vivenciados pelos moradores da
Favela de Vila Prudente. A partir das transformações ocorridas nessa favela e em seu
entorno, busco acompanhar os deslocamentos dessas representações sociais. Para isso,
privilegio a análise do período pós-1990, quando a favela passa a ser positivada e
celebrada pelo mercado, indústria cultural e organizações sociais, e de como esses
processos são apropriados e reificados pelos próprios favelados.
Perpassando a trajetória e experiência de um jovem morador da favela, mostro como
esse “jovem empreendedor” vem vivenciando esses processos identitários e
apropriando-se de construções sociais sobre ele, seus pares e seu local de moradia. Para
isso, mostro como esse jovem promove a ressignificação da favela e do que é “ser
favelado” através de suas práticas e apropriações, sejam essas no lazer ou como forma
de “ganhar a vida”.
1
Bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (2011), com Especialização
em Psicossociologia da Juventude e Políticas Públicas pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(2014). Trabalhou como Analista de Pesquisas Socioeducacionais no Instituto Unibanco (2012-2014),
com ênfase nos estudos sobre juventude e ensino médio no Brasil. Atualmente, desenvolve o Mestrado
em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo.
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Introdução
Engendrada nos interstícios entre os bairros da Mooca, Ipiranga e Vila Prudente
está localizada a favela mais antiga de São Paulo, a Favela de Vila Prudente 2. Vista
historicamente pelos signos da precariedade, pobreza e ausência, essa, assim como
outras favelas paulistanas, foi alvo de inúmeras tentativas de remoção e campanhas para
sua eliminação entre as décadas de 1960 e 1980.
Não só presente no imaginário social, Valladares (2005) chama atenção para um
possível ciclo de estigmatização das favelas também no meio acadêmico, as quais
tendiam a ser retratadas nos estudos e pesquisas apenas como território da pobreza e dos
problemas sociais. Consequentemente, o termo “favelado”, alcunhado ao habitante da
favela, também ganharia uma conotação estigmatizante e pejorativa, sendo empregado
para designar um morador pobre, imerso em problemas e desajustes sociais. Como
observa Chalhoub (1996), isso corroborou com a fixação da ideia de que as favelas
seriam habitadas por “classes perigosas”. Problemas ou marcas de uma “desorganização
social” em territórios habitados por classes pobres também foram concepções iniciais
caras aos estudos da Escola de Chicago, norteados por uma concepção ecológica da
estrutura urbana3.
A partir da década de 1990, a Favela de Vila Prudente passou a ser interpretada
sob um novo discurso. Carregando o símbolo de resistência das lutas por moradia
empreendidas durante a década de 1980, a favela também passou a ser vista como
território de “potencialidades” e “oportunidades”, atraindo o interesse de organizações
filantrópicas e “empreendedores sociais” do emergente mundo do Terceiro Setor.
Projetos sociais e iniciativas de ONGs, igrejas e empresas passaram a fazer parte do
cotidiano dos moradores da favela. O jovem favelado tornou-se a peça central dessa
engrenagem do Terceiro Setor, sendo-lhe atribuída uma posição ambivalente: de
“protagonista” e de objeto de intervenção dessas ações.
2
Sobre o surgimento dos primeiros núcleos de favela em São Paulo, ver TASCHNER (2001) e LARA
(2012)
3
Sobre os principais estudos da Escola de Chicago ver HANNERZ (1980); JOSEPH (2005).
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3
Dando centralidade à trajetória de um jovem morador da favela, utilizo-a como
dispositivo analítico para compreender a dinâmica própria dessas formas de ação
coletiva na favela e seus deslocamentos ao longo do tempo. Enfatizo nesse ponto os
agenciamentos de meu interlocutor, bem como de diversos jovens da favela, ao
promover ressiginifcações e reapropriações no uso de termos e categorias que uma vez
lhe foram atribuídos e impostos, por atores externos à favela.
Orientada pelas lições da Escola de Manchester, tenho me atentado em
apreender e dar dimensão de como a noção de identidade é algo situacional. Sob essa
perspectiva busco extrapolar o campo da análise de representações, para focar “a vida
social „real‟ na qual as normas e valores frequentemente contraditórios entre si, seriam
utilizados de acordo com a racionalidade do agente social em situações sociais
concretas” (FRY, 2011, p. 5).
A discussão aqui proposta busca articular dados empíricos da etnografia que
venho realizando entre os moradores da favela4, com a produção acadêmica mais
recente sobre o tema. Para isso, faço uso de alguns referenciais teóricos sobre favelas
cariocas e periferias paulistanas por reconhecer nessa literatura a existência de alguns
pontos consonantes com o território estudado. Detenho-me, porém, a não sobrepô-los à
especificidade dessa favela e à realidade percebida e observada.
O presente texto está dividido em três parte. Num primeiro momento busco
apresentar um breve histórico das principais transformações vivenciadas pela favela e
por seus moradores, no que concerne às transformações locais no espaço urbano e
também a incidência de políticas macroestruturais, como as reformas neoliberais na
década de 1990 e as políticas de redistribuição de renda nos anos 2000. A segunda parte
do texto dá focalidade justamente a esse recorte temporal e aproxima as lentes para a
análise da trajetória do jovem Cristiano. Na última seção do texto, a partir da trajetória
4
Minha inserção em campo se deu em julho de 2013, na ocasião em que realizava uma pesquisa sobre as
trajetórias de lideranças comunitárias da favela. Atualmente, no âmbito do mestrado, e sob orientação do
Profº Drº Lindomar Carvalho de Albuquerque, meus esforços da pesquisa estão direcionados a
compreender as formas e os significados de ação política entre gerações de moradores da Favela de Vila
Prudente.
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4
de Cristiano, passo a discorrer sobre as experiências de uma geração de jovens
moradores da favela com esse território e de como se dão os processos identitários nesse
meio.
O Favelão em transformação e a identidade do favelado em constante
construção
A Favela de Vila Prudente, ou Favelão, como popularmente alcunhada por seus
moradores, está localizada na zona leste de São Paulo, em uma região também
delimitada como “centro expandido5”. A favela ocupa uma área de 38.241 m² às
margens da movimentada Avenida Luiz Ignácio de Anhaia Mello e tangenciada
lateralmente pela Rua Dianópolis. Com base em informações fornecidas pelo
Movimento de Defesa do Favelado (MDF), estima-se que lá residam cerca de 9.000
moradores em pouco mais de 1.200 imóveis, contabilizando barracos de madeira e casas
de alvenaria.
Percorrer as transformações do Favelão é colocar a cidade em perspectiva e tê-la
como plano de referência6 para os deslocamentos e práticas dos diversos atores que
aventam esse território e que por assim acabam produzindo-o por meio de seus atos e
mobilidades. Como enunciou Machado da Silva (1967), a favela não é uma comunidade
isolada e, portanto, está intrinsicamente ligada às condições estruturais da própria
sociedade global. Isso torna-se evidente quando percebemos que a própria origem dessa
5
O Centro Expandido da cidade de São Paulo é uma área localizada ao redor do centro histórico da
cidade, e delimitada pelo chamado minianel viário, composto pelas marginais Tietê e Pinheiros, as
avenidas Salim Farah Maluf, Afonso d'Escragnolle Taunay, Bandeirantes, Juntas Provisórias, Presidente
Tancredo Neves, Luís Inácio de Anhaia Melo e o Complexo Viário Maria Maluf.
6
Venho atentando-me à questão e à necessidade de considerar o território estudado como “plano de
referência” – e não como “pano de fundo” – da pesquisa que venho desenvolvendo. Por entender que sob
essa ótica, posso situar as práticas dos atores ali presentes e colocá-las em perspectiva numa relação
intrínseca com a produção do próprio território e suas dinâmicas. Essa reflexão foi formulada a partir da
fala da Profª Vera Telles, durante sua participação na II Oficina de Estudos Urbanos, realizada em
setembro de 2014 e fruto da parceria entre os núcleos de pesquisa GEAC (USP), o Na Margem (UFSCar)
e o LEU (CPDOC-FGV).
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favela coincide com a crise de habitação que atingiu a cidade no final da década de 1940
(BONDUKI, 1994). O morar na favela era tido como algo provisório pelos muitos
migrantes nordestinos que ali se fixaram; um período temporário para se estabelecer
plenamente na grande metrópole. O Estado corroborava com essa concepção ao lidar
com a favela, considerando-a como um “problema” e tratando as condições de moradia
ali existentes como ilegal e/ou irregular. Nessa tônica, a imprensa da época contribuía
com o processo de estigmatização daquele território e de seus habitantes, como mostram
as notícias a seguir:
“Mil e um rumores em o fim da mais imunda favela de São Paulo: Vai ser extinta a
favela de Vila Prudente. Da miséria à delinquência, apenas um passo – Tristemente
famosa: a mais perigosa, a mais sórdida, a mais imunda e a mais criminosa das favelas
de São Paulo.” (Folha da Manhã, 14/05/1955)
“Centenas de casos de gripe na Favela de Vila Prudente: Seria o caso de isolarse a
favela? Caso isso não venha a ser feito, os moradores daquela favela, embora curados da
doença, poderão constituir-se em veículos ativos de sua transmissão em toda a cidade”.
(Folha da Manhã 24/09/1957)
A vivência comunitária era intensa no Favelão, brigas e solidariedade coexistiam
entre os moradores. A arte de conviver cotidianamente numa relação de proximidade e
repetição geraria o que Mayol (1994) denominou de “engajamento social” entre
vizinhos de bairro, nesse caso, da favela. Os favelados passariam a construir uma
identidade em comum a partir desse cotidiano que compartilhavam e dos laços de
parentesco e vizinhança que constituíam. Cabe ressaltar que isso não impedia que outras
identidades continuassem latentes entre os favelados, principalmente aquelas que
expressavam seus locais de origem como “nortistas”, “nordestinos”, “paraíba”,
“pernambucano”, etc. As manifestações e expressões culturais trazidas por esses
migrantes também contribuíram para construção da identidade dos favelados. As festas
e celebrações, sejam elas religiosas ou não, demarcariam o pertencimento e clivagens
entre os moradores, que em certo momento também seriam diluídas tornando-se uma
expressão cultural “dos favelados” de forma geral. A própria escola de samba da favela,
a Cabeções de Vila Prudente7, é um retrato de como essas manifestações populares
7
A G.R.C.E.S.Cabeções de Vila Prudente existe há quase 50 anos e atrai desde então diversos moradores
da região para os ensaios e festas no barracão.
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possibilitavam aos favelados afirmarem-se positivamente e estreitarem os laços com os
demais moradores da cidade, mesmo que somente no período da festividade
Para Machado da Silva (2002), é a condição de moradia dos favelados que
pautaria a construção de uma identidade coletiva a partir da qual passariam a atuar
politicamente. Como também analisou no caso das periferias paulistanas, D‟Andrea
(2013) demonstra que a situação urbana concreta vivida pelas classes pobres articularia
alguns interesses em comum, como a permanência e regularização de suas moradias ou
minimamente a melhoria das condições de vida naquele território. Dessa forma, os
favelados passaram a perceber que frente a segmentariedade da máquina pública e dos
entraves do diálogo com o Estado, a constituição de uma identidade que articulasse seus
interesses comuns lhe proporcionaria espaço e reconhecimento político. A expressão
desta identidade tornar-se-ia possível com a fundação da Associação de Amigos da
Favela de Vila Prudente no final da década de 1950 e, mais intensamente, com o
surgimento do Movimento de Defesa do Favelado (MDF) na década de 1970. A
presença do termo “favela” e “favelado” no discurso público dessas organizações
fortaleceria ainda mais a ideia de singularidade e especificidade das demandas desse
território e de seus moradores, em contraste com os demais habitantes da cidade.
Foi na década de 1980, em que as lutas dos movimentos sociais urbanos
ganharam espaço e quando algumas conquistas foram alcançadas por meio da atuação
do MDF. Como relatam algumas lideranças do movimento, a cada conquista aflorava
entre eles o sentimento de pertencimento à favela e o orgulho de se identificar como
favelado, associado nessa situação e contexto histórico como um ator político e
importante integrante das lutas sociais da esquerda8.
Se por um lado as atividades mobilizatórias estavam a pleno vapor, por outro, a
criminalidade e violência acirravam-se na favela durante o mesmo período. Esse feito
do aumento da violência nos anos 1980, justamente nas comunidades onde também era
maciça a atuação dos movimentos sociais, seria atribuído à ação dos justiceiros9. Uma
8
Sobre as lutas sociais empreendidas pelas classes populares e intelectuais da esquerda na cidade de São
Paulo durante a década de 1980, ver SADER (1988) e KOWARICK (1994).
9
Sobre a ação dos justiceiros nas periferias paulistas ver MANSO (2012).
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solução homicida e de limpeza social em que os justiceiros, apoiados por lideranças e
policiais militares, chegavam a se unir em defesa dos “trabalhadores” promovendo
círculos de vingança e assassinatos na calada da noite. A atuação de uma família de
justiceiros na Favela de Vila Prudente perpetuou até o final da década de 1990, período
em que também prevalecem os relatos de disputas sangrentas pelas biqueiras e acerto de
contas entre traficantes na região10. O jornal do bairro noticiava frequentemente as
mortes e prisões realizadas na favela que disseminavam a ideia do favelado como
indivíduo potencialmente criminoso ou conivente com a ação dos traficantes. Como
nota Caldeira (2000), o aumento da criminalidade e violência nas favelas e periferias foi
acompanhado pelo aumento dos abusos e violências cometidos pelas instituições de
segurança, principalmente, nas ações arbitrárias das polícias militar e civil.
Ainda na década de 1990, o país enfrentou uma forte recessão econômica e
situação de desemprego estrutural que foram sentidas de forma violenta pelas famílias
mais pobres. As reformas neoliberais levaram à fragilização das conquistas sociais dos
anos anteriores e promoveram uma retração das funções estatais no campo das políticas
sociais. Os relatos de alguns moradores sobre esse período são marcados por histórias
de desemprego, “bicos” e outros tipos de trabalho informal em que até as crianças da
família passam a ajudar. Nesse cenário fortalecem-se as iniciativas de ONGs e das áreas
de responsabilidade social de empresas11 que viram na favela o lócus e nos favelados o
público-alvo para projetos educacionais, culturais e de inserção no mercado de
trabalhos. Como mostrarei na seção a seguir, a presença e atuação desses novos atores
na favela atravessará décadas, trazendo implicações e incidindo sobre as trajetórias dos
jovens favelados.
10
Em dezembro de 1999, a imprensa noticia existir uma “guerra do tráfico” na região de Vila Prudente.
Traficantes disputam alguns pontos de venda de droga na região e na extinta Favela do Paraguai; a qual se
tornaria palco de uma grande e trágica chacina que contabilizou a morte de 18 pessoas, entre as quais
estavam mulheres e crianças familiares de traficantes. Em 2006, os acusados de participar da chacina
foram condenados há mais de 100 anos de prisão.
11
Sobre o tema, ver Tatiana de Amorim Maranhão, “O sentido político das práticas de responsabilidade
social empresarial no Brasil, em Roberto Cabanes et al, Saídas de emergência, cit., p. 237-256.
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Já nos anos 2000, a melhoria das condições de vida dos moradores foi
proporcionada pelo fortalecimento e ampliação de programas sociais, sobretudo os de
transferência de renda. Um efeito marcante dessas políticas seria ampliação do acesso e
poder de consumo de bens e serviços pelas classes populares. Esse período também é
marcado pelo reordenamento das atividades criminais nas periferias e favelas
paulistanas, agora centralizadas nas mãos dos integrantes do Primeiro Comando da
Capital (PCC)12 que passaram a operar a gestão da ordem local e reivindicar para si o
monopólio do uso da violência nesses territórios. A “paz entre ladrões” promoveu uma
significativa queda na taxa de homicídios13 em bairros periféricos e favelas. A última
das mortes por “acerto de contas” no Favelão ocorreu em 2003, quando um antigo
traficante é assassinado e o controle do tráfico de drogas é centralizado na mão de
quatro jovens moradores da favela.
O bairro de Vila Prudente, já concebido como parte da periferia da zona leste de
São Paulo14 também sofreu intensas mudanças na última década, com um boom de
empreendimentos imobiliários de alto padrão e de obras de mobilidade urbana na
região. Tais elementos tendem a refutar qualquer traço que a caracterizaria como região
periférica. Essas transformações da favela e do seu entorno, inerentes à própria
dinâmica do espaço urbano, acabam incidindo de alguma forma sobre os projetos de
vida e mobilidade dos favelados, implicando assim, “num processo único de rearranjo
das condições de existência” (GRAFMEYER, 1994, p.89). Se por um lado estarem
próximos de áreas com um poder aquisitivo maior proporciona aos favelados vantagens
em termos de infraestrutura urbana e oportunidades de trabalho, tornava-se mais visível
os contrastes da segregação e das desigualdades sociais da favela e de seus moradores
com o entorno. Os interesses do mercado imobiliário pelo território da favela também
12
Para citar apenas algumas pesquisas pioneiras obre o tema, ver FELTRAN (2011a); BIONDI (2010) e
MARQUES (2010).
13
Para uma análise temporal da taxa de homicídio juvenil e interpretação da violência em São Paulo, ver
MIRAGLIA (2011).
14
Um fator relevante sobre as os estudos de Feltran é que na realização e escrita de sua pesquisa, o autor
referia-se ao bairro de Vila Prudente como parte da “periferia leste de São Paulo”. Ver, Feltran (2005).
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vêm ameaçando seus moradores e gerando incertezas sobre a situação de suas moradias,
sobretudo após a anunciação de futuras obras na região15.
De jovens favelados a “jovens protagonistas”: construções e
apropriações
Diferentemente da geração de seus pais, os jovens nascidos entre o final da
década de 1980 e meados de 1990 não vivenciaram os períodos de intensa mobilizações
na favela e as recorrentes ameaças de remoção e despejo nas décadas anteriores. Como
analisa Feltran (2011a, 2011b), esses jovens viram-se imersos em um período de
exclusão profunda, que promoveria um deslocamento e ruptura entre as crenças de
ascensão social e da própria relação com o mercado de trabalho em comparação com
seus
pais;
principalmente
pela
combinação
da
tríade
“desemprego-drogas-
criminalidade” que abarcava essa nova geração de moradores de favelas e periferias.
Sendo assim, não é difícil ouvir de meus interlocutores histórias sobre amigos de
infância que se “perderam” no crime e nas drogas ou que se “encontram” nas igrejas e
projetos sociais que proliferaram na favela.
Em 1990, quando o caminho para o “mundo do crime” passa a espreitar e atrair
muitos jovens favelados pelo prestígio e lucratividade conferidos pelas atividades
criminais, surgem diversos projeto e ações de atores externos e da própria favela que
buscavam “resgatar” os jovens do que seria esse “caminho sem volta”. O MDF que nas
décadas anteriores figurava no campo da militância na área de da habitação, funda o
Centro Cultural de Vila Prudente (CCVP) visando oferecer atividades educacionais e
culturais para crianças e adolescentes da favela. As atividades oferecidas desde o início
englobam artes plásticas, música e reforço escolar. Tendo completado 25 anos de
existência, o CCVP conta hoje com uma equipe de profissionais da área de pedagogia,
sete educadores e oferece novos cursos como ballet, aulas de francês e percussão. Esse
15
Em 2013, foram anunciadas a futura obra da Linha 15-Prata do monotrilho e a Operação Urbana
Consorciada Bairros do Tamanduateí. Ambas intervenções atingirão o terreno em que a favela está
localizada. Ainda não há previsão de entrega das obras, mas estima-se que o prazo seja 2018.
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deslocamento das atividades do movimento não representou rupturas, mas na verdade
uma “adequação” aos novos tempos, como assim analisa Vera Telles (2006):
Entramos na “era dos projetos” e das parcerias; é a linguagem do Terceiro Setor
alterand a anterior gramática política dos movimentos sociais e redefinindo a paisagem
local, conforme a maior ou menor presença de ONGs com seus projetos, parcerias e
vinculações em redes de extensão variada. Na prática, o “velho” e o “novo” se
confundem, as fronteiras não são lá muito claras, até porque tudo acontece por vezes
nos mesmos espaços e territórios, e os personagens – também não poucas vezes –
passam e transitam entre um e outro. (TELLES, 2006, p.83)
Nessa tônica e com a escassez de recursos disponíveis para a atuação, o CCVP
firma parceria com a Fundação Abrinq e assina um convênio com a Prefeitura
Municipal de São Paulo. Enquanto o MDF, fortalece sua relação com organizações
internacionais de fomento a projetos, sobretudo, as de caráter religioso como a CAFOD
(Catholic Agency for Overseas Development)16 e Cáritas17. Em 2001, um grupo de
franceses também estabelece na favela a ONG franco-brasileira Associação Arca do
Saber (inicialmente nomeada Arca de Noé), que destaca entre seus objetivos de atuação
“evitar a marginalização de crianças em situação de grande pobreza através da
integração social”18. Foi observando reordenamentos semelhantes a esse que Magalhães
(2011) assinala uma mudança nas relações entre as associações populares que passaram
das pautas de reivindicação conjuntas para a explícita concorrência por financiamentos,
prêmios, relações privilegiadas com financiadores de projetos sociais e, por que não,
público alvo para seus projetos.
Passou a fazer parte da gramática e discurso desses atores e instituições
(executoras e financiadoras) o uso de verbetes e termos que qualificam e remetem-se a
favela e seus moradores como “vulneráveis”, “em situação de risco”, “em situação de
exclusão social” e “marginalizados”. A resposta para reverter esse quadro também seria
dada por meio do uso retórico de outros termos como “empoderamento”
(empowerment), “quebra do ciclo da pobreza”, “inclusão social” e o mais sagaz deles,
16
http://www.cafod.org.uk
17
http://www.caritas.org.au/
18
Fragmento
extraído
do
site
da
organização,
content/uploads/2011/12/ArcaDoSaberPlaquettePO.pdf
link:
http://arcadosaber.org/wp-
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“promover o protagonismo dos sujeitos”19. Na tentativa de compreender o campo que se
forma em torno da inclusão social nesse período, Abílio (2011) enfatiza a sua
potencialidade gestionária e, sobretudo, mercadológica. Nesse aspecto, “a inclusão
social parece ter se tornado mais uma mercadoria. Estado e ONGs são parceiros no
mercado da cidadania” (ABÍLIO, 2011, p.298).
Subsidiados pelas estatísticas de violência juvenil, desemprego, gravidez não
desejada na adolescência e baixas taxas de rendimento escolar no ensino médio a
juventude mostrou-se um necessário e potencial “campo de intervenção” (TOMMASI,
2014) para esses atores e seus projetos. Em consonância com a aprovação do Estatuto
da Criança e do Adolescente em 1990, a imagem do “jovem problema” deveria ser
assim superada para que ele fosse concebido como “sujeito de direito”. Porém, como
analisa Tommasi (2012; 2014), a maneira enfática com que projetos sociais e políticas
públicas passaram a trabalhar a questão juvenil foi de conceber o jovem como “futuro
da nação” e “protagonistas do desenvolvimento local”. Longe de reconhecer veemente
as potencialidades da juventude pobre, as organizações passaram a trabalhar sob a
lógica da “gestão de riscos”, operando dispositivos de gestão da população jovem. A
ocupação do tempo livre e a orientação para o engajamento em ações sociais em suas
comunidades foram algumas das estratégias trabalhadas.
Foi assim que Cristiano20, com apenas 17 anos na época, passou a frequentar os
encontros do grupo de jovens da igreja e a fazer parte da juventude do MDF. Ele e sua
irmã caçula frequentavam as atividades e reuniões após o trabalho e durante os finais de
semana. A mãe os incentivava a participar, pois era uma forma de mantê-los protegidos
das agressões corriqueiras do pai e também dos amigos considerados “más
companhias”. Cristiano trabalhava como camelô no centro da cidade e tinha um
histórico bastante precoce de trabalho infantil; iniciou aos 6 anos como auxiliar de uma
19
Esses termos e verbetes mencionados no texto foram extraídos de sites de fundações empresariais e de
documentos e materiais das organizações citadas. Por ter trabalhado anteriormente numa fundação
empresarial com foco na juventude, também consultei alguns textos e linguagens que eram comumente
utilizados no cotidiano dessa instituição
20
Assim como em outros textos que produzi, Cristiano decidiu manter seu verdadeiro nome.
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mecânica. Bastante articulado e dotado de um senso crítico e carisma notáveis, o jovem
tornou-se uma das apostas do MDF.
Junto com outros jovens ligados a comunidades eclesiais de base (CEBs) da
zona leste, Cristiano viajou para Alemanha e Espanha para participar da Jornada
Mundial da Juventude. Participou de algumas edições do Curso de Dinâmica para
Líderes21 (CDL) organizados pela Pastoral da Juventude e dos Cursos de Verão
oferecidos anualmente pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Com os conteúdos
e temas trabalhados nesses cursos, Cristiano começou a interessar-se pelas vertentes do
“empreendedorismo”. Pensava em guardar dinheiro para abrir “seu próprio negócio”,
uma ideia bastante comum entre os jovens de todas classes sociais que sentem-se
“incitados a viver como se fossem projetos, a tornar-se, cada um, um empresário de si
mesmo” (VELAZCO & TOMMASI, 2013, p.39). Como formulou uma das lideranças
do MDF, “pensar nessa ideia do empreendedorismo na favela é com juntar a fome com
a vontade de comer”. E é assim que se explica a criação da Cooperativa Recifavela;
concebida por um grupo de jovens da favela e sob orientação de um profissional com
expertise na área de economia solidária contratado pelo MDF.
Cristiano foi eleito o primeiro presidente da cooperativa e reeleito por mais duas
vezes. Pude acompanhar ao longo do desenvolvimento da pesquisa, o quanto sua
trajetória pessoal e profissional desperta o interesse dos mais diversos tipos de
financiadores de projetos, jornalistas e até missionários. Considerado um exemplo de
“jovem empreendedor” e “jovem protagonista”, sob essas designações, Cristiano
consegue obter reconhecimento e prestígio entre instituições e empresas que patrocinam
a cooperativa, bem como acesso facilitado a recursos financeiros para os projetos que
realiza e dos quais participa. O jovem mostra saber lidar muito bem com esse capital,
articulando-o e utilizando-o de forma estratégica em prol de sua atuação. Pela
frequência com que é convidado e participa de eventos e reuniões, Cristiano domina um
21
O Curso de Dinâmica para Líderes (CDL) é oferecido pelo Centro de Cursos para Formação da Juventude
(CCJ), desde 1997. Conforme reproduzidos do site, o CDL tem por objetivo ser uma ferramenta na ampliação
da capacidade de liderança dos jovens, além de treinar monitores com o compromisso de reproduzir e
multiplicar os conhecimentos do curso. O CDL divide-se em: CDL 1º Nível (Nacional e Local) e CDL 2º Nível
(Nacional). Mais informações em: http://www.ccj.org.br/cdl-curso.php?op=VerCurso&idCur=1
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discurso público repleto de jargões do Terceiro Setor que soam como música nos
ouvidos dos investidores e filantropos.
Empossado recentemente como presidente da Rede Paulista de Comercialização
Solidária de Materiais Recicláveis o jovem queria mais. Por circular no meio das
cooperativas de reciclagem e viajar para diferentes cantos do país, Cristiano elencava
modelos de organização a serem seguidos, estratégias de mobilização eficazes e outras
competências que considerava necessárias para a Recifavela e Rede Paulista. Contavame dos planos que tinha para ampliar a atuação da cooperativa, “vamos começar a ver
uns editais da área de educação e cultura também, para fazer projetos na área e envolver
os cooperados e os moradores da favela”. Essa forma de inserção produtiva e geração de
renda buscadas por Cristiano, as quais privilegiam atividades coletivas, relacionam-se
com o que Cabanes (2011) identificou como “alternativas” ao individualismo selvagem
ou ao mundo do crime.
Quando ainda inclinado a pensar algo para os jovens da favela, Cristiano
percebeu a crise de legitimidade e representação da Igreja e do MDF em meio a essa
nova geração de moradores. Junto com alguns amigos idealizou uma iniciativa que
privilegiasse o uso das tecnologias e do ambiente virtual:
“A gente se conheceu quando a gente participava do MDF (...). Aí a gente passou a
fazer uns cursos pela Nova Escola22 e lá a gente começou a discutir o que é ser favelado,
coisas novas que podíamos fazer na favela. A organização não tava nem aí pra isso, mas
a gente queria. Aí eu comecei a reparar que tinha uma molecada muito boa lá, pra um
debate mesmo sabe? Falei pra Miriam [mãe de dois de seus filhos] e pra Joice [prima de
Miriam] que eu queria fazer uma „articulação‟ aí. Montar um blog mesmo pra manter
notícias e aí falei pra gente chamar essa molecada e ver no que vai dar. Comecei a
chamar, começamos a trocar uma ideia. Ficamos uns 4 meses nos reunindo, pra montar
o nome, a ideologia, o porquê, qual o foco... Aí beleza, começou a surgir as ideias e aí
lançamos o Eco.” [Cristiano]
Surge assim o Coletivo EcoInformação que representava uma nova forma de
pensar a participação e envolvimento dos jovens nas questões inerentes à favela. A
utilização de uma nova linguagem que privilegiasse a tecnologia e formas lúdicas de
expressão, por meio do graffiti e de produções audiovisuais, era a guinada que o Eco
22
A ONG Nossa Escola atua desde 1988 na região de Vila Prudente com projetos de geração de renda,
voltados para dois públicos: jovens com deficiência intelectual e moradores da favela de Vila Prudente.
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pretendia trazer. Por meio da formação em produção de curta-metragem, oferecida pela
Associação Kinofórum23, os jovens do coletivo passaram a produzir alguns curtas e
documentários e a promover a exibição desses nas favelas da Vila Prudente.
Sendo um fenômeno também presente nas periferias paulistanas, a produção dos
coletivos artísticos ganhou espaço como forma de sociabilidade entre os jovens. Pois,
além de simbolizar uma forma de “pacificação” de um contexto tido como violento e
novas possibilidades de exercício da ação política entre os jovens; a produção cultural
também gerou formas de sobrevivência econômica (D‟ANDREA, 2013). O Programa de
Valorização de Iniciativas Culturais (VAI)24 tornou-se uma importante fonte de renda e
financiamento dos projetos desses coletivos. Foi assim que em 2013, o EcoInformação teve
o projeto EcoCineFavela, voltado para exibição de curtas na favela, aprovado no VAI e
pode remunerar todos os jovens envolvidos e ampliar sua rede de contatos. Nesse período,
as sessões de cinema na favela atraíram moradores do bairro, das demais favelas da região e
também da imprensa25.
#SouFavela: a multiplicidade do jovem favelado nos dias atuais
“(...). Passou um tempo e eu comecei com a frase „Eu sou Favela‟, porque no próprio
grupo do Eco já tinha gente que não gostava disso, de falar que é favelado. E eu falava,
„não, eu sou favela mesmo‟. Queriam colocar numa camiseta que era a favela mais
antiga de São Paulo, mas ia ficar uma frase muito grande. Aí eu comecei a bater na tecla
„sou favela‟, e aí saiu a camiseta. Mas no momento todo mundo usou [a camiseta] meio
que sem saber o que significava. Aí na rua quando o pessoal da favela comentava,
reconhecia ... o pessoal começou a ter mais orgulho do que estava vestindo. Mas a
„ideologia‟ não foi essa, virar um modelo pra favela sabe... Mas uma identidade de
fato! Aí no grupo começou eu e o Nego Bala, a tirar foto da favela e colocar no Face:
“#soufavela”. Sabe umas fotos do sol no meio dos becos e escrever lá “#sou favela”. E
aí começou, algumas pessoas começaram a fazer isso também. [Cristiano]
23
http://www.kinoforum.org/
24
O Programa Vai é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que tem como finalidade
apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa
renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. Mais informações em:
http://programavai.blogspot.com.br/
25
Vídeo produzido pela Tv Folha: Moradores de Favela fazem sessões de Cinema a céu aberto,
https://www.youtube.com/watch?v=143eZBzxw4g
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A forte aderência e persistência em utilizar o termo favela é algo muito marcante
nos discursos de Cristiano, como ele faz questão de enunciar em suas falas e suas
publicações nas redes sociais. O jovem indica assim uma ressignificação do termo, de
modo a lhe atribuir positividade e, nesse sentido, expressar um conteúdo político de
afirmação do local de moradia. O que socialmente era associado ao signo de estigma,
declarar-se e reconhecer-se como “favelado”, passa a ser lido como motivo de orgulho e
luta para o jovem. “Ser favelado” funciona mais do que como mero marcador identitário
para Cristiano; lhe dá possibilidade para a construção e estabelecimento de vínculos de
identificação política, processo que, para Aderaldo (2013), envolveria a própria forma
de repensar as questões políticas e sociais ali presentes.
Não tão tarde, a hashtag #SOUFAVELA ganhou destaques nos perfis dos jovens
da favela de Vila Prudente em meio às redes sociais. O sol nascendo entre as vielas e
becos estreitos, os amigos no baile funk e as casas de tijolos à vista numa selfie tirada da
laje de casa. Para além das fotos, diversas frases e trechos de música de rap e funk são
postados exaltando o orgulho de ser favelado, seja esse associado à luta cotidiana de
trabalhadores ou ao corre dos irmãos26 da Vila Prudente no mundo do crime. A
coexistência desses múltiplos usos e significados ao identificar-se como favelado, entre
essa geração, traria o que Aderaldo (2012) percebeu como a insustentabilidade de
qualquer tentativa de homogeneização passível de reificar esse universo, no caso, o
território da favela.
A atuação do Coletivo EcoInformação, associada a outros projetos culturais já
existentes, como o Centro Cultural de Vila Prudente e o projeto Samba no Beco27, fez
com que a favela passasse a incluir em seu bojo os elementos arte e cultura
concomitantes a significados antes apenas restritos a pobreza e violência (D‟ANDREA,
2012). Um exemplo dessa projeção do Favelão se deu em 2011, quando ele foi palco do
26
O termo irmãos refere-se aos membros batizados pelo PCC e que dessa forma prestam obediência –
“correm” – segundo as ordens e mandados da organização.
27
O projeto surgiu em 2007, e realiza em todo primeiro sábado do mês uma roda de samba ao ar livre, na
confluência de três becos da favela.
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16
videoclipe da música “Favela Fashion Week”28. Produzido por um famoso grupo de
pagode, o vídeo mostra uma roda de samba e o trânsito de jovens por entre os becos;
exaltando a beleza da mulher favelada por meio do refrão “Ê Nosso Morro É Coisa
Chic/É Favela Fashion Week/ Nossa Gisele Bundchen É Preta/ E Ela Faz Acontecer!”.
Os vídeos de funk produzidos pelo estúdio Made in Favela, dirigido por um
jovem morador da favela, também vêm se apropriando dos becos e vielas como cenário
para as narrativas musicais de jovens MC’s de funk da região. Exibindo motos e artigos
de luxo, esses jovens celebram a estética do funk ostentação e renegam a ideia da favela
como território da pobreza, justamente pela ampliação do poder de compra de seus
moradores. Realizando o que D‟Andrea (2013) chamou de “uma celebração
mercadológica dos pobres”, o mercado visualizou nessa situação uma oportunidade de
fomentar o mercado de consumo popular da “nova classe média” ou “classe C”. Em
recente pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular, em que foram ouvidas 2 mil
pessoas em 63 favelas do Brasil, estima-se que os quase 12 milhões de moradores de
favelas movimentaram, somente no ano de 2013, mais de R$ 63 bilhões.
Se por um lado a favela e os favelados tornaram-se uma parcela disputada pelo
mercado de consumo e indústria cultural; por outro, seus moradores ainda vivenciam no
cotidiano uma condição de cidadania subalterna. A favela de Vila Prudente ainda lida
com diversos problemas de infraestrutura acarretados pela sua não urbanização, a qual
ainda não tem previsão para acontecer. Identificar-se como morador da favela em
entrevistas de empregos ou fornecer seu endereço no cadastro de uma loja, por exemplo,
ainda ocasiona uma visível discriminação e preconceito. O próprio Cristiano conta
gostar de “provocar” e “chocar” as demais pessoas ao se declarar favelado, mas também
conta ter fornecido o endereço de parentes nessas situações para “evitar possíveis
problemas”. Entre os jovens do sexo masculino, a identificação como morador da
favela, muitas vezes embasada na construção de um estereótipo social, implica riscos
maiores, pois eles são os principais alvo de abordagens, ameaças e ações truculentas da
polícia.
28
Link: https://www.youtube.com/watch?v=utf9xaN5CQ0
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Considerações Finais
Com base nessa concisa reconstituição histórica, torna-se possível perceber os
deslocamentos das construções e representações sociais sobre a favela e o favelado,
sempre em consonância com as transformações estruturais da cidade, dos interesses
econômicos e da sociedade, de forma geral. Mesmo com a escassez de estudos
qualitativos sobre as transformações das favelas no contexto paulistano29, os estudos
sobre periferias aqui trabalhados evidenciam muitos pontos em comuns com a realidade
dessa favela estudada. A proliferação de organizações do Terceiro Setor, a
mercantilização da produção cultural e fomento de um novo nicho de mercado
impulsionado pela “nova classe C” são alguns dos fenômenos comuns a esses
territórios.
A partir da trajetória de Cristiano, torna-se notável como as designações “jovem
favelado” e “jovem protagonista” são reificadas e reapropriadas por esse jovem, na
forma com que esse ele articula e apropria-se ardilosamente dessas representações em
prol de prestígio, reputação e recursos financeiros para a realização de seus projetos
pessoais e profissionais. As ressignficações e reapropriações criativas da identidade de
favelado por esse meu interlocutor também demarcam diversas formas de agenciamento
possíveis, do cotidiano de trabalho às práticas de lazer na favela.
Dessa forma, o jovem e sua atuação são produtos dessas transformações ao
mesmo tempo em que as produz; cabendo aqui enfatizar o reconhecimento de uma
relação bastante assimétrica nesse aspecto. Nesse ponto, Tommasi (2013) alerta sobre
os perigos e perversidades de uma possível “armação identitária”, a qual “pode virar
uma etiqueta que limita as possibilidades de experimentação, tanto em termos estéticos
como de conteúdo” (TOMMASI, 2013: 27). Uma questão bastante relevante para se
29
Refiro-me aqui ao entrelaçamento entre a experiência urbana periférica e a experiência urbana favelada no
contexto paulistano que fez, e ainda faz, com que essas muitas vezes sejam tidas como análogas. Como o
território aqui estudado diferencia-se desse padrão, pelo fato da favela estar localizada numa região mais
central da cidade, demarco essa especificidade e escassez de referenciais teóricos nesse aspecto.
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pensar num contexto de imposição de padrões e critérios definidos por financiadores
externos para fomento a projetos culturais de grupos e coletivos juvenis.
Mesmo reconhecendo a existência de heterogeneidade socioeconômica nessa
favela, é a homogeneidade das práticas e vivência cotidiana num mesmo local que cria e
renova os seus símbolos de identidade. Os laços ali presentes não são fixos, nem
definitivos, mas estão constantemente sendo renovados e reinterpretados. Pois como
analisa Agier (2001), “toda identidade, ou melhor, toda declaração identitária, tanto
individual quanto coletiva (mesmo se, para um coletivo, é mais difícil admiti-lo), é
então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que
como um fato” (AGIER, 2001, p.10). Nessa multiplicidade de identificações que
envolve declarar-se favelado coexistem o orgulho e o estigma. Ao mesmo tempo em
que a favela é celebrada pela mídia, as incursões da polícia, por exemplo, não deixaram
de acontecer; muito menos os preconceitos que os favelados ainda enfrentam com
relação a sua situação de moradia.
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CONFLITOS E CONTRADIÇÕES NA DIVISA INTERNACIONAL
BRASIL-BOLÍVIA NO SUDOESTE DE MATO GROSSO: A
FRONTEIRA E OS FRONTEIRIÇOS
CARVALHO, Jucineth G.E.S.V. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)1
[email protected]
Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Mato Grosso - FAPEMAT.
GT 03: Conflitos sociais, Instituições e Política
Resumo
O texto ora apresentado é resultante de um processo de pesquisa ainda em curso, que objetiva
identificar e estudar as principais questões de cunho socioeconômico, político e geopolítico
presentes num trecho da fronteira física Brasil-Bolívia, na porção sudoeste do estado de Mato
Grosso. A região de estudo denomina-se Ponta do Aterro, bem como, parte de suas cercanias,
localiza-se no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, entre os municípios de Pontes
e Lacerda e Porto Espiridião, dentro da Amazônia legal. O recorte temporal do estudo abrange
o período de 1940-2012.
A investigação se propõe a tecer uma análise sociológica e discutir a questão da
territorialidade social construída pelos sujeitos fronteiriços na região delimitada, composta
por: trabalhadores rurais, pequenos produtores, fazendeiros e os povos tradicionais, mestiços,
denominados “Chiquitano”. Os resultados preliminares da investigação apontam que a região
configura-se num espaço de confrontos e disputas, de enfrentamentos nos dilemas cotidianos,
que se fazem presentes nas relações sociais e nos modos de ser e viver daqueles sujeitos.
A partir dos estudos da Teoria Social, e do leque de suas possibilidades de análise, utilizo os
recursos metodológicos oferecidos pela História oral, memória, histórias de vida e suas
fontes, além do levantamento documental.
Busca-se, a partir do levantamento das questões citadas, o desvelamento dos aspectos da
territorialidade vivenciada pela população fronteiriça, interpelar a sua interpretação e os
significados atribuídos à terra, trabalho, nacionalidade, pertencimento e construção de sua
identidade social, bem como, de suas estratégias de enfrentamento dos dilemas cotidianos.
1
Licenciada e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso; Mestre em História pela
Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de São Carlos UFSCar, na linha de pesquisa Urbanização, ruralidades, desenvolvimento e
sustentabilidade ambiental. Docente e Pesquisadora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso - IFMT, Campus Fronteira Oeste - Pontes e Lacerda. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do estado de Mato Grosso - FAPEMAT.
Programa de Pós Graduação em Sociologia
Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia.
E-mail: [email protected] Telefone: (16) 3351-8673
2
Palavras-chave: conflitos, sociedade e fronteiriços
Situando a fronteira:
A região em estudo dista aproximadamente 680 km de Cuiabá, capital do estado de Mato
Grosso, rumo Oeste. Trata-se de uma área da faixa de fronteira2, localiza-se na intersecção dos
limites físicos entre Brasil-Bolívia, inserida na Amazônia legal. Tomada como objeto
investigativo, o local denomina-se Ponta do Aterro, bem como, parte de suas cercanias. Tratase de um povoamento localizado no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, que por
sua vez, limita-se com os municípios de Pontes e Lacerda e Porto Espiridião, no sudoeste de
Mato Grosso. Vale ressaltar que, o município de Vila Bela da Santíssima Trindade foi a 1ª
capital de Mato Grosso, no período de 1752-1820, temporalidade inserida no contexto do
Brasil colônia.
A região da Ponta do Aterro e parte de suas cercanias, compõe-se por 13 Comunidades,
a saber: Santa Clara, Aparecida, São Miguel, Ponto Chique, Morrinhos, São Paulo, Santa
Maria, Santa Lúcia, Cruzes, São Vicente, Santa Mônica, Fazenda São Marcos e Fazenda São
Lucas,
reúne aproximadamente 180 famílias3, grande parte composta por migrantes
originários de movimentos de ocupação da Amazônia Legal, descendentes de indígenas e
povos de nacionalidade boliviana e ou mestiça, habitantes da fronteira, os “Chiquitano”.
Na região da Ponta do Aterro, a Comunidade mais estruturada é a Santa Clara,
chamada de “Vila” pelos habitantes locais, com aproximadamente 100 casas. Na localidade
funciona a Sub Prefeitura do município de Vila Bela da Santíssima Trindade, a Escola
Municipal de Ensino Fundamental Ponta do Aterro/ Escola Estadual 11 de Agosto4, o
comércio e também os serviços públicos disponíveis. O espaço fronteiriço investigado,
constitui-se por um misto de grandes propriedades rurais (as fazendas), minifúndios derivados
2
Conforme a Lei n° 6634 de 02 de maio de 1979, que dispõe sobre a faixa de fronteira, considera em seu artigo
1º. : É considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 Km (cento e cinqüenta
quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa
de Fronteira.
3
Dados levantados junto à Sub Prefeitura de Vila Bela da Santíssima Trindade, na Comunidade Santa Clara.
4
Ambas as unidades escolares funcionam no mesmo prédio e atendem a aproximadamente 420 alunos.
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de projetos de assentamentos rurais, a população habitante da “vila Santa Clara” e das demais
comunidades mencionadas.
A escolha da área de estudo fundamentou-se em dois aspectos: 1 – localização
geográfica e posição geopolítica, isto porque, entendeu-se a priori que, trata-se de uma região
de fronteira física com a Bolívia e portanto, o “lugar” da materialização do movimento das
territorialidades, e que este é permeado por relações de poder sobre o espaço, o que neste
entendimento, muito poderá contribuir no sentido de desvelar o sentido da “fronteira” para a
população local; 2 – Levantamento da necessidade emergente de aprofundar a análise sobre a
territorialidade social constituída na fronteira,
avaliando-a nesta perspectiva, como um
extenso e instigante campo aberto à investigações e reinterpretações.
O trajeto metodológico pauta-se nos estudos construídos pela Teoria Social e no levantamento
documental, associado às ferramentas oferecidas pela História oral: memória, histórias de
vida e suas fontes. Intenta-se desvendar, na perspectiva dos habitantes locais e dos conflitos
instalados, o “sentido e a fluidez” dos limites da fronteira dos Estados- Nação Brasil e Bolívia.
A fronteira e os fronteiriços: Territorialidades e Conflitos
Discute-se nesta seara, o sentido de “fronteira” no espaço pesquisado. A trajetória da
análise sobre espacialidades contemporâneas nas áreas fronteiriças remete à compreensão dos
diferentes sentidos e significados contidos na designação da fronteira. Repensar as fronteiras
pressupõe compreender a relação entre centro e periferia, público e privado, legal e ilegal.
A apropriação física do espaço na fronteira sudoeste de Mato Grosso, inscreveu-se
num canteiro de poder simbólico, político e econômico, cuja interface se dá com o “sentido”
de apropriação por parte dos migrantes, e que, ao mesmo tempo, colide com a presença de
uma população de descendência indígena, os Chiquitano. Originou-se daí uma questão latente:
a identidade dos fronteiriços, quem são? Índios? Brasileiros? Bolivianos?
Portanto, à guisa de entendimento, é necessário considerar que na região da fronteira
em estudo, há uma discussão pautada no aspecto da etnicidade, o que envolve e, em certa
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medida, opõe aqueles que se consideram não índios aos que se consideram indígenas de
origem chiquitano.
Para melhor situar a presença indígena na área investigada, tomamos por referência os
estudos de Silva (2008), que, com base no Mapa etno-histórico de Alfred Mètraux, de 1948,
conceitua que:
Chiquitano refere-se ao amálgama de inúmeras nações indígenas.
Não são bolivianos ou estrangeiros no Brasil, estavam em solo
nacional anteriormente à ocupação portuguesa. Portanto, antes da
chegada dos portugueses, esses povos ocupavam as margens do
rio Guaporé no Brasil, até as planícies bolivianas. O povo
constituía-se num continuum e a fronteira geopolítica tratou de
transformar em estrangeiros povos que viviam comprovadamente
nessa região há muitos séculos, a divisão territorial transformouse em dois países: O Brasil e a Bolívia.5
No contexto geopolítico dessa região fronteiriça, ainda de acordo com os estudos de
Silva (2008), a partir de 1768 os chiquitanos foram incorporados ao trabalho nas fazendas. No
Séc. XIX eram capturados para trabalhar na extração da borracha, nos seringais ou “gomales”.
Com relação ao trabalho, são considerados exímios trabalhadores em fazendas de criação de
gado, uma habilidade herdada da convivência com os Jesuítas, no período colonial brasileiro.
Segundo a estudiosa acima citada, na fronteira sudoeste de MT com a Bolívia, que se estende
cerca de 500 quilômetros, há 32 comunidades chiquitanas.
O conflito interétnico permeia as relações sociais estabelecidas na fronteira BrasilBolívia ora perscrutado, pois, traz à tona a divergência entre: os grupos indígenas, os grandes
proprietários rurais e os fazendeiros, no que se refere à posse e propriedade das terras.
Inegavelmente, há muitos confrontos de interesses, fomentados por um lado, pela
possibilidade de demarcação da área e transformação desta em reserva indígena por parte do
Estado Brasileiro, e por outro, a expansão das possibilidades de exploração para produção de
soja e instalação do agronegócio.
5
SILVA, J.A.F. Identidades e conflitos na Fronteira. Poderes locais e os chiquitanos. Revista Memória
Americana 16 (2), 2008, pag. 119-148.
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Num outro viés, vale destacar que a descendência chiquitano na fronteira também é
carregada pela vertente do racismo e da discriminação, é comum a denominação pejorativa de
“bugre” a esta parcela da população fronteiriça. Sobre o significado do uso do termo bugre na
faixa de fronteira, Silva (2008, p. 135) ensina que: “ Bugre, naquele contexto não queria dizer
exatamente povo, mas uma espécie de gente, muito procurada para o trabalho, porém, pouco
qualificada enquanto ser humano. Um exemplo brutal de etnocentrismo e do estranhamento”6.
É possível verificar a formação de grupos políticos de interesse regional na fronteira e
porque não dizer, nas terras da fronteira, grupos estes que vão, ao longo do tempo e das
relações, sendo reconhecidos e legitimados. Em contrapartida, também é possível observar nas
falas e nas reações implícitas das comunidades investigadas, o “ocultamento da identidade
chiquitano”, que fortalece a confirmação da hipótese de que se trata de um conjunto de ações
estratégicas de autoproteção.
Na região fronteiriça em estudo, há vários assentamentos regulamentados pelo INCRA
7
, os pequenos proprietários, em grande parte, os grupos descendentes de chiquitanos são
assentados, fazem jus aos benefícios sociais, tais como: bolsa-família e aposentadoria rural.
Mesmo com as suas pequenas propriedades, é prática comum os homens trabalharem como
vaqueiros nas grandes fazendas de criação de gado, enquanto os demais membros da família
se revezam em cultivos e cuidados com a propriedade e os trabalhos domésticos.
Nota-se no contexto do trabalho do sujeito fronteiriço, uma intensa precarização das
condições nas fazendas, entretanto, segundo alguns entrevistados, atualmente o trabalho
escravo foi abolido, principalmente em decorrência de intensas e frequentes fiscalizações por
parte da Justiça do Trabalho brasileira, a aplicação de multas trabalhistas e outras ações
inibidoras de tal prática.
Quanto a prática da dominação e da violência, especialmente no que tange à posse e
propriedade das terras, são marcas implícitas naquela paisagem, ocultadas sob a égide de uma
6
SILVA, J.A.F. Identidades e conflitos na Fronteira. Poderes locais e os chiquitanos. Revista Memória
Americana 16 (2), 2008, pag. 119-148.
7
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, responsável pela regulamentação das terras
destinadas à reforma agrária.
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suposta convivência social harmônica. Ainda assim, percebe-se o domínio e o centro de poder
nos “fazendeiros criadores de gado” representados pelos grupos sociais proprietários de terras
sobre as populações compostas por trabalhadores rurais, mestiços e chiquitano.
No sentido de compreender melhor a questão, o primeiro grupo, comumente se autointitula de “desbravadores”, que dentre o rol de argumentos, faz com que se legitimem como
elites políticas e econômicas locais e exercem o “controle” sobre os demais a partir da
exploração da força de trabalho, muitas vezes com total precarização das condições de
trabalho e sobrevivência. Em última instância, o controle social é exercido pela definição de
“quem vive ou quem morre”, é comum ainda na região, a ocorrência do extermínio de pessoas
e famílias por assassinato. Isso decorre principalmente com o propósito de domínio da terra,
ou, do território.
Constata-se que, no exercício do controle social, a posse e propriedade da terra são a
principal causa de conflitos que demandam as mais diversas formas de violência e intimidação
por parte dos interessados, os jogos de interesse se colocam na linha de frente das questões, no
choque das relações de poder estabelecidas.
No sentido da ocupação do espaço de investigação, ou seja, o espaço da fronteira
sudoeste de MT, região que também está inserida no limite internacional entre Brasil e
Bolívia, há que se fazer a leitura deste como um espaço de confrontos e disputas, que se
fazem presentes nas relações sociais e nos modos de ser daqueles sujeitos.
Pode-se estabelecer a partir de Bourdieu (2002)8 uma crítica à “naturalização” das
relações sociais de dominação, a partir do conceito de habitus e sua propagação por meio de
ações irrefletidas. Bourdieu viabiliza a percepção da dominação e desigualdade onde outros
percebem harmonia e pacificação. Na análise social das sociedades centrais ou periféricas
constata-se corriqueiramente a dominação simbólica sobre a ideologia de igualdade, o que
origina uma imagem de consenso social e político, que, de certa forma, obscurece as relações
de desigualdade.
8
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
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A faixa de fronteira Brasil-Bolívia recorrentemente
constitui-se em
espaços
marginalizados pelo discurso político, que insiste em deixá-las sob a penumbra da ilicitude,
destacando-se de forma preconceituosa: o tráfico de drogas, a prostituição, o contrabando,
roubos de veículos e outros crimes, o que confere às áreas de fronteira no Brasil um aspecto
hostil e perigoso, transformada pela imagem mitificada, que se perpetua, não encontrando
rival ou, não se oportunizando a construção da concepção do contraditório. São lugares de
desordem? Ou, locais onde o Estado não conseguiu impor sua ordem? Nesta perspectiva, a
fronteira não pode e não deve ser analisada e menos ainda, compreendida somente como o
“lugar” de ilicitude e/ou da transgressão.
Trata-se de um exercício reflexivo frente à importância e necessidade de compreensão
dos elementos institucionais e sociais na fronteira mencionada, bem como, suas formas
intrínsecas de movimentação, ordenamento, interações e desdobramentos na reprodução de tal
espacialidade, de caráter sociológico.
O Estado Brasileiro e a constituição da fronteira Brasil-Bolívia: uma breve
contextualização
Constatou-se neste recorte de estudo que, na atualidade, tal processo de configuração
da fronteira no Sudoeste de Mato Grosso, na Amazônia Legal pelo Estado brasileiro, decorreu
de diferentes momentos da articulação capitalista, inserindo neste processo ainda, mudanças
estruturais e conjunturais acerca de desenvolvimento econômico e político, perpassando ainda,
pelas esferas do simbólico e cultural.
O conjunto de ações desencadeadas pelo Estado Brasileiro e pelas forças políticas,
podem explicitar de maneira segura um quadro ou uma chave teórica que justifique a forma de
ocupação e o modelo produtivo instituído na fronteira.
Neste entendimento, todos os contextos que influenciaram a organização do espaço
social na região de fronteira delimitada na pesquisa, relacionam-se a priori, com a gênese da
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8
formação do Estado Brasileiro, neste exercício considerou-se adequado tomar por base a
concepção de Estado formulada por Gramsci (1991, P.234), pois, conforme este teórico, “ o
Estado deve ser interpretado como um complexo de atividades práticas e teóricas constituídas
pelas esferas da sociedade política e da sociedade civil. Nesse caso, na sociedade política
(Estado restrito) predominaria a coerção e na sociedade civil, o consenso”9.
Para entender melhor o processo de ocupação do oeste brasileiro e também da região
pesquisada, é necessário discorrer sobre a implementação do Marcha para o Oeste, que foi
uma iniciativa do Estado Brasileiro, tratada como uma política estatal de desenvolvimento do
país, o movimento se efetivou na década de 40, caracterizado pelo desencadeamento de um
intenso processo migratório, com o intuito de promover a “ocupação dos espaços vazios na
Amazônia e no Oeste do País”. Constatou-se a influência e o desdobramento de tais ações na
formação dos espaços rurais e urbanos no contexto da fronteira citada, notadamente, a partir
do mesmo período. Ou seja, a partir desta década acima mencionada.
Desse modo, é possível pensar a “Marcha para o Oeste”, assim como outros
movimentos posteriores de “ocupação” das regiões de fronteira neste país como consequência
de processos dimensionalmente maiores e mais profundos quanto à ocupação do espaço,
englobando para isso, tanto a ordem posta no sistema colonial quanto posteriormente, à
definição de uma política de Estado para o Brasil, pautada no domínio territorial e controle
social.
Posteriormente à Marcha para Oeste, outros movimentos migratórios foram
desencadeados com o aval do Estado como forma de dissipar as pressões sociais nos grandes
centros, sob o pretexto de ocupar “espaços vazios” e de ampliação de oportunidades de
elevação econômica e de qualidade de vida da população que se dispusesse a ocupar tais
espaços.
A despeito desta análise, constatou-se que na atualidade, tal processo de configuração
da fronteira no Sudoeste de Mato Grosso, na Amazônia Legal pelo Estado brasileiro, decorreu
de momentos da articulação capitalista, inserindo neste processo ainda, mudanças estruturais
9
GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o estado moderno. Trad. Luiz Mário Gazzaneo, 8 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991 (1991, p.234)
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e conjunturais acerca de desenvolvimento econômico e político, perpassando ainda, pelas
esferas do simbólico e cultural.
A leitura de Gramsci acerca da “Ideologia da Hegemonia” trazida à luz do conjunto de
ações desencadeadas pelo Estado Brasileiro e pelas forças políticas, explicitam um quadro ou
uma chave teórica que justifique a forma de ocupação e o modelo produtivo instituído na
fronteira. Estudos e levantamentos documentais realizados sobre o tema de pesquisa na
região, demonstraram a interação entre as políticas de desenvolvimento do país e o contexto
social e político, estabelecendo forças motrizes na configuração das espacialidades
contemporâneas nas áreas fronteiriças.
A segunda metade do século XX no Brasil, é marcada por uma intensificação na
formação espacial de cidades, modificações urbanas e reorganização dos espaços fronteiriços.
Notadamente, a partir de 1964, com a instauração de um governo militar, foram muitas as
transformações sociais e econômicas e que possibilitaram a consolidação do capitalismo no
país. Neste percurso, observou-se na leitura disponível que, muitas são as contradições no
processo histórico de acumulação capitalista, inserindo-se aqui a realidade matogrossense.
Na fronteira Brasil-Bolívia, região selecionada para estudo, sob determinado aspecto,
observa-se a “naturalização da desigualdade social, típica de países periféricos como o Brasil”,
que neste entendimento
pode traduzir-se como uma “suposta herança pré-moderna e
personalista”, decorrente de um forte movimento de modernização observado no Brasil e
alguns outros países da América Latina, atribuído em grande parte, à transferência do modelo
de produção industrial e paulatinamente, à expressão de novas formas vida e quadros sociais,
pautados em novas relações instituídas entre rural-urbano, uma vez que o País vivenciou uma
intensa transformação de cunho socioeconômico a partir de meados do Séc. XX, altera-se de
forma acentuada e acelerada a sua situação de agrário-exportador para urbano-industrial.
As ações modernizantes embutidas no “discurso político do crescimento econômico”
propagada pelo Estado brasileiro a partir da segunda metade do Séc. XX, não explicam a
extensão de tal modernidade à condição periférica de grande parte da sociedade brasileira, ou,
às dramáticas contradições sociais observadas no território brasileiro e talvez de maneira mais
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intensificada, nas vastas faixas de fronteira entre o Brasil e grande parte dos países latinoamericanos, dentre os quais destaca-se nesta investigação a fronteira Brasil-Bolívia, que só em
Mato Grosso estende-se por aproximadamente 500 quilômetros.
Esta modernização das sociedades periféricas teve lugar de destaque no debate
internacional, o que estimulou o avanço das ciências sociais, atingindo o seu ápice no pós
guerra, acompanhando o esforço norte-americano na reorganização política do mundo livre.
Para discutir a territorialidade e o papel desempenhado pelo Estado na fronteira,
propomos um exercício de compreensão do quadro da desigualdade social brasileira, o que
neste entendimento, está inserido nas mazelas sociais dos países periféricos, assim como o
Brasil, presentes na desigualdade e sua naturalização, na marginalização dos setores
expressivos da população, na dificuldade de consolidação de uma ordem democrática e de
mercado competitiva.
No intuito de compreender a grande complexidade da paisagem social na faixa de
fronteira
estudada,
faz-se necessário
desvelar e
igualmente compreender o papel
desempenhado pelo Estado Brasileiro quanto à territorialidade e ações desencadeadas com o
objetivo de estabelecer e/ou fortalecer a segurança nacional.
Para explorar tais sentidos, considerou-se pertinentes as seguintes indagações: Por
que houve o
desencadeamento de um intenso processo migratório rumo às regiões de
fronteira? Em que medida tais movimentos se constituíram ideologicamente ou com o intuito
de promover a ocupação dos espaços vazios na Amazônia e no Oeste do País? Quais são os
desdobramentos destas ações na formação dos espaços rurais e urbanos no contexto da
fronteira citada, notadamente, a partir da década de 40? Seria a fronteira o “lugar da exclusão”
e do “vazio de direitos”?
Nesse movimento interpretativo, somado à muitos embates teóricos e reflexões, podese entender que: “Todo Estado tem margem. O sujeito pode estar dentro ou fora dos critérios
estabelecidos para estar INCLUÍDO ou EXCLUÍDO entre margem e centro”. No que se
concerne às relações inter-regionais, as regiões de fronteira, em especial o recorte em estudo,
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que engloba espaços que margeiam a Amazônia e Bolívia, constituem-se numa região
geográfica periférica do país.
A desigualdade e a exclusão na territorialidade da fronteira, considerando o paradigma
da modernidade, são discutidas como uma condição de exceção, que está relacionada
diretamente à forma de organização societal. No contexto do sistema capitalista, considera-se
como uma espécie de questão originada no desenvolvimento do modelo capitalista, portanto,
justifica-se a necessidade de implementação de políticas sociais que minimizem tais
excepcionalidades.
Na perspectiva de Marx ( 1969) 10 e Focault (2003)11, os grupos sociais que constituem
a desigualdade e a exclusão estabelecem cada um, uma hierarquia de pertença ao sistema,
constituindo-se em dois “tipos ideais”. A desigualdade pode ser caracterizada como um
fenômeno socioeconômico, enquanto a exclusão está sedimentada como um fenômeno cultural
e social, próprio da civilização. Afirma que: “ em ambas as formas de hierarquização se
pretende uma integração subordinada pelo trabalho”.
As combinações complexas de tais sistemas de pertença dentro de uma hierarquia,
passam por um modelo de regulação social por parte do “Estado moderno” em sua gestão
capitalista, ou seja, a desigualdade e a exclusão ao mesmo tempo em que, de certa forma se
constituem em forças motrizes do sistema, são devidamente monitoradas pela própria gestão
no sentido de se “controlar os extremismos”, nesse sentido, os mecanismos de controle ou de
monitoração conforme denominamos, permitem sob determinada perspectiva alguma
emancipação dos grupos sociais pertencentes às situações de desigualdade e exclusão.
Partindo da premissa que a faixa de fronteira em estudo Brasil-Bolívia é também um
lugar de exclusão e desigualdade, e ao mesmo tempo, um espaço inegável de materialização
da ideologia de “segurança nacional sobre a territorialidade”, são comuns diversos conflitos
sociais aos quais se pode agregar as seguintes características: etnização da força de trabalho;
luta pela posse da terra; coexistência de diferentes nacionalidades e identidades étnicas;
10
11
MARX, K. Ideologia alemã. Cidade do México: Fonte de Cultura, 1969
FOCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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atuação de forças decorrentes do processo de globalização da cultura; descontextualização das
culturas locais. Percebe-se portanto, nessa espacialidade, a inserção de uma nova ordem
mundial, globalizada e multicultural.
Neste quadro reflexivo, no contexto das contradições acerca do processo histórico de
ocupação da Amazônia brasileira, e nesta o recorte da porção sudoeste de MT, deve-se lançar
um olhar crítico também sobre o processo de acesso à terra pública e/ou devoluta, bem como
sobre a violência implícita na desfaçatez, e que é praticada contra nações indígenas, dentre as
quais destaca-se na área estudada a presença dos chiquitano, os migrantes colonos e os
posseiros. Há que se indagar o propósito das políticas públicas de cunho “desenvolvimentista”,
bem como as suas consequências para a região de estudo.
Ainda quanto ao objeto de estudo presente no foco deste texto, vale ressaltar que,
levantamentos e observações realizadas revelaram uma intensa degradação ambiental nos
referidos municípios localizados na fronteira sudoeste de Mato Grosso, em conseqüência
particularmente, das atividades produtivas/econômicas historicamente praticadas, desde o
início da ocupação tais como: atividade garimpeira, atualmente desempenhada por indústrias
da mineração, o extrativismo a partir da exploração da madeira, nem sempre dentro do
contexto da legalidade
e também, das inter-relações estabelecidas entre as atividades
produtivas e “os modos de ser e de viver” daquela sociedade.
Os espaços sociais se constituem nas relações sociais. Na concepção de Michel
Foucault12, tais espaços se configuram antes de tudo, em relações de poder, o que por sua vez,
são decorrentes de diferentes mecanismos e estratégias deliberadas pelos indivíduos e pelas
instituições. Nesse sentido, para o referido Teórico, no exercício de compreensão dos espaços
sociais há necessidade de se estabelecer uma prática analítica no intuito de desvelar estes
mecanismos e estratégias.
A reflexão do autor leva a constatação que o poder se institui a partir de uma
multiplicidade de fatores que perpassam pelo pelas seguintes instituições: o poder disciplinar,
o “biopoder”, os discursos e as técnicas do direito, a obrigação legal e a soberania, entre
12FOUCAULT,
Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975/1976). Martins
Fontes: São Paulo, 1979.
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outros. São fatores que influenciarão diretamente as práticas de sujeição do indivíduo e/ou dos
grupos sociais, uma forma de dominação contida na legitimidade do poder soberano, dos
direitos legítimos e da obrigação “legal” de obediência.
Foucault questiona as relações de poder e práticas de sujeição nas sociedades ditas
democráticas, discute as possibilidades de utilização do modelo estratégico da guerra no
contexto das análises das relações de poder. No sentido de construir uma metodologia de
compreensão das relações de poder (e não do poder em si), o autor elenca algumas precauções
importantes para a compreensão da sua teoria, refere-se à questões do método, nos quais
destaca: a necessidade de compreender o poder nas extremidades, o que permite ir além das
regras do direito,( que para ele organiza e limita as relações de poder), sustenta que o poder
tem sua essência na intencionalidade e objetivos, portanto, não está centrado num indivíduo
e/ou instituição.
Na análise de Foucault o poder se constitui numa rede de relações, num jogo de forças
constante entre ambos os lados, as relações são dinâmicas, complexas e contraditórias. O
Estado nesta reflexão, não seria apenas e tão somente uma Instituição centralizadora do poder,
embora não se possa negar a influência de tal poder, mas o teórico ensina que o poder circula,
transita nos espaços de todo o corpo social.
Dessa forma, as redes de poder culminam com a formação de um sistema de saber.
Assim, o poder exerce-se com base na formação e organização de um saber . Verifica-se nesta
esteira reflexiva, que as relações entre os indivíduos são relações de poder, e não há um grupo
social coeso, portanto não há poder estático ou centrado unicamente em algo ou alguém,
embora, mesmo nas sociedades “ditas democráticas” como o Brasil, as instituições tenham
uma certo privilégio ou talvez uma certa centralidade no exercício do poder em função do
papel que desempenham no bojo das relações sociais, inclusive de vigilância, controle e
garantia dos direitos civis fundamentais dos indivíduos.
Na tentativa de análise e compreensão do espaço social em estudo, inegavelmente, por
se tratar de um espaço de fronteira, percebeu-se que, em diferentes momentos da história do
Brasil, especialmente a partir da segunda metade do Século XX , disseminou-se a ideologia e
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as políticas públicas voltadas a manutenção da soberania nacional ( do Estado) sobre o
território, especificamente na faixa de fronteira do país. Se por um lado as políticas de
desenvolvimento voltaram-se a garantir e fortalecer o poder Estatal e
suas estratégias de
dominação em tais espaços, paradoxalmente, conforme se observa, a mesma faixa de fronteira
em questão é carregada de contradições, práticas e ações que configuram e de certa forma,
legitimam uma realidade pautada em diversas formas de violência e abandono.
E o movimento nas relações de poder? E os sujeitos fronteiriços? Partindo da premissa
em que o sentido de poder consiste e coincide necessariamente com uma forma de saber e/ou
com diversos saberes, pode-se pensar o sujeito fronteiriço e sua movimentação nos seus
grupos sociais sobre diferentes contextos, pode-se constatar que na área de estudo não há um
grupo social coeso e as relações de poder se materializam de um lado entre o Estado e os
indivíduos fronteiriços, e de outro, entre estes no seu próprio grupo social, forjou-se um certo
“ordenamento” nos exercícios de poder, o que, por sua vez legitima um “modo de ser e de
viver”.
Estes modos "de ser e viver” internalizados pelos grupos sociais que constituem o
espaço social da fronteira, talvez propositadamente propague o predomínio da rudeza nas
relações entre os grupos sociais, concedendo à sua territorialidade um aspecto “perigoso”,
fortalecido inclusive no imaginário social, reiterando então, a ideia da faixa de fronteira como
uma “terra sem lei” ou a “terra no fim do mundo”13, o que origina e acirra um certo
preconceito na sentido centro-periferia do país.
Neste enfoque entende-se que, sob o prisma de Foucault, nas relações entre o Estado e
os grupos sociais fronteiriços e entre estes e seus pares, há um exercício de poder permanente,
contido nas disputas pela posse e propriedade das extensões de terra;
nos movimentos
reivindicatórios por maior e melhor qualidade de vida (moradia, condições de sanitárias,
assistência médica e transporte públicos); conflitos sociais de diversas ordens estão sempre
em estado de “ebulição” na região.
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Anotações retiradas de entrevistas preliminares com habitantes da faixa de fronteira em estudo.
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Sobre o papel desempenhado pelo Estado na faixa de fronteira em estudo (BrasilBolívia, inserida na Amazônia), consegue-se perceber muitas contradições, conforme
a
ocasião, interesse e conveniência constata-se a sua presença ou ausência.
A formulação de outra versão para a ideia de constituição da fronteira, num sentido
não atrelado apenas à sua configuração física e/ou espacial ou seja, extrapolando à sua
organização apenas em decorrência do papel do Estado e de suas ações nos moldes do
desenvolvimento capitalista, mas, abarcando também, a sua forma particular de constituição,
que se faz presente na mobilização de forças e na forma de inserção dos sujeitos sociais nesse
espaço de estudo, implica portanto, neste entendimento, em olhar a fronteira a partir do
movimento relacionado às relações sociais, reações, vivências, formas de ser que e de se
articular no “mundo fronteiriço”.
Algumas Constatações
Com relação ao
controle social exercido pelo Estado, entende-se que este
recorrentemente transita paradoxalmente nas margens da legitimidade e ilegitimidade.
Tomando por empréstimo uma referência de Agamben, constata-se que, no desempenho do
seu o papel, o Estado, sob a ótica da omissão ou da “negação de direitos” básicos aos
fronteiriços, também constitui-se na fronteira Brasil-Bolívia como um Estado de Exceção, o
que talvez possa justificar o aspecto de violência a abandono nessa paisagem, pois, não
frequentemente os direitos básicos são negados àquela população e por vezes, a ausência e a
ineficiência das instituições protetivas e básicas para a vida social implicam numa decisão
deliberada sobre quem deve “viver ou morrer”.
Pode-se, a título de exemplo, citar as condições precárias de higiene e saúde vivenciada
pela população fronteiriça, especialmente as de menor poder aquisitivo que compõe a camada
empobrecida, a saber: trabalhadores rurais, mestiços, chiquitano e descendentes de negros,
(que vivem nas áreas de remanescentes de quilombos).
No recorte
de estudo, ou seja, na fronteira Brasil-Bolívia, pode-se entender os
conflitos como parte das estratégias de exercício de poder, tanto por parte do Estado quanto
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das camadas sociais entre si, delineiam-se situações que envolvem diretamente o processo de
“assujeitamento do outro”, o que demanda as mais diversas formas de violência e intimidação,
disfarçada, na maioria das vezes. Visualiza-se os jogos de interesse, que se colocam na linha
de frente das questões, no choque das relações de poder estabelecidas.
Ainda quanto à constituição do poder do Estado brasileiro e de seus significados na
organização do aspecto político da fronteira, outra observação importante está pautada na vida
política local, elemento de fundamental importância para se analisar a existência ou
inexistência dos sujeitos a partir do contexto da inclusão e/ou exclusão do cenário político.
Essa relação se destaca no sentido de pertencimento a uma comunidade e o seu
reconhecimento enquanto ser político, elemento que habilita o indivíduo e/ou grupos sociais à
condição de manutenção e garantias da vida individual e de acesso aos direitos na vida social e
coletiva, no Estado de exceção a vida dos “seres humanos” reduz-se à sua dimensão biológica,
apolítica e sem direitos.
Num confronto entre os referenciais teóricos arrolados e a realidade investigada na
fronteira estudada, pode-se concluir portanto que, no universo das contradições fronteiriças,
ao mesmo tempo em que o Estado brasileiro afirma o caráter universal do seu ordenamento
jurídico, que define teoricamente, “condições de igualdade” no acesso e proteção aos direitos
dos sujeitos que compõe a sociedade de fronteira, nesse quadro, os seres que não se
“constituem politicamente”, estarão sempre à margem de, ou seja, implica em concretamente,
estar “dentro” e simultaneamente estar “fora”, numa condição de sobrevivência pautada na
exclusão e na precarização da vida cotidiana.
De uma forma bastante genérica, pode-se dizer que, a organização social da
“modernidade”
inseriu-se em um modelo capitalista de produção, forjando um modelo de
constituição social à luz da perspectiva do pensamento Europeu, que se desdobrou trazendo
novas complexidades para a interpretação das relações sociais, de produção e trabalho na
fronteira.
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CONFLITOS ARMADOS E MUDANÇA SOCIAL NO MUNICÍPIO DE CITÉ
SOLEIL DO HAITI A PARTIR DOS ANOS 1990 ATÉ HOJE: UMA ANÁLISE
CRÍTICA DA GESTÃO DO PODER POLÍTICO E DO PAPEL DAS
RELIGIÕES.
Jean FABIEN* / Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
[email protected]
Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
GT 3 – Conflitos Sociais, Instituições e Política.
RESUMO
Esta pesquisa se articula em torno de um problema crucial: os conflitos armados
no município de Cité Soleil, cidade situada ao norte da capital Porto Príncipe do Haiti.
Abordando esse fenômeno social, que representam esses conflitos, pretendemos
destacar o papel muito relevante que a religião e a política desempenham neles, sem
esquecer sua participação do processo de mudança social que se iniciou no Haiti
contemporâneo a partir de 1990 – data à qual corresponde o início dos conflitos
armados que se estendem até hoje. Com efeito, esta proposta, procurando entender por
que os conflitos armados são tão freqüentes e repetitivos nesse município e como o
poder político os administra, consistirá em abordar os conflitos armados não como
fatalidade ou anomalia, nem como patologia social, mas como elemento ou fator de
mudança social, enquanto o papel das religiões dominantes: o catolicismo, o
protestantismo e o vodu, será analisado como espaço ou arena social e religiosa de
reconstrução, de reorganização e de restruturação dos elos sociais, praticamente
rompidos em situações de conflitos armados. Assim, além de procurar entender as
causas e os impactos desses conflitos na lógica de mudança social no Haiti, os
resultados dessa pesquisa pretenderão contribuir a ter um mínimo de compreensão da
sociedade haitiana na sua complexidade em geral, assim como ressaltar, em particular,
alguns elementos capazes de explicar por que os cidadãos do município de Cité Soleil
estão mergulhados, de um lado, nessa situação de pobreza e de miséria crônica, nessa
mobilidade social constante do outro.
Palavras-chave: Haiti-Cité Soleil. Conflito armado. Conflito social. Religião. Gestão
Política. Mudança social.
ABSTRACT
Doutorando em Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a bolsa da
CAPES, Jean FABIEN é Mestre em Sociologia pela mesma universidade e foi bolsista do CNPq no
âmbito do programa PEC_PG. Sua dissertação defendida na área da Teoria Sociológica, sendo uma
comparação teórica entre Durkheim e Weber, tem ênfase em Religião analisada como crença,
instituição e cultura. As áreas de pesquisa pelas quais se interessa são: religião, teoria social,
cultura, conflito social e mudança social. Possui duas Graduações, sendo a primeira em Ciências
Sociais com ênfase em História e Geografia, pela Escola Normal Superior (2010), a segunda em
Direito com interesse aos Direitos Humanos, pela Faculdade de Direito e Ciências Econômicas
(2008), ambas as unidades pertencem à Universidade do Estado do Haiti (UEH). Sua pesquisa de
doutoramento, que está em andamento, sendo inscrita na teoria da sociologia de conflito social,
abrange os temas como religião, cultura política, gestão política e conflitos armados.
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This research is articulated around a central problem: armed conflict in the
municipality of Cité Soleil, a city north of the capital Port-au-Prince Haiti. On this
social issue, representing these conflicts, we intend to highlight the very important role
that religion and politics play them, without forgetting its share of the social change
process that began in contemporary Haiti since 1990 - the date that corresponds to the
beginning of armed conflicts that extend to today. Indeed, this proposal, seeking to
understand why armed conflicts are so frequent and repetitive in this city and how
political power manages, is to address the armed conflict not as a fatality or anomaly, or
as a social pathology, but as an element or factor social change, while the role of the
dominant religions: Catholicism, Protestantism and voodoo, will be analyzed as space
or social and religious arena reconstruction, reorganization and restructuring of social
ties, almost broken in armed conflict situations. So in addition to trying to understand
the causes and impacts of these conflicts in the logic of social change in Haiti, the
results of this research will want to contribute to have a minimum of understanding of
Haitian society in its complexity in general, as well as noting in particular some
elements able to explain why the citizens of the municipality of Cité Soleil are dipped
on the one hand, this situation of poverty and chronic poverty, that constant social
mobility on the other.
Keywords: Haiti-Cité Soleil. Armed conflict. Social conflict. Religion. Policy
management. Social change.
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INTRODUÇÃO
Esse artigo se refere a uma parte da nossa pesquisa teórica e empírica que será
desenvolvida no Haiti, mais precisamente, no município de Cité Soleil, seu objetivo
principal consiste em analisar e criticar, de um lado, a metodologia da gestão dos
conflitos armados pelo poder político, o papel e o lugar das religiões neles a fim de
compreender por que esses conflitos são tão freqüentes e repetitivos no município de
Cité Soleil e quais seriam seus impactos no processo de mudança social, do outro. Com
efeito, este estudo pretende ter um caráter inovador no sentido de que ela quer abordar
um problema crucial muito pouco pesquisado, no entanto, não somente, os fatos e os
dados estatísticos (qualitativos e quantitativos) relativos a esse fenômeno estão
disponíveis; mas sobretudo, ele permanece no país há mais que 25 anos. É por isso que
uma maior parte das nossas análises será baseada nesses dados estatísticos. Além disso,
os conflitos sociais e violentos entre diferentes grupos armados em Cité Soleil fazem
dele uma cidade mundialmente reconhecida pela freqüência desse tipo de fenômeno
social. Contudo, para evitar toda interpretação e percepção errada, precisamos entender,
em primeiro lugar, que esses conflitos – bem que a religião tenha um papel e um lugar
interessantes neles – não são religiosos e nem têm a religião como causa originária, em
segundo lugar, apesar de serem sociais e ligados a outros problemas econômicos muito
complexos como desemprego, pobreza, repartição desigual das riquezas, eles são um
problema político de segurança nacional, pois, segundo a ONU é da inteira
responsabilidade do Estado de prevenir, gerir, resolver e transformar os conflitos
armados a fim de garantir a segurança de cada cidadão e facilitar a paz social na
sociedade.
Duas razões principais justificam nossa preferência por Cité Soleil como nosso
campo da pesquisa empírica. A primeira diz respeito ao aspecto histórico, como vamos
ver adiante. É que dentre os municípios do Haiti, Cité Soleil foi o primeiro em que esses
conflitos começaram a aparecer e a ocorrer, assim, a cidade passou a representar não
somente o baluarte da repetição dos conflitos armados que, cada vez mais, fragilizam as
relações sociais e complicam a vida social e econômica dos indivíduos, como também o
bairro mais populoso e pobre do país. A segunda razão leva em consideração a posição
geopolítica e estratégica de Cité Soleil enquanto um dos espaços geográficos mais
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apropriados para analisar, por um lado, o processo de mudança social no qual os
conflitos armados deveriam ter um papel importante assim como a fraqueza das
políticas públicas relativas ao plano de segurança, questionar a racionalidade e a
efetividade desse plano por outro. De fato, ao analisar e criticar o papel das religiões e
as ações políticas do governo na gestão desse fenômeno que representam os conflitos
armados, nossa ambição é tentar, a partir das teorias sociológicas de conflito social, de
mudança social e do papel da religião nos conflitos, explicar cientificamente por que os
conflitos armados em Cité Soleil são tão frequentes e repetitivos. Assim, começando por
uma apresentação resumida da delimitação geográfica e do contexto histórico no qual
nasceram os conflitos armados, esse ensaio se articulará acerca, primeiro, da teoria
social do conflito, tratar-se-á de ver em que sentido esses estudos teóricos poderiam
ajudar-nos a entender a essência dos conflitos armados em Cité Soleil; segundo, da
teoria do papel das religiões na situação dos conflitos em que vamos tentar analisá-la
enquanto espaço de reconstrução das relações sociais; por fim, terceiro, de uma crítica
da gestão política feita pelo governo desse fenômeno, nesse aspecto vamos tentar
salientar a falta de racionalidade e de efetividade no programa CNDDR.
DELIMITAÇÃO GEOGRÁFICA E DADOS DEMOGRÁFICOS DE CITÉ
SOLEIL
Pela lei de 26 de março de 2002 Cité Soleil passa do estatuto de uma secção
municipal ao estatuto de município. Esta lei define sua composição e sua delimitação.
Composto com efeito de duas secções municipais Varreux 1 e Varreux 2, e de vinte
nove distritos muito vizinhos, Cité Soleil tem os bairros mais vulneráveis aos conflitos
armados do país dentre os quais podemos sublinhar Boston, Bois-Neuf, Soleil 1, Soleil 2
e Projet Drouillard1. Cité Soleil está limitado do leste para este a partir de Wharf
Jérémie até o cruzamento Aviação, ao norte a partir da estrada Nacional 1 até o
cruzamento Damiens e se termina no sul de Wharf Jérémie. Zona litorânea muito
estratégica do ponto de vista econômico e geopolítico, Cité Soleil tem uma superfície de
22 km² e é cercado pelas zonas industriais e manufaturais no noroeste, pelas praias mais
Esse bairro se tornou uma localidade de conflitos violentos entre grupos armados nos anos 2000,
mais precisamente em 2004, após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide em 29 de fevereiro
de 2004.
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atraentes e bonitas no sul2 e pelo mar3 no nordeste. Ele está perto das grandes empresas
que representam o pulmão econômico do país entre os quais podemos notar Brasserie
National, La Couronne, Barbancourt (empresas de bebidas), Aciérie d´Haiti, Parc
Industriel SONAPI, dentre outros. Porém, essas empresas e outras não são sob a
jurisdição administrativa de Cité Soleil. Com uma população de 252.960 habitantes e
uma densidade de 11.498,18 habitantes por quilômetros quadrados (IHSI4, 2003), o
município de Cité Soleil é, não apenas, a favela mais populosa e pobre do país, mas
também do Caribe inteiro. Segundo o último censo de 2013, 54,59% da população que
mora lá tem dezoito anos, muito jovem, mas jovens que estão sem emprego, sem acesso
à escola pública, aos serviços sanitários, alimentares, sociais e culturais básicos5.
BREVE CONTEXTO HISTÓRICO DO INÍCIO DOS CONFLITOS ARMADOS
EM CITÉ SOLEIL
É difícil dizer exatamente quando e como os conflitos armados começaram em
Cité Soleil, decifrar as estratégias de formação dos grupos armados. Essa dificuldade
pode ser explicada pelo fato de que esses conflitos se inserem num contexto da historia
contemporânea haitiana, ora, por outro lado, a historiografia contemporânea haitiana é
ainda, do ponto de vista teórica e científica, muito pobre em matéria bibliográfica.
Porém, apesar dessa dificuldade, resta que a maior parte da segunda metade (1950) da
historia contemporânea haitiana foi marcada por regimes ditatoriais sucessivos cujo
último é a ditadura dos Duvalier (1971), portanto, partindo desse pressuposto
historiográfico, poderíamos apontar que os conflitos armados se iniciaram a partir dos
anos 1990, alguns anos depois do fim, em 1986, da ditadura militar dos Duvalier (pai e
filho) que durou quase 30 anos. Isso significa também que os conflitos armados estão
estreita e paradoxalmente ligados ao fim desse regime autoritário e ao advento em 1987
do que é chamado de “transição democráticaˮ.
Trata-se de uma zona chamada Côte des Archadins que, sendo situada na região norte, constitui o
pulmão da indústria turística mais lucrativa do país sem esquecer também as praias bonitas do sul.
3 O bordo do mar representa o fundão de Cité Soleil e é povoado de construções anárquicas em
papelão ou em chapa onde está vivendo a maior parte da população de Cité Soleil numa situação
infra-humana e catastrófica. Por falta de infraestrutura, essa zona é muito pouco acessível aos
policiais, aos serviços sanitários, aos negócios etc.
4 Instituto Haitiano de Estatística e de Informática
5 Dados geográficos e demográficos do Ministère de l´Intérieur et des Collectivités Territoriales
(Ministério
do
Interior
e
das
Coletividades
Territoriais).
Disponível
em:
http://www.mict.gouv.ht/Commune/147.
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A ampliação e degeneração desse fenômeno acontecem sob o regime
democrático. A negligência das autoridades governamentais causou que alguns grupos
envolvidos em violências coletivas começaram a tomar o controle desse município
teorizando a população e a enfrentarem-se violentamente entre si a partir dos anos 1995,
enquanto a situação social e econômica dos indivíduos deteriorou. Antes do uso
frequente das armas de fogo, até o fim de 1993, as relações entre os diferentes grupos
sociais eram marcadas por confrontações não violentas, ou seja, conflitos sociais sempre
tiveram na comunidade de Cité Soleil, como isso acontece normalmente em qualquer
sociedade, mas, não se tratam de conflitos armados a um nível tão elevado hoje. Além
disso, é importante sublinhar que o período da transição democrática, que se iniciou
com uma nova constituição a de 29 de março de 1987, foi caracterizado por grandes
turbulências políticas, econômicas e sociais, estas tiveram conseqüências sobre cada
parte do país em particular as zonas desfavorecidas e pobres, neste caso Cité Soleil,
Martissant, La Saline, Solino, Bel Air dentre outros. Portanto, antes dos anos 1990 os
conflitos sociais entre os cidadãos de Cité Soleil eram, porém, pacíficos, sem violência e
não tinham todos esses efeitos negativos de hoje. Assim, é importante salientar que no
momento em que os grupos armados têm começado a se confrontar violentamente em
num espaço que se chama Cité Soleil para tentar controlá-lo, neste contexto histórico o
país sofreu uma instabilidade política marcada por golpes e sucessões de regimes
militares (PIERRE-CHARLES, 1967; LEHMANN, 2005; NICOLAS, 2006).
Com efeito, após ter ganhado as eleições presidenciais em novembro de 1989,
Jean-Bertrand Aristide foi vítima, em 1990, de um golpe militar e exilado para os
Estados Unidos. Consequentemente, o país passou 4 anos a ser governado por um
contingente militar dirigido pelo general Raoul Cédras6. Foi exatamente após esse golpe
brutal que alguns jovens começaram a se envolver em crimes organizados e violências
coletivas em Cité Soleil, sem poder saber a origem e as razões de um armamento que se
fazia clandestinamente. Nesse sentido, podemos dizer que esse golpe de 1990, que
acabou de fragilizar a transição democrática, tem certas relações causais com o inicio
dos conflitos armados assim como de outros tipos de crime e de violência que a
população de Cité Soleil passou a sofrer. Assim, após a queda da ditadura duvalierista,
6
Raoul Cédras é uma das grandes personalidades da CIA no Haiti que foi utilizado pelos Estados Unidos
para organizar com o exercito haitiano o golpe de 1990.
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Haiti falhou um momento crucial, a transição democrática, para mudar seu sistema
político, seu projeto de democracia continuou a enfraquecer e seu sistema político se
tornou cada vez mais vulnerável e frágil.
A partir de 1995, após o retorno de Aristide em 1994, os conflitos armados já
atingiram um estádio muito pior até 2001: O período que marcou a grande degeneração
dessa situação que acabou de escapar ao controle das autoridades governamentais e
locais. Entre 2001 e 2003, as violências aumentaram consideravelmente em Cité Soleil e
o transformaram em quase um campo de guerra. Essa situação catastrófica, que afetou
principalmente as famílias que vivem lá fragilizando sua vida social, foi uma das causas
do segundo exilo de Aristide em 2004 para a África do Sul. Se, segundo alguns atores
políticos da oposição democrática nesse período, o exilo de Aristide seria uma solução à
crise política e à diminuição das violências coletivas, a realidade mostrou o contrário,
pois, após esse exilo, os conflitos armados se tornam piores e, no caso de Cité Soleil, a
cidade passou acerca três anos a ser controlada por grupos armados sem a presença das
autoridades policiais e judiciárias. Todavia, entre o fim de 2008 e o início de 2010 antes
do terremoto, Cité Soleil passou por um momento de calma superficial, os conflitos
armados diminuíram um pouco, as atividades sociais, culturais e econômicas voltaram
timidamente, de certa forma, a seu ritmo mais ou menos normal. Na verdade, não se
trata de uma diminuição real ou de um fim dos conflitos, pois são latentes. É o que
chamou nossa atenção em Freund quando sustenta que, em certas situações, os conflitos
podem parar por causas independentes da vontade dos atores e sem a intervenção de um
terceiro que, segundo ele, é sempre importante na resolução dos conflitos (FREUND,
1983, p. 287-301). Como vamos ver adiante, apesar da contribuição do programa
CNDDR7 na criação desse clima de paz aparente, não se trata de uma metodologia de
resolução e de transformação dos conflitos armados.
Além disso, após o terremoto de 2010 que destruiu a quase totalidade da capital
do país a situação dos conflitos armados em Cité Soleil se agravou, porque as prisões
civis formam atingidas e dentre vários indivíduos que fugiram, se encontram chefes de
grupos armados que, sendo muito perigosos para a sociedade, foram envolvidos em
crimes organizados. Isso acabou de complicar mais o trabalho dos policiais e a
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Comissão Nacional de Desarmamento, Desmobilização e Reinserção.
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comunidade de Cité Soleil se encontrou numa situação muito delicada e quase isolada.
Isso acabou também de aumentar os confrontos armados entre os grupos, assim, o
crescimento dos atos de criminalidade e do número de grupos armados são dentre as
principais conseqüências desse terremoto sobre a situação do conflito armado que se
desenvolve em Cité Soleil, uma cidade que permanece vulnerável sobre o plano
demográfico e econômico.
Até hoje, Cité Soleil permanece a cidade cuja população está crescendo a um
ritmo exponencial sem um plano político de planejamento territorial, ela aparece ser
rompida com o resto da sociedade vivendo num complexo isolamento. Os olhos do
mundo inteiro e da comunidade internacional se projetam sobre ele mais precisamente a
partir dos anos 2001 para classificá-lo na lista das zonas vermelhas. Assim, a vida
socioeconômica nesse bairro fica cruel e infra-humana: 7/10 habitantes gastam por dia
menos que um dólar americano (1 U$) para sobreviver, 60% da população com a idade
de trabalhar está sem emprego (MICT, ibid). Ademais, as atividades econômicas são
pouco lucrativas, o que impede ao município ter seu próprio orçamento de
funcionamento que depende em maior parte do orçamento do governo central. Portanto,
Cité Soleil não gera suficientemente receitas fiscais próprias que lhe permitiriam criar
mais atividades econômicas e ter sua autonomia financeira.
Esse percurso histórico nos oferece um panorama da situação de violência que
cresce em Cité Soleil e que permanece até hoje, mas, do ponto de vista teórica, até lá
ainda nada foi dito sobre a teoria social do conflito, o que essa teoria tem a dizer-nos e
como ela, em particular no caso de Cité Soleil, poderia ajudar-nos a entender melhor
essa realidade para problematizar mais nosso objeto de pesquisa. É o ponto a abordar
agora.
A TEORIA SOCIAL DO CONFLITO
O conceito de conflito é de uso muito comum, e como todo conceito é suscetível
ser vítima de um uso abusivo, sobretudo quando ele é confundido com as noções como
problema, competição (forma clássica de conflito como diz Weber8), desacordo, tensão
e violência. O conflito se encontra em todos os níveis da vida social: família, grupos de
amigos, equipes, empresas, universidade etc. Qualquer situação da vida pode ser um
catalisador de conflito, e podemos dizer que um conflito nasce a partir dos objetivos
8
Max Weber. Économie et Société. Paris: Plon, 1971, p. 24-26.
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incompatíveis (FREUND, Op. cit, p. 19; ONU, 2001, p. 4). Nesse sentido, precisamos
ficar atentos que o conflito faz parte das regras da vida humana e social.
O conflito é uma fase normal pela qual a sociedade tem que passar, então não
precisa dramatizá-lo. Segundo Freund, um conflito é definido pela dissolução de um
terceiro e a constituição de dois grupos antagônicos: os amigos e os inimigos (Op. cit. p.
14). O conflito não é um simples desacordo, segundo Burton (1997, 1998, 2001),
mesmo que todo conflito comesse a parti daí, mas é um fenômeno social que deve ser
analisado segundo os métodos analíticos. Isso quer dizer que, entendido como uma
prática social tão velha como a humanidade, o conflito se apresenta, segundo Heráclito
de Efésia citado por Christine Marsan9, como a melhor fonte originária da verdadeira
harmonia social. O sociólogo alemão Lewis Coser (1967) destacou que os conflitos
surgem a partir do momento em que uma organização falha a seu papel de resolver os
problemas considerados como fundamentais por seus membros. Para ele, os conflitos
são fenômenos sociais normais na sociedade e têm como a missão de manter a ordem
social e fortalecer a identidade e a organização social. Ele acrescenta que o conflito tem
a ver com as demandas insatisfeitas da população que encontram um obstáculo em
comparação aos interesses burocráticos que ele chama “interesses criadosˮ (COSER,
1967, p. 34-35).
A teoria social do conflito de Reimann (2004) chama nossa atenção sobre três
maneiras fundamentais de abordar o conflito na sociedade. Primeiro, como um
problema de ordem política, segundo, como um catalisador de mudança social, e
terceiro, como uma luta não violenta pela justiça social (REIMANN, 2004, p. 7). Numa
abordagem objetiva, acrescenta ele, a origem do conflito se encontra no caráter social e
político assim como na estrutura da sociedade, o que significa que o conflito sofrido
pela sociedade pode não ter nada a ver com as percepções e os sentimentos das partes
que se envolvem nele10. Freund, por sua vez, chama também nossa atenção sobre o
9
« A oposição dos contrários é condição da evolução das coisas e ao mesmo tempo princípio da lei. O
estado de estabilidade, de concórdia e de paz é apenas a confusão das coisas na iluminação geral (...) O
que é contrário é útil e é do que está em luta que nasce a mais linda harmonia; tudo se faz por
discórdia...O combate é pai e rei de todas coisas; de alguns, ele criou deuses, de alguns homens, dos uns
escravos, dos outros homens livres. » (MARSAN, 2008, p. 11) (Nossa tradução)
10Cordula, Reimann. Assessing the state of the art in conflict transformation. Assessing the State of
the Art in Conflict Transformation. In: Berghof Handbook for Conflict Transformation. Berghof
FoundationOnline,
2004,
p.
3
a
7.
Disponível
em:
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mesmo aspecto sublinhando os fatores exteriores ao conflito. Nascido num espaço de
relação social, todo conflito é imposto por um contexto social bem definido exterior aos
atores e estes entram em conflito pela causa desse contexto social. Se eles conseguem
resolver o conflito antes da sua explosão violenta, isso é bom para a sociedade, todavia,
isso não significa que o conflito que não existe mais, mas porque o contexto social,
histórico e político no qual se insere mudou assim como as conjunturas (Op. cit. p. 2021).
O argumento de Honneth leva em conta a questão da individualidade para
ressaltar a natureza social do conflito. Segundo ele, o fenômeno do individualismo, que
está conhecendo um desenvolvimento vertiginoso nas sociedades contemporâneas, está
na base do conflito social pelo reconhecimento e pela identidade, assim, a
individualidade se torna, apesar de tudo, uma das suas diversas características. Para ele,
o conflito social passa pela luta do indivíduo por reconhecimento de sua própria
identidade, de seus próprios valores culturais. Ele considera essa luta por
reconhecimento como um desenvolvimento social. Quando os indivíduos, diz ele,
entram em conflito não é porque querem uma auto conservação ou um aumento do seu
poder, como Hobbes e Maquiavel o percebem, mas porque a identidade pessoal ou
coletiva deles está ameaçada, por isso, precisam lutar para fazê-la respeitar defendendo
sua moral (HONNETH, 2003, p. 15-17).
Em regra geral, a teoria social do conflito nos ensina que um conflito tem
objetivos: primeiro, mostrar a fraqueza, a força e a vulnerabilidade do sistema social e a
necessidade de mudá-lo parcialmente ou integralmente, segundo, permitir entender as
diversas dimensões e facetas da sociedade, enfim terceiro, salientar a fragilidade e a
complexidade das relações humanas e sociais.
O CONFLITO COMO VECTOR DE RELAÇÃO SOCIAL
Se cada relação humana que se constrói é uma nova possibilidade de conflito
que se cria, então a relação humana é em si mesma conflituosa. E se a relação humana é
conflituosa isso significa também que a conflitualidade é inerente e imanente à vida
humana, e como os seres humanos são atores sociais, então o conflito caminha para uma
foundation.org/fileadmin/redaktion/Publications/Handbook/Articles/reimann_handbook.pdf.
Acesso em: 30 maio 2015.
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construção de relação social, seja durável ou efêmera. Portanto, qualquer tipo de relação
social é conflituoso, pois o conflito é da ordem da vida imediata e nos leva a criar outras
relações sociais. Nesse sentido, Freund sustenta:
“O que convém a esclarecer, é que o conflito pertence à ordem
das relações sociais que na sua reciprocidade incluem uma discórdia que
pode ir até a inimizade (...) Importam pouco as razões circunstanciais de
ordem reivindicativa, ideal ou afetiva que o motivam, o conflito nasce da
escolha diferente que fazem os participantes de uma relação social
recíproca que, por seu sentido visado subjetivamente, envolve um
desacordo. O que tem de observar do ponto de vista sociológico, é que
essa escolha não é inteiramente livre, pois é condicionada, ao menos
indiretamente, pelo contexto socialˮ (FREUND, Op. cit. p. 21) (Nossa
tradução).
A teoria social de conflito de Simmel (1983) nos ensina que não devemos
continuar a enxergar o conflito como um monstro destruidor e devastador das relações
humanas, como um fenômeno que complica, destrói ou bloqueia o funcionamento da
sociedade. Ao contrário, o conflito precisa ser entendido numa perspectiva construtiva,
pois pode levar a um melhor andamento do corpo social. Simmel apresenta o conflito
como aquele fenômeno poderoso suscetível permitir aos membros de um grupo uma
melhor integração social. Segundo ele, os comportamentos antagonistas não têm só uma
finalidade social negativa, mas permitem a cada um de nós conhecer melhor seu caráter,
sua atitude e seu comportamento a fim de chegar a uma vida de relação social
equilibrada11. O conflito social tende ao progresso da sociedade, em outras palavras, os
conflitos sociais participam também do processo de criação de valor e de
desenvolvimento da sociedade (Op. cit.). Coser, por sua vez, considera que os conflitos
sociais têm um papel crucial de mudança social. Para ele, a sociedade é dinâmica e não
estática, e os conflitos fazem parte desse dinamismo. Os conflitos, como, por exemplo,
os conflitos violentos e armados tendem, apesar dos efeitos negativos, geralmente a um
sinal de mudança social. Ele afirma:
“El conflicto es el tábano del pensamiento. Estimula nuestra
percepción y nuestra memoria. Fomenta la investigación. Sacude neustra
pasividad de ovejas, incitándonos a observar y a crear (...) El conflicto es
el sinequa non de la reflexión y la inventivaˮ (COSER, 1967, p. 26).
A oposição de um membro do grupo a um companheiro, por exemplo, não é um fator social
puramente negativo, quando vezes tal oposição pode tornar a vida ao menos possível com as
pessoas realmente insuportáveis (...) Nossa oposição nos faz sentir que não somos completamente
vítimas das circunstâncias. Permite-nos colocar nossa força à prova conscientemente e só dessa
maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das quais, sem esse corretivo, nos afastaríamos
a todo custo. (SIMMEL, 1983, p. 127).
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Nesse sentido, os conflitos armados em Cité Soleil, apesar da sua natureza
violenta que poderia ser objeto de um estudo mais profundo pela sociologia do crime ou
da violência, podem ser um índice a ajudar-nos a entender melhor a mudança social que
está acontecendo no Haiti contemporâneo. Em resumo, essa abordagem teórica do
conflito social nos permite entender que o conflito entre grupos sociais é uma condição
da vitalidade da existência coletiva (TERRIER e MÜLLER, 2013, p. 6). Ele é uma
situação que nós somos condenados a viver cada dia e com a qual devemos acostumarnos.
Baseando-nos nesse breve percurso histórico em Cité Soleil e partindo dessa
fundamentação teórica da sociologia do conflito analisada em cada um dos autores,
podemos levantar três paradigmas para prosseguir nossa pesquisa: primeiro, os conflitos
armados em Cité Soleil são de ordem social e política, segundo, eles se escrevem numa
dinâmica de mudança social no comportamento dos indivíduos, na sua vida social e
relacional, enfim, terceiro, eles são ao mesmo tempo de natureza interna e externa.
O PAPEL DA RELIGIÃO NOS CONFLITOS ARMADOS E A SITUAÇÃO
RELIGIOSA EM CITÉ SOLEIL.
Existe uma teoria do papel social ou político da religião nos conflitos armados?
É uma pergunta que não será respondida nesse artigo, mas, vista como instituição,
espaço social de organização das relações sociais, a religião pode ter, segundo Garde
(2003), Yakira e Sela (2003), Marshall ([199-?]) e Mori (2010), um papel significativo
nos conflitos, sejam eles violentos, armados ou não. Portanto, apesar dessa fraqueza
teórica nesse domínio, algumas pistas chegam a enfatizar o papel da religião nos
conflitos em três abordagens. Primeiro, no âmbito do seu papel moral, a religião pode
ajudar na prevenção e na resolução do conflito desempenhando um papel de interlocutor
ou de mediador para chegar à paz entre os grupos rivais. Num relatório preparado por
um grupo de crentes cristãos, judeus e muçulmanos reunido na Suécia, lemos o
seguinte:
“In such encounters religious communities can find ways both to
prevent conflicts and to minimise violence when conflicts appear (...) We
were concerned with the double role we can perceive when religion is
used sometimes to raise or stirup conflicts and at other times to prevent
or stop violent actionsˮ.12
12
Christian Council of Sweden (Org.) e al., 2005, p. 6.
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Em segundo lugar, a religião pode ser uma das fontes do conflito, seu canal de
alimentação e de provocação, ou seja, apesar de uma ancoragem social e política, o
conflito pode ter suas raízes dentro da religião si mesma. Nesse sentido, podemos falar
de conflitos religiosos ou guerra das religiões (YAKIRA e SELA, 2003; GARDE,
2003). Em terceiro lugar, – e é esse último aspecto que gostaríamos de investigar mais
adiante apesar da fraqueza bibliográfica –, no âmbito do seu papel de fundamento de elo
social e de solidariedade social, nos conflitos a religião pode se tornar a última
alternativa em matéria de restabelecimento e de fortalecimento das relações sociais num
espaço de conflitos sociais. Os dois últimos aspectos fazem lembrar, entretanto, um
duplo papel dicotômico da religião: Essa astúcia de ser ao mesmo tempo um pomo de
discórdia e um cimento social. Infelizmente, a tendência de hoje é esquecer ou ignorar
esse papel significativo das religiões nos conflitos, sequer as pesquisas científicas não a
levam em conta como lamenta Katherine Marshall: “Someone did a survey of over
1,000 academic articles on conflict, and only three had given systematic attention to the
role of religionˮ (MARSHALL, [199-?], p. 1).
Essa ignorância concerne também os conflitos armados em Cité Soleil. Quando
isso acontece, esquece-se que a religião poderia ter um papel a desempenhar nesse
fenômeno, para se concentrar somente nas questões política e econômica. Com certeza,
ela, a religião, tem um papel significativo nesses conflitos.
Por isso, dentre as três maneiras de enxergar o envolvimento da religião13 nos
conflitos, a que consiste em ver na religião o fundamento da coesão social nos interessa
mais e, no caso de Cité Soleil, as religiões catolicismo, protestantismo e vodu, do ponto
de vista institucional e organizacional, serão estudadas como estrutura social que
consegue reorganizar, restabelecer e fortalecer as relações sociais dentro de um espaço
de conflitos armados.
Sendo a religião predominante no Haiti, 54,7% da população pertencem ao
catolicismo, vem depois o protestantismo composto de várias confissões religiosas cujas
mais influentes são os Baptistas 15,4% e os pentecostais 7,9%. Os que se dizem sem
A religião entendida do ponto de vista de instituição, de organização, de cultura, de crença e de
prática social e espiritual na vida cotidiana dos Haitianos.
13
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religião são de 10,2%14. Porém, a religião popular e enraizada na história social e
cultural do país é o vodu: Expressão simbólica da resistência negra durante todas as
guerras que levaram à independência. Marginalizado e discriminado, é difícil dizer,
estatisticamente, o número de crentes que pertencem ao vodu, todavia, isso não impede
que seja tecido à cultura social e religiosa dos Haitianos (HURBON, 2002; FRIDOLIN,
2000; FOUCHARD GUIGNARD, 1993). Embora seja difícil dizer também exatamente
– ainda por falta de dados estatísticos – quantas igrejas católicas, protestantes e quantos
templos de vodu, les péristyles, existem em Cité Soleil, mas podemos dizer que os
cultos e ritos dessas principais religiões são, não apenas, presentes na comunidade de
Cité Soleil, mas sobretudo, desempenham um papel crucial nas situações de conflitos
armados enquanto espaço que consegue recoser essa solidariedade social que os
habitantes procuram. Ou seja, o espaço religioso vira em situações de conflitos violentos
a arena social de reorganização da vida social e de reconstrução das relações sociais
entre os indivíduos.
Com efeito, durante os conflitos armados em Cité Soleil, temos feito algumas
observações etnográficas interessantes. A primeira observação se traduz pela atitude
mesma das religiões que, chamando muito nossa atenção, se oferecem como alternativa
de integração social e demonstraram a capacidade de ser o centro de reconforto social
para uma comunidade em aflição e em busca de uma vida de relação humana melhor,
isto é, um espaço de coesão social, o no qual, apesar de tudo, os elos sociais se
fortalecem, e as relações sociais dos fiéis entre si e destes com o resto da comunidade
podem ser revitalizadas. Do outro lado, não são somente as Igrejas que vão até as
pessoas através dos programas de evangelização, mas também, as pessoas procuram as
Igrejas sobretudo nesses momentos de conflitos além de manifestarem contra isso.
Particularmente nesses momentos de conflitos, as igrejas tanto católicas como cristãs e
les péristyles são transformados em lugar de efervescência coletiva e de terapia social.
Nesses espaços os indivíduos conseguem construir uma vida de relação social, em
suma, em período de conflito armado, a vida social real está dentro da arena religiosa.
Assim, a religião ajudou os indivíduos a ter coragem e força nessas situações difíceis, a
14
Dados disponíveis no site de l´Institut Haitien de Statistique et d´Informatique (IHSI) (Instituto
Haitiano de Estatística e de Informática). Disponível em: http://www.ihsi.ht/ .Acesso em: 2 abr. 2014.
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ter esperança e confiança em uma ascensão social e em um progresso econômico no
futuro.
A segunda observação que, no desenrolamento dos conflitos armados em Cité
Soleil, chamou nossa atenção é o profundo respeito dos grupos que se enfrentam tanto
para as Igrejas, templos e outros espaços religiosos ou lugares de culto como para os
símbolos religiosos, por exemplo, a cruz, de um lado; tanto para os dias de atividades
religiosas principalmente os cultos dominicais15, como para os atores religiosos
(pastores, padres, fiéis, hougans etc.). É interessante observar isso por que já, a partir
daí, temos algumas pistas para aprofundar nossas análises criticas, pois, o que pode
explicar a origem e as razões desse sentimento de respeito; por que durante os conflitos
em Cité Soleil, a maioria das Igrejas católicas e protestantes, templos de vodu e de
outras denominações, foi protegida; por que durante os conflitos armados em Cité Soleil
as demandas de religiosidade aumentam; se a religião desempenha esse papel relevante
de reconstrução das relações sociais por que os conflitos continuam sendo frequentes e
repetitivos em Cité Soleil, como as Igrejas (católicas ou protestantes) e les péristyles
foram transformados em lugar de efervescência coletiva e de terapia social nos períodos
de conflitos armados; são dentre as principais perguntas às quais tentaremos responder
ao longo da nossa pesquisa. Assim, um dos méritos dessa pesquisa será tentar abordar
essa realidade social e empírica baseando-nos na teoria e na metodologia em sociologia
que permitem construir um problema sociológico, pois, de qualquer jeito, estamos em
frente de um problema sociológico a analisar.
RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E CONFLITOS ARMADOS
Hoje em dia, no que dizem respeito aos conflitos armados em Cité Soleil ou em
qualquer outro município vulnerável do país onde existem as violências coletivas, as
principais perguntas que se colocam são seguintes: Quais são as relações entre os
dirigentes políticos, passados ou presentes, e os grupos armados? Qual é o papel do
governo na gestão dos conflitos armados?
Com efeito, desde a ditadura dos Duvalier até hoje, na cultura política haitiana,
para que um governo possa se manter no poder, ele procura o apoio sistemático de um
Os conflitos armados, como são latentes e momentâneos, aconteceram raramente no domingo,
dia ao qual corresponde a maioria das atividades religiosas tanto em Cité Soleil como no Haiti em
geral.
15
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grupo armado chamado milícia – corpo paralelo à instituição policial – formada
geralmente dos indivíduos com mais necessidades sociais e econômicas, ou seja, os que
são vulneravelmente expostos à exploração, a maioria dentre eles é jovens,
desempregados e analfabetos. Nesse sentido, para se proteger contra um eventual golpe
ou assassinato, o ditador François Duvalier criou em 1957 os Tontons macoutes
(PIERRE-CHARLES, Idid). Após o golpe de 1990, les Fraph foram a milícia formada
paralelamente ao exercito haitiano pelo regime militar provisório dirigido pelo general
Raoul Cédras para fortalecer e proteger o sistema autoritário (DANROC e
ROUSSIÈRE, 1995). Seguindo essa trajetória, em 2001 conhecemos outra apelação dos
grupos armados além do corpo policial16, a saber, “les chimèresˮ, milícia mais
desorganizada que as duas primeiras, que fez seu aparecimento acerca 2002 sob o
governo de Aristide e que, aparentemente, segundo algumas críticas17, lhe teria ajudado
a combater os que se têm oposto ao seu governo entre 2001 e 2004. Esse último caso
nos permite enxergar como, infelizmente, uma administração política central,
explorando os grupos sociais vulneráveis, poderia estar atrás dos conflitos armados ao
invés de resolvê-los e transformá-los em proveito da sociedade. Aí vem essa pergunta:
Quais são as políticas públicas do governo haitiano para tentar agir sobre esse
problema?
A CNDDR18: SEU SUCESSO E SUAS FRAQUEZAS
Do ponto de vista político e de segurança nacional Cité Soleil representa uma
zona de grande desafio para as autoridades tanto em nível nacional, municipal como
internacional19. Sim, existe uma prefeitura, representante direta do governo, que tem
como papel executar o plano do governo, há um deputado e alguns delegados do
governo. No que diz respeito à segurança, há uma delegacia policial composta de um
16
O exercito haitiano foi, pela primeira vez desde a independência haitiana, desmontado de acordo com
os dirigentes haitianos. O principal ator internacional desse desmantelamento são os Estados Unidos.
17
Essas críticas são sobretudo de natureza mediática, isto é, feitas por atores políticos em artigos
publicados nos jornais ou em intervenções feitas na mídias. O mais famoso é o cotidiano Le Nouvelliste.
Disponível em: http://www.lenouvelliste.com/. Acesso em: 30 abr. 2013.
18
Comissão Nacional de Desarmamento, Desmobilização e Reinserção.
19
A Minustah simboliza a presença física da comunidade internacional no município de Cité Soleil em
particular e no Haiti em geral. Mas, essa presença, ao invés de ser vista como uma solução, é sempre
considerada como uma provocação, uma ameaça aos direitos dos habitantes considerando os casos de
estupros, de agressões sexuais e de outros crimes cujos soldados onusianos são acusados. Cabe ressaltar,
por outro lado, que a Minustah chegou no Haiti em 2004 segundo a resolução 1529 adoptada pelo
Conselho de Segurança da ONU.
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17
pequeno número de policiais. Porém, apesar desse aparato administrativo isso não
impede que os conflitos armados se reproduzam cada vez mais. Essa fraqueza precisa
ser analisada a partir do plano político de segurança chamado CNDDR.
Com efeito, auxiliado pelo PNUD, a CNDDR nasceu em 2006 para aplicar a
política pública do governo relativa à segurança nacional. A meta principal é a de
restabelecer a segurança nas zonas de grandes violências coletivas e armadas,
principalmente, em Cité Soleil, enquanto a metodologia é a entrega das armas e a
reinserção social dos indivíduos envolvidos em situações de violência armada nas
atividades culturais e educacionais da sociedade. Apesar de alguns resultados positivos
em termos materiais, como a reconstrução do Tribunal de Paz, da Prefeitura Policial, a
criação de algumas atividades sociais e culturais, embora efêmeras e fracas do ponto de
vista de conteúdo, a CNDDR foi fortemente criticada e, no caso de Cité Soleil, ele
conheceu um fracasso enorme como vamos vê-lo adiante.
Se uma maioria dos habitantes de Cité Soleil enxergou na aplicação do programa
CNDDR uma esperança, uma coisa positiva para que a paz possa voltar ao município,
alguns atores políticos e econômicos da sociedade a criticaram, pois, segundo eles,
trata-se de um programa do governo para proteger os bandidos, ele não tem nada a ver
com a melhoria da segurança dos cidadãos em Cité Soleil. Em consequência, em
segundo lugar, ele foi percebido como uma espécie de refúgio para esconder os
bandidos e dar continuidade à impunidade. Terceiro, as principais autoridades de Cité
Soleil, a saber, o deputado e o prefeito foram acusados e se acusaram reciprocamente
por aproveitar desse programa para politizar os conflitos armados, ganhar dinheiro e
proteger seus próprios grupos nos quais poderiam se encontrar pessoas envolvidas nos
conflitos armados.
Portanto, o programa da CNDDR foi um grande fracasso no caso de Cité Soleil
por ao menos duas razões principais. Primeiro, em vez de desempenhar um papel de
mediador para tentar transformar os conflitos, a CNDDR agiu como agente de força, de
pressão e de repressão por conta do governo deixando de lado a metodologia e a técnica
de abordagem dos conflitos propostas por alguns autores como Carré (2013), Marsan
(2006), Pekar (2008), segundo esses autores, a etapa fundamental para abordar um
conflito consiste em ter plena consciência da complexidade e da fragilidade desse
conflito implicando os atores. A ONU (Op. cit.), por sua vez, inspirando teoricamente
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desses autores e de outros, sublinha a importância da comunicação na abordagem dos
conflitos, ou seja, segundo a ONU, é preciso saber comunicar com os atores dos
conflitos, comunicar significa escutar e compreender suas necessidades sem, no entanto,
precisar concordar com eles. A finalidade da metodologia proposta por esses autores e
pro ONU consiste em chegar a transformar o conflito social em oportunidade de
desenvolvimento. A segunda razão é que, sendo politizada, a CNDDR só levou em
conta os aspectos políticos dos conflitos armados ignorando os aspectos sociais,
culturais, religiosos e econômicos. Assim, a situação de conflitos em Cité Soleil
permanece iminente e latente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados possíveis a atingir na análise do papel das religiões nos conflitos e
da gestão política que o governo fazem deles se baseiam nas hipóteses segundo as quais,
em primeiro lugar, a repetição e a frequência dos conflitos armados em Cité Soleil
resulta de uma fraqueza nas políticas públicas empregadas pela administração central na
abordagem desse fenômeno, isso acabou de gerar nesse município um problema de
exploração social que aumenta a pobreza e a miséria, fragiliza a vida econômica; em
segundo lugar, no cumprimento do seu papel de coesão social, a religião, de certa
forma, se substituiu ao Estado como pacificador e organizador das relações sociais. Os
conflitos armados lhe abrem um caminho para se tornar mais forte e indispensável na
comunidade de Cité Soleil, portanto, o espaço religioso se torna uma arena de
reestruturação das relações sociais e de revalorização dos indivíduos como seres
portadores de dignidade e de direitos. Assim, apesar dos seus efeitos negativos, os
conflitos armados em Cité Soleil traduzem um sinal de mudança social no Haiti e
podem ser explorados para transformar a vida dos habitantes nesse município.
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Para além da discussão entre Estado e Movimentos Sociais: a experiência
dos sujeitos em luta no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Marina Ferreira Giaquinto - UFSCar1
[email protected]
Agência financiadora: Capes
GT: Conflitos Sociais, Instituições e Política
RESUMO
No decorrer da década de 90, a implantação do neoliberalismo no Brasil e as conquistas
objetivadas na constituição de 1988 alteraram o cenário de atuação anteriormente vivido
pelos movimentos sociais das décadas de 70 e 80. Este novo contexto será marcado, de um
lado, pela ampliação de espaços institucionais de participação política da população e
desenvolvimento de políticas públicas e, do outro, pelo enfraquecimento de parte destas
organizações envolvidas nas lutas sociais. Com as novas problemáticas que assolam o país
e, em especial, com a ascensão dos governos petistas nos anos 2000, a bibliografia
específica sobre movimentos sociais rediscuti as diversas possibilidades de se fazer
“política”. Para isso, terão como um dos principais focos de análise a reflexão sobre as
relações de aproximação e distanciamento estabelecidas entre os movimentos sociais e o
Estado. Delineando tal debate, este trabalho propõe, a partir da análise do “Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto” (MTST), problematizar a forma homogeneizante com que parte
da bibliografia trabalha hoje a discussão sobre movimentos sociais. Propondo um olhar
voltado para dentro dos movimentos, e mais especificamente para a experiência de luta dos
sujeitos, busca-se no trabalho de campo novos indícios sobre o atual contexto dos conflitos
sociais.
Palavras chave: direito, participação, movimentos sociais, experiência
INTRODUÇÃO
(…) o que está fundamentalmente em disputa são os parâmetros da democracia, as
próprias fronteiras do que se deve ser definido como a arena política: seus
participantes, instituições, processos, agenda e campo de ação. (ALVAREZ, 2000,
1
Formada em Ciências Sociais na licenciatura e no bacharel pela Universidade Estadual Paulista (Unesp),
campus de Araraquara. Como bolsista Capes/Cnpq participou por dois anos do PIBID (Programa de
Iniciação à Docência), tendo paralelamente uma pesquisa não financiada sobre a configuração dos
movimentos sociais nas décadas de 70 e 80 no Brasil. Hoje, mestranda em sociologia pela Universidade
Federal de São Carlos (Ufscar) e bolsista Capes, atua na área de pesquisa sobre movimentos sociais.
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2
p.15 )
O objetivo de analisar os movimentos sociais na contemporaneidade vem sendo
novamente desbravado por diversos pesquisadores. Tendo seu auge a década de 70 e 80, a
problematização sobre os movimentos parece ter se reduzido junto ao seu encolhimento no
cenário das disputas políticas da década de 90. Com os atuais conflitos trazidos a tona pela
sociedade, o debate sobre movimentos sociais volta a ganhar abrangência através de
reflexões diretamente referenciadas nas transformações ocorridas no país: quais sejam, a
emergência do neoliberalismo, a elaboração da constituição cidadã e a ascensão dos
governos petistas.
Sendo fruto de uma pesquisa ainda em andamento, o presente trabalho surgiu de
parte das reflexões levantadas durante o período que pude acompanhar a ocupação Chico
Mendes, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Como um reflexo das problemáticas que assolam o Brasil após a década de 90, o
MTST irá se formar em 1997 a partir de um objetivo central: organizar a classe
trabalhadora que vive na cidade. Hoje, já organizado em âmbito nacional, assume um lugar
de destaque no que se refere aos conflitos sociais. Assim sendo, também se tornou foco da
análise e crítica teórica e social.
Diante disso, busca-se neste trabalho recuperar algumas mudanças sofridas no
cenário de atuação dos movimentos sociais. Dando destaque a busca por uma nova forma
de se compreender a própria concepção de “política”, resgato os movimentos sociais dos
anos 70 e 80 e as transformações sofridas neste contexto pela ascensão do neoliberalismo e
da constituição de 1988. Em um quadro aparentemente problemático, destaco a chegada do
Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal e as novas transformações que isso acarreta
no quadro dos conflitos nacionais e, mais especificamente, na relação entre os movimentos
sociais e o governo.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto aparecerá destacado como uma forma
colocar em cena um dos frutos de toda essa transformação. Diante disso, e partir dele,
procuro ainda questionar a forma como a relação entre movimentos sociais e Estado são,
por vezes problematizadas.
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Os Novos Movimentos Sociais: a ressignificação da noção de direito.
Na década de 70 e 80 surgiram diversos movimentos sociais organizados a partir do
próprio cotidiano da população. Especificamente no cenário brasileiro, tiveram destaque
nessa época tanto os “movimentos sociais urbanos” – ou seja, aqueles que colocavam em
questão a educação, saúde, transporte, saneamento, moradia e, de forma mais abrangente,
por exemplo, a questão do custo de vida –, quanto o chamado “novo sindicalismo”. Em
terceiro, mas não menos importante, ganharam destaque os movimentos que se
organizavam em torno das questões “identitárias”, como o debate de gênero, raça e
sexualidade. (SADER, 1988; DOIMO, 1995) Denominados pela literatura como “Novos
Movimentos Sociais2”, ganham destaque tanto pela forma como se organizavam, quanto
pela forma como se colocavam no debate público. Conseguindo através de suas diferenças
abrir um espaço comum de conflito, assumem visibilidade política enquanto “sujeitos
sociais coletivos”. (CHAUÍ, 2005)
Porém, ao que se deve o caráter “novo” atribuído pelos intelectuais a esses
movimentos? As explicações são diversas e, na maioria delas os argumentos encontram-se
assentados nas diferenças existentes entre estes movimentos e aqueles formatados a partir
da compreensão clássica do marxismo. No entanto, darei aqui o enfoque explicativo ao
sentido singularmente atribuído a dinâmica social brasileira.
Segundo Paoli (1989), o conjunto dos trabalhadores veio ao longo das décadas
exigindo novas legislações, direitos ou a interferência do Estado frente ao não
cumprimento da lei. Este processo, teria mantido em suas lutas a legitimidade na
capacidade do Estado de regulamentar as diversas demandas da população. Valendo-se
disso, a democracia teria se desenvolvido através de um caráter ambíguo: apesar de ceder a
algumas pressões populares, não se permitia que a estrutura fosse alterada ao ponto de
levar a uma integração social. Dessa forma, a experiência dos sujeitos sob a democracia,
vigorava sempre no distanciamento entre o legalmente instituído e o socialmente vivido.
Nos Novos Movimentos Sociais, o que aparece em questão é o próprio questionamento da
capacidade de regulação exclusiva e, portanto, excludente, do Estado.
Partindo dos problemas sociais que enfrentavam em seus cotidianos, os diversos
2
Sobre a origem do termo “Novos Movimentos Sociais” e sobre os embates criados em torno deste, ver
Doimo, 1995 e Gohn, 1997.
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sujeitos, a partir de diversas percepções, passavam a se organizar a fim de discutir sobre os
problemas que enfrentavam e as formas de solucioná-los. Sem uma identidade coletiva pré
estabelecida, esses grupos só passam a criar um reconhecimento enquanto tal a partir da
própria construção interna do diálogo e da dinâmica que construíam ao longo do tempo.
Dessa forma, na organização de suas práticas e na defesa de seus interesses imediatos, se
constroem enquanto sujeito coletivo que, descentralizado, é fruto de uma
Pluralidade de sujeitos cujas identidades são resultado de suas interações em
processos de reconhecimento recíprocos e cujas composições são mutáveis e
intercambiáveis. (...) [Na qual] a racionalidade da situação não se encontra na
consciência de um ator privilegiado, mas é também resultado do encontro de várias
estratégias. (SADER, 1988, p. 55)
Configurando, a partir da situação ditatorial em que se encontrava o Estado, um
princípio por autonomia, esses movimentos procuravam-se manter independentes tanto dos
partidos quanto do Estado, partindo para a ação direta como forma de luta pelos recursos
ou mudanças pleiteadas. Sem pleitear a intervenção estatal através da noção de
necessidades 3 , reclamam por suas conquistas através da órbita do direito. Mais
precisamente, o “direito a conquistar o próprio direito à cidadania” (CHAUÍ apud PAOLI,
1989, p.43). Ou seja, o reconhecimento social de que se faz parte da sociedade e de que,
como tal, possui o direito de partilhar do “bem comum”. Buscavam no “reconhecimento
público do direito a ter direitos” (PAOLI, 1989, p.43), inserir a população excluída político
e socialmente das dimensões da construção efetiva do país.
Ao transcender a dimensão meramente institucional (ou seja, da representatividade
apenas a partir do voto) criam uma nova percepção sobre a noção de sujeito político,
ressignificando a ideia de direito, de democracia e da própria realização da política.
Colocados na ótica da sociedade, os direitos não dizem respeito apenas às garantias
inscritas na lei e nas instituições. Não se trata aqui, é preciso esclarecer, de negar a
importância da ordem legal e da armadura institucional garantidora da cidadania e
da democracia. A questão é outra. O que se está aqui propondo é pensar a questão
dos direitos em um outro registro. Pois, pelo ângulo da dinâmica societária, os
direitos dizem respeito, antes de mais nada, ao modo como as relações sociais se
estruturam. Seria possível dizer que, na medida em que são reconhecidos, os direitos
estabelecem uma forma de sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como
sujeito de interesses validos, valores pertinentes e demandas legítimas. (…) [Os
3
Para esclarecer a diferença colocada em questão sobre necessidade e direito, ver “Considerações sobre a
democracia e os obstáculos à sua concretização” de Marilena Chauí.
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direitos] constroem uma gramática civil que baliza práticas e interações sociais por
referência ao que é reconhecido como medida de justiça, medida que é sempre alvo
de questionamento e reformulações nos embates e litígios de posições e interesses,
valores e opiniões, mas que é sempre solidária com critérios, muitas vezes implícitos,
não redutíveis a prescrições legais, que fazem partilha entre o legítimo e o ilegítimo,
entre o permitido e o interdito, o obrigatório e o facultativo. Não seria demais
enfatizar que, se tudo isso passa pela normatividade legal e institucional da vida
social, depende sobretudo de uma cultura pública democrática que se abra ao
reconhecimento da legitimidade dos conflitos e da diversidade dos valores e
interesses demandados pelos direitos. (TELLES apud FELTRAN, 2005, p.26)
É fundamental que se compreenda a passagem da luta pela necessidade à luta por
direitos. Saindo da dimensão privada, esses movimentos retiram os problemas sociais (seja
a escassez, ou o reconhecimento) do problema individual e os colocam como um
questionamento da naturalização da ordem social estabelecida, questionando o que antes
era estabelecido enquanto justo e injusto no seio de “bem comum”4. Retiram os problemas
concebidos como de “ordem privada”, e os colocam como um questionamento de ordem
pública. É essa a importância aqui atribuída ao cotidiano, agora, compreendido como um
espaço de construção política.
Romper com o processo de simples apreensão dos direitos já formatados seria, aqui,
romper com o que Dagnino (1996; 2000) compreende por autoritarismo social. Ou seja,
romper com as naturalizações reproduzidas socialmente, reestabelecendo a noção de “bem
comum” através do questionamento da estrutura desigual preestabelecida e propagada
culturalmente. Nesse papel, partindo da pluralidade dos sujeitos e de suas opiniões, os
movimentos sociais se apresentariam aqui como a forma legítima de representação social.
Assim, a luta pelo reconhecimento dos Movimentos Sociais na interlocução com o Estado,
coloca mais do que a disputa por demandas imediatas. Coloca a possibilidade de
construção de uma democracia que reconhece enquanto legítima a existência de um poder
popular. (CHAVES, 2005)
Entretanto, para que se mantivesse a efetividade política dos movimentos – a
pluralidade, o diálogo, a não centralização e, o mais importante: seu caráter combativo –
era essencial que se mantivessem em uma postura autônoma frente ao Estado e aos
partidos políticos. Seria esse o caráter que permitiria manter a contestação sem que
retrocedessem a uma relação de tutela e clientelismo. Porém, qual o limite da aproximação
que comprometeria a autonomia do movimento?
4
Sobre essa reflexão, ver Rancière 1996.
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Entre a Constituição de 1988 e o desenvolvimento do Neoliberalismo
Segundo Rocha (2008), com o fim do período ditatorial e o reestabelecimento da
chamada ordem democrática, foi apresentada a Assembleia Constituinte uma proposta de
garantia de iniciativa popular. Com a aceitação do manifesto, foi adotado no Regimento
Interno da Assembleia Constituinte a adesão de emendas populares através das quais a
sociedade poderia participar da construção da nova Constituição Nacional. Segundo
Ulisses Guimarães, esse processo possibilitou que se transcendesse a participação através
das emendas, tendo diversos membros da sociedade civil atuando através de sua própria
presença.
(…) pois diariamente cerca de dez mil postulantes franquearam livremente, as onze
entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos
gabinetes, Comissões, galerias e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado
sopro de gente, de rua, de praça de favela, de fábrica, de trabalhadores, de estudantes,
de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e
autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. (GUIMARÃES apud ROCHA,
2008)
Introduzindo a Constituição diversos pontos colocados em causa pelos movimentos
sociais e representações plurais da sociedade civil, conquista-se avanços significativos a
órbita dos diretos sociais, e, principalmente da participação social. Ficando conhecida
como “Constituição Cidadã”, foram abertas através dela a institucionalização de canais
destinados a participação e controle das políticas públicas e gestão da máquina estatal5.
Como um mecanismo necessário a realização da cidadania, a Constituição de 88
passa a reconhecer o caráter participativo em esferas da gestão pública. Através do
fomento a ação participativa, a construção de conselhos em âmbito federal, estadual e
municipal passam a renovar parcelas das esferas políticas.
Lentamente concebido, diversas dessas novas “experiências participativas” foram
implementadas por governos municipais antes mesmo da sua aprovação constitucional.
Dentre elas, possuem destaque algumas prefeituras assumidas pelo Partido dos
5
Dentre elas, Rocha (2008) destaca a criação do Sistema único de Saúde; o reconhecimento da função
social da propriedade e da cidade, atribuindo um caráter participativo ao planejamento e gestão das
cidades; a elaboração do estatuto da criança e do adolescente e o reconhecimento da assistência social
como um direito.
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Trabalhadores (PT), partido o qual, segundo Caccia Bava (2005), durante a
redemocratização
(…) foi uma espécie de vocalização das demandas dos movimentos sociais, uma
espécie de intérprete na esfera política – nas Câmaras Municipais, nas Assembleias
Legislativas, no Congresso Nacional – do que são as demandas, as posições, as
proposições dos movimentos e deste campo político popular e democrática.
Dentre as políticas que valorizavam esse novo modo de participação social, têm-se
destaque tanto a implantação dos chamados Orçamentos Participativos 6 (OP), quanto o
incentivo de políticas autogestionárias7, como no caso da habitação.
No que diz respeito a gestão urbana, as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social)
já vinham sendo aplicadas por algumas prefeituras na década de 80. Entretanto, em 2001 se
consegue a promulgação de um importante mecanismo de controle das desigualdades
urbanas pelo Estado. O chamado Estatuto da Cidade 8 passa a exigir a configuração de
planos diretores que mapeiem como o espaço territorial poderá ser ocupado, designando as
áreas para a construção de escolas, moradias, indústrias, etc. Com a constituição de 1988, a
construção e planejamento das cidades precisam necessariamente responder a uma função
social, impedindo que seu desenvolvimento seja usado apenas para fomentar os interesses
privados. Tornando as ZEIS um mecanismo garantido pelo Estatuto da cidade, deve-se em
cada plano diretor, a partir dos problemas locais, designar zonas especiais que possibilitem
a construção de moradia digna, a legalização de favelas, e a proteção de áreas ambientais.
Obrigando o controle participativo, são previstos legalmente pelo Estatuto das Cidades a
construção, implementação e controle de planos diretores junto a população local.
Entretanto, de modo quase paralelo ao desenvolvimento e ampliação das diversas
instâncias voltadas a participação democrática, o Brasil imersa de modo efetivo em um
projeto nacional de desenvolvimento de neoliberal.
Aderindo aos princípios delimitados pelo Consenso de Washington para retirar os
países Latino Americanos da profunda crise, FHC expande a entrada de empresas
estrangeiras no país através da flexibilização da legislação e da garantia de lucros.
6
7
8
“O Eclipse da Sociedade Política nos Estudos sobre o Orçamento Participativo” de Wagner Romão e os
textos de Rizek e Bello em “A era da indeterminação”.
A importância da autogestão enquanto possibilidade de construção de novas sociabilidades, ver “A
economia socialista” de Paul Singer.
Ver http://www.senado.gov.br/senado/programas/estatutodacidade/perguntas.htm acessado em
28/05/2015. E ver Ferreira (2010)
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Realizando uma política orçamentária que prevê a configuração de um “Estado mínimo”,
passa a escoar parte significativa do orçamento público para o pagamento das dívidas
internas e externas do país. Com a redução dos recursos públicos, passam a privatizar
grande parte das empresas Estatais, entregando ao setor privado importantes delegações
que eram de responsabilidade do poder público. E aqui, no entanto, me parece possível
utilizar a reflexão de Oliveira sobre a configuração proposta por um “Estado mínimo”.
(…) o que é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas
para o capital: não se trata, como o discurso da direita pretende difundir, de reduzir o
Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalização da
alteridade se opõe a uma progressão do tipo “mal infinito” do capital 9. (OLIVEIRA,
1988)
Reduzindo a dimensão dos espaços estatais se reduzem também os espaços
reconhecidos como de âmbito público e, portanto, de controle social da população.
Trazendo a lógica privada, mercadológica, como a racionalidade fundante dos mais
importantes serviços públicos, rompe-se de modo prático com grande parte das conquistas
conseguidas pelos movimentos da década de 70 e 80 e, fundamentalmente, com a lógica
proposta pela “Constituição Cidadã”. Quando, em 70 e 80 se consegue a passagem da
questão da necessidade para a questão do direito, cria-se um conflito capaz de retirar os
problemas sofridos socialmente da órbita particular dos indivíduos, os recolocando em
discussão como um problema do “bem comum”. É nessa chave que a Constituição de 1988
vigora, reconhecendo a população como um interlocutor legítimo e fazendo dos problemas
sofridos no cotidiano um problema da órbita do “bem comum”.
Com o neoliberalismo, se realiza o caminho contrário. Entregando os espaços
públicos a lógica dos interesses privados, rompe-se com a compreensão do “bem comum”,
recolocando os problemas sociais na espera individual.
A fim de suprir os serviços fundamentais já não mais fornecidos pelo Estado e
restringidos pelo mercado a aqueles que possuem poder de aquisição, surge um novo ator
no cenário político da época, as ONGS (Organizações Não Governamentais). Apesar de já
existirem anteriormente, as ONGS ganham um amplo espaço no cenário da supressão das
necessidades imediatas, sejam essas voltadas para as populações empobrecidas ou, até
9
Em diversos de seus textos Oliveira deixa isso claro ao mostrar a importância da intervenção ou
flexibilização do Estado para a manutenção de lucratividade do capital privado. Dentre elas, por exemplo,
insere-se de modo explícito o caso da privatização das estatais. Sobre isso, ver Oliveira 1999 e 2007.
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9
mesmo, para a discussão de questões identitárias. Na chave da “responsabilidade social”,
grandes empresários passam a investir na manutenção de produção de ONGS. Reduzindo
seus gastos ficais junto ao poder público e ganhando maior visibilidade no mercado
competitivo, grande parte das ONGS passaram a ser uma via de mão dupla, auxiliando na
manutenção de condições de existência a medida que se mostravam lucrativas para seus
investidores.
Nesse cenário, têm-se, na década de 90 um abrupto crescimento das Organizações
Não Governamentais e uma profunda desmobilização dos Movimentos Sociais. A
justificativa para esse fato aparecem na bibliografia de modos diversos. Ao que parece, a
crise financeira que atingiu principalmente a população empobrecida junto as novas
mudanças causas pela imersão do neoliberalismo parecem ter delineado parte de seu
enfraquecimento.
O surgimento dos Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
Estabelecendo-se como um movimento classista, o MTST tem como preocupação
central a organização da classe trabalhadora urbana. Porém, para tal tarefa, o movimento se
recai diretamente sob as novas problemáticas trazidas pela transformação nas questões do
trabalho a partir a partir de 1990.
Com o processo de reestruturação produtiva e de desindustrialização, reconfigurase o quadro produtivo no Brasil, demitindo uma parte significativa dos trabalhadores
industriais. Estes, enfrentando grandes dificuldades de reingressarem no mercado formal
de trabalho, passam a sobreviver através de vínculos empregatícios temporários e/ou
através de trabalhos informais. Rompendo com uma estrutura mínima de estabilidade, o
trabalhador informal e/ou temporário ficam submetidos a uma situação economia e social
ainda mais vulnerável do que a que já possuíam antes.10
Estruturalmente essencial à nova dinâmica capitalista de produção, esse montante
de trabalhadores fora dos sistemas formais de trabalho, não se apresenta mais como uma
crise temporária do sistema capitalista, mas como uma forma intrínseca a sua estrutura 11.
10 Sobre o tema, Goulart (2011) irá se referir diretamente sobre o MTST. Porém, será em Paul Singer (1981)
que buscará suas bases explicativas, fundamentando o processo de reestruturação produtiva de modo
específico ao quadro econômico e social do Brasil.
11 Harvey, 1996; Singer, 1981; Oliveira,2000
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Este processo, criando uma diferença na posição ocupada pelo trabalhador na estrutura
produtiva e em suas condições de trabalho e de vulnerabilidade, causa, segundo o MTST,
um fracionamento na construção da luta da classe trabalhadora (GOULART, 2011).
Distanciados das organizações sindicais voltadas aos trabalhadores formais e
possuindo vínculos empregatícios instáveis, grande parte dos trabalhadores informais ou
temporários terão grande dificuldade de se organizar a partir de seus locais de trabalho.
Compreendendo a necessidade de não ignorar as transformações ocorridas na classe
trabalhadora, o MTST absorve esse contexto a seu projeto político visando, a partir do
movimento popular, engendrar uma resposta a essa reconfiguração de classe12. (BOULOS,
2012).
Não se reconhecendo como um movimento de moradia, o MTST irá se valer desta
como um modo de organizar a luta da classe trabalhadora. Propondo uma forma de
organização congregada, aglutinam o segmento de classe à relação que possuem com o
território. Segundo Boulos (2014) essa proposição não se faz, por si só, uma proposta nova
entre os movimentos de moradia. Sob um esforço planejado, contínuo e consciente, o
movimento se utilizará de sua estratégia territorial de luta, no entanto, para colocar em
prática o caráter central do movimento: sua proposição anticapitalista. Nas palavras do
autor/coordenador:
Se o movimento não tem condições de parar a produção de mercadorias, já demonstrou
ter condições de parar a circulação (...). Da mesma forma, se não lutam diretamente
contra os patrões, têm grande potencial de luta contra o Estado capitalista. (...) Ou seja,
obstruindo-se a circulação da unidade de produção ao mercado de consumo, obstrui-se o
processo de reprodução do capital. Além disso, [n]a luta por direitos básicos dirigida
contra o Estado, (...) se o capitalismo não se mostra capaz de resolver o problema
crônico da falta de moradia, a luta por essa demanda – quando levada às últimas
consequências – ganham um sentido de enfrentamento do capital. (...) Portanto, o
afastamento da relação direta entre capital e trabalho não inviabiliza uma estratégia
anticapitalista constituída a partir da intervenção territorial. (BOULOS, 2014, p. 92)
Conjugada intrinsecamente com a dinâmica de acumulação de capital, a moradia se
mostra sob um caráter mercadológico, definindo o direito a sua posse através da
12 Considerando que o operariado industrial já não representa mais o “sujeito revolucionário” apontado por
Marx, o movimento não se proporá, no entanto, a substituir a figura deste pela a dos trabalhadores
informais e temporários. O que por eles se coloca, é a necessidade de reconfigurar as estratégias de luta a
fim de abarcar ambas frações da classe trabalhadora, recompondo, assim, a potencialidade de luta da
classe como “um todo”.
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possibilidade de seu pagamento.13 Fazendo da cidade um meio em si de acumulação de
capital, conjugam-se os altos índices de exploração do trabalho com um processo crescente
de segregação socioespacial, reduzindo o salário do trabalhador e expulsando-o para as
franjas urbanas da cidade. (KOWARICK, 2000)
Defrontando a precarização da vida do trabalhador com a acumulação de capital, o
MTST faz da periferia seu lócus de ação e da moradia um meio de organizar a luta da
classe trabalhadora.
É nesse contexto que se insere a base social do MTST. Trata-se de um segmento de
classe mais vulnerável às oscilações do mercado de trabalho. Em geral, são
trabalhadores com menor qualificação formal, renda familiar menor que três salários
mínimos e exercendo relações de trabalho temporárias, informais (...). É o segmento que
há anos a sociologia vem tentando definir, a partir de diferentes conceitos:
“subproletariado”, “pobretariado”, “excluídos”, dentre outros. (BOULOS, 2014, p.84)
A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal e a busca pela
“política”.
Com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao Governo Federal, parte
considerável da sociedade brasileira passou a admitir uma nova possibilidade de mudança
que retomasse o desenvolvimento a partir do mercado interno e, fundamentalmente, da
base social. Isso porque, como já citado acima por Caccia Bava, o PT 14 foi, tanto na
elaboração da “Constituição Cidadã” quanto na elaboração dos governos municipais, um
partido de forte representatividade dos interesses populares. Obviamente, sua história
transcende em muito esses seus feitos, mas, particularmente na gestão pública, também
vinha se mostrando engajado ao projeto de participação popular.
E, de fato, seus feitos não foram poucos ao assumir a presidência da república.
Instaura-se o Ministério das Cidades a fim de romper com a gestão fracionada do território;
criam importantes conselhos e fóruns a fim de problematizar a situação social no país;
formam-se os programas sociais e agregam diversos membros antes combativos na
13 O tema da mercantilização da habitação foi amplamente abordado por diversos teóricos referidos a
diversos tempos históricos no Brasil. Sobre tal problematização, ver Maricato (2013); Rolnik (2000);
Kpwarick (2000); Klintowits (2011); Ferreira (2010); Rodrigues (2011).
14 Sobre a mudança ocorrida no Partido dos Trabalhadores e, particularmente, na CUT, ver “O sindicalismo
e a questão democrática na história recente do Brasil: o que se pode esperar?” de Véras de Oliveira.
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sociedade civil a gestão pública. Entretanto, como já se apontava na “Carta ao povo
brasileiro 15 ”, o Partido dos Trabalhadores mantem em grande parte o compromisso
neoliberal assumido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Isso, tanto na
governança de Lula quanto de Dilma – salvo o conjunto de diferenças que desembocaram
ao longo de seus mandatos. E a permanência não demorou a ser notada, já em um
congresso em 2004, na procura por avaliar a participação no governo petista, Caccia Bava
coloca:
A primeira questão é que, independente de toda a trajetória de lutas sociais,
organização sindical, organização dos movimentos sociais, de toda experiência de
combate dos 30 anos da história mais recente do país, contraditoriamente, este
governo está capturado pela lógica do pensamento único. Por que digo isso? Porque
a política praticada por esse governo, no sentido de “P” maiúsculo, quer dizer,
olhando para a macroeconomia, para as estratégias, é uma política de
aprofundamento da estratégia anterior neoliberal, com todas as repercussões que
conhecemos. Isso define um cenário. O ciclo de financeirização dessa política, o
compromisso de pagamento do serviço da dívida, o compromisso com a
rentabilidade do setor financeiro, estão sendo as âncoras de organização das políticas
federais, e elas geram conseqüências. (CACCIA BAVA, 2005, P.33)
Rompendo com as expectativas de mudança na estrutura social, o PT veio em
âmbito federal diminuindo a qualidade deliberativa da participação popular e mantendo
através dos programas populares o fomento a lucratividade das empresas privadas,
recusando em grande medida sua qualidade de regulador social.
E então, voltamos a reflexão de Caccia Bava. Como operamos neste cenário e que
conseqüências trouxe este novo governo (...)?(2005, p.34) Este parece o ponto em que se
localiza grande parte do pensamento social, ainda hoje. Em suas diversas abordagens, tanto
os teóricos quanto a própria base social trouxeram importantes análises a partir de uma
leitura ampla ou fracionada sobre as mudanças e permanências nas estruturas sociais e
políticas do país. Ao que se refere especificamente a análise sobre os movimentos sociais,
algumas características aparecem sobressaltadas, quais sejam: a entrada de lideranças
populares para a gestão do governamental e, a partir disso, o questionamento sobre a
posição atual dos movimentos sociais.
Um contraponto social ao consenso lulista?
15 http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml acessado em 30/05/ 2015
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A fim de esclarecer o posicionamento que o MTST propõe frente ao quadro social
de hoje e, mais especificamente, seu posicionamento frente ao Governo Federal, Boulos
(2014) afirma que a base social a que incidem faz parte do que André Singer (2012) chama
de consenso lulista 16 , no qual o subproletariado teria se aproximado do Partido dos
Trabalhadores a partir de um realinhamento eleitoral pós 2006. No entanto, declara que se
opondo a isso, o MTST se apresentará como um “contraponto popular ao consenso lulista”.
Partindo da questão da moradia, Boulos destaca com frequência em suas entrevistas
o questionamento feito a governabilidade petista no âmbito federal. Admitindo que o
Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) 17 efetiva-se como o maior programa
popular de moradia já feito no Brasil, o coordenador nacional do MTST destacará, no
entanto, que o programa seria tão eficiente quanto “enxugar gelo”.
Criado em 2009 como medida de fomento ao mercado imobiliário – abalado pela
crise de 2008 ocorrida nos EUA –, o PMCMV será fruto de uma política combinada do
Estado. Realizando um papel de facilitador18, o Estado injeta dinheiro, de um lado, nas
empreiteiras que privilegiam a construção de casas de padrão popular e, de outro, oferece
subsídio aos compradores das moradias a partir da renda familiar do comprador. O
programa possui dois grandes avanços para a classe popular e para movimentos sociais:
primeiro, uma porcentagem, ainda que pequena, destinada aos compradores que possuem
de 0 a 3 salários mínimos, com maior valor dos subsídios e com parcelas mensais
reduzidas; em segundo, o “setor” denominado entidades, possui uma reserva financeira
destinada a famílias cooperadas, ONG’s e movimentos sociais.
16 O que André Singer (2012) pontua como “consenso lulista” parte de dois deslocamentos centrais. O
distanciamento que a classe média realiza enquanto eleitorado do Partido dos Trabalhadores a partir do
“escândalo do mensalão”, e a aproximação do chamado “subproletariado” a partir da política petista de
diminuição da miséria. Para o autor, esse eleitorado encontra-se fortemente concentrado na região
nordeste, a região que possui maior porcentagem de subproletariados e de população em situação de
miséria. Apontando essa “fração” de classe a partir de um certo conservadorismo, defende que tal
deslocamento eleitoral só foi possível porque o PT não apresenta uma pauta de transformação radical da
sociedade. Administrando a relação entre classes, o PT teria deslocado sua discussão política da questão
do trabalhador para a questão da pobreza.
17 O PMCMV colocado aqui em destaque foi apenas uma das políticas habitacionais realizadas em âmbito
federal realizada na governabilidade do PT. Entre tantas outras, também existem duras críticas e também
consideráveis avanços. Infelizmente, por escassez de espaço não será possível abordar essa temática.
Porém, como problematização geral sobre o tema, ver: Rodrigues (2011); Bonduki (2009)
18 A discussão sobre a mudança do papel de provedor do Estado (no qual o Estado era o responsável por
prover a habitação) para seu papel de facilitador (no qual o Estado apenas torna-se um meio de relação
entre o produto oferecido no mercado e seu comprador, dando mais segurança a promoção de negócios)
pauta uma discussão muito mais ampla que propriamente a crítica ao governo petista. Sendo, em grande
medida, sustentada na problematização do papel do Estado a partir da flexibilização do capital. Ver:
Klintowits (2011); Ferreira (2010)
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Proporcionalmente, os estudos mostram que os investimentos destinados a esses
dois setores são muito diminutos quando comparados a quantidade de investimento
injetado no mercado imobiliário pelo Estado. A partir disso, Boulos destaca que para além
do fomento da economia, o programa possui o objetivo de atender parcialmente as
demandas de moradia, acarretando uma diminuição das mobilizações populares que rogam
por essas.
Aqui, destacam-se dois fatores essenciais para a análise do projeto. Primeiro, o fato
da fragilidade das regulamentações do PMCMV possibilitar um crescimento da
especulação imobiliária19. Assim, ao mesmo tempo em que produz novas moradias, produz
também novos sem tetos que não conseguem pagar seus aluguéis. Segundo, que o MTST,
em vez de enfraquecer suas mobilizações no período de criação e efetivação do programa,
passa por um alto índice de crescimento de sua base social, nacionalizando-se no período.
Esse contínuo processo de valorização fez com que entre 2008 e 2013 o preço
médio dos imóveis aumentasse 195,2%, praticamente triplicando. No mesmo período, o
aluguel sofre uma variação de 95,1%, quase que duplicando 20 . Segundo Boulos, esse
processo, atingindo diretamente as populações periféricas, fez com que a partir de julho de
2013 surgisse uma série de novas ocupações, levando a um amplo aumento na luta dos
movimentos por moradia. Mas [um] espírito de porco pode perguntar ainda: Se este
problema existe há vários anos, por que as ocupações só explodiram agora, a partir da
metade de 2013? (BOULOS, 2014)
Em julho de 2013 o Brasil viveu uma das maiores mobilizações de sua história. (...) As
tarifas baixaram pelo país a fora. Seria ingenuidade acreditar que este acontecimento
não deixaria lições e consequências na consciência popular. Embora a maior parte dos
trabalhadores das periferias não tenham ido às ruas em julho (...) não deixaram, por
outro lado, de receber o impacto destas mobilizações. O recado de junho foi claro: se o
povo for às ruas em massa e de forma organizada pode obter conquistas. Afinal, a
19 Tal processo se explica pelo fato do programa proporcionar um alto fomento no mercado imobiliário sem,
entretanto, colocar regulamentações que restrinjam suas condições de expansão. Dessa forma, as frações
mais populares do programa são sempre realizadas em áreas periféricas, diminuindo o custo do terreno
para a construtora. Outro fator de grande crítica do MTST ao programa, refere-se a qualidade das
moradias. Produzindo sob a metragem mínima que o programa permite, as moradias passam por uma
supervalorização incompatível com a metragem e qualidade do apartamento. Com o MCMV entidades, o
próprio movimento é responsável por realizar o projeto de moradia, administrando o dinheiro
empreendido. Pela ausência do lucro envolvido na produção, conseguem produzir moradias mais amplas,
chegando a ter creches, unidades básicas de saúde e espaços para reuniões para além dos espaços de lazer.
Em decorrência de uma série de mobilizações realizadas com essa temática, o movimento conseguiu
inserir algumas de suas críticas na reformulação do programa. (BOULOS, 2014)
20 Boulos (2014) retira esses dados do índice Fipe/Zap do mercado imobiliário.
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tarifa baixou. As mobilizações populares, que estavam desacreditadas no Brasil,
voltaram para a ordem do dia. (BOULOS, 2014)
Segundo Boulos (2013), esse abrupto aumento das lutas se deram na sociedade
como um todo, impulsionadas pelas Jornadas de Junho que explicitaram a força que a ação
popular possui. Sendo o MTST parte desse processo combativo, o crescimento específico à
sua base, surge como um resultado da força política que o movimento ganha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esboçando o quadro analítico pós anos 90, Feltran (2003) destaca que as análises
desembocam predominantemente em duas leituras, que, por sua vez, se complementam.
Uma, que denomina enquanto “construção” e outra enquanto “desmanche”. Ambas as
análises partem dos pressupostos aqui delimitados: os avanços sociais trazidos pelos
movimentos sociais da década de 70 e 80, destacando a ressignificação do direito, da
democracia e a ampliação do espaço público; os avanços trazidos pela Constituição de
1988 no que se refere a instauração de espaços participativos; e das amplas
problematizações e retrocessos que o neoliberalismo recoloca para os avanços de um
Estado verdadeiramente democrático. Entretanto, a diferença central entre as leituras se
refere ao que me parece a mesma indagação destaca acima por Caccia Bava. Ou seja, no
questionamento sobre quais as consequências das transformações e imbricações desses
processos.
Colocando diretamente em questão a dimensão do “espaço público”, reconhecido
enquanto público, se tem na primeira “corrente” um enfoque sobre as possibilidades de
construção ainda existentes – mesmo com a guinada do neoliberalismo. E, na segunda, a
compreensão de que tal correlação de forças trouxe o desmanche do espaço público
anteriormente conquistado, sendo estes ocupados pela lógica privada do mercado e pelo
recolhimento dos sujeitos sociais a perspectivas individualistas.
Ainda sobre a chave das possibilidades, me parece, ainda, surgir uma nova
“corrente” que com o mesmo intuito se reclina sobre o cenário atual rediscutindo,
entretanto, os princípios admitidos pelas outras leituras, como, por exemplo, a questão da
autonomia, do conflito, da representação e, por fim, a própria ideia de democracia e
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política. Participando de um quadro de questionamentos amplos e diferenciados, destacarei
aqui apenas superficialmente alguns autores e ideias.
Possuindo uma importante crítica a forma como as análises sobre movimentos
sociais vem se desenvolvimento atualmente, Marcelo Kunrath Silva (2010; 2011) chama
atenção para dois apontamentos principais: primeiro, a crítica ao caráter normativo, em que
se analisa o movimento social a partir do papel que ele supostamente deveria ter na
sociedade e não, propriamente, sobre a forma como se realiza; e, em segundo, a crítica a
oposição rigorosa criada entre movimentos sociais e Estado – a qual, parte para o autor, de
uma compreensão errônea da “autonomia” colocada em questão pelos movimentos sociais
da década de 70 e 80, descolando seus princípios da realidade ditatorial sobre a qual
viviam.
Diante disso, o autor irá propor a análise dessa relação como um continnum, a partir
do qual movimentos e Estado se relacionam através de relações mais ou menos conflitivas.
A partir de tal análise, o autor passa a compreender que a relação de aproximação ou
afastamento entre movimento e Estado não determina, per si, nenhuma forma de ação ou
pertencimento ou não a um caráter combativo.
Tatagiba (2014), Rebeca Abers e Marisa Von Bülow (2011), parecem trazer
algumas proximidades ao pensamento de Silva. Tatagiba, especificamente, conceberá a
formação do Estado atual sobre uma ótica “pluralista”, admitindo que a entrada de
diferentes atores social para a gestão do Estado traz o conflito para o espaço de elaboração
da própria gestão. Abers e Büllow, por sua vez, tentam também romper com a oposição
colocada entre movimentos sociais e Estado a fim de admitir uma importante dimensão
propositiva na relação entre eles – seja esta estabelecida ou não através do conflito.
Eugenia Carlos (2011), também reconhecendo a relação estabelecida entre eles,
enfatiza a importância de acompanhar as mudanças no padrão de ação e comportamento de
dentro dos movimentos frente a relação estabelecida com o Estado.
Realizando uma contraposição explicita as análises denominadas por “construção”
e “desmanche”, as leituras acima já não colocam mais em questão a concepção de um
“espaço público” como anteriormente concebido.
Assim como Dagnino (2000) defende existir uma clara disputa de significado entre
as percepções sobre direito, política e democracia entre a luta dos movimentos sociais e o
sistema neoliberal; me parece, que o mesmo passa a acontecer agora a partir das próprias
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interpretações intelectuais, em que se buscam novos significados e apreensões da realidade.
No entanto, considerado que em sua maioria, apesar dos enormes esforços
analíticos dos autores em analisar situações e espaços particulares na nova “organização
participativa”, os esforços analíticos realizados perdem uma importante dimensão da
análise social. Qual seja, os seus próprios atores.
Buscando transcender a luta por moradia, o MTST possui estratégias de luta
direcionadas a efetivação de um movimento capaz de organizar a classe trabalhadora em
uma ação anticapitalista. A partir disso, suas ocupações e mobilizações são sempre
organizadas da mesma forma, unindo-se aos movimentos locais sempre a partir de um
objetivo específico que estrutura o movimento. Como passado brevemente acima, antes de
realizar a ocupação em um bairro, o movimento, além de estudar muito bem o terreno e de
se aproximar das lideranças comunitárias do local, também realizam reuniões com a
população interessada explicando toda a lógica e as regras organizativas do movimento.
Essa aparência duramente estruturada, no entanto, adquire no cotidiano da luta um
contingente de relações que tornam a construção do movimento ainda mais complexa. É
essencial que se saiba a que se propõe o movimento e as órbitas de luta a que este se
encontra inserido. Porém, também é de fundamental importância saber que o movimento
aparentemente unívoco, que age como um corpo congruente e autônomo, possui também
as dimensões internas de sua construção.
Porque, afinal, argumento isso. Partindo da análise do MTST, pude evidenciar uma
grande preocupação externa ao movimento quanto a sua aproximação ou distanciamento
do Estado. No entanto, acompanhando uma de suas ocupações – denominada Chico
Mendes – pude perceber que pouco das questões que tangiam a relação do Movimento com
o Estado adentrava a órbita de luta interna da ocupação.
No que se refere ao grupo de acampados, ou seja, a base social, isso parece ocorrer
de modo mais claro em apenas três momentos: primeiro, quando a relação entre o
movimento e o Estado diz respeito a negociação da própria ocupação da qual fazem parte;
e em segundo, a partir dos atos que são convocados a participar; e em terceiro, da imagem
do movimento que acaba por se refletir neles enquanto acampados.
Apenas isso já seria capaz de trazer o desdobramento de diversas questões sobre a
própria dinâmica do movimento e, principalmente, sobre o sentido que os acampados
atribuem a luta e ao próprio movimento.
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Assim sendo, vale questionar. Quando a bibliografia coloca em questão a relação
entre os movimentos sociais e o Estado, ao que se refere? O que pressupõe que ocorre
dentro dos movimentos quando se faz tal indagação?
A isso que me refiro como sendo uma análise homogeneizadora dos movimentos
sociais. Não quero com isso dizer que tais análises não são válidas. Mas, o que procuro
ressaltar é que da forma como são feitas perdem de vista uma dimensão importante.
Pautada nesse questionamento, indago-me se nessa problematização em específico,
existiriam tantas diferenças nas análises sobre os movimentos. Seja para dizer que o espaço
público encontra-se desmanchado, seja para afirmar que não ou para colocar os
movimentos sociais sobre novas bases de análise. É necessário que nos voltemos para
dentro dos movimentos sociais – e ai sim coloco em destaque a análise de Kunrath Sila –
de modo não normativo para que se possa compreender a experiência de luta dos sujeitos
mobilizados. Como a relação com o Estado, como o conflito ou a ausência deste, são
percebidos pelos sujeitos que participam do movimento e como isso pode ou não levar a
transformações nas relações sociais.
Particularmente o MTST, sendo um movimento nacional, possuindo constantes
multiplicações de ocupações e milhares de famílias em luta, é um exemplo claro disso. A
forma esses conflitos influenciam as ocupações, me parece, esta diretamente imbricada a
forma particular como se decorre a ocupação. É possível prever certos âmbitos, mas não
todos. E dentre estes, a compreensão do que acontece em sua base social.
Seja no âmbito de debate teórico ou em relação as preocupações do próprio
movimento. É necessário uma análise interna que parta da experiência de seus sujeitos para
que se possa aprofundar a análise sobre os conflitos sociais hoje.
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1
A AÇÃO POLÍTICA EM AMBIENTES URBANOS MEDIADOS: A
EXPERIÊNCIA PAULISTANA EM JUNHO DE 2013
Juliana Laet – Unesp1
[email protected]
CAPES
GT 3: Conflitos Sociais, Instituições e Política
RESUMO
Neste texto será feita uma análise voltada para a exploração de formas emergentes de
contestação ligadas aos novos meios de comunicação que se expressaram nos protestos de
junho de 2013 ocorridos na cidade de São Paulo. Busca-se, com a contribuição de pessoas
que participaram dos protestos, contar uma parte desta história a partir das vivências que
compartilharam com a pesquisadora e da experiência da autora como manifestante e
pesquisadora nos protestos. Busca-se, assim, discutir a ação no ambiente urbano mediado e
sobre a constituição de espaços públicos de ação mediados. Este artigo explora,
principalmente, o fator tecnológico que motivou a grande adesão da população paulistana
aos atos, procurando investigar os efeitos e os papeis das mídias sociais e sua apropriação
nos protestos de junho de 2013 em São Paulo.
Muito se pode dizer sobre Junho de 2013, o mês em que brasileiros e brasileiras
sacudiram diversas cidades dentro e fora do país. Neste texto será feita uma análise voltada
para a exploração de formas emergentes de contestação ligadas aos novos meios de
comunicação que se expressaram em junho. É importante ressaltar que dizer que existem
formas de contestação que emergem não significa dizer que elas são completamente
diferentes de tudo que vimos até então. Junho está inserido em um contexto histórico de
lutas sociais brasileiras que, por ser este um artigo, não haverá espaço para ser explorado
com detalhes.
É importante que as histórias de Junho sejam contadas e ninguém melhor para fazêlo do que quem participou, de alguma forma, desta recente mobilização social. Considero
que não haja uma História, mas as histórias são múltiplas, são constituídas por quem age e
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Juliana Laet é mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais pela
Unesp, campus de Marília com mestrado a ser concluído em fevereiro de 2016. Possui graduação em
Relações Internacionais.
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são contadas como narrativas de vida que se erguem a partir de inúmeras teias de relações
humanas (ARENDT, 2011). As pessoas fizeram e viveram Junho estando juntas e agindo.
Neste trabalho busco, com a contribuição delas, contar uma parte desta história a partir das
vivências que compartilharam comigo e da minha própria experiência como manifestante e
pesquisadora nos protestos de junho de 2013 em São Paulo. A partir disto, pretendo
discorrer sobre a ação num ambiente urbano mediado e sobre a constituição de espaços
públicos de ação mediados.
As histórias contadas aqui são resultado de entrevistas realizadas com participantes
dos protestos de junho para minha pesquisa de mestrado a ser concluída em 2016 e
também de um questionário publicado durante os protestos em minha própria página do
Facebook, em páginas de dois dos “Grandes Atos Contra o Aumento da Passagem”
organizados pelo MPL e em um grupo de discussão de que eu fazia parte e que discutia os
protestos à época. As entrevistas foram feitas a partir do questionário, isto é, contatei
novamente as pessoas que haviam respondido o questionário para entrevistá-las2 e também
a partir de contatos que fiz nas ruas durante as manifestações. E cada uma dessas pessoas
me indicou outra pessoa com quem eu poderia conversar. Apesar da alta contribuição com
o questionário (tive 52 respondentes), este processo de entrevistas me rendeu apenas 19
contribuições, mas extremamente ricas no sentido de seu conteúdo. Como o espaço é
pequeno, não poderei explorar a fundo estas contribuições, mas apenas destacar algumas
delas.
Creio que quase todas as pessoas que viviam em São Paulo naquele mês sabiam dos
protestos que ocorriam na cidade e acabaram formulando uma opinião favorável a respeito.
Uma pesquisa do Datafolha (2013a) demonstra que 94% dos entrevistados no dia 13 de
junho de 2013 tomaram conhecimento dos protestos contra o aumento da tarifa do
transporte coletivo. E 55% afirmaram ser a favor dos protestos. No protesto do dia 18 de
junho, 77% dos entrevistados estavam a favor da pauta de reivindicação das manifestações
(DATAFOLHA, 2013b). Não tenho dados do início das manifestações, mas o crescimento
do apoio foi visível e se deveu a diversos fatores. Este artigo explora, principalmente, o
fator tecnológico, procurando investigar os efeitos e os papeis das mídias sociais e sua
apropriação nos protestos de junho de 2013 em São Paulo.
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Esta técnica de amostragem é chamada de bola de neve (HECKATORN, 2011).
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A vida urbana é tecnológica. Isso significa que nós, habitantes de uma megalópole
como São Paulo, navegamos através de formas tecnológicas de vida social e cultural
(LASH, 2002). A sociabilidade existe através da máquina não somente como mediadora as
relações, mas como constitutiva de nossa sociabilidade e de nossa vida cultural
(CARPIGNANO, 1999). Os meios são formas materiais pelas quais percebemos,
pensamos e definimos a realidade. Sustento aqui que as tecnologias não são somente
instrumentos que utilizamos, mas são elementos que moldam nosso próprio modo de
pensar. Dessa forma, as mudanças na natureza dos meios transformam a própria natureza
da comunicação e as maneiras pelas quais interagimos e interpretamos as mensagens
recebidas bem como nossa experiência em relação a essas tecnologias (CARPIGNANO,
1999) e, conseqüentemente, em relação à cidade e em relação a formas de ação.
Quando falamos de junho, podemos dizer que nossas formas de vida tecnológicas
se expressam na ação política que ocorre no ambiente urbano mediado e a ação, portanto,
dá-se a partir da nossa experiência com os novos meios de comunicação. A ação para
Arendt (2011) carrega um sentido de publicização do agente por meio do discurso. Isto é,
existir em público é agir e discursar estando com outras pessoas. Agir, para ela, é iniciar
algo, começar uma nova história. A ação acontece com o falar, com a narrativa em uma
condição de pluralidade, isto é, quando o indivíduo se relaciona com outros no espaço
público. Logo, estar junto potencialmente gera ação e discurso. Os protestos em Junho são
interpretados dessa maneira, como a ação que ocorre no espaço público por meio da qual
os agentes constroem sua própria história.
O espaço público é outro ponto importante na obra de Arendt e para este texto. A
ação e o discurso necessariamente ocorrem no espaço público, um espaço de aparência,
onde os agentes se revelam e se desvelam. Tal espaço, porém, não existe sem que as
pessoas estejam agindo e discursando, mas ele pode ser formado sempre que elas se
reúnem. Onde quer que estejam os agentes eles “são passíveis [...] de constituir mundo
público” (SILVA e SILVA, 2011, p. 8). Assim, o espaço físico em que as pessoas se
reúnem por si só não são espaços públicos para ação, mas as pessoas, ao estarem agindo
em concerto, constituem e formam o espaço público.
Para Arendt (2011, p. 248), a polis, isto é, a cidade tem um papel importante na
ação. A cidade-estado “é a organização das pessoas tal como ela resulta do agir e falar em
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conjunto”. Suas estruturas físicas, erguidas por conta da ação, tornam-se a condição
material mais importante para que a ação tenha possibilidade de ocorrer pois mantém as
pessoas unidas o que, potencialmente, gerará a ação. A cidade tem esse duplo aspecto: de
suporte material para a ação e de local criado pela ação mesma. Ao pensarmos em junho de
2013, que espaços são estes que se erguem como locais de ação? Como se caracterizam?
Na esfera pública o debate político surge sempre que um público se dispõe a
discutir as normas sociais e políticas que incidem sobre si (HABERMAS, 2003). Tanto o
espaço público de Arendt quanto a esfera pública para Habermas são locais fluidos
formados a partir de uma relação dialógica entre as pessoas. Para Habermas essa esfera
pública é local em que aqueles atingidos por normas sociais e decisões políticas coletivas
podem ter voz ativa em sua formulação, estipulação e adoção (BENHABIB, 1992). Os
conceitos de ambos os autores como expostos até aqui são ferramentas úteis para
pensarmos as manifestações de junho como a formação de uma esfera pública em que
aqueles atingidos pelas normas impostas pelos governantes se colocam a fim de
contestarem tais normas e tentar modificá-las de acordo com seus interesses.
Habermas (2003) dá destaque à mediação na esfera pública. Antes da esfera pública
tomar uma configuração política, ela tem uma conformação literária onde o público
burguês letrado discute sobre si mesmo num “processo de autocompreensão das pessoas
privadas em relação às genuínas experiências da sua nova privacidade” (HABERMAS,
2003, p. 44) a partir da literatura e também de outras artes transformando sua crítica em
uma crítica política.
A cidade, além de centro econômico, torna-se o “centro vital da sociedade
burguesa” (HABERMAS, 2003, p. 45) modificando a esfera pública, anteriormente, ligada
à corte e ao poder público. As instituições que sustentam essa emergente esfera pública são
tipicamente urbanas. O público aos poucos vai criando suas próprias instituições e se
mantém reunido através da imprensa em clubes de livros, livrarias públicas, círculos de
leitura onde lêem literatura e jornais periódicos que falam sobre a vida da própria
burguesia. Os jornais impressos e periódicos serão os principais meios utilizados por esse
público para produzir uma crítica política direcionada ao poder público.
A mediação, assim, é importante para que o público seja capaz de criar condições
de formular um discurso racional sobre si mesmo e é o elemento que mantém o público
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reunido para que possa deliberar, isto é, aparece como mediadora das relações que se
estabelecem entre os membros que formam o público. Diante disso, é possível pensarmos o
meio, a mediação não somente como a fonte de informações para que o público possa se
informar sobre si mesmo. Ela é a motivação para o estar junto e, mais do que isso, é o meio
material pelo qual este público pode se manter junto mesmo que não esteja presente num
mesmo espaço. O público de que fala Habermas lê as mesmas coisas, tem as mesmas
informações e seus membros têm vivências semelhantes, dessa forma, compartilha um
conhecimento comum, experiências comuns.
Em análises recentes de Scott McQuire (2008) e Massimo di Felice (2009) sobre a
presença ubíqua dos meios de comunicação e informação na metrópole expõem novas
formas de vivenciar e habitar este espaço urbano mediado. Temos reconstituído este
espaço através de uma experiência subjetiva com ele. Diante disso, perguntamos então
como se dá o diálogo político entre os públicos nos novos meios? Para nós que vivemos
num território urbano altamente mediado, de que maneira o público ou os públicos
presentes na cidade têm conseguido estabelecer e criar espaços públicos diversos a partir
da sua experiência digital? Qual a importância dos novos meios neste processo hoje?
Nosso modo de vida tecnológico (LASH, 2002) se expressa de maneira evidente
nas cidades, local de habitação da maioria da população mundial nesta segunda década do
século XXI (UNITED NATIONS, 2014). A presença da tecnologia é, na verdade, algo
intrínseco ao urbano. Lewis Mumford (1961) discorre sobre a cidade em diversos
momentos da história européia em que é possível observar que a cidade está associada à
técnica e à tecnologia. Para Massimo Di Felice (2009) habitar é uma prática comunicativa
e as transformações técnicas e tecnológicas comunicativas ocorridas historicamente
transformaram nosso modo de habitar o espaço urbano.
Para Benjamin (2012) a mudança nos nossos modos de percepção do espaço tem
uma origem téncia. Isto significa que a experiência tecnológica dos meios de comunicação
está profundamente ligada a formas arquitetônicas da cidade. As transformações
tecnológicas na cidade são paralelas às transformações dos espaços urbanos, das suas
estruturas arquitetônicas e mesmo dos espaços da casa que vai se tornando altamente
tecnológica. Embora cada uma das tecnologias com que temos contato em nosso cotidiano
urbano se traduza em uma diferente experiência pessoal e coletiva na cidade e da cidade, as
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diferentes culturas comunicativas (DI FELICE, 2009) que delas advêm coexistem. Isto é,
não existe uma linearidade em que uma tecnologia sai de cena para entrada de outra, uma
cultura se sobrepondo à outra, mas elas se relacionam.
Friederich Kitler (1996) afirma que “a cidade é meio”: suas estruturas, as casas, os
monumentos, a arquitetura urbana, a arte, os hábitos de associação, todos formam nós
conectados em redes complexas que comunicam e informam. Assim, todo tipo de
tecnologia urbana, para Kitler, é informação. Seja através das tecnologias mais antigas
como os registros em pedras, pergaminhos, papiro, monumentos, as navegações, os
transportes, as estradas, seja por meio das mais modernas como eletricidade, telefone,
rádio, telégrafo, televisão e internet, todas elas comunicam e informam.
Não terei espaço para explorar a fundo essa imbricação entre espaço urbano e mídia
historicamente. Diversas tecnologias que existem no espaço urbano foram relativamente
bem assimiladas por nós. Uma tecnologia que chega não necessariamente substitui outra
que era utilizada antes dela de uma forma linear, mas existe uma continuidade e uma
incorporação de usos e conhecimentos de itens antigos aos novos. O computador com
internet e o smartphone, assim como a TV, são tecnologias que emergem no contexto
tecnológico urbano que acumula diversas tecnologias. Ou seja, a computação e a
telecomunicação convergem com outras mídias mais antigas como a fotografia, o cinema,
o rádio e a televisão. São continuidade ao mesmo tempo em que trazem mudanças
importantes. A televisão, por exemplo, é inventada no contexto que costurava fotografia,
cinema, telégrafo e o rádio os quais já anunciavam sua chegada (WILLIAMS, 1990). Não
é que a televisão é apenas uma combinação ou desenvolvimento de tecnologias anteriores,
obviamente que ela emerge desse contexto, mas possui suas particularidades.
Falamos de ação até aqui de maneira genérica. Gostaria de passar à descrição das
Jornadas de Junho para podermos analisar alguns pontos já ressaltados até aqui. Voltemos
a maio de 2013. No final deste mês, o Movimento Passe Livre (MPL) começa a articular
atos contra o aumento de 20 centavos na passagem do transporte coletivo anunciado pelo
governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, e pelo prefeito da cidade de São
Paulo, Fernando Haddad. Os primeiros atos foram feitos por secundaristas de duas escolas,
uma em Pirituba, zona norte da cidade, e outra no centro e pelo MPL. Nestes atos, em seu
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perfil do Facebook3 e em seu site (MPL-SP, 2013), o MPL divulga o Primeiro Grande Ato
contra o Aumento da Passagem que estava marcado para ocorrer no centro da cidade no
dia 06 de junho de 2013.
Já no primeiro ato, o Estado usa a Polícia Militar para reprimir os manifestantes. A
repressão policial que sofreram ou que viram em vídeos da internet e leram em relatos de
manifestantes é tópico recorrente na fala de meus colaboradores. Dois de meus
interlocutores relatam sua experiência do primeiro dia de maneira detalhada. Cito aqui a
fala de Gabriel:
O primeiro [ato] começou entre a prefeitura e o palácio municipal. Nem
deu tempo de começar na verdade, o ato seguia para a nove de julho e a
polícia já tentou destruir o ato no momento em que ele saiu. [...]A gente
ficou muito assustado, [tinha] muita polícia. E bomba, bomba, bomba.
Até que o ato conseguiu chegar na Paulista e a gente conseguiu se somar
com as pessoas. A repressão não parou e a gente foi até o fim da Paulista
no sentido Paraíso e ficou ali tensionando muito até que uma galera
entrou no shopping [Paulista] e a polícia trancou o shopping.
Lucas que entrou no shopping conta o que vivenciou lá dentro:
[...] na praça Oswaldo Cruz [...] a polícia começou a tacar muita bomba
e não deixou [o ato] dispersar. Ela começou a tacar bomba da Paulista
em direção ao shopping pra gente não conseguir correr pra Paulista pra
pegar metrô até porque tava tudo fechado. [...] eu fui com outra galera
que arrombou a porta do shopping e ficou lá dentro. A gente entrou
correndo e os seguranças fecharam a porta do shopping, só que a polícia
começou a jogar bomba de gás, pedir pros seguranças abrirem a porta e
jogar bom de gás lá dentro. Mas não tinha nenhuma saída, era bem
sádico da parte deles. Teve uma hora que o próprio segurança chegou
pra gente e falou: “tem uma saída de emergência, foge logo antes que os
caras entrem aqui e prendam todo mundo”. Aí ele abriu a saída de
emergência pra gente sair por trás. aí uma galera que moscou lá dentro
acabou sendo presa, eu saí. [...] tinha trabalhador do shopping lá dentro
ainda. Tinha um quiosque do Starbucks e duas minas ficaram por lá,
talvez com medo de largar o posto de trabalho. Aí uma delas desmaiou e
um amigo meu que emprestou vinagre pra ela, ajudou ela. A polícia não
tava nem aí.
A Avenida Paulista é um símbolo de São Paulo. Não somente como cartão postal,
mas é um dos centros financeiros mais importantes da cidade. Paradoxalmente, ela é, ao
mesmo tempo, a Wall Street paulistana e leito da população em situação de rua. Por lá
passam inúmeras marchas, protestos e manifestações populares. Artísticas e políticas.
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O endereço da página do MPL-SP é o seguinte: < https://www.facebook.com/passelivresp?fref=ts>.
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Resumidamente, é um local onde se manifestam os mais variados tipos de conflito social.
A ocupação da Avenida Paulista e a interrupção de seu tráfego eram vistas pelos
manifestantes como uma conquista importante do movimento. E para a polícia,
aparentemente, estas ações deveriam ser evitadas.
Após o primeiro protesto a polícia acusa os manifestantes de terem depredado
diversas áreas da cidade. O Metrô calcula em R$ 70 mil o prejuízo que manifestantes
causaram às estações (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013).
O MPL comenta no
Facebook sobre as depredações, mas afirma não ter controle sobre tudo o que ocorre
durante os protestos:
As depredações só se iniciaram depois de um segundo momento de
repressão brutal e prisões, realizadas na região da Avenida Paulista. O
Movimento Passe Livre não incentiva a violência em momento algum de
suas manifestações, mas é impossível controlar a frustração e a revolta de
milhares de pessoas com o poder público e com a violência da Polícia
Militar. (MPL-SP, 2013)
O MPL utilizava bastante o Facebook e seu site para se comunicar com as pessoas
que estavam interessadas no movimento. A fonte de informação primordial de meus
interlocutores, desde o início, era a internet, principalmente o Facebook. No questionário
publicado na internet, 85% das respostas apontam para o uso desta rede social como fonte
de informação. Em pesquisa do Ibope, 62% dos manifestantes entrevistados no dia 17 de
junho souberam das manifestações pelo Facebook, 29% pela internet (BRASIL..., 2013). O
alcance das redes sociais foi, portanto, bem grande. Para além de obterem informação,
muitos de meus interlocutores utilizaram a internet como local para publicarem relatos
sobre sua experiência nas ruas. Laura diz:
A gente organizava os atos pela própria internet, a gente só sabia
quando os atos iam acontecer através do Facebook. E a partir disso a
gente começava a divulgar o ato, compartilhando o evento do ato e
também a gente compartilhava muitas matérias sobre a repressão que a
gente estava sofrendo nos atos, acho que esse era o principal conteúdo
das coisas que eu postava. Denunciando a repressão e como o aumento
da tarifa era abusivo.
Cláudia escreve: “eu usava bastante o Facebook pra divulgar os próximos. Pra fazer
chamadas. E pra contar e também relatando as experiências de cada ato”. Pedro, à época,
trabalhava com edição de vídeos, e achou que uma forma de divulgar o que acontecia nos
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atos fazendo um contraponto ao que era veiculado pela televisão, era postar vídeos no
YouTube4. Lúcio, com quem encontrei na manifestação do dia 17 de junho, disse que,
apesar de ter ido à rua apenas naquele dia, já havia feito vídeos estimulando as pessoas a
comparecerem aos outros atos.
Mesmo com manifestantes presos e a intensa repressão policial ao primeiro
protesto, o MPL agenda o Segundo Grande Ato contra o Aumento da Passagem para o dia
seguinte, 07 de junho. O local de encontro seria o Largo da Batata. No ato do dia 07, os
manifestantes se concentraram às 17h e começaram a andar saindo do Largo da Batata pela
Avenida Faria Lima. Gabriel relata de forma detalhada o que viveu naquele dia e o que
sentiu:
O ato começou no Largo da Batata. Foi um ato convocado de um dia pro
outro. No Largo a gente começou o ato, pegamos a Faria Lima, viramos
na Rebouças, até aí eu já estava achando o máximo. A Faria Lima e a
Rebouças. Aí eu pensei: "puta, para onde a gente vai? Será que a gente
vai ocupar a reitoria da USP? Tamo indo em direção ao Palácio do
Governo?" E de repente a galera toma a Marginal [Pinheiros]. Foi
animador demais!
O ato continua pela Avenida das Nações Unidas, a Marginal Pinheiros, com
repressão, porém menor, na avaliação do Gabriel, do que aquela do dia 06. Quando os
primeiros ataques policiais começam, algumas pessoas tentam manter os manifestantes
unidos para resistirem à PM gritando: “não corre, não corre”, diz Gabriel. Marcante nos
protestos de junho foi a presença dos black blocs5 que se colocavam à frente dos
manifestantes buscando resistir aos ataques policiais e impedir que a manifestação se
dispersasse.
Neste dia, uma postagem no Facebook ganha enorme repercussão nas redes. O
promotor de justiça Rogério Leão Zagallo publica uma mensagem em seu perfil na rede
4
YouTube é uma rede social de compartilhamento de vídeos. Endereço: <http://www.youtube.com/>.
O Black Bloc nasceu na Alemanha em 1980 e era composto por manifestantes vestidos de preto e
mascarados para evitar sua identificação por parte da polícia. Seu intuito principal, no fim dos anos 80, era
“oferecer proteção às passeatas, impedindo a infiltração de agentes provocadores e protegendo os
manifestantes dos ataques da polícia” (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013, p. 37). Posteriormente, nos
anos 1990, o Black Bloc ressurge nos Estados Unidos nos protestos contra a Organização Mundial do
Comércio em Seattle e orienta sua ação à destruição da propriedade privada como forma de protesto
(JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013). Nos atos contra o aumento, os black blocs se colocavam na linha de
frente da manifestação num confronto direto com a polícia. O grupo também foi responsável pela destruição
de agências bancárias e grandes lojas gerando controvérsia entre os manifestantes que não apoiavam esse tipo
de ação.
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social em que pede a morte dos manifestantes: “Estou há duas horas tentando voltar para
casa mas tem um bando de bugios revoltados parando a avenida Faria Lima e a Marginal
Pinheiros. Por favor, alguém poderia avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do
meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito
policial” (ARAÚJO, 2014).
O MPL chama, então, o Terceiro Grande Ato Contra o Aumento da Passagem para
o dia 11 de junho. A página do evento no Facebook “viraliza” – termo muito usado na
internet para se referir a publicações que obtêm grande alcance – e 28 mil perfis
confirmam participação no ato. Obviamente que nem todos os perfis confirmados
correspondiam a pessoas que realmente compareceriam ao ato. É normal no Facebook que,
para dar força a determinado evento, os usuários da rede confirmem presença mesmo que
não possam ir. Como explica Fabio Malini (2013):
A dinâmica do Facebook ilustra curiosamente a articulação rua e rede. Há
aqueles que estão presente na primeira; há aqueles que estão na segunda.
Os primeiros enunciam; Os segundos anunciam. Os primeiros, de dentro
da mobilização, relatam. Os segundos, de dentro da rede, espalham e
comovem.
O evento no Facebook funciona então como um
mural noticioso das lutas e uma construção heterogênea de narrativas
comuns, que podem ser curtidas (popularizadas), seguidas (valorizadas
em termos de atenção), comentadas (discutidas e virarem polêmicas num
espaço público) e, a mais radical da ação peer-to-peer, compartilhadas
(difundidas pelos perfis)” (MALINI, 2013).
Para além de ser um “mural noticioso” como escreve Malini, estar na internet era
uma forma de participar das manifestações. Quase que a totalidade de meus entrevistados,
quando lhes perguntei “de que formas você participou dos protestos?” colocam que
participaram indo às ruas e postando e compartilhando coisas no Facebook. No
questionário publicado online, muitos mencionam também essa modalidade de
participação associada ou não à saída às ruas e à participação nos atos. Interessante aqui
apontar para a internet sendo constituída enquanto espaço público de ação.
Nos protestos de junho, vemos que o acesso amplo à tecnologia na cidade permitiu
a criação de espaços públicos de ação dentro da própria internet. Espaços estes que
estavam em imbricação com os espaços físicos da cidade durante a ação já que as pessoas
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habitam e transitam por estes múltiplos espaços. O espaço, nas mobilizações ocorridas em
junho, tem alguns diferentes sentidos: o espaço físico da cidade mídia no qual os agentes se
colocam fisicamente (e que é um espaço de relações imbricado com as tecnologias de
informação e comunicação); e o espaço público que, no sentido arendtiano, é o espaço
onde as pessoas se reúnem e que é constituído pelos agentes durante a ação. Se, para a
constituição do espaço público, é necessária a presença de pessoas agindo, temos esta
possibilidade que se concretiza em junho: a constituição de um espaço público midiático.
Assim, estar no protesto ou participar de uma mobilização deixa de ser somente sair
às ruas. A confusão dos espaços, na fala de meus colaboradores, fica evidente, na medida
em que “participar ativamente” do protesto pode ser considerado o apoio dado na internet,
no compartilhamento de conteúdos, na publicação de opiniões nas redes. McLuhan (2005)
considera que os meios podem se constituir enquanto ambientes (environments). Para ele,
“qualquer nova tecnologia, qualquer extensão ou ampliação das faculdades humanas
quando toma forma material, tende a criar um novo ambiente6” (MCLUHAN, 2005, p. 84).
Esta modalidade de participação irá se intensificar e se concretizar alguns atos mais tarde.
Convém narrarmos ainda alguns acontecimentos para compreendermos em que contexto
ela emerge.
A concentração para o Terceiro Grande Ato seria na Praça do Ciclista, no
cruzamento da Avenida Paulista com a Rua da Consolação, no dia 11 de junho de 2013. O
grupo era plural, mas as pessoas não eram ricas, isso era visível. Havia muitos estudantes.
Houve um primeiro impasse com a polícia quando tentamos continuar pela Rua da
Consolação indo sentido centro. Fomos impedidos, mas o ataque policial não conseguiu
dispersar os manifestantes.
O segundo impasse se deu no Terminal Parque Dom Pedro quando uma “parede”
de policiais militares se formou impedindo nossa entrada no terminal. As bombas, mais
uma vez, ao invés de desanimarem os manifestantes, apenas as estimulavam a continuar. A
cada resistência frente à polícia, mais o ânimo das pessoas crescia e mais elas se uniam
para dar continuidade ao ato.
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Tradução da autora para: “Any new technology, any extension or amplification of human faculties when
given material embodiment, tends to create a new environment”.
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Chegamos à Praça da Sé depois de quase 4 horas de ato. Os manifestantes foram
subindo as escadas da Catedral e sentando no chão, apenas comemorando o ato para
finalizá-lo. Foi quando vimos uma “chuva de bombas” vindo em nossa direção. A imagem
desta chuva de bombas, assim como outros vídeos do mesmo ato, será icônica nas redes
sociais. Depois deste episódio o ato se dividiu em várias partes. Algumas pessoas seguiram
pelo bairro da Liberdade outras foram para a Paulista. Neste dia, a manifestação durou
quase 6 horas, 20 pessoas foram presas e duas foram atropeladas (JUDENSNAIDER,
LIMA, et al., 2013). As fianças exigidas para liberação dos presos giravam em torno de R$
20 mil reais (SOARES, 2013a). O MPL publica em seu Facebook uma conta bancária para
arrecadação do dinheiro para pagar as fiança dos presos.
As palavras “vandalismo” e “baderna” são utilizadas pelo governador Geraldo
Alckmin para se referir aos manifestantes em seu Twitter7. Na televisão e nos jornais Folha
de São Paulo e Estadão, o discurso é semelhante. As imagens de locais depredados,
barricadas, lixos pelas ruas se espalham pela mídia e pela internet. Paralelamente a isso,
centenas de relatos e imagens feitas pelos manifestantes são compartilhados nas redes
sociais. Enquanto a grande mídia foca nas depredações (JUDENSNAIDER, LIMA, et al.,
2013), os relatos dos participantes aparecem no sentido de denunciar o tratamento dado a
eles pela polícia. Vídeos que viralizam na internet mostram a violência policial. Em um
vídeo muito compartilhado na rede, policiais cercam e espancam um jornalista
(JORNALISTA..., 2013).
Meus interlocutores mencionam que uma das maneiras que encontraram de buscar
apoio ao movimento era divulgar esse material para sua lista de amigos no Facebook,
apoiando os manifestantes e contando sua própria história. Laura, Gabriel, Pedro, Cláudia
publicaram seus próprios relatos em seus perfis com o intuito de oferecerem essa outra
versão dos fatos. Espalhou-se também pela rede, após o ato do dia 11 de junho,
publicações sobre como lidar com gás lacrimogêneo ou como confeccionar máscaras antigás (TERROR, 2013). Com base em informações de que o vinagre seria um neutralizador
do gás, as pessoas começam a levar garrafas de vinagre para os atos.
O MPL marcou o Quarto Grande Ato Contra o Aumento da Passagem para dia 13
de junho. A concentração seria, novamente, em frente ao Teatro Municipal. Horas antes do
7
Twitter do governador: <https://twitter.com/geraldoalckmin_>. Acesso em 25 mai. 2015.
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ato a polícia já começa a se concentrar no local. Pessoas que passavam pelo local ou
trabalhavam por perto postaram no Facebook e Twitter fotos da concentração policial em
frente ao local. O policiamento começa cedo e pessoas são revistadas na saída do metrô ou
em ruas próximas ao Teatro Municipal. Bolsas e mochilas são revistadas e pessoas são
detidas por porte de vinagre (SOARES, 2013b). Estas notícias corriam rapidamente as
redes sociais e viraram piada na internet. Estava se formando na rede a “Revolta do
Vinagre”.
O “fatídico dia 13”, como descreve Gabriel, foi um dia marcado pela violência
policial. A repressão foi tamanha que a repercussão foi instantânea, tanto nas redes sociais
quanto na televisão. Os meios de comunicação tradicionais, as grandes redes de televisão,
os jornais e até mesmo revistas semanais que estavam contra os atos, começam a apoiar as
manifestações. O apoio cresce enormemente e se expande pelo Brasil e até mesmo para
fora do país. A partir deste momento as pautas das manifestações foram aos poucos se
tornando difusas e diversas outras demandas começaram a surgir. A televisão dá atenção à
difusão de pautas (JUDENSNAIDER, LIMA, et al., 2013) e nas redes sociais isso é cada
vez mais notável8.
O Quinto Grande Ato Contra o Aumento da Passagem é marcado para o dia 17 de
junho novamente no Largo da Batata. A página do evento do ato no Facebook tem mais de
250 mil pessoas confirmadas. Outros protestos foram organizados em inúmeras cidades do
Brasil. Os debates múltiplos foram transportados para as ruas. Vi pessoas com cartazes os
mais diversos: pela educação, pela saúde, contra a corrupção, “saímos do Facebook” ou “é
tanta coisa que nem cabe nesse cartaz”.
Não somente eu, mas muitos de meus interlocutores observam uma mudança
drástica nos atos. Quase não há policiamento, os participantes são ainda mais plurais, há
famílias, idosos, crianças. E há muita, muita gente. A marcha seguiu pela Faria Lima, um
evento organizado no Facebook pedia às pessoas das casas próximas aos locais pelos quais
passariam os manifestantes, que colocassem lençóis brancos nas janelas demonstrando
8
O Facebook permite que um/a usuário/a organize o que chamam de “Eventos” pelo site. É criada uma
página em que se colocam informações sobre o evento, local e horário em que este ocorrerá. As páginas
criadas pelo MPL como chamada para os protestos já não existem. Os dados foram colhidos em 17 de junho
de
2013
no
seguinte
endereço:
<https://www.facebook.com/events/388686977904556/392429110863676/?ref=notif&notif_t=plan_mall_act
ivity>.
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apoio e que deixassem o wi-fi livre. Consegui conectar em algumas redes durante a
manifestação já que o serviço de telefonia não auxiliou em nada a comunicação.
O ponto alto do protesto foi quando a multidão, ao andar pela Avenida Brigadeiro
Faria Lima, viu-se projetada num enorme prédio espelhado. Pessoas gritaram extasiadas.
Bateram palmas para si mesmas, tiraram fotos, fizeram vídeos. O protesto deste dia se
dividiu em diversas frentes. Grupos enormes foram para a Ponte Estaiada, Palácio do
Governo e Paulista. Ele foi em sua maior, nesta região, parte pacífico, com poucos focos
de conflitos. Em outros locais da cidade, houve conflito mais direto entre manifestantes e
policiais. É interessante resgatarmos um pouco sobre uma forma já consagrada da política
a que estamos acostumados: a política imagética.
Discorri brevemente a imbricação entre espaço urbano e tecnologias de
comunicação e informação (TICs). Como também já foi mencionado, as tecnologias
modificam a maneira como nos relacionamos com os espaços que habitamos. Se
poderíamos encarar a TV como uma tecnologia privada, isto é, presente no espaço privado
da casa, ela significou, desde sua chegada até os dias de hoje, embora em menor
intensidade por conta da transmidiação, uma saída do espaço público. Segundo McQuire
(2008, p. 140):
Conforme a casa se torna um centro midiático, um nó dentro da rede
televisiva e radiofônica, a vida social se torna cada vez mais caracterizada
por um recolhimento ao privado. Este é o contexto para a emergência de
uma política plenamente baseada na imagem, acima de tudo, sendo que a
televisão se torna o meio politicamente dominante9. (itálico do autor)
Mas mesmo com este movimento de saída do espaço público para o espaço privado
da casa, a TV possui a capacidade de nos conectar e nos convidar a habitar espaços.
Segundo Carpignano (1999), assistimos à televisão, isto é, habitamos seu fluxo contínuo
fazendo com que estes espaços aconteçam. Esta forma de experiência do espaço e do
tempo existentes a partir de nosso uso da TV gera formas importantes de sociabilidade e
vivências comuns entre quem assiste aos programas modificando a noção de público e de
esfera pública (CARPIGNANO, 1999). Existe uma espécie de diálogo silencioso entre o
9
Tradução da autora para: “As the home becomes a media centre, a node within radio and television
networks, social life is increasingly characterized by a retreat to the private. This is the context for the
emergence of a fully fledged image politics which depends, above all, on television becoming the dominant
political medium”.
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público que a TV cria e que está acompanhando o fluxo televisivo (PAIT, 2007). Esse
público participa, vive estes momentos midiáticos sendo, através da mídia, tirado de dentro
do seu espaço caseiro para o mundo que a televisão lhe oferece.
Para Habermas (2003) este movimento significa uma perda da esfera pública.
Dayan e Katz (1996) demonstram também uma vivência privatizada de eventos que seriam
públicos, mas que agora são vistos dentro das casas pela família reunida que não mais se
desloca até os espaços públicos tradicionais como a praça, a rua. A saída do espaço público
não se limita ao habitante comum da cidade que se recolheria à casa para se reunir em
frente à televisão. Ele sai para assistir a alguém com quem ele deveria se encontrar no
espaço público. Quer dizer, quem é visto na televisão? Os eventos midiáticos de que falam
Dayan e Katz (1996) são os eventos das pessoas públicas, aquelas ligadas à esfera do poder
público ou então de celebridades artísticas. A figura da pessoa pública existe não porque
todos na rua a conhecem, mas porque ela aparece na televisão, fala no rádio. A presidente
fala conosco através de pronunciamentos públicos diretamente para dentro de nossas casas.
A publicidade, portanto, passou a estar ligada à presença na mídia.
Quando vemos, então, esta saída em massa às ruas, vemos uma intensificação do
número de entradas na internet relacionada a este evento. Em pesquisa realizada pela
Hitwise da Serasa Experian (MADUREIRA e BOUÇAS, 2013), o Facebook atingiu um
pico de acessos durante o mês de junho de 2013, representando uma fatia de 70% de
participações entre as redes sociais mais utilizadas no país. Esta mesma pesquisa registra
um volume de 17,7 milhões de tuites, isto é, publicações feitas na rede social Twitter,
relacionados aos protestos. Outro dado interessante que a Hitwise traz é que o número de
usuários de celulares com a tecnologia 3G que enviou dados a partir da Avenida Paulista
durante os protestos cresceu 14% na rede da Telefônica/Vivo.
Disso podemos considerar que, ao mesmo tempo em que o agir político na era da
internet se baseia numa forte relação entre política e imagem, como ocorre com a TV; ela
também representa uma volta às ruas, isto é, funciona como um ímã que atrai as pessoas
para o espaço público para que elas apareçam na mídia e dêem a sua “cara” a essa mídia.
Selfies, fotos tiradas pelas próprias pessoas de si mesmas, são postadas incansavelmente
nas redes a partir dos protestos do dia 17. As pessoas queriam e tinham que mostrar que
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estavam lá, na rua, e aqui, na rede. Ou, lá na rua e lá na rede, locais que se confundem o
tempo todo.
Neste momento também fica generalizada a constituição do espaço público neste
ambiente mediado. Não há perda do espaço público, mas uma mudança da experiência
política com a chegada dos novos meios. Rem Koolhas (1991 apud MCQUIRE, 2008) nos
leva a refletir sobre essa mudança ao dizer que o domínio público está em transformação e
a penetração das mídias é tal que, em alguma medida, dispensa a interação física nestes
espaços públicos tradicionais.
O espaço da cidade mídia (media city – McQuire, 2008) é um ambiente dinâmico
que, assim como o ambiente urbano, sofre modificações constantemente. Na cidade mídia
(media city) as tecnologias de informação e comunicação estão imbricados com os espaços
urbanos físicos das cidades. A cidade, assim, não é somente o espaço físico que a delimita,
suas estruturas arquitetônicas e de transporte e outras infraestruturas tipicamente urbanas.
O espaço urbano é também um espaço de relações, de experiências e sensações
(HANDLYKKEN, 2013). Ou, como colocaria McQuire (2008: IX), um “espaço
relacional” (relational space) em que a experiência e a vivência na metrópole são refeitas
subjetivamente através das tecnologias com as quais as pessoas interagem e que estão
presentes no espaço urbano. O espaço relacional tem a ver com a mobilidade das
tecnologias de mídia na cidade que permitem que as pessoas tenham uma experiência
individual e subjetiva de habitar a cidade e agir nela. A presença ubíqua das mídias em
imbricação com o as estruturas urbanas causam um certo estranhamento em nós quando
tentamos lidar com os espaços e localidades e também nossa noção de pertencimento, de
presença e de participação (MCQUIRE, 2008). Se voltarmos a Arendt e a seu conceito de
espaço público, temos que o local físico não é espaço público por si só. Neste sentido, com
a penetração e ubiqüidade das novas mídias digitais e móveis, podemos dizer que os novos
meios são também um suporte material que nos mantêm juntos e podem ser constituídos
como espaços públicos de ação.
O ato do dia 20, um ato comemorativo pela vitória das manifestações, marcado para
acontecer na Paulista, é também presidido por milhares de pessoas. Nesta ocasião fica
evidente a tal imbricação dos espaços de ação. Algumas pessoas começam a argumentar
nas redes sociais contra o uso de bandeiras de partidos políticos nos atos. Este debate fica
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visível durante o ato na Paulista. Carlos e Maurício mencionam terem estranhado a briga
que ocorreu entre militantes do PT e alguns manifestantes que arrancaram as bandeiras das
mãos deles e queimaram. Também presenciei esta cena durante o ato e conversei com uma
moça que teve a bandeira arrancada de sua mão e estava com o dedo da mão roxo por
conta da agressão. As disputas pelos espaços nessa nova mídia, portanto, ficam manifestas
nos atos nas ruas. A internet aparece como um meio em que a pessoa pode associar sua
própria imagem à sua ação dando-lhe a “cara” que deseja, a sua própria cara, apropriandose deste espaço midiático e produzindo conteúdo, escrevendo e ilustrando sua própria
história.
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TEORIA CRITICA E TDIC: PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA
EDUCAÇÃO EMANCIPADORA
Moacir de GÓES1
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GT3- Conflitos Sociais, Instituições e Política.
RESUMO
Tem este artigo o objetivo de estudar e analisar a Política Pública de Formação de
Profissionais do Magistério da Educação Básica no Brasil, em especial para o Ensino
Fundamental (1º. ao 5º. Ano), no contexto da semiformação, da indústria cultural e
emancipação do educando e do educador. Parte-se do pressuposto de que as políticas
desenvolvidas para a formação de professores não têm buscado efetivamente atender às
demandas de formação, mas apenas cumprir metas de certificação de professores em
massa, em curto espaço de tempo sem atentar para a autonomia e melhor qualificação das
práticas docentes destes profissionais. Busca-se também a compreensão do histórico da
formação de professores da micro região de Ribeirão Preto (DRE de Ribeirão Preto), em
particular dos educadores das escolas estaduais que oferecem o Ensino Fundamental, seu
desenvolvimento nestes últimos dez anos e os impactos na sua prática docente no período
de 2002 a 2012. Neste estudo tentaremos focar a temática da formação de professores com
a utilização das TDIC no tempo e espaço, delineando o cenário da globalização, da
indústria cultural e semiformação e todas as implicações que afetam nossa sociedade e a
educação. Esse novo contexto educacional, traçado a partir das revoluções da informática,
da microeletrônica, da criação da internet e da modernização dos recursos tecnológicos por
meio de organismos internacionais, da mídia e órgãos estatais, desencadearam uma
investigação do significado desta mudança em termos educacionais. É fundamental
repensarmos o papel da educação e dos educadores para construção de uma sociedade mais
emancipada, menos administrada e autônoma no contexto desta nova ordem mundial.
Utilizando as categorias da Teoria Critica da Escola de Frankfurt como, semiformação,
indústria cultural, autonomia e emancipação, buscar-se-á uma análise do processo de
formação dos professores que atuam no Ensino Fundamental nos anos iniciais.
Palavras chave: formação cultural; semiformação; novas tecnologias e indústria cultural.
1
Licenciado em Filosofia e Pedagogia (UNIVALE-1977); Mestre em Políticas Públicas e Sistemas
Educativos pela UNICAMP (2004); Doutor em Educação pela UNIMEP (2015); Diretor Titular de cargo na
EE Dona Sinhá Junqueira – Ribeirão Preto e Professor da FATEC Mococa.
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TEORIA CRITICA E TDIC: PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA
EDUCAÇÃO EMANCIPADORA
“(...) a minha questão não é acabar com a
escola, é mudá-la completamente, é radicalmente
fazer que nasça dela um novo ser tão atual quanto
a tecnologia. Eu continuo lutando no sentido de
por a escola à altura do seu tempo. E por a escola à
altura de seu tempo não é soterrá-la, mas refazêla.”
Paulo Freire (2003)
Introdução
O objetivo deste estudo é analisar a Política de Formação de Profissionais do
Magistério da Educação Básica no Brasil, em especial para o Ensino Fundamental (1º. ao
5º. Ano), no contexto da semiformação, indústria cultural e emancipação do educando e do
educador. Partimos do pressuposto de que as políticas desenvolvidas para a formação de
professores não têm buscado efetivamente atender às demandas de formação, mas apenas
cumprir metas de certificação de professores em massa, em curto espaço de tempo. Buscase, ainda, a compreensão do histórico da formação de professores da micro região de
Ribeirão Preto (DRE de Ribeirão Preto), em particular dos educadores das escolas
estaduais que oferecem o Ensino Fundamental, seu desenvolvimento nestes últimos dez
anos e os impactos na sua prática docente no período de 2002 a 2011.
Neste estudo tentaremos focar a temática da formação de professores com a
utilização das TDIC no tempo e espaço, delineando o cenário da globalização, da indústria
cultural e semiformação e todas as implicações que afetam nossa sociedade e a educação.
Esse novo contexto educacional, traçado a partir das revoluções da informática, da
microeletrônica, da criação da internet e da modernização de outros recursos tecnológicos
por meio de organismos internacionais, da mídia e órgãos estatais, desencadearam uma
investigação do significado desta mudança em termos educacionais.
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É fundamental repensarmos o papel da educação e dos educadores para construção
de uma sociedade mais emancipada, menos administrada e mais autônoma no contexto
desta nova ordem mundial. Utilizando as categorias da Teoria Critica da Escola de
Frankfurt como, semiformação, indústria cultural, autonomia e emancipação, busca-se uma
análise do processo de formação dos professores que atuam no Ensino Fundamental nos
anos iniciais. Pucci (2009) ao colocar esta questão, assim se expressa:
Na época da “Teoria da semiformação” a ratio instrumental
mercantilizada dominava ideologicamente a sociedade e a escola,
instalando unilateralmente o esquema da adaptação e da dominação
progressiva, a ponto de Adorno, naquela época, afirmar que “as
condições da própria produção material dificilmente toleram o tipo
de experiência sobre a qual se assentavam os conteúdos formativos
tradicionais”. Nos dias de hoje, a aceleração da aceleração
tecnológica e a articulação do desenvolvimento tecnocientífico com
o capital global, aumentaram assustadoramente a presença e o
poder dessa mesma ratio no interior da sociedade e da escola:
somos controlados nos ambientes sociais pelos objetos
tecnológicos por nos mesmos construídos; as máquinas estão
substituindo os homens em seus afazeres, inclusive nas salas de
aula; amplia-se indefinidamente a hegemonia do saber pragmático
em um mundo dominantemente funcional. (PUCCI, 2009, p. 77).
As TDIC estão presentes na vida das pessoas e aos poucos começam invadir as
salas de aula, a administração das escolas, o dia a dia de nossas crianças e adolescentes, e
também, de forma tímida, a vida de nossos educadores. É preciso uma reflexão profunda
para compreender as radicas transformações que estas tecnologias estão trazendo para
dentro das escolas.
Nesta pesquisa foi necessário realizar um estudo teórico, através de uma ampla
leitura de textos dos pensadores da Escola de Frankfurt e outros educadores atuais, em
especial de Theodor W. Adorno, para finalmente proceder a uma análise dos mesmos para
evidenciar os elementos buscados: crítica social; crítica da escola e da educação.
A teoria crítica da educação de Adorno e sua apropriação para análise das questões
atuais sobre a práticas escolares trazem significativas contribuições para o debate sobre a
função social da escola na atualidade e sua potencialidade para o debate quanto à
emancipação do educando e do educador; fornece ainda subsídios para uma crítica
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consistente aos projetos que surgiram nos últimos anos e que não foram capazes de
construir uma educação emancipador.
A Teoria Crítica, as TDIC e a Educação na Sociedade do Conhecimento.
Vivemos em tempos confusos e de transição entre diferentes formas de sociedade;
faz-se necessário repensarmos o papel da escola, dos educadores e das ferramentas que
utilizamos para acompanhar de forma critica tudo que esta em nosso entorno. É
fundamental que analisemos as categorias intelectuais que podem provocar nos educadores
uma ruptura entre o que ai está e o processo de construção de uma educação que provoque
várias transformações sociais, tecnológicas, econômicas e culturais importantes para a
emancipação dos educandos, educadores e da própria sociedade.
Podemos nos perguntar, como Adorno (1971), qual Pedagogia seria capaz de
trabalhar de forma construtiva com as crianças do século XXI, quando os vários recursos
midiáticos impõem valores e preconceitos que tornam a convivência mais intrigante entre
as diferentes culturas? Vejamos:
No sentido de uma Pedagogia contra o preconceito seria importante
encorajar as amizades individuais e não ironizá-las ou difamá-las;
ao contrario, tanto quanto possível, trabalhar contra as gangues
fanfarronas e outros grupos do mesmo tipo, especialmente quando
eles buscam poder. A estrutura de formação de gangues na escola é
um fenômeno central. Como em um micro cosmos desenha-se o
problema de toda a sociedade em geral. (ADORNO, 1971, p. 124)
Vaz (2009), ao comentar este texto de Adorno, expressa um sentimento de
compaixão em relação aos professores, pois não só as crianças do Ensino Fundamental,
como também as os jovens adolescentes do Ensino Médio, e também, as famílias e as
mídias de massa apresentam e defendem modelos reacionários que parecem caminhar para
um enrijecimento crescente e uma frieza burguesa desumanizadora. Vaz vai mais fundo
nesta questão e nos indaga:
Como é possível, num ambiente escolar tão duro e desolador, como
este que Adorno toma como ponto de partida para suas reflexões,
ainda se falar em conhecimento, sua produção e socialização?
Como pensar ainda em formação se, como dizem Horkheimer e
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Adorno, “A pseudo individualidade é um pressuposto para
compreender e tirar da tragédia sua virulência: e só porque os
indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras tendências das
encruzilhadas do universal, é possível reintegrá-los totalmente na
universalidade.” (DE, p.145; DA, p. 178) O sujeito parece não ser
mais possível porque não há mais experiência e porque o trabalho
do conceito está, na base, danificado, e no lugar dele nada foi
posto: o semiculto (semiformado) dedica-se à conservação de si
mesmo sem um si mesmo. (VAZ, 2009, p. 63).
A urgência de uma nova abordagem da cultura, da educação, da economia e da
sociedade em que vivemos é caracterizada pelos constantes conflitos que marcam o inicio
do século XXI; mudanças drásticas ocorrem por todo lugar e presenciamos uma corrida
sem precedentes pelo conhecimento, riqueza e poder, mas também percebemos a reação
dos descontentes e marginalizados deste processo, quer sob a forma do fundamentalismo
religioso, da crise ambiental simbolizada pelas mudanças climáticas, pela incapacidade do
Estado em lidar com os problemas globais e demandas sociais, e mesmo, de um
nacionalismo que isola o país do mundo globalizado. É neste caos que a educação
emancipadora se coloca como um novo e gigantesco desafio para todos os educadores e
gestores da escola pública.
Nós, seres humanos, vivenciamos o tempo e o espaço de diferentes maneiras,
dependendo de como nossas vidas foram estruturadas e praticadas ao longo de nosso
processo de formação. As práticas e percepções, bem como, os intervalos e ritmos foram
diferentes, dependendo da organização social, da tecnologia, da cultura e da capacidade de
a escola influir decisivamente em nossas escolhas.
Com o avanço do Capitalismo e da Tecnologia, tempo virou dinheiro à medida que
tudo precisa gerar mais e mais lucro o tempo todo, Castells (2010) assim nos alerta:
Quanto mais rápido você conseguisse obter seu retorno e
reinvestisse o capital, maior seria o lucro. As finanças passaram a
ser construídas em torno da venda de tempo monetizado. O crédito
se baseava no tempo. A velocidade se tornou essencial nas
transações financeiras. Quanto mais o Capital se globalizava, mas
as diferenças de fuso horário possibilitavam a proliferação de
mercados financeiros independentes para garantir a movimentação
do capital o tempo todo. (CASTELLS, 2010, p. XXVI).
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Com as tecnologias surgindo e desaparecendo como uma brisa sobre o efeito da luz
solar, ocorreram mudanças significativas na sociedade do conhecimento e nos processos de
formação e educação de nossas crianças e jovens. É o mesmo Castells (2010) que aponta
para estas mudanças:
Nós também mudamos com a tecnologia, assim como as potencias
tecnológicas dominantes, cansadas da hesitação de seus cidadãos
em particular de guerras longas e caras, almejavam travar o que
chamei de “Guerras Instantâneas”, usando bombas e mísseis
inteligentes controlados à distancia para infligir danos
insuportáveis ao inimigo, forçando-o, assim, a uma rendição rápida.
(CASTELLS, 2010, p. XXVII).
As tendências verificadas nos últimos anos parecem respaldar a relevância da
transformação do tempo, pois a globalização acelerou o ritmo de produção, gestão e
distribuição de bens e serviços em todo o planeta, o que também ocorreu e vem ocorrendo
de forma acelerada na educação.
Adorno, no texto “Teoria da Semicultura”, aponta com maestria o significado de
algumas categorias presentes na sociedade moderna e que tem afetado profundamente a
educação. O advento da TV e da Internet trouxe uma crise da formação cultural que não
interessa apenas aos educadores e sociólogos, mas deve provocar uma reflexão séria sobre
os métodos da educação e dos meios de comunicação de massa.
Algumas categorias adornianas precisam de muita reflexão como: formação,
semicultura, semiformação, semiformação socializada, racionalidade vazia, socialização da
semicultura, indústria cultural, autonomia do sujeito, etc... Que formação cultural nossas
escolas têm oferecidos aos jovens e crianças da sociedade digital da informação e
comunicação?
Para ilustrar a preocupação de Adorno, vejamos seus escritos:
A formação cultural agora se converte em uma semiformação
socializada na onipresença do espírito alienado, que segundo sua
gênese e seu sentido, não antecede à formação cultural, mas a
sucede. Deste modo, tudo fica aprisionado nas malhas da
socialização. Nada fica intocado na natureza, mas sua rusticidade –
a velha ficção – preserva a vida e se reproduz de maneira ampliada.
(ADORNO, 1972-1980, p. 01)
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Na sociedade das TDIC é preciso estar vigilante para não produzirmos somente
adaptação aos valores de mercado e descuidarmos das pulsões humanas como um processo
social, vital à própria sociedade como um todo, de acordo com o mesmo Adorno.
A revolução tecnológica afetou drasticamente as tecnologias de comunicação e a
engenharia genética, que continuam aumentando o ritmo das mudanças e afetando a base
material de nossas vidas. Temos redes interligadas e organizadas em todos os campos da
atividade humanas. Isto não pode suscitar apenas acomodação, é preciso um olhar critico
para que a escola não reproduza este estado de coisas. Vejamos:
A adaptação não ultrapassa a sociedade, que se mantém cegamente
restrita. A conformação às relações se debate com as fronteiras do
poder. Todavia, na vontade de se organizar essas relações de uma
maneira digna de seres humanos, sobrevive o poder como princípio
que se utiliza da conciliação. Desse modo, a adaptação se reinstala
e o próprio espírito se converte em fetiche, em superioridade do
meu organizado universal sobre todo fim racional e no brilho da
falsa racionalidade vazia. (ADORNO, 1972-1980, p. 02)
Essa consciência falsa e a racionalidade vazia, presentes na educação burguesa,
precisam ser combatidas para que possamos desenvolver um processo educativo
emancipador e que torne os sujeitos aprendentes mais lúcidos e prontos para uma
sociedade mais humana e justa. É possível construir uma sociedade sem status e sem
exploração quando se postula no trabalho pedagógico a ideia de formação cultural numa
sociedade racional e livre da dominação. Adorno reforça esta ideia ao afirmar:
A formação não foi apenas sinal da emancipação da burguesia, nem
apenas o privilegio pelo qual os burgueses se avantajaram em
relação às pessoas de pouca riqueza e aos camponeses. Sem a
formação cultural, dificilmente o burguês teria se desenvolvido
como empresário, como gerente ou como funcionário. Assim que a
sociedade burguesa se consolida e já as coisas se transformam em
termos de classes sociais. (ADORNO, 1972-1980, p. 03).
Neste momento em que os usos das tecnologias digitais estão definindo as formas
de produção e socialização das informações e do conhecimento, as relações das pessoas
entre si e com o meio cultural, caracterizam grandes desafios da educação e dos
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educadores. Praticas educativas, formais, inovadoras e os contextos informais, mediados
pelas tecnologias, nos convidam a reconhecer o valor da pluralidade. Adorno ilustra esta
situação com esta assertiva:
Os dominantes monopolizam a formação cultural numa sociedade
vazia. A desumanização implantada pelo processo capitalista de
produção negou aos trabalhadores os pressupostos para a formação
e, acima de tudo, o ócio. As tentativas pedagógicas de remediar a
situação se transformaram em caricaturas. Toda a chamada
“educação popular” – a escolha dessa expressão demandou muito
cuidado – nutriu-se da ilusão de que a formação, por si mesma e
isolada, poderia revogar a exclusão do proletariado, que sabemos
ser uma realidade socialmente construída. (ADORNO, 1972-1980,
p. 03).
É preciso pensar e compreender que as TDIC são ferramentas que os educadores e
educandos utilizarão para sua autonomia e superação da semicultura, semiformação e,
ainda segundo Adorno, “da necrose da formação cultural e da socialização da semicultura
ou semiformação” e também para fugir das malhas da semiformação socializada (TV,
Internet, mídias digitais de péssima qualidade).
Vamos começar nos perguntando quais são as principais mudanças que a cultura
digital tem colocado para a sociedade do conhecimento e para a educação? Como os
educadores e educandos usam os recursos midiáticos e as tecnologias em suas vidas
pessoais e profissionais? Como a sociedade do consumo usa os produtos culturais e o que
faz em seu tempo livre? Dependendo do como usamos os meios midiáticos, os produtos
culturais e o processo de formação dos educadores em mídia-educação entenderemos os
rumos que tem tomado a formação cultural no contexto da chamada mundialização da
cultura; ou estaremos diante de um processo de semicultura que “favorece a mitologização
através de uma consciência indigente”, como salienta Adorno em Teoria da Semicultura
(1972-1980).
Outra preocupação é com a indústria cultural mercantilizada que fecha as portas à
tudo que não atenda aos padrões e interesses econômicos daqueles que manipulam nossos
gostos e percepções do belo. Vejamos:
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Assim a indústria cultural, o estilo mais inflexível de todos, revelase justamente como a mera daquele liberalismo ao qual se
censurava a falta de estilo. Não só as suas categorias e os seus
conteúdos irrompem da esfera liberal, tanto do naturalismo
domesticado como da opereta e do teatro de revista; os modernos
trustes culturais são o lugar econômico onde continua,
provisoriamente, a sobreviver, com os tipos correspondentes de
empresários, uma parte da esfera tradicional da circulação, em vias
de aniquilamento no restante da sociedade. (DUARTE, 2002, p.
23).
Como produzir uma obra cultural desvinculada dos valores que a semiformação
socializada pela grande mídia insiste em chamar de produtos ou consumos culturais?
Adorno nos alerta de forma enfática que “não se quer a volta do passado e nem que se
abrande a crítica a ele”, mas não podemos fazer vistas grossas a esta pluralidade
desprovida de qualquer valor estético ou cultural que permeia nossa sociedade. Adorno é
direto:
No clima da semiformação, os conteúdos objetivos, coisificados e
com caráter de mercadoria da formação cultural, perduram à custa
de seu conteúdo de verdade e de suas relações vivas com o sujeito
vivo, o qual, de certo modo, corresponde à sua definição. [...] Da
formação só participam, para sua dita ou desdita, indivíduos
singulares que não caíram inteiramente neste crisol e grupos
profissionalmente qualificados, que se caracterizam a si mesmos,
com muita boa vontade, como elites. (ADORNO, 1972-1980, p.
04).
A formação do educador não pode ser entendida como algo fora do mesmo, mas
que existe também como autoformação, sendo desta forma, objeto e instrumento daquilo
que nos constitui e que somos. Não se pode esperar que apenas e tão somente um diploma
universitário torne uma pessoa um educador emancipador. Fantin e Rivoltella (2012) nos
ensinam que:
Nessa perspectiva, o termo “formação inicial”, utilizado para se
referir à formação universitária, parece desconsiderar toda a
trajetória que forma o sujeito até sua chegada à universidade, como
se ali, de fato, houvesse a “iniciação”. No entanto, mesmo sabendo
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que o termo “inicial” se refere a outra etapa de formação, mas
especificamente ligada ao inicio de uma formação profissional, é
importante pontuar e recuperar tal sentido de formação como
possibilidade de reelaborar criticamente aspectos da vivencia e da
experiência do sujeito e sua relação com o conhecimento para
vislumbrar a perspectiva da autoformação, condição para entender
a formação como transformação ( FANTIN e RIVOLTELLA,
2012, p. 58).
A dimensão da sedução está diretamente ligada à relação professor/aluno e pode se
caracterizar pela persuasão ou resistência; pode significar a capacidade de encantamento da
realidade e da verdade que pode significar para o educando domínio e poder do educador
sobre sua pessoa. Não podemos descartar a sedução entre as pessoas e as tecnologias com
um potencial de encantamento e de resistência que se apresenta de diferentes formas. Há
aqueles que são fascinados pelo encanto e lucidez das informações tecnológicas e aqueles
que resistem e não compreendem o ato de ensinar-aprender com estas ferramentas. Fantin e
Rivoltella (2012) concluem:
Assim, ao mesmo tempo em que a formação implica
intencionalidade, criação e encantamento, também envolve
territórios e relações de poder. É nessa paisagem formativa que
pretendemos alcançar o sentido da cidadania, da cultura e do
conhecimento, a experiência da significação pode ter lugar de
destaque na formação da mídia-educação, que pode ser entendida
como formação cultural crítico-reflexiva, teórico-prática, éticoestético e como autoformação e transformação (FANTIN e
RIVOLTELLA, 2012, p. 60).
É preciso concordar com Fantin e Rivoltella (2012) que afirmam que “as
transformações tecnológicas e estéticas ao longo dos tempos não apenas subvertem a
produção cultural, artística e política de cada época como provocam mutações na
percepção” e tudo isto acaba por influenciar nas experiências e práticas educativas dos
educadores e educandos que buscam uma educação emancipadora.
Precisamos estar atentos para não cometermos “os abusos sociais da semicultura
que não é possível mudar isoladamente o que é produzido e reproduzido por situações
objetivas dadas que mantém impotente a esfera da consciência; para aguçar a percepção
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das “totalidades contraditórias” e buscar um projeto de autonomia e formação cultural e
profissional que nos capacite para o exercício docente emancipador.
Considerações Finais
Mesmo com o processo de redemocratização de nosso país a partir da década de
1980 com o fim da ditadura militar, que aqui se instalou após o Golpe de 1964, com o
processo de neopolitização de tendência neoliberal, os movimentos políticos e sociais de
diferentes tendências, se unem por uma nação mais democrática e capaz de corrigir as
distorções e injustiças agravadas durante o período da ditadura militar.
Com as eleições de 1982 os militares viram seu sonho de permanecer no poder por
mais tempo ruir, pois na maioria dos estados venceu o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro) partido de oposição que fica com os governadores e prefeitos das principais
cidades do Brasil.
No campo da educação demorou um pouco mais; é só com a Nova República que a
esperança de uma educação como meio de emancipação dos sujeitos volta a ser cogitada.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte trava-se uma batalha entre os conservadores e
os da vanguarda política que pleiteavam mais avanços. Florestan Fernandes teve seu
projeto reescrito por Darcy Ribeiro e muito do que havia sido colocado no Projeto de LDB
foi jogado fora para atender os conservadores e os proprietários das escolas particulares.
Belloni (2012) assim descreve este período:
A década é plena de novas possibilidades de mudanças. Surgem
ideias e propostas de políticas públicas transformadoras da escola,
entre elas, a mais notável é, sem dúvidas, o Programa Especial de
Educação de Darcy Ribeiro, que tornou possível a experiência dos
Centros Integrados de Educação Pública (Cieps/RJ): primeira
experiência de educação integral, em grandeza real no Brasil, com
uso intensivo de mídias (televisão, radio, HQ, imprensa) e voltado
para as crianças e adolescentes das classes populares (educação
popular). (FANTIN e RIVOLTELLA, 2012, p. 44).
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Os projetos de educação pública mudam à medida que mudam os políticos que
ocupam os cargos de Ministro da Educação, Secretários Estaduais da Educação e
Coordenadores ou Secretários Municipais de Educação e, muitas vezes, também conforme
a gestão e formação da equipe escolar em cada unidade de ensino. Diante deste quadro, é
possível falarmos de uma escola que educa para a emancipação?
Pereira e Teixeira (1998) in Brzezinski (org) assim explicam este período:
A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional introduz
mudanças significativas na educação básica de nosso país.
Importantes avanços, resultantes da participação da sociedade civil,
na etapa inicial de construção da lei, foram consagrados, apesar do
longo e conflituoso processo de sua tramitação no Congresso
Nacional e das inúmeras tentativas de eliminar as conquistas
obtidas (Brzezinski, 1998, p. 87).
Embora tenhamos que reconhecer alguns avanços, não podemos deixar de
concordar com Adorno, quando em Teoria da Semicultura, assim se expressa:
Elementos formativos inassimilados fortalecem a reificação da
consciência que deveria justamente ser extirpada pela formação.
Assim, para um novato que se utiliza da ética de Espinosa sem
conhecê-la em conexão com a doutrina cartesiana de substancia e
com as dificuldades da mediação entre a res extensa e a res
cogitans, as definições com que começa esta obra assumem certa
opacidade dogmática e um caráter de arbitrariedade confusa, que se
desfazem somente se entende a concepção e a dinâmica do
racionalismo juntamente com o papel que as definições
desempenham nele (ADORNO, 1972-1980, p. 08)
Talvez a escola que possa produzir a emancipação de educandos e educadores ainda
seja um projeto a ser construído coletivamente, pois conforme Adorno nos ensina: “o
semiculto se dedica à conservação de si mesmo sem si mesmo”, não podemos construir
esta escola sem a “experiência e o conceito” que subjetivamente possibilite a formação
cultural emancipadora.
Nas nossas atividades do cotidiano estamos às voltas com decisões, escolhas e
duvidas, algumas que dependem só de nós mesmos e outras que dependem de outras
pessoas e algumas que dependem muito de ferramentas tecnológicas, sociais, culturais e
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econômicas. Não é diferente no interior de nossas escolas. É isto que espero comprovar na
pesquisa empírica que realizarei nas escolas de ensino fundamental da Diretoria de Ensino
de Ribeirão Preto.
Não há duvidas de que a revolução das tecnologias digitais da informação e
comunicação penetrou de forma definitiva em todas as esferas das atividades humanas. A
vida econômica, social, religiosa, educacional e cultural não pode prescindir destas
ferramentas para melhor atender as demandas dos processos socais suscitados pelas
mesmas transformações tecnológicas.
Castells (2010) assim se expressa sobre esta questão:
Nem a sociedade escreve o curso da transformação, uma vez que
muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora,
intervém no processo da descoberta cientifica, inovação
tecnológica e aplicações sociais, de forma que o resultado final
depende de um complexo padrão interativo. Na verdade, o dilema
do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema
infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não
pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas
tecnológicas (CASTELLS, 2010, p. 43).
A presença do computador e da internet e de outras tecnologias digitais em nossas
vidas é um divisor de águas que pode ser facilmente comprovado. Porto (2012) in Fantin e
Rivoltella, assim expressa sua visão e experiência com as TDIC:
Muito tenho aprendido e pesquisado. O computador, em especial a
internet, mudou a forma como vivo, trabalho e me relaciono com
os outros. Aprendi que o computador e seus aplicativos são
utilizados, na conexão e na comunicação com o mundo: fazem
parte de uma complexidade e multiplicidade de pessoas,
instituições, serviços, processos e segmentos da sociedade em
geral, sociedade esta que transforma as tecnologias, apropriando-se
delas, experimentando-as e modificando-as, segundo suas
necessidades e envolvimentos (PORTO, 2012, p. 169).
Nas nossas escolas o trabalho com tecnologias requer constante atualização,
qualificação e formação dos usuários, bem como, parecerias e convênios que garantam o
funcionamento continuo destes recursos. Não podemos correr o risco de capacitações
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individuais e isoladas, mas buscar um trabalho coletivo que possibilite criação, invenção e
configuração dinâmica para todos os trabalhadores da educação.
A presença das tecnologias nas escolas, ainda que fosse com todas as condições de
trabalho ideais, não deve ser tomada como salvação da educação. Barreto (2009) adverte
para esta questão, quando afirma:
Conferir ao simples acesso às TIC o lugar de redentoras da escola,
pela máxima de que, se, há tecnologia, há avanço, e onde há
avanço, há qualidade, novos paradigmas educacionais, melhor
preparo profissional, maior democratização da informação e do
conhecimento, maior justiça social, é admitir que não compete mais
ao professor as múltiplas dimensões do seu trabalho, mas talvez o
simples gerenciar de um tempo/espaço em que ele pode não estar
sequer inscrito como sujeito. Além disso, são creditadas às TIC
alternativas de sociabilidade, estabelecidas nas relações entre
cultura, sujeito e sociedade, e de aumento de empregabilidade, em
atendimento às demandas de um “mundo globalizado”
(BARRETO, 2009, p. 126).
Adorno (2002) no livro Indústria Cultural e Sociedade no capitulo que trata da
critica cultural e sociedade, é enfático para que não aceitemos quaisquer modismos sem
uma análise profundo da sua função para a sociedade. Acrítica cultural tem uma função
importante para a percepção de como e quais são os valores importantes para o humano na
sociedade tecnológica.
A crítica cultural encontra-se diante do último estagio da dialética
entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um
ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que
hoje se tornou impossível escrever poemas. Enquanto o espírito
crítico permanecer em si mesmo em uma contemplação
autossuficiente, não será capaz de enfrentar a reificação absoluta,
que pressupõe o progresso do espírito como um de seus elementos,
e que hoje se prepara para absorvê-lo inteiramente (ADORNO,
2002, p. 102).
No uso das TDIC na educação e na formação cultural, como ferramentas para a
busca de informação e conhecimento, é fundamental nos perguntar que humano estamos
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formando no interior de nossas escolas e na vida em sociedade. Em “Teoria Critica e
Crises: reflexões sobre cultura, estética e educação”, (2012) Brito nos alerta:
O ser cultivado está na ordem necessária de que o homem deve
saber escamotear de maneira bem educada o mal, a violência e a
barbárie, a fim de que seu egoísmo, sua sede pela competitividade,
pelo prazer do lucro, não sejam expostos de forma desavergonhada.
Este tipo de cultura não deixa de produzir os últimos-homens.
Assim, a instrumentalização do sistema afetou de forma cruel a
própria constituição formativa do homem, contudo, é importante
ressaltar que isso não significa que não possa ser modificada
(PUCCI, COSTA e DURÃO, 2012, p. 116).
Os trabalhadores da educação: professores, pesquisadores e gestores precisam estar
atentos para que as TDIC sejam utilizadas de forma critica e consciente como um meio de
instruir e formar sujeitos aptos a intervir na sociedade para uma transformação que nos
torne mais humanos e justos.
Neste sentido, vale a pena citar Pucci (2009) que afirma:
A realidade virtual, uma das criações mais espetaculares do mundo
fictício, inventado pelas novas tecnologias, está se instalando entre
nós e o mundo contemporâneo. Ela é, a partir de relação homemmáquina, a geração de um mundo artificial, em que o usuário pode
habitar, interagir, amar, sofrer, gozar e até pensar, um mundo
alternativo. Para muitos, a realidade virtual vai se tornando a sua
realidade do dia a dia (PUCCI, ALMEIDA e LASTÓRIA, 2009, p.
73).
O estudo analítico das TDIC nas escolas públicas poderá nos proporcionar outras
formas de interação, socialização e transmissão de informações e conhecimentos,
demonstrando que a cultura digital participa de nossa busca incessante por uma melhor
compreensão do mundo atual. Pensar criticamente essa realidade poderá nos ajudar a
construir novos projetos de educação básica em que o educador utilize estas ferramentas
para a critica dos que as criou e mercantilizou. Não obstante, essas mesmas ferramentas,
com a contribuição da Filosofia, Sociologia e Economia, podem contribuir para a
construção de uma “cidadania digital” na sociedade multicultural globalizada.
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Há uma grande interpenetração entre os diferentes recursos digitais e as redes
interativas de comunicação baseadas na internet. Como trabalhar com estes recursos de
forma critica, sem correr o risco de produzir semicultura, semicultos, de cair no engodo
desta indústria cultural mercantilizada, de aceitar o falso brilho da “racionalidade vazia”;
de construir uma falsa autonomia dos sujeitos; enfim de acentuar a semiformação e
semicultura e não construir uma formação para a emancipação da pessoa?
Adorno, na Teoria da Semicultura, já nos alerta:
Deste modo, a liberdade e a humanidade, em certo grau, perderam
sua força resplandecente no interior da totalidade que se
enclausurou num sistema coercitivo, já que lhes impede totalmente
a sobrevivência. Tampouco permanece sua obrigatoriedade
estética, pois as formas espirituais que encarnam são vistas como
algo esmaecido, cheio de frases e recheado de ideologia. Não
somente estão desregrados os bens da formação cultural para
aqueles que não são cultos, mas também em si mesmos por seu
conteúdo de verdade. A verdade não é atemporal, invariável, como
queria o idealismo, mas tem vida na dinâmica histórico-social,
como os homens, e pode esvanecer-se (ADORNO, 1972-1980, p.
07)
Nesta reflexão, busca-se um equilíbrio critico que conduza à autonomia dos
homens, levando em conta as condições a que se encontram subordinados “na produção e
reprodução da vida humana em sociedade”, de tal forma, que o espaço escolar possa
discutir a expansão da sociedade consumista, a imposição da indústria cultural, a perda da
dimensão emancipadora, as formas de dominação do sistema capitalista e construir um
projeto que busque a integração social, combatendo a semiformação que tem impedido o
desenvolvimento de uma pedagogia emancipadora em nossas escolas.
As políticas públicas voltadas para a formação docente precisam ser repensada para
a utilização das TDIC como ferramenta importante para uma prática educacional que
busque explorar os novos ambientes virtuais e reais que melhor conduza à formação de um
cidadão autônomo e participativo na vida social.
Referências Bibliográficas:
Programa de Pós Graduação em Sociologia
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17
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. Trad. Julia Elizabeth Levy. SãoPaulo: Paz e
Terra, 2002.
______. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1991.
______. Teoria da semicultura. In.: Educação e Sociedade. n 56, ano XVII, dezembro de 1996.
______. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
BARRETO, R. Goulart. Discursos, tecnologias e educação. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer e a dialética do esclarecimento. 2 ed. Rio de Janeiro:
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2012.
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1
FRANCISCO CAMPOS E A EDUCAÇÃO: a construção da sociedade de
massas no Brasil.
Rodrigo Pereira da Silva (UNESP)1.
[email protected]
GT3- Conflitos Sociais, Instituições e Política.
Resumo
O presente trabalho abarca o pensamento de Francisco Campos no que concerne a sua
concepção sobre a educação. O cenário social de 1920 é levado em consideração para ter maior
compreensão dos fatos ocorridos. A trinca de crises: crise econômica, política e social
corroboraram para os fatos ocorridos após a Revolução de 1930. A trajetória de Campos
relacionada à educação inicia quando atuava junto ao Governo de Antonio Carlos no final da
década de 1920. Após a Revolução, Campos assumiu o recém-criado Ministério da Educação e
da Saúde Pública e implantou reforma no sistema educacional que ficou conhecida como
Reforma Francisco Campos. O conjunto de ações tanto no âmbito mineiro quanto junto ao
Governo Federal representou o desenvolvimento do plano político de Campos. O trabalho tenta
assim, abordar o pensador e político mineiro sob a ótica da educação, mas sem deixar de lado a
dimensão política. Assim, a tentativa é demonstrar como as ações de Campos no campo
educacional permitiram a construção de uma sociedade moderna, que para o mineiro seria a
sociedade de massas.
Palavras chaves: Francisco Campos; sociedade de massas; Reforma Francisco Campos.
I. Apresentação
O presente trabalho é fruto do início de pesquisa que visa à elaboração de
projeto para doutorado. Neste trabalho há a tentativa de exploração do objeto principal
da pesquisa: Francisco campos. O pensamento de Francisco Campos em trabalhos
acadêmicos normalmente é abordado a respeito de seu pensamento político e sua
concepção de Estado. Aqui, a tentativa é de rever o pensamento de Francisco Campos
relacionado à educação e a construção da sociedade de massas, que para o político
mineiro, era o que representava a concepção de sociedade moderna em sua época e
pensamento.
A estrutura deste trabalho tenta seguir ordem cronológica a partir da década
de 1920 no sentindo de introduzir o cenário social da sociedade brasileira de forma
geral, passando pelos aspectos de organização do Estado brasileiro e sua relação com a
educação, situação econômica do país e como era o quadro educacional. A partir de
então, o trabalho segue tratando com Francisco Campos e educação, primeiro em sua
1
Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESPAraraquara.
Programa de Pós Graduação em Sociologia
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2
trajetória no estado de Minas Gerais quando contribuiu com o Presidente de Minas
Gerais Antonio Carlos a fazer reforma no sistema de base da educação. Depois o
trabalho prossegue durante a Era Vargas (1930-1945), dando ênfase ao período em
Campos foi Ministro a frente do Ministério da Educação e Saúde Pública.
A pesquisa está no campo do pensamento social brasileiro, e a metodologia
empregada foi a revisão bibliográfica, além da analise de documentos e discursos
produzidos por Francisco Campos. Há contribuição de autores como Jorge Nagle e
Celso Rui Beisegel para compreensão da situação educacional do período pelo trabalho
abordado, além de outros autores que serão mencionados no decorrer do texto e que
corroboram com a ideia central.
II. A sociedade brasileira na década de 1920.
A década de 1920 no Brasil foi momento que representou a busca pelo
moderno em diversos segmentos da sociedade brasileira. No campo das artes, das lutas
sociais e do pensamento social brasileiro do período a questão do Brasil moderno e
quais os caminhos necessários para alcançar o patamar de desenvolvimento da nação foi
debatido. O período apresentou trinca de crises formado pela crise social representada
pelo descompasso entre Estado e sociedade; crise política, sobretudo, no final do
período com a formação da Aliança Liberal e sua desembocadura na Revolução de
1930; e a crise econômica agravada com o Clash de 1929 e o alto endividamento do
Estado na prática da política de proteção ao café. A década de 1920 finda com o Estado
sendo questionado pelos movimentos sociais da época, crise hegemônica entre as
oligarquias e crise nas finanças públicas.
A composição da sociedade ao final da Primeira República contrastava
bastante do quadro apresentado em seu início no ano de 1891. O fim do trabalho
escravo e opção pela mão de obra branca europeia representou a tentativa de
branqueamento da sociedade brasileira (IANNI, 2004). Os imigrantes vieram para o
Brasil na recém-formada República para ocupar postos de trabalhos na indústria que
ainda era incipiente e na lavoura2. O trabalho assalariado e o complexo cafeeiro
2
De acordo com Perissiontto (1997) houve concorrência entre o setor urbano industrial e a lavoura. “Para
se ter uma ideia de como o setor urbano-industrial competia com a lavoura, basta notar que, em 1872, a
mão de obra estrangeira era de 109.455, e 52% estavam alocados na agricultura, 10.1% na indústria e
34.7% no setor de serviços. Já em 1920, o total era de 867.067, e 44.5% na agricultura, subindo o
percentual da indústria a 24.4%. O que indignava a lavoura era ter esse importante fator produtivo
absorvido por uma atividade artificial em prejuízo da vocação natural do país, isto é, agrária”. (p.59)
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3
fomentaram processo endógeno de crescimento. Junto dos trabalhadores também
chegaram novas ideias que semearam os movimentos sociais da década de 1920, e
movimentaram a luta pelos direitos sociais3.
A relação do Estado republicano brasileiro com a sociedade que estava em
plena modificação foi descompassada. A organização liberal proposta na Constituição
de 1891 garantiu o liberalismo econômico que prevaleceu nas relações externas, nas
relações internas, entre os setores que compunham a sociedade brasileira, sobressaía o
patrimonialismo4. No final da República outros segmentos da sociedade também
manifestaram posição contrária ao Estado.
[Os segmentos] irão posteriormente unir-se. Têm em comum o fato de
representarem oposição ao governo. O primeiro é das massas
populares, desempregadas, revoltadas, desalojadas de suas casas e que
vinham sofrendo cada vez mais a situação calamitosa; o segundo é do
grupo de políticos da oposição, com o apoio dos positivistas, e ligados
aos meios operários; o terceiro é de militares e alunos das Escolas
Militares, também de orientação positivista. Todos são hostis ao
governo. (CARONE, 1969, p. 43).
O clima de contestação foi resultado da ineficiência republicana em
melhorar a qualidade de vida da sociedade. O Estado liberal manteve a ordem social
ainda do tempo anterior, quando a sociedade vivia ordem escravocrata. O liberalismo
não conseguiu levar o desenvolvimento social, e gerou má condição de vida para os
trabalhadores. O clima entre Estado e movimento sociais era tenso e de repressão por
parte do poder público. Os movimentos sociais que surgiram na década de 1920
reivindicavam como ressalta CANO (2012), através de vários eventos (moções, greves,
manifestos, congressos, etc.) direitos trabalhistas como férias, jornada de trabalho,
trabalho do menor, acidente de trabalho, etc.- quase sempre eram acompanhadas de
3
Libertou forças econômicas e políticas interessadas na agricultura, na indústria e comércio. Favoreceu a
imigração de braços para a lavoura, povoadores para as colônias em terras devolutas e artesãos para a
indústria. Ao mesmo tempo, jogava na europeização, ou no branqueamento da população, para acelerar o
esquecimento dos séculos de escravismo. Recebeu, inclusive, o que não imaginava, em termos de ideias
sociais, propostas sindicais, anarquistas, socialistas e outras. Houve uma ampla fermentação de ideias e
movimentos sociais, principalmente nos centros urbanos maiores e nas zonas agrícolas mais amplamente
articuladas com os mercados externos. (IANNI, 2004, p. 20-21).
4
Octavio Ianni (2004) diz que esse patrimonialismo compreendia tanto o patriarcalismo da casa-grande e
sobrado como a mais brutal violência contra os movimentos populares no campo e na cidade.
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4
reivindicações de direitos civis, como liberdade de sindicato e de sua imprensa, voto
secreto, liberdade de reunião5.
A organização política permitiu que a oligarquia que estava no centro
decisório controlasse a máquina pública de acordo com interesses particulares6. O
federalismo permitiu a manutenção dessa classe no topo do poder. O poder coercitivo
do Estado através do coronelismo7 também corroborou para esse quadro. A
administração pública não obedecia a padrões de racionalização e o seu trabalho era
influenciado pelo mundo político numa relação de espólio. A administração pública, até
o governo Washington Luís, era mascarada pelo desempenho de funções
compensatórias e tentava absorver o excedente de mão de obra que provinha do sistema
produtivo do país, mas também possuía papel positivo, pois garantiu posição e função a
um significativo número de pessoas letradas. Desta maneira corroborou para a formação
de parte das elites nacionais. A burocracia estatal com seu padrão superior de
racionalidade, eficiência e organicidade ficaria debilitada devido à intimidade entre os
mundos privado e público.
III. A educação na década de 1920.
A relação de distancia da administração com os interesses da sociedade
brasileira estava presente em diversos ambitos. Na educação o quadro não era diferente.
O Governo Federal na Constituição de 1891 manteve a organização e a interpretação
desde o tempo do Império, quando a responsabilidade do ensino primário ficava a cargo
dos estados e o ensino superior seria de sua alçada. A República recebeu uma herança
marcada pelo fervor ideológico e sistemática tentativa de evangelização. Nesse período
democracia, federação e educação constituíram categorias inseparáveis apontando a
redenção do país (NAGLE, 2009).
5
Os direitos trabalhistas deveriam ter sido atendidos desde o Tratado de Versailles (1919) em que o
Brasil foi signatário, e comprometeu-se no âmbito internacional a adotar legislação trabalhista que
garantisse proteção aos trabalhadores perante a forte exploração do empresariado, mas foram postergados
graças à ação da burguesia (OSÓRIO, 1997).
6
O domínio do centro do poder ocorreu pela associação de interesses no inicio da República “... o que
venceu foi o interesse da cafeicultura do oeste paulista, em aliança com os dos canavieiros, pecuária,
seringais e outros, em diversas regiões do país. Prevaleceram os interesses de setores burgueses,
combinados com os preexistentes, remanescentes”. (IANNI, 2004, p. 21).
7
O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral,
bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental. O coronel é aquele que protege,
socorre, hominiza e sustenta materialmente os seus agregados, por sua vez, exige deles a vida, a
obediência e a fidelidade. É por isto que coronelismo significa força política e força militar. (CARONE,
1969, p. 67).
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5
O trato feito pelo Governo republicano na educação não permitiu a instrução
e alfabetização das massas. A educação servia para a manutenção da elite brasileira. O
quadro na década de 1920 demonstra alta taxa de analfabetismo, e durante a década o
debate sobre a educação é intensificado. Os discursos e apontamentos foram feitos por
pedagogos. O momento foi de efervescência ideológica e de inquietação social. O
analfabetismo era considerado responsável pelo atraso do país, porque desorganizava o
mercado criado pela produção capitalista que dava seus passos iniciais com a
industrialização (OLIVEIRA; CARVALHO, 2014).
A partir de 1915 iniciam-se as discussões e pressionamentos para um amplo
desenvolvimento do sistema escolar; começa um maior esforço para se incorporar ao
Estado liberal uma orientação intervencionista. O desejo intervencionista é manifestado
pelos próprios republicanos desiludidos com o próprio regime. Tratava-se de
“republicanização da República” através da difusão do processo educacional. Foi um
movimento tipicamente estadual, de matriz nacionalista e principalmente voltada para a
escola primária, escola popular. O nacionalismo toma força. Em 1916 é formada a Liga
da Defesa Nacional, possui dois focos de combate: combate ao perigo externo
representado pela cobiça internacional que caberia ao serviço militar; foco na instrução,
para combater o perigo interno, que se manifestava pela quebra da unidade e pelo
definhamento do patriotismo.
No ano de 1917 surge a Liga Nacionalista de São Paulo, menos vinculada
às preocupações militares e mais comprometida com os temas políticos. A Liga se
propôs a combater a abstenção eleitoral; as fraudes que corrompem e viciam o exercício
do voto; luta contra o analfabetismo, pois o analfabetismo no Brasil oferece condições
desoladoras e faz com que a vontade nacional seja substituída pela vontade da minoria
que fala, vota e determina. Alfabetizar representava a aquisição de direitos políticos,
pois só os letrados poderiam votar. No limite, os quadros do pensamento apresentam a
seguinte formulação: a ignorância reinante era a causa de todas as crises; a educação do
povo era à base da organização social; portanto, o primeiro problema nacional. A
difusão da instrução era a chave para a solução de todos os problemas sociais,
econômicos, políticos e outros.
O pensamento produzido pela reflexão da matriz nacionalista revelava uma
interpretação romântica, acreditava-se que a educação pudesse realizar um processo
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regenerador do homem, regenerador de toda a sociedade. Era sabido que as condições
econômica e financeira não propiciavam as condições necessárias para a tessitura de
uma sociedade aberta, assim como a questão oligárquica. As oligarquias só poderiam
ser combatidas pelo esclarecimento que a educação proporciona, pois elas se sustentam
graças à ignorância popular; fruto da falta de patriotismo e da ausência de cultura
“prática” ou de formação técnica, as dificuldades econômico-financeiras são eliminadas
por virtude da educação, formadora de caráter e das forças produtivas; os empecilhos à
formação de uma sociedade aberta encontram-se na grande massa analfabeta e na pouca
disseminação da escola secundária e superior, que impedem o alargamento na
composição das “elites”, bem como o necessário processo de sua formação.
Na década de 1920 as discussões saem do âmbito do Congresso Nacional,
alarga-se o grupo de profissionais interessado na temática da educação- é nessa época
que apareceram os “educadores profissionais”. Ocorreu o aumento do número de obras
a respeito da educação, provocados até pela criação do serviço editorial como a
Biblioteca de Educação e a Coleção Pedagógica. Ocorreram outras ações durante a
década de 1920 como:
Ano
Ação
1920
Criação da Universidade do Rio de Janeiro (a primeira universidade
brasileira)
1927
Criação da Universidade de Minas Gerais
1925
Reorganização da escola secundária e superior
1926
Reformulação da escola técnico-profissional
1920
Reforma Sampaio Dória, São Paulo.
1923
Reforma Lourenço Filho, Ceara.
1925
Reforma Anísio Teixeira, Bahia.
1927
Reforma Francisco Campos, Minas Gerais.
1928
Reforma Fernando de Azevedo, Distrito Federal.
1929
Reforma Carneiro Leão, Pernambuco.
1930
Reforma de Lourenço Filho, São Paulo.
Fonte: NAGLE, J. A educação na Primeira República.
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7
Os Estados procedem a administração escolar, bem como ao uso de
instrumentos de planejamento, como os recenseamentos escolares. Dá-se novo passo no
sentido de ampliação da rede e da clientela escolares.
No ano de 1922 foi emitido relatório que apresentou a situação lamentável
da educação. De acordo com os dados estatísticos da época a matrícula nas escolas
primárias em todo o país era de 1.030.752 alunos, a taxa de frequência era de 678.684
alunos, representando em números percentuais 29% da população escolar, embora em
alguns estados a frequência fosse distinta em relação à média nacional.
ESTADOS
FREQUÊNCIA
Distrito Federal
41%
Santa Catarina
43%
Rio Grande do Sul
44%
São Paulo
56%
Goiás
95%
Piauí
95%
Alagoas
94%
Fonte: NAGLE, J. A educação na Primeira República.
A precária situação fez despertar o interesse do Governo Federal e dos
Estados em alterar o quadro educacional, por isso se justifica as reformas ocorridas nos
estados durante a década de 1920. No estado de Minas Gerais presidido pelo Sr.
Antonio Carlos houve reforma educacional enquanto Francisco Campos era Secretário
da Educação no estado. O político mineiro, assim como outros ilustres políticos de sua
época, refletiu sobre a situação da nação e os caminhos necessários para o Brasil ser
uma nação moderna, desenvolvida.
IV. A Reforma mineira na educação.
Francisco Campos teve participação ativa como membro do campo político
e do pensamento social brasileiro. Suas ideias contemplavam a forma como deveria ser
organizado o Estado brasileiro, economia, sociedade e a educação. Sua visão era
autoritária, pois para ele, o Estado moderno seria o Estado autoritário capaz de trazer o
desenvolvimento econômico e social. Outros pensadores contemporâneos a Francisco
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8
Campos pensaram sobre as formas de organização da sociedade como: Oliveira Vianna,
Alberto Torres, Azevedo Amaral8.
O trabalho de Francisco Campos na frente da Secretária da Educação do
estado de Minas Gerais atuou no âmbito do ensino primário. A intenção nas palavras de
Campos era de “organizar a instrução em moldes simples e concisos, de modo a facilitar
e incrementar a sua intensa difusão”. A reforma na educação tinha como objetivo
invadir as escolas e perturbar
[...] sua ordem, e prática, os processos, o seu mecanismo, os seus
hábitos, a sua paz, a sua preguiça exigindo-lhes que se adaptem as necessidades do
mundo contemporâneo, aos imperativos de sua sciencia, da sua indústria, de seu
trabalho e da sua cultura. (CAMPOS, 1930 Apud CARVALHO, 2012).
A visão de Campos na educação era uma extensão de seu plano em relação
ao Estado. Na educação, Campos demonstrou ter uma visão libertadora alinhada ao
movimento escolanovista, porém, sem deixar de lado seu projeto político. O seu lema
era a educação para o que der e vier. Para o político mineiro a escola deveria fornecer as
ferramentas necessárias para que os desafios da sociedade moderna pudessem ser
enfrentados (MEDEIROS, 1978). Esse pensamento era alinhado ao seu projeto político,
uma vez que, para Campos, o Estado autoritário seria capaz de controlar as massas. A
sua reforma educacional em Minas Gerais propôs o que a natureza não poderia fazer: a
adaptar o indivíduo ao controle social, subordinação aos poderes naturais e a regras
sociais (CARVALHO, 2012), assim, de acordo com Campos estaria adaptado à vida
moderna.
A reforma tinha como missão levar a modernização educacional ao estado
mineiro. Essa modernização era de acordo com os parâmetros políticos de Campos e do
Presidente de Minas Gerais, Antonio Carlos. No período de 1927 a 1930 a educação foi
um dos principais assuntos de ambos. Apresentando ideário republicano projetavam
para a educação a função de promover o progresso e modernização do país, em especial
de Minas Gerais (OLIVEIRA; CARVALHO, ano). A modernização era necessária
devida à precariedade das escolas estaduais e pela modernidade que a implantação da
Reforma traduziria.
[...] a escola primária como instrumento de educação, tal o postulado
sobre a qual v. excia. annunciou, deveria descançar „a reconstrução‟ do
apparelhamento do ensino publico em Minas. Este o princípio que norteou „a
8
Sobre as ideias dos pensadores sociais supracitados ver: MEDEIROS, J. A ideologia autoritária
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9
reforma‟ que hoje tenho a honra de propor á consideração de v. Excia (CAMPOS,
1930, p. 11 apud CARVALHO, 2012, p. 189).
Após atuar no plano interno da política mineira Francisco Campos9
trabalhou para articular a aliança entre as oligarquias mineira e gaúcha para a formação
da Aliança Liberal. O Governo Provisório (1930-1934) instaurado após a Revolução de
1930 reformulou o Estado, criou novas instituições dentre as quais estava o Ministério
da Educação e Saúde Pública. Francisco Campos foi Ministro implantou ampla reforma
no sistema educacional, e que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos.
V. A educação durante a Era Vargas.
A gestão de Getúlio Vargas a frente do Governo Federal foi centralizadora
do ponto de vista político e administrativo. A estrutura montada pelo Governo através
de decretos dotou o Estado brasileiro de poderes que até então não lhe eram garantidos.
O Estado brasileiro foi construído de maneira forte, centralizadora e com capacidade
para desempenhar políticas nacionais.
O campo educacional também sofreu os efeitos do mundo político através
das ações do recém-criado ministério. Francisco Campos levou até o Presidente Vargas
diversas medidas para serem sancionadas. O significado das propostas de Campos
estava profundamente articulado com as tensões e os conflitos liberados pela crise
econômica e política que se objetivou durante aquele período. O novo quadro
institucional gerado pela chegada do novo Governo varguista foi terreno fértil para a
gestação de políticas educacionais em nível nacional.
Francisco Campos por onde atuou sempre manteve seu plano político e
ideológico. Na atuação no MES, as reformas, as alianças, sua intensa atividade em
articulações políticas no estado mineiro e no âmbito do Executivo Federal apontaram
seu projeto político e ideológico. O campo da educação foi mediação privilegiada para o
fortalecimento de suas posições.
9
A escolha de Francisco Campos como ministro foi uma escolha política. “As forças revolucionárias
mineiras, tendo à frente o presidente Olegário Maciel, se sentiram prejudicadas na divisão dos
ministérios. Até aquele momento, apenas Afrânio de Melo Franco representava Minas Gerais no novo
governo, ocupando o Ministério das Relações Exteriores. Embora os mineiros ambicionassem o
Ministério da Justiça, a pasta política por excelência, já estava ocupada por Osvaldo Aranha. Um acordo
superou a crise e Minas Gerais "ganhou" o Ministério da Educação e Saúde Pública, recém-criado pelo
Governo Provisório e que durante todo o período Vargas foi efetivamente ocupado por mineiros:
Francisco Campos, Belizário Pena, Washington Pires e Gustavo Capanema” (Moraes, 1990, p.299).
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A Reforma Francisco Campos10 permitiu a construção de um aparelho
nacional de ensino, com códigos e leis elaboradas tendo em vista estabelecer diretrizes,
normas de funcionamento e formas de organização para os diversos ramos e níveis da
educação no país. As medidas tomadas pelo MES permitiram o fornecimento de uma
estrutura orgânica ao ensino secundário, comercial e superior. Era a primeira vez na
história da educação nacional que uma reforma se aplicou a vários níveis de ensino e
objetivava alcançar o país todo.
O novo Governo e seus componentes pensavam em construir a nação
através de suas ações políticas. No discurso de posse no MES Campos disse que o
Brasil não era mais um país de liberais, mas de produtores, e era preciso moldar o
sistema de ensino a nova realidade (MORAES, 1992). As ideias políticas e educacionais
refletiam a crença de que a reforma da sociedade seria feita junto à reforma da escola,
tal como a necessidade de formação adequada de cidadãos e da produção e
modernização das elites11.
A Reforma Francisco Campos implantou um sistema de ensino
dicotomizado e demonstrou a influencia positivista em seu pensamento. Na escola
primária tratou-se de formar o futuro cidadão, o trabalhador disciplinado e adaptado ao
meio social, com seu caráter moldado de acordo com a “ordem intelectual e moral
reconhecida, a um dado momento, como ordem necessária e natural a convivência
humana” (CAMPOS, 1930, p. 15 apud MORAES, 1992, p. 297). Já a universidade era
destinada a formação das elites, de cuja inteligente solução dependerá o futuro das
instituições políticas brasileiras12. No limite, a Reforma acabou por estabelecer na
10
A Reforma foi efetivada através de uma série de decretos expedidos pelo MES e sancionados pelo
Presidente Vargas. 1. Decreto nº 19.850, de 11 de abril de 1931, que criou o Conselho Nacional de
Educação; 2. Decreto nº 19.851, da mesma data, que dispôs sobre a organização do ensino superior no
Brasil e adotou o regime universitário; 3. Decreto nº 19.852, também da mesma data, que dispôs sobre a
organização da Universidade do Rio de Janeiro; 4. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931, que dispôs
sobre a organização do ensino secundário; 5. Decreto nº 19.941, de 30 de abril de 1931, que instituiu o
ensino religioso como matéria facultativa nas escolas públicas do País; 6. Decreto nº 20.158, de 30 de
junho de 1931, que organizou o ensino comercial e regulamentou a profissão de contador; 7. Decreto nº
21.241, de 14 de abril de 1932, que consolidou as disposições sobre a organização do ensino secundário.
(MORAES, 1992, p. 295-296)
11
O Governo Provisório, aliás, não descuidou da formação das elites tomando as medidas necessárias para
a instituição do sistema universitário no Brasil (Decreto nº 19.851). Não obstante as ambiciosas palavras
que podem ser lidas no decreto que instituiu o Estatuto das Universidades Brasileiras, a universidade foi
concebida mais como um instrumento político do que como um espaço para a produção científica.
(MORAES, 1992, p. 298).
12
Esse pensamento de Campos está de acordo com a sua visão sobre a administração pública do Estado
por ele idealizado. Campos acreditava que uma elite técnica seria capaz de tomar as decisões corretas para
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11
prática o antigo projeto de educação diferenciada, uma educação para pensar e outra
para produzir.
A educação para produzir era para formação daqueles destinados “aos
grandes organismos econômicos que regulam, nutrem e enriquecem as nações”
(CAMPOS, 1940, p. 130 apud MORAES, 1992, p. 305). Para eles havia a modalidade
do ensino profissional ao qual, Campos, atribuía a função de preparar elites para o
mercado. Foi com essa finalidade que havia transformado “o antigo ensino comercial
em vários cursos técnicos, dando como cúpula ao edifício o curso superior de economia
e finança” (CAMPOS, 1940, p. 130 apud MORAES, 1992, p. 305). Mas a rígida
estrutura de ensino praticamente impedia que as elites para o mercado matriculadas nos
cursos profissionais tivessem acesso à universidade. Assim, a Reforma Francisco
Campos marginalizou inteiramente o ensino primário e normal.
As medidas tomadas a frente do MES foram o inicio de medidas
centralizadoras que refletiram o contexto político e social da época. A Constituição de
1934 deu continuidade a essa orientação centralizadora. Fernando de Azevedo fez
observações quanto os dispositivos constitucionais relacionados à educação, e que
definiam as orientações que prevaleceram:
Estabelecendo ao Governo Central caberia “fixar um plano nacional
de educação compreensivo de todos os graus e ramos, comuns e especializados, e
coordenar e fiscalizar a sua execução em todo o território do país” (art. 150),
criando o Conselho Nacional e os Conselhos Estaduais de Educação (art. 152) e
determinando a aplicação de nunca menos de 10% da parte dos Municípios e nunca
menos de 20% da parte dos Estados, da renda resultante dos impostos, na
“manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos” (art. 156), a
Constituição de 16 de julho de 1934 fazia o país entrar numa política nacional de
educação de conformidade com os postulados e as aspirações vitoriosas na
Conferência de Niterói, em 1932, e no manifesto dos pioneiros pela reconstrução
educacional do Brasil. (AZEVEDO, 1958, p. 691-692 apud BEISEGEL, p. 479).
Na Constituição de 1937 prevaleceu a organização de 1934. A Constituição
que abriu caminho para o período do Estado Novo (1937-1945) foi escrita por Francisco
Campos, em um momento de sua trajetória que ele ficou conhecido como reformador,
pois reformou diversos códigos constitucionais. Para Campos, a Constituição de 1937 é
o Estado brasileiro colocando a vontade da nação acima de qualquer vontade pessoal. Assim, a
administração estaria dotada da elite técnica do país. A partir de 1934 foi instituído o concurso público,
este que seria o meio racional de seleção dos candidatos mais aptos a servir o Estado dentro do corpo da
elite formada pelo sistema educacional.
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que realizava a Revolução de 1930, pois, segundo o mineiro uma Revolução só teria
efeito se mudasse o sistema econômico, político ou social, e para ele a Constituição de
1934 foi apenas uma revisão da Carta Constitucional de 1891 (MEDEIROS, 1978).
Francisco Campos depois abandona o Governo Federal alegando que havia tornado uma
ditadura particular de Vargas. Assim, encerrava sua contribuição direta à política e a
educação.
VI. Conclusão
O trabalho de Campos como político e o contexto social da época permitiu
que ele colocasse em prática seu projeto político para o país. Sua visão era autoritária
sobre a forma do Estado brasileiro. O seu projeto para educação demonstrou estar ligado
ao projeto político por conta das ações centralizadoras, das reformas educacionais tanto
em Minas Gerais quanto no Governo Federal. A construção da sociedade moderna, que
em sua visão era a sociedade das massas demonstrava o pensamento social da época e
de seus pares que viam na educação o papel de transformar a sociedade.
A nova massa de letrados foi absorvida pelo mercado e pelo Estado. O
poder público foi reforçado, novas instituições foram criadas. Houve processo de
racionalização, sobretudo após 1937, quando as mudanças sofrem influência weberiana.
O concurso público instituído em 1934 começou a partir de 1936 com a criação do
Conselho Federal do Serviço Público Civil, anterior a criação do DASP (1938). Assim,
o Estado adotou dispositivos para a seleção dos candidatos mais aptos dentre a elite
formada pelas instituições de ensino.
A grande massa de trabalhadores, a qual Campos chamava de elite para
produzir, foi ocupar os postos de trabalhos na indústria e viu durante o período Vargas o
processo de industrialização do país e do desempenho de capitalismo autárquico.
Segundo Oliveira, a entrada dessa massa de novos trabalhadores contribuiu para a
industrialização, pois, serviu como exército industrial de reserva e fez que houvesse
regulação dos salários.
No limite, o pensamento de Campos sobre a educação refletiu sua
idealização do homem social para o modelo de Estado autoritário que ele almejava. O
fato de possibilitar a educação não significava a liberdade, mas sim a adaptação das
massas a ordem social por Campos considerada como moderna. O Estado autoritário é
que seria capaz de lidar com as grandes, e a educação proporcionada por esse Estado
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atuaria para fornecer as ferramentas necessárias para lidar com os problemas modernos,
além de fazer com as massas entendessem a ordem estabelecida. A nova ordem social e
estatal permitiria levar o Brasil a um patamar de nação desenvolvida, dotaria o Estado
com elite técnica capaz de tomar as decisões necessárias e faria com que a indústria
tivesse mão de obra qualificada para os postos de trabalhos. Além disso, como diz
Pécault (1990), permitira que Francisco Campos e sua claque continuassem a ocupar o
centro de poder da política nacional brasileira.
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