atrama das humanidades - olhares-discursos
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atrama das humanidades - olhares-discursos
A TRAMA DAS HUMANIDADES Olhares Discursos Intervenções Ariane Pereira Everly Pegoraro Jane Drewinsky Manuel Moreira Milton Stanczick Filho (Orgs) A TRAMA DAS HUMANIDADES Olhares Discursos Intervenções Ariane Pereira Everly Pegoraro Jane Drewinsky Manuel Moreira Milton Stanczick Filho (Orgs) Projeto gráfico e capa: Waldecir Kurpias Revisão: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira Ficha Catalográfica T771 A TRAMA das humanidades: olhares, discursos, intervenções / Organização de Ariane Pereira, Everly Pegoraro, Jane Drewinsky, Manuel Moreira e Milton Stanczick Filho . – – Guarapuava: Unicentro, 2010. 470 p. : il. Inclui bibliografia. Diversos autores. ISBN 978-85-7891-068-6 1. Ciência da comunicação. 2. Comunicação social. 3. Educação – Tecnologia . 4. Mídia. 5. Jornalismo. I. Autores. II. Organizadores. III. Título. CDD 302 Ficha catalográfica elaborada por Regiane de Souza Martins -CRB9/1372. SUMÁRIO Apresentação O caráter das humanidades e sua articulação na era tecnológica por Manuel Moreira da SILVA, 07 Parte I: Ética, Tecnologia e Educação 1. Reflexões sobre o EaD no contexto das novas tecnologias da Educação Zinara Marcet de Andrade NASCIMENTO, 23 2. Ética, Educação e as novas tecnologias Alessandro de MELO, 53 3. Ética, tecnologias de educação e natureza humana: ou sobre a emergência de uma nova humanidade os desafios de sua formação Manuel Moreira da SILVA, 71 Parte II: Estudos Culturais e Humanidades 4. O sujeito professor no discurso das propagandas governamentais: interdiscurso e construção da identidade Adriana Dalla VECHIA, Luciana Ferreira DIAS, 93 5. Base-superestrutura: modos de usar Rodolfo LONDERO, 113 6. A festa das cavalhadas em Guarapuava Carlos SCHIPANSKI, 141 7. Produção de antologias de ensaios sobre o Brasil: identidade e diferença Luciana Ferreira DIAS, 161 SUMÁRIO Parte III: Crítica Literária, Estética e Contexto Social 8. Murilo Rubião: uma perspectiva contemporânea Giuliano HARTMANN, 187 9. Realidade, Kant e jornalismo gonzo Evandro BILIBIO, 209 10. Casamento à vista: as crescentes relações sobre arte e mídia Marcio FERNANDES, 229 Parte IV: Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal 11. Arte para todos: a humanização e o desafio do acesso livre à produção artística Maria Inês PEIXOTO, 245 12. Debate sobre arte contemporânea e formação do público Adriana VAZ, 271 13. Maximalização sonora: meandros da estética musical contemporânea Daiane da CUNHA, 291 14. Aspectos da Performance Art, Happening e Body Art - possibilidades de registro e apropriação de universo pessoal Clóvis CUNHA, 319 SUMÁRIO Parte V: A Mulher na História e na Mídia 15. Mulheres do além-mar lusitano e suas estratégias de bem viver. Curitiba (19651805) Milton STANCZIK FILHO, 343 16. O lugar da mulher e de sua sexualidade no Brasil colônia Carmen DIEZ, 379 17. Discurso, gênero e mídia Níncia Cecília Ribas BORGES, 401 Parte VI: Mídia e Linguagem 18. Jornalismo ambiental nas páginas de Veja: uma análise discursiva Ariane PEREIRA, 415 19. Ciências Humanas: pesquisa em Comunicação e Linguagem Francismar FORMENTÃO, 435 20. Globalização e regionalização da mídia brasileira Anamaria FADUL, 459 PREFÁCIO Na sociedade atual, as esferas culturais, educacionais, econômicas, políticas, científicas são interligadas, de forma que nenhuma pode ser compreendida profundamente ao ser isolada das demais. Qualquer ação realizada em uma dessas esferas reflete sobre as restantes. Diante da era do conhecimento e dos avanços tecnológicos, as Humanidades tratam o conhecimento como um bem inviolável que procura não se deixar enganar pela informação. Suas relações com o conhecimento são sempre formas de exercício da possibilidade, por isso a área das Humanidades não postula nenhuma certeza, mas se propõe a investigar aspectos dos fatos humanos em todas as variáveis que possam se transformar em matéria do saber, considerando o ser humano como matéria-prima de suas investigações. A área das Humanidades é composta por todos os núcleos dos saberes que saem do homem como objeto de estudo e voltam para o homem como objeto do conhecimento. São eles: saberes psicológicos, sociológicos, antropológicos, filosóficos, econômicos, administrativos, judiciários e linguísticos, literários, artísticos ou estéticos. Estes se abrem à análise e à interpretação do homem e das suas relações, caracterizam-se por tratar da busca de invariantes em fenômenos do comportamento humano que são essencialmente mutáveis e imprevisíveis. Nisso reside a sua complexidade e, ao mesmo tempo, seu fascínio. As faculdades que o humanismo pretende desenvolver são a 05 capacidade crítica de análise, a curiosidade que não respeita dogmas nem ministérios, o sentido de raciocínio lógico, a sensibilidade para apreciar as mais altas realizações do espírito humano, a visão de conjunto, face ao panorama do saber. Para António Fidalgo (2007), o espírito que preside as humanidades corresponde a uma formação humanística que possibilita ganhar bagagem e competência para atingir setores variados, o que importa é aceitar novas formações que buscam e de que precisam o saber e a sabedoria das clássicas disciplinas da palavra. Desse patrimônio nada se perde, o que importa, porém, é renová-lo, usá-lo no dia a dia das atividades culturais e sociais contemporâneas e abri-lo aos desafios permanentes com que se veem confrontados. A coletânea de textos A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções é resultado do fórum de debates organizado pelo Setor de Humanas, Letras e Artes da Unicentro e se apresenta de modo unívoco, existe uma multiplicidade de vozes que compõem os diferentes discursos sobre o mundo e que tecem a complexa trama da vida cotidiana. À medida que esses discursos se ampliam, aumentam as informações e conhecimentos acerca do mundo. Dessa forma, ao se ter uma maior compreensão das múltiplas interconexões que se estabelecem na constituição do conhecimento, será possível atravessar as fronteiras disciplinares, de modo a apreender a complexidade do ato educativo e a complexidade do mundo contemporâneo. Dra Nincia Cecília Ribas Borges Teixeira 06 APRESENTAÇÃO O caráter das humanidades e sua articulação na Era tecnológica A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções reivindica para si a tessitura do Humano na época de hoje; essa caracterizada especificamente por apresentar-se nos quadros de uma transição que teima em jamais terminar. Época, tessitura e transição que, como o fio de Ariadne, desfaz o próprio Humano de sua trama milenar, exigindo deste, qual Sísifo rolando sua pedra, que teça novamente toda a malha de seu ser – este que, como o ser próprio do Humano, ou o ser humano ele mesmo, é o que não é e não é o que é. Uma nova tessitura cuja trama, no entanto, não se fixa em nada outro que ela própria e seu desvanecer, fazendo-se, pois, enquanto olhares, discursos, intervenções... A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções aqui em questão concebe-se como a tessitura possível e real, virtual e atual das humanidades, então, em transição. Não só as Humanidades como tais, essa a nomenclatura que – justamente por se impor enquanto plural – apesar de unir, mais propriamente, mantém o Humano ele mesmo dilacerado em seus múltiplos registros enquanto objeto formal das chamadas ciências humanas, 07 mas também as próprias humanidades em seu caráter a um só tempo empírico e transcendental, em sua recíproca disputa pelas mentes daqueles que, ainda em seu processo de formação, a elas podem ou não aderir. Tal é o que, em suas linhas gerais, o presente volume visa explicitar ou, antes, deixar falar e deixar ver, olhar, dis-cursar, inter-vir... A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções, essa que aqui se apresenta, compõe-se, então, de seis partes, melhor, de seis camadas de fios e tecidos em sua trama. Na primeira camada, está em questão o domínio mesmo do Humano; no caso, de suas dimensões éticas, antropológicas e ontológicas, as quais, nos dias de hoje são cada vez mais e mais postas em xeque. De certo modo, segundo certa concepção do Humano, essa camada poderia mostrar-se como fundamento das demais; porém, pelo menos aqui, ela se constitui mais propriamente como a pele a mais tênue de um corpo que, poder-se-ia dizer, quanto mais se quer sem órgãos, mais dependentes destes e de sua fragilidade se torna. Tal camada ou parte intitula-se Ética, Tecnologia e Educação e se volta para o fenômeno das chamadas novas tecnologias da educação. Abrindo, pois, a trama que, então, urde-se, o texto Reflexões sobre o EAD no contexto das novas tecnologias da educação, de autoria de Zinara Marcet de Andrade Nascimento, discute o avanço da ciência e da tecnologia, bem como as mudanças substantivas na área da educação possibilitadas por esse avanço – em especial a Educação à Distância, ou simplesmente a EAD. Em sua 08 análise, a autora critica a concepção e o uso desta modalidade de ensino enquanto instrumento de acumulação de capital, defendendo-a, ao contrário, como recurso de qualificação para a inserção profissional da classe trabalhadora. Questionando inclusive esse aspecto, Ética, educação e as novas tecnologias, de Alessandro de Melo, visa por em xeque o caráter supostamente socializador de conhecimentos das novas tecnologias tal como defendido pelos seus entusiastas; além disso, este segundo texto ainda busca denunciar o caráter de fetiche das mesmas, as quais, ao contrário de uma solução para todos os males da educação, estariam na verdade servindo como mistificação e, por isso, como instrumento de alienação dos educadores. Mostrando como que a relevância de ambas as direções, mas também certos limites a elas imanentes, Ética, tecnologias de educação e natureza humana, de Manuel Moreira da Silva, põe-se à tarefa de pensar justamente a emergência de uma nova humanidade e os desafios de sua formação. Trata-se, pois, neste caso, de um questionamento filosófico em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes ao uso das novas tecnologias de educação, bem como, para além de tal uso, sobre as suas conseqüências no tangente à natureza humana em geral e à formação humana em especial. Para este autor, as conseqüências do uso massivo das novas tecnologias de educação já se mostram como que assimiladas, pelo menos em suas linhas gerais, pelas consciências de formação mediana; o que exige, por 09 conseguinte, a determinação dos limites éticos, antropológicos e ontológicos das novas tecnologias de educação, bem como a discussão de suas conseqüências no concernente à natureza humana como tal, tendo em vista justamente a integração cada vez maior entre o orgânico e o artificial, do humano e do tecnológico. Nesse sentido, o autor propõe um novo conceito de Tecnologia de Educação, distinguindo, como seus momentos, as atuais e usuais tecnologias de ensino e as essenciais – mas ainda meramente possíveis – tecnologias de formação. Sobre essa primeira camada, assenta-se uma segunda, constitutiva, portanto, da segunda parte desta obra e assim intitulada: Estudos Culturais e Humanidades. Nesta e nas duas outras camadas que a seguem perfaz-se a um só tempo os aspectos universal e particular da trama aqui em jogo: do elemento universal sobrevém o caráter mesmo do Humano e os conflitos que o instauram; do elemento particular, as múltiplas e as mais diversas determinações nas quais e pelas quais o Humano ele mesmo se constitui. Desse modo apresentam-se em sua identidade e em sua diferença os seguintes textos: O sujeito professor no discurso das propagandas governamentais, de Adriana Dalla Vechia e Luciana Ferreira Dias, que discute questões relativas ao interdiscurso e à construção da identidade; Base-superestrutura: modos de usar, de Rodolfo Londero, que explicita os usos metodológicos considerados adequados das categorias chave do Marxismo em contraposição a certas apropriações do modelo marxiano pelos expoentes dos 10 chamados Estudos Culturais; A festa das cavalhadas em Guarapuava, de Carlos Shipanski, uma espécie de resposta ao texto anterior na medida em que se baseia na tradição local, desta buscando extrair os elementos explicativos e mesmo constituintes do objeto investigado, ainda que, de um modo ou de outro, pressuponha certo arranjo categorial nos moldes acima aludidos. Encerrando esta segunda parte, Produção de antologias de ensaios sobre o Brasil: identidade e diferença, de Luciana Ferreira Dias, discute questões de identidade e diferença na constituição da brasilidade a partir das antologias Nenhum Brasil existe (de João Cezar Rocha) e Morte e progresso (de Francisco Foot Hardman), considerando seus processos de formulação, constituição e circulação, assim como os efeitos de sentidos que tais antologias produzem. Neste mesmo sentido, mas agora no âmbito de uma nova camada, intitulada Crítica Literária, Estética e Contexto Social, a qual se sobrepõe à segunda, perfazendo assim a terceira parte da presente publicação, os três textos que seguem buscam tematizar justamente o desenvolvimento da produção literária em seu confronto com a realidade ou, mais especificamente, com o contexto social no qual a mesma se produz. Desse modo, em Murilo Rubião: uma perspectiva contemporânea, Giuliano Hartmann propõe uma leitura da narrativa contemporânea de Murilo Rubião à luz das teorias de Umberto Eco, evidenciando as relações dialéticas dentro e fora do texto, reconduzindo-as, porém, para o âmbito da 11 afirmação do caráter inultrapassável daquilo que a estrutura narrativa comporta. Já em Realidade, Kant e Jornalismo Gonzo, Evandro Bilibio põe em questão a possibilidade mesma de um discurso objetivo sobre o mundo, assim como o apelo da mídia em geral, via jornalismo, para o fato de poder apresentar um discurso objetivo do mundo. Retomando Thompson, jornalista norteamericano que zombou literalmente de tal possibilidade, o autor pretende mostrar que o criador do jornalismo gonzo está certo e que é uma ilusão julgar ser possível construir um discurso objetivo do mundo; Kant, filósofo alemão de fins do século XVIII é também retomado pelo autor justamente para mostrar esta impossibilidade. Enfim, a terceira camada se conclui como que sob a forma de um contraponto às teses discutidas nos textos anteriores, precisamente com Casamento à vista: as crescentes relações sobre arte e mídia, de Marcio Fernandes, que discorre sobre as crescentes relações entre Arte e Mídia, relações que, segundo o autor, estão provocando o fim das fronteiras entre estas. Passando-se em seguida à quarta parte dessa trama das humanidades, intitulada Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal, conclui-se o perfazer dos aspectos acima aludidos; busca-se agora compreender artística e esteticamente o elevar-se do particular mesmo ao universal, afirmando-se, pois, a universalidade da pessoa naquilo que ela tem de mais especificamente seu, vale dizer, seu próprio caráter universal e, com isso, seu universo propriamente pessoal. Essa quarta parte se abre então com o texto Arte para 12 todos: a humanização e o desafio do acesso livre à produção artística, de Maria Inês Peixoto, que parte da constatação de que, nas sociedades regidas pelo sistema capitalistas, a área das artes, assim como a da cultura em geral, não constitui prioridade dos governos, mas que, entretanto, o comércio de arte floresce. Para explicar este fato, a autora retoma alguns dos aspectos fundamentais da história da Arte e de sua administração, mostrando que a arte constitui uma arma construtiva poderosa na luta para “a superação do homem desumanizado-atomizado no processo produtivo, com vista à sua humanização e à construção de uma 'sociedade plenamente constituída'” e, enfim, lançando aos artistas e à sociedade organizada o desafio de “desmitificar o campo das artes como produção de poucos “iluminados” para outros poucos econômica e ou culturalmente aquinhoados, para promover o acesso livre e irrestrito: a arte para todos!”. Em outro viés, mas de certo modo em diálogo com o texto anterior, em Debate sobre arte contemporânea e formação do público, Adriana Vaz põe-se como objetivo compreender a formação do público consumidor de arte e suas práticas, frente aos pressupostos teóricos da arte moderna e contemporânea, considerando, de um lado, que o tipo de arte exposta define o público, e, de outro, que seu principal mediador é a educação. No entanto, ao invés de uma reflexão de caráter engajado, a autora questiona as condições de ascensão do público, na contemporaneidade, de passivo ou meramente contemplador, a co- 13 autor; em suma, Adriana Vaz defende o ponto de vista segundo o qual mais do que responder às questões então postas, o professor deve estar apto a perceber e identificar que cada produção exige um perfil específico de público. Como cerne de tal discussão, podese dizer que se apresenta o problema da contradição entre a maximalização sonora e a imbecilização musical na contemporaneidade; esse desenvolvido em Maximalização sonora: meandros da estética musical contemporânea, de Daiane da Cunha, que, a partir de Adorno, busca compreender a arte musical numa perspectiva da época e do homem na nova ordem social do mundo contemporâneo, mostrando que elementos como cultura de massa, poder dos meios de comunicação e novas manifestações estéticas na área musical evidenciam a pluralidade de estilos e técnicas composicionais, justapondo assim fenômenos tão díspares como a maximalização sonora e a crescente imbecilização musical da contemporaneidade. A autora mostra ainda que, ao contrário de tal imbecilização prenunciada pela sociedade de consumo, a música maximalista insere-se na trajetória estética musical pós-tonalista, ampliando as possibilidades de escuta e produção sonora, configurando não o público musical, mas um público dentre os possíveis numa sociedade multicultural. Por fim, Aspectos da performance art, happening e body art - possibilidades de registro e apropriação de universo pessoal, de Clóvis Cunha, tematiza a natureza híbrida da linguagem performática e sua constituição a partir de contribuições de áreas 14 diversas como filosofia, rituais tribais, jogos esotéricos, tecnologia, artes etc. Aqui, diferentemente do que está em jogo nos textos já referidos, afirma-se justamente o interesse de “distanciar”, ou melhor, de dificultar o acesso do espectador à ficção, à fábula; exemplo disso, de acordo com o autor, é o caso de Gerald Thomas, que se apropria do conteúdo pessoal dos atores na construção de seus espetáculos, mas também insere ou traz à cena o seu próprio conteúdo pessoal. Por fim, no dizer de Clóvis Cunha, afirmando sua presença não ficcional sobre a cena, como também faz o performer, de forma espontânea ou induzida, por apropriação, o diretor marca a influência de linguagens performáticas na construção da cena contemporânea, as quais se apresentam como características relevantes do teatro de nosso século. Tal como as três últimas camadas, que se perfazem em um todo e assim se reatam à primeira, também as duas próximas desenvolvem temas e problemas específicos que, por sua universalidade, se impõem como elementos indispensáveis da trama ora tecida. Agora, de modo mais acentuado que na camada anterior, a questão do universo pessoal se impõe nos quadros da quinta parte, A Mulher na História e na Mídia, a qual busca por em diálogo a História e Mídia no que respeita à questão específica da Mulher e o caráter universal de sua atividade, essa determinada tanto social quanto historicamente, tanto espacial quanto temporalmente. Neste sentido, em Mulheres do além-mar lusitano e suas estratégias de bem viver. Curitiba (1765-1805), Milton 15 Stanczik lança um olhar sobre os caminhos mais recorrentes utilizados pelas mulheres setecentistas para obter privilégio, prestígio e distinção, mais especificamente para aquelas que amealharam bens nos sertões curitibanos; atento ao fato de que, muitas vezes, pobreza e prestígio caminham lado a lado, o autor analisa as atividades que duas mulheres tiveram durante a vida – tendo em vista seu patrimônio – e em quais garantias se apoiavam para adquirir um determinado cabedal, seja ele simbólico ou material. Seguindo em suas linhas gerais essa mesma perspectiva, O lugar da mulher e de sua sexualidade no Brasil colônia, de Carmen Diez, tem por norte realizar uma arque-genealogia dos lugares femininos no Brasil Colonial a partir dos discursos sobre a mulher, discursos que elaboraram um controle da sexualidade coetaneamente com a edificação da imagem de fragilidade feminina. Partindo da noção foucaultiana de 'biopoder' e, consequentemente, da duplicidade da relação de poder aí envolvida, a saber, que o “biopoder sobre os corpos tratou de proclamá-los como corpos recolhidos e encobertos, mas na verdade, incitou-os à sexualidade”, a autora afirma que “a propalada fragilidade da mulher, não obstante ser cantada em prosa e verso, prestou-se apenas ao reforço sexista”, buscando então desmistificá-la. Fechando essa quinta parte, Discurso, gênero e mídia, de Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, busca compreender o processo da determinação cultural e histórica das relações de 16 gênero, porém, reconduzindo sua discussão para os meios de comunicação, os quais, segundo a autora, desempenham um papel nodal na cultura contemporânea e oferecem, assim, importantes elementos lingüísticos e discursivos que permitem analisar os vestígios que atravessam e constituem os movimentos identitários da mulher. Desse modo, a quinta camada permite passar imediatamente à sexta na medida em que, se naquela estavam em jogo as relações entre Mídia e História, ainda que mediante o caso concreto das questões de gênero, agora estará em jogo precisamente as relações entre Mídia e Linguagem, sendo seu elemento mediador precisamente questões de cunho ético, científico e tecnológico, fazendo assim com que se perfaça em sua inteireza a trama assim tecida. Nessa perspectiva, Jornalismo ambiental nas páginas de Veja: uma análise discursiva, de Ariane Pereira, discute o “binômio esperança-desesperança” no discurso da referida revista entre 2003 e 2008; binômio que se exprime, de um lado, na preocupação da revista com o aquecimento global e o efeito estufa e, de outro, na mudança de tom de seu discurso “verde”, passando do “alarme do caos ambiental” para a “esperança das soluções possíveis para o planeta” – isso, nos quadros de uma explicitação do que a autora entende ser o papel de Veja, que, por exemplo, convidando o leitor a agir, se mostra como uma publicação de “espírito de vanguarda informativo” também nas questões ambientais. Em outro viés, Ciências humanas: 17 pesquisa em comunicação e linguagem, de Francismar Formentão, põe em questão algumas das contradições que permeiam as ciências humanas nos dias atuais; por exemplo: a transformação da ciência em produto de consumo, sua produção em massa, sua fragmentação e a ausência de rigor ético, epistemológico e metodológico – na maioria dos casos, resultado de crises na cultura contemporânea. Em face disso, o autor defende a valorização do sujeito humano em sua relação de alteridade e o emprego de métodos com rigor ético, afirmando que uma alternativa para a condução de pesquisas em ciências humanas, numa sociedade cada vez mais tecnológica e midiatizada, encontra-se no entendimento da linguagem como elemento constitutivo da existência humana, dado que a mesma é principio, meio e fim de toda consciência e existência social. Por fim, em Globalização e regionalização da mídia brasileira, Anamaria Fadul discute os processos de globalização e regionalização da mídia que tiveram lugar, a partir da década de 1990 do século passado, com a ampliação do acesso à televisão por assinatura e à internet, ao mesmo tempo em que se ampliou também o interesse pela mídia regional, como resultado da necessidade e do interesse de se acompanhar o que acontecia na realidade mais próxima. Assim, A trama das humanidades: olhares, discursos, intervenções retorna, então, ao seu ponto de partida, mostrando que a tessitura do Humano na época de hoje, mais do que em qualquer outra época, radica fundamentalmente na sua 18 compreensão de si e na passagem à ação como chave dessa mesma compreensão. Que o fio de Ariadne aí tecido jamais se perfaça, mas sempre se desfaça, este não é senão o elemento que impulsiona o homem a tornar-se Homem ou este, enquanto mero hominídeo, a tornar-se Humano em sentido pleno; questão cada vez mais presente, sobretudo nos quadros dos Estudos Culturais, de Gênero e da história das civilizações. Eis aí, pois, o desafio da humanidade presente, deixemo-la falar, ver, olhar, agir, inter-vir... Manuel Moreira da Silva DEFIL-UNICENTRO/PR 19 PARTE I Ética, Tecnologia e Educação Reflexões sobre o EaD no contexto das novas tecnologias da Educação 1 Zinara Marcet de Andrade NASCIMENTO Uma das características marcantes do final do século XX consiste no avanço da ciência e da tecnologia. Esse fenômeno é, sem dúvida, reconhecido por todas os segmentos sociais, assim como é consenso que foram muitos os impactos sobre as sociedades e os indivíduos. Nesse contexto, as inovações foram cada vez mais intensas e velozes nos diversos setores de reprodução da base material, progressivamente incentivadas em razão da principal forma de organização social vigente: o capitalismo, no qual inovar significa vantagem competitiva no mercado global. No que diz respeito à educação, uma prática social, foram inúmeras as alterações proporcionadas pelo atual estágio técnicocientífico, com perspectivas de melhorias tanto para docentes como para discentes. Entre a vasta gama de possibilidades na área educacional, a partir da fusão da microeletrônica à informática, houve o revigoramento da modalidade de Educação a Distância (EaD). Sob essa circunstância, o ensino superior foi intensamente incentivado, em especial a formação de professores. Importante destacar que nem 1. Doutora pela Universidade Federal do Paraná - [email protected] 23 sempre essas mudanças possibilitadas pela aplicação do avanço técnico-científico no setor educacional foram plenas de positividade. Entretanto, é necessário compreender que tais questões não são naturais ou espontâneas, mas decorrentes da forma predominante de organização social do presente contexto histórico. Por tais razões, apreender EaD no contexto das “Novas Tecnologias” requer percebê-la e analisá-la dentro do cenário global da articulação mundial de forças e a constante necessidade de valorização do capital. Neste sentido, a fim de destacar as determinações da educação na perspectiva da totalidade histórica, com destaque para a EaD, utiliza-se o materialismo histórico como referencial teóricometodológico para abordar o referido tema. Na primeira seção, apresenta-se um breve resgate da conformação da modalidade EaD no Brasil, com enfoque no seu início e na contemporaneidade. Na segunda, busca-se relacioná-la com a reforma educacional que viabilizou a sua expansão. Em seguida, as bases que garantem a pertinência da EaD na presente fase histórica. Educação a Distância no Brasil A modalidade de Educação a Distância não é algo recente. Entretanto, ganhou “novas formas” a partir do final do século XX em virtude das profundas e intensas mudanças ocasionadas pela intensificação do uso da microeletrônica e da informática, dentre as quais a implementação das chamadas Tecnologias da Informação e 24 Comunicação, TICs, uma vez que, em tese, possibilitam resolver um antigo problema: vencer a distância que afasta e impede o contato entre professores e alunos e com isso qualificar a contento não apenas a força de trabalho existente, mas todos os indivíduos de uma dada sociedade. Logo, as TIC's possibilitaram a expansão e a popularização do ensino em diversos níveis. Porém, faz-se imprescindível um breve recuo no tempo para melhor compreender como e o por quê a EaD tornou-se tão pertinente na sociedade contemporânea, na qual o discurso hegemônico propaga a educação como a cura para os males da humanidade. No que diz respeito ao Brasil, a primeira questão a ser levantada nesse percurso histórico, está em lembrar que, diferentemente da maioria dos países, o início da educação a distância brasileira não se “consolidou” pelo uso de correspondências, pois além da falta de infra-estrutura para o envio e recebimento dessas, 75% da população era analfabeta até 1920 (RIBEIRO, 1978). Segundo Pretti, a EaD no Brasil teve como marco decisivo o ano 1923 com programas de rádio que transmitiam cursos de línguas, literatura, radiotelegrafia, telefonia (PRETTI, 1996). Na ocasião, o modelo econômico brasileiro ainda era o primárioexportador (1500 a 1930), a maior parte da população era rural e sem acesso à escola, pois as culturas latifundiárias, quase nada mecanizadas, não exigiam sequer saber ler e escrever. Nesse cenário, a educação era extremamente elitizada e os 25 cursos oferecidos em 1923 pela Fundação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, atingiam apenas uma pequena parcela da sociedade, pois além do analfabetismo, um rádio naquele momento era um artefato de luxo, possível apenas para as famílias de maior poder aquisitivo. É importante, sobretudo, perceber que a criação dos cursos de rádio não ocorreram ao acaso, mas foram frutos da transição histórica que passava a sociedade brasileira, que vivia uma grave crise em razão do esgotamento de crescimento da produção de bens-primários destinados à exportação, em especial o café. O descontentamento da população com a situação sócio-econômica fez eclodir acontecimentos marcantes com desdobramentos importantes no futuro, a exemplo da Semana da Arte Moderna (fevereiro/1922), que buscava a emancipação cultural do Brasil, a fundação do Partido Comunista (março/1922) com o objetivo de iniciar a organização da classe operária brasileira; a Revolta do Forte de Copacabana, também chamado de Movimento Tenentista (julho/1922), que visava inserir os militares na vida política e administrativa do país. (BRUM, 1987). Portanto, o marco do EaD no Brasil ocorreu numa época de forte desejo de emancipação política e cultural, o que desencadeou um movimento em prol do desenvolvimento nacional autônomo e auto-sustentado. Era preciso criar indústrias e com isto qualificar a força de trabalho existente com o objetivo de vencer as barreiras internas de produção e enfrentar a concorrência das mercadorias 26 vindas do exterior. O esforço inicial de industrialização ampliou a urbanização. Porém, trabalhar na cidade não era como trabalhar no campo. Foi preciso ensinar a ler escrever. A educação básica passou a ser condição para a inserção nas melhores vagas do mercado de trabalho nas cidades. Em prol da urbanização e das indústrias, então, ampliaram-se as escolas e outras formas de ensino. A educação a distância avançou. Diante de tal cenário, com melhoras na infra-estrutura decorrentes das necessidades do setor produtivo, em 1941 ocorreu a fundação do Instituto Universal, cuja método consistia em produzir material impresso e enviá-lo via correio como forma de qualificar parte da população. O referido instituto, além de pioneiro nesta modalidade de ensino, ainda está em vigor e oferece inúmeros cursos. Contudo, segundo Pretti (1996) foi somente a partir de 1960 que o ensino a distância ganhou relevância, ocasião em que surgiu a Comissão de Estudos e Planejamento da Rádio Fusão Educativa. Ao final dessa década surgem várias iniciativas: a TV Educativa do Maranhão; a TVE do Ceará com o programa TV escolar, a fundação do Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia; o Centro Educacional de Niterói; e o Centro de Ensino Tecnológico de Brasília com a finalidade de qualificar profissionais para as empresas, com destaque para o Projeto Acesso, desenvolvido em parceria com a PETROBRÁS (ALBERTI, 2008). 27 No decorrer dos anos 70, o destaque é o programa rádio educativo do governo federal chamado de Projeto Minerva e o Projeto Sistema Avançado de Comunicações Interdisciplinares SACI. O primeiro oferecia cursos de primeiro e segundo grau, com o objetivo de ofertar algum tipo de educação aos cidadãos brasileiros que por algum motivo não tinham como frequentar as escolas. O segundo refere-se à formação de professores leigos, via satélite, ofertado entre 1967 e 1974 no Rio Grande do Norte. No final da década de 70, a TV Cultura (Fundação Padre Anchieta) em parceria com a TV Globo (Fundação Roberto Marinho) criam o Telecurso 2º. Grau e posteriormente o 1º. Grau na década de 80 e o Telecurso 2000 nos anos 90. No entanto, foi no final da década de 90 que o ensino a distância consagrou-se. As TIC's foram, sem dúvida, o elemento possibilitador, mas não a principal causa, pois a educação a distância “ [...] não deve ser simplesmente confundida como instrumental, com as tecnologias a que recorre.” (PRETTI, 1996, p.7) O incentivo à essa modalidade de ensino tem sido gigantesco. Numa das séries de reportagens do Jornal Nacional, em abril de 2009, o tema destacado foi o crescimento da EaD no ensino superior no Brasil nos últimos anos. Uma das reportagens da série trouxe depoimentos de alunos que exaltaram os aspectos positivos e a satisfação em fazer esses cursos. A matéria enfatiza que uma das alunas entrevistadas mora em São Paulo e uma vez por semana, sem 28 sair do país, estuda na Universidade de Harvard, uma das mais tradicionais dos Estados Unidos e de reconhecimento internacional. A entrevistada apontou a importância de poder trabalhar e, em qualquer lugar do Brasil, estar conectada nos momentos da aula. Ressaltou ainda que cursar aqui no país é “muito mais barato” do que presencial, em razão de evitar os custos de transporte, moradia e hospedagem. A reportagem destacou o fato do professor do curso de especialização em políticas educacionais, a 8 mil quilômetros de distância, ministrar e transmitir aulas em inglês via internet. Apontou ainda que o curso possui alunos de sete países que debatem os conteúdos via “chat” em tempo real. Outro entrevistado, que realizava uma pós-graduação em administração de empresas, gerente de desenvolvimento de produtos, apontou utilizar todos os minutos disponíveis de seu tempo para aprender ao transformar qualquer lugar em sala de aula. Como se pode perceber pela matéria divulgada num dos canais de comunicação de maior audiência no país, há uma gigantesca propaganda a favor do ensino a distância no Brasil, o que em muito contribui para a expansão dessa modalidade de ensino, em especial para o nível superior e pós-graduação. Segundo dados oficiais do Censo da Educação Superior de 2006/INEP a oferta de cursos superiores no Brasil entre 2003 e 2006 cresceu 571%. Um outro levantamento, de 2007, mostra que o 29 número de alunos avançou 356% em três anos. Dados da mesma fonte informam que 73% desses cursos são ofertados em escolas particulares. A educação a distância foi decisiva para tal aumento. Apesar da maioria dos cursos a distância, atualmente, serem ofertados em instituições privadas, após muitos debates e resistência, paulatinamente as universidades públicas, federais e estaduais, passam a ofertar esses cursos. Sobre este aspecto, na mesma reportagem destaca-se que: Demorou, mas a maior universidade do país, fundada há 75 anos, se rendeu a educação a distância. Depois de seis anos de ensaio, a USP estreia na modalidade com um curso de graduação para formar professores de ciências, uma área carente de profissionais qualificados. Em laboratórios, todos os sábados, eles vão pôr em prática o que a prenderem pelo computador. Na primeira turma, serão 360 alunos, gente que não teria como se deslocar todos os dias até a universidade. “É uma universidade de peso como a universidade de São Paulo dizer o seguinte: 'Olha, o ensino a distância é importante, nós temos que encarar'. [...] Na pós-graduação a distância, a USP já tem experiência. Só a escola de engenharia formou mais de 500 pessoas (Jornal Nacional, 2009). A reportagem lembrou que a educação a distância exige disciplina, iniciativa e autonomia, o que justificaria a faixa etária de 30 seus alunos ser mais elevada. De acordo a Associação Brasileira de Educação a Distância, também entrevistada, houve um levantamento em 140 instituições que oferecem EaD o qual revelou que apenas 22% dos estudantes estão abaixo dos 24 anos de idade. O presidente da associação destacou que: “O aluno que é mais maduro, determinado, que quer conseguir aquele diploma, que preciso daquele conhecimento, esse é um ótimo candidato para educação a distância” (Jornal Nacional, 2009). Como se pode perceber por meio da reportagem transmitida pela Rede Globo, mídia que atinge maciçamente todas as classes sociais do país, a EaD seria plena de positividades. Logo, não é de se estranhar os dados oficiais divulgados dessa modalidade de ensino em 2009: 760.599 alunos matriculados, apesar de cerca de 1.300 instituições privadas tenham sido fechadas devido à falta de estrutura. Contudo, existem pesquisas acadêmicas que apontam as deficiências e contradições de tais cursos, a começar pela sua concepção pragmatista, imediatista e tecnicista. Em razão do limite deste texto, enfoca-se apenas a formação de professores, tomandose por base os estudos de Scheibe (2006), Shiroma (2000), Alberti (2008). Tais estudos apontam o aligeiramento e superficialidade dos conteúdos apresentados, o papel secundário dos tutores, as avaliações como meras atribuições de notas, a falta de infraestrutura adequada para a interação professor-aluno, o que leva a crer que o diploma pode ser uma mercadoria obtida com o 31 pagamento de razoáveis prestações mensais. Há, também, quem aponte essa modalidade como uma política educacional para compensar a falta de cursos regulares e de qualidade: O seu uso na substituição aos cursos presenciais e não como complementar a estes não atende aos princípios de formação construídos pelo movimento de educadores brasileiros. Mais grave ainda é o fato de que no Brasil a educação a distância é utilizada tendencialmente para suprir a ausência da falta de cursos de formação inicial a uma determinada “clientela” apresentando-se dessa forma como uma política compensatória. (MAUÉS; BAZZO apud SHEIBE, 2006, p.7) Todavia, e como afirmado anteriormente, o revigoramento e a ascensão da EaD a partir do final dos anos 90 não podem ser analisadas em si mesmas, muito menos como uma mera consequência do avanço da ciência e da tecnologia aplicadas ao setor educacional. É preciso ter a clareza de que a EaD só pode ser apreendida como parte das políticas educacionais vigentes e que estas, por sua vez, estão articuladas às relações sociais de produção desenvolvidas por um coletivo em determinado contexto. Elucidar a conformação das políticas educacionais vigentes é o objetivo da próxima seção. 32 As políticas Educacionais vigentes e a Educação a Distância A centralidade da educação tem sido tema recorrente em todas as áreas de conhecimento, independente de concepção ideológica, religiosa ou partidária. A importância da educação é “cantada em verso e prosa” no discurso hegemônico, em especial nas duas últimas décadas: Ante os múltiplos desafios do futuro, a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais de paz, da liberdade e da justiça social. “[...] Não como um “remédio milagroso”, não como um “abre-te sésamo” de um mundo que atingiu a realização de todos os seus ideais, mas entre outros caminhos e para além deles, como uma via que conduza ao desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico, de modo a fazer recuar a pobreza a exclusão social, as incompreensões, as opressões, as gerras ...” (DELORS, 2006, p.11) A primeira vista, e sem maior compreensão sobre a conformação da relevância atribuída à educação, o texto acima, início do famoso Relatório Jaques Delors, ressalta um enfoque humanitário, no qual a educação estaria acima de tudo imbuída na construção de indivíduos melhores do ponto de vista intelectual, afetivo e social. Todavia, a retórica em questão tem como finalidade encobrir a realidade perversa do atual estágio do modo de produção 33 capitalista no qual as condições de sobrevivência digna são cada vez menores para a maioria da população, em especial aquelas dos chamados países em desenvolvimento e subdesenvolvidos com altos índices de desemprego, pobreza e ainda com analfabetos. Assim, apesar da intensa retórica, a principal questão consiste no fato de que a qualificação da força de trabalho taylorista/fordista, não seria eficiente para as novas necessidades de valorização constante do capital. Por tais motivos, houve uma ampla reforma educacional. As análises de cunho crítico apontam que no Brasil a referida reforma foi realizada a partir da década de 90, bem como apontam que o primeiro marco substancial na investida do capital em torno da qualificação, a fim de preparar o trabalhador de forma condizente com a atual fase de acumulação, foi a Conferência 2 Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, organizada pelas agências multilaterais, que reuniu uma comissão de especialistas de todo o mundo para refletir e deliberar sobre os caminhos da educação para o século XXI. O referido encontro, de caráter internacional, tinha como orientação os últimos paradigmas do mundo do trabalho resultantes da nova forma de acumulação que se pautava na reestruturação produtiva do capital que, por sua vez, embasava-se no uso progressivo da informática e da microeletrônica. Denominado como Modelo das Competências Profissionais (DELUIZ, 1995), seus princípios expressam as preocupações dos empresários com a crise 34 2. De acordo com Nora Krawczyk, em “A construção social das políticas educacionais no Brasil e na América Latina”, as reformas nos diferentes países iniciaram-se no quadro dos compromissos assumidos na referida conferência, na qual a educação voltou a fazer parte das agendas nacionais e internacionais como tema central das reformas políticas e econômicas. (KRAWCZYK, 2000, p.3) estrutural do modo de produção capitalista que se instalou nos países centrais no início da década de setenta e tem como objetivo “[...] racionalizar, otimizar e adequar a força de trabalho face às demandas do sistema produtivo” (DELUIZ, 1995, p.1) 3 A partir da estreita relação entre educação e trabalho, a Conferência Mundial de Educação para Todos foi uma necessidade histórica da burguesia internacional e seguiu os pressupostos elaborados pelos mesmos que, mais do que nunca, vincularam a educação ao mercado competitivo e globalizado. Ou seja, garantiu a proximidade da escola das necessidades empresariais. Por tais razões, o governo nacional, subordinado aos capitais internacionais e suas respectivas agências multilaterais, dos quais depende de financiamentos para os projetos educacionais, deu início a um processo que denominou de “[...] modernização da educação que implicou mudanças importantes nos modos de gestão do sistema e das escolas, nos conteúdos, nas formas de financiamento, na estrutura acadêmica e no conjunto de princípios e valores que orientam o dever ser educativo [...]” (TIRAMONTI, 2000, p.118). Apesar das polêmicas e resistências, as reformas educacionais de cunho capitalista tiveram seu início com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em 1996 (Lei 9.394/96), conhecida como a nova LDB. No decorrer dos seus parágrafos, por várias vezes, destacam-se a importância da ciência e da tecnologia. Entretanto, essa mesma lei possibilitou a 3. Importante frisar que esta relação é sempre mediada por múltiplos fatores, o que dificulta em muito a percepção de sua realidade concreta 35 eliminação do chamado “currículo mínimo” e a flexibilização das grades curriculares, seu principal enfoque. Além dessas duas questões, criou os Institutos de Ensino Superior (IES) para formar professores para o ensino fundamental e médio de forma rápida e sem a exigência de vínculo com as universidades, possibilitou a prática docente a qualquer profissional mediante treinamento; acabou com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; criou os cursos seqüenciais por área de conhecimento; instituiu a possibilidade de universidades por campo de saber. Viabilizou a modalidade de EaD para as graduações. A análise crítica de tais questões articulada às mudanças ocorridas do mundo do trabalho evidencia, entretanto, que a preocupação central da referida reforma estava em adequar o processo educacional à empregabilidade possível em decorrência das inúmeras e substantivas alterações ocorridas nas relações materiais e sociais de produção, pois a incorporação da microeletrônica e da informática, sob a lógica do lucro, diminuiu drasticamente os postos de trabalho. Portanto, a redação da legislação em vigor não deixa dúvidas quanto à sua raiz: as orientações das agências multilaterais, sob a égide do sistema capitalista, que financiaram a Conferência Mundial de Educação para Todos, adequando a educação às exigências da reestruturação produtiva e ao mercado globalizado. Assim, mesmo com a intensificação da ciência e da tecnologia, bem como da exigência de profissionais altamente 36 qualificados frente à complexidade das forças produtivas, flexibilizou-se o processo educacional por meio de vários mecanismos, tais como a orientação de encurtamento do tempo em sala de aula, a ampliação da possibilidade de atividades complementares para a integralização curricular, a diminuição das exigências nos processos avaliativos, bem como a expansão da EaD. Houve, então, a falsa percepção de que o empenho destas mudanças estariam na viabilização da vida dos alunos diante das suas necessidades imediatas para uma melhor inserção ao mercado de trabalho. A reforma educacional instituída, que a primeira vista aparenta ser uma melhoria em todos os níveis de ensino, mas oculta sua real intencionalidade, foi o passo mais importante para as implementações que vieram na seqüência, pois além de torná-la legal, impregnava-a com ares de imprescindibilidade. A iniciativa privada ao perceber que a reforma educacional, ao possibilitar a flexibilização do ensino tornou a educação uma mercadoria ainda mais interessante, ampliou a oferta de seus serviços. Um desses serviços ofertado com sucesso tem sido a EaD. Por meio da Lei 9.394/96, artigos 80 e 87, com o Decreto n. 2.494 de 10 de fevereiro de 1998, posteriormente o Decreto 5.622 de 2005, a Portaria n. 4.361 de 2004, a EaD foi expandida por todas as áreas de conhecimento e em todos os níveis. Pode, portanto, ser oferecida na educação básica, educação de jovens e adultos, na educação especial, na educação profissional (técnicos de nível médio e 37 superior), na educação superior, em cursos sequenciais, especializações, mestrados e doutorados. São cursos mais rápidos, mais baratos, enfim, flexíveis, tal e qual a legislação em vigor recomenda, porém com rótulo de avanço educacional: Enquanto discurso oficial, a EaD é considerada como uma possibilidade de garantir a igualdade de oportunidades no acesso à educação de qualidade a todos os que, por qualquer motivo, possam estar arredados do ensino presencial, no tempo considerado útil pelo atual sistema de ensino (ALBERTI, 2008, p.53). Feitas estas considerações acerca das políticas educacionais que viabilizaram a expansão da Educação a Distância nas duas últimas décadas, necessário se faz esclarecer as bases e sua pertinência na atual fase da acumulação capitalista. As bases da Educação a Distância no atual contexto de acumulação do capital e as consequências para a classe trabalhadora Como foi visto até aqui, a educação a distância é uma modalidade praticada há muito e em diferentes contextos. Contudo, foi revigorada e consagrada a partir do avanço técnicocientífico das últimas décadas (característica marcante da atual fase capitalista) e sustentado pelas reformas educacionais dos anos 90. Destacou-se, também, nas seções anteriores o discurso oficial de incentivo à essa modalidade de ensino em razão de sua viabilidade e qualidade. 38 Importa, pois, compreender suas bases e sua pertinência, uma vez que pesquisas indicam a péssima qualidade de alguns desses cursos, em especial a formação de professores, fenômeno contraditório ao discurso sobre a centralidade da educação e ao avanço tecnológico que requer indivíduos com maior qualificação profissional e desempenho pessoal. Vale lembrar que muitos cursos regulares padecem dos mesmos males. A primeira questão a ser retomada, já mencionada, é a configuração da principal forma de organização social vigente: o modo de produção capitalista, com sua natureza contraditória, no qual a reprodução da vida se dá por meio da produção de mercadorias. Logo, é fundamental compreender a relação entre a qualificação dos trabalhadores e a acumulação capitalista, a qual só pode existir por meio da extração da mais-valia, parcela de trabalho não pago. A partir desse pressuposto, a análise das relações sociais capitalistas aponta que a mercadoria, forma elementar da riqueza, possui um caráter fetichista que encobre a essência predatória do capitalismo ao impossibilitar a percepção de que o trabalho social é transformado em trabalho alienado, que enriquece o proprietário dos meios de produção na razão direta em que reduz a dimensão 4 humana do trabalhador. Todavia, uma mercadoria no capitalismo, que constitui uma relação social, só interessa se possuir tanto valor de uso como valor de troca, pois é no ato da troca que o capitalista se apropria da parte 4. Para Marx o trabalho humano possui uma dimensão ontológica: “Antes de tudo o trabalho é um processo entre o homem e a natureza [...]”(MARX, 1998, p. 142). Porém, ao explicar sobre “Processo de Trabalho e Processo de Valorização”. Esclarece que esta é uma forma genérica, insuficiente para compreender a forma social do capital e seus elementos constitutivos.. 39 de trabalho realizada pelo operário que não foi devidamente pago, a mais-valia, o único elemento capaz de valorizar o capital. Porém, para produzir uma mercadoria um trabalhador deve ter a preparação necessária, o que tem um custo para o capitalista, inserido no salário. Em O Capital, Marx percorreu um longo caminho analítico para deixar claro que a luta dos capitalistas para conseguir o aumento da “mais-valia” não está em simplesmente comprar a 5 força de trabalho abaixo do seu valor; tampouco é possível simplesmente aumentar a jornada de trabalho, porque há um limite que não pode ser ultrapassado, pois não há como impedir a exaustão e o desgaste físico do trabalhador. Demonstrou, então, que se faz imprescindível aumentar a força produtiva do trabalho, isto é, criar alterações no processo de produção de mercadorias que possibilitem a redução do tempo de trabalho socialmente necessário. Como resultado, mesmo que não planejado, o valor da força de trabalho, que é composto pelos ramos que constituem os meios de subsistência do trabalhador (um deles a qualificação do trabalhador), cai e desta forma, diminui o salário e o acúmulo de capital é obtido. Marx preocupou-se em diferenciar a “mais-valia absoluta” da “mais-valia relativa”. A primeira justamente por ser obtida por meio do prolongamento da jornada de trabalho, tal como afirmado acima: inviabiliza-se pela existência de limitação do dispêndio de energia pelo organismo do trabalhador, quer execute trabalho 40 5. Porque, segundo Marx, a regra básica da economia mercantil é que as mercadorias são sempre compradas pelo seu valor, inclusive a Força de Trabalho. simples ou altamente qualificado; portanto, tornou-se insuficiente perante a crescente concorrência capitalista. A segunda, relativa aos dois componentes da jornada de trabalho, trabalho necessário e mais-trabalho, consiste na redução do primeiro, isto é, do tempo de trabalho social necessário, o qual diminui na razão direta do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, enquanto o valor 6 das mercadorias cai na razão inversa do seu desenvolvimento. Para demonstrar a necessidade do capitalismo para além da obtenção da mais-valia absoluta, Marx, a partir do Capítulo XI, analisou as fases de organização e gestão do processo de trabalho iniciando pela sua forma mais simples, a cooperação, até o que havia de mais complexo na sua época: a maquinaria da grande indústria. Embora o objetivo de Marx não estivesse em analisar os processos de organização e gestão do trabalho, valeu-se de tal prerrogativa para demonstrar que o capital criou formas para manter o seu movimento incessante de acumulação. Ao procurar produzir cada vez maior quantidade de mercadorias com o menor tempo possível, diminuiu continuamente o tempo de trabalho socialmente necessário e, conseqüentemente, o valor da própria 7 força de trabalho que, como qualquer outra mercadoria, “[...] é determinado pelo tempo trabalho de necessário à produção, 6. O desenvolvimento da força produtiva do trabalho, no seio da produção capitalista, tem por finalidade encurtar a parte da jornada de trabalho na qual o trabalhador tem de trabalhar para si mesmo, justamente para prolongar a outra parte da jornada de trabalho durante a qual pode trabalhar gratuitamente para o capitalista. (MARX, 1988, v.1, p.243) 7. “Enquanto valor, a própria força de trabalho representa apenas determinado quantum, de trabalho social médio nela objetivado. A força de trabalho só existe como disposição do indivíduo vivo. Sua produção pressupõe, portanto, a existência dele. Dada a existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste em sua própria reprodução ou manutenção. Para sua manutenção o indivíduo vivo precisa de certa soma de meios de subsistência. O tempo necessário à produção da força de trabalho, corresponde, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção do seu possuidor” (MARX, 1988, v.1, p.137) 41 portanto também reprodução desse artigo específico” (MARX, 1988, v.1, p.137). Esse barateamento da força de trabalho não excluiu os trabalhadores que exercem trabalho complexo; muito pelo contrário, pois são estes os mais dispendiosos. A esse respeito, Rubin (1980) esclarece que a produção de mercadorias tem dois tipos de trabalho: simples e qualificado. Para o autor, “o primeiro consiste na capacidade física inerente a todos os indivíduos, sem a necessidade de educação especial. O segundo, o trabalho qualificado, complexo, requer “uma aprendizagem mais longa ou profissional” e, portanto, se expressa de duas formas “no maior valor dos produtos produzidos pelo trabalho qualificado e no maior valor da força de trabalho qualificada” (RUBIN, 1980, p.176). Portanto, o fenômeno de barateamento e enxugamento dos salários é uma construção sócio-histórica, relativa à apropriação da ciência pelo capitalismo e, também, relacionado ao processo educacional. Dessa forma, embora na primeira fase do capitalismo, isto é, na cooperação, aparentemente não tenha ocorrido modificação substantiva no modo de trabalho do indivíduo, que utilizava suas ferramentas para realizar seu trabalho manual e ainda possuía as condições de controle intelectual da mercadoria que produzia, 8 numa análise mais apurada, percebem-se mudanças qualitativas, pois o gerenciamento do capitalista do trabalho coletivo para aproveitar melhor os meios de produção, possibilitou diminuir a 42 8. Nas palavras de Marx: “De início a diferença é, portanto, meramente quantitativa” (MARX, 1988, v.1, p.244). Cabe lembrar que existem duas formas de cooperação: a cooperação simples, em que todos fazem o mesmo, isto é, não há divisão do trabalho; e a cooperação com divisão do trabalho, que é a manufatura desenvolvida. A cooperação, como categoria geral, é a base da produção de mais-valia relativa. média de trabalho socialmente necessário uma vez que “[...] 1 dúzia de pessoas juntas, numa jornada simultânea de 144, proporciona um produto global muito maior do que 12 trabalhadores isolados [...]” (MARX, 1988, v.1, p.247). Foi dado o primeiro passo no sentido da desqualificação 9 técnica do trabalhador, fator que posteriormente possibilitou a diminuição da necessidade de preparação técnica de mesmo nível para todos pelo fato de cindir a unidade do trabalho que é composta por atividades manuais e intelectuais. Todavia, o que o processo de trabalho perdeu em razão dessa cisão, foi compensada, pois ao trabalharem juntos os trabalhadores geram uma força coletiva de trabalho, que por sua vez, aumenta o rendimento individual, por promover uma adição à capacidade do trabalho de cada indivíduo. A constante, porém, insaciável necessidade de valorização do capital levou à busca do aumento de produtividade e, em conseqüência, surgiu a manufatura, a qual requer a decomposição 10 de determinada atividade em suas diversas operações parciais. Ao executar apenas uma operação simples, o trabalhador “transforma todo seu corpo em órgão automático unilateral dessa operação e, portanto, necessita para ela menos tempo que o artífice, que executa alternadamente toda uma série de operações. (MARX, 1988, v.1, p.256). Por outro lado, a repetição contínua da mesma ação limitada, bem como a concentração de atenção, ensina o trabalhador a atingir o efeito útil com o mínimo de esforço. 9. De acordo com o materialismo histórico, a qualificação profissional tem duas dimensões: uma técnica (que prepara para as tarefas intelectuais e manuais) e uma superestrutural, de caráter comportamental, que prepara para a conformação de classe. 10. De acordo com Marx, a manufatura: introduziu a divisão técnica do trabalho e a desenvolveu mais do que na cooperação na cooperação simples; combina ofícios anteriormente separados (esta é só uma das formas da manufatura. A outra é a decomposição das operações de um mesmo ofício em suas fases sucessivas, cada uma atribuída a um trabalhador); pode ser composta ou simples; todavia, depende da força, habilidade, rapidez e 43 Por ser o parcelamento das tarefas a principal característica da organização do trabalho capitalista, a separação entre as atividades intelectuais e manuais foi cada vez mais acentuada. Em decorrência, aumentou a diferença entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados, ao mesmo tempo em que trouxe a eliminação ou a redução dos custos para com o processo de aprendizagem e, em conseqüência, uma proporcional desvalorização relativa da força de trabalho. Com a separação formal entre as atividades intelectuais e manuais houve também a hierarquização da força de trabalho. A aptidão para o trabalho dos indivíduos passou a ser considerada de acordo com uma escala de referências que os classifica de hábeis a inábeis. Os primeiros recebem preparo para o desempenho de sua atividade profissional e desenvolvem alguma forma de habilidade especial, o que demanda custos de aprendizagem. Os segundos limitam-se a funções fragmentadas, cuja execução não requer preparação formal e por isso não há custos. Todavia, mesmo para os considerados hábeis o custo tornou-se cada vez menor uma vez que a partir da divisão manufatureira as atividades foram cada vez mais simplificadas. Os maiores salários são pagos àqueles cuja preparação da força de trabalho demandou maior tempo e maior quantidade de dinheiro, o equivalente geral de todas as mercadorias. Dessa forma, além de aumentar a produtividade e, portanto, aumentar a quantidade produzida com menor custo unitário, a divisão manufatureira, ao restringir a compreensão do 44 processo de trabalho na sua totalidade, restringiu tanto a possibilidade de autonomia intelectual, como manual da classe trabalhadora. Por outro lado, necessitou preparar força de trabalho complexa para implementar e criar as máquinas, bem como foi preciso manter, ou mesmo incorporar, alguns poucos trabalhadores com conhecimento e experiência para auxiliar ou substituir o capitalista na sua função de fiscalização do processo de trabalho e controle da massa proletária. Com a maquinaria e o trabalho fragmentado, cada uma das parcelas da confecção de um produto é realizada sem o conhecimento total do processo de sua elaboração. Desta forma, a classe trabalhadora foi expropriada tanto dos meios de produção como dos conhecimentos para a elaboração das mercadorias necessárias, ficando cada vez mais subjugada ao capital. O capitalista, ao contrário, não dependia mais, para a acumulação e ampliação de lucros, da habilidade e experiência dos trabalhadores. O capital retirou os principais entraves que lhe eram externos para a produção: “O trabalhador, com sua habilidade, com sua qualificação, não passa mais a ser o limite para o capital” (FRIGOTTO, 1984, p.81) Portanto, a dualidade estrutural da educação que qualifica uma minoria com o domínio da ciência e do método científico e uma maioria para tarefas simples que requerem mediana qualificação, contraditoriamente, decorre do próprio avanço tecno-científico que complexifica o trabalho de poucos e simplifica o trabalho de muitos. Esse fenômeno é um produto de longo processo, cujas 45 raízes estão no início da formação da burguesia que proclamava a necessidade da escola universal, gratuita e obrigatória, portanto, uma escola comum a todos, mas de forma distinta “Que é preciso dar a todos, igualmente, a instrução que é possível ser estendida a todos, mas não recusar a uma parcela dos cidadãos a instrução mais elevada que é impossível fazer aquinhoar à massa ativa dos indivíduos”, escrito no Iluminismo por Condorcet (1792). Mesmo assim, o discurso sobre a centralidade da educação e sua necessária flexibilização foi paulatinamente incorporado pela sociedade, inclusive por segmentos da esquerda e da academia. Sem as condições para perceber a lógica sociedade capitalista e que o atual desemprego é causado pela forma como se organiza a produção e a distribuição de mercadorias, a maior parte da população, mesmo aquela com maior tempo de escolaridade, não possui elementos suficientes para perceber as incoerências embutidas nas propostas educacionais e suas verdadeiras intencionalidades. Porém, ao contrário do que possa parecer, não é fácil para os detentores dos meios de produção e capital, que são os interessados em resguardar e manter a organização social vigente, zelar pelas bases de sustentação da sociedade capitalista, pois a história tem demonstrado que os processos de ajustes necessários são mediados por conflitos, pressões, resistências dos trabalhadores, suas entidades de representação e mesmo algumas lutas sangrentas. 46 Assim, ao mesmo tempo em que precisam “educar” a massa de trabalhadores para operarem suas unidades produtivas da melhor forma possível e não danificarem os meios de produção, o que seria uma perda de capital, eles reconhecem a ameaça do conhecimento que contém em si os germes da revolução, há muito destacado por Lenin. Logo, foi prudente seguir os conselhos de Adam Smith no 11 século XVIII, ou seja, dosar os conhecimentos em doses homeopáticas a fim de que a produção científica produzida fosse devidamente apropriada e resultasse na valorização do capital. Dessa forma, apesar da EaD ser um recurso que expressa o alto grau de desenvolvimento social alcançado pelo humanidade e que pode trazer grandes benefícios em prol da classe trabalhadora, sua expansão sob a acumulação capitalista tem como finalidade primeira a valorização do capital, ofertada com a qualidade necessária para uma minoria a exemplo da aluna de São Paulo que faz um curso em Harvard, ao passo que para a massa de trabalhadores cursos aligeirados e superficiais na lógica “do rapidinho e baratinho” (KUENZER, 2004), apesar do seu verniz modernizador e democrático. Considerações finais O presente texto procurou evidenciar, à luz do materialismo histórico, que existe uma relação entre a qualificação profissional da classe trabalhadora e a manutenção da ordem capitalista desde 11. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas, publicado em 1776. 47 suas raízes. Por não ser uma relação imediata e sim mediada por múltiplos fatores, sua percepção é nebulosa para a população em geral. As mediações, que permitem o entendimento da realidade concreta para além da superficialidade, são várias e de difícil apreensão: a divisão técnica e social do trabalho de caráter internacional; a apropriação da ciência pelo capital e sua conseqüente organização e gestão da produção de mercadorias; a reconfiguração do trabalho complexo e a simplificação do trabalho da maioria; a chamada dimensão superestrutural da qualificação que prepara para a inserção de classe; as políticas educacionais neoliberais; o desemprego estrutural; as competências profissionais relativas à atual organização e gestão do processo de trabalho; a alienação da classe trabalhadora, e, sobretudo, a valorização constante do capital que determina todas as demais. Portanto, ao mesmo tempo em que a EaD apresenta-se como nova ao se valer das TIC'S, traz em si aspectos concernentes ao seu passado, pois resulta de um processo de incorporação de novas características das relações sociais de produção que lhe foram alterando as configurações, sem, contudo, modificar o objetivo da educação capitalista: qualificar para a melhor exploração da classe trabalhadora e extrair a mais-valia. Contudo, infelizmente, não foi possível destacar todas as contradições ao longo das variações da modalidade EaD, há muito praticada, optando-se pelo breve resgate histórico do início e da contemporaneidade EaD no Brasil para evidenciar que as relações 48 sociais de produção, dentre elas a educação dos trabalhadores, não ocorrem aleatoriamente, mas são constituídas a partir das questões reais, traduzindo a forma como os indivíduos organizam tanto suas necessidades materiais imediatas, como as suas regras, crenças, valores, convenções, ética, enfim, o que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção (MARX; ENGELS, 1978). O mesmo objetivo teve o resgate da conformação da atual política educacional, isto é, esclarecer que a qualificação profissional dos trabalhadores resulta das relações que os seres humanos estabelecem ao produzir as condições de existência, conscientemente ou não, e estão repletas de contradições só percebidas ao se apreender o movimento decorrente dos interesses antagônicos entre os que vendem sua força de trabalho e os detentores de capital. Assim, acredita-se que tenha sido possível contribuir para desvelar a utilização da EaD em tempo de retórica de supervalorização da educação, pois suas contradições apontam a continuidade da existência de uma aprendizagem diferenciada para as distintas classes sociais. Apesar da educação diferenciada não ser exclusiva do capitalismo, nessa forma de organização social, em disputa material e ideológica cada vez mais refinada, há um discurso lapidado e sutil de igualdade e liberdade que encoberta a exploração, a dualidade estrutural do ensino e a polarização das competências: formação erudita e intelectualizada para a elite 49 dominante e uma educação profissionalizante “estratificada” para a venda da força de trabalho, nem sempre formal, para a classe trabalhadora. Os fatos acima agravam-se pelo fato de serem ofertados por instituições que mercantilizam a educação, que percebem a necessidade e a vontade de trabalhadores com pouco poder aquisitivo de freqüentar uma graduação, muitas vezes privando-se de satisfazer outras necessidades ao deixar significativa parcela do seu salário para pagar um curso e receber um diploma. Todavia, apesar do diploma, adquirem pouco conhecimento e ficam em desvantagem para disputar as “melhores” vagas no mercado de trabalho, preenchidas, na maioria das vezes, por aqueles que puderam graduar-se em instituições de reconhecida competência. Nesta perspectiva, não seria abusivo afirmar que significativa parcela da EaD ofertada consiste em mais um caça-níquel dos empresários da educação. Logo, não restam dúvidas de as leis que sustentam as desigualdades do capitalismo, também estão presentes nos aspectos relativos à educação, que só poderão ser alteradas numa outra forma de organização social. Referências ALBERTI, E.R. Política de Formação de Professores mediada pelas tecnologias de informação e comunicação: Análise do Programa Especial de Capacitação para a Docência no Estado do Paraná. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do Paraná, 2008. 50 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Instituto Nacional Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior de 2006. Disponível em http:// www.inep.gov.br/superior/censosuperior BRUM, A.J. O Desenvolvimento Econômico Brasileiro. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1978. JORNAL NACIONAL. Cresce o número de curso superior a distância. Série de Reportagens do Jornal Nacional. Edição de 29 de abril de 2009. Disponível: http://jornalnacional.globo.com/Telejornais DELORS, J.(org) Educação: um tesouro a descobrir. 10. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: MEC : UNESCO, 2006. DELUIZ, N. O Modelo das Competências Profissionais no Mundo do Trabalho e na Educação: Implicações para o Currículo. 1995. Disponível em http://www.senac.br/INFORMATIVO /BTS/273/boltec273b.htm, 28.01.08 FRIGOTTO, G. A Produtividade da Escola Improdutiva. São Paulo: Cortez, 1984. KUENZER, A. Z. Exclusão Includente e Inclusão Excludente. A nova forma de dualidade que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBRADI, J.C.; SAVIANI, D.; SANFELICE, J.L. (orgs). Capitalismo, Trabalho e Educação. 2. ed. São Paulo: Autores Associados, 2004. MARX, K. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os Economistas) MARX,K; ENGELS, F. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 PRETTI, O. (org) Educação à distância: inícios e indícios de um percurso. Cuiabá: UFTM, 1996. 51 RIBEIRO, M.L.S. História da Educação Brasileira. A organização escolar. 8. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. RUBIN, I.I. A Teoria Marxista do Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980. SHEIBE, L. Formação de Professores: dilemas da formação inicial à distância. Revista da Educação Educere et Educare, Cascavel. V.1, n.2, jul/dez, 2006. SHIROMA, MORAES, EVANGELISTA. Política Educacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2000 (Série O que você precisa saber sobre...) TIRAMONTI, G. Após os Anos 90. Novos eixos de discussão ma Política Educacional da América Latina. In: KRAWCZYK, N.; CAMPOS, M.M.; HADDAD, S. (orgs), O Cenário Educacional Latino-Americano no Limiar do Século XXI. Reformas em Debate. Campinas: Autores Associados, 2000. 52 Ética, Educação e as novas tecnologias 1 Alessandro de MELO Ética, educação e novas tecnologias são elementos que, cada qual individualmente, desafia-nos na complexidade inerente à sua “natureza”. Juntos, estes elementos amplificam este desafio. Ao escolher o caminho que-se pretende seguir nesta exposição, ou seja, o caminho de uma análise marxista (na verdade o mais próximo possível dos próprios textos de Marx), não se quer, de forma alguma, desprezar a tradição, também marxista, dos estudos da Escola de Frankfurt, que em tudo se coaduna com os temas da ética, educação e novas tecnologias. Tal caminho, com certeza, pode ser percorrido por outros autores que se dedicaram ao estudo desta escola (GUILHERMETI, 2007). Mas, então, como é possível uma discussão marxista (ou marxiana) da ética, educação e novas tecnologias? Esta possibilidade, nos limites deste texto, será desenvolvida no sentido de estudar os limites (na verdade, a impossibilidade) da realização de uma ética universal na sociedade de classes. Com relação à educação escolar, esta é entendida nos limites do que os teóricos 1. Professor do Departamento de Pedagogia – UNICENTRO Campus de Guarapuava. 53 marxistas têm entendido como sendo seu núcleo realizador, ou seja, a educação escolar como (im)possibilidade emancipatória por meio da socialização dos conhecimentos, da cultura em geral (SAVIANI, 1991; DUARTE, 1993; 2001). As novas tecnologias serão aqui apenas brevemente tratadas, e sobre ela não se despenderá mais que uma análise inicial, e nunca ultrapassando o que todos podemos conhecer sobre o avanço destas tecnologias na sociedade e no âmbito da vida cotidiana. A relação entre ética e educação escolar, portanto, é aqui entendida em termos da possibilidade de que a educação escolar cumpra ou não um papel emancipador na sociedade, e que, para isso, contribuam ou não as novas tecnologias. Ainda que seja um tema polêmico, defenderemos aqui que a educação escolar tem como papel principal a socialização do conhecimento/cultura para todos, sendo, portanto, um projeto ancorado numa perspectiva iluminista/racionalista. A questão, portanto, é a seguinte: as novas tecnologias, aplicadas à educação, têm servido a este objetivo? Ou seja, contribuem as novas tecnologias para a socialização do conhecimento/cultura para todos? Para realizar esta discussão, antes demais nada é preciso construir uma análise conjuntural da sociedade capitalista contemporânea, partindo do conceito de decadência ideológica, construída pela tradição de Lukács. A partir daí, far-se-á uma discussão sobre a ética como mediadora entre o indivíduo e a sociedade, entendendo-se esta como uma relação ontológica, cujo 54 objetivo é a emancipação do indivíduo da amarra de sua própria singularidade, rumo à generalidade; da superação da lógica da necessidade para a lógica da liberdade. Ou seja, parte-se da concepção de ser social como o indivíduo e a sociedade, que constituem dois pólos intrínsecos. A partir desta discussão apontam-se elementos para a reflexão sobre as novas tecnologias e a educação, suas possibilidades e limites no âmbito já limitado das possibilidades da própria educação como elemento emancipador. O que é a decadência? A decadência ideológica tem como marco a ascensão da burguesia ao poder, a partir da derrota da classe trabalhadora nas jornadas revolucionárias de 1848, movimento descrito e analisado por Marx em “O 18 de Brumário de Napoleão Bonaparte” e outros escritos da década de 1850. A derrota imposta à classe trabalhadora e seu projeto de uma sociedade sem classes sociais, neste período, consolidou o mundo capitalista tal como o conhecemos atualmente, possibilitando à burguesia a constituição de um mundo à sua imagem e semelhança (TONET, 2002). Para a economia política, 1848 constituiu-se como um “toque de finados”, segundo Marx, ou seja, a partir de então a ciência desinteressada foi abolida e o que se chama de ciência passou a servir à classe dominante. A ciência passa a ser uma “atividade mercenária”, longe inclusive dos limites alcançados por 55 autores como Adam Smith e David Ricardo. Voltando para a configuração social, a derrota de um projeto societário de igualdade levou à perpetuação, até hoje, de um sistema caracterizado pelo regime de propriedade privada e, logo, de exploração do homem pelo homem, algo, aliás, nada novo, mas amplificado como nunca antes. Não se pode esquecer que este movimento significou um retrocesso inclusive nas posições da própria burguesia, que abandonou seu papel revolucionário, presente na luta contra o feudalismo, e passou a ocupar definitivamente uma posição conservadora, em termos políticos (a revolução técnica de que trata Marx no Livro I de O Capital nunca deixou de ocorrer, como o provam as novas tecnologias de que se irá tratar mais adiante). Naquele primeiro momento, em sua luta contra a ordem feudal, a burguesia foi responsável pelo impulso conferido ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia; pela supressão dos privilégios feudais, e, portanto, pela ênfase na igualdade de todos os indivíduos; pela valorização da razão e da atividade humanas; pela intensificação do caráter universal da humanidade e pela ampliação do processo de individuação. (TONET, 2002) Do universalismo “prometido” no projeto burguês de superação do feudalismo, na verdade o que restou foi a 56 configuração de uma sociedade essencialmente desigual, baseada, porém, numa “igualdade formal”, ou seja, em uma igualdade pautada pela legislação que passa a mediar as relações sociais, inclusive as relações entre as classes sociais, tendo como parâmetro o regime de propriedade privada. Sendo o cerne do capitalismo a propriedade privada, as consequências não podem ser outras que não a marginalização dos não-proprietários, que, na verdade, constituem a grande maioria da população, que, portanto, passa a viver da venda de sua mão-deobra, como assalariada. Também há de se considerar que o mercado de trabalho reproduz a marginalização, ou seja, ele próprio não fornece condições para que todos tenham acesso a um emprego, ou seja, a ter a condição de assalariado. Assim, vemos nas ruas milhares de pessoas marginalizadas das mínimas condições de vida que se considera dignas, com moradia, alimentação adequada, saneamento básico, emprego, transporte, educação etc. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, não se pode negar as excelentes oportunidades de generalização de boas condições de vida a todos, alcançadas pelo avanço tecnológico na produção de alimentos e de outros elementos essenciais para que isso ocorra. No entanto, o que vemos é que há uma distribuição desigual desta produção no mundo e dentro dos países, fazendo com que bilhões de pessoas no mundo pereçam em condições sub-humanas. 57 Este é exatamente o fundamento da decadência desta forma de sociabilidade. Uma ordem social que, tendo alcançado a possibilidade de criar riquezas capazes de satisfazer as necessidade de todos, vê-se impossibilitada de atender essa exigência. E que, para manter-se em funcionamento, precisa impedir, de maneira cada vez mais aberta e brutal, o acesso da maior parte da humanidade à riqueza social. Em vez de impulsionar a humanidade toda no sentido de uma elevação, cada vez mais ampla e profunda, do seu padrão de ser (ontológica e não apenas material e empiricamente entendido), o que se vê é uma intensa e crescente degradação da vida humana. (TONET, 2002) Da “promessa” de igualdade, para uma realidade essencialmente desigual. Este é o cenário da sociedade sob o regime capitalista de propriedade. E é sob este respaldo da realidade que reafirmamos a impossibilidade de uma ética sob o capitalismo, entendida esta como a busca pelo “bem comum”, como na tradição desde os gregos. A possibilidade do bem comum, como afirmação ética ou como realidade, somente será possível em uma sociedade baseada em outro regime de propriedade que não a propriedade privada. No entanto, para os educadores resta a esperança de agir, nos limites da educação, na construção de indivíduos preparados para viver em outro tipo de sociedade. 58 Ética – do gênero em-si para o gênero para-si Na esteira da questão acima colocada para a educação, a questão que se coloca é: qual(is) a(s) possibilidade(s) de que a educação possa ser mediadora na superação da sociedade alienada? Como isso pode acontecer desde as nossas salas de aula? Uma resposta possível a esta argüição é o trabalho na superação da consciência alienada (em-si) para uma consciência crítica (para-si), ou seja, a educação, por meio de seu papel fundamental, que é a socialização do saber escolar, pode ser mediadora no enriquecimento dos indivíduos, enriquecimento este que não significa apenas ser rico materialmente, mas ser rico ontologicamente, como ser humano. Mas como isso ocorre? A humanidade não é algo naturalmente dado aos homens, mas é processo histórico-social, construído nas relações sociais concretas em que se inserem. Logo, o ser humano não pode ser entendido como o resultado de um desenvolvimento espontâneo, ao nível biológico, mas sim como ser social, e, portanto, “[...] ser criativo, social, consciente, livre e universal” (TONET, 2002). Neste sentido, e tendo como parâmetros da ação educativa a construção de um ser humano universal, livre, consciente, é que se pode afirmar a eticidade relacionada à educação, ou seja, a ética, como bem comum, só pode ser entendida, no caso da educação, como uma educação que se paute na busca incessante do homem universal, que se coadune ontológica e empiricamente, com a humanidade toda, abandonando cada vez mais os traços 59 individualistas (singulares) impostos pela sociedade capitalista. A educação, nessa perspectiva, é uma categoria específica do ser social: só o homem pode ser educado (Lukács, 1981, v. II*, p. 152) e, como tal, passa a se constituir complexo integrante e não alienável do devir-homem dos homens. Nesse quesito, podemos ainda destacar que a práxis educativa inaugura um processo especial de relação do indivíduo com a totalidade, na atualização das possibilidades de efetivação da liberdade. Pontuamos que a práxis educativa, entretanto, só assume sua função social mais radical e mais autêntica quando passa a se efetivar como mediação das ações de natureza ética, ou seja, quando se realiza na sociedade capitalista, possibilitando a superação da relação dicotômica existente entre indivíduos e sociedade; e também quando facilita e generaliza o entendimento de que os homens são os sujeitos de sua história, ainda que em circunstâncias não escolhidas por eles (p. 304325) (TASSIGNY, p. 85). No que se refere ao papel da educação, ela encontra-se na dialética entre objetivação e apropriação no interior da atividade humana, e, mais especificamente, na apropriação por cada indivíduo das objetivações humano-genéricas, de que fazem parte a cultura, a ciência, a linguagem, a arte etc. Simplificando, cabe à educação escolar a socialização das objetivações, ou seja, possibilitar a apropriação das objetivações humanas concretizadas nos conteúdos escolares, que resumem este verdadeiro patrimônio humano. 60 É somente por meio da apropriação do que é humano (construção sócio-histórica) que os homens se fazem humanos, e é papel da educação promover a humanidade em cada indivíduo particular, por meio da socialização dos conhecimentos, da cultura, da ciência, da arte, da linguagem e de outras formas de objetivação humana. Ética e educação, portanto, coadunam-se num projeto humanizador, no sentido acima conferido, ou seja, num projeto de humanização que significa a apropriação das objetivações humanogenéricas, e, portanto, constitui um projeto de homem como ser social, que visa superar a alienação dada nas relações sociais capitalistas. Novas tecnologias e as possibilidades educativas É no interior das reflexões acima construídas, ou seja, entendendo a educação como processo de socialização das objetivações humano-genéricas, que se vai indagar a respeito das novas tecnologias na educação. Será que a implantação das novas tecnologias no âmbito educacional proporciona, facilita ou promove esta socialização de que se tem tratado acima? Ou será que as novas tecnologias, como têm sido tratadas, não constituem mais que um fetiche? Em primeiro lugar, é interessante discutir o que seriam “novas” tecnologias, afinal de contas a questão do “novo”, tão em voga atualmente, deve ser problematizado. Por exemplo, os data- 61 shows, tão comumente encontrados nas nossas salas de aula na universidade, podem se transformar em velhas lousas, apenas com a diferença de que são projetadas na parede, sem o problema da letra do professor, mas reproduzindo a mesma lógica da aula tradicional. Neste caso, a questão em pauta da ética vinculada à socialização dos conhecimentos já apontada em nada avança ao já existente. Outro exemplo é a tecnologia do retroprojetor. Anterior ao data-show, o retroprojetor, na verdade, pode também ser usado apenas para substituir o trabalho, e economizar o tempo do professor, para escrever na lousa, e nada mais. Já a lousa, por exemplo, o mais clássico recurso da educação escolar, pode ser instrumento de democratização do conhecimentos, que fica, pelo menos no tempo da aula, materializado para que todos tenham acesso a ele, por meio da cópia do conteúdo. Tal recurso, aliado a uma boa aula expositiva, dialogada ou de outra forma que envolva os alunos na discussão, pode contribuir para a apropriação efetiva dos conhecimentos por parte dos alunos. Outros exemplos exigem nossa atenção. Todos os professores enfrentam atualmente um forte dilema em relação aos trabalhos dos alunos, em todos os níveis de ensino: o plágio. Não é incomum que os alunos entreguem seus trabalhos em parte ou totalmente copiados da internet, valendo-se do simples recurso do CtrlC + CtrlV (copiar colar). Neste caso, o trabalho, escolar ou acadêmico, transforma-se em mais uma forma alienante na relação 62 entre os estudantes e o conhecimento, não sendo instrumento de apropriação efetiva de conhecimentos, mesmo que para isso os estudantes demonstrem amplos conhecimentos desta ferramenta virtual. Ao mesmo tempo, o plágio nos coloca frente a um problema ético: é correto usar as idéias de outros como se fossem de si próprios? A resposta, que parece óbvia, insere na relação educativa uma questão moral: plágio é crime, segundo a Lei nº 9610, de 19 de fevereiro de 1998. A questão apenas ética passa a ter consequências legais, ou seja, adentra no âmbito das sanções sociais, da moral mesmo. No caso acima, o uso da tecnologia na educação não avança em relação ao projeto de humanização, ao contrário, é instrumento antiético e criminal, ou seja, desqualifica o ato educativo, sendo, portanto, elemento alienador e não humanizador. A televisão, outro exemplo de instrumento tecnológico, é um importante mediador na sala de aula. Ela apresenta infinitas possibilidades para o trabalho educativo, ainda mais por ser um suporte tecnológico que se coaduna com veículos documentais importantes, como o VHS, DVD, o CD-ROM, programas televisivos abertos ou de canais por assinatura, enfim, uma infinidade de canais que podem ser reproduzidos pela televisão, e que são conteúdos importantes para a socialização aos estudantes. No entanto, como produto da indústria de massa, o uso da televisão na sala de aula pode estar a serviço apenas da reprodução 63 dos temas já clássicos do senso comum, ou seja, para reproduzir, na sala de aula, aqueles conteúdos que a televisão trabalha cotidianamente, sem uma crítica, apenas para que a escola esteja sintonizada com o cotidiano dos alunos. Com relação ao cotidiano, discurso também muito difundido no meio pedagógico, é importante ressaltar que a educação escolar, nos moldes aqui trabalhados, tem por função ultrapassar o cotidiano, e não o reproduzir, pois o processo educativo é um processo que se coloca contrário ao espontaneísmo presente no cotidiano, ou seja, é preciso que a educação escolar traga para a socialização instrumentos que possam fazer com que os estudantes possam viver seu cotidiano de forma crítica, podendo entendê-lo em seus determinantes estruturais, ou, por outro lado, para que possam ter acesso a conteúdos, conhecimentos, cultura, linguagem não presentes cotidianamente, mas que são, de fato, patrimônios a serem apropriados. Neste caso, por exemplo, encontra-se o fato, do nosso ponto de vista inquestionável, de que a escola deve ensinar a linguagem culta aos estudantes de todas as classes sociais, mesmo que saibamos que nas periferias a linguagem usual não seja essa. No entanto, se a escola não ensinar esta linguagem, como os estudantes a aprenderão, se no seu dia-a-dia não têm contato com ela? A mesma regra é válida para a História e a Geografia. Defendemos o ensino destas disciplinas, mesmo que, 64 aparentemente, aquilo que é estudado não tenha, aparentemente, comunhão com o cotidiano dos estudantes. Em que lugar os estudantes poderão aprender sobre a escravidão, se não for na escola? Como aprenderão sobre geopolítica, se não nos bancos escolares? Os conteúdos das Ciências Naturais entram no mesmo parâmetro acima assinalado, ou seja, é na escola que os estudantes podem aprender, de forma sistematizada, os conteúdos relativos às várias áreas científicas que, direta ou indiretamente, vinculam-se à vida cotidiana, ou que apesar de não estar presentes no cotidiano, devem ser estudados como patrimônio inerente para os conhecimentos sobre os processos naturais do planeta. Percebe-se, portanto, que o uso das novas tecnologias à educação não podem ser julgadas a priori, mas apenas como instrumentos para o fim da educação, que é a socialização dos conhecimentos científicos, artísticos, culturais etc. Todos os meios que auxiliarem para que isso ocorra serão aliados éticos na construção de uma educação humanizadora, no sentido aqui defendido. Novas tecnologias e a Educação a Distância Não poderíamos deixar de tratar neste texto da questão da educação à distância, mesmo que superficialmente, e nos parâmetros aqui já delineados. Tal discussão está na pauta do dia, devido aos projetos governamentais para a Educação à Distância – 65 EAD, especialmente, na UNICENTRO, no âmbito da Universidade Aberta do Brasil – UAB. A questão da ética, no caso, pode ser pensada de duas formas: a primeira é a questão da socialização do conhecimento no que se refere aos cursos de graduação. Os cursos a distância podem ser mais efetivos que os cursos presenciais no que se refere a uma formação de qualidade em nível de graduação? Será possível pensar nesta qualidade fora dos parâmetros concretos do que temos na educação superior presencial? Outra questão a ser levantada é com relação ao vínculo entre professor e instituição, ou seja, o vínculo trabalhista dos professores de EAD no âmbito da UAB. Com relação à primeira questão, ou seja, a socialização dos conhecimentos e a formação de qualidade, a questão a ser levantada é se os vínculos entre estudante e instituição são fortes o suficiente para que possam efetivamente pertencer ao curso e se manterem no curso com qualidade. Ao mesmo tempo é necessário verificar como se dá a avaliação da aprendizagem nestes cursos EAD, e se as mesmas exigências de leitura e produção escrita existem nestes cursos, haja vista a distância entre o estudante e a instituição, inclusive o distanciamento destes com relação à biblioteca universitária, foco fundamental de apropriação de conhecimentos necessários para a formação na graduação. Ainda neste quesito, é importante salientar que, à distância, a relação entre professor e acadêmicos se dá de forma diferenciada, e a questão é saber se esta diferença constitui-se em 66 uma relação mais afastada do que se exigiria em uma relação pedagógica efetiva e de qualidade. Há ainda a mediação dos tutores, como elementos fundamentais da EAD. Será que os tutores, substituindo os professores na avaliação, podem ser elementos dificultadores ou facilitadores? Será que esta mediação não importa em prejuízo para a qualidade, haja vista esta segunda mediação entre professor, acadêmicos e conhecimentos. A formação dos tutores, geralmente menor que a dos professores, pode minimizar ainda mais a qualidade da EAD. Com relação ao segundo quesito, o vínculo dos professores com a instituição no âmbito da UAB, a questão ética se coloca de forma efetiva e importante para a discussão. No âmbito da UAB os professores se vinculam apenas por meio de bolsas, pagas apenas no período em que o professor tem a disciplina no ar, ou no período em que escrevem os conteúdos para as disciplinas. Há, ainda, a possibilidade de que sejam professores diferentes a escrever os conteúdos e os que se responsabilizam pela disciplina no ar, o que ainda amplia a divisão do trabalho na EAD, o que torna ainda problemática a relação. O fato é que nos cursos de graduação a distância ocorre o fato de que os acadêmicos se formam em quatro anos sem ter seus professores com vínculos efetivos com a instituição, ou seja, formam-se por meio de professores precarizados, que ganham bolsas em um valor muito abaixo das exigências para a reprodução 67 digna da vida dos professores. A questão que fica é a seguinte: como fica a questão ética na relação entre professores e instituição que perpetua relações precárias de trabalho? Se nesta relação primordial a relação fica permeada por uma relação precária, o que dizer do restante do processo? Estas e outras questões aqui não levantadas devem ser refletidas no caso da EAD devem ser levadas em conta na relação entre ética, educação e novas tecnologias. Considerações finais Partindo do pressuposto da educação como socializadora do conhecimento científico, artístico, cultural, ou seja, de um projeto educacional que procure a humanização dos indivíduos, entendida a humanização como processo histórico-social alcançada pela apropriação dos resultados objetivos do processo humano, materializado nos conteúdos escolares, discutiu-se neste breve texto questões relacionadas à ética, educação e novas tecnologias. A questão principal que permeou a discussão é que uma educação ética, ou seja, que parte da busca do bem comum, é uma educação humanizadora, que supera a alienação presente na sociedade capitalista. Neste sentido, as novas tecnologias têm contribuído para que isso ocorra? Ou têm cumprido apenas um papel fetichizado e, portanto, mistificador? A ética na sociedade capitalista é impossível de ser concretizada em sua concepção de bem comum, haja vista a 68 essencialidade de classe desta sociedade, que é permeada pela contradição entre os interesses particulares destas classes, que afetam toda a totalidade social, inclusive atingindo a subjetividade dos indivíduos, e naturalizando relações sociais e históricas, como a da propriedade privada. Sendo impossível a ética na sociedade capitalista, logo a educação, como determinada e subordinada aos interesses de classe, não é capaz, sozinha, de garantir eticidade na prática educativa. A escola na nossa sociedade sempre esteve vinculada e subordinada aos interesses da classe dominante, logo, os seus limites como educação humanizadora são postos desde a partida. A proposição que se fez ao longo do texto, ou seja, das possibilidades éticas de uma educação humanizadora, não pode ser separada da análise real da sociedade, e, portanto, tais possibilidades devem ser problematizadas ou mesmo limitadas em seu alcance concreto. Não queremos aqui defender abstratamente uma educação ética, desgrudada das relações reais, mas sim afirmar que os professores podem, na sua prática pedagógica, proporcionar atividades de socialização dos patrimônios culturais, científicos, artísticos e da linguagem, a todos os seus alunos. Com relação à escola, e ainda mais a escola pública, é necessário ressaltar que esta deve estar a serviço das classes dominadas historicamente, e, assim, ser uma mediadora na possível superação da sociedade de classes. 69 Referências DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuiçäo a uma teoria histórico-social da formaçäo do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1993 ______. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica as apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001. SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 2. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1991. (Coleção Polêmicas do nosso tempo; v. 40). TASSIGNY, Mônica Mota. Ética e ontologia em Lukács e o complexo social da educação. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n. 25, Abril 2004. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em 20 junho 2009. TONET, I. Ética e capitalismo. Disponível em: www.geocities.com /ivotonet/.../ETICA_E_CAPITALISMO.pdf. Acesso em 10 maio de 2009. 70 Ética, tecnologias de educação e natureza humana: ou sobre a emergência de uma nova humanidade e os desafios de sua formação 1 Manuel Moreira da SILVA Trata-se de um questionamento filosófico em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes ao uso das chamadas novas tecnologias de educação, bem como sobre as conseqüências destas no tangente à natureza humana em geral e à formação humana em especial. As novas tecnologias de educação constituem, nos dias de hoje, a mais cultuada de todas as formas de se proceder no trato com a educação, seja em um sentido meramente técnico, seja em um sentido supostamente crítico. De qualquer modo, as conseqüências do uso massivo das novas tecnologias de educação já se mostram como que assimiladas, pelo menos em suas linhas gerais, pelas consciências de formação mediana; exemplo disso, ainda que um tanto quanto prosaico, e não diretamente implicado por procedimentos puramente tecnológicos, não é senão a substituição da Pedagogia como Ciência prática da Educação pela Pedagogia enquanto Ciência teórica da Educação. Fenômeno antecipado historicamente pela substituição da Paidéia grega pelo Educere latino ou, em outros termos, da Formação pela 1. Professor do Departamento de Filosofia – UNICENTRO. 71 Educação; em termos contemporâneos, da Bildung concebida nos quadros da Filosofia clássica alemã, sobretudo de Goethe a Hegel, pela Erziehung ou pela Science of Education – contraposta não só à Bildung e, por definição, à Paidéia, mas inclusive ao Educere. Por isso, na época hodierna, dificilmente um pedagogo ou um educador se põe a pensar o sentido ético ou antropológico do “levar pela mão” dos primeiros pedagogos ou a significação ontológica do “tirar de dentro” dos primeiros educadores; ao invés disso, por seu turno, cada vez mais se impõem as chamadas 'novas tecnologias da educação'. A expressão 'novas tecnologias da educação' não diz o mesmo que 'novas tecnologias de educação'; enquanto na segunda está em jogo um conceito pura e simplesmente geral, ou indeterminado, das novas tecnologias de educação, há na primeira uma dupla determinação, essa a um tempo subjetiva e objetiva. Isto significa que, no caso das novas tecnologias da educação, a própria educação é que emerge de um lado como objeto das novas tecnologias e de outro como sujeito das mesmas; o que lhe permite aceder não só a uma consciência em torno do objeto sobre o qual as novas tecnologias se aplicam, mas também e principalmente sobre o próprio sujeito que as produz. Ao fazer isso, já que tal acesso se constitui como a sua possibilidade mais própria e inclusive a mais efetiva, a educação pode aceder ao plano de sua autoconsciência, quando então deve retornar ao seu ponto de partida e assim por em questão os fundamentos que a informa enquanto tal. Ora, no que 72 tange ao caso presente, esses fundamentos não são senão os fundamentos das novas tecnologias de educação, sobre as quais em última instância se assentam as novas tecnologias da educação; por isso, uma consideração que se pretenda rigorosa em torno dessas últimas, que são sobretudo uma particularização das primeiras e dependem portanto de sua noção mais geral, tem que se voltar especialmente para estas, sob pena – caso não o faça – de se perder na ambigüidade constitutiva do genitivo que informa a designação 'novas tecnologias da educação' e as novas tecnologias da educação elas mesmas. Não se trata pois de uma refutação ou de uma defesa, de uma crítica ou de uma apologia, das novas tecnologias atualmente em voga na educação; trata-se antes de uma auto-reflexão da própria educação, no que concerne ao seu caráter propriamente formativo, em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos de sua atuação na esfera das novas tecnologias. O que significa que a educação ela mesma tem que se voltar para aquele campo mais geral e indeterminado das novas tecnologias de educação; o qual, não obstante, não só a informa tecnologicamente, mas também a limita em seus contornos mais fundamentais. O alargamento de tais contornos e, por conseguinte, a superação de seus limites só é possível mediante a determinação do que permanece indeterminado no âmbito das novas tecnologias de educação; mais especificamente, da esfera mesma das novas tecnologias em geral, das quais as novas tecnologias de educação 73 constituem o elemento mais instável e profundo. Até que ponto as novas tecnologias de educação contribuem para que o “levar pela mão” e o “tirar de dentro” não sejam simples lembrança ou algo meramente exterior e mecânico não foi ainda um ponto levado em consideração, nem pelos pedagogos em geral, nem pelos educadores em especial; não obstante, muito se tem discutido em torno dos limites éticos, antropológicos e ontológicos inerentes às novas tecnologias de educação, mas não também sobre as conseqüências destas no tangente à natureza humana em geral e à formação humana em especial. Essa a questão que a época presente, muito propriamente denominada Era tecnológica, impõe aos educadores e a todos aqueles que em sua origem são sobretudo formadores; os quais, enquanto assim se reconhecem, se ocupam não apenas daqueles cujos destinos lhes são confiados, mas antes se ocupam do destino mesmo de sua natureza. No que se segue, buscar-se-á determinar os limites éticos, antropológicos e ontológicos das novas tecnologias de educação, bem como discutir suas conseqüências no concernente à natureza humana, vale dizer, de seu fim terminal ou de sua transformação. Em vista disso, considerar-se-ão os desafios – também éticos, antropológicos e ontológicos – referentes ao fim mesmo da espécie humana (ou ao menos de sua concepção tradicional) e à sua transformação (nos quadros do gênero humano como tal) ou, portanto, à formação de uma nova humanidade. Enfim, propor-se-á um novo conceito de Tecnologia de Educação, distinguindo, como 74 seus momentos, as atuais e usuais tecnologias de ensino e as essenciais – mas ainda meramente possíveis – tecnologias de formação. Limites éticos, antropológicos e ontológicos das novas tecnologias da educação, consequências no concernente à natureza humana: fim terminal ou transformação Jamais na história humana conhecida até aqui o homem defrontou-se com desafios que lhe afrontavam ao mesmo tempo como gênero e como espécie ou punham em risco seu próprio seu destino enquanto tal. Os desafios que interpelam a humanidade pensante nos últimos séculos parecem ser desse último tipo, sobretudo aqueles que mobilizaram as mais diversas correntes de pensamento a se colocarem como problema de uma Ética da Era tecnológica ou para a Era tecnológica e que, como tais, pouco a pouco foi tornando a expressão homo tecnologicus algo comum. Problemas como o da bomba atômica, o da catástrofe ecológica e o da manipulação genética rondam as mentes daqueles poucos que, sobretudo nos dias de hoje, ainda se preocupam com a Idéia de uma Ética universal, da Idéia de uma Ética do Discurso ou da Responsabilidade e que, acima de tudo, se defina como uma macroética e se volte para os problemas em cuja solução encontra-se a chave do destino da humanidade presente. Não obstante, o grosso dessa humanidade não parece haver alcançado o estágio em que se torna consciente da verdadeira gravidade de tais problemas e muito 75 menos o de sua autoconsciência em relação ao seu próprio destino; i.é, consciência e autoconsciência de que tudo isso lhe diz respeito. Mas será que tais problemas realmente dizem respeito à humanidade no estágio presente de seu desenvolvimento; qual a humanidade que, de fato, hoje se põe como problema o seu próprio destino e qual a humanidade de cujo destino não parece ainda estar plenamente consciente? Talvez este seja o caso de se distinguir entre o homo sapiens e o que, na falta de um termo melhor, alguns tem designado homo tecnologicus; esse que também deve ser distinto daquelas expressões certamente parciais que buscavam apenas enfatizar certas características do homo sapiens sapiens, como por exemplo a do homo oeconomicus. O que está aqui em jogo parece ser uma profunda mudança não só histórica e cultural, mas também e principalmente de natureza em sentido próprio; 2 fenômeno já detectado entre outros por Teilhard de Chardin e que, apesar de seu registro diverso, foi assim descrito por Henrique Cláudio de Lima Vaz: Uma revolução profunda e silenciosa, cujos efeitos visíveis e ruidosos acabam por ocultar sua verdadeira natureza e seu alcance, está em curso há pelo menos dois séculos nas camadas elementares do psiquismo e nos fundamentos das estruturas mentais do indivíduo típico da civilização ocidental. Ela vem transformando, num nível de radicalidade até hoje aparentemente desconhecido na história humana, as intenções, atitudes e 2. PIERRE TEILHARD DE CHARDIN, O fenômeno humano. Trad. Léon Bourdon e José Terra. Porto: Tavares Martins, 1970. 76 padrões de conduta que tornaram possível historicamente nosso “ser-em-comum” e, portanto, as razões que asseguram a viabilidade das sociedades humanas e do próprio predicado da socialidade, tal como tem sido vivida nesses pelo menos cinco milênios de história (3000 a.C.-2000 d.C.) (LIMA VAZ, 2002, p.269). Ainda que a verdadeira natureza e o alcance dessa revolução profunda e silenciosa estejam ocultos para grande parte da humanidade presente em geral e da humanidade ocidental em particular, é possível investigar pelo menos a verdadeira natureza de tal revolução a partir dos seus efeitos nas camadas elementares do psiquismo e nos fundamentos das estruturas mentais do indivíduo típico da civilização ocidental. Para isso, um campo privilegiado de investigação parece ser justamente o da formação do indivíduo para a Ciência em geral e o da sua educação ética e política em particular; contudo, investigar essa verdadeira natureza a partir da questão do conhecimento e da cognição, ainda que nos limites do psiquismo e das estruturas mentais ordinárias do indivíduo nos últimos dois séculos, não parece uma tarefa cuja matriz já esteja consagrada. Aqueles que têm investigado essa questão esbarram talvez no que possa ser compreendido como um falso dilema, a saber, a necessidade de ter de escolher entre as duas matrizes de inteligibilidade, das quais, no dizer de Lima Vaz, “derivam todas as estruturas constitutivas e toda a malha de relações e tendências do complexo e enigmático ser humano” (LIMA VAZ, 2002, p.269), a 77 saber, a natureza e a cultura, que então se apresentariam como supostamente contrárias e mesmo contraditórias. Essas duas opções foram como que estilizadas por Lima Vaz, conforme se segue: Deverá essa transformação ser interpretada a partir da matriz natureza, assinalando um novo estádio, qualitativamente novo da evolução biológica do homo sapiens, caracterizado pela definitiva emergência da noosfera e o definitivo desprender-se do neolítico, como queria Teilhard de Chardin? Ou será ela um fenômeno de origem e essência culturais, desencadeando uma mudança radical nos padrões até hoje vigentes de avaliação dos valores e das condutas e provocando, portanto, uma profunda reestruturação psíquica e mental dos indivíduos e, conseqüentemente, novos estilos de vida comunitária? (LIMA VAZ, 2002, p.269) Embora as duas opções pareçam bastante claras, e até mesmo necessárias, não parece que sejam suficientes; pelo menos se se levar a sério a constatação de que hoje se vive nos quadros de uma Era tecnológica e de que o indivíduo típico desta não é senão o que mais acima foi designado homo tecnologicus. De fato, se este for considerado apenas a partir de sua natureza exterior, nada indicará que se trata aí de algo novo e surpreendente; o que faz com que a melhor opção seja justamente a que parte da cultura e nesta procura os elementos mais consistentes para a explicação dessa 78 profunda reestruturação psíquica e mental que a humanidade vem experimentando nos últimos séculos. Entretanto, pode-se dirigir à cultura a objeção fundamental de que também ela não penetraria a natureza interior ela mesma de tal reestruturação, limitando-se quando muito à fixação de algumas das características pelas quais esta se manifesta e se torna reconhecível no âmbito das transformações históricas e culturais. A questão importante é que se podem constatar no processo das transformações em curso tanto elementos oriundos da matriz natureza quanto elementos da matriz cultura; o que se mostra nos quadros das diversas tecnologias atualmente em voga, em especial a tecnologia genética e as tecnologias de educação; a diferença aqui essencial é que enquanto a primeira é meramente irreflexiva, as segundas são, por definição, reflexivas; podendo chegar inclusive à auto-reflexividade. O que não ocorre tão somente em função do tipo de tecnologia em jogo em uma e em outras, isto é, devido ao aporte cultural aí envolvido, nem em função de uma concentrar-se na transformação da natureza física, química ou biológica do homem e as outras voltarem-se para a natureza social, histórica e cultural do mesmo, mas em vista de que, embora em ambos os casos estar em jogo uma e mesma natureza interior, no primeiro esta se mostra ainda irreflexiva, ao passo que no segundo ela se depara consigo mesma enquanto tal, tendo pois que assumir o que é constitutivo de seu ser e rejeitar o que não é; tarefa essa que não se apresenta como pacífica, nem isenta de riscos ou erros os mais 79 decisivos. As ciências humanas, em geral, e as da educação, em particular, ora se apresentam justificando esse estado de coisas, quando assumem acriticamente seu aspecto tecnológico, ora se mostram recusando-o, quando se querem críticas em relação ao que é constitutivo do tal aspecto; mas isso, ao fim e ao cabo, não se mostra ainda interiorizado ao nível de um diálogo interior da natureza interna do homem consigo mesma nos quadros da época atual. Esse o limite mais fundamental e tangível da educação tecnológica hodierna, sobretudo em sua aplicação às ciências propriamente humanas e à formação do indivíduo humano como tal sem questionar a que humanidade o seu conglomerado de tecnologias está servindo. As tecnologias de educação em geral e as tecnologias da educação em particular não podem ser dissociadas do quadro mais geral da Era tecnológica na qual se produzem, sob pena de não cumprirem os seus verdadeiros propósitos que são, em última instância, os de fazer com que a época em que se encerram aceda a uma auto-compreensão crítica de si mesma, vale dizer, de sua natureza propriamente interior. Desse modo, parece que os desafios que hoje estão na ordem do dia sejam, sobretudo, os de ordem ética, antropológica e ontológica, no seio dos quais está a própria auto-compreensão da espécie humana e a autotransformação de sua natureza interior; desafios esses que não exprimem senão os limites mesmos da educação contemporânea e das suas tecnologias. 80 Desafios éticos, antropológicos e ontológicos referentes ao fim da espécie humana, à sua transformação ou à formação de uma nova humanidade Considerando-se que, em última instância, a ciência em geral ocupa-se da natureza humana e as ciências humanas e da educação em particular ocupam-se, por sua vez, da natureza interior do homem ela mesma, há que se reconhecer, sobretudo nestas últimas, que o cuidado com a espécie humana é aí fundamental. Isso quer dizer que numa época como a atual esse cuidado deve revestir-se de uma preocupação com os próprios modos como a referida ocupação se dá; o que, especificamente no caso das tecnologias de educação, deve ser compreendido nos quadros do próprio Devir tecnológico do ser humano e nos de seu tratamento pedagógico. Embora esse pareça um assunto por demais abstruso e por isso distante dos objetivos da educação contemporânea ou dos limites das tecnologias por ela produzidas ou apropriadas, o estranhamento em relação a uma discussão como esta prova justamente o quanto essa educação e suas tecnologias estão dissociadas do humano e das transformações que nele tem lugar, ainda que esteja plenamente vinculada às mesmas. Para melhor ilustrar este ponto, consideremos as seguintes palavras de Jürgen Habermas: O corpo repleto de próteses, destinadas a aumentar o rendimento, ou a inteligência dos anjos, gravada no disco rígido, são imagens 81 fantásticas. Estas apagam as linhas fronteiriças e desfazem as coerências que até o momento se apresentaram ao nosso agir cotidiano como transcendentalmente necessárias. De um lado, o ser orgânico que cresceu naturalmente se funde com o ser produzido de forma técnica; de outro, a produtividade do intelecto humano separa-se da subjetividade vivenciada. Pouco importa se nessas especulações se manifestam idéias malucas ou prognósticos dignos de serem levados a sério, necessidades escatológicas postergadas ou novas variedades de uma science-fiction-science. Para mim, tudo isso serve apenas como exemplo de uma tecnicização da natureza humana, que provoca uma alteração da autocompreensão ética da espécie – uma autocompreensão normativa, pertencente a pessoas que determinam sua própria vida e agem com responsabilidade (HABERMAS, 2004, p.58-9). Seja do ponto de vista da natureza meramente externa, seja do ponto de vista da inteligência propriamente humana, a humanidade presente está cada vez mais cercada não só de objetos técnicos ou artificiais que, enquanto tais, concorrem com ela mesma no sentido de levá-la à realização de alguns de seus fins os mais elevados, mas também se cerca de possibilidades técnicas e tecnológicas nunca antes imaginadas que, como tais, não obstante, se confundem com a própria natureza humana – tanto interior, quanto exterior –, chegando, enfim, a por em crise a concepção até 82 aqui tradicional do que seja a natureza humana, se não a substituir ou a transformar a própria natureza humana enquanto tal. Discussões em torno de uma fusão, suposta ou real, entre o homem e a máquina ou entre o orgânico e o artificial não são mais simples exercícios de ficção científica, mas se movem em torno de projeções científicas as mais sérias, como, por exemplo, as promovidas pelos estudiosos da nanotecnologia; da mesma forma, ainda no campo da fusão do homem à máquina ou desta àquele, mas agora no campo próprio da inteligência, põe-se em questão justamente o problema da ampliação ou da limitação da inteligência propriamente humana com o advento da inteligência dita artificial, quando se impõe a questão da superação definitiva das limitações do chamado hardware humano pelas inteligências superiores cada vez mais adequadas a seu fim e a seu meio, bem como a da imortalidade e a da perfeição ilimitada justamente do software então extraído do cérebro humano. Diante dessas ordens de questões, torna-se crucial e mesmo dramática a função da tecnologia, seja ela aplicada ao que for, caso não se pense nos seus limites éticos, antropológicos e ontológicos, em especial no que tange à vida humana como tal e à autocompreensão do homem enquanto espécie – o que faz dos problemas aqui em jogo também problemas atinentes à educação e às suas tecnologias. Quaisquer que sejam as conseqüências da integração cada vez maior entre o orgânico e o artificial, do humano e do tecnológico, o certo é que aquela revolução profunda e silenciosa 83 da qual falara Lima Vaz não pode ser interpretada pura e simplesmente como sendo apenas um fenômeno de origem e essência puramente cultural. O que também não parece justificar certa revanche do jesuíta francês em relação à tese do brasileiro e à sua tomada de partido pela matriz cultura em oposição à matriz natureza; isso justamente porque, no dizer de Chardin, “a mola e o segredo da Hominização”, do situar-se do Fenômeno Humano no Mundo, seria precisamente o que ele designara “esfericidade geométrica da Terra e curvatura psíquica do Espírito que se harmonizam para contrabalançar no Mundo as forças individuais e coletivas de dispersão e substituir-lhes a Unificação” (CHARDIN, 1970, p.264), esse o resultado da Evolução entendida como “Ascensão de consciência” e esta, por seu turno, concebida como “Efeito de unificação” (CHARDIN, 1970, p.265ss). No horizonte das questões, que hoje interpelam a humanidade pensante, nem a matriz natureza, nem a matriz cultura se mostram suficientes para sua compreensão, explicação e resolução últimas: se há natureza aqui, esta não é mais puramente natural; se há cultura, esta não é simplesmente de ordem cultural – a natureza mesma parece finalmente ceder à exigência dos sofistas e afirmar-se como artificial, quando a cultura ela mesma reivindica para si o legado propriamente natural. O que, enfim, pode ser visto como o espetáculo que celebra o fim da humanidade tal como esta foi conhecida até aqui, bem como o que celebra a sua transformação ou, antes, a formação de uma nova humanidade. 84 As tecnologias que hoje os mais diversos indivíduos humanos têm à mão, incluindo-se aí as tecnologias de e da educação, não são mais que a ponta o iceberg no qual a velha e a nova humanidade estão a travar seus destinos. Contudo, as tecnologias de educação – e mais especialmente as da educação – parecem apresentar-se como as armas principais com as quais uma e outra humanidade se põe a defender o território pretensamente conquistado e a avançar sobre o que ainda está em poder da humanidade adversária. Já deve ter ficado suficientemente claro até aqui que o campo de batalha onde essas duas humanidades travam a sua luta ou o território pelo qual cada uma se entrega inteiramente à conquista não é senão o corpo e a mente dos indivíduos que constituem a espécie humana como tal, justamente aqueles cujos pais entregam aos pedagogos em geral e aos educadores em particular para que estes então cuidem não só de sua educação e/ou de sua formação, mas também, e principalmente, de seu destino enquanto portador da manutenção da espécie. Mas levemos a sério a metáfora aqui empregada: Esta é uma guerra na qual está em jogo o destino da humanidade tal como conhecida até aqui, guerra essa que, porém, é travada em um iceberg, do qual ninguém sabe nem a extensão, nem a massa, nem a profundidade, nem a altura, nem a rota, nem a temperatura, nem o entorno, etc., em suas dimensões e em sua realidade propriamente ditas; uma guerra cujos despojos se deixam espalhados por aí, como projéteis, minas e outros, em mãos de crianças ou de profissionais em sua maioria despreparados ou mesmo incautos, que não tem o 85 menor cuidado com as armas que estão a utilizar, vendo-as geralmente como brinquedos ou instrumentos de diversão, jamais imaginando serem tais brinquedos ou instrumentos de diversão (e outros), na verdade, artifícios de assimilação – para utilizar-se aqui de um conceito comum tanto à educação quanto à forma privilegiada de abordagem dos Borgs em torno de outras espécies, em sua luta incansável contra os humanos pelo domínio final da galáxia no conhecido seriado Star Trek – em especial em The Next Generation e Voyager. Tal como o conhecimento dito científico ou outro, as tecnologias, sobretudo as de educação e da educação, não são neutras; assim como não foi neutra a revolução da gramaticalização e da escrita aproximadamente cinco mil anos atrás, também não é neutra a revolução profunda e silenciosa do presente; em ambos os casos é o destino da humanidade que está em jogo – para onde ela vai, dependerá, sobretudo, das escolhas feitas no presente, precisamente das escolhas dos educadores. Pouco a pouco, o Devir tecnológico se torna apto a despertar o inconsciente maquínico adormecido em cada indivíduo humano; das máquinas mais rústicas de um passado hoje remoto ao programa mais avançado e sofisticado de poucos segundos atrás, muitos poucos tem se dado conta de que aí ocorre a emergência mesma do humano, sua auto-produção. Mas, se isso é precisamente assim, como fazer com que essa produção de si do humano não permaneça alienada e estranhada de si mesmo, senão partindo de 86 suas manifestações e seus efeitos os mais elementares; no caso, aqueles dos quais cada um tem uma experiência que é única e intransferível, seu próprio aprendizado de si, em si e para si? Com isso, enfim, não se estaria contribuindo para a emergência do consciente e do autoconsciente maquínicos eles mesmos e justamente no indivíduo até então considerado humano; assim, o que então deveria de ora avante ser considerado humano e o que deveria ser considerado maquínico? Essas as questões que só poderão ser devidamente respondidas quando se passar além da discussão em torno das chamadas tecnologias de educação e da educação. A guisa de conclusão: para um novo conceito de tecnologia de educação, as atuais e usuais tecnologias de ensino e as essenciais – mas ainda meramente possíveis – tecnologias de formação Ao final desta exposição, certos pedagogos e educadores que a seguiram até aqui poderiam não esconder algum desapontamento com o fato de nela não se ter, em nenhum momento, levado em consideração as tecnologias de educação e as tecnologias da educação em seu uso concreto. A esses teríamos de dizer que tal uso pretensamente concreto seria irrelevante ou ainda obsoleto, assim como as tecnologias o são quando destituídas do mesmo, caso se leve em conta apenas o uso pelo uso, ou o uso sem mais de toda e qualquer tecnologia como algo meramente exterior àquele que dela se utiliza. Isso porque não se está lidando aqui tão 87 somente com um instrumento ou um meio capaz de instrumentar melhor ou pior os indivíduos humanos em sua adaptação às novas exigências do mercado de trabalho ou de uma vida cidadã. Como foi dito antes, a situação é bem mais dramática, trata-se de pôr em questão o caráter determinante ou condicionante das novas tecnologias no trato mesmo com a natureza humana naquilo que ela tem de mais interior. Neste sentido, talvez fosse o caso de se distinguir radicalmente, no âmbito das tecnologias de educação, entre as atuais e usuais tecnologias de ensino e as inatuais, mas essenciais, tecnologias de formação. Enquanto as primeiras se limitam à facilitação do aprendizado nas áreas do saber as mais diversas e ao tratamento daqueles óbices que se apresentam nos quadros desse processo, sejam tais óbices de ordem ética, política, tecnológica, cultural, etc., as segundas deveriam voltar-se mais propriamente para aquele núcleo existente no mais recôndito de cada indivíduo humano que é precisamente a sua capacidade de ser si mesmo e seu desenvolvimento em si e para si mesmo. As tecnologias usuais na maioria das vezes, pelo menos do modo como são hoje utilizadas e justificadas, contribuem mais para o embotamento dessa capacidade do que para o seu pleno desabrochamento; e isso por mais que tenham contribuído até aqui para a elevação do saber global (embora nos limites de sua concepção técnica) e a superação das ordens de insuficiência que, sem essas tecnologias, deixavam boa parte dos indivíduos humanos como que relegados a uma 88 condição animal ou a um nível pré-cultural ou semi-cultural. Por isso, as tecnologias de formação não excluem as de e da educação, mas visam compreender em que medida as mesmas podem servir a um tipo de propósito que ou as põem em xeque ou as elevam para um nível de compreensão tal no seio do qual elas deverão ser compreendidas como sendo um com o si mesmo que nelas se desenvolve. O que, ao fim e ao cabo, impõe um desafio extremamente novo e interessante para as ciências humanas e da educação; a saber: reconsiderar o seu próprio nascimento, mas agora à luz da transformação radical de seu objeto ou do próprio Homem, i.é, de sua natureza interior a mais recôndita e de sua autocompreensão de si mesmo como tal. A humanidade presente ainda envolvida em seu sono natural (no qual tudo permanece indeterminado) não suspeita a revolução profunda e silenciosa pela qual já está passando fazem alguns séculos; revolução cujos efeitos já se mostram a cada dia nas experiências individuais as mais prosaicas, como por exemplo o simples sentar-se diante de um computador e, na resolução de atividades não menos prosaicas, deixar-se guiar pelos programas ali instalados. Como já demonstram algumas pesquisas, se essa simples atitude interfere de certo modo nas rotinas e modos de pensar do indivíduo humano; o que dizer da generalização da tecnologia em todos os níveis do ser e do saber humanos hoje reconhecidos como tais? 89 Referências CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. Trad. Léon Bourdon e José Terra. Porto: Tavares Martins, 1970. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. HABERMAS, Jurgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins fontes, 2004. 90 PARTE II Estudos Culturais e Humanidades O sujeito professor no discurso das propagandas governamentais: interdiscurso e construção da identidade 1 Adriana Dalla VECCHIA Luciana Cristina Ferreira DIAS Luciana FRACASSE Ao reconhecermos a necessidade de reflexões e posicionamentos perante a formação de professores, alunos do curso de Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste, consideramos pertinente a realização de um estudo que visualize os diferentes enfoques conferidos à educação por meio do discurso de nossos governantes divulgados pela mídia. Nesse contexto, buscaremos analisar o discurso de uma propaganda de caráter governamental veiculada em canais abertos de TV, em maio de 2009, enfatizando a realização da 5ª Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). Adotaremos como dispositivo teórico-metodológico as noções e os conceitos erigidos pela Análise do Discurso francesa. Assim, verificaremos as condições de produção, o interdiscurso e a construção da identidade atribuída ao sujeito professor na propaganda governamental. O discurso publicitário e a Análise do Discurso O discurso publicitário, ao transmitir fatores ideológicos, 1. Este trabalho faz parte das atividades desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Línguas & Linguagens, na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), coordenado pela Professora Dra. Sheila Elias de Oliveira. 93 históricos e sociais, representa uma valiosa fonte de pesquisa para a Análise do Discurso. Segundo Vestergaard e Schroder, “a função da propaganda vai muito além da venda de um produto – ela opera por caminhos sutis no sentido de nos levar a adotar um determinado modo de vida ou incorporar determinados padrões de necessidades” (2000, p.7). Ao procurarmos compreender os efeitos de sentido produzidos por uma publicidade, levamos em conta um aspecto que é essencial para a AD, a noção de ideologia, definida por Gregolin (1995) como um conjunto de representações que dominam as diferentes classes dentro da sociedade. Para Althusser, a ideologia “é a representação imaginária que interpela os sujeitos a tomarem um determinado lugar na sociedade, mas que cria a ilusão de liberdade do sujeito” (2001, p.85). Para ele, a ideologia é reproduzida através de aparelhos ideológicos, como por exemplo: o aparelho religioso, o político, o escolar, entre outros, nos quais as classes sociais são organizadas em um todo complexo de atitudes e representações. A mídia, hoje, funciona como um dos mais fortes aparelhos ideológicos e, entre as diversas formas de textos midiáticos, a publicidade destaca-se como grande disseminadora de valores. Segundo Monnerat (2003), ao propagar os valores e ideais da classe dominante, a ideologia apresenta-se no discurso publicitário em três dimensões: na construção das relações entre o produtor/anunciante e o público; na construção da imagem do 94 produto; e na construção do consumidor como membro de uma comunidade. A dimensão voltada para o consumidor torna-se a mais relevante para o publicitário, pois é a propaganda que constrói “o tipo ideal de consumidor pelos modelos de comportamentos consumistas divulgados e baseados no senso comum” (MONNERAT, 2003, p.46). Nesses termos, quando tentamos compreender os efeitos de sentido produzidos por uma propaganda, devemos considerar o poder ideológico que a permeia, bem como as condições de produção em que ela se realiza. Para Orlandi (2001), as condições de produção correspondem ao sujeito, à situação e também à memória. Em sentido estrito, referem-se ao momento da enunciação, ou seja, ao contexto imediato; em sentido amplo, abrange o contexto sóciohistórico e ideológico. A memória refere-se ao interdiscurso, definido por Orlandi “como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente” (2001, p.31). É através do interdiscurso, ou memória discursiva, que as palavras que dizemos fazem sentido, pois seus significados são oriundos de outros dizeres que se encontram armazenados em nossa memória e que vem à tona com outras palavras a cada enunciado produzido. Desse modo, constatamos uma ligação entre o que já foi dito e o que se está pronunciando, há, portanto, relação entre o interdiscurso e o intradiscurso. O interdiscurso, como já dissemos, 95 corresponde à constituição do sentido por meio de formulações produzidas e já esquecidas que dão respaldo à nossa fala. O intradiscurso designa o ato da formulação do que dizemos em um certo momento, em determinadas condições. Para a autora (2001, p.40), é importante ressaltar que as condições de produção abarcam o que é material (a língua sujeita a equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em sua ordem) e o mecanismo imaginário, também chamado formações imaginárias. Sobre este último aspecto, a autora afirma que não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções, assim sendo, esse mecanismo produz imagens dos sujeitos e do objeto do discurso, em uma conjuntura sóciohistórica. De fato, o sentido de um texto não existe em si, é, pois, definido pelas posições ideológicas dispostas no processo sóciohistórico no qual as palavras são produzidas. Seguindo o mesmo raciocínio teórico, lembramos que em todo texto devemos considerar aquilo que é dito naquele momento, o que já foi dito e esquecido e também aquilo que não foi dito, mas faz sentido. A partir das noções de interdiscurso, de ideologia e de formação discursiva a Análise de Discurso aborda o não-dizer. Estas noções nortearão o desenvolvimento da pesquisa dando-nos respaldo para comprovarmos que “há sempre no dizer um não-dizer necessário” (Orlandi, 2001, p.82). Segundo a autora, para analisarmos o não- 96 dizer, temos que partir do dizer, de suas condições e da relação com a memória, com o saber discursivo, para então delimitarmos as margens do não-dito que contornam o dito significativamente. Um meio de veiculação do discurso publicitário: a televisão É do conhecimento de todos que os textos publicitários são veiculados pela mídia eletrônica: televisão, Internet, rádio, cinema; e pela mídia impressa: revistas, listas e guias, jornais, mala direta entre outros. No entanto, nessa pesquisa enfocaremos especificamente um meio de veiculação eletrônica: a televisão, a qual, do ponto de vista da mídia, é o maior veículo de comunicação do país, atingindo 80% dos lares brasileiros, isto é, possui uma grande capacidade de cobertura. A televisão é um veículo de comunicação que, na atualidade, de forma direta, intervém na constituição dos sujeitos e na sua produção identitária, uma vez que os indivíduos estão sob o domínio dessa mídia, porque, para eles, o momento em que se está assistindo, preenche o tempo de lazer, transformando-se em entretenimento; por outro lado, a televisão domina porque condiciona a forma de ver e pensar das pessoas por meio da própria linguagem, caracterizada pela rapidez e pela repetição constante, que acabam internalizando idéias, conceitos, sons e imagens na mente das pessoas, exercendo, segundo Gonzáles (2003, p. 30), fascínio sobre estas. As mensagens publicitárias exibidas na televisão são em 97 forma de comerciais. Estes se apresentam como pequenos enredos que fragmentam os programas e determinam o tempo de corte e intervalo. Para Nagamini (2001), a presença da propaganda na mídia televisiva representa “uma espécie de suspensão, um devaneio momentâneo, que leva o telespectador a vivenciar um conjunto de imagens simbólicas”, construídas por meio de um discurso de persuasão. Conforme Tasso, a produção estética televisiva traz o mundo até o sujeito-telespectador em imagens articuladas com o verbal e o sonoro. Segundo a autora, a união das três dimensões visual, verbal e sonora – organiza “fragmentos do universo e os apresenta, com freqüência, em forma de espetáculo e de simulacro” (2006, p.132), dois efeitos de sentidos estruturados na relação dinâmica da imagem-vídeo, com valores de tempo e de espaço relativos, em um constante jogo de enunciados que se repetem e produzem novos significados nas práticas discursivas. Nesse contexto, a autora (2006) trabalha com o fato da espetacularização, a qual diz respeito ao poder de a mídia televisiva relatar e comentar os fatos do mundo com qualidade tal de produção que, por si só, seduz o leitor, sem que, necessariamente a mensagem veiculada tenha muita relevância. Ao utilizar-se dos recursos de produção em larga escala, a televisão consegue fazer de qualquer simples acontecimento cotidiano um espetáculo, mantendo o telespectador horas e horas frente à televisão, sem questionar a própria atitude em relação à programação e também à 98 programação em questão. Além do poder da espetacularização, há também a ocorrência do simulacro, que interferirá na construção da identidade dos sujeitos, pois refere-se à dissimulação do mundo exterior, criando e manipulando signos, e, assim, produzindo sentidos. O discurso dos programas governamentais para a educação Ao focalizarmos o discurso das propagandas governamentais veiculado pela mídia televisiva, reconhecemos que a sua finalidade maior é apresentar os programas educacionais e instrumentos de avaliação do ensino público desenvolvidos pelo Governo Federal e buscar o engajamento da comunidade escolar, desde a administração, o corpo docente e discente e a família. A propaganda analisada refere-se à 5ª Olimpíada Brasileira de 2 Matemática das Escolas Públicas – OBMEP. A OBMEP é uma competição organizada pela Sociedade Brasileira de Matemática, em estreita parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, é aberta a todos os estudantes dos Ensinos Fundamental (a partir da 5ª série), Médio e Universitário das escolas públicas brasileiras. Em torno desta competição, a Sociedade Brasileira de Matemática elaborou um projeto que visa empregar competições matemáticas como veículos para a melhoria do ensino de Matemática no país, além de contribuir para a descoberta precoce de talentos para as Ciências em geral, criando um ambiente estimulante para o estudo da Matemática entre alunos e professores de todo o país. 2. Informações disponíveis no site: http://www.obmep.org.br/regulamento.html 99 A construção de identidades a partir do discurso governamental: Seja como pesquisadores, professores ou acadêmicos, não podemos negar que a mídia intervém na constituição dos sujeitos na pós-modernidade. Nesse sentido, os estudos sobre o conceito de identidade e a sua formação ganham especial relevância em nosso trabalho, uma vez que estamos investigando o papel da mídia televisiva na disseminação das propostas elaboradas pelo Governo Federal, em consonância com a identidade que é atribuída ao sujeito professor no discurso assinado pelo Ministério da Educação. Mey (1998) em “etnia, identidade e língua” afirma que a língua se relaciona com a sociedade porque é a expressão das necessidades humanas de se congregar socialmente, de construir e desenvolver o mundo. “A língua não é somente a expressão da alma ou do íntimo, ou do que quer que seja, do indivíduo; é, acima de tudo a maneira pela qual a sociedade se expressa como se seus membros fossem a sua boca” (p.77). Na realidade, como afirma Hall (2006), “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia”, pelo contrário, com a multiplicação dos sistemas de significação e representação cultural, nos deparamos com uma multiplicidade desconcertante de identidades possíveis, e, muitas vezes, acabamos nos identificando, ainda que temporariamente, com cada uma das identidades apresentadas. Ainda segundo o autor (2006), “os fluxos culturais”, entre as nações e o consumismo global criam possibilidades de “identidades 100 compartilhadas”, assim temos “consumidores para os mesmos bens, “clientes para os mesmos serviços, “públicos” para as mesmas mensagens e imagens. Nesse ponto, Tasso (2006) afirma que as práticas sociais e discursivas veiculadas na mídia materializam discursos de saber e de poder, ditando aquilo que somos ou que devemos ser. Diante das considerações feitas até o momento, nos voltamos ao âmago da nossa pesquisa que é as formas do silêncio e nos deparamos com a afirmação de que a linguagem se constitui para garantir e unificar os sentidos e os sujeitos, ou seja, a identidade construída pela nossa relação com a linguagem nos torna familiares à espécie humana. (ORLANDI, 2002). Nesses termos, devemos também considerar o silêncio como o rompimento da “absolutização narcísica do eu” (ORLANDI, 2002, p.51), ou seja, o silenciamento é parte da experiência da identidade, uma vez que é parte constitutiva do processo de identificação, é o que fornece condição de movimento na constituição do sujeito. Propaganda 1 - Ministério da Educação – OBMEP 2009 60” – Maio/2009 Cena 1 Legenda: A 5ª Olimpíada Brasileira de Matemática da Escolas Públicas está chegando. 101 Cena 2 Legenda: Diretores e professores, motivem seus alunos. Cena 3 Legenda: As inscrições só podem ser feitas pela internet. Um banco de questões com problemas e soluções está disponível na sua escola. Cena 4 Legenda: E, se quiser, tem mais no portal da Olimpíada. www.obmep.org.br Cena 5 Legenda: Participe da 5ª Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas e concorra a medalhas e a bolsas de estudo. 102 Cena 6 Legenda: OBMEP 2009 somando novos talentos para o Brasil. Ministério da Educação. Brasil, um país de todos. O presente anúncio coletado em maio de 2009 refere-se à competição organizada pela Sociedade Brasileira de Matemática, em estreita parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, denominada Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas – OBMEP, em sua 5ª edição. A OBMEP é um projeto que pretende criar um ambiente estimulante para o estudo da Matemática entre alunos e professores de todo o país, voltada para a escola pública, seus estudantes e professores, tem o compromisso de afirmar a excelência como valor maior no ensino público. Suas atividades vêm mostrando a importância da Matemática para o futuro dos jovens e para o desenvolvimento do Brasil. Em relação à nomeação Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas, o primeiro elemento do sintagma, Olimpíada, diz respeito a uma competição, cuja origem é grega, rememorando a disputa de um conjunto de modalidades esportivas que ocorre de quatro em quatro anos em locais diferenciados a cada evento, reunindo delegações de vários países. Os gregos, por volta de 2.500 103 AC, homenageavam aos deuses, principalmente Zeus, com disputas em diversas modalidades esportivas centralizadas na cidade de Olímpia, os vencedores das Olimpíadas ganhavam uma coroa de louros e eram recebidos em suas cidades como heróis. No caso analisado, temos o uso desse vocábulo desvinculando a matemática de uma metodologia tradicional, demonstrando que é possível diversão no estudo dessa área do conhecimento e que ela está muito mais próxima do cotidiano do aluno do que ele possa imaginar. Ainda em relação à nomeação, percebemos o qualificador brasileira, diferentemente do utilizado para o instrumento de avaliação da educação nacional Prova Brasil, sendo Brasil uma marca formal que participa da construção de sentidos ligados ao Governo Federal, o qual mobiliza um sentimento de brasilidade ou de pertencimento à nação para constituir um instrumento avaliativo e conquistar o público das escolas em torno desse processo. Ao se utilizar do qualificador brasileira, a propaganda mostra que é uma competição pensada, pelas instituições já mencionadas, para a sociedade brasileira. Esta olimpíada não partiu de uma iniciativa do Governo Federal, mas é apoiada por ele, uma vez que ao final do vídeo, temos a presença da assinatura do Governo, incluindo esse evento ao PDE, o Plano de Desenvolvimento da Educação. É relevante observarmos também a presença de elementos que retomam aspectos típicos da nação brasileira, como, por exemplo, as cores verde e amarelo predominantes nas cenas, desde as roupas usadas pelos alunos até os espaços visitados por eles. O 104 próprio ambiente do zoológico contribui para essa composição tipicamente brasileira, ao expor animais como a onça pintada e o lobo guará, encontrados no território brasileiro. No âmbito do intradiscurso, ou seja, no momento da formulação da propaganda, verificamos que a linguagem verbal se compõem em duas formas distintas: a oralidade (narrativa definindo a Olimpíada e orientando acerca dos procedimentos para inscrição); a escrita, a qual aparece em suportes diferenciados (placas e roupa do funcionário do zoológico compondo o cenário e textos lançados na tela para intensificar as informações fornecidas pela locutora). A linguagem não-verbal é construída pela imagem de uma turma de alunos que é levada (provavelmente por um professor) ao Zoológico e, enquanto visitam os animais, um dos alunos vê as informações sobre a Olimpíada de matemática em placas e na roupa de um funcionário do Zoológico. Produz-se um efeito de sentido voltado ao comportamento dos animais, pois estes parecem mostrar que está chegando a hora da Olimpíada e que estão torcendo pelo aluno. Além disso, o cenário ressalta a presença da matemática em todo lugar, aliada à simplicidade e à diversão encontradas numa visita ao Zoológico por exemplo. A composição das cenas remete-nos a uma memória discursiva voltada aos diferentes níveis de interesse para se concorrer a uma olimpíada entre outras atividades competitivas. Assim sendo, o fato de apenas um menino, entre tantos outros, 105 perceber as informações sobre a Olimpíada nos diversos lugares por onde passavam, faz referência ao grau de afinidade e envolvimento dos seres humanos em atividades como esta, ou seja, sabemos, por nossa própria vivência, qual é a nossa proporção de engajamento e estímulo quando o assunto é participar de eventos como olimpíadas, campeonatos, maratonas ou festivais. Os efeitos de proximidade e diálogo com o sujeitotelespectador são assegurados pela presença dos dêiticos temporais 3 “está chegando”, “a OBMEP vem aí”; dos dêiticos pessoais “seus alunos”, “sua escola”, “todos estão torcendo por você” e dos dêiticos espaciais identificados nos enunciados: “as inscrições só podem ser feitas pela internet”, “a matemática está em todo lugar”, “tem mais no Portal da Olimpíada”, “procure o banco de questões”. O uso dos elementos dêiticos produz um efeito de orientação e incentivo tanto para os alunos quanto para os professores. 4 Outro recurso lingüístico utilizado é o uso dos imperativos, como podemos visualizar nos enunciados “Diretores e professores, motivem seus alunos”, “Participe da 5ª Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas”, “procure o banco de questões”, “Participe, todos estão torcendo por você”, “concorra a medalhas e a bolsas de estudo”. Diferentemente das propagandas sobre produtos e serviços de empresas não-governamentais, a presença de imperativos neste anúncio não configura uma ordem ou um 106 3. Toda atividade de linguagem é um processo marcado pela inscrição do sujeito. Nesse sentido, temos os marcadores dêiticos, definidos como os elementos lingüísticos que mostram a presença do locutor no enunciado. São os pronomes pessoais: eu, tu; os pronomes demonstrativos: este, esta, isto; os pronomes possessivos de 1ª e 2ª pessoas; os advérbios de lugar e tempo: aqui, agora, lá; as locuções adverbiais; os morfemas verbais do tempo presente de 1ª e 2ª pessoas. 4. De acordo com Sandmann (2001, p. 27), o modo imperativo do verbo “é a principal marca lingüística do texto de função apelativa explícita”, visando alcançar determinado comportamento do consumidor. Para Monnerat (2003), na publicidade, o uso do imperativo deve ser entendido como uma “sugestão para comprar” e não como uma ordem propriamente dita. apelo, mas sim, sugere, com o auxílio de um cenário convidativo, o engajamento da comunidade escolar no evento. Os textos dispostos nas placas encontradas ao longo do percurso feito pelos alunos apresentam diferenças gráficas significativas. Algumas palavras são escritas em formato maior, direcionando os possíveis leitores para a informação principal ou para a ação que estes devem desempenhar: “a matemática convida”, “Participe todos estão torcendo por você”. Reconhecemos que o destaque conferido a estas palavras corresponde aos recursos utilizados na fala, como a entonação e o volume, quando o falante pretende enfatizar uma ou outra informação. Em relação à identidade do professor, construída na propaganda em análise, observamos que os diretores e professores são chamados a motivar seus alunos quanto à participação na olimpíada, reproduzindo em nossa memória o discurso referente ao papel ou função dos docentes em relação aos seus alunos, independente se estão de acordo, ou não, com a ideologia adotada na formulação dos vários eventos para os quais sua colaboração é solicitada, como: motivar, incentivar ou orientar os alunos para se inscreverem na olimpíada. Assim sendo, esse professor é construído discursivamente enquanto um sujeito que precisa estar engajado com as propostas feitas às escolas. Baumann afirma que numa sociedade líquido-moderna, caracteristicamente plural com discursos plurais em qualquer esfera do conhecimento, em que qualquer conceito deve ser 107 relativizado, não há sentido em se buscar uma identidade individual ou de uma classe, afinal “ uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades [...] não é uma perspectiva atraente” (2005). Nesse sentido, a propaganda governamental busca expor a identidade cristalizada do professor, um professor que “assume todas as tarefas da conjuntura escolar””, ignorando as mudanças sociais que exigem uma nova concepção da profissão professor que precisa refletir sobre seu fazer pedagógico e não somente executar tarefas preestabelecidas. Considerações finais Com base na análise da propaganda, podemos dizer que a representação da identidade do professor, construída no discurso governamental, projeta-se a partir de um discurso já conhecido, ou seja, é ao docente que compete a tarefa de conduzir e auxiliar seus alunos nas diversas atividades que se engajem. É relevante salientarmos a presença da nomeação brasileira dando ênfase ao apoio do governo para a olimpíada, o qual é evidenciado não só pelos recursos lingüísticos, como pela composição do cenário, as cores escolhidas e os animais apresentados. Acrescente-se a isso que a propaganda enfatiza o Brasil, retomando um discurso já identificado em outros anúncios, como a Prova Brasil e a Provinha Brasil. Em todos eles, percebemos o compromisso de melhorar os índices de aprendizagem dos alunos nos diferentes níveis de escolaridade, por meio de um ambiente 108 propício para um ensino mais significativo que prepare os alunos para atuarem em situações sociais reais. 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Numa certa fase de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou – o que é apenas a expressão jurídica da mesma coisa – com as relações de propriedade dentro das quais até então operaram. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformaram em suas correntes. Começa então uma época de revolução social. Com a modificação da base econômica, toda a imensa superestrutura se transforma mais ou 1. Professor do Departamento de Comunicação Social – UNICENTRO 113 menos rapidamente. Ao examinar essas transformações, uma distinção deve ser sempre feita entre a transformação material das condições econômicas de produção, que podem ser determinadas com a precisão da ciência natural, e as formas jurídica, política, religiosa, estética ou filosófica – em suma, ideológicas – pelas quais os homens se tornam conscientes desse conflito e o tentam solucionar. Karl Marx Quando as palavras acima foram escritas por Marx em 1859, num prefácio para sua Contribuição à crítica da economia política, surge não apenas um modelo que compreende as relações de produção (WILLIAMS, 1979, p. 79-80), mas também um problema: como ocorrem essas relações, ou melhor, como se resolvem as determinações entre uma base econômica e uma superestrutura ideológica? Desde então, várias soluções foram apresentadas, sem desconsiderar aquela apressadamente deduzida da própria formulação do problema, pois, como observamos nas palavras acima, “o modo de produção da vida material condiciona os processos social, político e intelectual da vida em geral”. Está preparado o terreno do determinismo econômico, que ainda produz frutos mesmo após as considerações de Engels, feitas a Bloch numa carta de 1890: “[...] se alguém torce o que dissemos para afirmar que o elemento econômico é o único elemento determinante, transforma essa proposição numa frase sem sentido, abstrata, absurda” (ENGELS apud WILLIAMS, 1979, p. 83; grifo do autor). Na 114 verdade, já nas palavras de Marx constatamos que a solução do problema não é tão simples como nos faz pensar o determinismo econômico, pois, se a superestrutura é determinada pela base, então como essa, ou seja, como as “formas jurídica, política, religiosa, estética ou filosófica” tornam os homens conscientes dos conflitos? Colocando em palavras claras: como transformar a base a partir de idéias condicionadas pela própria base? Este paradoxo, veremos logo adiante, é uma das “Questões de método” (1957) desenvolvida por Sartre, mas que também é abordado por Engels na carta citada acima: A situação econômica é a base, mas os vários elementos da superestrutura – formas políticas da luta de classe e seus resultados, ou seja, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa depois de uma batalha bemsucedida, etc., formas jurídicas, e até mesmo os reflexos de todas essas lutas práticas nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, opiniões religiosas e seu desenvolvimento em sistemas de dogma – também exercem sua influência sobre o curso da lutas histórias e, em muitos casos, são preponderantes na determinação de sua forma (ENGELS apud WILLIAMS, 1979, p.83-84; grifo do autor). Mas não adiantemos o debate, pois o objetivo deste artigo é discutir justamente as várias interpretações do modelo base- 115 superestrutura. Esclarecemos desde já que tomaremos a produção artística como lugar privilegiado para nosso debate, pois, como acrescenta Jameson, especificamente a respeito do “domínio fechado da literatura”, “[...] seus problemas característicos de forma e conteúdo, e da relação da superestrutura com a infraestrutura, oferece um microcosmo privilegiado para se observar o pensamento dialético em operação” (JAMESON, 1985, p.2-3). Não é por acaso, portanto, que o modelo base-superestrutura desaponta insistentemente nos textos de crítica literária, desde Arte e vida social (1913) e sua teoria do reflexo desenvolvida por Plekhanov. Mas antes de adentrar nesta primeira interpretação do modelo, voltemos a Jameson para afirmar que a relação entre base e superestrutura “[...] é anterior a qualquer das categorias conceituais, tais como causalidade, reflexo, ou analogia, elaboradas subseqüentemente para explicá-lo” (JAMESON, 1985, p.13). Portanto, as diversas interpretações do modelo são “[...] tentativas da mente, depois do fato, em dar conta de sua própria capacidade de subsumir dois termos díspares dentro da estrutura de um único pensamento” (JAMESON, 1985, p.13). Ou seja, as interpretações são formas de abarcar a dualidade do modelo, como se uma palavra (reflexo, mediação, etc.) correspondesse às duas que figuram no modelo – mas quando a própria dualidade do modelo é questionada pelos Estudos Culturais, alguns autores se levantam, inclusive Jameson, para criticar o pós-marxismo de tais estudos. Deixemos de lado esta querela, pelo menos por enquanto, e 116 vejamos como a teoria do reflexo surge no texto de Plekhanov: ao discorrer sobre “a arte pela arte” – tendência parnasiana que defende a autonomia da arte enquanto exercício puramente formal –, o autor afirma que mesmo esta tendência, que procura desvencilhar-se das condições materiais negando qualquer função referencial no plano da obra, é também determinada, ou melhor, refletida por tais condições: A inclinação da arte pela arte se manifesta e fortalece quando existe o desacordo insolúvel entre a pessoa e o meio social que a cerca. Esse desacordo reflete-se na obra artística tanto ou mais voluntariamente quanto ajuda os artistas a se elevarem sobre o meio que os rodeia (PLEKANOV, s/d, p. 54; grifo nosso). O que nos interessa aqui não é tanto a explicação do autor, mas os termos por ele utilizados, como o que grifamos. Isto nos leva a pensar se o problema base-superestrutura não é, antes de tudo, um problema terminológico. Pois há uma simplicidade no termo “reflexo” que parece não atingir a complexidade do problema, reduzindo-a a conclusões como esta: O ideal de beleza que prevalece em determinado tempo, em determinada sociedade ou em determinada classe de uma sociedade, tem sua raiz, parte nas condições biológicas do desenvolvimento do gênero humano que criam particularidades de raça, e 117 parte nas condições históricas do nascimento e da existência dessa sociedade ou classe (PLEKANOV, s/d, p 47). Se não encontramos o termo “reflexo” citado aqui, verificamos outro igualmente problemático: o termo “raiz”, apesar de remeter à “base real” de Marx, sugere algo completamente diferente: as idéias germinam a partir das condições biológicas e históricas. Não somente por causa de metáforas naturalistas como esta, mas também devido às explicações mecanicistas, Gramsci identifica nos textos de Plekhanov tanto um “método positivista” quanto um “materialismo vulgar” (GRAMSCI apud KONDER, 1967, p.41). Ou como afirma Konder: Ao defender o princípio materialista da dependência da arte em relação à vida social, Plekhanov dá-lhe uma formulação estreita, de dependência servil da criação estética ante a ditadura implacável e mesquinha das circunstâncias sócio-econômicas. A arte, para o materialismo dialético, não é um mero produto do meio: é também uma manifestação da presença ativa do homem na transformação criadora do meio. E o meio, para o materialismo histórico, não é jamais um meio homogêneo, como o figurava Taine (KONDER, 1967, p.41). Taine, filósofo positivista que identificava a hereditariedade, o meio ambiente e o momento histórico como 118 fatores determinantes do comportamento humano, é justamente o autor citado por outro seguidor da teoria do reflexo (BUKARIN, s/d, p.121). De fato, em Materialismo histórico (1925), Bukharin afirma que, “da mesma forma que a ciência ou qualquer outro reflexo da produção material, é a arte um produto da vida social” (BUKARIN, s/d, p.111). E ainda no mesmo parágrafo, traça uma comparação naturalista: “Como a ciência, [a arte] só pode desenvolver-se quando as forças da produção alcançam determinado nível. Do contrário, fenece e morre” (BUKARIN, s/d, p.111). Para não nos perdermos em tantos exemplos, voltemos à crítica de Konder: a insuficiência da teoria do reflexo, enquanto interpretação do modelo basesuperestrutura, reside na ausência do homem como transformador do meio, sendo apenas compreendido como determinado pelo meio. Ao confrontar estas duas relações entre o homem e o meio – transformação e determinação –, Engels resume dialeticamente o problema numa frase bem conhecida: “São os próprios homens que fazem sua história, mas em determinado meio que os condiciona”. Esta questão é central na já citada obra de Sartre: ... os homens fazem a sua história na base de condições reais anteriores (entre as quais, deve-se contar com os caracteres adquiridos, as deformações impostas pelo modo de trabalho e de vida, a alienação etc.), mas são eles que a fazem e não as condições anteriores: caso contrário, seriam os simples veículos de forças inumanas que, através deles, regeriam o mundo social (SARTRE, 2002, p.74). 119 Compreender que os homens criam as próprias condições materiais que os determinam é reconhecer a incoerência da teoria do reflexo – também criticada por Sartre, como veremos adiante –, pois estas condições são criadas justamente a partir dos produtos superestruturais (leis, manifestos políticos e obras culturais de grande apelo, etc.). É também a partir da afirmação de Sartre que entendemos porque explicações do tipo causa-efeito, praticadas pelos teóricos do reflexo, são denominadas mecanicistas: o relógio, após dado corda, movimenta-se independentemente da interferência humana, sendo, portanto, uma força inumana. Tais explicações remetem às filosofias mecanicistas do século XVII (filosofia cartesiana, por exemplo), demonstrando que a teoria do reflexo é anterior às hipóteses marxistas aqui debatidas. Na verdade, segundo Lukács, ... a idéia em si é muito mais antiga: ela já constituía um problema central na estética de Aristóteles; e, desde então, excetuadas as épocas de decadência, predomina em quase todas as grandes estéticas. [...] Basta-nos, contudo, recordar de passagem o fato de que muitas estéticas idealistas (como, por exemplo, a de Platão) baseiam-se, a seu modo, nesta teoria (LUKÁCS, 1968, p 28). A origem idealista da teoria do reflexo também é outro argumento que atesta sua insuficiência, pelo menos para qualquer filosofia que se autodenomina materialista: para Williams (1979, 120 p.100), ao projetarmos a atividade artística enquanto reflexo, eliminamos seu “caráter material e social”, ou seja, deixamos de compreendê-la, por exemplo, como instituição social vinculada às demais instituições (escolas, mercado, museus, etc.). Ainda assim, considerando essa origem, Lukács desenvolve sua própria teoria do reflexo, argumentando, porém, que tal teoria, como sustentada pelo materialismo histórico, “[...] é decididamente diferente do materialismo mecanicista” (LUKÁCS, 1968, p.28). Podemos indicar, ao menos, duas diferenças entre sua teoria do reflexo e aquelas abordadas até então: a primeira refere-se aos diversos graus que, para Lukács (1968, p.31), a realidade apresenta, desde a “realidade fugaz e epidérmica” até a “realidade mais profunda”. Portanto, “[...] a arte deve refletir não a superfície do real, mas a sua essência” (KONDER, 1967, p.152). O essencial é justamente o mais profundo, o que Lukács compreende como totalidade: A verdadeira arte visa o maior aprofundamento e a máxima compreensão. Visa captar a vida na sua totalidade onicompreensiva. [...] A verdadeira arte, portanto, fornece sempre um quadro de conjunto da vida humana, representando-a no seu movimento, na sua evolução e desenvolvimento (LUKÁCS, 1968, p. 32). O conceito de totalidade é a segunda diferença, fundamental para Lukács, pois a obra artística, enquanto organização formal, oferece uma reconciliação utópica entre o 121 homem e o mundo (JAMESON, 1985, p.137). Mas apesar dessas diferenças, a teoria do reflexo lukacsiana também apresenta dificuldades, principalmente ao desenvolver-se como estética normativa, ao invés de descritiva. Sendo assim, Lukács e sua teoria do reflexo não visam compreender as relações entre base e superestrutura – ainda que apresentem conceitos valiosos –, mas propor a relação mais adequada para a “verdadeira arte”. Entretanto, em suas primeiras obras, como História e consciência de classe (1922), Lukács rejeitava a teoria do reflexo (KONDER, 1967, p.151), adotando-a somente posteriormente, quando sofre duras críticas que quase culminaram na sua expulsão do Partido Comunista húngaro. A partir daí, Lukács encontra em Lenin elementos para formular sua própria teoria, como nesta passagem dos Cadernos filosóficos citada por Konder: Quando a inteligência humana aborda a coisa individual e dela extrai uma imagem, um conceito, isso não é um ato simples, imediato, morto, não é um reflexo num espelho, e sim um ato complexo, de dupla face, ziguezagueante, um ato que implica na possibilidade de um vôo imaginativo para fora da vida (LENIN apud KONDER, 1967, p.151). Compreender a relação entre base e superestrutura como um movimento ziguezagueante, ou seja, como uma relação de via dupla – base determinando superestrutura, superestrutura 122 determinado base – é superar o determinismo econômico da teoria do reflexo e perceber que as duas vias são variações do mesmo modelo (JAMESON, 1985, p.13). De certa forma, notamos esse movimento na teoria da mediação desenvolvida pela Escola de Frankfurt, que propõe um terceiro elemento entre a base e a superestrutura: a linguagem (ADORNO, 1980, p.198) ou mesmo a cultura (WILLIAMS, 1979, p.102). A linguagem e a cultura, enquanto códigos universais, destacam-se como lugares de mediação, entrelugares, onde as idéias e as condições materiais atuam igualmente. Em sua conferência sobre “Lírica e sociedade” (1958), por exemplo, Adorno afirma que “[...] a linguagem estabelece a mediação entre lírica e sociedade no que há de mais intrínseco” (ADORNO, 1980, p.198). Entretanto, esta mediação não se resolve como um simples reflexo, devido à própria condição da lírica em “não reconhecer a potência da socialização” (ADORNO, 1980, p.193) – o que, contudo, não impede que estabeleçamos relações entre lírica e sociedade, desde que não tomemos exemplos da primeira como “objetos de demonstração de teses sociológicas” (ADORNO, 1980, p.193). Notamos aqui uma crítica à teoria do reflexo, que, apesar de tudo, é adotada por outros teóricos da Escola de Frankfurt: Kracauer, por exemplo, afirma que os “filmes atuais” (de 1928) ... dão um tingimento cor-de-rosa aos mais negros cenários. Porém, não é por isso que eles deixam de refletir a sociedade. Ao contrário, quanto mais incorreta é a forma que eles 123 mostram à superfície das coisas, mais corretos eles se tornam e mais claramente eles espelham o mecanismo secreto da sociedade. Na realidade não é freqüente o casamento de uma copeira com um dono de Rolls Royce. Porém, não é fato que todo o dono de Rolls Royce sonha que as copeiras sonham em ter o seu status? As fantasias estúpidas e irreais do cinema são devaneios da sociedade, principalmente porque os colocam em primeiro plano como de fato o são e porque, assim, dão forma a desejos que, noutras ocasiões, são reprimidos (KRACAUER apud RÜDIGER, 2002, p. 135-136). Entretanto, esta teoria do reflexo difere-se das demais em dois pontos: em primeiro lugar, temos o reflexo compreendido positivamente, ou seja, não como alienação, mas justamente como desalienação, pois, ao refletir incorretamente as relações sociais, a assimetria entre as classes se faz nítida; em segundo lugar, temos esse reflexo invertido que, de algum modo, aproxima-se da própria mediação proposta por Adorno na conferência que até então discutíamos. Pois voltemos a ela para destacar sua hipótese: para Adorno, tanto mais a sociedade sedimenta-se na lírica “[...] quanto menos a formação lírica tematizar a relação entre eu e a sociedade, quanto mais involuntariamente cristalizar-se essa relação, a partir de si mesma, no poema” (ADORNO, 1980, p.197). Ou seja, é uma relação inversamente proporcional, semelhante ao reflexo invertido proposto por Kracauer. É claro que Adorno nunca 124 concordaria com esta aproximação – para ele, Kracauer “possuía algo do cinemeiro ingênuo” (ADORNO apud RÜDIGER, 2002, p.149) –, mas não estamos sozinhos nesta interpretação, pois Jameson afirma algo semelhante: A obra de arte 'reflete' a sociedade e é histórica na medida em que recusa o social, e representa o último refúgio da subjetividade individual em relação às forças históricas que ameaçam esmagá-la: tal é a posição adotada na conferência sobre 'A Lírica e a Sociedade', um dos ensaios mais brilhantes de Adorno. Assim, o sócio-econômico é inscrito na obra, mas como o côncavo para o convexo, como o negativo para o positivo (JAMESON, 1985, p. 34; grifo do autor). A sociedade surge não como tema, mas como resposta à própria condição histórica que favorece a formação da lírica – considerando que, para Adorno (1980, p.195), a lírica é um gênero moderno, pelo menos como a entendemos –, caracterizada por “[...] um eu que se determina e se exprime como oposto ao coletivo, à objetividade” (ADORNO, 1980, p.196). Quanto mais este eu lírico afirma-se, mais se expõe a fratura entre ele e a sociedade. É porque, para Adorno, mas também para Lukács, houve um momento de reconciliação entre o sujeito e a objetividade, agora distante (JAMESON, 1985, p.36-37). De qualquer forma, temos aqui a mediação travestida de reflexo invertido, sendo adequada, 125 portanto, a crítica que Williams lhe faz: É difícil ter certeza do quanto se pode ganhar substituindo a metáfora da “mediação” pela metáfora do “reflexo”. De um lado, ela vai além da passividade da teoria do reflexo; indica alguma forma de processo ativo. Por outro lado, em quase todos os casos, perpetua um dualismo básico. A arte não reflete a realidade social, a superestrutura não reflete a base, diretamente: a cultura é uma mediação da sociedade. Mas é praticamente impossível manter a metáfora da “mediação” (Vermittlung) sem um certo senso de áreas separadas e preexistentes, ou ordens de realidade, entre as quais o processo de mediação ocorre, quer de maneira independente, quer determinado pelas suas naturezas anteriores. No legado da filosofia idealista, o processo é habitualmente, na prática, considerado como uma mediação entre categorias, consideradas como distintas. A mediação, nesse uso, parece então pouco mais do que uma sofisticação do reflexo (WILLIAMS, 1979, p.102; grifo do autor). De fato, a teoria da mediação apresenta problemas semelhantes aos da do reflexo, principalmente ao persistir num idealismo de origem platônica, numa divisão entre idéias e formas. Mas este problema subsiste na própria divisão entre base e superestrutura: é então o modelo infundado, pelo menos para uma filosofia que se arroga materialista? 126 Ainda não é tempo de respondermos esta pergunta, se é que temos uma resposta, mas Althusser parece resolvê-la como quem resolve o enigma do nó górdio, cortando definitivamente a relação entre base e superestrutura. Temos ainda uma divisão, mas sem comunicação entre as partes. Para Anderson, … o rompimento radical de Althusser com as concepções tradicionais do materialismo histórico reside em sua firma convicção de que a “ideologia não tem história”, porque é – assim como o inconsciente – “imutável” em sua estrutura e em sua operação no interior das sociedades humanas (ANDERSON, 1989, p. 118). Uma ideologia sem história somente é concebível a partir da “dependência íntima e fatal” que Althusser estabelece entre marxismo e estruturalismo: mas fatal para o primeiro, produzindo “[...] uma versão de marxismo onde os sujeitos foram totalmente abolidos, exceto como efeitos ilusórios de estruturas ideológicas” (ANDERSON, 1984, p.44). São então os sujeitos e as condições materiais, numa interpretação marxista-estruturalista, um conteúdo mutável estruturado por uma ideologia imutável – e entre eles, nenhuma relação perceptível: Se a ideologia não exprime a essência objetiva total do seu tempo (a essência do presente histórico), pode, pelo menos, exprimir muito bem, pelo efeito de leves deslocamentos 127 internos de ênfase, as transformações atuais da situação histórica: diferentemente de uma ciência, uma ideologia é ao mesmo tempo teoricamente fechada e politicamente maleável e adaptável. Ela se curva às necessidades da época, mas sem movimento aparente, contentando-se com o refletir por alguma modificação imperceptível de suas próprias relações internas, as transformações históricas que ela tem por missão assimilar e dominar (ALTHUSSER, 1980, p. 87; grifos do autor). O conteúdo histórico adapta-se à estrutura ideológica que, apesar de curvar-se diante desse, é quem o assimila e o domina por inércia. Althusser parece pensar numa eterna ideologia da dominação, onde as relações entre senhores e escravos, nobres e servos, burgueses e proletariados são apenas variações desta ideologia. Entretanto, se é duvidoso seu anti-historicismo, há que defender seu anti-humanismo, pois é o que denuncia o falso universalismo da condição proletária (ALTHUSSER, 1980, p.86). Falso universalismo, pois, ao reconhecer a condição proletária, logo sócio-econômica, como aquela que define a essência humana (homo economicus), esse humanismo marxista oculta as demais formas de dominação a favor da luta de classes. Portanto, não há uma essência humana, mas várias identidades: o homem define-se enquanto classe social, gênero, etnia, etc. Isto é um problema de nomeação, 128 como Haraway observa no feminismo: A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato de nomeação é aguda. [...] A existência de uma dolorosa fragmentação entre as feministas (para não dizer “entre as mulheres”), ao longo de cada fissura possível, tem feito com que o conceito de mulher se torno escorregadio: ele acaba funcionando como uma desculpa para a matriz das dominações que as mulheres exercem umas sobre as outras (HARAWAY, 2000, p. 52). Ou seja, para citarmos um exemplo de Haraway, o nome “mulher” oculta as diferenças entre as mulheres brancas e as mulheres negras a favor das primeiras. Do mesmo modo, o nome “proletariado” esconde as diferenças entre os proletariados brancos e os proletariados negros, ou entre os proletários e as proletárias, sempre a favor dos primeiros. Dominações que ocultam dominações. Estamos já na alçada dos Estudos Culturais, onde “[...] os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade” (JOHNSON, 2004, p.13), ou seja, são entendidos não apenas através da luta de classes, mas também através das relações de gênero, etnia, etc. Mas talvez a maior revisão do marxismo realizada pelos Estudos Culturais não 129 seja esse destronamento do proletariado, mas a integração do modelo base-superestrutura: a respeito do legado teórico de Williams, Hall afirma que ele “[...] é dirigido contra um materialismo vulgar e um determinismo econômico. Ele oferece, em seu lugar, um interacionismo radical: a interação mútua de todas as práticas, contornando o problema da determinação” (HALL, 2003, p.137). Portanto, ao integramos base e superestrutura numa única prática, a determinação deixa de ser um problema, pois não há mais dois lados e, consequentemente, a sobreposição de um em relação ao outro. A linha que divide base e superestrutura é borrada pelos Estudos Culturais, permitindo que a materialidade invada a superestrutura, antes restrita à base. Ao criticar o marxismo ortodoxo, Williams afirma o seguinte: O que essa versão do marxismo desconhece especialmente é que o “pensamento” e “imaginação” são, desde o início, processos sociais [...] e que só se tornam acessíveis de modos físicos e materiais que não são passíveis de argumentação: em vozes, em sons feitos por instrumentos, em escrita manuscrita ou impressa, em pigmentos dispostos na tela ou em gesso, em mármore ou pedra trabalhados. Excluir esses processos sociais materiais do processo social material é o mesmo erro que reduzir todos os processos sociais materiais a meros meios técnicos para alguma outra “vida” abstrata (WILLIAMS, 1979, p. 67; grifo do autor). 130 Ou seja, as idéias somente existem socialmente quando materializadas, não havendo sentido pensá-las como separadas do processo social material. Portanto, pensar nelas como abstrações é desconsiderar a inversão radical do idealismo hegeliano que Marx propõe. Os pecadores medievais, por exemplo, nunca duvidaram da materialidade do Inferno. No caso específico da produção artística, Cevasco afirma que ...a metáfora da base/superestrutura abre espaço para a colocação das artes em um domínio separado, obscurecendo o fato de que a produção artística é ela mesma material, não só no sentido de que produz objetos e notações, mas também no sentido de que trabalha com meios materiais de produção (CEVASCO, 2003, p. 67). Entretanto, não é que o modelo base-superestrutura seja enganoso, mas que ele é mal-interpretado, pois, como afirma Williams, “o que ele expressa primordialmente é o sentido importante de uma 'superestrutura' visível e formal que poderia ser analisada por si mesma, mas que não pode ser compreendida sem se perceber que repousa sobre uma 'base' (ou infra-estrutura)” (WILLIAMS, 1979, p.81). Ou seja, o modelo base-superestrutura não separa as idéias e as formas, como fazem os mais diversos idealismos, apenas considera a autonomia interpretativa de cada lado do modelo. 131 Como notamos ao longo deste artigo, a revisão do marxismo realizada por Williams baseia-se consideravelmente na sua crítica à teoria do reflexo. Mas quem também promove essa crítica, pelo menos uma década antes e chegando a conclusões semelhantes, é Sartre: Mas o que se pode e deve construir [...] é uma teoria que situa o conhecimento no mundo (como a teoria do reflexo tenta, de forma des39,95 em sua negatividade [...]. Só então, compreender-se-á que o conhecimento não é conhecimento das idéias, mas conhecimento prático das coisas; então, será possível suprimir o reflexo como intermediário inútil e aberrante (SARTRE, 2002, p. 38; grifos do autor). Como não pensar nesta teoria que compreende o conhecimento não como idéia, mas como prática material, sem nos remetermos ao “interacionismo radical” de Williams? Parafraseando Borges, somente refletindo sobre os Estudos Culturais e seus precursores – Sarlo (2002, p.48) elege Gramsci, por exemplo –, ou seja, somente realizando inversamente o percurso das gerações, é que detectamos tais semelhanças. E elas não se restringem ao comentado anteriormente, pois Sartre também compreende os homens como “sínteses horizontais”, ou seja, como “[...] objetos em si mesmos, isto é, em todos os níveis da vida social” (SARTRE, 2002, p.68): temos aqui outro destronamento do 132 proletariado, pois o homem em todos os níveis da vida social é o homem enquanto classe, mas também enquanto gênero, etnia, etc. Barthes, em suas Mitologias de 1957, já afirmava que, “hoje, é o colonizado que assume plenamente a condição ética e política, descrita por Marx como condição do proletariado” (BARTHES, 1980, p.168), nos dando um exemplo das sínteses sartrianas e sinalando as mutações do marxismo. Pois ao proporem novos sujeitos históricos, esses autores (Williams, Sartre e Barthes) parecem transformar o marxismo num “meta-discurso dos discursos sobre alteridade” – para adaptarmos estas palavras de Spielmann (2001, p.184), referidas em outro contexto, numa introdução às diversas manifestações do Outro: a mulher em Simone de Beauvoir, o colonizado em Fanon, o negro em DuBois, o louco em Foucault, o pós-colonizado em Said e Bhabha. Entretanto, mesmo que os autores citados por Spielmann não sejam marxistas, seus exemplos de alteridade foram assimilados pelo marxismo, o que autoriza nossa adaptação. Mas o que surpreende nesse percurso inverso, para voltarmos a ele, é encontrar na obra de Sartre elementos para uma crítica aos Estudos Culturais, principalmente à sua predisposição, pouco problematizada, em compreender dialeticamente as relações sociais: Eu-Outro, identidade-diferença, etc. Em “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual” (1997), texto que exprime esta predisposição, Woodward nos oferece um exemplo – os conflitos entre sérvios e croatas na antiga 133 Iugoslávia – para ilustrar como as identidades se formam negativamente, ou seja, a partir das diferenças. Entretanto, o que a autora parece não perceber é um terceiro elemento: a oposição entre sérvios e croatas organiza-se a partir da observação de um jornalista (WOODWARD, 2005, p.7-8). Ou como afirma Jameson, comentando a Crítica da razão dialética (1960) de Sartre: ... o par, ou o relacionamento diádico, não é a forma mais fundamental da vida interpessoal, apesar da clara prioridade que lhe é dada pelo senso comum. Desde que o par não pode ser realmente uma unidade, a unificação deve ser operada por um terceiro, por um observador ou testemunha de fora; e o papel crucial desempenhado, então, pelo “terceiro” confirma a prioridade do relacionamento triádico sobre a díade que, de sua vez, é um fenômeno posterior, do ponto de vista lógico e ontológico (JAMESON, 1985, p. 188). Ou seja, a unidade do par dialético é impressa de fora, pois, sendo dialético, cada lado exclui o outro, impossibilitando uma unificação interna (SARTRE, 2002, p.231). Por “observador ou testemunha de fora”, devemos compreender não apenas pessoas – pois o modelo de Sartre não se limita à relação interpessoal –, mas também condições: “O roubado não é o contrário do ladrão, nem o explorado o contrário (ou o contraditório) do explorador: explorador e explorado são homens em luta em um sistema cujo caráter principal é constituído pela escassez” (SARTRE, 2002, p.99; 134 grifo do autor). Ou seja, as relações entre burgueses e proletariados, por exemplo, são formadas no contexto da escassez, isto é, numa sociedade determinada por suas necessidades (SARTRE, 2002, p.102). Contudo, se é discutível o possível reducionismo econômico que o termo “escassez” sugere, há nele, por outro lado, uma definição proveitosa das condições sociais como terceiro elemento, formadoras dos pares dialéticos. Agora é hora de abandonar nosso percurso inverso para seguir de onde paramos e encontrar outra crítica aos Estudos Culturais, desta vez posterior a eles: para Jameson (1997, p.68), ao desabilitar o modelo base-superestrutura, Williams não produz uma releitura dos textos originais de Marx como pretendia, mas sim uma nova leitura que sepulta Marx sem questionar seus herdeiros, enfim, um pós-marxismo. Ainda segundo Jameson, ... é fundamental que se entenda que a formulação “base e superestrutura” não consiste realmente em um modelo, mas sim em um ponto de partida e um problema, algo tão pouco dogmático quanto um imperativo de simultaneamente abarcar a cultura em si e por si, mas também em sua relação ao que lhe é externo, seu conteúdo, seu contexto e seu espaço de intervenção e de efetividade (JAMESON, 1994, p. 53). O modelo base-superestrutura não é então um modelo, algo que surge espontaneamente da realidade, mas sim um problema, 135 uma forma complexa de observar a realidade: a cultura compreendida simultaneamente em relação ao seu contexto. E neste problema, ressurge a superestrutura, antes subsumida nos Estudos Culturais: para Jameson, “[...] o termo estigmatizador de superestrutura deve ser retido a fim de lembrar-nos de um hiato que tem de ser superado de alguma maneira mais adequada do que pelo mero esquecimento” (JAMESON, 1997, p.71). O hiato referido por Jameson é o entre trabalho manual e intelectual, decorrente das divisões do trabalho, acirradas a partir da consolidação do sistema capitalista. Sartre parece abordar a questão de maneira semelhante, apesar de insistir na primazia da base, da matéria: Aqui, tentamos mostrar que todas as pretensas superestruturas já estão contidas na infraestrutura como estruturas da relação fundamental do homem com a matéria trabalhada e com os outros homens. Se, em seguida, aparecem e põem-se para si como momentos abstratos e como superestruturas é porque um processo complexo as refrata através de outros campos e, em particular, no campo da linguagem (SARTRE, 2002, p. 356). Constituem as divisões do trabalho, como Jameson propõe, esse processo complexo que refrata a superestrutura? Se sim, então a querela entre ele e Williams não se fundamenta, pois, apesar de abordarem o mesmo assunto, o abordam em pontos diferentes, reunidos na citação de Sartre: a materialidade (Williams) e o 136 “surgimento” (Jameson) da superestrutura. Como conclusão, podemos agora representar, através das figuras abaixo, as cinco interpretações do modelo basesuperestrutura que discutimos ao longo deste artigo: Superestrutura Superestrutura Cultura Linguagem Base Base Teoria da mediação Teoria do reflexo Processo Social Material Estudos Culturais 137 Na teoria do reflexo, temos o modelo original, mas especificada as relações entre suas partes: a determinação da superestrutura pela base. Na teoria da mediação, há um acréscimo no modelo original, uma terceira parte, mediadora entre as duas outras: as determinações advêm tanto da base quanto da superestrutura. Nas propostas seguintes, as determinações são suprimidas: em Althusser, elas desaparecem justamente por não mais haver contatos entre base e superestrutura. A ideologia é uma estrutura eterna, as condições materiais são conteúdos perenes. Os Estudos Culturais retornam ao modelo original, mas eliminam a divisão entre as partes e, consequentemente, as determinações: base e superestrutura tornam-se um só processo social material. Jameson critica esta supressão realizada pelos Estudos Culturais e também retorna ao modelo original, mas o circunscreve como problema: as determinações existem, mas dependem da abordagem. Referências ADORNO, T. W. Lírica e sociedade. In: BENJAMIN, W. et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril, 1980. ALTHUSSER, L. O objeto de O Capital. In: ALTHUSSER, L. et al. Ler O Capital. v. 2. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980. ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1984. 138 _____. Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. Marcelo Levy. São Paulo: Brasiliense, 1989. BARTHES, R. Mitologias. São Paulo: DIFEL, 1980. BUKARIN, N. A arte como produto da vida social. In: PLEKANOV, J. et al. Sociologia da arte. São Paulo: Formar, s/d. 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Petrópolis: Vozes, 2005. 140 A festa das cavalhadas de Guarapuava 1 Carlos Eduardo SCHIPANSKI Nos âmbitos regionais da nossa terra vivem, obscuros, tesouros folclóricos à espera de quem os garimpem ( Alberto Lamego Filho) Analisando essa frase nos colocamos a pensar em quantas cidades brasileiras os tesouros culturais preservados pela tradição local estão à espera de quem os garimpem e sejam pela luz da ciência transformada em verdadeiras obras de artes à disposição de todas as gerações futuras. Esse estudo deve contribuir com a produção do conhecimento e da escrita da história local, tornando-o um estudo muitas vezes apaixonante e ligado diretamente às nossas raízes, mas nem por isso é uma tarefa fácil, pois como afirma Rosa Maria Godoy Silveira: Mesmo uma pequena cidade possui um passado rico, e para se chegar a ele, seja através de um estudo solitário ou em equipe, faz-se necessário ser paciente, como também deixar 1. Professor do Departamento de Comunicação – UNICENTRO 141 falar a razão ao coração para descobrir e amar a vida dessa comunidade, de um público heterogêneo (SILVEIRA, 1985, p.86). Nesse contexto, a tradição da representação das cavalhadas em Guarapuava é o tesouro que vamos garimpar ao longo dessas páginas. Ao garimpar essa tradição vamos procurar demonstrar como essa representação ao ser introduzida nos Campos de Guarapuava encontrou aqui um ambiente fértil, e que ao ser regado pela fé cristã dos colonizadores, firmou-se pela prática. Ao ser transmitido pela oralidade entre os primeiros executores, que posteriormente legaram a seus descendentes, as cavalhadas mantiveram-se viva mesmo diante de todas as inovações culturais e tecnológicas da modernidade. Para compreender essa permanência é fundamental a analise da inserção do fator popular nas comemorações, pois é nas camadas populares que se processa a folclorização das sobrevivências eruditas. Desse processo de assimilação e preservação emergiu a tradição da representação da luta de mouros e cristãos. Já na década de 70, Renato Almeida nos alertava sobre a permanência da tradição. o tradicional não está no elemento supersticioso, mas aplicado a alguma coisa de moderno e atual. Esse é o caráter dinâmico do 142 fato folclórico que lhe acentua a marca social. Ele não desaparece, porque o povo cria incessantemente, recebendo os legados das camadas superiores e estas transformam, por sua vez, os resíduos das crendices que lhes chegaram com a tradição. (ALMEIDA, 1970, p. 4) Entre os estudiosos locais parece haver consenso de que as cavalhadas se tornaram uma festa tradicional em nossa cidade e recentemente com a modernização do espetáculo despertou na população guarapuavana um gosto particular em participar da festa, como um cavaleiro, um simples figurante ou então um espectador anônimo. Ao mesmo tempo, a realização da representação das cavalhadas foi se tornando ao longo dos anos, mesmo com intervalos temporais de quase duas décadas, uma referência na construção da identidade local. A construção dessa identidade e a dependência na tradição, segundo o sociólogo francês, Augusto Comte é explicado pelo fato psicológico de que, “o espírito humano, é mais apto a aperfeiçoar do que criar, não pode bem assentar as suas especulações senão sobre uma primeira execução da empresa que ele prossegue”. (COMTE, 1987, p.79). Importante e fundamental para a permanência dessa tradição foram às experiências deixadas pelas gerações anteriores que povoaram os campos de Guarapuava. Elas não se perderam no tempo, foram preservadas e transmitidas pela oralidade para as novas gerações que ao seu tempo e modo fecundaram os seus 143 espíritos para manutenção e para novas elaborações mentais. E é por meio relatores orais que vamos garimpando nossas primeiras informações sobre a festa. Segundo o pesquisador Walter Murilo Teixeira, não há como precisar até o momento quando foram realizadas efetivamente as primeiras cavalhadas em Guarapuava sob os moldes de uma representação teatral. Para ele, as cavalhadas “certamente só aconteceram quando a cidade de Guarapuava teve certo desenvolvimento urbano e aglomerou pessoas com condições financeiras e aptas para desenvolverem uma coreografia dramática, ou mesmo, os jogos eqüestres”. Uma possível explicação sobre a origem das cavalhadas em solo guarapuavano, citada por Teixeira, e posteriormente descrita por João Rodrigues de Oliveira, em seu livro “Folclore Nacional”, que segundo relato de Benjamin Cardoso Teixeira, seu pai, aparece um texto sob o título: ”A Capela de São Sebastião” originou-se de uma subscrição popular, encabeçada por Domingos Moreira no tempo que ali ocorriam as tradicionais Cavalhadas, posteriormente ao ano de 1870”. Essas informações que nos chegam datam de 1870 e se referem a um pequeno encontro de fazendeiros em frente à Capela de São Sebastião, nos arredores da cidade, local de morada da Senhora Cândida Batista e que todos os anos oferecia uma festa em homenagem a São Sebastião. Lá sob o comando de Domingos Moreira Gamalier, os fazendeiros vindos de vários cantos da cidade, montava seus acampamentos e durante dias ensaiavam a 144 coreografia que seria apresentada no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, como uma forma de pagar promessa para o referido Santo eleito como protetor contra todas as formas de pestes. Sob esse fato não foi encontrado nenhum documento comprobatório. No entanto, a ausência de documentação escrita sob esse fato não desautoriza a documentação oral, muito ao contrário é pelas fontes orais que vamos suprir essa lacuna. Segundo ainda depoimentos orais de fazendeiros o costume de pagar promessa feita pelos fazendeiros do século XIX era antigo e foi generalizado por toda a região pelos tropeiros que por costume faziam várias promessas em função do elevado índice de mortalidade dos rebanhos de muares e bovinos durante as viagens em direção da feira de Sorocaba. Para não terem muito prejuízo com a tropa que estavam conduzindo, além de farta alimentação encontrada aqui nos campos de Guarapuava, buscavam proteção e ajuda aos Santos da Igreja Católica, fazendo promessa e pagando uma cavalhada. Foi a partir daí que esse costume de pagar promessa generalizou-se entre os demais fazendeiros da região e de Guarapuava, dando origem a tradição de pagar uma cavalhada, participando como cavaleiro ou assistindo a sua realização e no final do evento fazendo uma significativa doação em dinheiro para a Igreja. Pagar ou correr uma cavalhada foi o costume deixado pelos tropeiros resultante da introdução nos campos de Guarapuava da 145 criação de muares, gado bovino e mais tarde da criação do cavalo. Essa herança portuguesa foi disseminada pelos paulistas quando da ocupação e colonização das áreas próximas da fronteira espanhola. As grandes fazendas e a criação de bovinos desenvolveram-se graças às grandes quantidades de pastos existentes e a abertura de caminhos. A consolidação disso como a atividade econômica foi muito importante e durou mais de dois séculos. Nas palavras da economista e historiadora Raquel DallaVechia, com a abertura do Caminho do Sul inauguravase uma nova fase para os habitantes do Sul: o tropeirismo, que consistia em ir comprar muares no Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, conduzi-los em tropas numa caminhada de três meses pelo Caminho de Viamão, inverná-lo por alguns meses nos Campos Gerais no Paraná e negociá-lo na feira de Sorocaba, onde vinham comprá-lo principalmente paulistas, mineiros e fluminenses.(DALLA-VECHIA, 2001, p. 139) Com isso, a extensão dos campos de criar e engordar gado na região de Guarapuava apresentou um aumento significativo, principalmente com o estabelecimento das primeiras sesmarias na região, fazendo com que o número de cabeças de gado criadas dobrasse em números absolutos, de 35.000 para 80.000, segundo dados obtidos nos relatórios da câmara Municipal de Guarapuava de 1859. Dessa forma, o Tropeirismo foi o primeiro ciclo econômico 146 importante que Guarapuava obteve, graças a sua localização privilegiada e estratégica no contexto geográfico brasileiro. Dentro desse contexto histórico, a cultura Guarapuavana foi se formando pela introdução de vários elementos, como por exemplo, o consumo do chimarrão, o churrasco, das danças típicas e os divertimentos eqüestres. Tudo isso se deu pela vinda das expedições tropeiras que buscavam os fartos pastos para os rebanhos e posteriormente se dirigiam para a feira de Sorocaba e até a capital Rio de Janeiro. Durante as invernadas aqui pelos campos de Guarapuava, parada obrigatória para que os animais ganhassem peso, os tropeiros aproveitavam o tempo para exibir suas vestimentas e divulgar seus costumes culturais conforme se observa na figura seguinte. O vestuário masculino era composto de camisas brancas de manga longa, bombachas, botas pretas de cano alto, esporas de prata, lenços coloridos e ponchos de seda pura, sem dispensar o sempre companheiro chapéu de aba larga. A montaria era o muar (burro ou a mula), animal resistente a longas marchas e que suportava uma carga considerável sobre o seu lombo. Como divertimento durante as invernadas os tropeiros se utilizavam de corridas de pequena distância, dada às limitações das montarias. Posteriormente, com a substituição do muar pelo cavalo, as atividades eqüestres como o jogo de argolinhas ganhou dinamismo e se difundiram entre os fazendeiros. 147 Figura. 01. Dessa forma, o tropeirismo promoveu condições para que os habitantes da cidade de Guarapuava, notadamente os fazendeiros, desenvolvessem uma cultura específica, vinculada à atividade econômica: as cavalhadas, um espetáculo ricamente produzido e desenvolvido pelos “melhores” da sociedade campeira Segundo José Loureiro Fernandes, as cavalhadas de Guarapuava são, na sua essência, “um folguedo vinculado aos ciclos da vida campeira, às áreas das regiões criadoras de gado, onde o cavalo e o cavaleiro desempenhavam um papel de primeira grandeza” Os fazendeiros de Guarapuava eram as pessoas que possuíam condições sociais e econômicas para adquirir e manter um cavalo pronto para os festejos, pois além de custear suas próprias despesas com as vestimentas tinha que também “aprontar” os cavalos adestrados e ricamente ajaezados para o espetáculo. Isso também fazia parte da promessa a ser paga aos Santos. Como meio de locomoção e para realizar as atividades de Figura. 01 - Tropeiros em Guarapuava: século XIX. Fonte: Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava 148 manejo do gado nas invernadas, desde cedo foi utilizado o cavalo. Eurico Branco Ribeiro descreve da seguinte maneira uma das hipóteses sobre a origem do cavalo guarapuavano: O primeiro cavalo a chegar aos campos guarapuavanos foi o andaluz, vindo na expedição do espanhol Álvarez Nuñes Cabeza de Vaca, em 1541. Cabeza de Vaca desembarcou nas costas do Estado de Santa Catarina e marchou serra acima, rumo a noroeste, com destino a Nossa Senhora de Assunção, no Paraguai, atravessando obrigatoriamente os rincões guarapuavanos. Portanto, não está fora da duvida a assertiva de que alguns eqüinos se tenham desgarrado da expedição, ficando extraviados naquelas magníficas paragens e se procriaram ao sabor da natureza. Há outro relato a respeito da origem desse tipo de cavalo, segundo Goulart, diz que: Antes mesmo da fundação da freguesia de Nossa Senhora de Belém, nos campos de Guarapuava, pela expedição de Antonio da Rocha Loures e o Padre Francisco das Chagas Lima, as expedições anteriores tivessem deixado animais quando se retiraram, apressadamente, fugindo aos ataques dos índios, como aconteceu com a do Tenente Cândido Xavier de Almeida, em 1771, com a do Coronel Afonso Botelho, em 1772, com a do 149 Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, Padre Francisco das Chagas Lima e Frei Nolasco, em 1809. A partir de 1845, época do grande comércio de muares, que se realizavam nas feiras de Sorocaba, em São Paulo, os tropeiros procedentes do Rio Grande do Sul, tropeando com grandes manadas de cavalgaduras e de bovinos, levavam também um bom número de cavalos criados nos campos de Guarapuava para negociar com paulistas, mineiros, fluminenses e baianos, devido à fama e rusticidade que gozavam aqueles animais. Aqui nas fazendas e para a lida no campo utilizava-se de bons animais de sela, com os aparatos necessários para o enfrentamento das diversas situações no trato com o gado. Dessa forma incorpora-se assim a relação do cavaleiro com o cavalo, figura esta muito típica ainda em algumas propriedades rurais de Guarapuava. Em Guarapuava, a introdução e disseminação do cavalo como animal de lida com o gado foi fundamental para o aprimoramento das evoluções utilizadas durante as representações da luta de mouros e cristãos. O cavalo guarapuavano deu mais velocidade ao espetáculo o que permitiu ao cavaleiro a possibilidade de demonstrar maior habilidade e melhor destreza durante as evoluções. O tropeirismo em Guarapuava foi perdendo sua força econômica no final do século XIX, quando o destino das tropas 150 passou a ser Curitiba, encurtando a viagem até Sorocaba, mas a tradição e os costumes já estavam enraizados na sociedade guarapuavana, principalmente a fé católica e o costume de pagar promessa a Santa Padroeira. De 1875 em diante só restou lembra-los saudosamente nos desfiles cívicos de 7 de setembro. No livro “Continente Guarapuavano: Transição político-social de Guarapuava”, o pesquisador Murilo Walter Teixeira, saudosamente e em homenagem aos tropeiros que por aqui passaram, deixaram descendentes e contribuíram para a inserção da economia de Guarapuava no cenário nacional, cita algumas “frases de efeito” utilizado pelos tropeiros para vender seu produto na feira de Sorocaba:“Mulada redondinha de gorda, de berro grosso, bico arcado e rastro grande”; “Chifre de vela, anca de viúva e peito de donzela”. Figura. 02. Figura. 02. Desfile de descendentes de Tropeiros em Guarapuava. Fonte: Arquivo da Câmara Municipal de Guarapuava 151 Mesmo havendo a tradição da representação das cavalhadas, observamos que a cidade de Guarapuava também está inserida no contexto festivo nacional através de outros eventos culturais, como a Festa da Cevada, o Encontro das Etnias e o Festival de Teatro. Observamos assim que Guarapuava pode como a exemplo de outras regiões do Brasil se constituir em um grande filão de pesquisas para os historiadores, principalmente pelas suas diversidades étnicas e culturais. Em Guarapuava, cidade componente de um país de múltiplos aspectos, principalmente nas relações sociais, revela que tudo pode ser estudado em função da sua diversidade social e cultural, onde desde o mais simples convívio nos lugares públicos até as relações familiares, podem servir de objetos a muitos estudos. Um componente dessa diversidade cultural são as cavalhadas de Guarapuava, que despertam o interesse da comunidade científica local e a curiosidade de centenas de turistas que se deslocam para a cidade para registrarem essa festividade. Essa fama nacional que goza a representação dramática da luta de cristãos e mouros em Guarapuava baseia-se não apenas nas informações fragmentadas e superficiais de turistas que para cá se deslocam por ocasião da representação, mas também pela forma como essa tradição foi assimilada pelos moradores tradicionais e preservada ao longo dos tempos, principalmente os descendentes dos primeiros povoadores, os primeiros atores, verdadeiros “cavaleiros de cristo”. 152 No que toca à representação das lutas, as cavalhadas de Guarapuava desenvolvem dois aspectos temáticos. O lúdico e o religioso. O primeiro consiste em representações de lutas e disputa de atividades recreativas entre os dois grupos de cavaleiros. Já o segundo aspectos observamos a parte dramática, teatral, herança portuguesa. É durante esta fase que observamos a realização das lutas entre os dois grupos, as guerrilhas, ocupação do castelo por parte dos mouros, rapto da princesa, escaramuças e a conversão dos mouros. Durante o espetáculo, a roupa utilizada pelos cavaleiros apresenta-se muito rica em decoração e pertinente ao enredo a ser desenvolvido. As armas usadas eram a lança, com um lenço ou uma fita amarrada próxima à ponta, azul para o grupo cristão e vermelho para os mouros, usavam ainda uma espada. Da mesma maneira seus animais apresentavam-se ricamente ajaezados. Cada corredor é acompanhado por um pajem que carrega suas armas e cuidar dos animais quando os corredores vão à igreja para o batismo dos mouros. Tal como em muitas regiões do Brasil, as apresentações das cavalhadas de Guarapuava eram realizadas em suas primeiras edições como parte integrante da programação de uma festa religiosa, e duravam três dias, com um dia de intervalo e respeito ao dia dedicado às celebrações religiosas em louvor a Padroeira local A fé era tão intensa que nada atrapalhava a realização do espetáculo. Em 1899, nos dias dedicados às comemorações em 153 homenagem à santa padroeira, circulou uma noticia no jornal “O Guayra” contando que a cidade de Guarapuava foi atingida por um enorme temporal, mas não foi suficiente para interromper as festividades. Apezar (sic) do mau tempo que muito estorvou os festejos do programma (sic) esteve bastante concorrida a festa que se celebrou com toda a solennidade (sic), agradando muito os torneios executados por moços destros na arte da equitação. Podemos observar que independente das condições internas e externas ao fato e diante de tal importância que a festa da Padroeira significava para população da região, ela se deslocava e participava ativamente do espetáculo, dezenas de pessoas eram envolvidas na organização. Enquanto que na representação do teatro aristocrático que relembrava a vitória dos cristãos sobre os mouros apenas os 24 cavaleiros, divididos em dois grupos de 12 cavaleiros, vestidos a caráter e seus pajens entravam em cena. Era um espetáculo realizado pelos melhores cavaleiros da sociedade guarapuavana. Figura. 03. 154 Figura. 03. Cavaleiros cristãos e seus pajens nas cavalhadas de 1899.Fonte: Arquivo particular de Júlia de Santa Maria Pereira. Seguindo a tradição das cavalhadas espalhadas pelo território brasileiro, o grupo de cavaleiros cristãos usava vestimenta branca com detalhes em azul e era identificado com a cruz fixada no peito de cada cavaleiro. Os mouros vestiam-se com traje na cor carmim com detalhes em amarelo e identificado pela lua crescente pressa no peito do cavaleiro. Essas cores e símbolos são utilizados ainda hoje e representam o símbolo da Ordem dos Cavaleiros de Guarapuava. Cada grupo de 12 cavaleiros, um cristão e outro mouro, são organizados internamente por, um mantenedor, um embaixador, um corta fila e mais nove cavaleiros. Cada personagem tem ainda a sua disposição um cavalo, uma espada, uma lança e uma garrucha e um pajem. As cavalhadas de Guarapuava, conforme afirmamos são classificadas como uma representação teatral devido ao seu conteúdo dramático desenvolvido durante as evoluções dos cavaleiros. O local onde ocorre à representação é um espaço aberto, plano e preparado especialmente para o espetáculo. Em Guarapuava foram utilizados os seguintes espaços para as cavalhadas: Largo da Igreja Matriz, atual Praça 9 de dezembro, largo 7 de setembro, atual Colégio Estadual Francisco Carneiro Martins, Campo de Futebol do Guarapuava Esporte Clube, Parque de Exposições Lacerda Werneck, Parque das Araucárias, Pista de laço do Centro de Tradições Gaúchas Fogo de Chão. 155 Figura. 04. Apesar das cavalhadas constituírem-se como uma festa realizada pelos “melhores da terra”, a platéia era formada em sua maioria por pessoas de todas as classes sociais. Conforme se observa na figura 06, o cenário era um amplo espaço aberto e cercado em um dos lados por camarotes de diversos tamanhos que eram alugados por aqueles que podiam pagar com dinheiro o direito de assistir em local privilegiado. A decoração ficava também por conta da família da pessoa que havia adquirido. Era pelo tamanho e decoração dos camarotes que se avaliava a importância social e financeira das famílias. Segundo o Jornal O Pharol, 50% da renda bruta das festas da Padroeira era proveniente do aluguel de camarotes. A renda bruta até hoje arrecadada, orça em 11:181$500 estando na mesma incluída a importância de 5:294$000, provenientes do 156 Figura. 04. População assistindo uma cavalhada em 1922 no Largo 7de setembro.Fonte: Arquivo Câmara Municipal de Guarapuava. aluguel de camarotes, a cuja importância se deve somar 230$000, de alugueis de camarotes que não foram pagos. Em outra edição das cavalhadas em 1928, o resultado final apresentado a todos os paroquianos indicou que a participação econômica dos “melhores” na festa foi também bastante significativa. O Jornal O Pharol publicou o balanço final da festa em benefício da Igreja Matriz. Resultado bruto do aluguel de camarotes e vendas de entradas para as cavalhadas e para o jogo de foot-Ball foi de 5:627$500”. Despesas com o pagamento da Banda Musical durante os dias de cavalhadas e foot-Ball – 550:000, fogos para as cavalhadas – 150:000, argolinhas e cabeças – 183:000, trabalhadores para arrumar e desarmar os camarotes – 2:213$800, pagamento a Ernesto Chagas como gratificação da pintura do castelo para as cavalhadas – 35:000. As principais evoluções apresentadas durante as cavalhadas são: embaixadas, quatro tornos, a brasileira, cruz de quatro pelotões, alcancilha de lança, entrevero guarapuavano, fogo e cortejo, dois corações, cruz de quatro cavaleiros, briga de Napoleão, tomada do castelo, retorno da rainha, conversão dos mouros e limpa pátio. Todas essas evoluções serão detalhadas posteriormente quando tratarmos da coreografia da festa. 157 Segundo depoimento do senhor Sebastião Meira Martins, “foi com grande entusiasmo principalmente dos descendentes de fazendeiros que a representação das cavalhadas, firmou-se como uma “tradição”“. Percebe-se assim através dessa fala uma característica presente na mentalidade dos habitantes de cidades de pequeno porte que a preservação das comemorações, principalmente as religiosas, revela um aspecto muito marcante de um atavismo enraizado e próprio de sociedades interioranas. Sobre essa questão da tradição, cabe destacar a posição de Hunt. o que para os jovens é o significado do progresso, da evolução, para os mais velhos, é o desejo de manter viva a memória, o passado e recordação dos bons tempos de uma vida diferente (HUNT, 1995, p.43) Em geral, as cavalhadas carregam consigo diferenças marcantes de região para região, principalmente nas suas formas de execução. Embora muitos autores clássicos do folclore brasileiro tenham pesquisado e escrito sobre festas populares com representações de cavalhadas, essa temática não foi ainda analisada à luz das modernas tendências historiográficas. O medievalista francês Jacques Heers afirma que a festa, independente da sociedade que a realiza, 158 apresenta-se também como o reflexo duma sociedade e de intenções políticas”, segue dizendo ainda que “a exaltação da situação e dos valores, ainda mais das influências, dos privilégios e dos poderes, tudo é reforçado pela exibição do luxo e pela distribuição de benesses. (HEERS, 1987, p. 87) De fato, as cavalhadas de Guarapuava no passado constituíram uma grande festa da qual só participavam os grandes “senhores da terra”, os fazendeiros que podiam apresentar os animais e eles próprios ricamente vestidos, uma demonstração de riqueza, uma festa de sedas e veludos, cujo resultado financeiro era destinado em benefício da Igreja e de outros órgãos de assistência, cumprindo assim uma de suas funções enquanto espaço de sociabilidade. Referências ALMEIDA, Renato. Folclore. In: Boletim da Comissão Fluminense de Folclore. Ano I. Nº. II. Abril de 1970. COMTE, Augusto. Systeme de politique positive. Paris. 1987 T. III. DALLA-VECHIA, Raquel V. R. Os caminhos e o tropeirismo em Guarapuava. In: Analecta, Revista do CCH da UNICENTRO. V. 2 nº 1, jan – jun. 2001. FERNANDES, José Loureiro. As cavalhadas de palmas. In: Semana Nacional de Folclore. Porto Alegre, 22 a 29 de agosto de 1959. 159 GOULART, José Alípio. O cavalo na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Editoras Letras e Artes, 1964. HEERS, Jacques. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Jornal “O Guayra” de 18 de fevereiro de 1899. Anno VI. Nº. 30. Jornal “O Pharol”. 12 de fevereiro de 1920. Anno VI. Nº. 146. Jornal “O Pharol”. 19 de fevereiro de 1928. Anno VI. Nº. 147. RIBEIRO, Eurico Branco. Esboço da história de Guarapuava. Curitiba: almanaque especial. 1922. SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Região e História: a questão do método. In: História e Região. XIII Simpósio Nacional da ANPUH – Curitiba, 1985. TEIXEIRA, Walter Murilo. Revista Monjolo. Guarapuava. PR Ano I, Nº. 02, dezembro de 1999. ______. Continente Guarapuavano: Transição político-social de Guarapuava. Guarapuava. 2006. 160 Produção de antologias de ensaios sobre o Brasil: identidade e diferença Luciana Cristina Ferreira DIAS 1 Este estudo parte de uma preocupação com a construção de sentidos sobre a identidade nacional em duas antologias de ensaios de múltiplos autores publicadas recentemente no Brasil: Nenhum Brasil existe (João Cezar Rocha), um trabalho de caráter comemorativo e Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros (Francisco Foot Hardman) uma coletânea temática produzida a partir da reunião de autores, num dado evento científico. O foco de análise repousa na problemática da constituição da cultura brasileira, a partir de uma produção intelectual-cultural como as antologias. Neste aspecto, estamos levando em consideração que a antologia é um gênero discursivo que nos permite compreender o papel desempenhado pela literatura em uma cultura e época dadas ou ainda refletir sobre a construção do leitor, na representação político-cultural de literaturas nacionais ou regionais. A antologia, ao construir representações da cultura Professora do Departamento de Letras - UNICENTRO 161 brasileira em sua tessitura, nos exige fazer escolhas em termos de abordagem desse tema. Para tanto, buscarei compreender a categoria da alteridade discursivo-cultural em oposição à categoria da diversidade, a fim de relacionar as representações de Brasil com questões de identidade cultural (SERRANI, 2006, p 98), considerando que a antologia organiza sentidos a partir de um trabalho com o interdiscurso e com identificações que jogam com a produção do inconsciente. Identidade para a AD: lugar da diferença Na área das ciências humanas, podemos ressaltar os estudos focados na perspectiva da diversidade cultural, os quais relacionam a identidade individual à percepção consciente de si mesmo, ou identificam os indivíduos segundo elos de raça, nacionalidade, classe, cultura etc., agrupando-os conforme características que os tornam “iguais” por oposição aos “nãoiguais” (ênfase na distinção indivíduo/grupo social). Neste tipo de abordagem, a análise recaí na noção de contraste que implica o estabelecimento de características próprias de um dado grupo. A partir de uma visão discursiva, na análise de um material como as antologias de ensaios, trabalharei não com a diversidade, mas com um conceito mais amplo, o da alteridade, a partir de reflexões no quadro da Análise do discurso (PÊCHEUX, 1998; ORLANDI, 1999; 2001; SERRANI, 1993). Sendo assim, a consideração da alteridade cultural do Brasil nos leva, diferentemente de estudos 162 alicerçados na dimensão da diversidade, a pensar a respeito do inconsciente e da contradição como constitutivos e determinantes de toda cultura. Se, nos termos de Serrani (1998), na abordagem da diversidade, a análise está baseada na comparação contrastiva das dessemelhanças entre um grupo e outro ou ainda na análise de traços comuns internos (individuais) relativos a uma dada comunidade que permitiria um reconhecimento mútuo entre os membros de uma cultura, a alteridade desloca a visão de individuo para a de sujeito afetado pelo inconsciente e pego na rede simbólica. Neste caso, o sujeito do discurso não é o indivíduo ou sujeito egóico, dono e fonte do seu dizer que encontraria na língua um instrumento de comunicação. A partir de uma visão discursiva, é preciso vincular a questão da identidade à inscrição do sujeito em formações discursivas para a produção de sentidos, ou seja, a processos de identificação (identificação imaginária e simbólica). A concepção de sujeito nesta dimensão é a do sujeito afetado pela memória e pelo inconsciente. Os conceitos de identificação simbólica e identificação imaginária são fundamentais para que compreendamos a complexa constituição do sujeito na /pela linguagem. A primeira identificação, a simbólica, tem como componente o significante e o inconsciente de modo que o sujeito se constitui a partir do outro, isto é, a singularidade do sujeito é dada pela marca do exterior, uma 163 marca que nos singulariza e da qual estamos despojados (NASIO, 1995, p.115). Serrani (1998, p.255) estabelece relações entre a psicanálise e a AD e afirma que a dimensão do interdiscurso se relaciona com os componentes da identificação simbólica. Segundo a autora “não se trata do eu-falante, mas do sujeito-efeito de linguagem”, um sujeito desejante, significado a partir da produção do inconsciente. Nos termos de Chnaiderman (1998), para que ocorra o reconhecimento do eu com a imagem é preciso que ele esteja imerso em uma estrutura simbólica. Diante dessas considerações, vale citar Lacan (1979) que define o Um afrontando qualquer lógica de identidade. Nas palavras do autor supracitado: “O Um como tal é Outro”. E o Outro é o lugar da palavra”. Dessa maneira, analisar as antologias que constroem representações culturais sobre o Brasil implica que deixemos de lado comparações entre visões individuais e dos brasileiros como um todo ou ainda em uma análise de traços comuns à brasilidade. Compreender a alteridade discursiva, é partir para uma análise em que a identidade seja compreendida como contraditória (uma unidade dividida em si mesma) e que a memória e o inconsciente são constitutivos da cultura brasileira. Com efeito, na abordagem das antologias não se trata de determinar características de um povo tido como um bloco único e homogêneo, mas sim é preciso experimentar o exercício analítico de compreender que, mesmo dentro de um mesmo grupo social e 164 cultural, existem diferença e pontos de vistas divergentes. Também, é preciso levar em conta o fato de o sujeito não apresentar um discurso uno e homogêneo. Na análise das antologias, a partir da dimensão da alteridade cultural, é preciso conceber um sujeito cindido, cujo dizer não lhe pertence e sobre o qual o enunciador não tem controle. Uma vez que a alteridade precisa ser entendida como heterogeneidade enunciativa que remete ao discurso-outro simbólico, conforme Authier-Revuz (1990, p. 26): “é heterogeneidade mostrada (discurso do outro encenado pelo enunciador e do sujeito encenado como de um outro) e é heterogeneidade constitutiva (discurso do sujeito aquém deste, que o desestabiliza, lhe escapa ao controle consciente). Dessa forma, o sujeito retoma sentidos preexistentes e negocia diferentes vozes no interior de seu texto. Isso se dá tanto pelo discurso do outro posto em cena pelo enunciador quanto pela interdiscursividade que desestabiliza o controle dos sentidos. Nenhum Brasil existe: um vazio que persiste e um outro que preenche Uma vez que a alteridade é da ordem do interdiscurso, ou seja, do domínio da determinação histórica do dizer, vale ressaltar que a antologia Nenhum Brasil existe mobiliza, justamente, uma memória relacionada à convivência do Brasil com o outro estrangeiro. 165 A alteridade cultural se constitui na relação do trabalho antológico Nenhum Brasil existe: Pequena Enciclopédia com o contexto acadêmico estadunidense (outro-cultural). Em termos de condições de produção do discurso, a antologia fora publicada inicialmente nos Estados Unidos sob o título “A revisionary of Brazilian literature and culture”, em face dos 500 anos do Brasil, em 2000 e reeditada em uma segunda versão em língua portuguesa, em 2003, intitulada: Nenhum Brasil existe- Pequena Enciclopédia. Tomando-se como base a contradição como constituinte de uma cultura, é preciso compreender a constituição da alteridade cultural brasileira relacionada ao gesto de interpretação do sujeitoorganizador com os sentidos conflitantes provenientes do interdiscurso que apontam para representações de Brasil vazio e completo, tendo-se em vista a voz do outro. Primeiramente, olhando para textualidade do ensaio introdutório, espécie de apresentação da antologia, é válido destacar uma representação (imagem) para a escrita de histórias literárias e culturais como impossibilidade, como resultado lacunar, na medida em que o organizador se posiciona a partir de marcas formais negativas (não, nunca), utilizando, para tanto, uma forma do nós inclusivo, a partir da formulação “nunca daremos conta de um Brasil que não existe” , numa espécie de diálogo com um leitor imaginariamente construído como um sujeito que quer dar conta do Brasil. (que reflete, que problematiza). A contradição se instaura na própria tentativa de a antologia pretender ser um 166 arquivo (conjunto de textos) e contar com o esforço de seu organizador. Temos a identificação do organizador com a representação da lacuna e da impossibilidade também para sua obra ou prática de escrita. SD (1)A essa altura, imagino já estar clara a seguinte impossibilidade no tocante à escrita de histórias literárias e culturais, o resultado será sempre lacunar, pois nunca daremos conta de um Brasil que não existe. Outrossim, o gesto de nomear (GUIMARAES, 2000) Nenhum Brasil existe também é uma forma de (in)determinação particular produzida pelo pronome indefinido nenhum que, de acordo com Serrani (1993), produz um efeito de determinação, mas em meio ao esvaziamento. A contradição mais uma vez se instala, já que a própria existência do Brasil é determinada, entretanto por um esvaziamento, que ainda carrega um sentido negativo. A antologia enquanto processo de nomeação se constitui a partir do esvaziamento de sua identidade, de modo que o sujeito-autor é afetado por uma alteridade, isto é, uma memória que traz à baila sentidos de país que ainda não é nação e que é, portanto, fantasma ou ainda país que não chegou lá e que ainda é vazio e marcado por lacunas. A imagem de Brasil discursivamente construída, assim como o projeto antológico-fantasma, aponta para esse vazio. 167 Ensaio introdutório: entre a apresentação da antologia e a problematização do Brasil O ensaio introdutório assinado por João Cezar Rocha, o organizador da obra, responsável pelo controle da dispersão de texto está sendo tomado aqui como um metatexto que comenta e discute as seis seções nas quais se dividem os 88 ensaios que compõem a antologia, ancorando-se em uma reflexão a respeito do país problematizado neste ensaio. Se um locutor-editor garante a unidade da obra, há que se ter em vista que Nenhum Brasil existe é marcada por uma dispersão e se representa discursivamente como um mosaico de vozes, de textos e de perspectivas a respeito do Brasil, em meio à materialidade concreta do alentado volume que se constrói como unidade, na perspectiva documental. Em relação à função-autor, essa é agenciada por um locutor-organizador do projeto que ao mesmo tempo que discute a obra, fala da problemática evocada pelo título Nenhum Brasil existe, dialogando com um leitor cuja imagem é associada à reflexão sobre o Brasil e a uma espécie de diálogo compartilhado (o leitor é um cúmplice nesta reflexão). Pensar a alteridade discursiva a partir da antologia de ensaios culturais sobre o Brasil nos exige trazer o inconsciente e o discurso dentro de tal abordagem. Em outras palavras, é preciso ter em mente o fato de que o sujeito-organizador da coleção não é fonte intencional de um sentido que lhe seria transparente, ou seja, aquilo que é dito sobre o Brasil tem uma espessura semântica e 168 relaciona o sujeito com a história e com a ideologia. Neste caso, a identidade nacional se constrói a partir da repetição de itens ou construções lingüísticas ao longo da obra, de modo que são reiterados sentidos de que o Brasil não existe, é signo vazio, à espera de definições. Assim sendo, vale a pena analisar algumas marcas lingüístico-discursivas recorrentes no início do ensaio introdutório que funciona como uma apresentação não somente da antologia, mas do próprio Brasil colocado como referente do discurso. SD (2) No trabalho dos mais importantes “pensadores” do Brasil reaparece a pertubadora contradição drummondiana: seus textos desenvolvem o que já denominei de “arqueologia da ausência. Embora busquem definir a brasilidade, terminam repetindo o artifício da teologia negativa, característica de uma certa hermenêutica religiosa (...). Os principais pensadores que se dedicaram à tarefa de revelar o propriamente brasileiro do Brasil terminam às voltas com uma melancólica descrição do que o país não foimoderno, democrático, etc- do que deixou de ser- igualitário, iluminista, etc- do que ainda não é- país de primeiro mundo, potência mundial, etc. Tal inexistência se perfaz em um movimento em que os efeitos de sentidos apontam para a multiplicidade de interpretações para o Brasil. Se o Brasil é inexistente porque o 169 Brasil oficial sufoca o outro Brasil, podemos também dizer que o país se constitui a partir de uma identidade incompleta, cujo ponto de ancoragem está na teologia negativa, constitutiva do discurso intelectual brasileiro, denominada pelo autor do ensaio, o organizador da obra, como “arqueologia da ausência”. Ressoam nestes fragmentos as expressões parafrásticas: pertubadora contradição, arqueologia da ausência, teologia negativa, melancólica descrição, participando de sentidos dominantes de Brasil como lugar do problema e do vazio. Neste caso, o Brasil não existe, o Brasil não foi, não é, está à espera de ser. O autor, neste caso, recupera, em seu texto, a fim de garantir a progressão e a coerência ao ensaio uma memória relativa à intelectualidade brasileira marcada pela presença de autores e pensadores que descrevem melancólica e negativamente um país. Dessa forma, o pessimismo e a negação são representações dominantes ao longo do texto do ensaio. Finalmente, o autor constrói uma representação contraditória para um discurso documental, como da antologia, que se constitui como lacuna à espera de outras análises nesses vãos de significado, uma representação de antologia-fantasma. A análise de itens lexicais como: fantasmas, lacunas, novas, futuros, convite constroem essa representação de história de cultura como lugar do vazio, a imagem do fantasma, desloca sentidos de antologia como volume concreto, arquivo que conserva e permite o nãoesquecimento. Vamos às formulações do organizador da antologia. 170 SD (3) Como esta coletânea se destinava originalmente ao público de língua inglesa e era a primeira vez que se fazia uma apresentação tão abrangente da literatura e da cultura brasileira nessa língua, lacunas eram (e permanecem) inevitáveis (..). Que sejam bem-vindos outros futuros volumes, pois só nos resta conjurar fantasmas com outros fantasmas, isto é, as histórias de cultura que escrevemos. Vale ainda destacar as marcas de heterogeneidade mostrada marcada (formas de alteridade) a partir das quais Rocha delimita um espaço para outras vozes como as de Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido para garantir um efeito-verdade ao seu texto que toma e retoma sentidos de que o Brasil é incompleto e vazio. SD (4) Desde a difusão do vocábulo, ser brasileiro é literalmente uma espécie de estrangeiro para si mesmo, um hóspede alheio- “uns desterrados em sua terra”- na formulação paradoxal e definitiva de Sérgio Buarque de Holanda(...) SD(5)Na introdução à Formação da literatura brasileira, Antonio Candido argumenta que uma literatura como a do Brasil necessita de um contato permanente com literatura estrangeiras para não correr o risco de perderse num inevitável provincianismo. SD (6) )Seria interessante associar a noção de antropofagia à pesquisa de Luiz Felipe de 171 Alencastro, como estratégia de superação ou ao menos de problematização da “teologia negativa” SD (7) Intuição que Oswald de Andrade já havia arranhado com sua inteligência relâmpago e cujas conseqüências mais radicais ainda não soubemos enfrentar. Ao contrário da teologia negativa, marcada por uma certa melancoliaafinal, seu propósito secreto era nada menos que desvelar a essência da nacionalidade- o gesto antropofágico, partindo da necessária presença do outro, pode transformar alegremente o tabu em totem As expressões sintáticas “como estratégia de superação ou ao menos de uma problematização da teologia negativa” ou “a antropofagia enquanto conceito de estratégia cultural ofereceu um modelo de diálogo – o banquete antropofágico- para a interpretação” funcionam como formas implícitas da inscrição do outro no discurso de Rocha. Assim, na forma do discurso indireto as vozes de O. de Andrade e Alencastro são trazidas para cena, a partir de uma tentativa de negociação no texto das vozes polêmicas que significam o Brasil. Vale destacar que martelam sentidos de mescla entre o eu e o outro na construção de representações da identidade nacional. Considerando-se as formas parafrásticas (semanticamente equivalentes) que nos definem na cadeia do discurso: estrangeiro para si mesmo, uns desterrados em sua terra, necessária presença do outro, o outro como se fosse próprio, numa análise intra- 172 interdiscuriva, podemos notar a retomada de um já-dito constitutinte da nossa memória discursiva: ser brasileiro é ser um pouco de outro lugar, é ser estrangeiro. Neste caso, podemos destacar que as marcas formais apontam para explicações e predicações que designam a antropofagia (a devoração simbólica do outro) não como provincianismo ou marca de uma ausência, mas como alegria e problematização da negatividade. Ser brasileiro é devorar o outro e é isso que desloca um sentido de negatividade atribuído para nossa identidade. Neste caso, deixamos de ser vazios, a partir da completude propiciada pelo estrangeiro, pelo outro. E o fazemos alegremente. Nesse caso, a partir de uma imbricação entre o eixo interdiscursivo (a dimensão da interdiscursividade constitutiva de todo dizer) e o eixo intradiscurso (dimensão da formulação da obra), a alteridade cultural brasileira se constitui não como uma simples oposição de binarismos tais como o Brasil é vazio ou o Brasil é completo, ser brasileiro é ser puro ou ser brasileiro é ser em partes estrangeiro, mas sim como um espaço do sujeito afetado pela determinação sócio- histórica do dizer por memórias discursivas contraditórias (SERRANI-INFANTE, 1998, p.245). Assim sendo, ser brasileiro é ser puro e estrangeiro ao mesmo tempo, é ser vazio e preenchido pelo outro. 173 Morte e progresso: uma produção intelectual e o deslizamento dos sentidos A coleção de ensaios Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros foi publicada, em 1998, no Brasil, pela editora da Unesp e não se relaciona diretamente a um rito comemorativo. A coleção de ensaios surge a parti de um Congresso ocorrido fora do Brasil no qual, em um outubro de 1995, Francisco Foot Hardman, o organizador da antologia, encontrara amigos que estavam todos espalhados pelo Europa. E reunindo todos no hotel Sokrates, foi possível a apresentação de um Fórum temático sobre violências antigas e modernas no processo civilizatório brasileiro, no III Congresso Latino-Americano na Universidade de Varsóvia Também, pensando a problemática da alteridade discursiva, temos uma obra que possui uma memória e espessura semântica. De fato, a textualização do título da coleção de ensaios Morte e Progresso se relaciona em termos de sentidos com a formulação que se inscreve na Bandeira Nacional (alteridade), inspirada no positivismo, ordem e progresso. Neste caso, o deslizamento dos sentidos, do item lexical morte em lugar de ordem, já revela todo o trabalho do equívoco, no jogo língua e história. Em sintonia com Orlandi (1986, p. 132) essa formulação,, forma de discurso-outro, nos permite observar os efeitos materiais da língua, enquanto sistema passível de jogo, na história. O item lexical morte em lugar de ordem desloca sentidos de que a ordem é 174 somente do âmbito da sistematização organizacional, das leis, do funcionamento do Estado. Ordem é morte, que, ao entrar em seu lugar da morte, na transferência, desliza sentidos. Segundo Pêcheux (1975) a metáfora está na base da significação. Metáfora pode ser entendida como efeito de uma relação significante: uma palavra por outra. E a relação de substituição entre ordem e morte trata-se de um efeito metafórico. O sentido, para Pêcheux, é sempre uma palavra, por outra ou uma proposição, por outra. Tal fenômeno, chamado de efeito metafórico, produz um deslizamento de sentido entre ordem e morte, que é constitutivo do sentido designado por ordem e por morte. O deslizamento de um enunciado Ordem e progresso em Morte e progresso nos faz compreender o que chamamos de historicidade do dizer, do trabalho dos sentidos no texto. A ordem é a mola propulsora para se matar aquele que está em (des)ordem. Assim o sentido, para a Análise do discurso, não está preso à letra, visto que se ordem aponta, num mundo semanticamente normal (PÊCHEUX, 1990), para a organização e administração do país, de modo equívoco, no Brasil em nome dessa ordem, houve o apagamento do outro visto como atrasado, inferior, estranho. Assim a junção morte e progresso, além de colocar em cena um paradoxo, como que com morte (apagamento, eliminação) poderia haver progresso (pelo apagamento do atrasado, do irracional) atualiza uma condensação de sentidos dominantes de 175 que a ordem que se representa também como morte (no Brasil, no processo civilizatório brasileiro) funciona como apagamento daquele que atrapalha, na perspectiva de quem tem o poder, o progresso. O subtítulo “cultura brasileira como apagamento de rastros” também revela que o sentido não é unívoco, mas sim plural, marcado pelo trabalho dos sentidos históricos no texto. Se segundo Orlandi (1998, p. 204) a identidade é um movimento na história, se constituindo como um percurso na história, com suas repetições e deslocamentos, podemos dizer que a antologia se movimenta e retoma sentidos que ainda hoje produzem seus efeitos. Se a cultura brasileira apagou rastros da morte, da violência, da dor, ainda assim, hoje o poder lança mão de práticas muito semelhantes, como a de apagar os rastros e deixar vir à tona um acontecimento alegre, festivo em lugar do acontecimento violento. Elemento metatextual ou crítico- O prefácio da obra O ensaio que abre a antologia, é agenciado por um autorapresentador da obra, convidado para tal pelo organizador da coleção de ensaios. Para tanto, o autor trabalha com a própria pluralidade dos sentidos sobre a violência. O efeito produzido sobre o leitor é se estrutura pelo próprio efeito-autor que insiste o tempo todo em evidenciar a força da violência, a partir de várias marcas formais: força, impetuosidade, intensidade. Essa equivocidade, nos termos de Lagazzi- Rodrigues (2006, 176 p. 84), tem a ver com o fato de as palavras, em funcionamento, serem sempre passíveis de sentidos contraditórios, de diferentes interpretações. A violência na medida em que se apresenta como disseminação de sentidos na história, no Brasil essa se dispersa em lugares, expressões, mas contraditoriamente, algo que é tão forte, tão intenso, tem a tendência de se esconder, de se ocultar. SD (1) Desde que foi pronunciada pela primeira vez, a palavra violência arrasta consigo profunda complexidade. Da raiz latina, vis, está a força. No fim do século XIII, em inglês, violence já era usada no sentido da agressão a um padre. Mas em latim violentia também já queria significar veemência, impetuosidade, estando ausente a força física. Shakespeare, no século XVII, a usa como agressão, em sentido figurado, como a intensidade de sentimento de Desdemona “ com que violência ela primeira vez amou o Mouro, no Otelo. SD (2)Não surpreende que Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros possa surpreender a violência em tantos lugares, sob diversas e dissimuladas expressões da ordem como morte. A violência como ponto nodal da antologia organizada por Francisco Foot Hardman irrompe o ensaio de Paulo Sérgio Pinheiro e dá corpo a uma memória de violência -que mesmo sendo uma forma de ação-, contraditoriamente, no processo civilizatório brasileiro, esconde-se, camufla-se. 177 Assim, cabe a esta função, a de locutor-apresentador da obra autor, a de organizar no espaço do ensaio comentários a respeito dos ensaios que compõem a primeira seção da antologia assinados pelos ensaístas Stella Bresciani, Fábio Landa, Eva Landa e Ettore Finazzi-Agrò, que por sua vez, configuram outra funçãoautor, mobilizando a imagem de um locutor-especialista em Literatura, Psicanálise ou História e por conseguinte, a de um leitor que se interessa por tais questões (intelectual, estudante de pósgraduação, aluno universitário). Orlandi (2001, p.83) considera que “há uma injunção à textualidade na linguagem e não há texto sem autor”. Neste caso, ao se colocar na origem do dizer, o sujeito produz este efeito de coerência a seu texto, um ensaio de caráter didático que apresenta a obra e os ensaios que nela estão perfilados. E cabe ao leitor traçar seus percursos de leitura, tendo em vista sua história de leitura ou mesmo sua posição ideológica que jogam na produção dos sentidos. Neste caso as representações dominantes da violência no Brasil construídas no texto introdutório que apontam para sentidos de Nação constituída na ocultação, na violência e nas guerras que emergem enquanto lugares do apagamento, do esquecimento, de deslocamento de sua existência. E essas guerras ou conflitos que surgem em nossa sociedade estão relacionados justamente a uma dificuldade que certos grupos no Brasil - as elites que se inspiram pelos ideais do positivismo e do autoritarismo, da modernização- têm em lidar com o outro, com sua 178 diferença. Assim, as ressonâncias apontam para conflitos e tensões entre classes dominantes (elite) e os excluídos, os racionais e os irracionais, os que querem a modernidade e os ditos atrasados. SD (3) Como se não estivéssemos, sempre sob ameaça da guerra de um estado de natureza da guerra. Como se não estivéssemos, como estivemos, sempre sob a ameaça da guerra de um estado de natureza à espreita em todos os momentos. E deparamos, bela surpresa, de novo, com Walnice SD (4) Não sei, mas arrisco a resposta à maneira de Sartre: os irracionais são sempre os outros, no Brasil. Desde os mais remotos tempos da nossa existência, desde o “descobrimento”, faz quinhentos anos, há sempre uma expressão prepotente de um olhar que em nome da racionalidade classifica, nega o outro. SD (5) Índios rebeldes, índios preguiçosos, seguidores de Antônio Conselheiro, escravos indolentes, meninos de rua perversos, todos sobrevivendo ao mesmo tempo no museu ideológico que é o tempo do presente no Brasil. , No final, em uma tentativa de o texto apresentar uma extensão com limites, pausas e beiradas possíveis, há no texto uma alusão a Michel Debrun. O homenageado, Michel Debrun, nas palavras de Pinheiro, teria ficado maravilhado com a obra. Isso porque Debrun se identificaria com a proposta da antologia 179 organizada por Foot justamente em virtude de a antologia Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros buscar desnaturalizar sentidos (desmontar) de que o Brasil é cordial, de que aqui reina a paz e a tranqüilidade, de que somos um povo pacífico. Mas é importante dizer que às margens do texto, convivem textos fantasmas que diluem as bordas da textualização, seus limites. E outros sentidos podem vir a produzir efeitos neste texto que apresenta a obra. Em termos de representação de Brasil, este texto constrói uma representação dominante que caracteriza o eixo norteador da antologia como uma obra. O Brasil enquanto cultura carrega em si o signo da violência “velada”, sentido predominante que se constrói graças à vibração de construções em meio à textualização da antologia, quer olhemos seu título, o texto do prefácio ou a própria organização discursiva da antologia. SD (6) Tudo aqui dito combina-se bem com a incansável busca de arquétipos da ideologia brasileira que Debrun nos legou. Apesar de conhecer, ou por conhecer tão bem os horrores das estratégias da conciliação, dedicou-se incansavelmente a desmontá -las. Neste sentido, considerando Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros, a memória está ligada a um acontecimento que se dá a partir do deslizamento: da mexida dos 180 sentidos que transitam da ordem para a morte, de progresso para o apagamento, da violência para o rastro. Conclusão Na análise das antologias Nenhum Brasil existe e Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros, pode-se dizer que o desafio de compreender a problemática da alteridade cultural nos exige deslocamentos conceituais em relação à visão de identidade: é preciso superar uma visão de identidade como uma completude constitutiva, em termos de linguagem, consciência, atos etc relacionados aos brasileiros e compreender a identidade como lugar da falta e da divisão do sujeito (consciente e inconsciente). A alteridade como espaço delimitado ao outro constitui processos de identificação, seja a partir da voz de autores pertinentes ao domínio da Literatura (em Nenhum Brasil existe: Pequena Enciclopédia), seja a partir do deslocamento do lema da Bandeira Nacional, espaço de alteridade (em Morte e progresso), a identidade nacional constrói-se a si mesma como unidade contraditória inscrita na memória. Neste sentido, a análise da identidade cultural construída nas antologias de ensaios não se limitou a determinar as categorias nas quais o Brasil se enquadra em contraposição a outros povos ou a considerar a brasilidade como construção de um bloco fechado e homogêneo. A partir da categoria de alteridade, foi preciso 181 compreender o Brasil como lugar do conflito, como objeto representado a partir de processos identificatórios que mobilizam imagens inscritas no inconsciente- que reorganizam imagens de vazio e completude ou de morte e progresso- e um trabalho com a historicidade ou determinação histórica dos sentidos. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Caderno de Estudos Lingüísticos. Campinas, 1990. v. 19. p. 25-42. CHNAIDERMAN, M. Língua (s)- linguagens- identidade (s)- movimentos. Uma abordagem psicanalítica. In Signorini, I. (org.) Língua(gem) e identidade. Elementos para uma discussão no campo aplicado. 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Neste sentido, Steven Connor (1993) assevera que a literatura pós-moderna, assim como as demais artes, dialoga com a fundamentação artística herdada do modernismo, permitindo encontrar nas literaturas da modernidade, “a materialidade da linguagem, formas na página e sons no ar”. (1993, p.90). Formas e sons que abusam e acusam a mudança. A literatura contemporânea é estranhamente autêntica, possui sobre si uma aura sui generis, difícil de ser enquadrada, permitindo no máximo conjecturas, devido à estranheza com que leva o leitor a percorrer as vielas tortuosas de narrativas insólitas. Um universo quebradiço com seus personagens perdidos em um mundo terrivelmente adverso que amarra o ficcional e o real, 1. Professor do Departamento de Letras - UNICENTRO 187 transformando o absurdo em algo possível. Promove a inquietude de questionar a vida em uma atmosfera apocalíptica e deslocada de si mesma, confinada e ao mesmo tempo assustadoramente sedutora. Nesta perspectiva, o estudo a que este artigo se propõe, é mergulhar no universo fantástico de Murilo Rubião no conto “Teleco, o coelhinho” (1965), promovendo uma leitura à luz do olhar contemporâneo, evidenciando o jogo pelo qual o texto em sua fragmentação e crise, vai tecendo armadilhas para seu leitor, desatento ou não acerca da hemerticidade latente na narrativa. Um diálogo entre teorias do contemporâneo e a proposta de Umberto Eco acerca da leitura do texto literário, nas relações travadas autor/leitor com a dissimulação do texto. Teoria revisitada A teoria usada como base para este estudo parte da proposta de Umberto Eco com suas reflexões em Leitura do texto literário (1983) e as relações que são travadas dentro, para e pelo texto. O autor salienta a questão da importância de uma correta interpretação da obra, no qual o texto não pode deliberadamente permitir toda e qualquer tipo de leitura ou interpretação. Há limites a serem respeitados. Partindo de um pressuposto estruturalista, sem esquecer o papel fundamental do leitor nesse quadro, papel esse que o estruturalismo desconsidera, Eco atesta sua preocupação “antes em estabelecer qual o aspecto que, no texto, estimulava e ao mesmo tempo regulava a liberdade interpretativa”. (ECO, 1983, 188 p.07). Dessa forma, a proposta acerca da leitura e interpretação do texto literário, deve ser perpassada pelo próprio texto, este, ativado como uma espécie de regulador dessa possível interpretação. Vale lembrar que, o texto pertence a alguém, foi escrito, possui densidade à medida que traz em si toda a carga ideológica e histórica de quem o produziu. Na outra extremidade está o leitor que também ao fazer suas inferências e apropriações, o decompõe e tenta transformar o texto em algo novo, agora seu. É nesse momento que está latente o perigo, uma leitura indevida pode vir a ser, conforme afirma o autor, apenas um 'devaneio', uma interpretação dirigida por parte de um leitor despreparado e/ou desatento. A proposta teórica, dessa forma, ressalta a importância da presença do leitor como peça chave, afirmando que “o leitor, como princípio activo de interpretação, faz parte do quadro generativo do próprio texto” (ECO, 1983, p.9), ou seja, levando em conta que o texto literário pode ser entendido em sua estrutura, sendo formado por elementos que, justapostos e entrelaçados integram a cadeia estética textual, o leitor passa a fazer parte dessa estrutura, tornando-se também elemento textual, subtendido como peça imanente do todo. O autor reitera que “um texto, tal como aparece na sua superfície (ou manifestação) lingüística, representa uma cadeia de artifícios expressivos que o destinatário deve actualizar” (ECO, 1983, p.53), atualização essa, que se faz necessária à medida que a escrita do texto literário abre, ou mesmo, tendo em si lacunas 189 que necessitam ser preenchidas pelo processo de inferências de um outro olhar, outra perspectiva que venha a completar esses espaços vazios ou simplesmente permita que caminhos possam ser percorridos para uma interpretação segura e satisfatória do universo da escrita literária, pois vale lembrar que a literatura nunca é tecida de forma alheia e desinteressada, há sempre um motivo, um não dito que tem algo a dizer dentro de um organismo lingüístico quase autônomo. Este estudo se vale também das teorias de Tzvetan Todorov como tentativa de se esclarecer a narrativa inexplicavelmente insólita de Murilo Rubião em suas quebras e deturpações da realidade. A interpretação do segundo se faz pelo suporte dado pelas teorias do primeiro, e essa se faz necessária, já que também o Fantástico exige para si a presença do leitor como peça chave para o alcance do exato ponto no qual o elemento abrupto e perturbador acontece, a experiência inquietante da dúvida, pode-se dizer então que “o fantástico implica portanto não apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de ler” (TODOROV, 2004, p.38). A hesitação se dá pela ambigüidade que se forma no texto, uma lacuna que tem o poder e capacidade de alterar as relações que são estabelecidas com a realidade do mundo exterior. O autor cria a fantasia, perturbadora ou não e cabe ao leitor um posicionamento na tentativa de restaurar a aparente relação harmônica da narrativa. O Fantástico traz em si uma aura fantasmagórica, 190 sobrenatural, é inquietante em todos os seus extremos, provoca o questionamento e a necessidade de se restaurar a ordem, assim o texto de caráter fantástico atesta que “a literatura existe pelas palavras; mas sua vocação dialética é dizer mais do que diz a linguagem, ir além das divisões verbais” (TODOROV, 2004, p.175). Dessa forma, Todorov respalda o caráter fundamental do próprio texto literário à medida que este, dentro do universo das literaturas fantásticas, reivindica para si a presença de uma entidade externa para dar valor e sabor à interpretação e a leitura, confirmando o fato que tudo acontece dentro do texto e nunca fora dele. Como pano de fundo para a tentativa de aplicação das teorias de Umberto Eco sobre a narrativa de Murilo Rubião, já perpassada pelas inferências do Fantástico, toda a atmosfera fica calcada pelas reflexões acerca da literatura e das teorias do contemporâneo. Conforme já citado anteriormente, esse universo permeado pela justaposição entre moderno e pós-moderno acusa o fim de tudo ou o começo do nada. Tudo se faz e se refaz, não existe mais o sólido, tudo acontece de forma independente e fluída, Sevcenko atesta o lado positivo desse momento das sociedades humanas afirmando ser: Uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser 191 humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (SEVCENKO, 1995, p.55). A literatura contemporânea nesse sentido é frágil à medida que tenta se construir e se fazer notar na modernidade. Reflete a si mesma e a impotência do homem diante do impacto de rápidas mudanças que o transformam e ao mundo que o cerca. Nesta perspectiva, capta e percebe as inferências do prefixo 'pós' que aliado a nomenclatura 'moderno' atesta “que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido”. (HUTCHEON, 1991, p.115). A literatura se faz pelo homem e sua cultura social, sendo forte e impactante, refletindo sobre as mudanças que fragilizam este mesmo homem, agora amedrontado em si mesmo. Ela também se faz registro e documento à medida que deve ser lida como testemunho de si mesma, cabendo ao leitor captar essa voz silenciosa, diagnosticar o dito e buscar entender o não dito pelo texto. Um autor de temas insólitos O universo brasileiro possui um si uma constelação de grandes e consagrados autores. Uns discutidos ao extremo, outros deixados ao esquecimento, mas sempre com a consciência que essa literatura é aquela que assegura a brasilidade em todos os seus horizontes. E pela mão desses grandes autores, o texto literário 192 permitiu a si mesmo explorar todos os veios e vielas possíveis, que permeiam desde um regionalismo nu e cru ao intimismo urbano latente, do clássico ao ousado, do nada ao tudo. Abriu possibilidades, ampliou fronteiras, demonstrou ousadia e retratou um Brasil genuíno sob todos os olhares e perspectivas. Uma dessas perspectivas cabe a Murilo Rubião (1916-1991), que trilhou um caminho inusitado, curiosamente perturbador. O autor traz em sua pena a desarmônica dualidade da literatura fantástica, resgata para seus textos a solidão humana por um enfoque impactante, insólito. Quando escreve, seu texto traz e si a aura da inquietação, revela a dúvida, busca uma verdade que acaba por ser, mais pergunta do que resposta. A narrativa que possui vida própria, fala de e por si mesma. A literatura de Murilo Rubião percorre caminhos aos moldes de Kafka, mesmo sem nunca ter recebido influência deste, trabalha com o estranho, mescla um fundo religioso, sem exercer uma didática moral ou sacra, que é incorporado a seus contos pelas epígrafes com as quais denuncia seus temas. E nesse sentido, atesta Jorge Schwartz que: O que primeiro chama a atenção em praticamente todos os seus contos é a utilização de epígrafes extraídas da Bíblia. Esses minitextos, além de universalizar os temas tratados e longe de exercer qualquer função religiosa, servem como fragmentos antecipadores das temáticas dos contos. É como se o autor reafirmasse continuamente 193 que, embora fantásticos, seus temas são tão antigos e tão atuais como a própria Bíblia. (SCHWARTZ, 2006, p.101) Na literatura de Murilo Rubião há uma reformulação da condição humana pela perspectiva do fantástico, há o bíblico e há o homem, mas este está só. A narrativa reside exatamente no fato de expor pelas inversões e inadequações da realidade o ser humano e o mundo, as relações sociais, a solidão. O autor retrata assim, dentro de uma atmosfera de sonho e pesadelo, ou mesmo de magia e negação da realidade, a situação humana no universo social da contemporaneidade, uma realidade fria e quebradiça. Entrando na narrativa Em uma linha de narrativas de vertente brumosa, magia inquietante e negação da realidade, o conto “Teleco, o coelhinho”, está escrito bem ao estilo fantástico de Murilo Rubião. A saga multifacetada de um personagem que multiplica identidades animais à medida que tenta simplesmente ser homem. Uma história inusitada contada em primeira pessoa por um narrador que traz em suas palavras a experiência de ter convivido com Teleco, que a princípio era um coelhinho, o primeiro de tantos outros bichos que este se tornaria na busca desesperada de se tornar humano, aliás, quase chega a isso, quando assume a postura de um canguru chamado Antônio Barbosa que conforme aponta o narrador era um “bicho mesquinho, de pêlos ralos, a denunciar subserviência e 194 torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho” (RUBIÃO, 2006, p.61). A narrativa abarca a questão social humana e o que exatamente significa ser homem nesse contexto. O aspecto humano nessa atmosfera que mistura o devaneio com a dura realidade, o autor mostra que o socialmente humano independe da aparência biológica, é simplesmente essência, vai além de convenções sociais. Interpretando a fabula As teorias até aqui apresentadas, fatalmente estarão amarradas ao se entrelaçar dando assim o suporte necessário para a leitura a que este estudo se propõe. Uma primeira e principal que é a que parte das reflexões de Umberto Eco e sua preocupação com o texto literário e seu papel mediador entre autor e leitor, como também por sua funcionalidade ao mediar uma leitura proveitosa e crítica. Um texto nunca é uma ilha no mar desconexo. Salienta-se que no ato de leitura, um texto sempre interpela por outro texto anterior, como uma espécie de resgates de valores prévios. Eco assevera que este buscar sentidos funciona no mesmo sentido em que ao “abrir o dicionário significa aceitar, também, uma série de postulados de significação: um termo é em si mesmo incompleto ainda quando recebe uma definição em termos de dicionário mínimo” (ECO, 1983, p.53-54), ou seja, promover uma leitura séria da narrativa de Murilo Rubião vai exigir de seu leitor, primeiramente a postura interessada de quem realmente quer 195 alcançar a proposta do autor. Segundo, para que haja um maior proveito dessa leitura, se faz necessário por parte do leitor, esse conhecimento prévio de alguns valores e dicionários pessoais que serão acionados ao longo dessa viagem pelas narrativas fantásticas de Rubião. Ler Murilo Rubião requer esses dicionários à parte, devido ao fato de sua literatura pertencer a um veio que tem em si a ambigüidade como proposta, também pelo fato que se trata de um escritor da contemporaneidade, sua escrita é profunda, complexa, apela para um prévio conhecimento das correntes de pensamento que tentam definir esse momento da literatura de um modo geral, definir os aspectos que regem e deliberam regras para uma literatura que pode ser entendida como pós-moderna. Pois cabe aqui salientar que “Um texto distingue-se de outros tipos de expressão por uma maior complexidade. O motivo principal dessa complexidade é o próprio facto de ser entretecido de elementos não-ditos” (ECO, 1983, p.54), a narrativa acaba assim por se tornar uma armadilha tendenciosa para quem o lê. Cabe salientar que, o conto em questão “Teleco, o coelhinho” do já referido autor traz em si tal complexidade, seja pela inocência do título, seja pela epígrafe bíblica tirada de Provérbios (XXX, 18 e 19), com a qual a narrativa se abre dizendo “Três coisas me são difíceis de entender, e uma quarta em a ignoro completamente: o caminho da águia no ar, o caminho da cobra sobre a pedra, o caminho a nau no meio do mar, e o caminho do homem na 196 sua mocidade” (RUBIÃO, 2006, p.56). A Epígrafe aqui, deixa ao leitor uma lacuna, primeiro pelo fato de que o texto bíblico em nenhum momento faz alusão ao título. Uma brecha se abre pelo pressuposto não-dito, emerge do título o fato de que não se trata de um conto de fadas e a epígrafe deixa em aberto o fato de que não é a experiência de vida de um coelho, mas sim da atemporalidade do tema humano que é tão contemporâneo quanto o é a Bíblia. O texto sacro deixa claro assim nesse contexto que “em Murilo Rubião, a essência fantástica que caracteriza suas obras é a alegoria” (SANTOS, 2006, p.2), e flui para uma pluralidade interpretativa à medida que o bíblico se esvazia, mostrando que “a constituição dos espaços é o cenário urbano moderno, a relação do homem com o caos gerado pelo progresso desumano das grandes cidades” (SANT0S, 2006, p.2), é a narrativa do homem que está sozinho. Esse espaço moderno, essa solidão do ser pertencem sem sombra de dúvidas ao ceticismo da modernidade, e sobre a questão que se insere na narrativa, fica evidente que “o texto está, portanto, entretecido de espaços em branco, de interstícios a encher, e quem o emitiu previa que eles fossem preenchidos e deixou-os em branco” (ECO, 1983, p.55), para que fatalmente um leitor ativasse possíveis interpretações pelas inferências que fatalmente são feitas durante o processo, simplesmente pelo fato de que “um texto é um mecanismo preguiçoso que vive da mais-valia de sentido que o destinatário lhe introduz” (ECO, 1983, p.55). Um texto literário assim, é produzido, traz dentro de si toda a carga ideológica e 197 histórica de quem o produziu, mas ao estar no mundo, torna-se incompleto, não se faz por si próprio, pois como afirma Eco, “um texto é emitido para que alguém o actualize – mesmo quando não se espera que esse alguém exista concreta ou empiricamente” (ECO, 1983, p.56), apenas exista para completar a narrativa, seja também um elemento crucial do próprio texto. Até o presente momento nessa reflexão aqui proposta, se tem debatido bastante sobre a importância do leitor para a totalidade interpretativa de um texto literário, e nesse caso específico, o conto “Teleco, o coelhinho” de Murilo Rubião. Mas vale lembrar que, se de um lado o leitor pode ser visto e é elemento de estratégia textual, de outro, o mesmo vale para tantos outros que também comportam a estrutura narrativa, como o autor e também o próprio texto. É nessa esteira que, torna-se relevante ressaltar neste momento a forma pela qual o próprio texto literário prevê seu possível leitor, afinal trata-se de uma via de dois sentidos e não mão única, pois para que haja um leitor é preciso um autor que escreva, e nessa relação percebe-se de certa maneira um desnível, pois “a competência do destinatário não é necessariamente a do emissor” (ECO, 1983, p.56), ou seja, o texto reivindica para si determinado tipo de leitor e leitura. Um texto literário, ou mesmo qualquer outro tende a se tornar elitista à medida que exige para si seus leitores e como afirma Eco: O texto postula a cooperação do leitor como condição própria da sua actualização. 198 Podemos melhorar essa formulação, dizendo que um texto é um produto cujo destino interpretativo deve fazer parte do seu próprio mecanismo generativo: gerar um texto significa actuar segundo uma estratégia que inclui as previsões dos movimentos do outro – tal como que inclui as previsões dos movimentos do outro – tal como acontece em toda estratégia. (ECO, 1983, p.57) Há sempre a estratégia que envolve então autor e leitor no campo textual, e um precisa sempre tentar prever as ações do outro. Tal afirmação vale para a narrativa de Murilo Rubião que ao ser acionada delibera elementos e pistas para uma determinada competência de leitura, fornece para o leitor escolhido indícios da interpretação que requer pra si: – Moço, me dá um cigarro? A voz - era sumida; quase um sussurro. Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com ridículas lembranças. O importuno pedinte insistia: – Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro? Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:- Vá embora, moleque, senão chamo a polícia. – Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da minha frente, que eu também gosto de ver o mar. Exasperou-me a insolência de quem assim me 199 tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado, entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente: – Você não dá é porque não tem, não é, moço? (RUBIÃO, 2006, p.56). Conforme já exposto anteriormente, não se trata de uma fábula infantil ou mesmo de moral bíblica. Trata-se de um conto de temática social para um determinado tipo de público, preferencialmente adulto. Tais indícios podem ser verificados no fragmento acima por meio de um olhar atento primeiramente para a linguagem, o discurso aplicado na narrativa está remetido ao falar coloquial diário. Falar adulto e travado em contextos sociais cotidianos, não se respeita nesse sentido a regra da literatura canônica que se diferencia pela erudição da linguagem, fazendo alusão direta às literaturas da contemporaneidade. De antemão, o texto tece uma proposta de leitura a quem já possui em sua bagagem certo discernimento sobre leituras do contexto pósmoderno e à forma como estas leituras tendem a uma postura negativa diante da outra, já consagrada e dada como ultrapassada. No contemporâneo “a literatura é revelada como algo que deixou de ser simples e transcendentemente ela mesma” (CONNOR, 1993, p.107), exige mais de si mesma e de quem a absorve. Nessa mesma linha de raciocínio, observando o mesmo fragmento, há um outro ponto digno de nota, o momento em que o 200 narrador olha e percebe que não se trata de moleque, e sim de um coelho cinzento que o interpela. Esse é o marco zero da narrativa, ou mesmo um ponto zero, pois é a abertura a qual o texto se permite para a grande viagem de proposta por Rubião e que o leitor escolhido precisa aceitar. Trata-se do veio fantástico da história, não é um moleque que fala e sim um coelho. Qual a melhor forma de explicar tal situação ao tentar não fazer escolhas, se o próprio fantástico já define e impõe uma escolha. Todorov afirma que: O fantástico exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem, enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto. (TODOROV, 2005, p.38-39) Assim, o que se percebe é que o texto de Murilo Rubião oferece tais condições, e está densamente marcado pelo mascaramento de algo que pretende mostrar ou simplesmente 201 esconder e usa como artifício um jogo lúdico de sedução com o leitor. É válido afirmar nessa perspectiva que a narrativa exclui alguns leitores em prol de outros, ou seja, o que reivindica para si é aquele que tenha em seu dicionário interno um prévio conhecimento das teorias do Fantástico, como também das que alicerçam a contemporaneidade. Eco reitera que: Para organizar a própria estratégia textual, um autor deve referir-se a uma série de competências (expressão mais vasta que <<conhecimento dos códigos>>) que conferem conteúdo às expressões que utiliza. Deve assumir que o conjunto de competências a que se refere é o mesmo do seu leitor. Por conseguinte, deverá prever um Leitor-Modelo capaz de cooperar na actualização textual como ele, o autor, pensava, e de se mover interpretativamente tal como ele se moveu generativamente. (ECO, 1983, p. 58) O texto está sempre buscando uma espécie de leitor proposto e especifico, de acordo com as coordenadas do autor, um leitor que passa então a ser chamado de Leitor-Modelo e que precisa estar afinado com as intenções de quem escreveu, já que este se esconde por trás das malhas textuais. E ainda é possível afirmar que, “prever o próprio Leitor-Modelo não significa apenas <<esperar>> que exista, significa também conduzir o texto de forma a construí-lo. Um texto não se limita a apoiar-se sobre uma competência, contribui para a produzir” (ECO, 1983, p.59), ou seja, 202 o autor prevê o possível Leitor-Modelo para si e através do texto, busca e constrói esse indivíduo. Ele vai existir no e para o texto em questão, é estrutural. Um texto estará sempre buscando e criando seus possíveis leitores, não importando se, aberto ou fechado, em ambos os casos ele “constrói o seu Leitor-Modelo escolhendo os graus de dificuldade lingüística, a riqueza das referências, e ainda mediante a inserção no texto de chaves, remissões, e possibilidades, inclusive variáveis, de leituras cruzadas” (ECO, 1983, p.62). No que se refere a narrativa de Murilo Rubião, a linguagem, conforme já afirmado anteriormente, aparece como fator determinante da escolha de seu público leitor, o texto o interpela: Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o impelia a ficar horas e horas diante do espelho. Utilizava-se do meu aparelho de barbear, de minha escova de dentes e pouco serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração. (RUBIÃO, 2006, p.61) Em Rubião fica latente que a narrativa possui vida própria, traz em seu bojo uma estrutura completa na qual seus elementos trabalham para a efetivação da leitura pretendida. O texto traça o perfil de seu leitor e exige deste prévios conhecimentos para um 203 melhor entendimento das entrelinhas. Vale lembrar que para que tais efeitos interpretativos sejam alcançados, esse leitor pressuposto precisa aceitar o jogo e pistas dadas pelo Autor-Modelo que se esconde por trás da narrativa, “mas nem sempre o AutorModelo é tão fácil de distinguir” (ECO, 1983, p.66), ele se esconde do leitor e aparece enquanto estratégia textual. Aparece sempre como uma voz aparentemente solta nas malhas textuais, não se posiciona, simplesmente fala e conduz seu leitor à interpretação pretendida e aceita pelo jogo proposto entre autor e leitor, ele atravessa a narrativa: “Não mais falava: mugia, crocitava, zurrava, guinchava, bramia, trissava” (RUBIÃO, 2006, p.64), o que transforma a cooperação textual um tanto quanto imprevisível. Assim, o conto de Murilo Rubião permite o entrelaçamento de estratégias que estão dentro e fora do texto é que permitem uma leitura interpretativa satisfatória. O texto é denso, e fecha de forma a transformar um simples coelho cinza em um ser humano ainda hibrido devido à forma que seu universo social o recebe, nada resta agora ao narrador senão descrever os últimos momentos de Teleco: Por fim, já menos intranquilo, limitava as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia em febre, transpirava. Na última noite, apenas estremecia de leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa 204 vigília, cerrei os olhos e adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta. (RUBIÃO, 2006, p. 65) O conto tem seu desfecho em um final aterrador, fica a reflexão de quem leu e também daquele que produziu tal texto. De que forma o autor expressa seu universo através de sua literatura e de que forma seu público a contempla e a interpreta. O texto narrativo nunca deixa de ser um campo muitas vezes minado para quem pretende por ele caminhar, pois vale lembrar que quando se trata de um passeio pela literatura, o caminho nunca é totalmente seguro. Concluindo A reflexão a que este artigo se propôs, tendo como objeto de estudo, a narrativa fantástica de Murilo Rubião, foi promover uma interpretação desta pela perspectiva teórica de Umberto Eco e suas afirmações acerca dos elementos que formam um texto, literário ou não. No caso do conto em questão, buscou-se configurar aspectos relevantes que permitissem a inferência das teorias acerca da presença do leitor e do autor como estratégias textuais. Tal proposta buscou balizar a narrativa de Rubião à luz das perspectivas da contemporaneidade evidenciando que para entender determinadas narrativas ou mesmo seu processo criativo, é preciso 205 antes de tudo uma mobilização e seleção de determinado publico leitor, já que a obra em si, possui vida própria como também autonomia para delimitar seu campo de alcance. Autor e leitor são trabalhados dentro do texto como elementos internos permitindo que sempre a leitura literária possa fluir de forma que a interpretação seja plena. Isso não isolando o fato de que o conto do referido autor sempre atinge seus objetivos pela forma como usa a temática humana de forma insólita evidenciando a solidão de estar e viver no mundo contemporâneo. Leitor, autor, texto literário, uma tríade indissociável que se presta a um objetivo maior, explorar o imaginário pelas malhas tecidas de uma narrativa, uma viagem deliciosa que sempre tende ao inesperado. Referencias ALCIDES, Sérgio. A Parábola Inconformada. In: RUBIÃO, Murilo. A Casa do Girassol Vermelho e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.81-90. ARÊAS, Vilma; FURUZATO, Fábio Dobashi. Uma Poética da Morbidez. In: RUBIÃO, Murilo. O Homem do Boné Cinzento e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.99-108. CONNOR, Steven. Pós-modernismo e Literatura. In: Cultura Pós-moderna: Introdução a teorias do contemporâneo. São Paulo: Ed. Loyola, 1993. p. 87107. ECO, Umberto. Leitura do Texto Literário: lector in fábula. Tradução de Mario Brito. 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Por exemplo, poderíamos lembrar das esculturas gregas que tentavam reproduzir ao máximo, em suas linhas, impressões e feições humanas. Não qualquer feição ou expressão, mas tão somente aquelas que poderiam inspirar, lembrar a perfeição e a harmonia destas mesmas feições. Ali, a simetria matemática era o paradigma da perfeição. Assim como o universo era simétrico, harmonioso, perfeito em seus detalhes, onde cada elemento ocupava e desempenha seu papel; ali, na reprodução das feições humanas, e na arte grega valiam os mesmos paradigmas. Obviamente que este modo de interpretação grega era puramente metafísico. Poderíamos lembrar, também, do teatro grego. O qual, com Mestre em Filosofia, professor do Departamento de Filosofia - UNICENTRO 209 suas tragédias, procurou imitar de modo claro e realista as vicissitudes, os caminhos e descaminhos, o absurdo e as maravilhas da existência humana. Na verdade, inclusive os mitos gregos poderiam ser elencados como exemplos, também. Não somente a isto estava restrita a arte grega, mas, também, em reproduzir feitos heróicos de homens, deuses e semideuses. Ora, haveria algo de mais belo, mais perfeito daquele que vence a escuridão, o dissimulado, o obstáculo em direção ao restabelecimento da perfeição e harmonia do cosmos?! Obviamente não. O herói grego é aquele que devolve a harmonia ao mundo. Restabelece a ordem. Reafirma a perfeição e o lugar humanos no cosmos, mostrando seu valor. Os heróis gregos dizem, de certo modo: “sim, apesar de tudo, não somos meras peças em um tabuleiro, reduzidos a vítimas ou a mais um elemento inerte e sem sentido a perambular pelo mundo. Nós temos [entendemos o homem] o nosso espaço, a nossa função. O nosso phatos tem uma função.” Mas é claro, este phatos esgota-se em si mesmo. Ser humano já basta ao grego, não a todos, é claro. Ao longo da história do ocidente o que restou destas visões gregas de mundo e cosmos, ao final, foi, de diversos modos, distorcido pelos mais diversos interesses. Entretanto, de diversos modos, Helenismo, Idade Antiga e Medieval foram apenas uma extensão, distorcida ou não, daquele modo grego de conceber mundo. A idéia geral sobre arte continua sendo aquela da arte mimética. Obviamente que esta afirmação não visa diminuir todas aquelas obras de valor histórico inestimável produzidas ao longo 210 deste período; o que seria absurdo. Pelo contrário, poderíamos nos perguntar se este modo de conceber ou fazer-se arte não seria o único e mais elevado de todos? Ou alguém poderia dizer que há algo mais sublime, difícil, absurdo, tarefa mais ingrata do que tentar reproduzir o humano e suas vicissitudes? Não seria o Phatos humano uma das figuras mais difíceis de serem reproduzidas? Acreditamos que sim, mas isto não é o foco neste momento. O que temos, entretanto, é que a arte, enquanto arte mimética, estava condenada a um plano inferior com relação ao mundo, a natureza e ao homem. Essa interpretação metafísica perdura e perdurou de diversos modos ao longo da história ocidental. Mas, naqueles tempos remotos, o tema arte não era compreendido como na atualidade. Aqueles estudos iniciais com relação à arte não incluíam o que hoje chamamos e entendemos por estética. Por outro lado, na atualidade, os termos arte e estética estão tão ligados que o uso de um quase implica no do outro. Contudo, nem sempre foi assim. Todavia, isto apenas começou a ocorrer no séc. XVIII, na obra de Kant, Critica da Razão Pura e, ainda, não estava vinculado ao que identificamos pelo termo arte. Somente em 1790 Kant utilizou o termo estética relacionando-o a idéia de beleza e do sublime, em sua terceira Critica. Depois disso, a estética passou a ser, via de regra, considerada a ciência da arte e, como tal, uma disciplina estritamente filosófica. Contudo, aqui, faremos uma breve torção, por assim dizer, e nos deteremos na idéia de estética enquanto tão somente aesthesis, 211 ou seja, percepção de mundo, muito mais geral da estética enquanto experiência estética. Seguindo esta pista nos perguntaríamos se o mundo percebido, sentido, visto, experimentado, ao final, por nós, nos chega de algum modo privilegiado? Ora, falar sobre o modo como percebemos mundo, implica, ora falarmos nas condições que nos possibilitam esta mesma percepção e, por outro lado, nisso que chamamos de realidade. Novamente, aqui, podemos lembrar os gregos. Todos conhecem, via de regra, os problemas colocados pelo mito da caverna platônico. Iremos nos concentrar apenas em um aspecto que se desprende da narrativa platônica. De um lado temos aqueles que estão presos no interior da caverna, incapazes de perceber o mundo real, pois estão presos de tal forma a não poderem vê-la. Mais do que isso, estão tão absorvidos pelas imagens que passam diante de seus olhos, reflexos de uma realidade que não percebem, para a qual estão virados de costas, e que nem julgam a possibilidade destas mesmas imagens serem falsas e de existir, portanto, uma outra realidade, esta sim, verdadeira. Chamaremos de realidade 1, esta realidade percebida por aqueles que estão presos e vivem achando perceber a realidade quando percebem, tão somente, a realidade falsa. E, chamaremos de realidade 2, a realidade verdadeira, que aqueles que estão acorrentados na caverna nem supõem existir. A tarefa do filósofo e de todo que tem amor pelo 212 conhecimento deve procurar pela realidade 2. Mas, para isso, deve, antes, libertar-se da realidade 1, a qual, na verdade, é uma falsa realidade. Deixando de lado muitas outras questões que se desprendem do mito da caverna platônico gostaríamos de salientar a idéia da existência (em sentido fraco) de duas realidades e, ao final, de dois modos de percebermos o mundo. Um falso, daqueles que estão entretidos pelas sombras e um verdadeiro, por aqueles que se libertaram da falsa realidade e acederam ao mundo do conhecimento, da sabedoria, ou seja, das idéias e das formas. Essa idéia geral, digamos assim, se perpetuou de diversos modos até nossos dias. As religiões e todo tipo de pensamento que poderíamos chamar de místico ou religioso conservam e se sustentam mantendo essa concepção. A qual, não seria uma invenção platônica. Contudo, para a história do pensamento do ocidente, os gregos, e suas teorias, representam o início de muitas, senão todas, concepções que, no decorrer da historia do ocidente, sofreram diversas mudanças. Mas, que no geral, conservaram o modo de formulação grega do problema. Este modo dos gregos conceberem o mundo refletiu-se, inclusive, na linguagem. A qual é denunciada por Heidegger como tendo um grave problema, considerado insuperável pelo filósofo, face a herança cultural e o consequente débito do ocidente para com os gregos. O aspecto de conceber a linguagem que se reflete na realidade é o caráter hipostaziador que ela, a linguagem, possui e que, Heidegger considerou insuperável. Isto significa que ao nomearmos o mundo a 213 nossa volta sempre incorreremos no erro de hispostaziá-lo. Deixando, por ora, esta questão e, seguindo a idéia platônica citada anteiormente e que se perpetuou ao longo da história do ocidente de diferentes modos até nossos dias gostaríamos de salientar esta idéia de que há, para além do que é percebido uma outra realidade e que, esta sim, é a verdadeira, legitima. Seguindo isto, somos levados a imaginar que o mundo tal qual percebemos não é o mundo real, mas uma espécie de engodo, uma espécie de ilusão. Da qual, seria necessário nos libertarmos. E, o primeiro passo para tal seria, tal qual aquele acorrentado do mito platônico, perceber ou aceitar a idéia de que o que vê, percebe, não corresponde ao real. Assim, para aceder a realidade 2 é necessário um esforço. Neste movimento é necessário apreender a ver com os olhos da alma e não simplesmente com os do corpo. E, através deles vislumbrar e poder discernir o conhecimento verdadeiro do falso. Isso, parece-nos, durante muito tempo, para não dizer sempre, estimulou os mais diversos devaneios com relação ao modo como concebemos a realidade e até que ponto podemos a conhecer. Num primeiro momento, o que temos é a idéia de que a simples percepção da realidade não é suficiente para acedermos ao real, ou seja,a verdade não é algo que se mostra de qualquer jeito e num primeiro momento. Mas, quem poderia então, ou teria a capacidade deste discernimento? Obviamente, desde Platão, não são muitos que teriam esta capacidade. Contudo, isto parte da convicção de que o que nos 214 percebemos não é o real. E que o verdadeiro conhecimento não se atinge pela percepção. E, ao longo da historia muitos, para não dizer todos, aceitaram como obvia esta noção de mundo. Ora, a pergunta mais obvia, contudo, por vezes foi deixada de lado, qual seja, o que é isso que chamamos e podemos chamar de realidade? Aliás, isso, o real existe? É possível ver com os olhos da alma? E discernir o verdadeiro do falso? E é aqui, neste ponto, e sem entrar em detalhes sobre o paradoxo inaugurado pelos gregos que gostaríamos de fazer mais uma torção. O que está em jogo, ao final, entre outras coisas é a possibilidade de fazermos um discurso objetivo sobre o mundo a nossa volta. Ora, para tal, pelo que vimos e se aceitarmos como dada a questão, o discurso objetivo sobre a realidade seria algo a ser perseguido e, além disso, privilegio de poucos. Somente daqueles que se libertaram do mundo das sombras e acederam ao mundo das formas, da verdade. Agora, isso é realmente possível? Há possibilidades de construirmos um discurso objetivo sobre a realidade? E, aqui, vamos deixar de lado o que seja verdadeiramente isso, a realidade, o que tornaria a questão bem mais problemática. Mas, por qual motivo esta seria ou é uma questão, digamos, interessante? Válida e ou legítima? Além da filosofia, por exemplo, outra área em que está presente esta questão seria o jornalismo. Obviamente que não do mesmo modo como para a filosofia e nem com as mesmas implicações. Ora, em que outra área, talvez, a idéia de um discurso 215 objetivo, seria tão perseguida? Um discurso que descrevesse a realidade como se apresenta? Ora, em quase todas, poderia alguém objetar e estaria certo. Contudo, nas outras há um resquício de dúvida que é mantido por aquele que o produz quanto ao discurso produzido que se pretende objetivo. Todavia, isto parece não ocorrer com os jornalistas. E a idéia de um discurso original, verdadeiro, fidedigno a realidade, é um apelo recorrente na mídia em geral. E isso atingiu, já, tamanha proporção que admitir o oposto seria como admitir o erro, o logro, o dolo. Ninguém quer ou fará qualquer coisa que possa retirar a credibilidade de seu discurso e, portanto, ninguém, principalmente jornalistas fariam isso. Ainda mais por se colocarem como os portavozes da realidade. Aqueles que esclarecem, explicitam, tornam inteligíveis o mundo à aqueles que estão presos as sombras, a uma realidade falsa, por assim dizer. Partiremos e tentaremos sustentar que esta tarefa e missão, por assim dizer, assumidos como óbvios, principalmente pelos profissionais citados é uma quimera, um engodo, um dolo. Pois, não há base filosófica para uma crença deste calibre. E, acreditamos que nem científica. Contudo, aqui, apartir do que nos diz Kant, já no século XVIII, não podemos aceitar que haja um modo de discurso totalmente objetivo. Isto significa que não haveria um modo puro de captar a realidade ou, ainda, ter uma experiência disso que se chama realidade. No prefácio da segunda edição da Critica da Razão Pura diz 216 Kant: Com efeito, a própria experiência é uma forma de conhecimento que exige concurso do entendimento, cuja regra devo pressupor em mim antes de me serem dados os objetos, por consequência, a priori e essa regra é expressa em conceitos a priori, pelos quais têm de se regular necessariamente todos os objectos da experiência e com os quais devem concordar (KANT, 1997, p.20) Ora, parece claro que a experiência, segundo Kant, já é uma forma de conhecimento, ou seja, não é um puro dado que se apresenta a percepção. Pelo contrário, enquanto tal, a experiência somente é captada por ser, ela mesma, adaptar-se, enquadrar-se em certas regras, ou categorias, que já são uma forma de conhecimento, a priori, que tornam possíveis, por um lado, captar a experiência enquanto tal e, por outro, entende-la. Desse modo, fica claro que a experiência somente pode ser captada enquanto tal e compreendida pelo concurso do entendimento ou, em outras palavras, pela intervenção da razão. Mas, é claro que isso não significa que a experiência esteja em segundo plano, ou que seja algo dispensável na formulação do que podemos identificar pelo nome de conhecimento. Mais adiante, ainda na obra citada de Kant, ele diz: Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; 217 efetctivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em acção a nossa capacidade de conhecer senão os objectos que afectam os sentidos e que, por um lado, Põe em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separálas, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nos a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início (KANT. 1997, p.36) Está clara a importância da experiência na formação do conhecimento humano. E, além disso, a idéia de que a experiência já é uma forma, em si mesma, de conhecimento. O qual transforma a matéria bruta das impressões, como nos diz Kant, em experiência. Desse modo, se hierarquizássemos o nosso contato com o mundo sensível, poderíamos dizer que em primeiro lugar teríamos a as impressões sensíveis, as quais ainda não seriam conhecimento. Depois, em segundo lugar, a experiência mesma. Contudo, a matéria bruta que nos chega via essa experiência, ela mesma, somente é percebida via experiência. Desse modo, o que chamamos de matéria bruta já é um dado, uma forma de conhecimento constituinte da experiência. Assim, o que chamamos de realidade ou, a possibilidade de construirmos uma discurso sobre a realidade fidedigno, ou seja, de tal forma que 218 descreva aquilo que se dá a percepção de modo puro, como ele é, não é nada mais nada menos do que um engodo. Por outro lado, Kant, contudo, diz ao final da citação que é na experiência que todo o conhecimento tem seu início, ou seja, não há como haver conhecimento sem experiência. Mas, isso não significa que todo o conhecimento derive somente da experiência. Diz Kant, mais adiante, “se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência.” (1997, p.36). Pois, está claro para Kant que muitos conhecimentos que temos da natureza e do mundo não podem ser simplesmente ficar restritos a possibilidade da experiência. Embora dependam e estejam, até certo limite, condicionados por ela. E, tais conhecimentos, que não mais se restringem a experiência de mundo, e que Kant chama de conhecimentos a priori constituem, até mesmo, quer saibamos ou não, o senso comum. Desse modo, e sem nos estendermos demasiadamente nas questões kantianas, fica claro que falar em uma experiência pura do mundo, da possibilidade de captarmos a realidade objetiva do que está a nossa volta e, além disso, termos acesso a isso que chamamos de realidade. Realidade identificada como uma forma na qual o mundo se apresenta de forma objetiva e pura como ele é, sem interferência de construções subjetivas ou preconceitos, não se sustenta. O discurso que podemos e efetivamente construímos do mundo a nossa volta é, em maior ou menor grau transpassado pela subjetividade, ou seja, pelo entendimento, pela razão. O que 219 implica em já captarmos mundo a partir de determinados conceitos e pressupostos, os quais, eles mesmos, por um lado, possibilitam e constituem este mesmo entendimento. Se aceitarmos a posição kantiana teremos que aceitar, também, que não há a possibilidade de construirmos um discurso no qual a realidade, o mundo, se apresenta de forma pura, como ele é (seja lá o que significa isso). E, aqui, gostaríamos de lembrar de uma figura, no mínimo polêmica, o jornalista norte-americano Hunter S. Thompson, com a sua idéia do jornalismo feito sem qualquer possibilidade de objetividade e que entrou para história através da expressão jornalismo gonzo. Se Thompson tinha ou não conhecimentos filosóficos ou científicos sobre o tema não se sabe, mas, com certeza, Thompson, sabendo ou não tocou em um tema que a muito é uma questão controversa, pelo menos, na filosofia. E, além disso, a sua posição, também, é coerente com o que, depois de Kant, tornou-se mais claro do nunca. Qual seja, a interferência e o papel da subjetividade na formação da nossa concepção da realidade. A expressão jornalismo gonzo, contudo, não foi, na verdade, criada ou utilizada por Hunter S. Thompson para identificar o seu estilo de narrativa ou sua posição com relação a impossibilidade de um discurso objetivo. A expressão, ao que tudo indica, foi utilizada pela primeira vez pelo repórter do Boston Sunday Globe, Bill Cardoso, com o intuito de comentar um artigo do mesmo Thompson; fazendo com que a expressão fosse associada a 220 posição de Thompson e o seu estilo de narrativa. Mas, o que seria especificamente o termo gonzo? Ainda seguindo o reporter do Boston Sunday, o termo seria uma gíria irlandesa do sul de Boston usada para fazer referência e identificar aquele que após uma bebedeira, comparada a uma maratona, conseguiria ficar de pé, ou seja, gonzo designa o último homem de pé após uma maratona de bebedeira. Vamos, agora, relatar de modo breve e sem muitas pretensões como surgiu o que foi chamado posteriormente de estilo Gonzo com a intenção de tornar a questão mais clara. É bem conhecido, em sua área, pelo menos, a tarefa que o jornalisa norte americano foi incubido de cobrir, uma corrida de motos, a Mind 400, encomendada pela revista Roling Stone, e realizada no deserto, em Las Vegas. Esta tarefa acabou, até mesmo,virando filme e sendo considerado por alguns um exemplo paradigmatico do estilo de narrativa gonzo. O motivo é que nesta narrativa, Thompson, narra as suas impressões sobre o evento. Na verdade, um evento que ele mal chegou a cobrir. A sua narrativa sobre o mesmo, a corrida em si, se é que podemos falar assim, é mais um acontecimento entre as diversas situações que ele relata, como a viagem até o local, os hoteis por onde passou, as pessoas com quem entrou em contato e, é claro, a sua convivência como seu companheiro de reportagem. Entretanto, isso é feito de tal maneira que o que temos, ao final, é a impressão de um relato que mais parece uma amálgama de 221 impressões sem sentido, na qual, o evento que deveria ser o escopo da viagem, é mais um elemento perdido entre. Esta sua experiência, digamos assim, acabou por transformar-se em um livro, Medo e Delírio em Las vegas: uma jornada selvagem ao Coração do Sonho Americano. Thompson usa a expressão em sua narrativa como o resultado de uma matéria que deveria ser feita sem uma pauta, uma orientação, sem critérios claros a serem seguidos. O que ele também compara, sarcasticamente, ao Sonho Americano. Lemos no livro de Thompson citado anteriormente: Mas qual era a pauta, exatamente? Ninguém se dignou a dizer. Teriamos que descobrir sozinhos. Livre iniciativa. O sonho americano. Horatio Alger destruido pelas drogra em Las Vegas. Fazer tudo na hora: puro jornalismo gonzo. (THOMPSON, 2007, p.18) O livro citado acima, está longe de poder ser considerado um ícone do jornalismo. Muito menos um exemplo de relato jornalistico tal qual entendemos que o mesmo deva ser. Esta mais para um romance literário do que para uma crônica. Este livro, seria o registro de Thompson de sua aventura para cobrir a corrida no deserto. Experiência regeada de drogas, bebedeiras, fugas de hoteis e restaurantes sem o pagamento das contas, entre outros. Um relato cínico, do início ao fim, feito de tal forma a redicularizar, debochar e escrachar com todos os padrões e valores que poderiam, 222 em certa medida, serem considerados importantes em uma sociedade. Tais como, responsabilidade, descência, pudor, respeito, cometimento, honestidade e muitos outros. Isso coloca o leitor do livro citado a frente a narrativas que são muitas vezes hilárias, absurdas, impensáveis e, para nao dizer, algumas vezes, até mesmo grotescas. Tudo isso sempre regeado por um uso desmedido dos mais diferentes tipos de drogas, sem qualquer critério ou pudor. Além disso, vemo-nos, por diversas vezes, frente a certas passagens e análises que arriscariamos dizer quase que antológicas do relato de Thompson. Sem falar nos palavrões, xingamentos, e nos surtos mais sem sentido possíveis provocados pelos alucinógenos. Grande parte da sua experiencia, também é digno de nota, se passa dentro de um ícone da indústria automobilistica americana e um representante legítimo do sonho americano, um enorme cadilac Chevrolet, vermelho e conversível, ao qual chamam de o grande tubarão vermelho. Cujo portamalas do carro, diz, em certa altura de sua narrativa, mais parecer um laboratório móvel do departamento da narcóticos, tamanha era a variedade e quantidade de drogas. Estas cenas, contudo, dividem, em alguns momentos, espaço com análises muito perpicazes. Como a que faz dos anos 60 e da era Nixon nos Estados Unidos, à página 188 de seu relato já citado, Thompson, em um surto de consciência diz reconhecer que a perda e o fracasso daqueles idos anos 60 sao as perdas e fracassos 223 “...também nosso”. A época da cultura do ácido, como diz Hunter, citada conjuntamente com a era Nixon, estava apoiada em uma falácia mistica, qual seja: “o pressuposto desesperado de que alguém – ou pelo menos alguma força – está cultivando a Luz no fim do túnel.” (p.189). Ilusão que passou, segundo ele, desapercebida. Em resumo, ao final da narrativa os protagonistas estão, eles mesmos, exaustos e exauridos de suas forças. Contudo, o final da narrativa nao é menos inigmática, debochada e sarcástica. Novamente, Hunter cita Horatio Alger, famoso romancista do século XIX citado como aquele que de certo modo melhor encarna o mito do Sonho Americano. Nos romances de Alger, encontram-se, via de regra, pessoas pobres que vivem na periferia de Nova York e que com obstinação alcançam o sucesso e a riqueza. Diz Hunter, na última frase de seu livro: “Eu me sinto uma reencarnaçao monstruosa de Horatio Alger....um Homem em Movimento, doente o bastante para se sentir totalmente seguro de si.” (p.214) De modo, digamos, questionável, tentamos expor alguns exemplos de narrativas presentes no livro do repórter norte americano com o intuito de dar, mais ou menos, um panorama sobre o mesmo. Deixaremos de lado, agora, isso e tentaremos integrar o que foi dito com a questão filosófica. Julgamos que o estilo gonzo imortalizado neste livro de Thompson não pode ser lido Ipsis literis. Mas, como um exemplo de que qualquer pretensão de construirmos um discurso objetivo, isento de pré conceitos; um discurso que 224 mostre a realidade, os fatos, o mundo, tal qual ele se apresenta ou é captado por nós, não passa de uma ilusão. A todo momento, no relato de Thompson, o personagem que fala, que seria o próprio Thompson, não tem noção se o que diz realmente aconteceu ou foi o resultado do uso das drogas. E fica confuso com isso. As alucinações provocadas pelos uso literalmente descontrolado dos mais variados tipos de alucinógenos, poderia ser lido como um modo de dizer que não há uma linha demarcartória clara com relação ao que percebemos e ao que pensamos a respeito do que foi experimentado. O personagem de Thompson, ou o próprio, levando em consideração que o livro é uma narrativa veridica de sua experiência, não sabe, em diversas ocasiões, se o que está vendo, pensando, corresponde ao real, à realidade como tal. A ficção, se é que podemos falar assim neste caso, se mistura com a realidade. Já na primeira página da edição brasileira de Medo e Delírio, de 2007, o episódio dos morcegos já deixa claro a perda desta linha demarcatória entre realidade e percepção. Bem como um sem número de passagens. A obra de Thompson, mais do que um tratado sério ou um ensaio (o que nem com muita boa vontade podemos dizer que seja), poderia ser concebido como um exemplo da impossibilidade de um discurso objetivo. Um exemplo, talvez, bem questionável, mas, com certeza, um exemplo. Ao final, o que foi tentado aqui ser feito? Mostrar que o discurso que pretende ser construido alegando ser fidedigno a 225 realidade, tal qual ela se apresenta, como se aquele que pronunciasse este mesmo discurso desfrutasse de um lugar privilegiado, apartir do qual pudesse vislumbrar o mundo real, é falso. Pois, como vimos em Kant, não há experiencia pura do mundo e que, a experiencia mesma, já é um tipo de conhecimento. E Thompson, com seu estilo de narrativa jornalística, que rejeita a possibilidade de um discurso objetivo da realidade, sabendo ou não, foi de encontro a uma das grandes questões para a filosofia. E tendo, segundo nosso entendimento,tomado o partido certo, quando recusou a possibilidade de um discurso objetivo. Isso implica, caso aceitemos a posição de Kant com relação a questão, que não existem e nunca existirão narrativas privilegiadas e nem alguém que as possa construir. Por ora, gostaríamos de finalizar dizendo que outros autores filosóficos poderiam ter sido abordados, mas, aqui, optou-se tão somente por Kant face a sua importância na história da filosofia e por julgarmos que o modo como Kant apresentou a questão e a formulou não foi superada, tanto em clareza quanto em solução. Mas, é claro, a questão nao foi esgotada pela abordagem kantiana. Referências CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. KANT, Immanuel. A Crítica da Razão Pura. 4.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 226 THOMPSON, Hunter S. Medo e Delirio em Las Vegas: uma jornada selvagem ao coraçao do Sonho Americano. Sao Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2007. 227 Casamento à Vista: as crescentes relações entre arte e mídia Márcio FERNANDES 1 Mentes que não possuem nada de original voltam-se com arrogância contra todo talento que não lhes seja agradável ao primeiro olhar . W B Yeats Tal qual conhecemos, o mundo multimidiático que agora temos é a cristalização de processos havidos nos últimos 30 anos, quando se iniciaram revoluções sob o prisma das tecnologias, afetas 2 à criação de máquinas, e das narrativas, que transformaram a maneira do Ser Humano de produzir, difundir e consumir conteúdos, qualquer que seja a área do conhecimento. Quando, na metade dos anos 70, o pensador, cientista e professor americano Nicholas NEGROPONTE deu vida ao termo 'multimídia', a sociedade contemporânea estava adentrando em uma época desconhecida, em um misterioso universo, na melhor semelhança ao Homem Vesuviano (figura 1), como séculos antes imaginara o gênio renascentista Leonardo DA VINCI. 1. Jornalista com 14 anos de carreira e professor concursado do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Líder do grupo de pesquisa 'Processos Midiáticos Eletrônicos e Impressos'. Mestre em Comunicação e Linguagens e professor de disciplinas como Arte e Estética em Comunicação. E-mail: [email protected]. 229 Figura. 01. Pois nestes 30 anos, duas formas de expressão humana passaram a tirar proveito do mundo multimeios que se formou, mesclando-se cada vez mais intensamente desde então: a Arte e a Mídia. Ambas souberam incorporar com talento as possibilidades ofertadas pela Convergência dos Meios, termo que designa, a partir da visão de autores como Wilson DIZARD JR, uma nova técnica que permite que um conteúdo seja tornado público em diferentes plataformas ao mesmo tempo, possibilitando ao público-alvo a assimilação de distintos modos em distintos momentos. Assim, está cada vez mais difícil dissociar Arte da Mídia, por exemplo, e se torna uma operação complexa descobrir se uma capa de uma revista semanal de informação geral obedece aos fundamentos do Design de Imprensa (similaridade, contraste, etc) ou se uma videoarte é exatamente isso ou um vídeo publicitário puramente. O mesmo vale para as criações do artista multimídia Bill Viola (nascido nos Estados Unidos, em 1951), cuja obra, originalíssima aliás, é extremamente difícil de ser classificada. Neste cenário, o presente artigo discorre sobre as crescentes relações entre estas duas formas da expressão humana, 230 provocando, em última instância, o fim das fronteiras entre elas, tendo por base dois textos de distintas épocas – Convenção e inovação (de 1976), constante do livro Estética doméstica, escrito por Clement GREENBERG, e Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular, de Ben SINGER, incluído no livro O Cinema e a invenção da vida moderna (2001), organizado por Leo CHARNEY e Vanessa SCHWARZ. Enquanto GREENBERG aborda a arte formalizada (aquela dita clássica, aceita pelo bom senso ocidental, consumida em galerias e museus de prestígio) e as rupturas para com a mesma, SINGER versa quanto aos aspectos socioeconômicos da Modernidade. Em particular, SINGER aponta como uma das consequências da Modernidade a explosão 'de uma cultura de consumo de massa' (p. 115), que levou o Ser Humano, em larga escala, a passar a consumir produtos (como automóveis) e serviços (restaurantes), além de investir mais tempo e recursos financeiros no lazer (caso do Cinema e Artes Plásticas). Ademais, este estudo entrega a seu interlocutor apontamentos sobre experiências artístico-midiáticas havidas nos últimos anos, no Brasil e no exterior, como indicativos bastantes interessantes acerca deste ora noivado entre as partes, mas de casamento à vista. Da Convenção e Inovação O tempo presente é recheado por quebras de parâmetros, 231 algo que, na Arte, é perceptível. Outrora, os instrumentos essenciais de um artista não iam muito além de tinta, tela, pincel, bronze, ferro e similares. O sujeito que, em 2004, visitou a exposição hiPer – Relações Eletro//digitais, em Porto Alegre, deparou-se com videoinstalações, ciberliteratura, arte telemática, nanoarte, projeções em realidade aumentada, robótica, etc – inovações tecnológicas e de narrativas, portanto. O designer Ricardo Ribemboim, ilustra-se, depositou uma escultura em madeira no fundo da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e lá instalou uma câmera de vídeo para acompanhar as transformações daquilo que se chamou 'vídeo-objeto'. O resultado (figura 2) é aberto a Figura. 02 todo tipo de interpretações. De seu turno, o estilista e artista plástico Carlos Miele levou para a mostra seu vestido de fibra ótica, uma criação feita no ano de 2000. E estes são apenas dois dos casos atípicos para uma galeria de arte, tendo provocado controvérsias de toda sorte entre os visitantes de hiPer. Estavam, portanto, Ribemboim e Miele quebrando, com suas criações, convenções artísticas, convenções essas que, na ótica de GREENBERG, impõem resistências, obstáculos e restrições ao fluxo comunicacional (p. 95). Oliver GRAU é outro pensador que indica as revoluções 232 artísticas e midiáticas em curso. Em texto para o livro Imagem (ir)realidade: comunicação e cibermídia, o autor sustenta que Hoje, artistas da mídia estão moldando áreas extremamente diferenciadas, como arte telepresencial, arte biocinética, robótica, arte na internet e arte espacial; experimentando com nanotecnologia, vida artificial ou 'A-life art'; criando agentes e avatares virtuais, além de arte envolvendo coleta de dados (datamining), realidades mistas e bases de dados. (GRAU, 2006, p.260). Ao analisar a obra do pintor e escultor francês Marcel Duchamp e suas obras no começo do século 20, GREENBERG (p. 106) classifica que, com peças como Roda de bicicleta e Suporte para garrafas (as duas de 1913), Duchamp operava com 'uma experiência estética descompromissada, em estado bruto', ainda que 'institucionalmente viável (passível de ser exposta em galerias e museus, discutida pela Imprensa e por pessoas interessadas em Arte). Ora, o caminho trilhado por Ribemboim e Miele (e Patrícia Piccinini, de Serra Leoa, com seu enigmático DVD em áudio surround chamado Plasmid Region, dentre outros tantos que poderiam ser citados) é deveras similar ao que Duchamp fizera quase 100 anos antes. Escreveu GREENBERG: (Com Duchamp) Era possível criar, agir, moverse, gesticular, conversar numa espécie de vácuo – sendo o vácuo propriamente dito mais 233 “interessante” ou, ao menos, mais valorizado do que qualquer coisa que acontecesse nele. O ponto principal da associação com a arte era ficar intrigado, confuso, receber algo sobre o que falar, e assim por diante (1976, p.106). Note-se que artistas contemporâneos como os três citados acima, bem como Helga Stein (artista plástica brasileira especialista em Design de Hipermídia) ou Lula Vanderlei (para quem, como apontado no documentário Tudo É Brasil/2004, subverter o olhar é fundamental) lidam essencialmente com esse 'conversar numa espécie de vácuo', na medida em que criam peças pouco convencionais ao gosto atual e se servem sobremaneira de recursos largamente utilizados pelos meios de comunicação. Em 2004, recorda-se, Helga Stein criou uma obra, Argos, para um evento multimídia, o Nokia Trends Festival. À época, Argos (figura 3) consistia em um aparato similar a um par de óculos que mesclava aparelhos de telefonia celular com câmeras fotográficas digitais, almejando construir um retrato coletivo e mutante de bocas e olhos. E, como bem se sabe, não é de hoje que telefones e máquinas fotográficas são instrumentos fundamentais para o fazer comunicacional. Figura. 03 234 Figura. 04 Paralelamente, Lula Vanderlei também se serviu da Mídia para criar o vídeo Arte é um futebol sem bola (figura 4), no qual exibia sequência de imagens consagradas pelos meios de comunicação, como lances dos ex-jogadores Garrincha e Maradona driblando e fazendo gols seus adversários, mas sem que bola pudesse ser vista na tela, provocando o que ele chamou de 'consolo catártico', tido neste caso como uma atitude subversiva à lógica do jogo, deixando aflorar o que Lauro CAVALCANTI, no livro Tudo é Brasil (2005, p. 39), chama de 'balé subjacente' do futebol. Da Modernidade Enquanto que Clement GREENBERG era um influente crítico de arte do século 20, Ben SiINGER é um expert contemporâneo em estudos cinematográficos que, no artigo mencionado anteriormente, enfoca a Modernidade sob três lados: enquanto conceito moral e político, no qual o mundo pós-sagrado e pós-feudal que temos apresenta normas e valores (sempre) sujeitos a 235 questionamentos (p. 115); enquanto conceito cognitivo, já que a Modernidade 'aponta para o surgimento da racionalidade instrumental como a moldura intelectual por meio da qual o mundo é percebido e construído (idem); e pelo aspecto socioeconômico (ibidem), trazendo à tona questões relativas às novas tecnologias e meios de transporte, saturação do capitalismo avançado e, o principal para a presente discussão, o surgimento e aceleração da cultura de massa. Este terceiro ponto da Modernidade serve de lastro para o que vem a seguir no presente paper. SINGER (p. 116) recorda que, ainda em 1903, Georg SIMMEL, no escrito The Metropolis and the mental life, sugeria que a Modernidade estava promovendo uma 'intensificação da estimulação nervosa'. Dito de outro modo, a experiência subjetiva estava ganhando forças rapidamente nos grandes aglomerados urbanos que se formavam mundo afora. Eram os tempos da 'imprevisibilidade de impressões impetuosas', nas palavras de SIMMEL, um sociólogo alemão nascido no século 19. Tal imprevisibilidade era, em boa medida, sustentada pelo que a Mídia trazia cotidianamente a seu público. Subitamente, continua SINGER, os jornais começaram a se interessar pelos acidentes ocorridos nas alturas dos grandes edifícios; pelas mortes de pedestres; pelas competições de carros, não raro havendo atropelamentos; pelos efeitos do grande número de pessoas vivendo nos bairros; e pelas mutilações nas fábricas, dentre outros pontos. Para além disso, o comércio urbano crescia 236 vertiginosamente, bem como o consumo de produtos de entretenimento, o Cinema entre eles. Era, então, o começo da Cultura de Massa, a explosiva Cultura de Massa citada por SINGER (p. 115). Como já visto, por aqueles tempos a Arte Clássica estava sendo solapada pelos novos criadores, como Duchamp, mentor do conceito 'ready made', que trazia para o universo da Arte objetos que, em um primeiro julgamento, não eram vistos como artísticos – vide as célebres peças Roda de bicicleta e A fonte (um antigo urinol branco, esmaltado). Não demoraria muito e surgiriam Pablo Picasso e Salvador Dalí, dois criadores extremamente surpreendentes. Na esteira deles, o número de artistas buscando apresentar algo novo à sociedade em termos de produção diferenciada era considerável. Pois essa Modernidade atravessou o século 20 e bateu ao tempo presente conservando algumas de suas características primordiais. No caso da Arte, é possível se utilizar o termo 'acentuando' no lugar de 'conservando'. O sensacionalismo dos acontecimentos é uma dessas características, servindo-se a Arte justamente de plataformas midiáticas para atingir suas metas. Em hiPer, Patricia Piccinini era um dos casos, com suas misteriosas imagens e (para muitos) repulsantes cenas em Plasmid Region. O mesmo pode se dizer de Ribemboim e dos criadores multimídia Luiz Duva e Wilson Sukorski, que levaram para hiPer a peça Vermelho Sangue, um espetáculo multimeios (com dança, videoarte, música e performance) que tingia de tonalidades fortes 237 um cenário que, a priori, era bucólico. A mesma Helga Stein aponta na direção na referida imprevisibilidade e na intensa estimulação nervosa de seu interlocutor. A narcísica galeria disponível na Web denominada Andros Herz é um exemplo disso. Ali, Helga revira seu próprio rosto, através de softwares de tratamento de imagens, provocando metamorfoses que ora encantam ora escandalizam o interlocutor comum, aquele mais apegado à Arte Clássica. Em 1932, diz SINGER, o filósofo espanhol José ORTEGA Y GASSET escreveu algo que ainda tem notável valor: O ritmo da vida moderna, a velocidade com a qual as coisas se movem hoje, a força e energia com que tudo é feito angustiam o homem de compleição arcaica, e essa angústia é a medida do desequilíbrio entre suas pulsações e as pulsações de seu tempo (p.142). A diferença entre 1932 e o agora é que o Ser Humano, distintamente de quase 80 anos atrás, está mais adaptado ao tal 'ritmo da vida moderna', o que permite o surgimento de criadores como Vik Muniz, louvado pela Imprensa brasileira e internacional por suas peças cujas matérias-primas vão do açúcar à pasta de amendoim, passando pela fumaça de aviões publicitários, máquinas que, como o próprio nome indica, são instrumentos amplamente utilizados para propaganda aérea. 238 Dos apontamentos (nada) finais A busca constante pelo conhecimento é, claro, anterior ao surgimento dos grandes aparelhos midiáticos (jornais, TVs, Cinema, Rádio, câmeras fotográficas, etc). Mais recentemente, tem sido concomitante ao surgimento e desenvolvimento desses instrumentos de mediação. Por volta de 1740, quando o meio Jornal possuía razoável estrutura e prestígio na Europa, franceses ainda se informavam das novidades além-fronteiras de Paris através da Árvore da Cracóvia, uma castanheira descomunal disponível no Palais-Royal, na capital francesa, como descreve Robert DARNTON: Como um poderoso imã, a árvore atraía nouvellistes de bouche, ou boateiros, que espalhavam de boca em boca informações sobre os eventos correntes. (…) Diplomatas estrangeiros supostamente enviavam agentes para colher notícias, ou plantá-las, junto à Árvore da Cracóvia (2005, p.39). É justamente essa natureza curiosa do Ser Humano que tem alimentado a Arte Contemporânea, com suas características eletro//digitais, como descrito em hiPer. Como já parece ser definitiva a instalação dessa sociedade mediada e midiatizada no seio da Terra, a Arte tem intentado se aproveitar dos recursos comunicacionais para formar/angariar/fidelizar seu público/sua clientela comercial. Juntas, Arte e Mídia têm ofertado quantidades de conteúdos jamais vistas, com facilidades de acesso/consumo quase inacreditáveis ao olhar comum. 239 Claro que, se tal oferta é de qualidade ou não, isso cabe ao interlocutor de cada obra artístico-midiática decidir. Há muito é assim – DARNTON (idem, p. 41) lembra que grupos sociais de distintas épocas sempre criaram meios peculiares de formas de estruturar, disseminar e fazer consumir conteúdos - , com a diferença de que agora, em vez da contemplação apenas mental, pode-se apertar um botão do mouse e enviar sua opinião para o criador da obra, já que o mesmo costuma disponibilizar um blog, um twitter ou um orkut como decorrência do noivado referido nos primórdios deste texto. Referências CAVALCANTI, Lauro (org). Tudo é Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro: Itaú Cultural / Paço Imperial, 2005. DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington – um guia não convencional para entender o século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. DIZAR JR, Wilson. A nova Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GRAU, Oliver. Integrando a arte-mídia em nossa cultura: história da arte como ciência da imagem. IN: ARAÚJO, Denize Correa (org). Imagem (ir)realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 260-270. GREENBERG, Clement. Estética doméstica. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 240 SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. IN: CHARNEY, Leo; SCHWARZ, Vanessa (orgs.). O Cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 115-148. 241 PARTE IV Teoria da Arte, Público e Universo Pessoal Arte para todos: a humanização e o desafio do acesso livre à produção artística Maria Inês Hamann PEIXOTO 1 A habilidade de captar os traços essenciais do seu tempo e desvendar novas realidades pode ser considerada a medida de grandeza do artista e de sua obra. Ernest Fischer Como facilmente se constata, nas sociedades regidas pelo sistema capitalista (e a elas este texto vai se restringir), a área das artes, assim como a da cultura em geral, não constituem prioridade dos governos, com relação à promoção do acesso livre – e fácil! – para a maioria da população, assim como em relação à intensidade 2 da presença da arte, na educação formal. No Brasil, a iniciativa privada, com honrosas e raras exceções, reluta até mesmo em aplicar parte do imposto de renda em projetos artísticos e culturais. A par dessa realidade, entretanto, o comércio de arte floresce. A idéia não é nova. O mercantilismo das artes começou na 1. Doutora em Educação (UNICAMP), Professora da UFPR (Aposentada), Artista plástica e performer. 2. Segundo informações verbais de funcionário ligado à área de artes da SEED/Paraná, nosso Estado é uma exceção positiva, entre os demais, no que diz respeito ao ensino da arte. Está sendo implantada uma nova estruturação no quadro das disciplinas do Ensino Médio: sem alterar a carga horária, o conjunto das disciplinas é dividido em dois blocos, que são ministrados um em cada semestre. Isso permitiu que as aulas de arte passassem a quatro por semana, como também de serem efetivadas em todos os anos desse nível do ensino. Sem dúvida, um ganho para a área, que vem associado à melhoria da formação dos professores, por diversos programas de aprimoramento criados pelo governo do Estado. Quanto ao ensino de 5ª à 8ª, a legislação abre a possibilidade de duas a quatro horas semanais, para a disciplina de arte, em todos os anos: um bom número de estabelecimentos definiu-se por três. 245 época do Renascimento, com o desenvolvimento do grande comércio para além-mar e com a fundação das colônias, o que coincide com início da acumulação do capital, fatos que ensejaram “a apropriação colonialista de objetos desconhecidos para a cultura 3 européia e gerou um acúmulo desses objetos nas metrópoles”. Compondo esse contexto, havia o acúmulo de grande riqueza resultante do desenvolvimento mercantil, o que favoreceu a criação de um mercado para tais objetos exóticos, reputados como arte. Simultaneamente, surgiu a necessidade de se construírem espaços para guardá-los, expô-los ou vendê-los. Criaram-se, então, os museus e as galerias que, junto com as grandes coleções particulares formadas em cidades como Florença e Veneza, demarcaram para a obra de arte um território próprio, distinto e distanciado do público em geral. (CANCLINI, 1984, p.97-98). Nos primórdios da era moderna, esse é o quadro que demarca o processo do mercantilismo da arte e, paralelamente, o de sua elitização. Não obstante o florescimento cultural e artístico, o Renascimento não garantiu uma ampliação do público para além das camadas aristocrática e burguesa: “as massas populares sequer tomavam conhecimento da existência de tais obras.” A Renascença configurou um movimento restrito “a uma elite intelectual e latinizada” que “consistia principalmente naquelas classes da sociedade que estavam associadas ao movimento humanista e neoplatônico” para as quais as obras de arte importantes eram 3. “Esses objetos, quando retirados do ambiente de origem, perdem sua função, seu 'valor de uso', próprio da cultura da qual são originários. Caracterizados como simples 'mercadorias', objetos de diferentes culturas têm mascarado o seu sentido de origem e passam a ser um mero 'valor de troca', uma mercadoria sujeita às 'leis de mercado'” (PEIXOTO, 2001, p. 73-74). 246 destinadas (HAUSER, 1995, p.320-322). No século XVIII, com a 4 consolidação da sociedade de classes, o distanciamento entre arte e público foi se aprofundando, de modo crucial e aparentemente irreversível, dentro dos padrões estabelecidos por essa nova ordem social (PEIXOTO, 2001, p.75). Neste texto, aborda-se a problemática do mercantilismo e da elitização da arte, em dois momentos: no primeiro, será levantada a situação da arte e sua comercialização tal como se apresentam na contemporaneidade. No segundo momento será tratada a concepção materialista dialética de arte e suas implicações para a produção artística, assim como para as relações entre arte e grande público, tendo em vista o processo histórico de humanização que a todos deve ser facultado, para o qual a sensibilização, promovida nos indivíduos pelo acesso às diversas formas de arte, é um determinante essencial. Parte 1 Mercantilismo e elitização da arte, na contemporaneidade Contemporaneamente, os processos de mercantilagem e elitização da arte se exacerbaram. No plano internacional – e, sem dúvida, com ramificações no Brasil –, a arte já se instituiu com “o grande negócio”, em detrimento do artista que a produz. Ou seja, o capitalismo já submeteu as artes à condição de mercadoria, sob as leis de um modo de produção em escala. Como afirma Arantes, “O 4. Essa nova sociedade cindiu-se em duas classes fundamentais: a dos capitalistas – proprietários dos meios de produção, e a dos proletários, que, para proverem sua subsistência, passam a vender a única mercadoria que lhes restou – a força de trabalho –, num mercado regido por leis próprias, estabelecidas à revelia do indivíduo produtor (PEIXOTO, 2001, p. 75, rod. 4). 247 poder público e as elites dominantes tanto gerem o Estado quanto administram a sociedade em termos puramente mercadológicos, quer dizer, fornecendo todo tipo de garantias aos ambientes de negócios considerados estratégicos” (ARANTES, 2005, p.1). Na contemporaneidade, apesar de considerada “estratégica” em termos de veiculação de novas ideias e de resistência política a regimes ditatoriais, a arte, no “varejo”, quando comparada à produção em escala, ainda é considerada uma área menor, dado o volume mediano de negócios dos marchands e das pequenas galerias. Mas, “no atacado”, a arte, no conjunto da cultura, há tempos se tornou a “mercadoria vedete”, no dizer profético de Guy Debord (1997, p.126), já na década de 1960, na obra intitulada A sociedade do espetáculo, pois “a cultura passa a ser adotada pelo novo poder soberano no mundo como a última trincheira civilizatória do capital” (ARANTES, 2005, p.1). Veja-se, como exemplo, o caso da Sotheby's, que opera em quarenta países com os principais centros de venda de artes (ou salesroom, como preferem os ingleses), inclusive em Nova York, Londres, Hong Kong e Paris. A partir da área de leilões de arte, estendeu seu raio de ação criando cinco áreas de atuação: 1. O Sotheby's Institute of Arts, em Londres, onde são ofertados os cursos: Contemporary Art, Fine & Decorative Art, Photography, East Asian Art e Contemporary Design. Não contente, essa grande empresa passou a oferecer cursos de graduação e mestrado em Art Business – que forma mão de obra para atuar no mundo dos negócios 248 da arte. E foi adiante. Usando o prestigiado nome vinculado às artes, seus negócios incluem: 2. O Sotheby's Cafe, uma requintada confeitaria; 3. A Sotheby's International Realty, voltada à venda de imóveis de luxo, em diversos países; 4. A Sotheby's Diamonds, dedicada à venda de diamantes e, 5. A Sotheby's Financial Services, a única financiadora, no mundo, que oferece um serviço completo para a aquisição de obras de arte. Como se vê, é um dos maiores e melhores exemplos do que veio a resultar a transformação da arte em negócio, e, por tabela, de como sua chancela de algo “nobre e próprio da elite”, coerentemente permitiu a expansão dos negócios em várias direções, para atender a essa camada social: o financiamento para compra de objetos de arte (leia-se, de luxo), diamantes e imóveis suntuosos.(Fonte: <http://www. sothebys. com/services.html> ). Nada mais longínquo do significado da arte como fonte de humanização! Outro exemplo, agora relacionado a um museu de arte, o Guggenheim, de Nova York, transformado em franquia (ao estilo do 5 McDonald's!) por Thomas Krens diretor da Fundação Solomon R. 6 Guggenheim, de 1998 até novembro de 2008. Administrando o museu como uma empresa, Krens criou uma rede internacional de museus satélites do Guggenheim, que envolve a Peggy Guggenheim 5. As ações do polêmico ex-diretor da Salomon R. Guggenheim Foundation, Thomas Krens, acessar <http://www.nytimes.com/2008/02/28/arts/design/28muse.html> . 6. Em 2003, o então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, negociou a vinda do Guggenheim para o Rio de Janeiro; um projeto milionário, que envolvia como arquiteto o francês Jean Nouvel. A polêmica se estendeu pelo ano de 2003, e, após intensa luta política, em que se envolveram muitos artistas, na justiça o projeto foi embargado. Custaria aos cofres públicos municipais cerca de 150 milhões de dólares! Veja a situação em que se encontrava a Fundação Guggenheim, à época: “A situação financeira da Fundação Guggenheim, comandada pelo francês Thomas Krens, é grave. A filial em Las Vegas foi fechada, a de Nova York demitiu quase a metade dos seus funcionários, o projeto de uma nova filial em Manhattan foi cancelado. A famosa filial em Bilbao, na Espanha, enfrenta graves problemas. Na verdade estamos comprando uma franquia, vamos pagar pela construção do projeto, vamos pagar pelas obras e não teremos a gerência sobre o que será visto, e nem a mínima idéia sobre quaisquer benefícios para cidade”. (MAGALHÃES, 2003). Para saber mais sobre a Fundação Guggenheim, acessar <http://www.guggenheim.org/guggenheim-foundation>. 249 Collection, de Veneza; o Guggenheim Bilbao, na Espanha; o Guggenheim de Berlin, na Alemanha, e o Guggenheim Hermitage Museum, em Las Vegas, mantendo como centro dessa constelação o museu de Nova York. Há também o projeto já em andamento do Guggenheim Abu Dhabi (Emirados Árabes), que será o maior de todos, com trinta mil metros quadrados, e tem previsão para ser inaugurado em 2011. O motor dessa empreitada é o mesmo das empresas capitalistas, no seu processo de ampliação em busca de novos mercados: o aumento dos lucros. E é uma idéia contagiante: trata-se de um modelo de expansão de negócios que atingiu o 7 conjunto da Tate (Tate Britain e Tate Modern, em Londres; Tate Liverpool e Tate St. Ives) e o tradicionalíssimo Museu do Louvre (Paris) (VOGEL, 2008). O campo da produção da arte, tradicionalmente, constitui um forte reduto de defesa da liberdade de criação, contra toda e qualquer ingerência externa. Nem todos os artistas, no entanto, defendem esse pensamento: impregnados pelo individualismo imposto a todos como padrão de conduta na vida em geral – pelo mesmo sistema que submete sua produção às leis implacáveis do mercado –, muitos artistas se mostram ávidos por “fazer sucesso”, “ganhar fama”, ou mesmo enriquecer. Crédulos de que isso será um bem para sua produção artística, almejam alcançar uma posição de destaque, julgando que o melhor caminho é ser premiado em salões, expor nas grandes galerias, lutar pelo aval de críticos de arte, conquistar a confiança de marchands, e... Vender, vender 7. Para conhecer a Tate, acessar <http://www.tate.org.uk/ >. 250 muito, o que nessa sociedade é sinônimo de ser um “grande artista”, ou ainda, de “vencer na vida”. A quantidade é o que mais conta, nesses casos. Para falar do seu “sucesso artístico”, invariavelmente tudo deve ser traduzido em números: quantos quadros o artista vendeu, no último ano; para quantos e quais salões foi selecionado ou em quantos foi premiado; com quantos marchands de quantos países – e continentes – ele trabalha (e até mesmo a quantia aproximada – em dólares, preferencialmente! – que lhe rendeu a venda de uma obra. Isso vai permitir ao sistema estabelecer a posição do artista na bolsa de artes); quantas individuais realizou, quem comprou e o número de pessoas que as visitaram, etc., etc. A qualidade, no mundo business, quase sempre fica em segundo plano. Se alguém das altas finanças comprou uma obra, ou um crítico de renome escreveu algumas linhas sobre o artista, é o que basta. Ele deve ser bom! Embarcando no sistema de arte, não se dão conta, os incautos – e via de regra jovens artistas –, de que terão de abrir mão de algo essencial: sua autonomia para criar, um altíssimo preço de que só alguns poucos se verão relativamente livres do pagamento. Em casos extremos, o artista chega a aceitar se submeter aos ditames da moda – em geral impostos pelo marchand, e produzir arte “para combinar com as cortinas da sala”, porque isso “vende”... De livre criador passa a defender a ideia de que em arte, tal como em qualquer outro ramo da produção capitalista de 251 8 mercadorias, os fins justificam os meios. E quando o fim é ganhar fama, dinheiro e expandir os negócios, para alcançá-lo o artista facilmente se rende, frente às exigências do cliente... Em casos menos evidentes, alguns artistas passam a espelhar sua produção no que é exibido nas grandes mostras internacionais: Veneza, Kassel, Nova York, etc., para alinhar sua produção com a dos grandes nomes internacionais que por lá transitam. É evidente que todo artista necessita estar informado sobre o que é produzido por seus contemporâneos! Jamais, contudo, com vistas ao alinhamento de sua própria produção, pois que isso também constitui uma imposição externa – apesar de provir de dentro da própria área –, limitação de todo dispensável para uma produção que deve ter por fundamento a livre expressão da humanidade do homem. Contudo, a partir do pressuposto de que cada um deva viver do próprio trabalho, a partir do acima exposto, um problema persiste sem solução: de que modo o artista poderá garantir sua sobrevivência, se o seu trabalho é fazer arte? O sistema de arte e a produção da arte O problema da sobrevivência do artista, deve-se reconhecer, não é causado pelo tipo de produção, a artística, mas, 9 sim, pelo sistema de arte, que compõe o mundo capitalista dos negócios, regendo tanto a produção quanto a comercialização, e 252 8. A desenfreada busca do lucro a qualquer preço faz com que a indústria de alimentos, por exemplo, possa pôr em risco a saúde das pessoas, ao colocar nos alimentos uma química agressiva ao organismo; ou ainda, que a indústria moveleira possa devastar florestas, arruinando o meio ambiente e as condições gerais da vida no nível planetário, para o corte de madeiras nobres direcionadas à produção de mobiliário fino, para um consumo elitizado, e assim por diante. que, sob uma aparência de requinte, transforma a arte em mercadoria. Faz com ela o que fez, ao longo da história, com a produção dos grandes mestres artesãos: destitui-os das condições gerais para produzir livremente, assim como da possibilidade de o artesão, ao seu único juízo, definir a destinação do produto final e assenhorear-se do valor total auferido com a venda. Em resumo: tal como aconteceu com os mestres artesãos, para conseguir manter-se produzindo, o artista passou a depender das decisões de marchands, galeristas, críticos, etc., não apenas para vender suas obras, mas até mesmo para planejá-las e criá-las. Isso significa que o sistema de arte, com o passar do tempo se foi introduzindo/apropriando também das múltiplas decisões, essenciais a cada fase da criação da obra de arte: planejamento, produção, distribuição e venda. Se antes, o indivíduo criador definia o quê criar; o porquê criar; para quem criar (o público, de modo genérico); como criar (com que materiais, formato, dimensões, etc.) e, a quem dar a destinação final da obra, o sistema de arte substituiu-o ou, no mínimo o direcionou nessas tarefas. Tudo foi sendo subjugado ao objetivo maior: sacralizar e elitizar, para... vender! Com alguma elegância, uma relativa qualidade e um certo bom gosto... Mas, vender! Essa lógica, irremediavelmente imiscuiu-se no pensamento – e na ação – de muitos artistas, que, com maior ou menor grau de consciência sobre o processo, passaram a se inquirir: de que vale 9. Neste trabalho, entende-se por sistema de arte a estrutura das relações sociais de produção, circulação e consumo, do campo da arte erudita, cujo funcionamento envolve uma série de instâncias e seus respectivos especialistas: as instâncias de produção – o artista isolado ou associado – e de consagração/legitimação/conservação/difusão e venda: as academias, o corpo de críticos, os salões, os museus, as revistas especializadas, o sistema de ensino com seus diplomas, títulos, as galerias, etc. (BOURDIEU, 1999, Cap. 3. passim.) Tais instâncias desenvolvem códigos ritualísticos sofisticados e formam um quadro de iniciados – do artista produtor ao marchand, passando pelos críticos de arte e professores da área – que alimenta a gama das inúmeras intermediações para o acesso à produção e ao consumo da arte. 253 uma produção artística de qualidade se não cair nas boas graças da clientela compradora? Em outras palavras, quando a venda, quase que inexoravelmente, passou para as mãos do comerciante de arte profissional ou marchand, toda a produção artística se viu de algum modo afetada, tanto no que diz respeito à qualidade quanto em relação ao seu sentido maior, sua dimensão humana: a de ser a concretização do processo humano de objetivar-se esteticamente no mundo, enquanto indivíduo e ser genérico, livre para criar. Este é o tema que será tratado na segunda parte deste trabalho. O mais pernicioso e devastador, nesse quadro, é que muito artista (nem todos, é claro!), levado por esse individualismo interesseiro e exacerbado (entre outras determinações, que não vêm ao caso, neste momento), “esqueceram-se” de que a arte – enquanto objetivação do homem no mundo, uma criação humana livre – tem por objetivo sensibilizar as pessoas – ou seja, ela tem um papel social: é feita por um ser social, para a fruição dos demais seres sociais... Nunca somente para o “freguês”, aquele que pode pagar! Sendo uma objetivação e forma de expressão das capacidades humanas, só faz sentido quando é posta à fruição de todos, indiscriminadamente. Ao transformar arte em mercadoria, o sistema elitizou e privatizou a fruição das obras de arte tornando-as inacessíveis para a maioria da população. Do mesmo modo que um pacote de feijão (também uma mercadoria), na prateleira do supermercado, sem que importe a fome de quem o olha, somente poderá ser consumido pelo “freguês de posses”, que passar pelo caixa. 254 Tal concepção, entretanto, não implica que, no âmbito particular e numa relação direta e pessoal com indivíduos ou instituições interessadas, o artista não possa vender suas obras para, com o fruto da venda garantir o próprio sustento e a continuidade de sua produção. Implica, sim, que a criação de um objeto de arte não pode ser submetido, seja lá pelo que for: não deve ser criado tendo a colocação no mercado (com suas exigências) como finalidade primordial, assim como não deve se deixar direcionar pelo gosto do cliente, ou ainda, por imposições da moda! Mais ainda: o artista não deve submeter-se aos atravessadores da 13 arte, que, muitas vezes aproveitam-se da penúria do criador para comprar seus trabalhos por preços irrisórios, vendendo-os por somas altíssimas – exclusivamente em proveito próprio – em relação ao 10 valor pago ao artista. Esse tipo de exploração do trabalho alheio equipara-se àquele sobre o qual o sistema capitalista se assenta e se expandiu: a extração da mais-valia, que nada mais é do que trabalho 11 não pago. O artista plástico que cede a tais situações “nega-se a si 10. Certa vez, estava participando de uma coletiva, em uma grande cidade do interior, ocasião em que fui apresentada ao artista que era considerado o melhor da cidade, e o “mais famoso”, segundo palavras do diretor da galeria pública da cidade. Cumprimentou-me apressadamente, logo se pondo a me explicar sua pressa: seus marchands do Canadá, da Bélgica e de um terceiro país de que não me recordo, chegariam para apanhar um lote de suas obras, na semana seguinte. Disse-me, então, que faltavam ainda oito (!!) quadros a serem pintados, do total que ele deveria entregar. E eram telas de porte razoável (cerca de 3mx2m) pelas quais, segundo ele, os negociantes usualmente lhe pagavam mil reais cada, mas que ele sabia (e parecia orgulhoso sobre o fato!) que eles vendiam por quatro mil dólares, nos países de origem. Terminou dizendo que não se importava com esse fato... (E eu emendo: contanto que venda!) 11. De modo sucinto, a extração da mais-valia no processo produtivo se dá da seguinte forma: no mercado de trabalho, a venda da mercadoria força de trabalho, pelo trabalhador – e a respectiva compra, pelo capitalista, com a finalidade de empregá-lo na produção (ou seja, gerar riqueza nova no processo produtivo) – é feita por um contrato de tempo de uso, como, por exemplo, oito horas diárias. Em troca, o contrato estipula que o trabalhador dono da força de trabalho receberá um salário fixo, que corresponde ao valor do que seu corpo necessita para manter-se, durante o período em que está trabalhando. “As necessidades do trabalhador reduzem-se assim à necessidade de o manter durante o trabalho e de maneira a que a raça dos trabalhadores não se extinga.” (MARX, 1989, p. 174). Dessa forma, o salário que recebe pela venda de sua mercadoria força de trabalho, durante o período das oito horas diárias, será sempre menor do que o valor das mercadorias que produz, ou seja, as novas riquezas que resultam do emprego da sua capacidade produtiva para transformar os materiais em mercadorias terão sempre um valor maior, um excedente. Como o trabalhador não foi contratado por produção, mas por número de horas trabalhadas, a mais-valia é justamente essa diferença entre a riqueza produzida pelo trabalhador e o que ele recebe: o equivalente para garantir sua sobrevivência no período de trabalho. O sistema capitalista de produção prevê que o capitalista dela se aproprie legalmente (é o que reza o contrato assinado!). No sistema, portanto, é necessário que o valor da mercadoria força de trabalho seja inferior ao valor (riqueza nova) que o trabalhador pode produzir nas oito horas de trabalho pelas quais ele é contratado, pois, se assim não for, não será possível a extração da mais-valia. Assim sendo, o modo de produção capitalista é um sistema econômico que se assenta na extração da mais-valia pela única forma possível: a exploração do trabalho alheio. 255 mesmo como trabalhador livre, como construtor consciente da história. Quando assim age, dificilmente poderá manter a dignidade profissional e a autonomia, ou seja, o estatuto de artista.” (PEIXOTO, 2001, p. 31). “Assim, entre o 'tudo tem seu preço' de uns e o 'negócio é negócio' de outros, volatiliza-se e desmistifica-se a 'pureza', a 'neutralidade' e a 'incontaminação' dos artistas/intelectuais 'eruditos'. Diz bem MARX: 'Não revelando o dinheiro aquilo que nele se transforma, converte-se tudo em dinheiro, mercadoria ou não. Tudo se pode vender e comprar.' (MARX, 1987, p. 146) Para muitos, a consciência profissional, inclusive.” (PEIXOTO, 2001, p. 90) Parte 2 Todas as [...] relações humanas ao mundo – visão, audição, olfacto, gosto, percepção, pensamento, observação, sensação, vontade, actividade, amor – em suma, todo os órgãos de sua individualidade [...] são no seu comportamento objectivo [...] a apropriação da realidade humana. Karl Marx Uma consciência precária sobre o significado, a importância e a necessidade da arte como apropriação da realidade humana, ou fonte de humanização é, sem dúvida, uma determinante do descaso – tanto na formação acadêmica do artista ou dos professores de arte, quanto nos plano social institucional e individual – quanto à 256 defesa do acesso, no cotidiano de todos, às variadas formas de produção artística. Para tratar tal temática sob a ótica do materialismo histórico e dialético – como para qualquer outro tema referente à constituição do humano –, parte-se da concepção de homem como ser social e histórico, aquele que pelo trabalho coletivo constroi a história, e a sociedade, enquanto, simultaneamente, é por elas constituído. Em sendo a arte uma das formas de produção exclusivamente humana, este texto assume a concepção de arte 12 como trabalho humano de criação. Arte e humanização: fundamentos Para o materialismo histórico e dialético, uma sólida formação humana se dá, necessariamente, com o desenvolvimento da totalidade das dimensões humanas: a corporal, ou dimensão sensório-motora e emocional; a intelectual, ou dimensão teórica; a ética, ou dimensão dos valores; a política, isto é, a dimensão da comunicação, ação e intervenção no real; e a dimensão estética, da sensibilidade. Assim, o fundamento para a valorização da arte no que diz respeito à formação humana é o de que o contato com as diversas formas de criação artística promove o desenvolvimento de uma sensibilidade acurada, que, no conjunto das demais dimensões, dá 12. Entende-se por trabalho humano o processo histórico de domínio da natureza, realizado de modo coletivo, para a produção da sobrevivência humana. Nesse processo, o homem, ao objetivar-se no mundo, simultaneamente subjetiva/humaniza a natureza, constrói a história e se autoconstitui. Contrapõe-se, portanto, ao trabalho tal como é tratado na esfera da economia política (ou seja, sob o regime da produção capitalista), em que passou a significar a alienação do homem em relação ao produto do trabalho (MARX, 1989, p. 159-161), ao processo da produção (1989, p. 161-163) e ao homem enquanto ser genérico (1989, p. 163-166). Confronta-se, portanto, à concepção de trabalho como “desrealização do trabalhador, a objectivação [do homem no mundo] como perda e servidão do objecto, a apropriação [da natureza] como alienação” (MARX, 1989, p. 159). (In: PEIXOTO, 2001, p.12-15) 257 ao indivíduo a estatura humana que os seres humanos vêm construindo coletivamente, no processo histórico. Entretanto, a maior parte da produção artística, na sociedade ocidental atual, sustém-se ao sabor de modismos ditados pela hegemonia das idéias e interesses do sistema de arte, vinculados (se bem que não de modo evidente) à concepção arte pela arte. Para muitos, tal concepção é acompanhada de resquícios 13 da idéia do artista como alguém especial, o gênio criador, que persistem e ainda rendem alguns bons frutos para o mercado da arte, associada a uma produção exótica. A concepção arte pela arte, ao defender a centralização na forma como única possibilidade para a arte autêntica, rompe a unidade forma-conteúdo da obra, cindindo a unidade arte-vida, que é referência imediata à unidade-totalidade do homem criador. Ao mesmo tempo, consolida uma visão fragmentada da arte. Advoga, assim, a autonomia da arte em relação à vida, ou seja, a desumanização da arte. Nessa linha, Ortega y Gasset defende a evitação de toda e qualquer referência à vida, tendendo a considerar a arte um puro jogo (1991, p. 31). Essa posição descrê da arte como produção de um indivíduo humano integral, na sua totalidade de mãos-sensibilidade-razão-emoção-valoração-ação, 258 13. Na primeira sistematização da estética, a Crítica da faculdade do juízo, KANT (1790) trata das características do gênio criador – idéia posteriormente adotada e acalentada pelo movimento filosófico e artístico do romantismo. O artista passa a ser percebido (e a se ver) como alguém especial, diferente do vulgo. Na obra, ele afirma que “o génio é a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento (...) favorito da natureza, (...) aparição rara, (...) o seu exemplo produz para outras boas cabeças uma escola, isto é, um ensinamento metódico segundo regras (...) extraídas dos produtos de seu espírito e peculiaridade”. (1992, p. 211-226) Apesar de, no início, o movimento romântico ter significado, em especial, uma reação de descontentamento frente aos resultados funestos da Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII) para a maioria da população e, portanto, ter se mesclado a um forte sentimento de solidariedade com a miséria da classe trabalhadora, no âmbito das artes, historicamente, prevaleceu a posição individualista e elitista do gênio criador, bem ao gosto e em acordo com os interesses mercantis da classe burguesa, voltados para a obra única, original e exclusiva que, assim sendo, alcança altos preços no mercado, segundo a lei da oferta e da procura. (PEIXOTO, 2003, p. 11-12) ou seja, um indivíduo concreto do qual cada ação ou atitude só é compreensível, só adquire sentido quando e se dialeticamente relacionada ao todo. A concepção arte pela arte, tem suas raízes no Iluminismo e no liberalismo. O primeiro defende a neutralidade da arte em relação a questões sociais e políticas, característica que antes era reivindicada apenas para as ciências exatas –, como se o artista pudesse “desvestir-se” de sua visão de mundo, de suas posições pró ou contra as questões sociais que estão postas como parte do seu contexto, como se fosse possível omitir-se de todo e qualquer julgamento de valor, para produzir seus trabalhos. 14 O liberalismo, ao de fender o individualismo e a liberdade do artista no processo criador e sua autonomia em relação à história e à cultura, além de dar suporte à idéia de que a arte deva ser neutra, assume uma concepção negativa de liberdade, entendida aí como desvinculação, como ruptura de laços entre o indivíduo criador e a sociedade em que vive e trabalha. Ou seja, a arte pela arte é uma concepção de cunho nitidamente dissociativo, que tenta negar os vínculos da arte com uma realidade específica, de um 15 homem datado, já fragmentado no processo produtivo, que é característico do modo de produção capitalista, consolidado na 14. O liberalismo ganhou alento ao final da Idade Média e se constituiu historicamente associada à consolidação do modo de produção capitalista, no século XVIII. Como filosofia, possibilitou uma justificativa racional para a transformação das relações legais entre os homens – agora, de cunho puramente contratual. Como visão de mundo hegemônica, sob os auspícios da classe burguesa, essa filosofia fundamentou-se na defesa da propriedade privada, do individualismo e da liberdade (entenda-se, de modo especial, como liberdade de ir e vir para produzir, comerciar e acumular riquezas), desconsiderando questões relativas ao bem comum da maioria da população (LASKI, 1973. passim.). 15. Esse homem fragmentado é visto e tratado pelo sistema produtivo exclusivamente como força de trabalho, uma mercadoria que se vende/compra no “mercado de trabalho”, cujo valor é regido pela lei da oferta e da procura. Essa mercadoria força de trabalho, como qualquer outra que entre no processo produtivo, é nele consumida enquanto produtora de um novo valor (valor de troca), submetida à produção de mais-valia (lucro) para o capitalista, dono dos meios de produção. Portanto, nessa concepção, o homem, já alienado do produto final do trabalho e dos meios de produção só terá valor pelo que produz/consome, segundo os interesses do modo de produção capitalista. 259 história a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial inglesa. Amparado na concepção arte pela arte, desenvolveu-se o sistema de arte com tudo o que ele comporta: uma estrutura de ensino que prima pela ortodoxia cultural ao definir o que pode ou não ser considerado obra legítima, promovendo critérios para distingui-la das ilegítimas; que reproduz, pela inculca, a obediência consciente aos modelos preconizados e, simultaneamente, garante a formação do habitus, ou seja, a reprodução de esquemas de ação, expressão, concepção, imaginação, percepção e apreciação disponíveis numa sociedade dada. Participam desse sistema as academias, os museus e salões, que difundem, consagram e legitimam a produção artística considerada autêntica, além de instituições como o próprio Estado – pela concessão de honrarias. (BOURDIEU, 1999, p. 117-125) A arte pela arte privilegia, ainda, uma concepção igualmente fragmentária e linear de história da arte, ora entendida como uma sucessão cronológica de estilos ou escolas, ora como parte da história das civilizações, ora como o conjunto de biografias dos denominados gênios criadores ou história dos artistas, ora como história das obras de arte. (HADJINICOLAOU, 1973, p. 33-76). Compõe também esse sistema, o mercado de arte, com as figuras do galerista e do marchand, que, juntamente com o crítico, constituem um corpo de mediadores entre os produtores e os consumidores de arte, supostamente para promover o conhecimento e a aproximação entre os pólos da produção (artista) e do consumo (público apreciador e/ou 260 comprador), historicamente distanciados. Por exigir o domínio de códigos não acessíveis a todos, a apreciação das obras da denominada “grande arte” permanece privilégio de poucos, configurando-se como mais um meio de exclusão: a cultural. Arte para todos: do homem, pelo homem e para sua humanização. À concepção liberal arte pela arte contrapõe-se o materialismo histórico e dialético, com uma concepção de arte do homem e para o homem, vinculada à vida concreta: a arte como trabalho humano de criação, livre e, como tal, fonte de humanização. Contra a fragmentação, erige a unidade do conteúdoforma da obra de arte como expressão da totalidade humana, que a cada ato fruitivo cria e recria a obra. Entende-se que o artista – indivíduo concreto, enquanto integralidade de trabalhadorcriador-cidadão-ser ético-político, construtor-partícipe de uma dada sociedade e de um dado momento histórico –, em cada obra, por uma ótica singular, através da criação estética expressa o humano genérico que nele existe. Assim, enquanto fruto da construção coletiva histórica, o autor se posiciona frente à contemporaneidade – além de colocar-se como indivíduo –, na obra, com toda a complexidade das suas dimensões humanas: O autor, como momento constitutivo da (...) [obra], é a atividade organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que 261 realiza plenamente a sua tarefa, (...) é, ademais, o homem todo dos pés à cabeça: ele precisa de si por inteiro, respirando (o ritmo), movimentando-se, vendo, ouvindo, lembrando-se, amando e compreendendo. (BAKHTIN, 1998, p. 68) Assim, além de ampliar e revitalizar a sensibilidade, a arte humaniza o homem: por condensar uma cosmovisão peculiar, permite àquele que se dedica à fruição atenta, compartilhar de uma 16 nova consciência do mundo, o que caracteriza a arte como forma de conhecimento. Simultaneamente, pela experiência da presença do novo, no momento da fruição ativa ou co-criação, favorece um 17 adensamento da autoconsciência. A seguir, intenta-se uma análise dessas posições. A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história mundial anterior” (MARX, 1989, p. 199), ou seja, no processo de construção da existência, a sensibilidade estética desenvolveu-se como “resultante do desenvolvimento dos sentidos físicos e espirituais humanos pari passu ao domínio da natureza, o que só é possível ao homem (...) portanto, todos os sentidos do homem se fazem humanos somente no âmbito da sociedade, na práxis. (PEIXOTO, 2003, p 44) 262 16. Consciência refere-se “ao processo aproximativo de construção, pela práxis humana, do conhecimento sobre a multiplicidade de determinações do concreto, no embate com a natureza em busca da sobrevivência”. (PEIXOTO, 2003, p. 47) 17. Autoconsciência é “uma ideologia individual; é a imagem de mundo – construída, em última instância, com a ajuda de conceitos filosóficos, éticos – com a qual cada um ordena sua própria atividade individual na totalidade da práxis. Nessa medida (...) assume a vida cotidiana do indivíduo um caráter filosófico; e como tal se realiza quando e na medida que o indivíduo é guiado pela concepção de mundo na tarefa de dirigir sua vida, na ordenação de sua forma própria de viver”. (HELLER, 1982, p. 16) Numa sociedade excludente, que trata o humano como mercadoria, entretanto, a tendência dos sentidos é a de se restringir ou se embrutecer, diminuindo nas pessoas a sensibilidade, a necessidade do contato com a arte. Contenta-se, assim, com os produtos da indústria cultural Enquanto produção que opera com a matéria e a particularidade, a arte aguça e refina os sentidos, em especial o olhar e a audição; enriquece, portanto, o ser humano, tanto o artista criador quanto o fruidor. Assume, assim, um papel primordial no processo de formação, revitalização e aprimoramento dos sentidos. Sabe-se que a necessidade de algo pode ser gerada pelo contato com o próprio produto, na relação dialética produçãoconsumidor, a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo do consumo. Logo, o produto arte pode criar seu consumidor-fruidor. Como escreveu Marx, “a necessidade que sente do objeto é criada pela percepção deste. O objeto de arte - tal como qualquer outro produto - cria um público capaz de compreender a arte e de apreciar a beleza [no original, sem grifo]. Portanto, a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção gera o consumo” (MARX, 1983, p. 210). Daí a importância de se colocar a arte – em todas as suas formas – à disposição, no cotidiano, para a maioria da população. Não importa se conhecem algo a respeito do campo da arte, ou não; 263 se demonstram – ou não – um interesse imediato e explícito. O contato direto e intensivo se encarregará de criar o interesse e a necessidade. Para Marx, a produção [no caso, da arte] pode gerar consumo de três modos: primeiro, ao proporcionar “condições concretas de acesso às obras, em quantidade (extensão) e em qualidade (intensidade) compatíveis com um padrão elevado de arte, ao maior número possível de pessoas”. Segundo: ao determinar a forma do consumo, ou melhor, ao disponibilizar não um “consumo massificado e passivo”, mas sim “uma apropriaçãofruição das obras que promova a consciência e permita o desenvolvimento da autoconsciência”. Terceiro: ao gerar no consumidor a necessidade do produto: “não só despertar, mas criar necessidades e prazeres especificamente humanos, tais como: a acuidade perceptiva e a agudeza de sensibilidade, o exercício da capacidade de reflexão, de interpretação e de crítica (...)”. Entende-se, pois, que “o processo de (re)humanizar os sentidos do homem, ampliar-lhe o âmbito da reflexão e criar uma sensibilidade genuinamente humana é um desafio histórico posto a cada dia para todos aqueles que trabalham ou se preocupam com a educação” e com a arte (PEIXOTO, 2003, p. 47-48), desafio que deve, necessariamente, estar presente na formação e na práxis do artista. A partir da concepção de que a totalidade do trabalhadorcriador materializa-se na obra – de que sua visão de mundo permeia todo o processo de criação –, entende-se que a arte possibilita uma 264 forma de conhecimento sensível, uma maneira de apreender e compreender a realidade, mas que não se restringe à racionalidade ou ao discurso; logo, uma forma de conhecimento não científica, mas estética, pela intermediação da produção estética de uma totalidade humana (o artista, o outro). Esse conhecimento o indivíduo fruidor apreende na contraposição-confronto de si próprio como totalidade humana (seus conhecimentos, sua sensibilidade e emotividade, suas posições éticas e políticas, sua visão de mundo, enfim) com uma nova realidade-totalidade concreta (a obra de arte) materializada livremente por uma outra totalidade humana (um trabalhador-criador). No cotejo, aquele que frui a obra, ao decidir-se livremente pelo envolvimento e interação com ela, no ato interpretativo cria uma nova obra, assimilando-a e enriquecendo-a, assimilando-se a si mesmo como interlocutor que dialoga com a obra, com seu criador e consigo mesmo, no processo interpretativo. Trata-se, portanto, de um processo de co-criação. Desse processo resulta que nada ou ninguém permanecerá o mesmo: obra, autor e fruidor transformam-se durante o processo de interação humana que configura a experiência estética. A consciência do mundo se amplia e se intensifica pela abertura ao estético como uma forma específica de conhecimento do real, que, simultaneamente, enseja ao fruidor/co-criador um crescimento humano ao ampliar-lhe a autoconsciência. Assim, a obra de arte permite-lhe “extrapolar a simples consciência espontânea de si 265 mesmo e do seu ambiente, o chamado 'senso comum' (...) pela construção de uma 'consciência filosófica', através da reflexão”. (PEIXOTO, 2001, p. 107) Entende-se que “a construção da consciência e da autoconsciência estão (...) dialeticamente imbricadas e dizem respeito, numa dada sociedade, à superação do senso comum” (PEIXOTO, 2003, p. 48), gerando um processo de humanização dos sentidos e do homem por inteiro. Urge que se recupere a arte por seu valor humanizador, em sua especificidade, para que seja posta ao alcance de todos. No ato de interpretar a obra de arte, quando o público se deixa avassalar por ela, é trabalhada a totalidade das dimensões humanas: a sensibilidade, associada à razão, às emoções e às posições éticas e políticas. Por esse motivo, o fruto do trabalho humano de criação tem muito a contribuir para a constituição do homem rico, de que fala Marx, que, contraditoriamente, é aquele que se apresenta pleno de necessidades – humanas, porém – o homem “dotado de todos os sentidos, como sua permanente realidade (...) que necessita de uma totalidade de manifestações humanas (...) cuja realização existe como urgência natural interna, como necessidade” (MARX, 1989, p.200-202). Em suma, tornar-se um ser humano rico significa deixar-se tomar, conscientemente, por uma série de necessidades humanas, que levam o indivíduo à busca de ser mais e melhor. Por tudo o que foi argumentado, a arte constitui uma arma construtiva poderosa na luta para, “a superação do homem 266 desumanizado-atomizado no processo produtivo, com vista à sua humanização e à construção de uma 'sociedade plenamente constituída'” (PEIXOTO, 2003, p.49). Subscrevo, então, as palavras de Antônio Callado, na Introdução da obra de FISCHER: “Um dos males da sociedade atual é que a própria angústia da condição humana só pode ser sentida (ia quase dizer saboreada) por uns poucos. Esse tipo de angústia é hoje em dia um privilégio dos que dispõem de ócio. Precisa ser estendido a todos” (CALLADO in: FISCHER, 1987, p.10). Aos artistas, e à sociedade organizada, fica aqui lançado o desafio: desmitificar o campo das artes como produção de poucos “iluminados” para outros poucos econômica e ou culturalmente aquinhoados, para promover, sim!, o acesso livre e irrestrito: a arte para todos! Referências ARANTES, O. B. F. A “virada cultural” do sistema das artes. SESC/SP, Seminário Internacional Estética e Política. São Paulo, abril de 2005. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/index.cfm? forget=12&inslog=12SESCSP/conferências/Otília Arantes >. Acesso em: 03 de jul.2009. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. FISCHER, E. A necessidade da arte. 9.ed. (trad. de Leandro Konder). Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. 267 HADJINICOLAOU, N. História da arte e movimentos sociais. Lisboa: Edições 70, 1973. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995. HELLER, A. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 1982. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992. LASKI, H. J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973. MAGALHÃES, L. E. Ação tenta impedir construção do Guggenheim Rio. O Globo, 20 de fevereiro de 2003. Disponível em: <http://www.consciencia.net/artes/gug.html> Acesso em: 02 jul. 2009. MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro: o processo de produção do capital. 11. ed. v. I e II. São Paulo: Bertrand Brasil, 1987. _____. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. ORTEGA y GASSET, J. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 1991. PEIXOTO, M. I. H. Relações arte, artista e grande público: a prática estético-educativa numa obra aberta. Campinas (SP), 2001. 259 f. Tese (Doutorado em História, Filosofia e Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. _____. Arte e grande público: a distância a ser extinta. Campinas: Autores Associados, 2003. SOTHEBY'S. Disponível em: http://www.sothebys.com/services.html> Acesso em: 04 jul. 2009. 268 VOGEL, C. Guggenheim's Provocative Director Steps Down. New York Ti m e s , 2 8 . 0 2 . 2 0 0 8 . D i s p o n í v e l e m : < h t t p : / / w w w.n y t i m e s .com/2008/02/28/arts/design/28muse.html> Acesso em: 02 jul.2009. 269 Debate sobre arte contemporânea e a formação do público Adriana VAZ 1 Produção Brasileira, da arte concreta a neoconcreta O debate a cerca da arte concreta e neoconcreta na produção brasileira, e seus desdobramentos para o entendimento da arte contemporânea e com ela à teoria da não-compreensão, permitem aprofundar o estudo interdisciplinar entre arte, geometria e sociologia. Na dicotomia entre uma produção racional em oposição, há outra mais sensível e expressiva, que ocorre a ruptura no interior do concretismo brasileiro: a arte concreta a neoconcreta. Publicado em 1952, o manifesto do grupo concretista, Grupo Ruptura – assinado por Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Kazmer Féjer, Leopoldo Haar, Luís Sacilotto e Anatol Wladislaw – que propunham uma nova linguagem para as artes plásticas, fazendo uso da abstração geométrica, ou seja, o concretismo buscava nas formas geométricas o caminho de uma arte racional, universal, e “moderna” ao seu tempo. No Rio de Janeiro, e não apenas em São Paulo, a nova linguagem a favor da forma 1. Professora da Universidade Federal do Paraná 271 também recebe adeptos com o Grupo Frente, que se reúnem em torno do Museu de Arte Moderna (MAM-RJ). O grupo Frente era integrado por Aluísio Carvão, Lygia Clark, João José Silva Costa, Vincent Ibberson, Lygia Pape, Ivan Serpa, Carlos Val, Décio Vieira, Abraham Pal atnik, Hélio Oiticica, César Oiticica. Independente de serem integrantes do Grupo Ruptura (São Paulo) ou do Grupo Frente (Rio de Janeiro), com a “I Exposição Nacional de Arte Concreta”, realizada em 1956, funda-se uma identidade concreta formada por artistas brasileiros – porém, a unidade de ambos os grupos direcionada pela abstração geométrica parte-se em dois: de um lado, os artistas do Rio juntamente com os divergentes do grupo que deu origem ao movimento paulista; e, de outro, os que se mantiveram fiéis aos pressupostos teóricos do Grupo Ruptura. A dissolução foi oficializada com o Manifesto Neoconcreto, publicado em 1959, assinado por Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, entre outros: A expressão neoconcreto é uma tomada de posição em face da arte não-figurativa “geométrica” (neoplasticismo, construtivismo, suprematismo, Escola de Ulm) e particularmente a face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista. [...] O racionalismo rouba à arte toda a autonomia e substitui as qualidades intransferíveis da obra de arte por noções da objetividade 272 científica: assim os conceitos de forma, espaço, tempo, estrutura – que na linguagem da arte estão ligadas a uma situação existencial, emotiva, afetiva – são confundidos com a aplicação teórica que deles faz a ciência. [...] A arte neoconcreta, afirmando a integração absoluta desses elementos [tempo, espaço, forma, cor], acredita que o vocabulário “geométrico” que utiliza pode assumir a expressão de realidades humanas complexas, tal como o provam muitas das obras de Mondrian, Malevitch, Pevsner, Gabo, Sofia Tauerb-Arp, etc. Se mesmo esses artistas confundiam o conceito de forma-mecânica com o de forma-expressiva, urge esclarecer que na linguagem da arte, as formas ditas geométricas perdem o caráter objetivo da geometria para se fazerem veículo da imaginação (...) A arte neoconcreta funda um novo espaço “expressivo” (GULLAR, 1999, p.283-87). Segundo Zanini (1983), vários artistas de São Paulo, não aceitavam a conceituação do Neoconcretismo, alegando que a separação do grupo era de ordem pessoal ou de “problemas de poder”, já que a produção realizada na prática não coincidia com a teoria proposta pelo grupo, deste modo, a questão é: o que de concreto permanece na produção neoconcreta? Para esclarecer a dicotomia entre arte concreta e neoconcreta, Ferreira Gullar, menciona: 273 A arte concreta encontrou, no campo da escultura – ou da construção no espaço real – terreno mais propício para o seu desenvolvimento do que na pintura – espaço bidimensional – onde se limitou na maioria dos casos à ilustração de problemas perceptivos. [...] A superioridade da escultura de [Max] Bill [introdutor da arte concreta no Brasil] sobre suas pinturas não indica simplesmente que Bill é melhor escultor que pintor, mas, sobretudo, que as idéias concretistas nasceram de preocupações ligadas à construção no espaço real (GULLAR, 1977, p.235). O que simboliza a passagem da arte concreta a neoconcreta é a valorização do ato de contemplação da obra de arte em que o público participa como sujeito ativo, em oposição à racionalidade proposta pela arte concreta – exemplificada pela produção de Lygia Clark (Os bichos) e Hélio Oiticica (Penetráveis), bem como, a teoria do não-objeto de Ferreira Gullar. Do não-objeto a não-compreensão Primeiramente, a teoria do não-objeto é fruto da produção neoconcreta brasileira e trouxe implicações à prática do artista tanto na linguagem da pintura quanto da escultura. Na pintura, ocasionou três mudanças: primeiro, o abandono do espaço virtual figurativo (em perspectiva) simbolizado pela moldura do quadro – vigente desde o Renascimento até sua ruptura com a arte abstrata; segundo, o quadro se transforma em objeto material e, não, apenas 274 suporte da ação do artista; terceiro, a participação do público na obra como co-autor e, não apenas como apreciador. Ou seja, o público é convidado a manipular a obra, e, assim, transforma-a, mudando o significado proposto pelo artista. Na escultura, houve alterações de ordem técnica e teórica. Tecnicamente, eliminou-se a massa e a base. Teoricamente, a concepção do espaço, ou melhor, valoriza-se sua inutilidade: a obra se espacializa negando o próprio espaço. O objetivo de o artista produzir objetos tridimensionais não é a sua representação e sim, a presentação. Segundo Ferreira Gullar, liberto da base e da moldura, o não-objeto insere-se diretamente no espaço, do mesmo modo que um objeto. Mas aquela transferência estrutural do não-objeto, que o distingue do objeto, permite-nos dizer que ele transcende o espaço, e não por iludi-lo (como faz o objeto), mas por nele se inserir radicalmente. Nascendo diretamente no e do espaço, (...) (GULLAR, 2007, p.97). Num segundo momento, faz necessário compreender: qual a relação entre a teoria do não-objeto e a teoria da nãocompreensão? O que implicará no tipo de obra produzida, sendo a escultura no sentido clássico uma prática também com pouca representatividade na arte contemporânea – referente à produção local (VAZ, 2004). Antes de articular os pontos que convergem as duas teorias, 275 serão mencionados como Hans-Thies Lehmann estruturou seu artigo intitula do: Motivos para desejar uma arte da não-compreensão; o qual o divide nos tópicos: 1) Irritação, como introdução; 2) Nãocompreensão; 3) Vôo panorâmico; 4) O efeito da não-compreensão; 5) Procedimento: 6) A tendência é clara; 7) A arte de nãocompreender; 8) Desenvolto; 9) Pará; 10) Apreender a nãocompreensão. Sendo que, os tópicos 3, 5 e 8 são específicos a história do teatro e a conceitos de interpretação, portanto, não pertinentes a proposta discutida neste artigo. Irritação, como introdução: Remete as políticas públicas na Alemanha, a partir de 1990, destinadas ao teatro e, conseqüentemente o que significa “consumir” teatro, quando não existe incentivo governamental e nem mesmo preocupação em educar para o teatro e formar a juventude, ou seja, como acreditar no futuro? Indaga Lehmann. E, prossegue: quem paga a conta, o Estado, a Sociedade? Como arrecadar dinheiro para que muitas pessoas possam consumir teatro? Concordando com Lehmann a pergunta se estendem, as políticas públicas brasileiras e, abrange as várias linguagens artísticas. Não-compreensão: O que seria do mundo se tornasse real e completamente compreensível? Para Lehmann, seria de amedrontar. A não-compreensão ou a incompreensibilidade na arte ocasiona os seguintes desdobramentos: primeiro, é sinônima de que a compreensão se insere na experiência estética, por conseqüência, gera uma repulsa da contextualização; segundo, no lugar da 276 tradicional hierarquia da compreensão surge a reflexão sobre o caráter enigmático da arte; terceiro, as artes recusam a compreensão que toda a contextualização busca. O efeito da não-compreensão: Como mencionando anteriormente a compreensão excessiva causa um fechamento da obra devido sua interpretação pragmática, sendo que, na arte contemporânea a prioridade é a experiência e não a compreensão. Fator este relacionado com a “teatralização” da arte, ou seja, as obras são como acontecimentos, nos quais o tempo marca o ritmo da obra, por serem performáticas, instantâneas e cênicas. O espectador, completa a obra: o tempo do espectador é mais do que a seqüência de atos de compreensão. A tendência é clara: No teatro contemporâneo, nos desdobramentos recentes da música erudita e das artes plásticas. Partindo da afirmativa que, “a recepção tropeça, e isso de uma forma intencional”, Lehmann (2007, p.145), coloca: “como responde a teoria a esse fenômeno?” Primeiramente deve-se mudar a perspectiva de análise: de um lado, não existe um único ponto focal a ser priorizado, e, de outro, entendimento depende do espectador, que por sua vez é único em sua vivência e experiência empírica, possibilitando múltiplas interpretações de um mesmo fenômeno. Logo, a compreensão não é algo estanque, ela se desdobra de maneira cíclica, ou seja, “a compreensão se torna parcial, se contradiz e se interrompe, ela falha e retorna, vibra – e dessa maneira, torna-se experiência” (Lehmann, 2007, p.145). 277 A arte de não-compreender: A questão fundamental é que a experiência estética se diferencia da apreensão conceitualizadora, ou seja, não existe uma interpretação central, o que se constitui como colateral, secundário, por sua vez, também pode ser analisado. O olhar ao se tornar periférico, faz com que a “poética da compreensão” seja substituída por uma “poética da atenção”. O ofício da arte da não-compreensão em paralelo às regras da hermenêutica, leva à regra básica de Freud da “atenção igualmente flutuante”, que se utiliza de uma forma mimético-sonora de escuta de significados, pois o ato de compreender não pode ser condicionado tendo como base apenas seqüências discursivas. Pará: Produzir o NV-Effekt (efeito da não-compreensão) não significa uma negação abstrata do ato de compreender, mas uma mudança de hierarquia, ou seja, trata-se de uma compreensão desenvolta e suplementar. A arte da não-compreensão é uma forma de deixar acontecer, de possibilitar uma experiência – “faz parte da práxis do NV-Effekt um modo de representação da autodesmontagem” (Lehmann, 2007, p.148). Apreender a não-compreender: Novamente, citando vários personagens da história do teatro desde a Antiguidade até Brecht e Beckett, a exemplo: de Édipo, de Elektra, passando por Lear e Hamlet até a Mãe Coragem, tem-se que: de um lado, “o teatro se afirma como o lugar onde se apreende a perceber a nãocompreensão”, e de outro, “o teatro sempre foi o lugar em que se experimentava o fracasso da compreensão” (Lehmann, 2007, 278 p.149). Enfim, comparando as duas teorias, conclui-se que: primeiro, a produção contemporânea é de ordem performática e temporal, a obra cessa juntamente com o tempo de apresentação: como um evento. No caso, das instalações artísticas a durabilidade é o tempo em que à obra permanece exposta na galeria, no museu. Segundo, a cultura moderna, e com ela, o não-objeto, sendo “temporal e crítico”, nas palavras de Gullar (2007) supera a cultura renascentista tanto espacial quanto racional. No não-objeto a obra se consome a si mesma, na sua auto-significação tanto no aspecto mental quanto sensorial; na não-compreensão as múltiplas interpretações ocasionadas pela obra geram inúmeros significados, não sendo possível uma leitura fechada – pois, cada um ao observar a obra e consumi-la, terá diferentes percepções e experiências. Terceiro, em ambas as teorias prioriza-se a experiência, e com isso o foco recai sobre o espectador. Debate: Teorias, posicionamentos e novas regras A autonomia da arte Em sua apresentação do livro No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte Brian O'Doherty, parafraseia Magritte, e, argumenta que o mesmo poderia ter como título: Isso não é uma galeria de arte – em sua essência o mito da pintura é posto a prova por uma ação metalingüística. Os textos remetem a uma parcela da produção de arte do século XX e a noção de espaço de arte 279 instaurada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, na primeira metade do século XX. O autor critica a forma esterilizada do cubo branco, em defesa da vida, alertando para o caráter político e social que envolve tais práticas neste espaço idealizado. Abaixo, seguem algumas características apontadas por O´doherty que classificam a Galeria Moderna. Galeria Moderna G a le ria M o d e rn a 1 . O e s p a ç o f í s i c o é ig u a l à s ig r e j a s m e d ie v a i s , p r o j e t a d a s p a r a e x p u r g a r a c o n s c iê n c ia do m undo e x te rio r. O p ó s -m o d e rn is m o s u p e ra o p a r a d ig m a a n te rio r, o re c in to d a g a le ria n ã o é m a is “ n e u tro ” . 2. A a p a rê n c ia a te m p o ra l re m e te que a o b ra já p e rte n c e à p o s te rid a d e . P o ré m , h o je , o s v a lo re s e s té tic o s e o s c o m e rc ia is p e rm u ta m -s e p o r o s m o s e . 3 . O e s p a ç o i d e a l i z a d o p r o m o v e o m i t o d e s e r e s e s p i r i t u a i s . “ O o lh o é o o l h o d a a lm a ” , o u s e ja , p a ra a a rte p re v a le c e m o s in te re s s e s d e g ru p o e n ã o o s in te re s s e s in d iv id u a is . 4 . A id é ia d a fo rm a p u ra , c o m a a m b iç ã o tra n s c e n d e n ta l d e e lim in a r a v id a é u m d i s f a r c e c o m f i n s s o c i a is e s p e c í f ic o s . 5 . “ P in ta r u m a m o ld u ra c o is a tra n s fe riu é essa m e rg u lh á -la fu n ç ã o em p a ra o ilu s ã o , e re c in to o d e s a p a re c im e n to da d a g a le r i a ” ( O ’ D O H E R T Y , 2 0 0 2 , p .8 0 ). 6 . H o je , o c u b o b ra n c o é u m “ p ro to m u s e u ” c o m passagem d ire ta p a ra o a te m p o ra l. Quadro 1: Galeria Moderna segundo Brian O'doherty. A valorização do espaço físico se compara ao espaço fundado pela teoria do não-objeto, o que se altera é o comportamento do público. Quando o espaço real se torna obra: a galeria, o museu; e despreza-se a forma física e a material. O'Doherty (2002) exemplifica com as obras “O Vazio” de Yves Klein e “O Pleno” de Arman. Na obra de Klein a galeria é a própria obra e aparece vazia, em oposição, Arman enche a mesma galeria com lixo, 280 do chão ao teto e de parede a parede, sendo impossível à visitação. Segundo GULLAR, o não-objeto nasce, portanto, do abandono do espaço virtual (ou fictício) e da ação pictórica (metafórica) para o artista agir diretamente sobre a tela (o quadro) como objeto material, como coisa. Esta ação do artista se transfere ao espectador que passa a manipular a obra nova – o não-objeto – em lugar de apenas contemplá-lo (GULLAR, 2007, p.46). Considerando de um lado a galeria moderna descrita por O'doherty e, de outro, as teorias do não-objeto e da nãocompreensão. O Manifesto Neoconcreto conceitua a obra de arte como algo orgânico, ou seja, “pensar espontaneamente o mundo, integrar o pensamento no fluir, pensar com o corpo” (GULLAR, 2007, p.42), ou ainda, a obra de arte como quase-corpus (organismos vivos) e não como objeto ou máquina. Existindo a participação ativa do espectador que passa do ato de compreender para o ato de experimentar. No cubo branco, aceita-se uma vida e um eu diminuídos, “nas galerias modernistas típicas, como nas igrejas, não se fala no tom normal de voz; não se ri, não se come, não se bebe, não se deita nem se dorme; não se fica doente, não se enlouquece, não se canta, não se dança, não se faz amor” (O'DOHERTY, 2002, p. XIX). 281 Impureza e apropriações Arthur Danto discute os limites entre moderno, pósmoderno e contemporâneo na arte, sendo assim, uma das contribuições a partir de década de 1970 foi o surgimento da imagem apropriada. O status do artista e conseqüentemente da obra, dependem do espaço que está vinculada e da própria história da arte no sentido de ser auto-referencial – colocação que coincide com O'doherty. Porém, Danto e Hans Belting questionam a representatividade da disciplina de História da Arte no contexto atual, em função da impossibilidade de enquadramento, deste modo à teoria é insuficiente para legitimar o que produz, e, com isso, abre espaço para outras esferas de mediação. Com o “fim da história da arte”, onde se legitima a produção atual? Em seu livro Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história, Danto discute a arte contemporânea em contraponto à arte moderna definindo-a como impura ou não-pura; sendo que, a noção de pureza remete a Clement Greenberg. Segundo o autor a origem do livro é datada de 1995, como resultado das Conferências Mellon sobre as Belas-Artes, ministradas na National Gallery of Art em Washington. A expressão “fim da arte” como sinônimo do “fim de narrativas mestras da arte” que desemboca em estilos. Danto cita o fim da narrativa proposta por Ernst Gombrich, ou seja, da tradicional representação da aparência visual; e também, o fim da narrativa modernista de Greenberg tendo como arcabouço a pureza da pintura e sua planaridade. Em 282 seus agradecimentos Danto, menciona, os vários interlocutores na discussão polêmica sobre o fim da arte, dentre eles, Hans Belting. O questionamento de Danto era como pensar a arte após o fim da arte, em sua fundamentação utiliza-se do livro escrito por Belting (A imagem antes da era da arte) que escreve sobre a arte antes do início da arte, ou seja, ambos discutem em que momento o conceito de artista e com ele o uso de narrativas surgem ou deixam de serem únicas para fundamentar a história da arte. A distinção entre o moderno e o contemporâneo, ultrapassa o sentido temporal como sinônimo de “mais recente”, o moderno para Danto abrange o período entre 1880 até algum momento da década de 1960, sendo que, no seu parecer às décadas de 1970 e 1980 ainda continuavam nebulosas. Outra preocupação de Danto dizia respeito à nomenclatura que irá utilizar para classificar a arte produzida após a década de 1980: obras pós-modernas, obras contemporâneas; opta por arte pós-histórica. O termo pós-moderno teria uma conotação de continuidade do período anterior: moderno, prevalecendo à sensação de que poderia se identificar algum estilo. O termo contemporâneo, também era inadequado, pois, implicava a qualquer “coisa” produzida por nossos contemporâneos, no sentido atual, podendo abranger tanto arte moderna quanto arte tradicional. O termo póshistórico remete ao fim de uma narrativa histórica e linear, fundamentado no caráter efêmero da produção atual. 283 Na seqüência, é possível visualizar didaticamente as principais diferenças entre a arte moderna e a pós-histórica, em discussão no capítulo 01, intitulado Introdução: moderno, pósmoderno e contemporâneo (DANTO, 2006, p.3-21). A rte M o d e rn a A rte P ó s -h is tó ric a 1 . P u re z a d a a rte . 2. A rte seu G re e n b e rg , 1 . Im p u r e z a d a a r t e . p ró p rio que a s s u n to , s u b s titu i c ita V a s a ri 2. Tudo pode ser um a p o s s ib ilit a (n a rra tiv a d a p in tu ra re p re s e n ta tiv a ). filo s o fic a m e n te . 3. A rte o b ra pensar de a rte , a a rte P ré -m o d e rn is ta p a ra 3 . N a a rte c o n te m p o râ n e a , o s a rtis ta s c o n c o rd a n d o com e s tã o M o d e rn is ta , liv re s do fa z e r o peso que da h is tó ria : q u is e r e a) G re e n b e rg , c a ra c te rís tic a s m im é tic a s podem com o p a r a a s n ã o - m im é t ic a s d a p in t u r a . q u is e r; b ) p a ra q u a lq u e r fin a lid a d e o u s e m n e n h u m a fin a lid a d e . 4. M o d e rn is m o : fo rm a l, ou lo c a l, s e ja , m a t e r ia lis t a , p in tu ra em 4 . N ã o e x is t e e s t ilo c o n t e m p o r â n e o . sua p u re z a . 5 . A s p in tu ra s d e ix a m p a ra cenas d e s e r ja n e la s im a g in a d a s ilu s io n is ta , no s e n t id o c o n v e rte n d o -s e em 5. Uso da im a g e m c o n fe rin d o -lh e s um a p ro p ria d a : s e n tid o e um a id e n tid a d e n o v o s . o b je to s e m s i. 6 . R e p re s e n ta a S e g u n d a g e ra ç ã o d e 6 . A a rte c o n te m p o râ n e a é p lu ra lis ta , m useus, s e n d o g ra n d e p a rte in c o m p a tív e l c o m M useus a rte d e fin id a e m S u b s titu i m useus a de M o d e rn a , te rm o s fo rm a lis ta s . P rim e ira onde A rte o g e ra ç ã o c o n te ú d o e ra de o as re s triç õ e s T e rc e ira de g e ra ç ã o um de m useu. m useus A a in d a e s tá p o r v ir. p rin c ip a l. Quadro 2: Arte moderna e Pós-histórica segundo Arthur C. Danto. Cultura, Arte e Remake Reflexões sobre a história da arte é o ponto focal do livro: O fim da história da arte – uma revisão dez anos depois, escrito por Hans Belting que retoma e amplia as discussões já propostas no livro: O fim da história da arte? (1983). Discutir o fim da história da arte é elucidar que não existe mais um único enquadramento a ser seguido, dentre as transformações ocorridas cita o uso das novas mídias, ausentes na modernidade clássica. Ancorado nas afirmações 284 de Arthur C. Danto, sobre a pluralidade e a fragmentação da produção artística atual, na qual a disciplina de história da arte é insuficiente para classificá-la, a arte contemporânea abre espaço para novas instituições de reconhecimento: a exemplo das exposições, como fontes de informação da arte e da cultura. A tabela abaixo pontua algumas colocações sobre as modificações na produção contemporânea que interferem na disciplina de história da arte, discutidas no prefácio e no primeiro capítulo: Epílogo da arte ou da história da arte? (BELTING, 2006, p.7-22). H is tó ria d a A rte P ó s -h is tó ria d a A rte 1 . C o n c e ito d e u m a h is tó ria d a a rte : 1 . F im d a h is tó ria d a a rte : p e rd a d e re s titu ir u m a h is tó ria e fe tiv a e d a r-lh e e n q u a d ra m e n to s e n tid o . d is s o lu ç ã o da e com im a g e m , ou e la a s e ja , a m u d a n ç a d e d is c u rs o . 2 . F im d a h is tó ria d a a rte c o m o u m a rte fa to e c o m e le o fim d a s re g ra s d o jo g o . 2 . O p o s iç ã o a lin e a r, m a s o com o um a jo g o h is tó ria da a rte c o n tin u a rá te n d o in te rlo c u to r a s o c ie d a d e e as in s titu iç õ e s . 3 . A té c n ic a re p ro d u z u m a p a r ê n c ia , s o b re tu d o s u p re s s ã o da m undo da nas r e a l id a d e m íd ia s , c o rp o ra l e e s p a c ia l . 3 . A a rte lig a d a a u m a rtis ta q u e s e e x p re s s a p e s s o a lm e n te n e la e a u m o b s e rv a d o r im p re s s io n a r que se d e ix a p e s s o a lm e n te por e la , o u s e ja , a a rte é riv a l d a té c n ic a . O c o rp o com o te m a , o c o rp o e x p e rim e n ta a s i m e s m o . 4 . A m o d e rn id a d e tra n s fo rm o u -s e e m 4 . O t e a t r o c o m o r e f ú g i o d a r e a l id a d e tra d iç ã o , a na p e rd id a , m a s re a l d o q u e p o d e m s e r p re s e n ç a da por t o d a s a s m íd i a s a n a l ó g ic a s e d ig i t a is , d u ra ç ã o im p re s s õ e s a rte é que que e x is t i a s u b s titu íd a se a ju s ta m ao c a rá te r fu g a z d a p e rc e p ç ã o a tu a l. 5. A p re te n s a m o d e rn id a d e , re p re s e n ta u n iv e rs a lid a d e aos um a o lh o s v is ã o de espaço em que o o b s e rv a d o r se e n v o lv e c o rp o ra lm e n te . da h o je 5. Todos os e s tilo s são a d m i t id o s , q u e m e s c o lh e é o a rtis ta . e u ro c ê n tric a q u e j a m a i s f o i g lo b a l . Quadro 3: História da Arte e Pós-história da Arte de acordo com Hans Belting. 285 As características da arte pós-histórica e da pós-história da arte, de Danto e Belting, respectivamente, os colocam como parceiros e defensores de uma mesma posição, ou seja, Danto define o tipo de obra e Belting, a teoria que a sustenta. A arte moderna de Danto é a mesma que habita o espaço idealizado de O'doherty – teoricamente, produção e espaço já superado pela arte atual. Gullar define a obra como um organismo vivo, ou seja, o nãoobjeto: não era um relevo, não era uma escultura, e não era um objeto no sentido utilitário, – propriedades definidas em oposição à pintura e a escultura. Porém, os “livros-poema” ainda constituem um objeto, em que a argumentação de Gullar (2007, p.50) recai sobre o aspecto nãoutilitário e em defesa da sua participação, como crítico e criador, na vanguarda neoconcreta, em especial o que a individualiza como vanguarda, ou seja, a participação do espectador. A pureza da obra é transferida para o artista e o artista divide a responsabilidade com o espectador. Se a obra se torna corpo e o corpo se torna obra, o ator e conseqüentemente o teatro por definição, legitimam este novo “local” da produção contemporânea – portanto a teoria da não-compreensão também tem seu espaço garantido. Porém, questionam-se quais as semelhanças e diferenças entre o teatro e o museu, na arte contemporânea? Ou melhor, entre o co-autor e o público na arte contemporânea? O museu, nas palavras de O'doherty e Danto, ainda não representa a produção contemporânea no que a caracterizaria como interativa. 286 Belting coloca a arte em oposição à técnica, e assim, o teatro em oposição às mídias analógicas e digitais. Porém, a possibilidade de co-autoria abrange vários campos de atuação, não apenas o teatro, ou seja, é possível “experimentar” no sentido da não-compreensão tendo como suporte corpos oriundos de novas tecnologias, serve de referência o livro: A arte no século XXI: a humanização das tecnologias, de Diana Domingues (1997). A interdependência entre arte e cultura, apresentadas no capítulo 2: O fim da história da arte e a cultura atual (BELTING, 2006, p.23-34) permitem compreender que ao se modificar o tipo de arte, altera-se, de um lado a posição do público e do outro o papel atribuído às esferas de consagração – historiadores, museus, feiras de arte. A rte e c u ltu ra 1. O C u ltu ra e a rte o lh a r p a s s iv o . A n te s , o o lh a r d o a m a n te da a rte e m o ld u ra d a p o s tu ra do c u ltu ra que p a ra e ra a hom em e le um a p in tu ra m e tá fo ra c u lto d ia n t e d e s c o b ria e C om ta m b é m a a O o lh a r a s s im ila in te ra tiv o . c u ltu ra H o je , p e la não se o b s e rv a ç ã o da s ile n c io s a c o m o s e o lh a u m a im a g e m da fix a m e n te q u e ria c o m p re e n d e r. 2. 1. e m o ld u r a d a , a p re s e n ta ç ã o in te ra tiv a m as num a ta l c o m o um e s p e tá c u lo c o le tiv o . fo rm a ç ã o p a c iê n c ia d e s a p a re c e p a ra e x e rc íc io c u ltu ra l o b rig a tó rio . 2 . S u rg e o d e s e jo e n tre te n im e n to , p e la que c u ltu ra deve com o causar s u rp re s a s a o in v é s d e e n s in a r, c o m o um e s p e t á c u lo q u e p a r t ic ip a m o s s e m c o m p re e n d e rm o s . 3. O p ro g re s s o e ra o rd e m , h o je , o fim de 3 . C u lt u r a c o m o la z e r . H is t ó r ia d a a r t e d a h is tó ria d a a rte a p a la v ra c o m o re m a k e à p ro d u ç ã o d o a rtis ta , a é o fim d e u m a n a rra tiv a . a rte p a r t ic ip a de ritu a is de re m e m o ra ç ã o o u c o n fo rm e o n ív e l d e fo rm a ç ã o d o p ú b lic o , a c u ltu ra c o m o re v is ta d e e n tre te n im e n to . 4. E x p o s iç õ e s m a n d a m e n to v irtu d e da da s e g u ia m a rte h is tó ria a u tô n o m a , da a rte . o em P ú b lic o 4 . E x p o s iç õ e s q u e p re p a ra m a c u ltu ra (o u a h is tó ria ) s o b re d e te rm in a d o te m a . P ú b lic o c o m o v is ita n te c u rio s o . c o m o le it o r d e u m liv r o . 5. O m useu com o m e d ia d o r e n tre h is to ria d o r e o a rtis ta . o 5. O m useu e a fe ira c ú m p lic e s do m e rc a d o . O s u c e s s o d a a rte d e p e n d e d e q u e m a c o le c io n a e n ã o d e q u e m a fa z . Quadro 4: Paralelo entre Arte e cultura, Cultura e arte de acordo com Hans Belting. 287 Considerações finais A modernidade remete ao conceito de história fundamentada na noção de estilos: lei e forma. O estilo é o pólo oposto do indivíduo e a garantia de visão pura. Com o fim da história da arte, é mais importante diante do que o artista toma posição do que a forma como o faz. As instituições que valorizam o posicionamento do artista e / ou a vivência do público são tão importantes quanto o “espaço expositivo” no sentido formal. A valorização do artista ao invés da obra (forma) e do conteúdo (história da arte), e a afirmação que obra e corpo possuem a mesma propriedade, ressalta a mudança de regras no campo da arte; mas, não impossibilita que o jogo continue. A liberdade de criação do artista elege o público como seu co-autor. Teoricamente, artista e público andam lado a lado e, na prática? Atualmente fazemos algumas das velhas perguntas sobre a ausência do público e para onde ele foi. A maioria das pessoas que hoje contempla a arte não está contemplando a arte; elas contemplam a idéia de 'arte' que tem na cabeça. Poderia ser escrito um bom artigo sobre o público de arte e a falácia educacional. Parece que ficamos com o público errado” (O'DOHERTY, 2002, p.94). Retomando, ficam em aberto, três questionamentos. Primeiro: Quais as políticas públicas brasileiras de incentivo a arte e 288 a cultura? Segundo: O espectador como co-autor pode participar de que tipo de linguagem além do teatro? O uso de novas tecnologias seria uma das opções? Terceiro: Têm-se instituições aptas para educar e formar um público da não-compreensão? O museu educa para o clássico e o moderno, e, quem forma para as novas tecnologias? Os posicionamentos presentes nas teorias de Danto, Belting e O'doherty – que se somam a de Ferreira Gullar e de Hans-Thies Lehmann. Permite reconhecer a dilação do campo artístico. Cada qual a sua maneira, articulam: o artista, o público e a instituição. Pode-se dizer que a distância entre a produção e o consumo é menor, a efemeridade da obra requer uma atenção continuada, a memória precisa ser reabastecida continuamente, a velocidade tecnológica exige do espectador uma nova compreensão. Uma poética da compreensão é substituída por uma poética da atenção que armazena o estímulo e o mantém na pré-consciência; que lhe possibilita uma inscrição efêmera no aparelho perceptivo sem permitir que ele se dissipe num ato de compreensão: um rastro de memória ao invés de consciência, a compreensão fica adiada. (...) A práxis da não-compreensão é uma forma de deixar acontecer, de possibilitar uma experiência (...) (LEHMANN, 2007, p. 146-48) 289 Referêrncias BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. DOMINGUES, Diana. A arte no século XXI: a humanização das novas tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. GULLAR, Ferreira. O novo espaço. In: AMARAL, Aracy (org.). Projeto Construtivo Brasileiro na Arte. Rio de Janeiro: Funarte, 1977. (Original: Jornal do Brasil. 1960). GULLAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea. Do cubismo à arte neoconcreta. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. (1.ed. 1985). Apêndice: Manisfesto Neoconcreto. GULLAR, Ferreira. Experiência neoconcreta: momento-limite da arte: Ferreira Gullar. São Paulo: Cosac Naify, 2007. LEHMANN, Hans-Thies. Motivos para desejar uma arte da nãocompreensão. In: Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas. Florianópolis: UDESC/ CEART. vol.1, n.09 (dez 2007). O'DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da obra. São Paulo: Martins Fontes, 2002. VAZ, Adriana. Artistas plásticos e Galerias de arte em Curitiba: consagração simbólica e comercial. Curitiba, PR: [s.n], 2004. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Paraná. ZANINI, Walter (org.). História Geral da arte no Brasil. São Paulo. Instituto Walther Moreira Salles, 1983. 2v., il. 290 Maximalização sonora: meandros da estética musical contemporânea Daiane Solange Stoeberl da CUNHA 1 Tão numerosas quanto as produções musicais surgidas no século XX são as teorias que as tentam explicar. Compreender o movimento da arte, em suas diferentes características e formas, exige uma busca dos olhares já direcionados a ela, tanto da estética, quanto da história, da semiologia, da sociologia. Dessa forma, a compreensão artística é também social, histórica, filosófica. A arte, a história e a filosofia ocupam-se de um objeto em comum: a produção humana. Não é de hoje que as pesquisas nestas áreas se interligam de tal forma que, por exemplo, ao se tomar a música do século XX como foco deste estudo, tem de se considerar o conhecimento advindo das mesmas. Assim, a fim de realizar um estudo integrado, toma-se como fonte os estudos realizados sobre a trajetória da música na história da humanidade, principalmente do século XX, o conhecimento sobre estética desenvolvido nas pesquisas que integram a filosofia e a arte, e assim a música e as análises sociológicas realizadas pelos frankfurtianos na problematização da estrutura socioeconômica capitalista, 1. Professora do Departamento de Arte-Educação - UNICENTRO 291 abordando questões referentes à arte-estética. Refletir sobre a música numa perspectiva da época e do homem na nova ordem social do mundo contemporâneo, leva-nos, obrigatoriamente, a problematizar a produção musical em suas diferentes perspectivas, as quais assumem posturas dicotômicas frente a realidade social imposta no mundo capitalista. Tomamos como ponto de partida para esta análise o pensamento de Adorno, que se constitui num marco teórico no campo da sociologia da música. Estética musical em transformação A música, como uma criação social, com função estética, com elementos, formas e técnicas específicas, sempre se apresentou como manifestação coletiva. A música do século XX é intimamente marcada pelos avanços tecnológicos produzidos por esta mesma sociedade. Não é correta a idéia de que a tecnologia só esteve próxima da música a partir do dinamismo e velocidade do século XX. Como vimos, muitas foram as conquistas tecnológicas que permitiram o desenvolvimento da produção musical até os dias de hoje. Muito embora apenas o presente nos dê a impressão de modernidade e complexidade, a arte de se fazer música no Ocidente sempre esteve associada à tecnologia. Mas, mesmo assim, não podemos deixar de afirmar que as grandes 292 transformações e avanços científicos do século XX, foram fundamentais para uma maior aproximação entre a idéia de tecnologia e a música (ZUBEN, 2004, p 10). Desde a antiguidade, a tecnologia e a cultura disponível determinaram a sonoridade produzida. Nas composições musicais do século XX, somam-se aos instrumentos musicais a produção de 2 sons eletrônicos. A música eletroacústica é composta com recursos tecnológicos “...desde o surgimento do gênero em 1948” (MENEZES, 2006, p.401). O músico da contemporaneidade não precisa, necessariamente, possuir a técnica de um instrumento musical. A compreensão tradicional de músico, como aquela pessoa com habilidade para executar obras musicais utilizando-se da voz e/ou de um instrumento musical da classificação padrão orquestral, não é, mais, a única aceita. A utilização da tecnologia disponível nas composições musicais passa a ser ainda mais comum nas últimas décadas. É claro que, em toda a história da humanidade o homem apropriou-se da tecnologia para a produção musical. Na música primitiva a música era equivalente às possibilidades sonoras possíveis a partir do manuseio dos aparatos tecnológicos disponíveis, assim a presença do ruído, da música vocal, dos sons corporais, da sonoridade atonal ligada aos rituais sagrados a caracterizam. Passando pela antiguidade e chegando à música medieval, observa-se, na música profana um rico berço musical no que se 2. A música eletroacústica “... é a composição especulativa realizada em estúdio eletrônicos cujos traços principais são a espacialidade sonora ( a forma como os sons são dispostos no espaço) e a investigação harmônica e espectral”. (MENEZES, 2006, p. 403) 293 refere à instrumentos, ritmos e estrutura, já na música sacra medieval a influência cultural suprimiu as possibilidades tecnológicas da época, pois a seleção dos sons vocais em detrimento dos instrumentais e ainda, a exclusão do ruído, acabaram por delimitar a música ao aprimoramento estrutural, do cantochão ao contraponto, culminando nas inúmeras vozes corais do renascimento. A música barroca é um ótimo exemplo da exploração tecnológica utilizada a favor da produção artística, o temperamento instrumental, a efetivação da tonalidade e ainda, por outro lado, a estética do dualismo: consonância e dissonância, melodia e harmonia, som e ruído... A história dos instrumentos musicais nos revela claramente o caminho paralelo entre a música a as invenções tecnológicas, a utilização de diferentes materiais e técnicas para a confecção dos instrumentos musicais é notável no romantismo e no classicismo onde os instrumentos sinfônicos são estabelecidos enquanto componentes da orquestra. O aprimoramento de materiais e também das construções civis, nos ambientes de concerto, passam a fazer parte da intenção do compositor. Tão importante quanto as descobertas da Física e da Informática, é a utilização destas descobertas para construção de uma nova produção artística. O período de transição que separa os séculos XIX e XX é marcado por inúmeras transformações praticamente em todas as áreas da vida social, conceituais e culturais, científicas e artísticas, trata-se da era da informação, da 294 aceleração do desenvolvimento tecnológico, das quais as produções artísticas não poderiam ficar aquém. Tanto a ciência quanto a arte desenvolvem-se a passos largos. A acústica, a física quântica, a eletrônica, contribuem, e são suporte para as composições musicais contemporâneas. A música de nossos dias deve ser compreendida como configuração de relacionamentos, definida em termos de multidirecionalidade e multidimensionalidade e em termos qualitativos também. Pois é o reflexo de nossa vida cotidiana, e a vida é transformação constante, um processo que não se permite se prender em objetivos específicos ou interpretações. É preciso compreender que a humanidade deve concentrar todos os seus esforços nesse processo de transformação constante, pois é este que constitui o único aspecto inalterável de nossa existência. (KOELLREUTTER, 1990, p.10) Para compreender melhor as modificações estéticas na música ocidental, toma-se a sistematização realizada por Koeullreutter (apud ZAGONEL, 1987), nesta sinopse das fases estéticas na música ocidental, este músico, define quatro períodos distintos: primeiro período (séc.IV-XIV); segundo período (século XXIX); terceiro período (século XX) e quarto período (século XX). O primeiro período apresenta uma estética musical préracional, como principais estilos o romântico e gótico, com tendência espiritual de comunicação entre homem e Deus, tendo 295 como idioma musical o modalismo, com caráter dominantemente ftegmático, quanto a estruturação mono e bidimensional, utilizava a escrita neumática e tinha forma poética, circular. Os predominantes são o gótico e o romântico. O segundo período é caracterizado por um pensar racional, uma vivência discernente com tendência materialista. Utiliza-se o idioma musical tonal, com caráter clagal de estruturação tridimensional. A conceitualização de tempo é cronométrica e de espaço é perspectívica e tinha forma discursiva, triangular. Com a utilização da notação precisa e estilos predominantes Barroco, Classicismo e Impressionismo. O terceiro período diferencia-se do segundo no que se refere: ao idioma atonal de caráter clagal e à estrutura quadridimensional; o conceito de tempo é acrônico e de espaço é aperspectívico; os estilos predominantes são o expressionismo e as tendências restaurativas: neoclassicismo e o nacionalismo. Ainda no século XX, a partir da sua segunda metade, estrutura-se o quarto período da estética musical ocidental, no qual o pensamento é arracional, a vivência musical é integrante e a tendência é intelectual. O idioma musical é elemental de caráter psofal e estruturação multidimensional. O conceito de tempo e de espaço é perceptivo, a forma é sinerética, esférica. Utiliza-se a notação aproximada, roteiro ou gráfica para registro dos estilos: concretismo, ruidismo, minimalismo, estruturalimo, neotoalismo, 296 reducismo e simplicidade nova. Nota-se apresentam que as transformações estéticas da músicas uma crescente ampliação de possibilidades e estruturas. Ainda, de acordo com Koellreutter, dentre os vários tipos de estética, destacam-se a Estética Fenomenológica, a estética descritiva, a Informacional e a Normativa: A Estética Fenomenológica é estudo subjetivo e interpretativo de ocorrência ou fenômenos artísticos que se definem como manifestações de caráter emocional, percebidos pelos sentidos, conscientizados ou não. Entende-se, aqui, por Fenomenologia, o estudo analítico e detalhado de um fenômeno ou de um conjunto de fenômenos em que estes definem por oposição às leis abstratas, ou às realidades de que seriam a manifestação. Estética Descritiva: aquela que descreve os fatos observados e averiguados. Estética Informacional: estuda as estruturas das artes sob o ponto de vista de um sistema de signos, ou seja, de uma linguagem. Estética Normativa: estabelece critérios e normas para o julgamento e a apreciação da atividade artística. (apud ZAGONEL, 1987, p.14) Partilhando do ponto de vista do musicólogo alemão Carl Dahlhaus, consideramos que não há separação entre História da Música e a valorização estética da própria música, pois toda 297 atividade musical é baseada em pressupostos estético-filosóficos. Assim: ... a Estética Musical não é tão-somente um campo que se restringe ao estudo comparativoe cronológico de obras, de gêneros musicais u mesmo das histórias da Filosofia e da Música; la é uma área que propãe uma interpretação histórica dos problemas da Estética Musical, valendo-se para tanto, de todo o campo de escritos possíveis da Música (...) buscando criar um campo intermediário e tradutor entre a História da Filosofia e a História da Música. (CASNOK, 2005, 43) Na obra intitulada Terminologia de uma Estética da Música (1990), Koellreutter afirma que a nova imagem do mundo, resultante de descobertas na área da física e a reviravolta radical do pensamento humano, levam constantemente à revisão profunda e pormenorizada da estética da arte e, principalmente, da terminologia de que esta se serve. Surge no século XX uma estética musical nova, a negação de quase todos os conceitos estéticos tradicionais. Desaparece, gradativamente, o dualismo, assim como a consonância e a dissonância, tempo forte e fraco, tônica e dominante, melodia e acorde. “...surge um novo repertório de signos musicais que compreende ruídos e mesclas, natural e artificialmente produzidos. Revela-se um novo conceito de tempo, e nega o conceito de tempo absoluto...” (1990, p.6) A música contemporânea apresenta uma nova estética, na qual o som é nada mais do que um feixe de energia, escolhido e 298 selecionado pela mente humana naquela parte do universo sonoro, acessível ao ouvido. A música atual aproxima-se de um todo sonoro, a partitura mostra, cada vez mais, os chamados 'campos sonoros', frutos de uma estética relativista cujos conceitos fundamentais são o impreciso e o paradoxal, onde os valores complementares de uma estrutura musical definida e indefinida ao mesmo tempo, os elementos são perceptíveis e imperceptíveis, contínuos e descontínuos. O conceito de silêncio diferencia-se da pausa tradicional, se torna tão relevante para a composição musical como próprio som. Há um intercâmbio entre o som e o silêncio. Para o compositor de hoje o silêncio è primordial, porque ele está se perdendo na paisagem sonora. Assim sendo, o silêncio é matéria-prima da música, um construto tão importante como qualquer outro parâmetro, o que leva uma quantidade expressiva dos compositores importante da atualidade a considerarem-no como centro de suas preocupações...(VALENTE, 1999, p. 79) A Indústria cultural e a “coisificação” da música Ao analisar a estética musical no século XX, não se pode desconsiderar o fato de que a arte está inserida no ambiente capitalista, no qual não pode estar alheia às influências da indústria cultural. A arte é submetida a uma servidão: as regras do mercado capitalista e a ideologia da indústria cultural, baseada na idéia e na 299 prática do consumo de “produtos culturais” fabricados em série. Numa perspectiva econômica, os chamados produtores musicais, pois não há como considerá-los artistas, produzem música para vender. A fama e o sucesso gerado pelos meios de comunicação de massa, associados à lógica do lucro determinam a estética musical para tal objetivo. São as relações de poder e saber que se manifestam nesta cultura e o que antes era usado para expressão diferenciada, agora, atende às demandas de um padrão musical medíocre, incluindo-se numa homogeneidade massiva. As pessoas deixam de valorizar o diferente, a música de qualidade, a criatividade e acabam preferindo o produto musical que incita aos discursos sobre o sexo e produz as condições de disciplinarização padronizada dos corpos que se agitam sob os mesmos sons e ritmos. É a industrialização da própria arte, a cultura convertendo-se em semicultura, a formação convertendo-se em semiformação. Ao refletir sobre as influências filosóficas nos textos musicais de Adorno (1903-1969) nota-se que a música exerce um papel essencial na construção teórica do filósofo alemão. Sua crítica social é traçada mediante uma análise sociofilosófica da música de seu tempo, é possível compreender que o filósofo tem o elemento musical como indicativo para verificar as transformações no pensamento, nas ações e nas relações sociais que se moldam à ideologia burguesa. Ao considerar a música e a arte em geral como forma de conhecimento, como um elemento cognitivo, Adorno nunca deixou de conceber a música como um instrumento criativo 300 de denúncia, formação e experiência estética, em face da transformação social e da barbárie que se instalou no mundo contemporâneo, responsável por horrores como Auschwitz e Hiroshima. A teoria crítica da Escola de Frankfurt se tornou muito conhecida pela sua crítica à cultura de massa. O termo Indústria Cultural foi originalmente formulado por Adorno e Horkheimer na década de 30, momento em que ambos estavam muito impressionados com o desenvolvimento das indústrias fonográfica e do cinema. A industrialização vivenciada por Adorno e Horkheimer, introduzia-se também nas artes, com a invenção do fonógrafo e do cinematógrafo, “...foi, portanto, a utilização de meios mecânicos para multiplicar as possibilidades de audição de um concerto que lhe sugeriu a utilização do termo indústria cultural” (PUTERMAN, 1994, p.10). Algumas das principais idéias dessa crítica estão ligadas à música e estão inseridas numa análise ainda maior das relações de produção e reprodução inerentes às classes na sociedade das massas 3 que foi, desde o início, objeto do Instituto para Pesquisa Social. Como afirma FREITAG Ao mesmo tempo que a obra de arte e a cultura em geral se fechavam ao consumo da classe trabalhadora, por serem considerados bens de consumo reservados a uma elite, representavam em sua própria estrutura um 3 3. O Instituto de Pesquisa Social, da Universidade de Frankfurt – Alemanha, era formado por um grupo de filósofos e cientistas sociais que deram origem à Teoria Crítica da chamada Escola de Frankfurt. 301 protesto contra a injustiça, mas esta só poderia ser superada no futuro. (...) Os bens culturais, concretizados em obras literárias, sistemas filosóficos e obras de arte são derrubados dos seus pedestais, deixam de ser bens de consumo de luxo, destinados a uma elite burguesa, para se converterem em bens de consumo de massa (...) o que é viabilizado pela revolução tecnológica-industrial, que permitiu promover a reprodução em série da obra de arte ou da sua cópia (...) transforma a cultura de elite em cultura de massa. (1990, p.71) Neste processo da Indústria Cultural, acontece uma falsa democratização, onde a obra de arte se torna mercadoria do sistema capitalista. Assim, uma falsa reconciliação entre cultura e civilização transforma o produto cultural, que deixa de ser apenas cultura e passa a ter um valor de troca, o qual se denomina indústria cultural, a qual pode ser definida como a cultura produzida para o consumo de massa, atendendo às necessidades de valor de troca, em que o produto cultural deixa de ter caráter único para ser um bem de consumo coletivo, avaliado segundo sua aceitação e lucratividade. Esse processo é cada vez mais aprimorado pelas condições modernas de produção, que com o auxílio da ciência e da técnica, facilitam a reprodução e disseminação dos produtos, consolidando e perpetuando a produção capitalista, de tal forma que essa passa a ser fundamental para a sobrevivência do sistema. Essa nova produção cultural tem função de lazer, ocupando o tempo 302 livre do trabalhador de forma que ele não reflita sobre sua realidade, eliminando a dimensão crítica da sociedade. Na escola, na rua, nas festas, a música – massificada – posiciona-se em lugar privilegiado, criando uma ilusão de acesso à arte, incentivando o consumo cada vez mais intenso, o qual traz a falsa sensação de realização social. A supervalorização da dimensão instrumental da razão significa a negação de uma dimensão emancipatória que também aparece sob a forma de negação da arte. A arte significativa para a transformação social e política seria aquela não-repetitiva, caracterizada pela dimensão do novo, que preserva o que lhe é próprio e se afasta do controle racional. Contudo, a arte, assim como a educação, os meios de comunicação, o não trabalho, passa pelo filtro da Indústria Cultural que é uma manifestação exemplar da Razão Instrumental. (...) a Indústria Cultural cumpre perfeitamente duas funções particularmente úteis ao capital: reproduz a ideologia dominante ao ocupar continuamente com sua programação o espaço de descanso e de lazer do trabalhador; vende-lhe os produtos culturais da mesma maneira que lhe vende os bens de consumo. (PUCCI, 1994, p.27) Para os frankfurtianos a vida, com a industrialização, passa a ser padronizada, isto é, as produções parecem ser semelhantes, como conseqüência, o poder de crítica e de opção se esvai, restando 303 apenas a adaptação aos esquemas de dominação progressiva, contribuindo para a reiteração do sistema vigente. Na música, observamos a entrada dos meios de captação, fixação e remodelagem do som. “A fixação do som em discos e fitas permitiu ao ouvinte misturar repertórios de tempos e espaços dessemelhantes, prática que, até o século passado, consistiria em justaposição inassimilável e absurda” (VALENTE, 1999, p.80) Para SCHAFER (1991), com o advento do telefone e do rádio, teve início a esquizofonia, neologismo que designa o som que tem sua origem num local e sua audição em outro, Desde a invenção dos equipamentos eletrônicos de transmissão e estocagem de sons, qualquer som natural, não importa quão pequeno seja, pode ser expedido e propagado ao redor do mundo, ou empacotado em fita ou em disco, para as gerações do futuro. Separamos o som da fonte que o produz (SCHAFER, 1991, p. 172) Neste contexto, ainda existe a problemática do gosto, como prerrogativa pessoal ou ainda como construção social. Em relação a esta problemática Adorno afirma: Se perguntarmos a alguém se gosta de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao 304 estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Ao invés do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. (ADORNO, 1983, p.165) A Indústria Cultural, para os frankfurtianos, é exploração, que por sua vez é alienante, pois os homens transferem cada vez mais para o futuro seus desejos de felicidade e realização, na medida em que se ajustam às formas desumanas de organização da sociedade. Assim, por um pensar crítico sobre a Indústria Cultural, esta é identificada como forma de manipulação das consciências, já que se utiliza da própria cultura para se estabelecer. Com essa transformação da cultura em semicultura, restam poucas maneiras de se realizar uma auto-reflexão crítica, uma delas seria a estética e, mais especificamente, a música, que segundo Adorno, preserva a utopia de um mundo melhor. Percebe-se, nos trabalhos de Adorno, principalmente, que em certo momento, há uma passagem de uma análise mais sociológica para uma análise mais ligada à estética. Esse autor é o principal responsável pelo surgimento da chamada Teoria Estética, inserida na Teoria Crítica, para ele é uma teorização crítica da realidade, uma única forma consistente de negar e criticar as condições materiais e sociais da vida social. 305 Adorno em seu ensaio sobre a regressão da audição (ADORNO, 1983) afirma que a música está sujeita à transformação em mercadoria, principalmente, a música considerada leve, contudo, ressalta que certas músicas eruditas (cita a dodecafônica) não são tão acessíveis às massas, assim se preservam fora da indústria cultural, suas formas não se prestam a reprodução e ao consumo. A Teoria Estética interpreta, decifra a representação musical, revelando os seus elementos críticos contestadores, o que permite uma análise e uma crítica das formas materiais de organização da sociedade. Como afirma Freitag “O fato de que a arte não reificada se fecha a toda e qualquer conceituação é a garantia de sua conservação como forma de representar criticamente a realidade alienada” (1990, p.83). A tecnificação do mundo e a reprodutividade técnica da arte, resultam na perda da aura da obra de arte, que é massificada e transformada em consumo de bens artísticos. Isso tudo é resultado da modernização da sociedade burguesa no século XIX e XX. No texto Sobre música popular (1941), Adorno faz uma reflexão sobre o conceito de estandartização da música popular, procura enterrar o mito de que a diferença entre a música “séria” ou erudita com a música de entretenimento ou popular pode ser analisada sob o aspecto de “níveis musicais”, em termos de complexidade ou simplicidade das composições. Para o filósofo, o problema é muito diferente dessa tradicional discussão. A diferença 306 entre as esferas musicais não pode ser adequadamente expressa unicamente em termos de complexidade e simplicidade. Todas as obras do primeiro classicismo vienense são, sem exceção, ritmicamente mais simples do que arranjos rotineiros de jazz (ADORNO, 1994, p.119). O filósofo procura mostrar que, na verdade, os músicos são neutralizados e reorientados para satisfazer às funções do monopólio cultural, no sentido de que os elementos musicais devam ser estandartizados, com detalhes atrativos, para proporcionar lucro e garantia do status quo. Para Adorno, quando a obra de arte perde sua aura, acontece o desvirtuamento da obra, a dissolução na realidade banal e a despolitização do seu destinatário. Adorno, Marcuse, Horkheimer e Benjamin concordam ao atribuir à cultura, e à obra de arte em especial, uma dupla função: ... a de representar e consolidar a ordem existente e ao mesmo tempo a de criticá-la, denunciá-la como imperfeita e contraditória. (...) ela critica o presente e remete o futuro. A dimensão conservadora e emancipatória da cultura e da obra de arte encontram-se, pois, de mãos dadas. (FREITAG, 1990, p. 77) Assim, a Teoria Estética assume a posição de herdeira da teoria crítica, sendo uma forma de opor-se ao presente instituído, pois por meio dela, segundo Adorno, é possível evitar a unidimensionalização da arte, situada diante de uma sociedade em 307 que suas relações suplicam pela reprodução do sempre idêntico, a mesmice caminha de mãos dadas com o conformismo. Isso não significa que tenha que ser sempre assim, a educação, que não se limita à esfera formal, mas está presente também em todas as outras relações sociais que necessitam de algum tipo de processo de aprendizagem, tem em si um importante papel para aceitação de um estado de coisas contraditório em si mesmo. A diversidade de caminhos emaranhados no percurso artístico hodierno revela, ainda que, diante dos mecanismos da Indústria Cultural, a maximalização musical. A música maximalista: a nova estética musical Se a cultura de massas é definida por Adorno e Horkheimer como uma falsa identidade entre o universal e o particular, a música maximalista, contrapõe-se a cultura de massas, pois insere-se na trajetória estética musical pós-tonalista, no século XX, ampliando as possibilidades de escuta e produção sonora, configurando não o público musical, mas um público dentre os possíveis numa sociedade multicultural. A arte contemporânea, assim como o ser humano contemporâneo, é imprevisível, ousada e diversificada, ampliando olhares, percursos e conceitos. Os frankfurtianos já chamavam atenção qualidade das composições musicais, quando destacam que a substituição dos detalhes no todo da composição musical, é notável em uma composição mais aprimorada, o qu ao ocorre numa composição 308 simplista. Na música mais radical, segundo a Dialética do Esclarecimento (1947), um elemento particular se relaciona criticamente com o todo. “Emancipando-se, o detalhe torna-se rebelde e, do romantismo ao expressionismo, afirmara-se como expressão indômita, como veículo de protesto contra a organização” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p.118). Na música de massas, isso não acontece, pois o detalhe funciona como simples enfeite atrativo para o consumo, não possuindo nenhuma articulação dialética com a totalidade da composição. Isso fica claro nesta citação de Sobre Música Popular: Em Beethoven, a posição é importante só numa relação viva entre uma totalidade concreta e suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto. Cada detalhe é substituível; serve a sua função apenas como uma engrenagem numa máquina”. (ADORNO, 1994, p.118) Dentre as abordagens musicais de Adorno além da Dialética do Esclarecimento estão os textos O Fetichismo na Música e a regressão da audição (1938) e Sobre música Popular (1941). Nesses, Adorno segue uma análise da situação social da música na era do capitalismo avançado. Anteriormente, o filósofo já havia analisado o fenômeno do jazz como música de consumo e negócio, em um artigo de 1936. Já no texto de 1938 sua abordagem se volta para toda a mudança estrutural da música. Segundo uma análise do pensamento adorniano, realizada por Valls (2002, p.118), “Sua tese não soa mais: a música de Jazz é mercadoria, (...) e sim: “...[a] música se tornou mercadoria”. Dessa forma, em uma primeira 309 abordagem, Adorno retoma o conceito marxista de fetiche, atribuído ao produto musical, e logo depois estuda sua apreciação pelo público, enquanto mercadoria. Em Sobre Música Popular o filósofo investiga com mais profundidade o fenômeno da música de massas e suas diferenças explícitas da música “séria” e mais radical. O título Fetichismo na música já fornece dicas sobre o que trata a obra: uma dupla abordagem da música em seus aspectos objetivo e subjetivo de um mesmo processo. Tanto a música séria quanto a música leve exerciam papéis ao mesmo tempo idênticos e diferentes. Mas Adorno percebe que essa situação de contradição aberta só poderá ser resolvida não no plano das elaborações formais da linguagem musical, e sim de uma total supressão das condições sociais que causaram e sedimentaram tal contradição: Se as duas esferas da música se movem na unidade da sua contradição recíproca, a linha de demarcação que as separa é variável. A produção musical avançada se independentizou do consumo. O resto da música séria é submetido à lei do consumo, pelo preço de seu conteúdo. Ouve-se tal música séria como se consome uma mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de significado real as distinções entre a audição da música “clássica” oficial e da música ligeira. (ADORNO, 1983, p.170) O fator polêmico que envolve as duas esferas da música é a transformação radical de ambas em mercadoria. Para explicar esse fenômeno Adorno apropria-se do conceito marxista de fetichismo da mercadoria, uma contribuição essencial para a elaboração posterior 310 de sua crítica à indústria cultural. A utilização do conceito marxista de fetichismo compreende especificamente o âmbito das mercadorias culturais. Em relação ao processo de transformação da arte em mercadoria, consiste na perda de autonomia. A música, enquanto obra, é um objeto, mas como arte possuía certa determinação histórica. Ao longo desse devir histórico, a música foi se emancipando de qualquer funcionalidade. O artista era livre para criar, sem a tutela de reis ou clérigos. No capitalismo, ela passa a assumir outra função específica: ser vendável. Nas palavras de Adorno, se a mercadoria se compõe sempre do valor de troca e do valor de uso, o mero valor de uso – aparência ilusória, que os bens da cultura devem conservar, na sociedade capitalista - é substituído pelo mero valor de troca, o qual, precisamente enquanto valor de troca, assume ficticiamente a função de valor de uso. (ADORNO, 1983, p. 173) Pode-se afirmar que esta análise da situação social da música apontada por Adorno no texto do Fetichismo na música e a regressão da audição pode ser encontrada em todos os produtos do mercado, não só na música, ou ainda nas artes visuais, como é mais comum, mas toda arte está sujeita aos mecanismos da Indústria Cultural. No entanto, a produção musical contemporânea de vanguarda, radical e especulativa demonstra a maximalização 311 sonora enquanto a sociedade de massas, prenunciada por Theodor Adorno, decorre da crescente decadência musical da contemporaneidade promovida pela Indústria Cultural. O século XX é marcado pelo início de uma verdadeira revolução musical. De maneira acelerada, o grau de avanço e complexidade da invenção artística passou a ser cada vez mais intenso. Enquanto para a Idade Média o século é a unidade de medida temporal para a descrição do avanço histórico-musical, temos que para a história da música do século XX passam a ser a década, o ano e o mês as unidades de medida de tempo que permitem estudar a evolução estética e técnica. Dessa maneira, o marco traçado por Schoenberg na transformação estética musical, apontam para uma infinidade de compositores, da chamada música contemporânea, com novas regras e procedimentos emergentes de estruturação musical. “...talvez Schoenberg seja um caso atípico de criador que foi, à sua maneira, um pouco de cada coisa: um grande mestre, um importante inventor e, de certa forma, um diluidor em menor medida”. (MENEZES, 2006, p.14). Schoenberg foi o maior evolucionário, responsável pela ruptura do sistema tonal, ocupando o papel de protagonista do atonalismo livre. Pierrot Lunaire Op.21, composta por este músico ainda em 1912, é atonal, rompendo com o idioma tonal dos últimos quatro séculos, na música ocidental. Esta composição é contemporânea de outro marco histórico, A Sagração da Primavera (1911-1913), de Igor Stravinsky. 312 Tanto Schoenberg quanto Stravinsky são vistos como antípodas por Adorno, em um sentido de que o primeiro representa uma recusa em pactuar com o sistema de industrialização e comercialização da música erudita, custando o próprio isolamento do compositor e de conseqüências na própria qualidade de suas composições, e o segundo como um brilhante criador que se entrega ao sistema que Schoenberg recusara, ao preço de um enfraquecimento progressivo de suas composições e na decadência de escrever trilhas sonoras para filmes de Hollywood, com qualidade inferior ao melhor de sua produção. O procedimento diametralmente oposto de Stravinski se impõe ao exame e à interpretação, não somente por sua validez pública e oficial e seu nível de composição – já que o próprio conceito de nível não pode ser postulado de maneira dogmática e, assim como o do “gosto”, está sujeito a discussão – mas, sobretudo, porque destrói a cômoda escapatória segundo a qual se o progresso coerente da música conduz a antinomias, deve-se esperar alguma coisa da restauração do passado, da revocação autoconsciente da ratio musical. (ADORNO, 2004, p. 10) Schoenberg marcou a história da música, com suas composições musicais inovadoras, as quais rompiam com a estética musical tonal, e também com suas publicações como por exemplo Harmonia, na qual é possível compreender com profundidade o 313 funcionamento do sistema tonal, suas leis e suas propriedades, assim como se dar conta de suas limitações e do porquê de sua superação histórica. A partir, deste marcante músico, amplia-se aceleradamente o panorama da música que impregnou a escuta contemporânea, a partir do final dos anos 40, A fim de enriquecer esta abordagem da maximalização da música, citamos referências que constituem produções musicais importantíssimos da segunda metade do século XX, comparados aos de Schoenberg na primeira metade desse mesmo século: Pierre Boulez (1925), Henri Pousseur(1929), Karlheinz Stockhausen (1928), Luciano Berio (1925-2003), Olivier Messiaen (1908-1992), John Cage (1912-1992), György Ligeti (19232006), Iannis Xenakis (1922-2001), Michel Phillipot (1925-1996), Pierre Henry (1927), Philippe Manoury (1952), Alban Berg (18851935), Willy Corrêa de Oliveira (1938), Robert Schumann (18101856) Lívio Tragtenberg (1961), Gilberto Mendes (1922), Erhard Karkoschka (1923), Mesias Maiguashca (1938), Humpert (1940), entre outros... Em tempo, a compreensão da arte musical numa perspectiva da época e do homem na nova ordem social do mundo contemporâneo, remete aos elementos sociais como cultura de massa, o poder dos meios de comunicação e as novas manifestações estéticas na área musical evidenciam a pluralidade de estilos e de técnicas composicionais. A produção musical contemporânea de vanguarda, radical e especulativa demonstra a maximalização 314 sonora enquanto a sociedade de massas, prenunciada por Theodor Adorno, decorre da crescente desqualificação musical da contemporaneidade. A música maximalista insere-se na trajetória estética musical pós-tonalista, no século XX, ampliando as possibilidades de escuta e produção sonora, configurando não o público musical, mas um público dentre os possíveis numa sociedade multicultural. A arte contemporânea, assim como o ser humano contemporâneo, é imprevisível, ousada e diversificada, ampliando olhares, percursos e conceitos. Assim, a diversidade de caminhos emaranhados no percurso artístico hodierno, revela, ainda que, diante dos mecanismos da Indústria Cultural, a maximalização musical. Referências ADORNO, T. W. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: BENJAMIN, W. et all. Textos escolhidos. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. ______. Sobre música popular. In: COHN, G. (org.). Theodor Adorno: sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática. (Col. Grandes Cientistas Sociais). 1994. ______. Educação para quê? Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ______. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004. 315 ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do Esclarecimento, Fragmentos filosóficos, Trad: Guido Antonio de Almeida, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1986. CASNOK, Yara. Música e Filosofia: estética musical. São Paulo: Irmãos Vitale, 2005. FREITAG, B. A Teoria Crítica: Ontem e Hoje. 3.ed. 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Introdução à Estética e à Composição Musical Contemporânea. 2.ed. Porto Alegre: editora Movimento, 1987. ZUBEN, Paulo. Música e tecnologia: seus sons e seus novos instrumentos. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004. 317 Aspectos da Performance Art, Happening e Body Art possibilidades de registro e apropriação de universo pessoal Clóvis M. CUNHA 1 A natureza híbrida da linguagem performática se constituiu a partir de contribuições de diversas áreas como a filosofia, rituais tribais, jogos esotéricos, tecnologia, artes e etc... Para Jorge Glusberg, o dia 10 de dezembro de 1896, com a noite de estréia de Ubu Rei de Alfred Jarry, no Théâtre de l'Oeuvre de Paris de LugnéPoe foi um marco para a linguagem performática. A relevância desse evento é citada devido ao rompimento de muitos dos pressupostos dramáticos da época, apresentando particularidades de atuação nos recursos de entonação da voz e na elaboração do cenário e figurino. Para discutir os eventos performáticos, Duvignaud (1970) reporta-se a uma ascendência do evento ritualístico discorrendo sobre o desenvolvimento do espetáculo primitivo, que centrado em conceitos de cerimônia e rito fatalmente desembocam no aparecimento do happening. Em outra vertente, o surgimento dos eventos performáticos estão ligados ao pensamento pictórico e suas relações com o espaço de exposição. Brian O'Doherty explica o aparecimento do 1. Professor do Departamento de Arte-Educação - UNICENTRO 319 happening, da performance e, consequentemente, da body art como uma decorrência dos procedimentos estéticos da pintura, que se inicia com a crise da representação no século XIX pelo impressionismo. Características do happening A característica mais comum atribuída ao happening é a interação dos participantes em um evento em que as ações nele executadas surgem ao acaso. Esta possibilidade do acaso, de certo modo, o aproxima de uma vivência teatral despreocupada com um resultado estético permanente. Sendo o happening uma forma de expressão apoiada em um sistema anárquico de composição, as relações que possam ser estabelecidas para os elementos que surgem casualmente caracterizam a associação caótica. Para Kenneth King (1975) o desenvolvimento do happening é o de um teatro em que a resposta é instantânea, ainda que não haja uma explicação lógica ou coesa para as ações nele apresentadas. Os happenings, como conceituou o crítico francês Pierre Restany (1979), seriam execuções de acontecimentos em sentido universal. O ambiente de arena oferecido pelo evento do happening privilegiava o envolvimento direto do público. Ainda que o happening contasse com o acaso, com a sorte, o acidente, com a colaboração caótica de ações executadas pelo público participante, existia nele a intencionalidade. Os acontecimentos deste evento estão associados com os acontecimentos de vida, poderíamos, 320 então, elaborar que o procedimento de construção estética do happening se equivale a procedimento de construção de vida. Kaprow não entendia a arte como um processo autônomo separado da vida pela convenção: a arte era uma parte inerente da realidade. O happening elaborado por Kaprow era uma collage animada, envolvendo pessoas e materiais em uma situação diante de uma audiência. Uma das questões interessantes do happening está na habilidade que o evento possui de não estar territorializado, sua identidade nômade fragiliza as tentativas de radicação em linguagens ou épocas, tempo ou espaço, visto que transita entre territórios de vida e esta perpassa tudo o que determinamos que existe, tudo o que a linguagem pode ficcionar. Os acontecimentos nestes eventos se desenrolaram com recursos de repetição, justaposição de imagens, objetos e relacionamentos não causais. O acontecimento pode ser repetido, mas a instabilidade destas relações impede o happening de ser reproduzido, enfatizando sua característica mutável, nômade. De acordo com Kaprow, as fronteiras entre arte e vida devem ser mantidas fragilizadas e nebulosas tanto quanto possível para que este evento possa existir. Quanto à forma de atuação, artistas das variadas linguagens parecem partilhar de uma mesma premissa: os atuantes podem ser utilizados como elemento estético retirados diretamente da vida, em um processo semelhante ao ready made. 321 Segundo Glusberg houve um aumento considerável de público dos happenings no final dos anos cinqüenta e início dos sessenta. Estes espectadores que buscavam sempre um novo evento eram importunados e agredidos. Glusberg entende esta agressão ao público como signo que se opõem ao ritual e as performances em geral. Para ele esta distinção é de grande importância e evidencia “o espírito de uma vocação litúrgica e secreta dos performers em relação aos protagonitas do happenings.”(GLUSBERG, 1987, p.106) Características da performance A performance de maneira oposta ao happening, coloca limites no lugar da ausência sugerida pelo happening. A performance estetizou a cena, ganhou em força sígnica, delimitou melhor o território de linguagem artística, fortalecendo uma fronteira onde havia a linha tênue que beirava o lado terapêutico presente no happening. Segundo Cohen (1989, p.138), o que diferencia a performance do happening é a “cristalização” das cenas, que permitiu a repetição do evento. Com isto a performance elabora uma cena mais sofisticada fazendo uso de multimídia e abolindo o uso do improviso comum no happening, por isto ela se aproximou do “teatro estético”. O intenso grau de esteticidade da performance faz com que a probabilidade de intervenção do espectador seja muito inferior do que aquela ocorrida no happening, geralmente nas performances o público não é chamado a intervir. 322 Entretanto, como desenvolve Glusberg (1987) a performance aparece como um meio de resgatar a história do uso do corpo e suas reflexões culturais. Sendo rejeitado o estereótipo corporal amplia-se o número de possibilidades a fim de resgatar as mais variadas formas de uso do corpo, “possibilidades estas alimentadas ou não a partir da cultura e da sociedade.” (ibidim, p.89) As performances tentariam então resolver a contradição do homem com sua imagem espetacular, utilizando recursos cotidianos para finalidades inéditas. A realidade utópica da representação passa a ser substituída pela irrupção da verdade na ação ao vivo do performer. Na década de 60, uma atividade performática semelhante as que se desenvolviam nos Estados Unidos, tomava crescimento na Europa com o nome de Fluxus, um movimento intermidiático internacional de artistas. Este movimento colocava-se como um movimento anti-arte, compreendendo arte como produto de uma tradição cultural institucionalizada. O Fluxus problematizava objetos e situações cotidianas unidas á arte. Estes posicionavam o corpo em termos fenomenológicos, fazendo irromper a vida. Também no Novo Realismo francês aparecem discussões fenomenológicas, onde Yve Klein posicionou o homem como centro do universo, somando isto as Antropometrias do período Azul em 1960, onde modelos convertidas em pincéis vivos levam a action painting de Pollock às últimas conseqüências. Yves Klein, em uma manhã, saltou de um edifício para a rua. Fotografado no instante do 323 salto, Yves Klein apresentava-se como a obra em si. O Salto no Vazio foi realizado no ano de 1962, na cidade de Nice, onde Klein havia nascido. No uso da própria imagem Klein gerava confusão entre suas habilidades pessoais de judoca e um possível truque fotográfico. Ainda em 1962, durante o Festival Fluxus de Música Nova, realizado no Städtisches Museum, de Wiesbaden, Nam June Paik mergulhou sua cabeça, mãos e gravata em uma bacia cheia de tinta com molho de tomate e de bruços desenhou uma linha ao arrastar sua cabeça no chão. Tanto fluxus quanto os happenings e o novo realismo francês, refletiam a proposta fenomenológica, nascida no dadaísmo dos anos 20, na intenção de fazer irromper a vida sobre a arte, espetacularizando a existência cotidiana. Na performance predominará o trabalho individual, que se apresenta como uma leitura de mundo a partir da identidade do artista, opondo-se ao trabalho coletivo que é a principal característica de um happening. Renato Cohen (1989) reconhece na performance uma marcante influência das artes visuais, onde o performer conceitua, elabora e executa sua performance de modo individual, semelhante a criação artística das artes visuais. Cohen diz que a exposição do artista seria uma “pintura viva” utilizando recursos da dimensionalidade e da temporalidade. Desse modo, a performance contamina as artes cênicas com procedimentos das artes visuais, que nos anos oitenta se desenrola com o aparecimento do espetáculo autoral, no qual o diretor encena suas memórias, referências, informações, teorias de áreas diversas, 324 como se construísse um quadro em collage, tornando a construção da cena um ato individual como fez Gerald Thomas e Bob Wilson. Performances são ações que não envolvem produção de objetos concretos. O que se produz com a performance é um objeto de qualidade semiótica e instantânea. A irrupção da vida como matéria de construção da cena deflagra simbolicamente novas alternativas, abarcando novas paisagens na concepção do corpo como matéria significante, com intuito de lucrar uma quantidade de significados multifacetados que se relacionam em contextos artificiais. Body art O corpo apropriado como espetáculo da arte edificando sobre si a identidade do indivíduo como temática artística acaba por caracterizar a ação performática, evidenciando uma relação sempre presente entre body art e performance. Estas são fenômenos relacionáveis e possuem forma de expressão que convergem consideravelmente entre si. Battcook define a body art como arte que desenvolve referência direta ao corpo do artista. Toda performance acarreta em seu desenvolvimento a expressão da body art, visto que o corpo do artista é o centro de um discurso propriamente individual, ainda que sua presença não se faça presente na cena performática. Na performance art, o eu do artista é vinculado em um processo radical, que realça sua liberdade temática fazendo com 325 que se organizem roteiros a partir de seu próprio ego (COHEN, 1989). Entretanto, Battcook grifa que nem todo espetáculo que exiba um corpo pode ser considerado uma forma de body art. Mas a complexidade do assunto vem do fato de que algumas formas de expressão da body art podem ser autênticas performances. De acordo com Licht (1975), a body art se distingue tanto da teatralidade do Happening quanto da formalidade da dança que lhe foi contemporânea, embora tenha sido influenciada por ambas. A body art é primariamente pessoal e privada. Seu conteúdo é autobiográfico e o corpo é usado como o corpo próprio de uma pessoa particular e não como uma entidade abstrata ou desempenhando um papel. O conteúdo dessas obras coincide com o ser físico do artista que é, ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética. Os artistas eles mesmos são objetos de arte. Mesmo nos trabalhos criados para existir apenas na forma de documentação fotográfica ou videográfica, o poder da fisicalidade e a diretividade psicológica do gesto transcendem sua representação imagética. (SANTAELLA, 2003a, p. 261) Santaella (2003) diz que toda performance é body art se observado determinados aspectos que lhe são característicos, pois a presença do corpo ao vivo não é tão relevante quanto a ação que se executa sobre ele. Porém, Santaella aponta que para alguns autores 326 é importante fazer distinções, ainda que sutis entre uma e outra linguagem, onde a body art torna-se um termo mais abrangente do que arte performativa, “... porque a body art envolve também imagens e outros projetos em que o artista se desempenha de vários modos” (p.261). O que gera diferença na apropriação do corpo e da identidade deste é a atitude estética que o corpo recebe perante os olhos do público e do artista. A body art, na performance, aparece disposta a problematizar a possibilidade ilusionista da representação, vinculando diretamente a produção de uma ação aparentemente real como atitude poética: “Isto se deve ao fato de que o corpo humano é a mais plástica e dúctil das matérias significantes, a expressão biológica de uma ação cultural”. (GLUSBERG, 1987, p.52) Pode-se compreender que a body art somente aparece como forma artística no momento em que a performance se estabelece como linguagem, ainda que anteriormente se encontrem corpos em condições de arte. Isso se dá, de certa maneira, porque a body art não teria para si uma mídia individual, ainda que o corpo se apresente como mídia primária de sua linguagem; esta para se expressar apropria-se de outras mídias como o vídeo, a fotografia, a apresentação ao vivo, vozes gravadas, pinturas, esculturas, instalações etc... Por volta do ano de 1964 [...] Jasper Johns deixava traços físicos de seu próprio corpo nas suas pinturas e esculturas, 327 intitular body art, “revelando que o artista e sua obra se fundem em uma mesma realidade e que o artista ele mesmo tem uma presença estética” (SANTAELLA, 2003a, p.253) Ainda em 1920, Man Ray fotografa Duchamp travestido de mulher, personagem que recebe o nome de Rrose Sèlavy “transformando em arte a experiência da encenação do sexo oposto” (p.253). Tadeusz Kantor encena seu universo pessoal, deixando-se ver na cena como personagem e como diretor. Seus atores, em alguns casos, buscam a não-representação, desejando apenas ser e colaborando para que o indivíduo seja lugar de ação artística. A encenação da memória, do universo pessoal do artista utiliza sua presença física em cena, como fazem Kantor e Gerald Thomas, não representando personagens, mas apresentando a si próprios, como faz um performer, interferindo, gerando dramaturgias paralelas, apropriando-se de sua própria vida e fundamentalmente sendo apropriado por sua obra. Corpo em atuação, representado ou apropriado No Teatro Cricot-2 de Tadeusz Kantor: O ator (..) não procura ser expressivo, nem quer ser espontâneo; em suma, não tenta representar. Provoca, apenas, com sua presença física, uma espécie de estranhamento muito concreto no espectador.” (AZEVEDO, 2002, p. 40) O corpo se apresenta como um fator determinante, 328 símbolo da vida individual, do conteúdo pessoal que cada ator carrega consigo. “Kantor leva os atores ao seu verdadeiro ser; não pretende outra coisa do que representem seus próprios personagens. Não existem papéis, no entanto quando existe um papel, o ator não o interpreta: o toma e o assume (ROSENZVAIG, 1996, p.29). A utilização do conteúdo pessoal do ator vai aparecer no teatro de Bob Wilson, no qual pessoas comuns são utilizadas como elementos estéticos, fazendo uso de donas de casa e loucos como atuantes, pois segundo Renato Cohen, Wilson trabalha com pessoas e não com intérpretes. Desta forma os loucos em seus espetáculos iniciais são verdadeiros loucos e não loucos interpretados por atores. No intitulado Teatro Zero, Tadeusz Kantor afirma ser possível um estado de não-representação por apropriação do indivíduo. No qual a não-representação é [...] quando o ator se aproxima de seu próprio estado pessoal e de sua situação, quando ignora a ilusão (o texto) que o arrasta sem parar e o ameaça. Quando acredita no seu próprio curso dos acontecimentos, estados, situações, que entram em colisão com o curso dos acontecimentos da ilusão do texto, ou estão completamente isolados. (KANTOR, 2003, p.118-119) 329 enquanto Bruce Nauman se deixava fotografar com água saindo da boca, no seu Portrait of the Artist as a Fountain. Pouco mais tarde, em 1969, Nauman usou uma câmera lenta para explorar fenomenologicamente seus movimentos faciais” (GLUSBERG, 1987, p.259). Em 1969, Barry Lê Va executou a performance Velocity Piece 1 e 2, correndo de um lado para o outro de uma sala, batendo violentamente o seu corpo contra duas paredes a uma distância de 15 metros uma da outra. Desenvolveu esta ação até esgotar sua resistência. Um equipamento gravava o som de seus movimentos no espaço, ao mesmo tempo em que sua atividade ficava visualmente registrada nas manchas de sangue com que seu corpo marcava a parede. Depois do evento, os convidados a ouvir os resultados de sua performance, seguiam o som passo a passo no movimento em pinguepongue de suas cabeças. Para Nemser, o corpo fantasmático de Lê Va deixou no espaço uma impressão de lugar assombrado (SANTAELLA, 2003a, p.258). Com a body art tomando o corpo do performer como lugar artístico surge apropriações do próprio corpo ou identidade do artista como matéria. Em 1919, Duchamp corta o cabelo em formato de estrela, “gesto que pode ser visto como um vislumbre da arte da performance” (GLUSBERG, 1987, p.19), anunciando o que viria a se 330 Kantor toma fascínio com a possibilidade de transgredir as convenções aparentemente indissolúveis do teatro tradicional. E elaborando o pensamento da cena a modo de collage e sobreposição como é característico na performance ele ressalta: De um lado a realidade do texto, do outro o ator e seu comportamento. Dois sistemas sem relação, independentes, que não se ilustram. A conduta do ator deve paralisar a realidade do texto. Então, a realidade do texto se fará concreta. É possível que seja um paradoxo, mas não no que diz respeito a arte (KANTOR, 2003,, p.118-119). O conflito entre vida e ficção apresentado por Kantor não está ligado a uma metodologia de interpretação, tem na apropriação do comportamento, do conteúdo pessoal como elemento estético forte apelo, trazendo e revelando a cena seu corpo vivo: “Kantor não tem preocupação com a técnica do ator, como preocupava a Stanislavsky, não pretende desenvolver uma metodologia de trabalho, ao contrário, cada obra teria o seu próprio método, seria a resultante de novas teorias estéticas” (ROSENZVAIG, 1995, p.27). Esta busca estética não se restringiu a uma fase de seu trabalho, quando no Cricot2, reconstrói sua busca apresentando um elenco formado de atores profissionais e não-profissionais e 2 também de pessoas “diretamente retiradas da vida cujo papel cênico está de acordo, em determinado sentido, com o seu próprio papel na vida” (KANTOR, 2003, p.222). 2. Se refere a pintores, poetas, teóricos da arte que chegam ao teatro por caminhos diferenciados aquele trilhado pelo ator de teatro, enriquecendo, segundo Kantor de tal modo o seu formato geral. 331 Do encontro de Kantor com Allan Kaprow ficou o interesse por uma linguagem contemporânea traduzida ao teatro. Desta influência é possível identificar uma alteração das possibilidades estéticas da cena teatral. Esta influência não age exatamente sobre a prática de interpretação alterando seu desenvolvimento, mas traz para o teatro uma maior variedade de ocupação do corpo enquanto elemento cênico. Desta forma, o corpo vivo colado a uma dramaturgia construída a partir de universo pessoal do artista, ocupa a cena de Tadeusz Kantor, Bob Wilson e mais tarde em Gerald Thomas. No desenvolvimento do happening Kantor afirma apropriar-se 3 DA REALIDADE COMPLETAMENTE PRONTA, prévia (ready made), os fenômenos e os objetos mais elementares, os que constituem a “massa” e a “mistura” de cada dia, me sirvo deles, jogo com eles, os privo de função e finalidade, desarmo-os e os inflamo, deixando-os levar uma existência autônoma, dilatando-se e evoluindo livremente e sem objetivo (KANTOR, 2003, p.172). Ao se alimentar, Kantor acaba incluindo na mistura da “massa” a apropriação da realidade de maneira inversa ao que fez o artista Yves Klein. Klein, em sua produção, utilizou inúmeras apropriações do corpo, tornando inclusive o seu próprio corpo em obra de arte. Em outras de suas obras o corpo do público era transmutado: 3. Preservei na tradução a caixa alta existente no texto original. 332 “Chegamos – diz Klein – ao teatro sem ator, sem decoração, sem cenário, sem espectador..., nada mais permanece com o criador só, que não é visto por ninguém, exceto pela presença de ninguém, e o teatro-espetáculo começa” (KLEIN, apud. ARNALDO, 2000 p.54). Em sentido inverso a Kantor – que se apropria da “massa” e do “estado pessoal”, gerando uma “mistura” para legitimar a cena – Klein, ao se apropriar da “massa”, atinge a dissolução do teatro, a fim de romper a distinção entre vida e arte: “Nos trabalhos do teatro do Vazio se dramatizava a queima ininterrupta do supérfluo” (ALCUBILLA, 2000, p.57.) O supérfluo seria a ilusão, a convenção, assim com sua eliminação o conflito entre corpo vivo e corpo ficcional estaria descartado. Os vínculos que as apropriações de Yves Klein possuem com o teatro são ainda mais estreitos: “ 'criar uma espécie de teatro privado, a se freqüentar (afetivamente) por abandono', era a 4 proposta de Klein, que, no texto, se reconhecia em dívida com Antonin Artaud.” (ALCUBILLA, 2000, p.57) Afirma, ainda, Arnaldo Alcubilla , que o “Teatro do Vazio” antecipou muitos feitos posteriores de um teatro mais radical, que por sua vez se conectavam com um teatro mais recente, o do Absurdo. Como o corpo vivo traz consigo um caminho já trilhado anteriormente à sua presença cênica, o ator não necessita “representar”, nem mesmo “tentar ser”, requer apenas “estar”, permitindo que o espectador faça sua leitura, o produto estético não se desvinculará da ação do corpo: “A pintura como arena da 4. Journal du Dimanche, jornal onde publica toda a intervenção do “Teatro do Vazio”. 333 ação (action painting) tornou-se ato corporal na tela, terminando em uma pintura no próprio corpo humano, uma ação sem tela, até o limite do corpo em si, encenando, seja lá o que for mesmo a inércia, se transformar em arte” (SANTAELLA, 2003a, p.252). Este corpo que é vida também é elemento estético (modificado pela história da representação) em similaridade aos ready mades de Duchamp. Esta alteração estética somente acontece devido aos seus vínculos com o olhar, o lugar, e a apropriação. São estes três elementos estéticos indispensáveis na análise ou construção do corpo como obra de arte. Apropriações presentes na cena Para Grotowski as ações físicas são recordações do intérprete, e as associações que este faz são “um retorno a uma recordação exata, pois 'foi nossa pele que não esqueceu, nossos olhos que não esqueceram. O que escutamos pode ainda ressoar dentro de nós” (GROTOWSKI apud. AZEVEDO, 2002, p.29). Imediatamente associado a uma percepção de si, o corpo é o conteúdo pessoal do ator, a memória é transferida para a pele, pois é “a pele que não esqueceu”. A pele é o motivador dos sentimentos, é o interruptor que aciona os sentimentos, talvez por isto artistas da body art mutilem o corpo, seria uma forma direta de atingir a memória da pele. A mutilação então se apresenta como uma referência a dor física que não se pode ver, mas que necessita ganhar visibilidade, para que se reconheça a possibilidade da 334 cicatrização, ainda que provisória. Nos anos 60 e 70 muitas foram as performances de artistas que alternaram entre estados de (..) intensa sensação física e desprendimento cerebral extremo. Em entrevistas, esses artistas não admitiam qualquer sentimento pessoal de dor ou prazer enquanto realizavam suas atividades, pois seus corpos eram tomados simplesmente como materiais ou instrumentos para a descoberta de processos físicos e psíquicos. (SANTAELLA, 2003a, p. 258) As apropriações como estratégias de construção dos happenings e performances são absorvidas e transpostas para as estruturas teatrais, e isto inclui a apropriação do conteúdo pessoal daquele que atua como foi tratado no teatro de Kantor. Claramente tais apropriações trouxeram novas formas de exploração no que diz respeito ao treino do ator como também influenciaram na organização de outros elementos que constroem a cena. Galizia (1986) conta que, Bob Wilson por influência do modo pessoal de Christopher Knowles construir arquiteturas poéticas com palavras iniciou o tratamento arquitetônico do texto mais característico de sua obra. Knowkes era aluno de uma escola especial onde era considerado uma criança autista. Wilson ouviu uma gravação de uma poesia feita por Knowles: 335 Eu não o conhecia, mas fiquei intrigado com a fita. Fiquei ainda mais maravilhado quando o conheci e percebi o que ele fazia com a linguagem. Ele usava palavras quaisquer, do dia-a-dia, e as destruía. Elas tornavam-se como que moléculas, mudando sem parar, quebrando-se em pedaços o tempo todo, palavras multifacetadas, não uma linguagem morta, mas como uma rocha se desintegrando. Ele estava sempre redefinindo códigos. (BOB WILSON, apud. GALIZIA, 1986, p. 27) Knowles, aos 14 anos de idade, participou de uma cena da peça A Vida e a Época de Joseph Stalin (1973), de Bob Wilson. Depois de colaborações em mais três peças, Wilson desenvolveu uma maneira própria de elaborar seus textos baseando-se nas estruturas matemáticas que tanto apreciava em Knowles. Wilson utiliza o texto como apenas um dos elementos teatrais, divide-o “proporcionalmente entre as sessões de cada peça” (GALIZIA, 1986, p.29). Para Galizia, seria como se Wilson estivesse utilizando a técnica de Knowles de sua própria maneira, em seu próprio sentido geométrico. De maneira diferente, o conteúdo pessoal é apropriado no teatro de Gerald Thomas. Em entrevista a Helio Ponciano, o diretor se refere a uma “metalinguagem” adotada nos espetáculos, que serve para apresentar suas alegorias vinculadas à “realidade dos atores”: 336 É assim que Julian Beck, o fundador do lendário grupo Living Theatre, representou, com câncer terminal, um ator morrendo em All Stange Away e That Time; que Fernanda Montenegro e Fernanda Torres faziam mãe e filha em The Flash and Crash Days; Marília Gabriela, uma apresentadora de TV em Esperando Beckett (2000); Reynaldo Gianecchini, um ator desesperado no hamletiano O Príncipe de Copacabana (2001). Esse procedimento, de certo modo e necessariamente, se amplia em Um Circo de Rins e Fígados. (PONCIANO, 2005, p. 83) Com interesse de “distanciar”, ou melhor, de dificultar o acesso do espectador à ficção, à fábula, Thomas se apropria do conteúdo pessoal destes atores na construção de seus espetáculos, mas também insere na cena o seu próprio conteúdo pessoal. Suas encenações são marcadas por uma narrativa feita na própria voz do diretor, interferindo ou contrastando sobre as imagens cênicas. Silvia Fernandes (1996) comenta a presença do encenador sobre o palco, que se dá em situações específicas sem apresentar possibilidades de alguma personagem em sua ação: “O performer que está em cena é o próprio Gerald Thomas encenador, sem a proteção de nenhuma máscara ficcional” (FERNANDES, 1996, p. 267). O diretor afirmando sua presença não ficcional sobre a cena, como também fez o performer, de forma espontânea ou 337 induzida, por apropriação, marcam a influência de linguagens performáticas na construção da cena contemporânea; apresentando-se como características relevantes do teatro de nosso século. Referências ARNALDO ALCUBILLA, Javier. Yves Klein. Madrid: Editorial Nerea 2000. S.A. AZEVEDO, Sônia Machado. O Papel do Corpo no Corpo do Ator. São Paulo: Perspectiva, 2002. BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989. DUVIGNAUD, Jean. Espetaculo y Sociedad. Del teatro grieco al happening:funcion de lo imaginario en la sociedad. ?: Editorial Tiempo Nuevo S.A., 1970. FERNANDES, Silvia e GUINSBURG, j. Um Encenador de Si Mesmo: Gerald Thomas. São Paulo: Perspectiva, 1996. GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: trabalho de arte total para o teatro americano contemporâneo. São Paulo: Perspectiva, 1986. GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva. 1987. 338 KANTOR, Tadeusz. El Teatro de la Muerte. Buenos Aires: Ediciones de la Flor. 2003. KING, Kenneth. Por um Teatro de Dança Transliteral e Transtécnico. p. 151-159 In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva, 1975. PONCIANO, Helio. O Paradoxo G.E.R.A.L.D. In revista Bravo! n.92, 2005. RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979. ROSENZVAIG, El Teatro de Tadeusz Kantor, el uno y el otro. Buenos Aires: Editorial Leviatan, 1996. SANTAELLA, Lucia. Culturas e Artes do Pós-humano, da Cultura das Mídias à Ciber Cultura. São Paulo: Paulus, 2003a. Catalogo de exposição Metacorpos. São Paulo: Paço das Artes, 2003b. 339 PARTE V A Mulher na História e na Mídia Mulheres do além-mar lusitano e suas estratégias de bem viver. Curitiba (1695-1805) 1 2 Milton STANCZYK FILHO A historiografia há muito tempo vem apontando o papel da mulher no período colonial. Sob os mais diversos aspectos, ampliamse temáticas que buscam representar a vivência feminina. Podem ser observadas, por um lado, olhares que atrelam a mulher à família ou subjugada a figura de um “pater familia”. Por outro, o de demonstrar os caminhos pelos quais a mulher pode ser reconhecida enquanto agente num universo, por excelência, gerido pelo homem. A proposta que norteia este texto, visa contribuir para o debate acerca do papel da mulher, sobretudo aquelas que vieram a residir nas terras do além-mar lusitano, nas franjas do Império, no correr do seiscentos para o setecentos. A localidade analisada é a região da Vila de Curitiba e de seus sertões, mais especificamente entre 1695 e 1805. O estudo terá como foco a trajetória de vida de duas famílias radicadas nesta localidade, atentos, principalmente, ao papel que a matriarca exercerá para a busca e manutenção da honorabilidade do grupo familiar. 1. Este texto é parte de uma discussão integrante à dissertação de mestrado intitulada À luz do cabedal: acumular e transimitir bens nos sertões de Curitiba (1695-1805), defendida em 2005 junto ao programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, e continuada na Pesquisa de Dedicaçao Exclusiva junto ao grupo de pesquisa Política, Poder e Instituições do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO. 2. Docente do Departamento de História - UNICENTRO 343 Neste ponto, vale destacar, sob explicações diferentes, o 3 papel da família e das redes parentais no Brasil colônia. Neste trabalho, entende-se a concepção de família como um arranjo horizontal entre parentes, ou seja cada familia proviene de la unión de otras dos familias, lo cual quiere decir también que proviene de su fragmentación: para que se funde una familia es necesario que dos se vean amputadas de sus miembros (...) Este perpetuo movimiento de vaivén, que desagrega las familias biológicas, transporta sus elementos a distancia y los agrega a otros elementos para formar nuevas famílias, teje redes transversales de alianza en la que los fieles de la iglesia 'horizontal' ven lás líneas de fuerzaz que sirven de base e incluso engendran toda organización social. (LÉVI-STRAUSS, 1988, p.12) Este conceito seria apropriado para fundamentar estudos que focalizam a América portuguesa, pois ao consultarmos o dicionário de Antonio de Moraes Silva, de 1813, encontramos a família definida como “as pessoas, de que se compõe a casa, e mais propriamente as subordinadas aos chefes, ou pais de família. Os parentes e aliados.”(SILVA, 1813, vol.II, 13). Tendo isso em vista, observa-se que a 'família' exerceu importância fundamental no 344 3. Neste ponto tendo a concordar com Ronaldo Vainfas e Sheila de Castro Faria no que diz respeito ao patriarcalismo, quando se estuda o período colonial brasileiro, pois família extensa e patriarcalismo não são sinônimos e nem patriarcalismo e família conjugal se excluem. Se anteriormente estava-se preocupado em analisar o domínio e o prestígio social dos senhores escravistas, ou seja, o poder local, agora os estudos têm apontado para a atuação e a organização dos diversos grupos no conjunto social, tentando entender a lógica de suas condutas. Ver: (VIANNA, 1987), (ALMEIDA, 1987, 53-66), (CORREA, 1994), (VAINFAS, 1998), (FARIA, 1998). funcionamento e na montagem das atividades econômicas, nas relações sociais e políticas dos indivíduos, assim como em suas trajetórias de vida. “Da ou para a família, não necessariamente a consangüínea, que todos os aspectos da vida cotidiana ou pública se originavam ou convergiam.” (FARIA, 1997, p.256). No Antigo Regime, a referência social ao indivíduo era frágil, sendo sua identificação social quase sempre associada ao seu pertencimento a um grupo mais amplo. Nota-se que o termo família aparece no verbete de Moraes Silva, junto a elementos que extrapolavam os limites da consangüinidade, entremeando-se à coabitação e à parentela, incluindo relações rituais e alianças políticas. Diante disso, pode-se inferir que, em muito, a família a que pertencesse o indivíduo determinava sua condição social. Mas, se o escravismo situava dois pólos opostos naquela sociedade, colocando livres e escravos em esferas distintas, esta clivagem jurídica não exauria toda a vasta gama de atores sociais que interagiram no palco da colônia. Estudos vêm mostrando que os mestiços de toda ordem buscavam 'alçar condição', porque entendiam o sistema de classificação que ordenava a posição das pessoas naquela sociedade (LEWCOWICZ, set. 1988/ fev. 1989, p.101-114). A liberdade e a posse de outros homens, conforme Laima Mesgravis, não era suficiente para o exercício do poder ou gozo da estima social. “Para tal era preciso ser 'homem bom'; 'um dos principais da terra'; 'andar na governança'; 'viver à lei da nobreza'; 'tratar-se nobremente'; 'ser 345 limpo de sangue'; 'não padecer de acidentes de mecanismo'.” (MESGRAVIS, 1983, p.799). Como se sabe “homem bom” era uma expressão que refletia uma atitude mental típica do Antigo Regime. Era incapaz de considerar os indivíduos nascidos iguais e portadores dos mesmos direitos. Eram o sangue, a linhagem, a ocupação e os privilégios que estabeleciam as diferenças. “Homem bom” era aquele então, que reunia condições para pertencer a um estrato social distinto o bastante para manifestar a sua opinião e exercer determinados cargos. No Brasil Colônia, associava-se em particular àqueles que podiam participar da “governança” municipal, elegendo e sendo eleito para os cargos públicos que, então, estavam reunidos nas Câmaras, principais instâncias da representação locais da monarquia (VAINFAS, 2000, p.284). Neste ponto, observa-se que a distinção era uma das principais metas que grande parte das famílias almejavam dispor. Mesmo nos mais longínquos rincões da América Lusa, não se pouparam esforços para alçar ou para manter posições dentro da sociedade a fim de gozar de prestígio e distinção social. Entretanto, ser livre não era suficiente para o gozo de reconhecimento. A idéia do 'ser nobre' atuava no sentido de conformar oposições distintas, que acabava criando uma miríade de pequenos traços distintivos entre as pessoas, que eram zelosamente cultivados por quem os conquistava, independendo da maneira pela qual foi conquistado. Afinal estávamos em uma sociedade 346 outros homens e, no mesmo esteio, pelo pertencimento às instâncias que controlariam o ordenamento social. Através da recomposição da história de vida de Maria Maciel Barbosa e Maria Rodrigues, cujas famílias representam os primeiros moradores da vila de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba, é possível observar as relações sociais que suas famílias estabeleceram na localidade e analisar o peso que essas mulheres tiveram no encaminhamento de sua vida e a de seus descendentes, ao longo do século XVIII. Esta breve reconstituição da vida de Maria Rodrigues teve como fonte principal seu Processo de Auto de Contas de 1750-1756 no qual está anexo seu testamento. Esse processo encontra-se no Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixa: Testamentos 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – 1727-1777. Já a vida de Maria Maciel Barbosa foi reconstituída através dos Processos de Auto de Contas de seu filho Antonio Rodrigues Seixas de 1736, com testamento em anexo de 1733. Este processo também se encontra no Arquivo Metropolitano Dom Leopoldo Duarte, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Caixa: Testamentos 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – 1727-1777. Ainda foram acrescidos os assentos de catolicidade (batizado, casamento e óbitos) dos livros da Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, além de informações retiradas do “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná” de Ermelino de Leão. 347 multiracial e desde o primeiro momento, conforme destaca muito bem Gilberto Freyre, os portugueses não tiveram o menor pudor em atuar no sentido de criar uma sociedade mestiça. Vê-se que nobre, no dicionário de Antonio de Moraes Silva, está definido como “conhecido e distinto pela distinção, que a lei lhe dá dos populares, e plebeus, ou mecânicos, e entre os fidalgos por grandes avoengos, ou ilustres méritos.” (SILVA, 1813, vol.II, p.409). Remete, portanto, para a existência de dois tipos de nobreza: uma calcada no sangue, na linhagem, que passava de pai para filho, formada pela alta aristocracia; e outra que estava assentada em serviços prestados à Coroa, fosse pelo bom exercícios de funções públicas ou, particularmente após a expansão marítima, aos feitos prestados à monarquia lusa na própria construção do Império Português. (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2001). Como aponta Maria Beatriz Nizza da Silva em conformidade com o tratadista luso Luís da Silva Pereira Oliveira, uma seria a 'nobreza natural' e a outra a 'nobreza civil ou política'. (SILVA, 2005, p.16). À medida que a nobilitação era um ideal disseminado na sociedade que se organizou na América portuguesa e que no novo mundo haviam brechas para alçá-la, muito dos homens e mulheres que por aqui se radicaram desenvolveram estratégias com vista a conquistar sua própria distinção. Os caminhos mais recorrentes para o enobrecimento apontados pela historiografia, foram percorridos por aqueles que se empenharam em associar-se a grupos de elite, particularmente pela via matrimonial, pela posse da terra e de 348 O fio condutor desta investigação foi à busca de reorganizar suas “estratégias do bem viver”, expressão utilizada para designar um conjunto de atos que compreendem os arranjos matrimoniais, organização parental e formação de 'cabedal'. Mais um reinol em terras além-mar: o núcleo familiar de Maria Maciel Barbosa João Rodrigues Seixas, nasceu no Reino, na pequena vila medieval de Vianna do Castelo, situada à margem da foz do Rio Lima, na região do Alto-Minho. Era filho do Capitão Antonio Rodrigues Seixas e de sua mulher Catharina Martins. A documentação compulsada não nos permite saber se ele veio para os domínios ultramarinos acompanhado de familiares ou não, apenas que ele emigrou muito jovem. Aqui chegando, estabeleceu morada inicialmente em Cananéia, no litoral da capitania de São Vicente. Essa localidade já agrupava população desde o início da chegada dos portugueses na América e era um centro razoavelmente importante no contexto regional. Em Cananéia, segundo a interpretação espanhola, passaria o meridiano de Tordesilhas e, portanto, os portugueses se ocuparam de incentivar fixação populacional bem como de que ela se irradiasse pelo litoral sul, com vistas em garantir sua dominação territorial. Além do mais, o intenso tráfego de navios portugueses, espanhóis e de outras nações européias, particularmente no século 349 XVI, acabou concentrando desde muito cedo nessa região náufragos (o mais famoso dele, o “bacharel de Cananéia”) e pessoas banidas do reino que, interagindo com a população ameríndia, vão produzindo a população mestiça, marca do caiçara paulista. Até onde avançou a investigação, João Rodrigues Seixas ali residiu por aproximadamente 30 anos e nesse período conheceu e contraiu núpcias com Maria Maciel Barbosa. Como tantos outros portugueses, casou-se com moça da terra, e pouco depois esta deu à luz um menino, o primogênito Antonio Rodrigues Seixas, que recebeu o nome do avô paterno. Por algum motivo, talvez o de buscar melhores condições de vida e novas oportunidades, João partiu de Cananéia e rumou com sua família para o sul, transpondo a Serra do Mar e se fixando em área do planalto. Naquela época eram poucos que faziam isso com vistas a fixar-se, até porque eram poucas as vilas estabelecidas no interior da América Portuguesa até meados do século XVII. Estabeleceu morada nos campos de Curitiba por volta de 1689. Vale notar que é possível que ele partilhasse expectativas próprias dos inúmeros reinóis que tentavam a vida em alguma parte dos domínios portugueses além-mar. Vê-se que a presença constante de lusos, não somente na região sul, traz consigo uma gama de valores do Antigo Regime. A este respeito já foi indicado que Os indivíduos que foram para o ultramar levaram consigo uma cultura e uma experiência de vida baseadas na 350 percepção de que o mundo, a “ordem natural das coisas” era hierarquizado; de que as pessoas, por suas “qualidades” naturais e sociais, ocupavam posições distintas e desiguais na sociedade. Na América, assim com em outras partes do Império, esta visão seria reforçada pela idéia de conquista, pelas lutas contra o gentio e pela escravidão. Conquistas e lutas que, feitas em nome del Rey, deveriam ser recompensadas com mercês – títulos, ofícios e terras. Nada mais sonhado pelos “conquistadores” – em sua maioria homens provenientes de uma pequena fidalguia ou mesmo da “ralé” – do que a possibilidade de um alargamento de seu cabedal material, social, político e simbólico. Mais uma vez o Novo Mundo – assim como vários outros territórios e domínios ultramarinos de Portugal – representava para aqueles homens a possibilidade de mudar de “qualidade”, de ingressar na nobreza da terra e, por conseguinte, de “mandar” em outros homens – e mulheres. (FRAGOSO, BICALHO, GOUVÊA, 2001, p.24) João Rodrigues Seixas, como qualquer outro emigrante voluntário que vinha para a América, integrava a gama dos indivíduos que vinham tentar a sorte. No entanto, há indicadores de que sua família de origem pertencesse à pequena e empobrecida 351 fidalguia do Reino, haja vista que seu pai, Antonio Rodrigues Seixas, era Capitão na vila de Vianna do Castelo. Mesmo não sendo possível aferir se esse título referia-se a seu pertencimento ao oficialato das tropas auxiliares ou das tropas pagas, é indicativo que sua família, e ele por extensão, não pertencia à aludida 'ralé lusitana'. A região para a qual ele se dirigiu, os campos de Curitiba, já vinha sendo ocupada desde o início do século XVII, por uma população luso-paulista oriundos de São Vicente, São Paulo de Piratininga, Santos e Cananéia. Os diversos estudos que se dedicaram ao movimento de ocupação do atual Estado do Paraná convergem ao indicar essas vilas e povoados como locais de irradiação da população que se radicou no planalto curitibano (BALHANA, 1969); (NADALIN, 2004); (WACHOWICZ, 2001). Nesse sentido, o deslocamento geográfico de João Rodrigues Seixas não configurava nenhuma exceção no conjunto dos movimentos migratórios que ocorreram no século XVII. É nesse período e em função desses pequenos fluxos migratórios que se constituiu a sociedade nos campos curitibanos, formada originalmente por faiscadores e mineradores de ouro que vieram tentar a sorte no planalto. Visto que o ouro não era mais encontrado nas veias dos rios litorâneos, configurou-se como um contingente populacional diminuto e disperso. Esses habitantes, morando provisoriamente em choças cobertas com folhas de palmeira, “vasculhavam os cascalhos dos riachos à procura de pequenas pepitas de ouro, tão avaramente cobiçadas”. (WACHOWICZ, 2001, p.69). 352 Alguns estudos sugerem, contudo, que por volta de 1639 iniciou-se o povoado de Nossa Senhora da Luz, com vistas à exploração agro-pastoril. Mas era uma região pobre, afastada das atividades econômicas ligadas à exportação, e foi com a agricultura de subsistência que essa gente sobreviveu, com uma condição de vida descrita como sendo “miseráveis e primitivas”. (MACHADO, 1963, 4). Curitiba teve, então, sua população formada por lusos, paulistas e seus descendentes que possuíam alguns escravos, poucos índios e que conviviam com aqueles primeiros povoadores que vieram à cata de ouro e, não o encontrando, se fixaram na região. Prova da sua fixação é a construção de uma capela, provavelmente na década de 1650. Vale dizer que “à época, Curitiba era o extremo meridional da ocupação portuguesa na América”. (PEREIRA, 1993, p.19). João Rodrigues Seixas estabeleceu-se com sua família no povoado de Nossa Senhora da Luz, e aí nasceu sua filha, Isabel Rodrigues. Radicou-se num momento em que os povoadores requeriam de Portugal a institucionalização do povoado. Embora o Pelourinho já estivesse levantado desde 1668, somente vinte e cinco anos depois é que o povoado de Curitiba foi elevado à categoria de vila. Os moradores requeriam a criação das justiças, “paz quietasão e bem comum deste povo, e por ser já oje mui crecido por passarem de noventa homes”. (BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURYTIBA, 1906, p.4). O Capitão-mor de Paranaguá Francisco da 4 Silva Magalhães, sabendo que Gabriel de Lara já havia autorizado 4, “Capitão-mór, ouvidor e alcaide mor da capitania de Nossa Senhora do Rosário de Paranaguá e das quarenta legoas da costa do sul, loco-tenente perpetuo do donatário Marquez de Cascaes” (LEÃO, 1994, 729) 353 esse ato em 1668, concordou e deu ordens para o Capitão-povoador Mateus Leme deferir o pedido. Aos 29 de março de 1693, na pequena capela de Nossa Senhora da Lux e Bom Jesus dos Pinhais, reuniramse os “homens bons” para escolherem seus eleitores. Estes indicaram os membros da câmara municipal, os juízes, o procurador da câmara e o escrivão, organizando assim, politicamente a vila de Curitiba. Dadas essas condições, é possível entrever as possibilidades que surgiam para os indivíduos com a criação de uma vila. Esse momento se configurava como uma ocasião propícia para as pessoas tentarem uma inserção no núcleo de poder da sociedade, já que ela própria estava em processo de redefinição das posições sociais. O reinol João Rodrigues Seixas era aceito e transitava nesse espaço, pois detinha um saber precioso para essa localidade (como para toda a América seiscentista): sabia ler e escrever, ou seja, ele dominava as letras. Possuía assim uma competência que não era tão comum na população das vilas coloniais, visto serem repletas de homens analfabetos (SILVA, 1993). Mais do que isso, a habilidade de ler e escrever estendia-se a seus familiares, pois seu filho primogênito Antonio foi quem redigiu a ata de elevação do povoado de Curitiba à condição de vila. Desde a primeira eleição camarária da nova vila, em 1693, João Rodrigues Seixas foi convocado pelos “seis omens de sam comsiensa (...) Agostinho de Figueiredo, Luiz de Góis, Garsia Rodrigues Velho, João Leme da Silva, Gaspar Carrasco do Reis (e) Paulo da Costa Leme” para ser o primeiro escrivão da 354 Câmara, cargo que exercera até a sua morte. Os ofícios de escrivão, de tabelião, contador, inquiridor, porteiro, carcereiro, integravam a estrutura do oficialato da justiça local. Porém, esses cargos compunham o quadro dos funcionários menores da administração em cujo ápice estavam os juízes e os vereadores (SALGADO, 1985, p.47-72). Deve ser destacado que, aos trabalhos de escrivão, João acumulava as funções de tabelião de notas e escrivão de órfãos, recebendo o ordenado anual de 6$000 réis (LEÃO, 1994, p.996). Vale notar que em Portugal esse cargo parecia ter sido reservado para gente nobre de poucos recursos, ou empobrecidos, pois permitia enriquecimento ora pela remuneração anual recebida, ora pelos ganhos advindo do pagamento dos custos para a elaboração dos diversos tipos de registros, bem como pelo encaminhamento de outros processos ou de inventários. Com base nos estudos de Antonio Manuel Hespanha, atenta-se para a importância dos oficiais de justiça (notários, tabelião e escrivão), não somente pelos rendimentos que eram recebidos, mas pela centralidade dos seus ofícios no conjunto da estrutura administrativa do poder local. Embora menores na hierarquia, eram postos estratégicos, pois esses oficiais detinham em suas mãos os documentos principais da sociedade, visto que: Os documentos escritos eram decisivos para certificar matérias decisivas, desde o estatuto pessoal aos direitos e deveres 355 patrimoniais. As cartas régias de doação (v.g., de capitanias) ou de foral, as concessões de sesmaria, a constituição e tombo dos morgados, as vendas e partilhas de propriedades, os requerimentos de graças régias, a concessão de mercês, autorizações diversas (desde a de desmembrar morgados até à de exercer ofícios civis), processos e decisões judiciais, tudo isto devia constar de documento escrito, arquivado em cartórios que se tornavam os repositórios da memória jurídica, social e política (...) De fato, parece que muitas compras se destinavam justamente à remuneração de favores ou a atos de proteção; com que, além do mais, se recebia em troca a garantia de que os papéis, cômodos ou incômodos, estavam em boas mãos. (HESPANHA, 1994, p.160-230). Dado que a estrutura administrativa da América portuguesa fazia-se nos moldes das existentes no Reino, é possível transpor 5 essas observações para a realidade colonial. Nos domínios americanos, além de serem, em sua maioria, os “homens bons” da vila iletrados, é a partir da instalação da câmara que a sociedade curitibana se vê inserida às justiças, nos trâmites da burocratização da época. Aqui fica o indício de que João Rodrigues Seixas tinha sua importância, pois, pelo próprio fato de ser reinol, trazia consigo 356 5. De fato, o funcionamento administrativo do amplo império português, se fez, com a duplicação e devidas adaptações das instituições portuguesas pelas diversas partes mantidas sob o domínio lusitano. Dentre os estudos que pioneiramente destacaram esse fator de unidade do império português situam-se os de Boxer. Cf. (BOXER, 1969). Particularmente na Segunda Parte, capítulo XII. uma noção de ordenamento jurídico, representação que deveria ser incomum no planalto curitibano, ocupado em grande parte por população nascida na colônia e onde a criação das justiças vai se dar apenas em 1693. Como morou por 30 anos em Cananéia, ponto regionalmente importante nos contatos com o reino e que era vila desde meados do século XVI, fundada por Martin Afonso de Souza, é possível pensar que, mais do que do Reino, sua vivência em Cananéia tenha lhe ensinado os valores da vivência cívica, pois aquela vila, já contava com Senado da câmara desde o século XVI. Some-se a isso o domínio das letras e pode-se ver que ele detinha uma posição privilegiada no conjunto dos homens bons da vila de Curitiba. Mesmo sendo uma das funções menores da administração pública, o ofício de escrivão consistia no posto mais alto de sua categoria. E certamente na trama das relações da 'coisa' pública, seu local social pode sugerir o sentimento de pertencimento ao reino e mais do que isso, confere a João Rodrigues Seixas o trânsito neste espaço social por seu sangue português e por regular em seu ofício os atos sociais. É então no espaço da Câmara Municipal e, sobretudo pelo exercício dos ofícios de escrivão e de tabelião, que podemos tentar recompor traços e analisar aspectos da trajetória de vida de João Rodrigues Seixas. Um primeiro ponto a ser destacado é que ele foi uma pessoa que circulou na administração camarária curitibana 6 desde a sua criação. Em função do cargo que ocupava, ele detinha posição estratégica para observar o jogo social da região do planalto 6. Fonte: Atas da Câmara Municipal de Curitiba (1693-1780). Levantamento realizado no CEDOPE através do projeto: Formação da sociedade paranaense: “população, administração e espaços de sociabilidade)” – módulo “Pelouros e Barretes; juízes e vereadores da Câmara Municipal de Curitiba – século XVIII”. 357 curitibano, tendo acesso a informações e à documentação que selava ou que rompia alianças entre os poderosos da localidade. Mas, sobretudo, muitos elementos para avaliar a quem deveria aliar-se e a quem deveria evitar o estreitamento das relações. Pois é na câmara onde circulam os indivíduos que organizam o espaço público. “Obviamente havia pouca coisa na vida colonial que a câmara não considerasse atribuição sua (...) seria natural que a câmara definisse bem comum como aquilo que beneficiaria os grupos econômicos dominantes aos quais pertenciam os conselheiros”. (LOCKHART; SCHWARTZ, 2002, p.287-288). Sendo que a própria sociedade curitibana esta em formação, é na câmara que ocorre a criação das próprias hierarquias entre os indivíduos, suas necessidades, principalmente aquelas que darão aos sujeitos maior prestígio e maior privilégio. (BICALHO, 2001, p.189-221). É nesse espaço que João Rodrigues Seixas atua desde sua formação em 1693 até a sua morte em 1700. Entretanto, o que se observa é que não seria apenas um espaço que diferenciaria os indivíduos. Mas, sobretudo na instauração da câmara, parece ter sido entre os seus integrantes que ocorrem as alianças que aumentariam os relacionamentos entre os indivíduos, recentemente estabelecidos como da “nobreza da terra” e que tenderiam a organizar suas alianças. Como explicitado anteriormente, a referência social ao indivíduo era frágil, sendo sua identificação social quase sempre associada ao seu pertencimento a um grupo mais amplo, no caso, a 358 família. Sob a égide da economia, convém retratar que na capitania de São Paulo num geral, eram escassos os recursos e a população possuía somente bens e produtos de consumo básicos para a sobrevivência. Era, então, fundamental instituir relações de afinidade para melhor se estabelecer. Segundo Elizabeth Kuznesof, nos séculos XVI e XVII O que era importante para os paulistas era a proximidade do grupo social no qual eles se baseavam para obter ajuda e realizar a troca – o clã familiar. A precária economia de subsistência, a agricultura, apoiava-se e protegia-se através de um sistema de troca de grupo e ajuda mútua. Essas não eram relações de mercado, nem relações baseadas em um sistema de reciprocidade específico, mas sim, um sistema de apoio generalizado para todos os membros do grupo. (KUZNESOF, 1989, p.40). O caminho mais eficaz para suprir essa carência e solidariedade seria, justamente, a instituição do casamento, que pela união de duas famílias permitia a configuração de um relacionamento de proteção mútua. Além disso criava, num certo 9 sentido, uma relação de dependência entre os cônjuges e os membros das duas famílias de origem de ambos. O desejo era que 10 essa aliança não somente garantisse estabilidade às famílias, mas também que mantivesse sua posição e, ou alçasse algum degrau na escala social. Nem sempre as coisas ocorriam a contento, mas 359 naquele contexto, o matrimônio definia em muito a posição de distinção e os ganhos sociais, materiais e simbólicos advindos da escolha correta. A tais interesses eram acompanhados ainda o de adquirir, com o tempo, maior representação social e política na sua localidade. Desse modo, era importante escolher os cônjuges que favorecessem os interesses das famílias de ambos os noivos. O casamento religioso era a condição fundamental para a busca de status, ascensão social e obtenção, em muitos casos, de posições administrativas. Assim, o casamento era não tanto um assunto pessoal quanto era um assunto de família, e isso favorecia a família de muitos modos. (...) Além disso, o casamento de um filho dava a sua família como um todo uma aliança com a família da noiva, acrescida de uma nova unidade produtiva, instalada, em sua maior parte, com o dote da noiva. Inversamente, pelo casamento de uma filha, a família ganhava um novo sócio, que podia colaborar para a expansão do empreendimento familiar. (NAZZARI, 2001, 66). Um primeiro indicador de que o cargo na câmara municipal favoreceria a mobilidade social de uma família pode ser exemplificado com as alianças que João Rodrigues Seixas obteve ao casar seus filhos: Antonio Rodrigues Seixas e Isabel Rodrigues. Ambos fizeram casamentos hipergâmicos, e pode-se aferir que isso 360 decorreu do relacionamento de João Rodrigues Seixas com as pessoas de melhor qualidade na vila de Curitiba, desde o momento em que ela se organizou juridicamente. Ainda, não se pode desdenhar do capital simbólico que ele detinha por ser homem branco e do Reino e até, por que não, de um certo carisma que João detivesse, favorecendo suas relações. O fato é que os matrimônios de seus filhos foram celebrados com pessoas de posição social e econômica superior a dele. Essa é uma das marcas da sociabilidade colonial, que mesmo configurada sob os códigos de uma sociedade estamental, detinha a especificidade de permitir trânsito no interior da 7 hierarquia social. A trajetória de João em Curitiba sugere que ele tenha se valido de um capital simbólico, tendo em vista que não era sesmeiro e nem tinha um grande número de índios administrados. Deixou 8 pouco em bens materiais, mas, ao que tudo indica, legou para a mulher e ao casal de filhos algo precioso nas representações do Antigo Regime: respeito e honorabilidade social, conferidos a ele tanto pela pureza de sangue como por não ter, ao longo da vida, se maculado com ofícios mecânicos. A viúva Maria Maciel Barbosa A historiografia demonstra que, nas sociedades do Antigo 7. Vale retomar a indicação de Fernando Novais quando observou que “a sociedade da Colônia, ao mesmo tempo, estratificava-se de forma estamental e apresentava intensa mobilidade; o que provavelmente, criava uma situação de ambigüidade, pois a junção dessas duas características envolvia, simultaneamente, tendência de aproximação e distanciamento entre as pessoas”. (NOVAIS, 1997, 13-39). 8. Arquivo Público do Paraná – Juízo de Órfãos de Curitiba, 10ª Vara Cível . Caixas 05-01-05 – Processos Gerais Antigos – Processos de Auto de Contas – 1727-1777. 1736 – Auto de Contas de Antonio Rodrigues Seixas.Testamento em anexo de 1733. Caixa PJI-04 – Processos Judiciários Inventários nº 04 - 045 – 1795 – Auto de Inventário de Antonio Rodrigues Seixas. 361 Regime, era muito mais fácil a um viúvo estabelecer novas núpcias do que a uma viúva. No entanto, Maria Maciel Barbosa, a viúva de João Rodrigues Seixas, escapou do destino de tantas outras desamparadas e retomou a vida conjugal após a morte de seu marido. Naquele momento, seus dois filhos já estavam casados e, mesmo sem fontes que forneçam algum indicador a respeito, podemos imaginar que na ausência de seu marido, ela tenha passado a chefiar o domicílio acompanhado de alguns escravos, ou, com maior probabilidade, de alguns “servitos”, pois no início do século XVIII eram mais comuns a escravidão indígena na região do planalto curitibano. Seu segundo marido foi Luiz Rodrigues Velho, irmão do capitão Garcia Rodrigues Velho. Não há documentação que permita identificar a idade em que ela ficou viúva nem com quantos anos ela recasou. No entanto, ela deveria estar entre 35 e 45 anos de idade, à medida que, com seu segundo marido, ela teve mais um filho. Conhecido sertanista da região, Garcia Rodrigues tornou-se detentor de um número significativo de índios administrados nas últimas décadas do século XVII. Isto pode ser observado analisando a presença de grande número de índios de sua propriedade que recebiam o sacramento do batismo. Segundo esses registros, no período de 1688 a 1691, Garcia Rodrigues Velho tinha posse de 17 servitos. Destaca-se que outros notáveis moradores da vila, como Mateus Martins Leme, Manoel Soares, Baltazar Carrasco dos Reis e o 362 próprio João Rodrigues Seixas, também possuíam índios em suas propriedades, num número considerável, porém inferior ao de Garcia Rodrigues Velho. A historiografia tem apontado que o aprisionamento indígena manifestou-se como “elemento básico na formação e reprodução da sociedade colonial e sua manutenção garantiu e legitimou a continuidade de escravização dos povos indígenas”. (ALMEIDA, 1996, p.46-58). Em São Paulo e no Rio de Janeiro no seiscentos, ao menos, a montagem das fortunas das famílias mais poderosas da região dependeu da guerra contra o gentio em prol de conquistas de novos espaços e de mão-de-obra para as atividades agrícolas ou extrativistas que eram desenvolvidas. Desse modo, a posse de indígenas tornou-se um dos mecanismos fundamentais na formação do processo produtivo colonial. (MONTEIRO, 1994). Segundo João Fragoso, o patrimônio agrário carioca – que posteriormente teve nos escravos africanos a mão-de-obra principal – num primeiro momento “constituiu-se e reproduziu-se pela doação de sesmarias, índios e créditos, aos quais [as famílias mais poderosas] tinham acesso exatamente por suas estreitas relações com o poder, o que lhes conferia a possibilidade de ocupar importantes cargos de comando na colônia”. (FRAGOSO, 2000, p.54). Ainda que não conste nenhum registro de batismo cujo proprietário de servitos fosse Luiz Rodrigues Velho, sua ligação com seu irmão Garcia Rodrigues era visível na medida em que obtiveram 363 conjuntamente com seu pai, Domingos Rodrigues da Cunha, uma sesmaria em 1668, uma das doze que foram doadas no século XVII na vila de Curitiba. Assim, neste caso específico, não somente o pai, mas também o irmão de Luiz Rodrigues Velho garantia a viabilidade de uma aliança matrimonial que se apresentava bastante interessante para ambas as famílias. Ainda que fosse escasso o número de mulheres brancas e livres para o casamento nesse período. (VAINFAS, 1997, p.221-273); (SCHWARTZ; LOCKHART, 2002, p.305-316). Maria Maciel Barbosa apresentou-se como uma das possibilidades que trazia benefícios para as duas famílias, já que era branca e tinha sido casada com um reinol. Enquanto a família Rodrigues Velho possuía bens materiais, o grupo dos Rodrigues Seixas possuía o sangue português e os bons relacionamentos na câmara, pois Antonio Rodrigues Seixas assume como escrivão após a 9 morte de seu pai. Tendo em vista que os integrantes desta intrépida família de 10 sertanistas haviam, ao que a documentação demonstra, sido comerciantes de índios e estarem bem estabelecidos na vila, agora não necessitavam de alianças matrimoniais que suprissem carências econômicas. O irmão mais novo dos Rodrigues Velho (ou da Cunha) interveio com uma aliança política vantajosa em que a agregação de novos membros garantisse uma certa proteção e uma melhor inserção social, visto que o aprisionamento indígena estava sendo coibido pelo reino. Como podemos observar nos Provimentos do 9. Vale lembrar que o ofício de escrivães judiciais ou da câmara, poderiam ter nomeação vitalícia e até hereditária. (BICALHO, 2001, 192). 10. Acervo da Catedral Basílica de Curitiba. Livro de Assentos Paroquiais de Batismo, nº1. (1684-1732) 364 Ouvidor Raphael Pires Pardinho para a vila de Curitiba em 1721, no título 72: Proveo que os Juizes e Off.es da Câmera pello q'tóca prohibão que nenhua pessoa entre pelo certão a corre o Gentio pêra os obrigarem a seu serviço, por ser contra as Leis expresas de Sua Magestade, q'Deus G.de, e ainda contra o serviço de Deus, em que muito em carregão suas conciencias. E em nenhù cazo se pod vender ao d.o Gentio e hindios, das campanhas, armas alguas de qual quer gênero que sejão quer offencivas, quer defencivas por ser prohibido pellas Leis do Reyno, e expeciais neste Estado, Subpenna de morte natural e de perdimento de todos os seus bens a metade para cativos (sic) e a outra para quem os acusar, em q'em corre quem as ditas armas vender. Os Juises e Off.es de Justiça que antes nelles serviram proguntarão por este caso como se declara no auto que se fez a dita devasa este anno. (Apud: BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1906, 25). Assim, manter um relacionamento com um membro da câmara favorecia, se é que podemos aferir, num maior contato com a legislação vigente e suscitando as brechas possíveis para que esses sertanistas não sofressem alguns percalços. Podemos transpor o que Hespanha indicou para Portugal sobre a importância das letras que, sobre elas, os desígnios da Coroa deveriam ser colocados em prática na municipalidade, atento que o escrivão detinha em suas mãos os 365 papéis, fossem eles cômodos ou incômodos a determinadas famílias. (HESPANHA, 2001, p.186). Vê-se também que, em 1713, quando já participavam de um mesmo grupo de parentes, Garcia Rodrigues constituiu como seu procurador Antonio Rodrigues Seixas, filho de Maria Maciel Barbosa. Este, em Curitiba, tratava de representá-lo no inventário e herança por testamento de sua primeira esposa, Izabel de Lara. (Apud: BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITYBA, 1924, p.49) Percebem-se, assim, alguns indícios que podem ter determinado a escolha de Antonio nesse processo. Além de implicar uma relação de confiança entre dois envolvidos, ou como sugere Elizabeth Kuznesof, um principio de lealdade pessoal (KUZNESOF, 1989, p.45), verificou-se também pelo lado prático, ou processual, que exigia tal operação. Ou seja, era preciso saber ler e escrever para fazer cumprir o que determinava tal documento. A proximidade entre os membros das famílias, ainda que não demandasse nenhuma consangüinidade direta entre eles, fundamentava-se num relacionamento de colaboração contínua e de troca de favores. Além do mais, vale enfatizar que essa mulher soube muito bem negociar a posição e o poder simbólico que o marido, João Rodrigues Seixas, havia deixado a ela e a seus filhos quando morreu. Na prática, sua herança material foi exígua: poucos escravos e não tinham sesmarias. Mas, no tempo em que exerceu seus cargos na câmara municipal de Curitiba esse homem parece tê-los usado para 366 estrategicamente se inserir no espaço dos “homens bons”. Essa astúcia no jogo social foi, assim, reatualizada pela viúva, que a desdobrou para garantir sua posição social e assegurar uma efetiva mobilidade social para os seus descendentes. O testamento de Maria Rodrigues Como estudo de caso para verificar os desígnios que demarcavam as garantias pautadas no encaminhamento de herança, pode ser analisado o testamento de Maria Rodrigues. Corria o ano de 1750. Mais especificamente dia 12 de outubro, a data escolhida pela portuguesa Maria Rodrigues para fazer seu testamento. Como se encontrava em sua morada, na localidade chamada das Corujas, sertão dos Campos Gerais de 11 Curitiba, e a idade avançada a impedia de ir até o tabelião, Maria solicitou a presença do 'Doutor Coronel' José Serino da Fonseca para que lhe escrevesse seu testamento cerrado, já que ela não possuía domínio sobre as letras. Para dar legalidade às suas últimas vontades, de acordo com a legislação portuguesa vigente no Brasil 12 colônia durante os setecentos (as Ordenações Filipinas de 1603), era necessária a assinatura de cinco pessoas, podendo se incluir ou não o testador ('mesmo que a rogo de outrem'). Essa firma era um dos meios de estabelecer a verdade do que se atestava, razão pela qual 13 deveria ser dada por indivíduos notoriamente idôneos para o Oficial 11. Duas fontes apresentam, aproximadamente, sua idade. De acordo com o assento de falecimento, encontrado no Livro 1 de Óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Lux dos Pinhais de Curitiba, Maria tinha 65 anos. Vale dizer que a data do assento é de 14 de julho de 1756, mas o pároco informa que seu falecimento ocorreu aos 8 de fevereiro de 1756. Contudo, não é precisa essa data. Já no auto de aprovação do testamento, José Serino da Fonseca argumenta ao tabelião Manoel Borges de Sampaio, que a testadora estava 'em saúde perfeita mesmo sendo mulher muito velha'. 12. Especialmente no Título LXXX do Livro 4. 13. Entendendo-se que “a idoneidade das testemunhas é o complexo das qualidades que o direito exige delas, para que entendam as declarações do testador, verifiquem a observância das formalidades exigidas e mereçam fé”. (BEVILÁQUA, 1978, 217). 367 da Justiça, seja na pessoa do juiz ou do tabelião. Naquele ato solene, na casa da testadora, estavam presentes, além de José Serino da Fonseca, Pedro da Silva, Antonio José, Miguel Rodrigues e Francisco Pereira. Pessoas reconhecidas pelo tabelião. Maria, natural do Couto de São João da Foz, Bispado do Porto, havia se casado com o português João da Silva Reis, natural de Lordelo. Esta aliança matrimonial deu-se, como regra do direito português, sob o regime de comunhão de bens ou 'carta a metade', o que significava a junção de todos os bens dos cônjuges quando do enlace matrimonial. De igual modo, também sob o sacramento cristão, sua única filha Josefa da Silva casou-se com o reinol João Pereira Braga. Todo esse núcleo familiar havia emigrado do reino para os Campos Gerais de Curitiba, por volta de 1710, a pedido do 'Sargento-Mor da Praça de Santos' Manuel Gonçalves de Aguiar, tio de João Pereira Braga, para que este pudesse administrar suas fazendas. Como tantos outros portugueses, esta família, composta de pais, filha e genro, fixa-se a terra e, ao que se sabe, nessa região Josefa deu a luz a seis filhos de João: Maria Pereira da Silva Pacheco, João da Silva Reis, Domingos Pereira da Silva, Ana Pereira da Silva e Joana Pereira da Silva. No momento de informar sua vontade quanto à transmissão de seus bens, Maria reiterou sua filha Josefa como sua legítima e universal herdeira, juntamente com apenas dois de seus netos: João da Silva Reis (que levava o nome do avô) e Maria Pereira. De outro lado, é importante destacar que Josefa, como filha única, tornou-se 368 a “herdeira necessária” e seus netos figuraram como legatários da terça parte dos bens da avó, que poderiam ser entregue a quaisquer pessoas, dependendo exclusivamente da vontade da testadora (CÓDIGO PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Titulo LXXXII, p.911). As Ordenações Filipinas dedicavam especial atenção à transmissão de heranças, embora não obrigassem à eleição de um herdeiro, nem à disposição da totalidade da herança (como prescrevia o Direito Romano); (CÓDIGO PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Título LXXX, §1º, p. 900). Estabeleciam distribuições igualitárias, portanto, independente do gênero e idade. Assim, as heranças paterna e materna dividiam-se entre todos os filhos, não havendo privilégios. Logo, Maria Rodrigues seguiu rigorosamente a lei, deixando um terço de sua herança para sua única filha (a herdeira forçada). Vale observar que essa lei permitia aos pais o deserdamento (CÓDIGO PHILIPHINO, 1870, Livro IV, Título LXXXVIII, p.927-934), e nas outras duas partes, em que podia impor suas vontades, ela escolheu apenas dois netos e o restante, legou em obras pias, com missas para a salvação de sua alma. Como no ato de seu testamento encontrava-se viúva, é muito provável que já havia passado a legítima de seu esposo à filha Josefa, uma vez que não há menção no testamento de alguma dívida quanto à legítima paterna. Com efeito, a portuguesa declarou as doações que deveriam ser feitas da terça parte de seus bens: deixava 5$000 réis à Ordem Terceira de São Francisco, outros 5$000 réis à Nossa Senhora da Luz e mais 13$000 réis à Capela de Nossa 369 Senhora da Conceição de Tamanduá. Mandou dizer ainda duas missas de $640 réis cada uma, no altar de São Miguel na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz. Quanto à outra parte destinada aos “herdeiros instituídos”, Maria arbitrou como sucessores dois de seus seis netos: João e Maria, ambos solteiros. Para Maria Pereira a avó deixava a metade do preço da venda de um escravo. Esse legado suscita uma questão: até que ponto o fato de ela ser a primeira na sucessão feminina não lhe teria dado essa vantagem sobre os demais irmãos? É sabido que Maria veio a se casar em 1753, três anos após a escrita do testamento, o que pode demonstrar que a avó pretendia um bom casamento para a neta, provendo-lhe de dote. Já quanto aos bens deixados ao neto. Maria põe uma condição: João deveria se ordenar sacerdote secular. Se isso não viesse a ocorrer, sua mãe receberia as campinas chamadas de João Pereira de Aguiar, com 30 vacas, 10 touros, 10 éguas com seu pastor e 1 negro da nação Guiné (por nome Manoel). Comparativamente, seria um montante de maior valor do que o destinado a sua irmã. No caso do João da Silva, sua escolha sugere que, encontrando-se em idade de preparar-se para a carreira eclesiástica secular, talvez tivesse demonstrado vontade ou disposição para aceitar esse ofício, e a avó providenciou, dotando-o de um patrimônio. O dote clerical fazia parte das exigências para o ingresso na vida religiosa. Como forma de garantia de que suas vontades fossem cumpridas, a portuguesa instituiu dois testamenteiros, ou seja, as 370 pessoas encarregadas de dar execução ao testamento. Em primeiro lugar seu neto João da Silva Reis e em segundo Manoel Correa, que viria a se casar com Ana Pereira da Silva (outra neta de Maria) em 1768. Disposições declaradas, Maria Rodrigues terminou por ditar seu testamento. O 'Coronel' José Serino da Fonseca assinou a rogo, juntamente com as quatro testemunhas. O ato de ditar o testamento estava previsto na lei, mas não era a ação final para lhe conferir legitimidade. Tanto em testamentos redigidos no tabelionato quanto em casa, em ambas as situações sob a presença de testemunhas, impunha-se a necessidade de lavrar a aprovação para 'cerrar' o documento, ou seja, fechá-lo para ser aberto posteriormente. Quando feito no tabelionato, com a presença do testador, o procedimento era cumprido da seguinte forma: o oficial exaure o ato de aprovação, declarando nele que o testador lhe entregou o testamento por ele considerado como bom, firme e valioso, que imediatamente após a ultima palavra comece o instrumento de aprovação que deve ser lido e assinado pelo oficial, pelas testemunhas e pelo testador [ou a rogo de] (...) e finalmente que o testador cerre o testamento após concluir o instrumento de aprovação. (DAUMARD, 1984, p.191). Já os realizados na moradia do testador, ficava a cabo do 371 redator entregá-lo ao tabelião para aprová-lo e cerrá-lo do mesmo modo. O Coronel, agindo em conformidade com a lei, entregou o testamento ao tabelião da vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, Manoel Borges de Sampaio, que reconheceu as últimas vontades de Maria, assim como a idoneidade das testemunhas, e deu validade ao testamento em 15 de abril de 1751, aproximadamente seis meses após ter sido ditado. Maria Rodrigues mostrou-se extremamente previdente quanto à feitura de seu testamento, uma vez que ela veio a falecer 14 somente em 1755. Tal cautela, embora presente em outros indivíduos, não foi a tônica verificada em outros testadores dos sertões de Curitiba durante o século XVIII. Sua intenção ao deixar documentado que o neto receberia terras, animais e escravos caso seguisse os desígnios da avó, foi, provavelmente, uma forma de indicar que ele deteria um certo patrimônio. No entanto, esta antecipação também pode indicar um senso prático: Maria fez seu testamento no momento em que o neto estava se dirigindo para São Paulo para iniciar os estudos que o habilitariam para a carreira eclesiástica. Assim, a precocidade do testamento em relação a sua morte pode ser reflexo de uma personalidade bastante previdente, quanto ao futuro da família. Fato é que, em 1756, quando da abertura do processo de implementação de suas vontades, quem assumiu a função de testamenteiro foi Manoel Correa, o segundo 372 14. É digno de nota que, de acordo com o Livro de Óbitos nº 1 dos Registros Paroquiais constantes do acervo da Catedral Basílica Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba, o assento que apresenta o óbito de Maria está datado de 14 de julho de 1756. Entretanto, o pároco faz uma observação de que o registro não foi feito no mesmo dia do falecimento, já que lhe faltava clareza de informações. O Reverendo propõe então como data do óbito de 8 de fevereiro de 1756. Contudo, o processo de auto de contas foi aberto em agosto de 1755.testador, verifiquem a observância das formalidades exigidas e mereçam fé”. (BEVILÁQUA, 1978, 217). indicado pela testadora, pois nessa época João da Silva Reis encontrava-se estudando na cidade de São Paulo. Diga-se de 15 passagem, para ordenar-se sacerdote secular. Não se tem o inventário da Maria Rodrigues, mas o auto de contas que Manoel Correa apresentou ao juiz de órfãos demonstra que ele deu cabo das vontades de Maria Rodrigues. A herdeira necessária e os herdeiros instituídos receberam o que lhes coube de direito, assim como foram quitadas as despesas com as missas e os legados pios. Considerações Finais Ao conseguirmos pinçar da malha da social as trajetórias de homens e mulheres nos sertões de Curitiba, que conseguiram amealhar ao longo da vida um cabedal, alguns pontos são colocados à reflexão: nos meandros de uma sociedade, à primeira vista hierárquica e ordenada, brechas de mobilidade social e de acúmulo de cabedal estão sempre presentes. De acordo com Giovanni Levi, “o discurso sobre a estratificação social não pode, portanto, ficar limitado às dimensões das propriedades e nos conduz à compreensão de estratégias familiares complexas, sobre as quais funcionavam mecanismos fatais, que filtravam o sucesso e o insucesso, a sobrevivência e o desaparecimento”. (LEVI, 2000, p.96). Como vimos nesses dois estudos de caso, podemos à luz do rol de testamentos, inventários post-mortem e processos de autos de contas, observar que as contradições presentes na sociedade 15. Sabe-se que foi nomeado por provisão de D. Frei Antonio de Madre Deus, em 17 de fevereiro de 1758, coadjutor do vigário de Curitiba, cargo que exerceu até 1767 na capela de Nossa Senhora da Conceição de Tamanduá. (LEÃO, 1994, 998-999). 373 monetarizada apontam para uma economia imperfeita. Ou seja, os mecanismos de acumulação, mesmo no âmbito econômico, estariam mediados pela política, gerando assim diferentes oportunidades entre os indivíduos coloniais. O que se observou nas sociabilidades desenvolvidas pelas mulheres analisadas foi um jogo complexo de equilíbrio, na qual se interpenetravam diferentes estratégias para alçar notoriedade no seio da sociedade. Contudo, deve-se observar que não existiu uma formação social única nos trópicos. É possível depreender o hibridismo existente nos princípios organizadores da sociedade colonial, em que a ênfase para a nobilitação – ser um homem bom – originalmente situada no nascimento, na honra e na etnia coexistia com outra esfera de valores próprios de uma sociedade de classes, pautada no mérito pessoal, na riqueza e na fortuna. As pessoas que conseguiram acumular bens, de forma geral, encontravam sua unidade em alguns aspectos: primeiramente pode-se observar que eram reinóis ou descendentes diretos de portugueses nascidos no reino. Em segundo, que a estratégia mais recorrente para alçar condição, quando esses reinóis chegavam solteiros, foi casar com moças de boas famílias locais o que significava adquirir honorabilidade pelo casamento. E finalmente que, dentre aqueles que deixaram bens, o mais comum era serem proprietários de terras e de homens que necessitavam serem transmitidas às gerações futuras. Ou seja, detinham e transmitiam tanto seu cabedal simbólico quanto patrimonial. 374 Muito embora essa sociedade seja marcada por tendências quanto ao acúmulo e a transmissão patrimonial, tendo como fator principal a rede de relacionamentos e as atitudes tomadas até a hora da morte, os dados apontam que as possibilidades de transitar por entre esferas sociais, são muito díspares. Se, por um lado, o cabedal simbólico tem peso significativo para o enriquecimento familiar, por outro, percebe-se que a vida dos indivíduos era marcada por momentos-chave dentro da teia social. O casamento seria o ato que visava tanto à manutenção da do status quo quanto à busca de alianças que fortaleceriam as redes de parentais. Para além disso, pode-se vislumbrar como pano de fundo da sociedade constituída nos sertões de Curitiba nos setecentos a permanente circulação dos indivíduos entre diferentes esferas da coletividade. Referências ALMEIDA, Ângela Mendes. Notas sobre a família no Brasil. 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As fontes que serão tratadas se referem a pesquisas historiográficas sobre o Brasil colônia, das quais são enfatizadas as relativas aos processos inquisitoriais contra as mulheres, dos quais se projetam as “confissões da carne” e toda uma linguagem 1. Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Barcelona, professora da Universidade Federal do Paraná. 379 explicitadora — ao contrário do estigma forjado — da força e da resistência dessas raparigas e matronas. Os Recolhimentos Delumeau descreve como o discurso teológico de fins do século XVI representava a mulher: Os antigos sábios nos ensinam que todas e quantas vezes o homem fala por muito tempo com uma mulher ele causa sua ruína e se desvia da contemplação das coisas celestes e finalmente cai no inferno. Eis aí o perigo que há em ter demasiado prazer em tagarelar, rir e mexericar com a mulher, seja boa ou seja má. [conclui com o paradoxo do Eclesiástico:]' a iniqüidade do homem é melhor do que a mulher de bem. (DELUMEAU, 1996. p. 328) Por isso, no espaço doméstico, o perigo era principalmente percebido como vindo das mulheres, essas insidiosas conhecedoras do veneno, dos sortilégios, “...da cizânia, e dos desfalecimentos, as doenças inesperadas, os falecimentos sem causa aparente, o senhor encontrado morto uma manhã em seu leito, intumescido, tudo aparecia como provocado pelas artimanhas das mulheres (Duby, 1997, p.88). O risco de desordem emergia silenciosamente no interior do lar, não das mulheres submissas que obedeciam cegamente à dona da casa, mas das bem-nascidas. Por isso, os conventos foram 380 remodelados para elas. Em Portugal e no restante da Europa, os conventos femininos se encontravam em estado de decadência quanto às estruturas físicas e administrativas, crise ampliada com a degenerescência moral. Essas instituições tinham sido difundidas na Europa desde as Cruzadas, quando os senhores se ausentavam de suas propriedades para as campanhas da cruz e desejavam deixar suas mulheres protegidas de assaltos e assédios. Destinadas aos de boas condições econômicas, foram projetadas segundo o sóbrio luxo e o possível conforto medieval para abrigar essas mulheres, muitas vezes acompanhadas por filhos e criados. Terminadas as Cruzadas, como tais espaços cumpriam cada vez mais raramente os seus objetivos iniciais, o rol das "recolhidas" a longo prazo foi ampliado às viúvas e órfãs e aumentou também a população permanente de religiosas. Todavia a manutenção desses grandes edifícios não mais interessava aos senhores que voltaram às propriedades e lá realocavam suas famílias e criadagem. A crise financeira assolou os conventos, repercutindo administrativamente e, por reflexo cumulativo da desorganização, permitiu a difusão de comportamentos considerados imorais. Nesse tempo a ordem de Santa Clara encetou campanha de resgate moral e da religiosidade dessas instituições. As clarissas assumiram velhos mosteiros para implantar disciplina, sobriedade e despojamento material seráficos. Tal iniciativa distribuiu a fama 381 dessa ordem e consolidou seu modelo. Em relação a instituições similares no Brasil, Pauli (1997) e Nóbrega (2000) registraram sobre a evangelização dos Carijós, em Santa Catarina, desde 1538, por seráficos espanhóis. Pauli conta que Cabeza de Vaca, governador do Plata, em viagem litorânea, encontrou os Franciscanos, já em seu terceiro ano de atividades, entre a Ilha de Santa Catarina e Laguna. Neste encontro, Cabeza de Vaca coagiu os frades a que o acompanhassem por terra ao Paraguai. Na estadia temporária em Assunción, construíram um convento com o objetivo de reunir as jovens indígenas e lhes dar instrução, salvaguardando-as da voluptuosidade dos brancos até o casamento. Mesmo na ausência de maiores detalhes sobre as atividades planejadas para as jovens, a instrução foi mencionada, indicando que a proposta incluía transmissão de conhecimento. Jaboatão (In: AZZI, 1992, p.223.) lembra: “Certo é que em 1576, ou já alguns anos antes, havia em Olinda terceiras franciscanas que viviam em recolhimento (primeira casa no Brasil de membros de comunidade religiosa), das quais fazia parte Maria Rosa, que doou em 1585 este recolhimento aos franciscanos para convento”. Rosa que auxiliara os jesuítas nas primeiras décadas da atuação inaciana com os índios. Residia em Olinda, era catequista e conhecedora da língua nativa. Essas qualificações permitiam que intermediasse as confissões dos gentios com os sacerdotes, desempenhando a função de intérprete. Quando o bispo de Olinda proibiu a utilização de intérpretes para este sacramento a senhora 382 construiu um convento e uma igreja, alojando várias órfãs e «recolhidas».(WILLEKE, 1977) Com a chegada dos franciscanos portugueses — em 1585, Rosa agiu para que sua obra fosse promovida à fundação franciscana e abrigasse as clarissas. Ofereceu-a aos frades, que aceitaram, mas condicionando essa aceitação à retirada das recolhidas para outro prédio. A viúva concordou e seu recolhimento foi transformado em Convento N. S. das Neves, casa oficial dos frades menores. A nova construção foi denominado Recolhimento da Conceição servindo como recolhimento e orfanato feminino. A instituição existiu até fins do Século XVIII, amparando meninas pobres e órfãs de toda a região. Este atendimento à orfandade pobre foi exceção, no tocante a este tipo de instituição, pois, de modo geral, tinha-se como clientela jovens e mulheres pagantes. Essa narrativa evidencia que os dois primeiros recolhimentos do País — e a preocupação com a educação/evangelização/preservação feminina — aconteceram no interior da ordem franciscana. Além disso, mostra um trabalho feminino voluntário, ligado à evangelização, e portanto à educação, que apoiava os padres da Companhia, no anonimato. Com isso emerge mais uma interrogação — para o futuro — sobre inúmeros trabalhos anônimos similares, mais limitados, ou até mais abrangentes, realizados mas não escavados. Azzi (1992) registrou dados sobre os recolhimentos do século XVII, sendo eles: o do Desterro na Bahia, o da Ajuda no Rio e o 383 de Santa Teresa em São Paulo. Vainfas (2000) afirma que ainda nesse mesmo século foi fundado o convento de Macaúbas em Minas Gerais. O convento Santa Clara do Desterro, na Bahia, fundado em 1678 era, segundo Ribeiro (2000), uma edificação luxuosa abrigava mundanamente suas recolhidas. Estas, não abdicavam de muitos prazeres, nem mesmo da vaidade pois “vestem por baixo de seus hábitos camisas bordadas (...) calção e meias de seda ligando-as comumente com fivellas de ouro cravadas de diamantes" (RIBEIRO, 2000). Muitas mulheres de posses próprias foram ali internadas por pais, irmãos, filhos e maridos que viam nessa organização uma espécie de prisão mística. Como nesta época o Brasil ainda não possuía bancos, essa função passou a ser desempenhada pelos conventos, diante... ...do acúmulo de dotes e doações que recebiam. Na realidade, as freiras emprestavam dinheiro a juros aos proprietários de terra, aqueles mesmos que as haviam trancafiado nos conventos. Como muitos não conseguiam saldar suas dívidas em função de falências ou problemas no engenho, seus bens, algumas vezes, eram entregues aos conventos como forma de pagamento. Assim, o patrimônio das freiras foi aumentando. No convento do Desterro, na Bahia, elas se revelaram tão boas gestoras que, além de emprestarem dinheiro aos senhores, compravam, vendiam e arrendavam propriedades. (RIBEIRO, 2000, p.88) 384 Quanto à educação formal feminina, o ler e escrever tanto era ensinado no lar como no convento. Vainfas (1997) analisa as recomendações do bispo Azeredo Coutinho de que os recolhimentos auxiliassem a proteger as mulheres dos “defeitos naturais de seu sexo”, pois dizia Coutinho: “...elas nascem com uma propensão violenta de agradar, ao logo se segue o desejo de serem vistas; os homens procuram pelas armas ou letras conduzir-se ao auge da autoridade e da glória, as mulheres procuram o mesmo pelos agrados do espírito e do corpo.” O medievalista Duby narra: A esse grupo de mulheres inquietantes estavam destinadas tarefas específicas, pois era preciso que estivessem ocupadas, sendo a ociosidade considerada particularmente perigosa para esses seres demasiadamente fracos. O ideal era uma divisão equilibrada entre a oração e o trabalho, o trabalho do tecido. No quarto, fiava-se, bordava-se, e quando os poetas do século XI fazem tentativas de dar a palavra às mulheres, compõem canções 'de fiar' (1997, p.90). Essa forma de convento elaborou um imaginário genérico de luxo e boa vida, tornando-se uma espécie de sonho de consumo para as mulheres da época. 385 Confissões da carne Souza (1986; 1997 e 2000), Vainfas (1995; 1997), Pieroni (2000), Mott (1988; 1997), e Trevisan (2000) elegeram os arquivos da Inquisição para responder às suas interrogações historiográficas. De seus relatos inquietantes desprendem-se realidades que denunciam os bas-fonds da vida colonial. Trevisan identificou nos processos inquisitoriais denunciações e confissões de numerosos casos de lesbianismo no Brasil colonial. O autor discorreu sobre a temática homossexualidade, apresentando vários exemplos, como o de Guiomar Pinheira, cujo processo detalhava ser a mesma uma mulata de 38 anos, viúva várias vezes, confessa de ter sido seduzida por Quitéria Seca, quando contava com 18 anos de idade. Quitéria — a sedutora — era esposa do alcaide de Ilhéus. Outra processada, Guiomar Piçarra, quarentona, também era casada e confessou ter mantido “desonesta amizade" com a escrava Mécia. Na ocasião desse relacionamento pecaminoso, Guiomar contava com 12 a 13 anos de idade, e a escrava, com 18. Coagida pelo Tribunal do Santo Ofício a pronunciar pormenorizadamente o pecado cometido, Guiomar revelou, que nessa e noutras ocasiões, "...se ajustaram ambas em pé uma com a outra, com as fraldas afastadas, abraçando-se e combinando e ajuntando suas naturas e vasos dianteiros um com o outro, e assim se deleitavam como homem com mulher" (TREVISAN, 2000, p.142). Apesar de, ou porque pressionada, processada não se lembrava se tinham ou não “cumprido". 386 Da Bahia, Isabel Marques, casada, mameluca filha de um cônego da Sé, revelou aos inquisidores que, aos dez anos de idade, tivera "torpe ajuntamento com a adolescente Catarina Baroa, sem haver entre elas instrumento penetrante" (TREVISAN, 2000, p.142), e que a dita Catarina teria feito o mesmo pecado em mais duas ou três ocasiões, com outras moças menores de dez anos. Destarte, neste ritual perverso de desnudamento das almas e dos desejos, sobressai o caso de Felipa de Souza, freqüentemente convocada a prestar contas de seus prazeres aos seriíssimos senhores inquisidores: ...citada em vários relatórios inquisitoriais que comprovam o diversificado número de suas amantes. Mulher de um pedreiro, Felipa era famosa na Bahia de 1590 porque 'tinha damas' e lhes falava 'requebros e amores e palavras lascivas, melhor ainda do que se fora um rufião à sua barregã'. 'Ela mandava recados com presentes às suas pretendentes, a quem chegava a oferecer dinheiro, disputando-as com seus maridos; afirmava ter 'usado do dito pecado (nefando)' num convento de freiras e de ter tido caso, entre 'muitas mulheres e moças altas e baixas', com Paula Antunes, Maria de Peralta e Paula de Siqueira — algumas das quais foram ouvidas pela Inquisição também por atos de feitiçaria. De Paula de Siqueira, 40 anos e casada, as confissões inquisitoriais da Bahia reportam que, durante dois anos, recebeu de Felipa de Souza 'cartas de amor e requebros', além de muitos 387 presentes, até terem se encontrado e se tornado amantes. Maria Lourenço, também casada e de 40 anos, confessou ter mantido relação com a mesma Felipa, 'porém não houve nenhum instrumento exterior penetrante entre elas mais que somente seus vasos naturais dianteiros (...) ajuntados (...) e assim se estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa de Souza, que de cima estava, cumpriu. (TREVISAN, 2000, p.141) Para Foucault, o ardil da confissão é que a mesma se transforma em hábito, sem que o confesso se dê conta de que é uma injunção de poder que obriga o homem à explicitação de tudo que o constrange. Quando essa prática transpôs a culpa do Tribunal para a penitência religiosa, passou, gradativamente, a todos os espaços das relações sociais. Além disso, Essas “confissões da carne” (Foucault, 1976) se inscrevem no terreno da educação, por motivos diversos, dentre os quais o fato de terem sido contemporâneas do momento de difusão e expansão dos recolhimentos femininos. Divulgado como “pecado nefando” o lesbianismo teve sua negatividade elaborada e enfatizada nos processos inquisitoriais sob o paradigma do castigo exemplar, pesquisado por Foucault em Vigiar e Punir, objetivável por uma dentre as alternativas assentes com anterioridade à sociedade disciplinar: deportação para as 2 colônias, trabalhos forçados, suplício — inclusive em praça pública, ou exposição do delituoso à sociedade para que se envergonhasse do 388 2. Além do degredo constar oficialmente na História 2do Brasil como integrante do projeto de colonização, TREVISAN (2000), VAINFAS(1995;1997) e MOTT(1988; 1997) observaram vários processos inquisitoriais de degredados que repetiam no Brasil as acusações das mesmas culpas pelas quais haviam sido condenados em Portugal. Assim, muitos casos foram objeto da Inquisição, primeiro em Portugal e depois no Brasil. delito. Foi neste tempo que as “instituições austeras” iniciaram lentamente seu processo de organização, alicerce necessário à consolidação da disciplinarização (séculos XVIII e XIX) como dispositivo de saber e poder. Nas práticas penais portuguesas 3 lançava-se mão da tortura — com instrumentos como polé, potro, etc — sempre que os inquisidores não obtinham arrancar confissões 4 dos réus durante os interrogatórios. O tormento dos sentenciados era um procedimento habitual e sua intensidade estava condicionada ao arbítrio dos inquisidores, após o parecer do médico e do cirurgião. Com aplicação do castigo exemplar — para o qual o auto de fé foi instrumento de excelência —, houve a ampliação de demandas por recolhimentos. Castigo público, auto de fé, e toda a teatralidade presente nos ritos possuíam endereço terreno. Os inquisitores Eymerich e Peña já haviam afirmado ser a finalidade última da fogueira, não a de salvação da alma do acusado, mas aterrorizar o povo para a manutenção do bem público. “Confirma-se assim, desde o berço, a vocação inquisitorial para a cena.”(Karnal, 2001) O auto público “nasce de uma imbricação entre o ódio da massa inclinada a pogroms e excitada por pregadores e o poder de morte do Estado” (Novinsky, 1992). Não obstante sentir-se ameaçada, a massa se satisfaz com o espetáculo do sangue, da dor e 3. a polé, forma de tortura, que consistia em atar o réu pelas mãos e levantá-lo até o teto; e o potro, uma espécie de cama na qual o condenado era amarrado pelos braços e pelas pernas, os quais eram apertados por cordas atadas a um torniquete. A polé erguia o prisioneiro até uma roldana fixada no teto, aplicando-lhe um "trato corrido", que consistia em abaixar o réu lentamente, ou um "trato esperto", de acordo com o qual o supliciado era deixado cair bruscamente, sem que partes de seu corpo pudessem tocar o chão. Esse gênero de tortura fazia com que ossos e articulações dos torturados se contraíssem dolorosamente. O potro pressionava violentamente os membros em oito pontos do corpo, a corda ficava presa a uma manivela manipulada segundo a quantidade de voltas a serem aplicadas: ¼, ½ ou um volta inteira". À medida que o torniquete contraía, as coroas rasgavam as carnes e às vezes até quebravam os ossos dos infelizes. (PIERONI, 2000: 74-75) 4. Havia nas dependências do Santo Ofício uma sala destinada a torturas — a casa dos tormentos — onde se encontravam os instrumentos necessários para torturar os prisioneiros. 389 da morte. Por isso, a Inquisição utilizava manequins para manter o caráter público da execução quando a vítima não se encontrava disponível ou já tinha sido executada no calabouço. “Porém, o caráter cênico da Inquisição não se reduz à execução.[...] A cena inquisitorial acompanha todo o processo, desde a chegada dos decretos e do inquisidor até o próprio interrogatório.” (Karnal, 2001) O cênico como utilitário para o convencimento quando falhava a razão e/ou o consenso. Recolhidas as mulheres de família — em que pese serem os claustros sobejamente conhecidos como facilitadores do homossexualismo — afastava-se o risco da difamação. Por outro lado, essas internações provocaram — em todos os cantos suscetíveis aos influxos do Santo Ofício — a criação de ambientes de ensino, para as mulheres, naturalmente priorizando o desenvolvimento das prendas domésticas, mas também promovendo proximidade com a instrução escolar. Foi disseminada, a partir de então, e com timidez e lentidão, a preparação das educadoras, tanto para os próprios lares como para o claustro, e neste caso, de professoras que ensinariam as futuras educadoras. Quanto às pobres, a maioria seguia a vida religiosa e algumas eram preparadas para um exercício profissional dentre dois: magistério — a partir do século XVIII — ou servilismo, isto é, para o trabalho doméstico dos lares alheios. Além dessa questão dos recolhimentos, que transpõem os processos inquisitoriais citados para a esfera da educação, o caso da 390 Felipa de Souza, aquela das “cartas de amor e requebros”, também se oferece ao olhar da educação. Ao irromper o século XX o País se surpreendeu com o índice de 75% de analfabetismo da população brasileira, e de acordo com Moncorvo (1927): “Assignalando o facto, é Veríssimo de Mattos quem comenta: 'Pode-se afirmar que na época da Independência (1822), mais talvez de 95% da população era analphabeta.' ” É possível imaginar o que significava, duzentos anos antes disto, saber ler e escrever. Mais ainda, saber ler e escrever sendo mulher. Felipa era alfabetizada antes da eclosão dos movimentos europeus por universalização do ensino. Quer tenha aprendido em casa ou tenha sido enviada a algum recolhimento, quer tenha sido recolhida por caridade e aprendido as letras por contingência, Felipa possuía o privilégio — raríssimo para a época — do letramento. Em História da sexualidade: a vontade de Saber, Foucault se refere à novidade da sociedade ocidental na modalidade de poder confessional instituído a partir da Reforma e da ContraReforma. Tudo o que se relacionava ao sexo, desde os atos mais corriqueiros e os pensamentos mais recônditos, deveria ser detalhadamente verbalizado, confessado, mas a quem de direito: o ouvinte autorizado. "Sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado de depurar de modo a não mencioná-lo diretamente, o sexo é açambarcado e como que encurralado por um discurso que pretende não lhe permitir obscuridade nem sossego.” (Foucault, 1976, p.23-24) E dessas práticas de colocação do sexo em discurso 391 cujo norte é o de uma incitação à sexualidade, e não de sua proibição, saberes foram edificados em direção às novas ciências. Nesse momento, os prazeres mais singulares eram solicitados a sustentar um discurso que nos séculos seguintes deveria articular-se não mais àquele que fala do pecado e da salvação, da morte e da eternidade, mas o que fala do corpo e da vida — o discurso da ciência. O processo que extrai a verdade do sexo pela confissão e constituiu as ciências sobre o sexo se iniciou com essas práticas inquisitoriais, da articulação entre confissão e exame; Em seguida, ocorre a imbricação entre a etiologia do sexo com a da moralidade, justificando o interrogatório exaustivo e sem conceder o direito a nenhum bloqueio: o dever de confessar o inconfessável. Como a obscuridade do sexo se dá tanto em função do que o indivíduo quer esconder, como do que lhe é desconhecido e, portanto, oculta-se do próprio sujeito a que pertence, primeiro a relação e depois a ciência assumem o poder para elucidar a verdade do sexo, arrancando à força, através da confissão, o ocultado. Finalmente, no século XIX a questão da sexualidade entrará no imperativo de medicalização da confissão: o domínio do sexo transposto de um regime de culpa ou pecado, para o de normal e patológico. A confissão, não mais fixada na religião, mas na ciência, torna-se necessária ao diagnóstico e permite uma descrição metódica e científica das doenças, e de suas relações com as práticas sexuais. A implantação de uma nosofobia impele à confissão: “A verdade cura quando dita a tempo, quando dita a quem é devido e por quem é, ao mesmo tempo, seu detentor e 392 responsável" (Foucault, 1976, p. 66). Através desses atos de ajustamento, no cruzamento da técnica confessional com a discursividade científica, surge a "sexualidade", com uma nosografia específica, e, portando; objeto de terapêutica e normalização. E a tecnologia do discurso que cria e veicula um poder. Historicamente assim constituiu-se uma ciência do sujeito, não sobre a verdade que lhe é pertinente, mas da interpretação que a ciência faz sobre o dito e o não dito. “A causalidade no sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo”(Idem, Ibidem). Visionárias e blasfemas Não obstante o terror carceral, o aprisionamento em Portugal era mais consolador face à proximidade dos familiares e, principalmente, da própria «civilização». Laura de Mello e Souza (1986) lembra da função purgatória que o Brasil ocupava no imaginário europeu do Século XVII: Para o Tribunal da Inquisição, degredar os réus no Brasil significava, proporcionar que terminassem aqui a expiação. Inúmeros sentenciados ao purgatório brasileiro buscavam escapar dessa fatalidade sob diversos argumentos, tais como doenças, vínculos familiares ou ainda dos perigos que este local bárbaro impunha à alma e à honra. Tais alegações, no entendimento de Souza, independente da boa ou má fé dos que os utilizavam, 393 auxiliam a perceber a leitura habitual que o português fazia da principal colônia: “distante vários meses de viagem por mar, separada da Metrópole por uma barreira de riscos, doenças e piratas; insalubre e infestada do vício e dos maus costumes; imprópria, por fim, à vida em família e em nada conforme às regras da religião católica”(SOUZA ,1986 , p.254). A imagem de ambiente rústico levava os sentenciados ao pedido de comutação da pena, como o apresentado por Luzia de Jesus condenada em 1647 a dez anos de degredo para o Brasil. Alegava a solicitante o perigo ...de dar com maiores abusos achando-se no Brasil, donde a gente é mais simples e não poderá haver facilmente quem a atalhe. Sua mãe, a persistentíssima Maria Francisca, insistiu na mesma tecla: 'se a dita filha sua no meio de Portugal e entre tantos homens doutos e pios foi tão enganada do Diabo e caiu em erros tão graves, que será dela em partes aonde com dificuldade se pode achar quem a encaminhe'. Se o Santo Ofício visava reconciliar o réu ao grêmio da Igreja e, desta forma, possibilitar-lhe a salvação, que lhe deixasse a filha cumprir pena em algum lugar do Reino, concluía ela. Mãe e filha.(SOUZA ,1986 , p.254) A travessia do oceano remetia a um medo lógico, pois não poucas naus sucumbiam com as tempestades. Mesmo em tempos de conquistas marítimas, era corrente o entendimento que esse 394 ...elemento hostil, o mar é orlado de recifes inumanos ou de pântanos insalubres e lança nas regiões costeiras um vento que impede as culturas. Mas é igualmente perigoso quando jaz imóvel sem que o menor sopro o ondule. Um mar calmo, 'espesso como um pântano', pode significar a morte para os marítimos bloqueados ao largo, vítimas de uma 'fome voraz' e de uma 'sede ardente' (DELUMEAU,1996:41,42) Esse mar da incerteza poderia significar, ainda mais: a perda da saúde, da honra e dos dotes físicos, diziam ainda as degredadas. Por isso, queixando-se de fraqueza, Luiza de Jesus tentava não fazer a travessia. Dizia que não tinha "forças e nem substância alguma (...) e assim para passar as águas do mar corre muito perigo sua vida e não é possível- chegar lá..."(SOUZA,1986,p.255) Lamuriando-se de dores nas pernas e dificuldade para caminhar, Maria da Cruz não se considerava em estado de atravessar o oceano, e necessitava buscar recursos de cura em Caldas; um parecer médico, do cirurgião da Santa Casa de Misericórdia foi anexado à solicitação: "e está incapaz de poder embarcar para ir ao degredo"(SOUZA,1986,p.256). A mãe de Luzia de Jesus temia que a filha não tivesse iniciativa suficiente para prover com dignidade à própria subsistência: escreveu aos inquisidores dizendo que Luzia estava "na cidade da Bahia passando grandes necessidades e desamparo porque além de não saber trabalhar nem usar de alguma indústria, é 395 doente há muitos anos, e naquela cidade lhe têm carregado muito os achaques" (SOUZA,1986,p.256). O barbarismo gentio e a ausência de infra-estrutura urbana aproximavam o Brasil e Inferno: Esse foi o fundamento do pedido da bígama Ana Lourença, que em 1647, manifestou os motivos para suspensão do degredo em nome do grande perigo que corria sua vida e sua alma. “O primeiro marido acorreu em seu socorro, prometendo ao Santo Ofício voltar a fazer vida com ela: "com o que se fica evitando o estragar-se a dita Ana Lourença por ser moça, e pobre, o que não tem dúvida sucederá se for ao Brasil" (SOUZA,1986,p.254). A selvageria e tudo o que de fantástico e extravagante que a ela foram associados na literatura e nos relatos orais assombravam as degredadas e seus familiares, levando-os à inquietações sobre as condições para uma mulher sozinha no Brasil: o apelo à prostituição, a exposição a criminosos, a piratas e à mendicância: “ O pai da jovem Francisca Cotta, que era capitão do Rei, temia que sua filha aqui ficasse desamparada, “...por ele suplicante não poder ir com ela por ser um cavaleiro pobre e achacoso das pernas, seja causa de maior desonra sua por ser moça e bem parecida " (SOUZA,1986,p.255). Maria da Cruz, aquela cujas pernas não permitiam realizar a travessia, desembarcou em Olinda e permaneceu 7 anos no Nordeste, andando “...pelas casas e ruas recolhendo esmolas para reformar o Recolhimento de Santa Isabel da Hungria, em 396 " Lisboa (Idem,1986,p.254). Novamente aqui o imaginário tecido sobre os recolhimentos como objeto de aspiração feminina, imagem que alentou a fragilidade de tantas marias. Percebe-se, corroborando com a afirmativa foucaultiana, de que é de dentro do poder que o contra-poder se exercita, ou seja, foi o mesmo enclausuramento que sufocou as vozes femininas, que as permitiu bradar, pois a partir do acesso às letras o mundo foi se lhes abrindo gradativamente, não apenas às «bem nascidas», mas às órfãs e camponesas que puderam se tornar professoras e difundir a educação para a mulher, antes privilégio masculino. Referências AZZI, R. A igreja e o menor na história social brasileira. São Paulo : CEHILA, 1992. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia das Letras, 1996. DUBY, G; BARTHÉLEMY, D. A vida privada nas casas aristocráticas da França feudal. In: DUBY, Georges; ARIÈS, Phipippe (org.). 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A mídia publicitária, como objeto simbólico de representação, reflete o pensamento do senso comum e, devido sua presença maciça na vida das pessoas, contribui para a naturalização de crenças e de papéis sociais, de preconceitos e de relações de poder, entre elas as relações de gênero. As relações de gênero são determinadas pela cultura e pela história. Compreendê-las em suas representações e práticas femininas e masculinas exige certa comparação entre os modos como as pessoas enunciam e definem certas práticas sociais. Nessa perspectiva, objetiva-se, neste trabalho, verificar, 1. Pós-doutora pela UFRJ. Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005). É Professora Adjunta da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR). Professora nos cursos de Letras e Comunicação Social, atua nas seguintes linhas de pesquisa: Gênero e Representação; Literatura e Interfaces 401 através da análise da linguagem, como as representações sociais sobre as feminilidades são veiculadas pela mídia publicitária, na qual se verificam as representações discursivas (verbal e nãoverbal) e consideram-se as diferenças de gênero subordinadas aos processos sociais. Nosso interesse em melhor compreender o funcionamento da linguagem publicitária advém do fato de que, ao enunciar o feminino no bojo de uma sociedade marcada pelos valores da cultura patriarcal, produzem-se efeitos de sentidos que, de um lado, possibilitam-nos compreender a construção de alguns discursos fundadores que são discursos (re)produzidos na atualidade; de outro, oferece importantes elementos lingüísticos e discursivos que nos permitem analisar os vestígios que atravessam e constituem os movimentos identitários da mulher. Ao reverberar as condutas e as maneiras de ser/viver desejadas para o público visado, a propaganda pretende conquistar possíveis compradores, mas a adesão somente ocorre se houver, a rigor, uma identificação com os valores culturais trabalhados no interior do anúncio. Há uma incessante busca e uma troca com um interlocutor/consumidor cúmplice, próximo. É, pois, o funcionamento discursivo dessas peças publicitárias e as imagens que dali emergem que nos interessam e, para analisá-las, focalizamos a relação entre discurso e prática identitária. A língua, entendida pelo viés discursivo, não é transparente; tampouco pode ser pensada isoladamente. A idéia de 402 que há, de um lado, uma “evidência”, uma “verdade” e uma “realidade” na produção de sentidos e, de outro, um sujeito fundante, origem daquilo que diz, é uma ilusão, pois a produção de sentidos ocorre em função da articulação entre a língua e o discurso, e dessa relação participam, de forma constitutiva, os elementos sócio-históricos, a exterioridade. Isso torna impossível pensar que os sentidos possam ser literais, ou mesmo que possam ser qualquer um, já que a materialidade só produz sentido(s) porque está enraizada na história e resulta de práticas sociais. São, portanto, as condições de produção que regem a interpretação de qualquer discurso. O sujeito, na esteira do pensamento pecheutiano, é interpelado em sujeito pela ideologia, pelo simbólico na história. Orlandi (2006, p.42) explica essa noção com as seguintes palavras: A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação do sujeito com a formação discursiva que o domina. (...) essa identificação, fundadora da unidade imaginária do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-escritos no discurso do próprio sujeito. Ao considerar o discurso como o lugar de contato entre a língua e a ideologia, uma vez que a materialidade ideológica se 403 concretiza no discurso, Pêcheux (1997) postula que os efeitos de sentido de um discurso dependem da formação ideológica a partir da qual o discurso é produzido. Isso porque o sentido de determinadas palavras depende dessas posições ideológicas, dos lugares sociais dos sujeitos que as empregam. As formações discursivas, por sua vez, “são a projeção, na linguagem, das formações ideológicas”, conforme Orlandi (2006 p17). Pêcheux (1997, p.166) argumenta que as formações discursivas, inscritas em determinadas formações ideológicas, “determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico (...)”. Nesse sentido, ao se considerar as formações discursivas de um discurso, considera-se também que o funcionamento do discurso acontece a partir de certa regularidade, o que torna possível compreender o processo de produção dos sentidos e a sua relação com a ideologia. É necessário, ainda, acrescentar que os discursos, que são produzidos no interior das formações discursivas, estão constantemente dialogando com outros discursos produzidos em outras formações discursivas, fazendo surgir daí o interdiscurso. Isso significa que todo discurso é considerado uma dispersão de textos porque se relaciona com outros discursos e os sentidos procedem dessas relações. É um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo, não possuindo nem início nem ponto final, pois se apóia em já-ditos, que o sustentam, e se remete para outros 404 futuros. A interdiscursividade nos permite verificar, por exemplo, que todo e qualquer discurso sempre nasce de um trabalho sobre outros discursos, frente aos quais é uma resposta direta ou indireta, ou sobre os quais ele 'orquestra' os termos principais, ou cujos argumentos destrói, conforme postulou Pêcheux (1997). Direcionamos nossas análises considerando, igualmente, que o desenvolvimento dos papéis de gênero e a formação de identidades são discursivamente construídos e aprendidos nas relações históricas, sociais e culturais nas quais o sujeito se inscreve desde seu nascimento. É, portanto, na dinâmica das relações sociais que se começa a perceber a diferença entre o feminino e o masculino. A noção de gênero é entendida aqui como relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos (SCOTT, 1995). Foucault (1999) afirma que aquele que lê (uma obra de arte, um livro, um filme, uma fotografia, uma história em quadrinhos) entra na cena e ao construí-la é construído, é subjetivado pelos discursos que no texto operam e, neste mesmo jogo, posicionado como sujeito. A leitura do texto vai constituindo uma leitura dos objetos, dos acontecimentos, das coisas descritas - no roteiro, no cenário, na história –, e está ancorada em discursos tidos como verdadeiros num tempo, num contexto, numa cultura. A linguagem constrói “realidades”, sujeitos, posições a serem ocupadas, instituindo oposições binárias. Essa percepção, por sua vez, está baseada em esquemas 405 que se opõem masculino/feminino, sendo esta oposição homóloga e relacionada a outras: forte/fraco; grande/pequeno; acima/abaixo; dominante/dominado (Bourdieu, 1999). Os discursos que fomentam tais oposições/hierarquizações são arbitrárias e, como já dissemos, historicamente construídas. Entender as relações de gênero como fundadas em discursos que promovem categorizações presentes em toda a ordem social, permite compreender não somente a posição dos homens e das mulheres, em particular, como subordinada, mas também a relação entre sexualidade e poder. Essa rápida e preliminar incursão por alguns conceitoschave da Análise do Discurso nos instiga a questionar o funcionamento discursivo dos anúncios publicitários atentando para a inscrição do dizer em uma dada formação discursiva e os efeitos de sentido a partir do entendimento de que as peças publicitárias, que compõem nosso corpus de análise, podem ser tomadas como um lugar da memória, cuja rede simbólica que as envolve entrelaça e emaranha discursos de determinada época e cultura o que, no nosso entendimento, contribui na formação de identidades. O conceito de gênero foi introduzido por Joan Scott em 1986 para teorizar sobre o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, afastando a questão da naturalização e incorporando a dimensão das relações de poder. O gênero foi, assim, definido como uma categoria relacional de análise das construções culturais que estabelecem relações sociais de dominação de um sexo sobre o outro. 406 Pretendeu-se evidenciar, naquele momento, que as distinções entre o feminino e o masculino eram forjadas pelos indivíduos em sociedade, isto é, pela própria estrutura social; enquanto que o termo sexo remetia à condição biológica, natural do ser humano, o que reforçava a naturalização das desigualdades entre mulheres e homens. Toda a carga histórica de valores e comportamentos diferenciados e discriminatórios entre mulheres e homens fundou o que se convencionou chamar relações de gênero, constituídas e perpetuadas social e economicamente e determinadas pela história e pela cultura. Elas abrangem um “conjunto complexo de relações e processos sociais historicamente variáveis” (FLAX, 1990, p.227). As relações de gênero têm sido relações de dominação, hierarquicamente controladas pelo sexo masculino. Atualmente, o conceito de gênero refere que, como se nasce e se vive em tempos, lugares e circunstâncias específicos, existem muitas e conflitantes formas de definir e viver as feminilidades e as masculinidades. Tais formas são sempre mediadas pelas práticas sociais discursivas que contribuem para a manutenção do status quo por meio de um discurso do senso comum e para a maneira como esse discurso pode ser ideologicamente condicionado por relações de poder, sustentando posições de mando e de subordinação oriundas da imagem de superioridade ou inferioridade como “destino da natureza”. Em todas as sociedades, as relações de dominação têm um 407 caráter cultural e ideológico, particularizando relações de poder assimétricas e duráveis que conduzem a desigualdades, como aquelas baseadas em divisões de classes, etnias e gênero. Tais relações assimétricas estruturam instituições sociais e espaços de interação entre os indivíduos e, segundo Thompson (1990), são estimuladas, estabelecidas e mantidas pelas formas representativas que circulam no meio social, e que são principalmente difundidas pelos meios de comunicação de massas, sendo a expressão do senso comum. As marcas identitárias atribuídas a cada sujeito nas representações da mídia são essenciais na elaboração daquilo que aprendemos e reconhecemos como determinada identidade. Conforme Hall (2003, p.363), “cada fala está situada sobre a base de um sentido já dado”, assim, as representações midiáticas assimilam discursos, preconceitos e estereótipos já circulantes em nossa sociedade. Com base nessa idéia, Knoll (2007) afirma que a mídia capta um universo discursivo, cultural e ideológico em processo contínuo e infindável de significação e ressignificação, entretanto, as representações de gênero na publicidade, freqüentemente, recaem em construções estereotipadas, [...] devido a dois fatores: em primeiro lugar, por ser produto de uma sociedade perpassada por uma estrutura de dominação masculina. Em segundo, por se destinar a um público-alvo, 408 um recorte de pessoas de uma massa, o anúncio se concentra em um perfil de público, um conjunto de características (detectadas por meio de pesquisas) compartilhadas por um grande número de integrantes dessa massa. (KNOLL, 2007, p 96). Ao produzirmos discursos, não somos a fonte deles, porém intermediários que dialogam e polemizam com os outros discursos existentes em nossa sociedade e em nossa cultura. Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto, tenso, uma vez que traz em seu cerne uma resposta, implicando sujeitos. O desenvolvimento dos papéis de gênero e a construção da identidade são socialmente construídos e aprendidos desde o nascimento, com base em relações sociais e culturais que se estabelecem a partir dos primeiros meses de vida, mas é a partir da relações sociais que se começa a perceber a diferença entre o feminino e o masculino. A noção de gênero é entendida aqui como relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos (SCOTT, 1995). Foucault (1999) afirma que aquele que lê (uma obra de arte, um texto publicitário, um filme, uma fotografia, uma história em quadrinhos) entra na cena e ao construí-la é construído, é subjetivado pelos discursos que no texto operam e, neste mesmo jogo, posicionado como sujeito. A leitura do texto vai constituindo uma leitura dos objetos, dos acontecimentos, das coisas descritas - no roteiro, no cenário, na história –, e está 409 ancorada em noções tidas como verdadeiras num tempo, num contexto, numa cultura. A linguagem constrói “realidades”, sujeitos, posições a serem ocupadas, instituindo oposições binárias. Por meio de textos e imagens publicitárias são divulgados e reforçados papéis masculinos e femininos sancionados socialmente, como o do homem trabalhador, chefe e provedor da família, e da mulher como mãe e esposa. Joan Scott afirma que a categoria gênero é relacional. Ou seja, as noções do feminino e do masculino são construídas, em termos recíprocos, por homens e mulheres no interior de relações sociais, culturais e historicamente localizadas. O que aponta para a impossibilidade de se tratar o feminino e o masculino, ou uma cultura das mulheres e uma cultura masculina, isoladamente, pois um só existe e adquire significado através do outro. Nas últimas décadas do século XX, muitos estudiosos passaram a utilizar a publicidade como um documento visando compreender a sociedade que a produziu. O discurso publicitário, também, hierarquiza os grupos sociais. Nos anúncios, vendem-se estilos de vida, sensações, emoções, visões de mundo, relações humanas. Sendo assim, o emprego de anúncios publicitários como fonte de pesquisa é bastante recente e tem sido amplamente empregado nos estudos de gênero para perceber as representações acerca do corpo e dos papéis masculinos e femininos sancionados socialmente. As diferenças biológicas entre o corpo masculino e o 410 feminino são construídas como justificativas naturais para as diferenças sociais entre os gêneros. Pierre Bourdieu (1999) aponta que a definição social dos órgãos sexuais é produto não do registro de propriedades naturais expostas à percepção, mas do processo de acentuação de certas diferenças e obscurecimento de semelhanças. Assim, legitima-se uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica, a qual, também está disposta conforme uma construção social naturalizada. Partimos do princípio de que os textos publicitários constituem-se numa unidade de significação que somente podem ser analisados e interpretados se for considerada a natureza sincrética desse tipo de texto em relação à situação discursiva e ao conjunto de discursos possíveis que fazem emergirem as significações, a partir de mitos, crenças e ideologias que povoavam o imaginário coletivo da época em que tais discursos circularam. A publicidade sempre se apresentou como espaço onde trafegam discursos que sedimentam valores e ideologias de determinada época. Assim, por ser um campo fértil em que são cultivadas as representações que os homens devem construir sobre o mundo, o discurso publicitário dialoga com as representações que se estabelecem de acordo com o modo de significação da ideologia da época, sobretudo a que reproduz os valores burgueses, estabelecendo sua legitimidade de publicização e fixando certos padrões de pensamento e comportamento. 411 REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FLAX, J. (1990) Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org.). Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG; Brasília, DF: Representação da UNESCO no Brasil; 2003. KNOLL, G. F. Relações de gênero na publicidade: palavras e imagens constituindo identidades. Dissertação de Mestrado. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2007. ORLANDI, Eni. Análise de Discurso. In: ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES, Susy (org.). Introdução às ciências da Linguagem – Discurso e textualidade. Pontes, 2006: Campinas p.33-80. PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. A propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e perspectivas. In GADET, F. & HAK, T. (org.) Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1997. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995. THOMPSON, J. B. (1990) Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. 412 PARTE VI Mídia e Linguagem Jornalismo ambiental nas capas de Veja: uma analise discursiva Ariane Carla PEREIRA 1 Reviravolta climática. Aquecimento global. Temperaturas em elevação. Desmatamento. Geleiras derretendo. O alarme de que nas questões ambientais estamos – nós, seres humanos – conduzindo o planeta de maneira torta soou. E, depois da “Verdade 2 Inconveniente”, de Al Gore, o clima, o meio-ambiente e a ecologia viraram – a partir da segunda metade de 2006 e continuam até os dias de hoje – assuntos cativos na imprensa mundial e brasileira. Jornais, revistas, TVs, emissoras de rádio, sites de conteúdo não passaram sem registrar o medo de que seja tarde demais para o planeta; os vilões do aquecimento global e as saídas possíveis para esse lugar chamado Terra. Inevitável pauta. Inevitável? Sim. Esta é/será, provavelmente, a resposta dos leitores de Veja, publicação semanal da Editora Abril, revista de maior circulação no país. Porém, esta afirmação, que também é minha enquanto leitora, inicialmente, é baseada apenas na percepção visual, nos registros da memória. Percepção e memória que, 1. Jornalista, mestre em Letras, professora efetiva do Departamento de Comunicação Social da UNICENTRO [email protected] 2. “Gore se transformou num pregador incansável em favor da salvação do planeta por meio de investimentos em novas tecnologias e modelos de negócios. Nos últimos anos, ele já fez mais de 1 000 palestras em empresas e universidades, discursando sobre as conseqüências das mudanças climáticas e o que pode ser feito para combatê-las. Há três semanas, estreou nos cinemas americanos o documentário Aquecimento Global, uma Verdade Inconveniente” - Veja, 21/06/2006 415 também, permitiriam afirmar que as matérias/reportagens publicadas por Veja sobre o tema apresentam uma visão pessimista em relação ao aquecimento global e à possibilidade de reverter o “caos” ambiental que vivemos contemporaneamente. Percepções de leitora da revista que levaram a inquietações na analista do discurso. Como Veja abordava a temática antes de 2006? A “visão” da revista acerca dos problemas ambientais permaneceu a mesma após a “Verdade Inconveniente” ou passou por transformações? Ao longo dos últimos anos, entre 2006 e 2008, a revista mantém o mesmo discurso, o do “caos ambiental”? Tais questionamentos orientaram este trabalho de pesquisa. Assim, num primeiro momento, foram “dissecados” os exemplares de Veja publicados entre janeiro de 2003 e dezembro de 2005 e no período compreendido entre janeiro de 2006 e dezembro de 2008 tendo como objetivo levantar as reportagens sobre o tema com chamada de capa – não levando em consideração se principal ou secundária.. Observação que apontou que nos últimos três anos (2006, 2007 e 2008), o aquecimento global e/ou o efeito estufa estiveram presentes na capa de Veja cinco vezes, nas edições de: Ÿ21 de junho de 2006: Aquecimento Global: Os sinais do apocalipse – O degelo dos pólos nunca foi tão violento – Ciclones agora açoitam o Brasil – Os desertos avançam mais rapidamente – O nível dos oceanos ameaça cidades (chamada principal); Ÿ30 de dezembro de 2006: Alerta Global – 7 megassoluções para o 416 megaproblema ambiental (chamada principal); Ÿ11 de abril de 2007: O alerta dos pólos – Veja foi ao Artico e à Antártica e encontrou cientistas alarmados com o ritmo do derretimento do gelo polar (chamada principal); Ÿ24 de outubro de 2007: Salvar a Terra: como essa idéia triunfou - Militância ecológica: dos “verdes” aos radicais do “planeta sem gente” - O que pensam os poucos (e honestos) cientistas céticos (chamada principal); Ÿ07 de maio de 2008: Em 50 perguntas e respostas, tudo sobre o aquecimento global (chamada secundária). Nos três anos imediatamente anteriores (2005, 2004 e 2003), o assunto meio ambiente foi destaque em apenas uma capa da revista: Ÿ12 de outubro de 2005: A terra no limite – Já estamos arrancando do planeta mais do que ele pode dar – O contra-ataque da natureza: novos vírus e epidemias – O ciclo vital da floresta amazônica começa a se romper (chamada principal). Esse levantamento quantitativo inicial permite que seja satisfeita uma das inquietações primeiras. A temática ambiental passou a figurar nas capas de Veja – ou seja, ganhou destaque entre as tantas outras editoriais da revista - a partir de meados desta década. Assim, terminado este “situar” do corpus, convido você, leitor, a percorrer a trilha teórica e, concomitantemente – já que a Análise do Discurso é feita de batimentos teoria-análise – a se 417 aventurar pela vereda da análise. Um dos conceitos chave da Análise do Discurso de linha francesa é o referente às Formações Imaginárias que, segundo Pêcheux, não são os sujeitos físicos, mas as imagens que o locutor/enunciador e o interlocutor formam de si, do outro e, também, do que estão falando: O que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si a ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. Se assim ocorre, existem nos mecanismos de qualquer formação social regras de projeção, que estabelecem as relações entre as situações (objetivamente definíveis) e as posições (representações dessas situações). (PECHEUX, 2001, p.82). As formações imaginárias podem ser evidenciadas, de acordo com a proposta pecheuxtiana, a partir de quatro questões – duas referentes às imagens de A (o sujeito produtor do discurso) e duas referentes às imagens de B (o sujeito receptor desse mesmo discurso): IA(A) (imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A): “Quem sou eu para eu lhe falar assim?” IA(B) (imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A): “Quem é ele para que eu lhe fale assim?” 418 IB(B) (imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B): “Quem sou eu para que ele me fale assim?” IB(A) (imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B): “Quem é ele para que me fale assim?” (PECHEUX, 2001, p.83) Assim, as posições sociais ocupadas pelo sujeito produtor do discurso e pelo sujeito receptor desse mesmo discurso são constitutivas do dizer. Afinal, são “essas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições do sujeito no discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição” (ORLANDI, 2003, p.40). Esse conceito de formações imaginárias foi desenvolvido por Michel Pêcheux a partir do conceito lacaniano de imaginário. Dessa maneira, as formações imaginárias sempre são resultado, também, de processos discursivos anteriores e, assim, se manifestam, discursivamente, através das relações de força, de sentido e da antecipação. Esse último mecanismo trata da capacidade do locutor se colocar no lugar do outro para, assim, poder dizer “de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte” (ORLANDI, 2003, p.39). Ou seja, o sujeito recorre à antecipação para estabelecer suas estratégias discursivas. Dessa maneira, se antecipar significa, segundo Pêcheux, dirigir o processo argumentativo: 419 A antecipação de B por A depende da “distância que A supõe entre A e B: encontramse assim formalmente diferenciados os discursos em que se trata para o orador de transformar o ouvinte (tentativa de persuasão, por exemplo) e aqueles em que o orador e seu ouvinte se identificam fenômeno de cumplicidade cultural, “piscar de olhos” manifestando acordo etc.) (PECHEUX, 2001, p.85, grifos do autor) Para a AD, o lugar de onde fala o sujeito é constitutivo de seu dizer. Assim, essas posições determinam as relações de força de um discurso. “Como nossa sociedade é constituída de relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na 'comunicação'” (ORLANDI, 2003, p.40). Já a relação de sentidos pressupõe que um discurso sempre aponta para outros – já-ditos ou ainda por dizer. Nas palavras de Orlandi, “um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 2003, p.39). Assim, segundo a AD, todo o discurso é um jogo de imagens: dos dizeres com os ditos que os sustentam; dos sujeitos com os lugares por eles ocupados na sociedade; e dos sujeitos (dos discursos) com eles mesmos. Jogo esse presente, como não poderia deixar de ser, no discurso “pró-verde” de Veja que vai do alarmismo, do “caos ambiental”, do “apocalispe já”, à esperança de que “a 420 salvação do planeta triunfará”. Assim, os gestos de leitura do corpus apontam para as seguintes imagens: IB(B) (“quem sou eu para que ele me fale assim?”) = Imagem do lugar do leitor da revista Veja (para os próprios leitores da publicação) = Brasileiro(s) preocupado(s) em estar bem informado(s) e não apenas isso, leitor(es) que busca(m) informação acompanhada de análise e, também, opinião sobre assuntos relevantes, que repercutam na própria vida, na família, nos negócios, no Brasil e no mundo. E se .a questão ambiental preocupa, contemporaneamente, ao mundo, também o(s) interessa. IB(A) (“quem é ele para que me fale assim?”) = Imagem do lugar da revista Veja (para quem se coloca como leitor da publicação) = Veja é uma revista publicada pela Editora Abril há 40 anos e que, semana a semana, mostra responsabilidade em suas matérias e que, através do jornalismo investigativo e isento que brada exercer, conquistou a credibilidade dos leitores, como eu, se consolidando como a revista semanal de informação mais lida no país. Dessa maneira, eu, leitor, a autorizo a me informar nas questões políticas, econômicas e, também, a me alertar sobre o “caos climático”. IB(B) e IB(A) possibilitam que a revista ocupe o lugar/posição que a publicação imagina ter e que constituem seu 421 dizer. Discurso esse mais forte (relação de forças) por ser digno de credibilidade , por ter conquistado a preferência dos leitores, por estes recorrerem a ela quando querem informação objetiva e análise isenta. E, por saber disso, que é tomada como “voz da verdade” pelos leitores, Veja busca, incessantemente, se “antecipar” e publicar assuntos de interesse primeiro dos brasileiros, ou melhor, daqueles que assinam a publicação ou compram as edições nas bancas. Assim, a partir de 2006, inevitavelmente, o aquecimento global está em pauta pelo tema estar no centro de todas as discussões midiáticas e/ou cotidianas. Por isso, os sentidos dos discursos de Veja (relação de sentidos), nos últimos três anos, apontam para a onda verde de dizeres já proferidos ou ainda por dizer depois do alerta de Uma verdade inconveniente, documentário do ex-vice-presidente norte-americano Al Gore. Porém, mantendo a proposta da revista de antecipar os assuntos, as pautas, as discussões nacionais e mundiais, o efeito estufa e o aquecimento global já estavam nas páginas da publicação e com chamada de capa (já que são essas as reportagens que este estudo se propõe analisar) desde o ano anterior, 2005. Antecipação essa que a própria revista faz questão de ressaltar em suas páginas, como na edição de 12 de outubro de 2005 que traz como chamada de capa “A Terra no limite”, cujo texto da reportagem reafirma esse “espírito de vanguarda informativa” de Veja aos seus próprios olhos: 422 A reportagem "A cegueira das civilizações" (7 de setembro) discutiu o risco de a humanidade estar repetindo o erro de sociedades do passado que entraram em colapso porque não evitaram a destruição ambiental causada por elas próprias. Em "Seis provas do aquecimento global" (21 de setembro), VEJA demonstrou que a mudança climática da Terra, acelerada pelo homem, é um fenômeno real e que seus efeitos não podem mais ser ignorados. E hora de rever a forma como os recursos naturais são explorados. (Veja, 12/10/2005) Dessa forma, voltando às imagens presentes nos discursos de acordo com Pêcheux, a análise dos textos publicados com chamada – principal ou secundária – de capa (listagem completa acima) sobre o tema meio ambiente pela revista Veja nas edições de 2006, 2007 e 2008 apontam para as seguintes formações imaginárias: IA(A) (“quem sou eu para falar assim?”) = Imagem do lugar da revista Veja (para os repórteres, editores, colunistas da própria revista Veja) = A luz vermelha do aquecimento global e suas conseqüências acendeu na redação de Veja e nós, que fazemos a revista, temos a obrigação de fazer a nossa parte que é alertar você que, como nós (e por nós), é bem informado, assume as próprias responsabilidades, tem visão de curto, médio e longo prazo. (Aqui, cabe ressaltar que Veja é um veículo jornalístico que segue os preceitos da imparcialidade, neutralidade e objetividade. Assim, seus textos são em terceira pessoa, mostram os “dois lados” como 423 maneira de se mostrar isento. Isso significa que esse recado, o de que tem a obrigação de informar, não é dado de maneira direta: “atenção amigo leitor” ou “estamos preocupados, portanto, há motivo para que você se preocupe também”, e sim a partir da escolha dos temas abordados, da recorrência destes e pela maneira/pelo tom com que as informações são passadas pelas reportagens que é de alarme, de urgência.) IA(B) (quem sou eu para lhe falar assim?”) = Imagem do lugar dos leitores da revista (para os repórteres, editores, colaboradores, ou seja, para a revista Veja) = Veja é a revista de maior circulação no país, sucesso de vendas alcançado graças ao trabalho ético, isento, investigativo. Fatores que são os responsáveis pela conquista da credibilidade que a publicação goza. E se o discurso de Veja é o discurso da verdade mais uma vez nossa palavra deve ser tomada como realista. Isto significa que se você, leitor, adquiriu a revista é porque confia na publicação. Portanto, acredite: o planeta passa por um momento de caos ambiental provocado pelo próprio homem, reverter o quadro é impossível, mas temos o dever de agir para que a situação não se agrave ainda mais. As imagens que a revista forma dela mesma e de seus leitores, em relação ao “caos ambiental”, ou melhor, do que a publicação imagina que seus leitores esperam dela, se mesclam, mesmo se confudem. Assim, os exemplos abaixo são ilustrativos de 424 IA(B) mas, ao mesmo tempo, possibilitam formar IA(A): 1) “Aquecimento Global – Os sinais do apocalipse” - Veja, 21/06/2006 2) “Já começou a catástrofe causada pelo aquecimento global, que se esperava para daqui a trinta ou quarenta anos. A ciência não sabe como reverter seus efeitos. A saída para a geração que quase destruiu a espaçonave Terra é adaptar-se a furacões, secas, inundações e incêndios florestais” - Veja, 21/06/2006 3) “O entendimento sobre o fato de que 'somos parte do equilíbrio natural' pode nos ser útil diante de uma catástrofe global iminente provocada pelo aquecimento global” - Veja, 21/06/2006 4) “Como uma praga apocalíptica, as mudanças climáticas já semeiam furacões, incêndios florestais, enchentes e secas com tal intensidade que ninguém mais pode se considerar a salvo de ser diretamente atingido por suas conseqüências” - Veja, 21/06/2006 5) “Até os mais céticos comungam agora da idéia apavorante de que a crise ambiental é real e seus efeitos, imediatos. O que divide os especialistas não é mais se o aquecimento global se abaterá sobre a natureza daqui a vinte ou trinta anos, mas como se pode escapar da armadilha que criamos para nós mesmos nesta esfera azul, pálida e frágil, que ocupa a terceira órbita em torno do Sol – a única, em todo 425 o sistema, que fornece luz e calor nas proporções corretas para a manutenção da vida baseada no carbono, ou seja, nós, os bichos e as plantas” - Veja, 21/06/2006 6) “Irreversível? Muitos cientistas começam a acreditar que as mudanças climáticas chegaram a um ponto de não-retorno” - Veja, 21/06/2006 7) “O impacto do aquecimento global pode ser percebido em toda parte, mas não há nada mais explícito que a redução das geleiras e do Artico. Praticamente todos os glaciares da Terra estão encolhendo” - Veja, 21/06/2006 8) “Até os ecocéticos aceitam agora a idéia assustadora de que o tempo disponível para evitar a catástrofe global está perigosamente curto. Não há mesmo como ignorar o problema. Como uma praga apocalíptica, as mudanças climáticas já afetam o cotidiano de bilhões de pessoas de forma impossível de ser ignorada” - Veja, 30/12/2006 9) “O que se ouve nos pólos agora é, infelizmente, um grito agônico” - Veja, 11/04/2007 10) “O desastre já começou” - Veja, 11/04/2007 11) “Dela (a hidróloga alemã Julia Boike, do Instituto Alfred Wegener para Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha) se ouve uma 426 confissão alarmante: 'Há tantas transformações ocorrendo ao mesmo tempo no Artico que nós, cientistas, mal temos tempo de registrar e estudar'" – Veja, 11/04/2007 12) “O planeta tem pressa. Até mesmo os mais incrédulos já concordam: a temperatura da Terra está subindo e a maior parte do problema é provocada por ações do homem” - Veja, 07/05/2008 13) “Alguns limites já foram até ultrapassados. Não se pode esperar mais cinco ou dez anos para começar a agir vigorosamente” - Veja, 07/05/2008 14) “E preciso agir agora” - Veja, 07/05/2008 O caráter de urgência é recorrente, bem como o tom alarmista de que este é um momento de caos ambiental que deverá se prolongar por toda a existência humana já que reverter o efeito estufa e quadro atual de aquecimento global, “mesmo para os cientistas mais céticos”, é improvável. Discurso este que teve início ainda em 2005, na edição de 12 de outubro, como já dito acima, quando a revista teve como manchete principal: “A Terra no limite!”. Esta “antecipação” da agenda setting, ou seja das discussões colocadas em pauta pela imprensa e que continuam e ganham corpo nos debates cotidianos, evidencia a imagem que Veja faz de si – a de revista preocupada com os problemas contemporâneos, de publicação com “espírito de vanguarda 427 informativa”. Assim, as imagens presentes nas reportagens publicadas entre janeiro de 2006 e dezembro de 2009 são reforçadas pelos exemplos abaixo desta edição de 2005 que teve o meio ambiente como capa: A) “Wilson está entre os cientistas de vulto que clamam insistentemente pela atenção da humanidade para o perigo real e cada vez mais imediato para a sobrevivência de nós mesmos, que podemos ser arrastados num paroxismo de autodestruição” - Veja, 12/10/2005 B) “os efeitos incontornáveis do aquecimento global podem ser amenizados, na melhor das hipóteses, ou agravados em proporções dantescas, na pior” - Veja, 12/10/2005 C) “A vida começou na Terra há cerca de 3,5 bilhões de anos e ainda há 6 bilhões pela frente antes que o sol incinere a Terra. Cerca de 60 bilhões de seres humanos já viveram antes de nós. Seria demais deixar um desaparecimento catastrófico acontecer justo no nosso turno” - Veja, 12/10/2005 D) “Perigo real e imeditato – Para onde vamos com nossas agressões ao planeta? O pessimismo da resposta varia, mas há um consenso: a hora de agir é já” - Veja, 12/10/2005 428 Os dois últimos exemplos acima, A e B, bem como os de número 13 e 14 pedem/conclamam atitudes verdes, em prol do planeta. Porém, mesmo nesses casos e até nos que tem, aparentemente, tom de esperança – como a chamada de capa “ Salvar a Terra: como essa idéia triunfou – Militância ecológica: dos 'verdes' aos radicais do 'planeta sem gente', de 24 de outubro de 2007 – o que prevalece, na verdade, mais uma vez, é a desesperança, o caos climático e seus efeitos irremediáveis. E como se Veja dissesse a seus leitores: “Façam! E preciso fazer! E dever de todo cidadão, principalmente dos vanguardistas e conscientes leitores de Veja. Porém, nosso esforço será em vão. Já é tarde demais para a Terra, já não há mais tempo para os seres humanos”. Assim, a mesma reportagem que apresenta a preocupação dos cidadãos em reverter o efeito estufa e o aquecimento global – “a realidade do aquecimento global criou uma preocupação com o ambiente como nunca se viu: todo mundo quer fazer sua parte para salvar o planeta” – Veja, 24/10/2007 – , questiona as conseqüências destes... Em que planeta vivemos? Se for no planeta Al Gore, estamos em apuros. Um brasileiro que nasça hoje chegará à idade adulta em um mundo hostil e diferente, no qual restarão raros ursos-polares fora do zoológico e se poderá navegar pelas ruas do Recife, submersas pela elevação do nível do mar. Seus netos viverão num ambiente pestilento, com 429 surtos de malária, dengue e febre amarela decorrentes do clima mais quente. Na Amazônia, com temperaturas 8 graus mais altas que as atuais, a floresta se transformaria em cerrado e estaria sujeita a incêndios de dimensões bíblicas. O que se chama aqui de planeta Al Gore é aquele que o político americano descreveu em seu documentário U m a Ve r d a d e I n c o n v e n i e n t e , c u j a dramaticidade lhe rendeu dois dos prêmios mais cobiçados que existem. O primeiro foi o Oscar, entregue em fevereiro. O segundo é o Nobel da Paz de 2007, que ele receberá no dia 10 de dezembro em Oslo, ao lado do indiano Rajendra Pachauri, presidente do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC). Mas será que a Terra só tem como futuro se transformar no planeta Al Gore? Talvez não. - Veja 24/10/2007 ...e também discursiviza a “falta de coração” dos cientistas ditos “céticos” que mostram-se contrários às hipóteses do IPCC e de Al Gore: os ursos-polares estão realmente ameaçados. Um estudo prevê que, devido à retração da camada gelada do Artico, a população desses animais magníficos estará reduzida a um terço da atual em 2050. O dar de ombros de alguns céticos, sob o argumento de que a extinção de espécies faz parte do ciclo natural da 430 natureza, só nos enche de horror, Veja 24/10/2007. Assim, nas páginas de Veja, ao longo do período compreendido pelos anos 2003-2008, fica evidenciado o binômio esperança-descrença. Outros exemplos discursivos que apontam nessa direção são os relacionados a possibilidade de reversão “do caos ambiental” a partir de ações da sociedade civil. Ou seja, a publicação, ao mesmo tempo, convida o leitor a agir (convite este acompanhado do engrandecimento de quem busca transformar a realidade climática contemporânea e não esperar)... a) “A realidade do aquecimento global criou uma preocupação com o ambiente como nunca se viu: todo mundo quer fazer sua parte para salvar o planeta” - Veja, 24/10/2007 b) “Hoje é cada vez maior o número de pessoas dispostas a empreender ações individuais de combate ao aquecimento global” – Veja, 11/04/2007 ...e desacredita as ações individuais: c) “Campanhas de ONGs e ambientalistas propõem que cada pessoa faça sua parte, como deixar o carro na garagem alguns dias por semana. São atitudes louváveis, mas de pouco efeito prático” – Veja, 21/06/2006 d) “Ações individuais em favor da preservação ambiental têm impacto praticamente nulo nos problemas que pretendem 431 combater, sobretudo no caso do aumento do efeito estufa. Em geral, sua principal utilidade é tranqüilizar a consciência de quem as pratica. De qualquer maneira, a disseminação do engajamento verde serve para pressionar os governos a tomar as medidas realmente eficazes para salvar a Terra” - Veja, 11/04/2007 e) “Diante desse quadro sombrio, ganha impulso entre cientistas e políticos a idéia de que ações pontuais, por mais bemintencionadas, podem não ser suficientes para estancar o aquecimento gradual da Terra. Por sua magnitude, problemas globais exigem soluções também globais. Ou seja, intervir nos processos que causam o aquecimento do planeta é uma tarefa demasiadamente complexa para ser resolvida com o esforço individual” – Veja, 30/12/2006 O discurso pró-causa ambiental de Veja embora, num primeiro olhar, transpareça se transformar ao longo das edições – do caos total, da falta de perspectivas para a esperança de que ainda é possível reverter os possíveis efeitos do aquecimento global –, na verdade, ao longo dos últimos anos manteve-se o mesmo. Isto é, como evidenciam os gestos de leitura: “Sinais do apocalipse!” (21/06/2006): “A terra no limite! Já estamos arrancando do planeta mais do que ele pode dar” (edição 12/10/2005). Por isso, apresentamos “7 megassoluções para o megaproblema ambiental” (30/12/2006). Soluções que não passam por “ações pontuais, por mais bem-intencionadas” (30/12/2006), mas “a disseminação do 432 engajamento verde serve para pressionar os governos a tomar as medidas realmente eficazes para salvar a Terra” (11/04/2007). E é esse o papel de Veja, publicação de “espírito de vanguarda informativo” também nas questões ambientais. Referências GREGOLIN, Maria do Rosário. O papel da imagem e da memória na escrita jornalística da história do tempo presente. In: ______. Discurso e Mídia – a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. 95-110p. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de Discurso – Princípios e Procedimentos. 5.ed. Campinas: Pontes, 2003 PECHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK, Tony (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso – Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. p.61-162 433 Ciências humanas: pesquisa em comunicação e linguagem 1 Francismar FORMENTÃO Neste estudo busca-se promover algumas reflexões sobre a produção de conhecimento em ciências humanas além de discutir a possibilidade de pesquisa na comunicação e alguma s proposições da 2 filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Em momento algum esta pesquisa busca absolutizar algum conhecimento ou proposta, em um eterno devir e inacabamento, pede ao leitor, que promova um dialogismo do texto apresentado. Pois, No mundo dos acontecimentos da vida, campo próprio do ato ético, estamos sempre inacabados, porque definimos o presente como conseqüência de um passado que construiu o pré-dado e pela memória de um futuro com que se definem as escolhas no horizonte das possibilidades. Nosso acabamento atende a uma necessidade estética de totalidade, e esta somente nos é dada pelo outro, como criação e não como solução. A vida, concebida como acontecimento ético aberto, não comporta acabamento e, portanto, solução. (GERALDI, 2003, p. 47). 1. O autor é jornalista, Especialista em Comunicação, Educação e Artes, Mestre em Letras – Linguagem e Sociedade (Unioeste); docente do curso de jornalismo da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) Guarapuava – PR. E-mail: [email protected] 435 As ciências humanas, em suas diversas esferas de produção, destacam-se contradições como a transformação da ciência em produto de consumo, sua produção em massa, sua fragmentação e a ausência de rigor ético, epistemológico e metodológico. Num tempo de diversidades, as ciências apontam para as instabilidades e indeterminações, principalmente ligadas a impossibilidades e limitações. Aqueles que se beneficiam com a exclusão, os únicos rumores que ouvem são os humores do mercado. E no mercado atuam seus pares. A estes não interessa pensar o inimaginável e arriscar-se a extrair dos acontecimentos os conteúdos para o futuro. Interessa-lhes transmitir o conhecido para que o já acontecido permaneça como o único acontecimento possível para o futuro. (GERALDI, 2003, p. 49). Uma reflexão sobre a condução de pesquisas em ciências humanas encontra-se no entendimento da linguagem como movimento que constituiu a existência humana, uma compreensão semiótica sobre todo objeto de pesquisa, um movimento de sentido existente na linguagem, que é o princípio, meio e fim de toda consciência e existência social. A filosofia da linguagem existente em Mikhail Bakhtin, está na encruzilhada de múltiplas formas de interpretação teórica e metodológica; questões relacionadas a autoria e a traduções de 436 seus textos; as suas raízes epistemológicas – entre outros aspectos – reiteradamente salientadas por inúmeros autores (Cristóvão Tezza, Katerina Clark, Michael Holquist, Irene Machado, Diana Luz Pessoa de Barros, Robert Stam, Beth Brait, Edward Lopes, por exemplo). Todos autores que dialogizam o estudo bakhtinano, mesmo a existência de perspectivas diversas, em nada desabona a reflexão sobre a filosofia da linguagem, e sim, na diversidade se cria um campo rico e pertinente de estudos e produção do conhecimento. A pertinência e a atualidade teórica e metodológica de Mikhail Bakhtin são demonstradas pelo acúmulo de pesquisas realizadas no Brasil nos últimos anos, assumindo esses aspectos salientados, uma condição de enfrentamento necessário ao pesquisador e não um óbice. De fato, a [...] obra de Bakhtin e de seu Círculo deu origem a uma das correntes de pensamento mais influentes do século XX. Entre os aspectos responsáveis pela sua repercussão, está a formulação de uma complexa malha conceitual, construída nos interstícios de diversos domínios das Ciências Humanas (a Filologia, a Filosofia da Linguagem, a Lingüística, a Sociologia, a Estética, a História, a Antropologia) e, por isso mesmo, capaz de produzir questões, de orientar abordagens e de apontar caminhos de pesquisa que não se esgotam em uma única disciplina acadêmica. Essa natureza interdisciplinar pode explicar o fato de que a obra do Círculo tenha sido 437 incorporada e articulada a diversos outros teóricos, das formas as mais variadas. (GRILLO. In: BRAIT, 2006, p. 133). Ressaltada essa multiplicidade, a produção temática, a riqueza de conteúdo e método, permitem uma concentração temática fundada em Bakhtin, acompanhada de relevante fecundidade em diferentes áreas do conhecimento científico. A lógica dialética, ou um dialogismo da própria dialética, existente nos textos de Bakhtin e o encadeamento interativo de seus conceitos-chave são relevantes por sua coerência e alcance conceitual nos estudos em ciências humanas, linguagem e comunicação. Os conceitos/categorias deste autor enfeixam dialogicamente as diretrizes nucleares existentes nas várias áreas científicas, possibilitando a detectação, o registro e o estudo de sua diversidade, de seus fundamentos, de suas interconexões na interdisciplinaridade. A concepção dialógica da criação verbal engloba a relação vida/cultura, o real concreto, a formação da consciência dos indivíduos e a materialidade sígnica de todas as produções humanas, dotadas de valor; descentraliza o sujeito e o reconduz à situação de agente ativo em interação constante e fluída, um sujeito responsivo e responsável. Nessa concepção, a mediação é integrante teórico-prático no plano volitivo-emocional e éticocognitivo, unindo o mundo sensível e o mundo inteligível em conteúdo-forma-processo. 438 A originalidade da filosofia da linguagem não desconsidera a tecnologia contemporânea. Discurso, enunciado, enunciado concreto e alteridade, são elementos nucleares dessa concepção explicitados em sua materialidade histórica, social e cultural da interação comunicativa. As relações entre linguagem-sociedadeideologia são examinadas por Bakhtin considerando-se o discurso em sua forma e conteúdo como objeto de significação na cultura social e histórica, que inclui a enunciação (contexto) em suas particularidades (enunciações anteriores e posteriores que são o fluxo de circulação de discursos) e conecta sujeitos interlocutores que se integram em um processo verbal e extraverbal. O discurso (produção verbal e não verbal) é mediação para a apreensão do mundo e para a apreensão de si mesmo e do outro no mundo; nos discursos, texto e contexto se envolvem dialogicamente. O discurso: [...] encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientando para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça 439 com eles em interações complexas, fundindose com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico (BAKHTIN, 1998, p. 86). Determina-se, nesse processo, o horizonte social do enunciador e do enunciatário, o horizonte espacial, o conhecimento e a compreensão-avaliação que ambos têm de uma situação. Bakhtin apresenta a compreensão da importância sígnica, entendendo que o signo está presente em enunciados e enunciados constituem-se signos e são resultados de uma relação com campo social e esfera ideológica definidos. Assim, a totalidade se determina historicamente nas mediações e pelas mediações “pelas quais suas partes específicas ou complexas – isto é, as 'totalidades parciais' – estão relacionadas entre si, numa série de inter-relações e determinações recíprocas que variam constantemente e se modificam” (BOTTOMORE, 1988, p. 381). Ou seja, as esferas/campos que se dialogizam, estabelecendo conteúdo e forma sígnica na produção de sentido. O conceito de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente da 440 ideologia) está presente ao longo de toda a obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando, por um lado, a teorização dos aspectos sociais nas obras literárias e, por outro, a natureza ao mesmo tempo onipresente e diversa da linguagem verbal humana. (GRILLO. In: BRAIT, 2006, p.133-134). Os signos materializados nas esferas/campos sóciohistóricos refratam as relações comunicativas existentes na linguagem e, através da linguagem, refletindo e refratando a própria materialidade ideológica sígnica. No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica etc. Cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. (BAKHTIN, 1995, p.33). Eixo central do pensamento baktiniano, o dialogismo (relações discursivas entre homem-mundo, homem-natureza e sujeito-objeto do conhecimento) ocorre entre discursos que interagem na comunicação e, nessa interação, produzem o processo 441 de significação. “O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc”. (BAKHTIN, 1995, p.123). Através da linguagem, os discursos são produzidos em condições específicas (enunciação), estabelecendo formas num intercurso social (enunciados) que, além de instaurar relações entre o eu e os outros, veicula o universo ideológico. No dialogismo percebe-se que todo enunciado refuta, confirma, complementa e depende dos outros, levando em consideração o outro. O lugar onde brota o discurso ou a enunciação está determinado por uma situação social imediata independentemente da existência real do interlocutor. O meio social concreto propicia a emissão de discursos, tendo em vista um horizonte social do outro, da classe social do contexto histórico de tal sorte que os discursos irão se aproximar “do auditório médio da criação ideológica” sem “ultrapassar as fronteiras de uma classe e uma época bem definidas”. (BAKHTIN, 1995, p.113). Para o autor, “a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. (BAKHTIN, 1995, p.113). Compreende-se as enunciações quando “reagimos àquelas (palavras) que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. (BAKHTIN, 1995, p.95). Assim, a filosofia da linguagem de Bakhtin aparece no 442 dialogismo, que, nas palavras de Diana Luz Pessoa de Barros, é o principio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso. (BARROS. In: FARACO et alii, 2001, p.33). O dialogismo nos textos de Bakhtin e seu Círculo trata do “princípio geral do agir” dos seres humanos, pois toda interação comunicativa tem como ponto de referência o “contraste com relação a outros atos de outros sujeitos” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p.106). O pesquisador ao participar do evento observado constitui-se parte dele, mas ao mesmo tempo mantém uma posição exotópica que lhe possibilita o encontro com o outro. E é esse encontro que ele procurar descrever no seu texto, no qual revela outros textos e contextos. Dessa forma, vejo a situação de campo como uma esfera social de circulação de discursos e os textos que dela emergem como um lugar específico de produção do conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridade. (FREITAS, 2003, p 32). O dialogismo celebra a alteridade, a necessidade do outro, tornando-se, deste modo, a categoria primordial através da qual Bakhtin pensará as relações culturais. Todos os fenômenos analisados à luz do dialogismo são considerados em sua multidirecionalidade, a orientação de um eu para o outro (MACHADO, 1995, p. 310). 443 Enquanto pesquisador, minha tarefa é tentar captar algo de modo como ele se vê, para depois assumir plenamente meu lugar exterior e dali configurar o que vejo do que ele vê. Exotopia significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior. Esse lugar exterior permite, segundo Bakhtin, que se veja do sujeito algo que ele próprio nunca pode ver. (AMORIM,2003, p14) O movimento de produção de conhecimento em ciências humanas pode ser compreendido como ato/atividade/evento em que o objeto de estudo e o pesquisador se integram à teoria do conhecimento e à “ação concreta (ou seja, inserida no mundo vivido) intencional [...] praticada por alguém situado, não transcendente” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p.20); coloca o sujeito que age no mundo em atos sucessivos de modo participativo e responsável, respondendo a situações reais, nelas se incluindo. Dessa forma, “o ato responsável envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do agente com respeito ao seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo” (SOBRAL, In: BRAIT, 2005, p.21). (...) hoje, o desafio do pensamento para poder tornar-se ato é renunciar a ser correto. (...) fora das normas vigentes, mas ressignificando seus termos, de modo a 444 assumir seu lugar no mundo atual. Fazer pesquisa lidando com a questão da diversidade convoca um pensamento ético, mas não há ética sem arena e confronto de valores. (AMORIM, 2003, p 25) O sujeito, no evento de ser, processo de devir existencial, constitui-se como tal na cultura em tempo e espaço dinâmicos que entrelaçam passado, presente compartilhados pelos demais sujeitos sociais e principalmente, num espaço ou arena de confronto de valores. Define-se, desse modo, o produtor do discurso, todo e qualquer sujeito, as criações artísticas, culturais e científicas, o tempo homogêneo/heterogêneo nas esferas da comunicação. Os parâmetros epistemológicos da semiótica de Bakhtin formam uma arquitetura que dimensiona as relações homemmundo, sujeito-objeto do conhecimento e conectados à ação humana. A arquitetônica do conhecimento semiótico incorpora dialogicamente o processo histórico e as condições de elaboração de epistemes no processo de transformação contínua, na dinâmica das forças vivas sociais que se determinam ética e esteticamente. Esta filosofia da linguagem permite ainda estudos, epistemológicos, ontológicos e cognitivos, em um movimento dialógico de conhecimentos nas ciências humanas. Bakhtin une dialógicamente sua fundamentação do signo ideológico e da alteridade das relações sociais com essa 445 arquitetônica vinculada a diversas categorias conceituais, como dialogismo, cronotopo, exotopia, polifonia, palavra, esfera, campo, enunciação, entre outras. As ciências humanas, sua produção e condição não deixam de serem verificadas em uma sociedade que produz-se e faz existir, organizada no caos e em relações na pluralidade dos diversos níveis dos movimentos sociais, sejam de códigos lingüísticos como de domínios dos instrumentos cognitivos, tudo já fetichizado, reificado 2 e alienado, este cuidado do pesquisador é essencial a produção de qualquer estudo. Os signos produzidos em pesquisas nas ciências humanas podem ser discutidos em sua unidade conteúdo-forma, acrescentando-se a “natureza do material” e os “procedimentos por ele condicionados” (BAKHTIN, 2003, p.177-178). A forma é dependente do conteúdo e do material. Nos signos ideológicos, o objetivo é o conteúdo. Este conteúdo ético-cognitivo será enformado e apresentado, subordinando o material ao próprio objetivo. Concluir ao apresentar um resultado destes estudos em 2. O sentido de alienação aqui empregado foi de “ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma), à natureza na qual vivem e/ou a outros seres humanos, e – além de, e através de, também a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente). Assim concebida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou auto-alienação, isto é, alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria atividade)” (BOTTOMORE, 1988, p. 5); já fetichização constitui forma e conteúdo com que se conferem propriedades aos objetos materiais, características e sentidos atribuídos que são constituídos socialmente, mas determinados como sendo naturais (BOTTOMORE, 1988, p. 149); e reificação “é o ato (ou resultado do ato) de transformação das propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram independentes (e que são imaginadas como originalmente independentes) do homem e governaram sua vida. Significa igualmente a transformação dos seres humanos em seres semelhantes a coisas, que não se comportam de forma humana, mas de acordo com as leis do mundo das coisas. A reificação é um caso “especial” de “alienação”, sua forma mais radical e generalizada, característica da moderna sociedade capitalista (BOTTOMORE, 1988, p. 314). Uma crítica a estes conceitos pode ainda ser observada em: MAAR, Wolfgang Leo. Formação social em Lukács: dialética de reificação e realização – A perspectiva marxista como consciência de classe e crítica ontológica. In: BOITO JR, Armando et al. A obra teórica de Marx: atualidade, problemas e interpretações. São Paulo: Xamã, 2000; e EAGLETON, Terry. O sublime no Marxismo. In: EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. Ver ainda MARX, Karl, 1818-1883. Mercadoria e dinheiro. In: O capital: critica da economia política: livro primeiro o processo de produção do capital. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 1987, p. 79-93). 446 ciências humanas, implica a subordinação do material a alcançar o objetivo ético-cognitivo ou “tensão ético-cognitiva”. Há assim, necessidade de superar o material na tarefa comunicativa. Para compreender como o signo é resultado de um consenso da interação social, “razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece”(BAKHTIN, 1995, p.44), é necessário estudar a ideologia como fator que influencia as relações entre os signos e indivíduos. “[...] é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente dialético do ser no signo” (BAKHTIN, 1995, p.44). Bakhtin apresenta como questão indispensável para compreensão da ideologia no signo: 1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível). 2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico). 3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material [...]. (BAKHTIN, 1995, p.44). 447 Assim, é importante a compreensão de uma comunicação prevalente, meio de circulação de pesquisas e pesquisadores, seja social (mais ampla e mediada) ou face a face, com a valorização da linguagem e da comunicação em seus conteúdos e formas. O pesquisador busca superar a linguagem (métodos científicos, objeto estudado) afim de um sentido, ou a superação do próprio objeto para a conclusão de um discurso, evidencia a obediência de uma lógica criativa, “uma lógica imanente da criação”, com os valores da produção de sentido, o contexto do “ato criador”. [...] antes de tudo precisamos compreender a estrutura dos valores e do sentido em que a criação transcorre e toma consciência de si mesma por via axiológica, compreender o contexto em que se assimila o ato criador. A consciência criadora [...] nunca coincide com a consciência lingüística, a consciência lingüística é apenas um elemento, um material [...]. (BAKHTIN, 2003, p.179). O conteúdo apresenta os elementos do mundo, da vida, forjado em parâmetros éticos e cognitivos. Interligado à forma, conteúdo e forma são mutuamente condicionados, produzindo sentido na própria criação. Aquele que cria é o artista e a arte (no caso deste estudo, o pesquisador que apresenta um discurso, uma visão, uma realidade materializada em seu estudo). A atividade 448 estética (apresentada no estudo) agrega sentidos de forma a buscar acabamento em uma interação, e auto-suficiente. Trata-se de um ato que passa a existir em um novo campo axiológico (científico), num devir da interação comunicativa. Assim, também o material condiciona-se com forma e conteúdo, em que o signo é o meio de expressão; numa “lógica imanente da criação”, o material deve ser superado, aperfeiçoado num contexto de criação em que forma e conteúdo revelam o signo em sua superação. De um contexto empírico, para a interpretação científica, revelando conteúdos que provocam a “tensão” entre o criador e este contexto de criação. Nas Ciências Humanas conjugam-se as dimensões ética e estética para dar origem a uma outra dimensão que é a epistemológica. Desse modo, a produção de conhecimentos e o texto em que se dá esse conhecimento são uma arena onde se confrontam múltiplos discursos. (AMORIM, 2003, p. 12). Diálogos, muitas vezes ignorados podem produzir conhecimentos férteis para as pesquisas em ciências humanas, os físicos Alan Sokal e Jean Bricmont em seu livro Imposturas intelectuais (Nome original em inglês: Fashionable Nonsense), promovem críticas a personalidades intelectuais como Jacques Lacan, Julia Kristeva, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Félix 449 Guattari entre outros, diálogos que em se tratando de ciências, principalmente ciências humanas, não devem ser censurados, podemos não concordar com posicionamentos epistemológico e metodológicos deste ou aquele pesquisador, mas a propósito da ciência, o único caminho possível não é ignorar a adversidade de métodos, e sim o dialogismo destes discurso. Como exemplo disso, eis um posicionamento da dupla de críticos das ciências: [...] Embora a epistemologia básica da investigação deva ser aproximadamente a mesma para as ciências naturais e para as ciências sociais estou perfeitamente ciente, é lógico, que muitas questões metodológicas especiais (e muito difíceis) surgem nas ciências sociais a partir do fato que os objetos de pesquisa são seres humanos (incluindo o seu estado de espírito subjetivo); que esses objetos de investigação têm objetivos (incluindo em certo casos a dissimulação das evidências ou a colocação de evidência deliberadamente a seu serviço); que a evidência Oe expressa (habitualmente) em linguagem humana, cujo significado pode ser ambíguo; que o sentido das categorias conceituais (por exemplo, infância, masculinidade, feminilidade, família, economia etc.) muda no decorrer do tempo; que o objetivo da pesquisa histórica não são simplesmente fatos, mas sua interpretação etc. De modo algum pretendo que meus 450 comentários sobre física sejam aplicados diretamente sobre a história ou às ciências sociais – isto seria um absurdo. Dizer que “a realidade física é uma construção social e lingüística” é uma tolice rematada, porém dizer que “a realidade social é uma construção social e lingüística” é virtualmente uma tautologia. (SOKAL, 2006, p.287). A relação de diversidade de discursos, o conflito entre o ser analisado, o discurso do pesquisador e o próprio conhecimento faz surgir uma grande diversidade de sentidos, [...] Assumir esse caráter conflitual e problemático da pesquisa em Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência: tanto do discurso do outro quanto do seu próprio discurso. É portanto trabalhando na opacidade dos discursos dos textos, que a pesquisa contemporânea pode fazer da diversidade um elemento constituinte do pensamento e não apenas um aspecto secundário. (AMORIM, 2003, p.12). Infelizmente, naquilo que deveria ser a busca de conflitos e tensões de conhecimentos, alguns pesquisadores procuram pensadores que com eles concordam e assim dizem produzir conhecimentos, quando de fato deveriam também buscar pensadores com quem não concordam, promovendo diálogos, e assim, efetivamente produzir conhecimento na diferença e no 451 embate de ideias. Partindo de uma crítica sobre aquilo que Sokal e Bricmont dizem ser cinco temas bem distintos, e apresenta de forma a 3 questionar a pesquisa de Harding (1991), apresentam questões que podem promover reflexões nos campos do pensamento científicofilosófico: 1) Ontologia. Que objetos existem no mundo? Que afirmações sobre estes objetos são verdadeiras? 2) Epistemologia. Como os seres humanos podem obter conhecimento das verdades sobre o mundo? Como eles podem avaliar o grau de confiabilidade deste conhecimento? 3) Sociologia do conhecimento. Até que ponto as verdades conhecidas (ou conhecíveis) pelos seres humanos em determinada sociedade são influenciadas (ou determinadas) pelos fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e ideológicos? A mesma questão vale para as afirmações falsas que se julgou erroneamente serem verdadeiras. 4) Ética individual. Que tipos de pesquisa deve um cientista (ou técnico) assumir (ou se recusar a assumir)? 5) Ética social. Que tipos de pesquisa deve a sociedade estimular, subsidiar ou financiar como fundos públicos (ou, por outro lado, desencorajar, taxar ou proibir)? (SOKAL, 2006, p.288-289). 3. Leituras de Sokal e Bricmont (2006) em: Harding, Sandra. 1996. “Science is “good to think with”. Social Text 46/47 (primavera/verão):15-26. 452 A leitura destes tópicos para o estudo da física parece evidente em tais estudiosos, então por que não fecundar diálogos que parecem tão distintos e inseparáveis como o mundo da ciências humanas e das ciências exatas; vivemos no mesmo mundo, somos todos sujeitos humanos numa mesma sociedade, este diálogo, resulta em semelhanças como as destes cinco tópicos apresentados com o próprio método da filosofia. A produção de estudos em ciências humanas, em sua gênese, carrega a objetivação de um conteúdo produzido segundo esferas e campos específicos constituídos em determinado tempo/espaço na interação comunicativa. Pela mediação desses signos ideológicos, os valores axiológicos, presentes no conteúdo em dialogismo com métodos, conhecimentos, e leitores de tais estudos, produzem sentido como síntese reflexiva de um pensamento e posicionamento perante a um objeto na busca de um acabamento, mesmo que precário, para a interpretação e entendimento. Assim, (...) é nesse jogo dialógico que o pesquisador constrói uma compreensão da realidade investigada transformando-a e sendo por ela transformado. (FREITAS, p. 37, 2003). Um espaço de tensão, que Em síntese, o que este conceito quer dizer é que a obra de arte é lugar de tensão porque entre o eu e o outro, entre o retrato que faço de alguém e o retrato que ele faz de si mesmo, há sempre uma diferença fundamental de 453 lugares e, portanto, de valores. (AMORIM, 2003, p.14) É importante afirmar para as pesquisas em ciências humanas, a necessidade da valorização do sujeito humano em sua relação de alteridades e o emprego de métodos com rigor ético. Este estudo, ainda em caráter experimental, busca acabamentos e refrações de sentido, e mesmo ancorado em estudiosos e pesquisadores renomados, trata-se de um diálogo inicial e, sempre, inacabado. Nossa liberdade maior, aquela que a arte nos ensina, é precisamente a capacidade de nos darmos uma lei (...) Esta liberdade de darmonos uma lei remete à noção de responsabilidade tal como definida por Bakhtin e certamente não tendo compromissos ontológicos outros que não como o próprio princípio supremo do ato ético – a relação concreta entre o eu e o outro, inscreve a lei a nos darmos na complementaridade que o excedente de visão do outro permite, porque diferente seu posto de observação; calculados nossos horizontes de possibilidades, defendendo, ainda que conflituosamente enquanto vivemos entre desiguais, a sociedade que nossa memória do futuro projetou, dando-nos acabamentos provisórios para com eles construirmos nossos roteiros de viagens: eles dirão de nós o que fomos. (GERALDI, 2003, p.55). 454 Referências AMORIM, Marília. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e epistemológica. In: FREITAS, Maria Teresa; SOUZA, Solange Jobim e; KRAMER, Sonia. (orgs.). Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003 BAKHTIN, Mikhail. 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São Paulo, Ática, 2000. 457 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995 458 Globalização e regionalização da mídia brasileira 1 Anamaria FADUL Panorama mundial Os fenômenos relacionados com a comunicação internacional começaram a adquirir uma maior importância com o 2 surgimento das redes de comunicação no século XIX. A primeira delas surgiu com o telégrafo, que permitia ligar as diferentes regiões do planeta através dessa nova tecnologia. A partir daí, foram surgindo as tecnologias de comunicação como o telefone, o rádio e a televisão, que também permitiam o estabelecimento de conexões de internacionais. Foi com a ampliação da televisão por assinatura e da internet, a partir da década de 90 do século passado, e com as mudanças surgidas na economia, que cada vez mais apontava para a existência de mercados globais, que se começou a perceber que nenhum fenômeno podia mais ser considerado local ou nacional sem ter ao mesmo tempo uma dimensão internacional. Ao buscar uma interpretação para essas mudanças Sreberny-Mohammadi (1996, p.177) vai afirmar: "a retórica contemporânea sugere que nós vivemos em um mundo unitário no 1. Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Metodista de São Paulo 459 qual espaço e tempo entraram em colapso e a experiência de distância implodiu para sempre. Os blocos antagonistas do Leste e Oeste estão dando lugar para mercados, moedas e mídias internacionais" Os antigos conceitos e teorias não poderiam mais dar conta da complexidade da situação. A rapidez e complexidade da mudança no panorama da mídia durante esta década parece requerer um conjunto de termos mais novos do que aqueles oferecidos pelas antigas perspectivas, que freqüentemente parecem congeladas em uma era passada (SREBERNYMOHAMMADI, 1996, p.178). Dessa forma, o processo de globalização da cultura está intimamente relacionado com a globalização da mídia, por um lado, e com a globalização da economia, de outro lado. O surgimento de um mercado de mídia global é o princípio desse processo. Como vão dizer Herman e McChesney: "desde o princípio dos anos 80 tem havido uma dramática reestruturação das indústrias de mídia nacionais, com a emergência de um mercado de mídia comercial global" (1997, p.1). Panorama brasileiro - Internacionalização da Mídia A intensificação do processo de internacionalização da mídia brasileira está relacionada, por um lado, com as grandes 460 mudanças na economia e política nos anos 90 que levaram a uma abertura do mercado brasileiro à economia internacional e, por outro lado, com o surgimento da TV por assinatura e o processo de desregulamentação da informática e das telecomunicações. As diferentes experiências de internacionalização da mídia brasileira podem ser consideradas de duas perspectivas: de fora para dentro e de dentro para fora e a partir de várias abordagens: a) a importação de produtos estrangeiros e a produção e exportação de produtos brasileiros; b) co-produção de produtos estrangeiros com empresas brasileiras e co-produções de produtos brasileiros com empresas estrangeiras; c) as parcerias, associações, compras e vendas de empresas estrangeiras de comunicação no Brasil e as parcerias, associações, compras e vendas de empresas de comunicação brasileiras no exterior. Com a chegada da TV a cabo nos anos 90 do século passado, assistiu-se a uma nova etapa da internacionalização da mídia brasileira, uma vez que se conseguiu driblar a legislação brasileira que impedia a participação de capital internacional nas empresas brasileiras de jornais, revistas, rádio e televisão. Mas, a participação do capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de rádio e televisão finalmente foi aprovada através da emenda constitucional ao Artigo 222, da Constituição Brasileira. O processo de internacionalização de fora para dentro esta presente em toda a história da mídia brasileira, pois ela sempre foi muito dependente da mídia estrangeira no país, devido ao processo 461 de colonização do país. Entretanto adquiriu características diferentes em cada época, e de acordo com cada mídia, uma vez que esse fenômeno não é novo, e vem desde a implantação da imprensa no país. Devido ao caráter fechado da economia e da mídia brasileira vai ser somente nos anos 90 que se percebeu com mais clareza os movimentos dos grupos de mídia em sua busca de parcerias internacionais e em seu crescimento para fora do país. Algumas experiências pioneiras, entretanto, existiram anteriormente. As primeiras aconteceram no início dos anos 50 quando o grupo Diários e Emissoras Associados decidiu criar uma edição internacional de sua mais importante revista, O Cruzeiro. Tratava-se de uma edição latino-americana que teve uma duração de oito anos, tendo terminado por problemas internos do grupo Mais tarde, na década de 60 surgiu outra tentativa, mas agora na área da ficção televisiva, com a distribuição e venda de telenovelas na América Latina pela Rede Tupi. É, entretanto, a partir dos anos 70 que se ampliou essa internacionalização com a entrada de outras emissoras nesse processo, entre as quais se sobressaiu a Rede Globo. Hoje a telenovela brasileira é o produto cultural, ao lado da música popular brasileira, mais conhecido internacionalmente. Posteriormente, outras emissoras que surgiram na década de 80, SBT e Manchete, também buscaram seguir essa estratégia de internacionalização, seguindo o caminho aberto pelas primeiras 462 emissoras produtoras de telenovelas. A tentativa mais ousada de internacionalização, mas que não teve o sucesso esperado, se deu com a compra pela rede Globo de um canal de televisão aberta, a TV Montecarlo, que transmitia para a Itália. Os grandes prejuízos enfrentados desde seu início levaram finalmente à sua venda no início da década de 90. Outras tentativas de internacionalização foram também observadas na América Latina, especialmente com emissoras da Argentina, e que resultaram em muitas co-produções na área da ficção televisiva. Dessa forma, o desenvolvimento das empresas de mídia brasileiras obedece às mesmas estratégias daquelas internacionais, que procuram criar sinergias entre as várias mídias e as várias tecnologias, tanto no nível nacional como no internacional. Globalização da Mídia As mudanças surgidas com a ampliação do acesso à internet, que segundo dados recentes conta com 65 milhões de usuários no país, trouxeram novas perspectivas para a mídia, uma vez que todas as mídias tradicionais passaram a ter a sua intermediação. Se o antigo processo de internacionalização encontrava uma série de barreiras, com essa nova mídia o processo de globalização da mídia brasileira vai sofrer uma profunda mudança. Os jornais, as emissoras de rádio e televisão podem ser acessados de qualquer lugar do mundo, o que tem representado uma ampliação não 463 somente da recepção dessas diferentes mídias, como também da participação de leitores, ouvintes e rádio e de telespectadores. Regionalização da Mídia Ao mesmo tempo em que se assiste a esse processo de internacionalização e globalização, também se observa uma série de mudanças ocorridas na mídia regional brasileira nas duas últimas décadas. Elas estão relacionadas com o processo de desconcentração industrial de São Paulo, o desenvolvimento agrícola das regiões Centro-oeste e Norte e com o desenvolvimento do setor de serviços, especialmente aquele voltado para o turismo, que tem beneficiado especialmente as regiões do Nordeste e também do Centro-oeste e Norte. Essa situação despertou inicialmente o interesse das agências de publicidade, dos anunciantes e dos veículos de comunicação que, apesar das dificuldades econômicas enfrentadas, estão descobrindo oportunidades de negócio em outras regiões do país. Entretanto, o que se afirma geralmente ainda hoje sobre a mídia brasileira é quase sempre a partir da perspectiva do eixo Rio–São Paulo, ignorando as mudanças que vem ocorrendo nas regiões e que apresentam resultados significativos. Não se pode ignorar que a mídia pode ter uma importante contribuição para o desenvolvimento não somente econômico, como também político, social e cultural. 464 A mídia regional, apesar desse desenvolvimento nos últimos anos, enfrenta ainda vários problemas, como aqueles relacionados com a questão econômica, tecnológica, recursos humanos, etc. Se o diálogo da mídia regional com a mídia nacional é importante e deve ser estimulado, não se pode deixar de reconhecer que em muitos casos a força do poder modelizador da mídia nacional tem contribuído para apagar características específicas da mídia regional. Mas existem ainda muitos exemplos em que se pode perceber a influência da cultura regional. Dessa forma, conhecer a mídia regional pode ser uma forma de se aproximar das regiões e suas identidades. O estudo da mídia regional pode se beneficiar de uma perspectiva comparada das cinco macro-regiões brasileiras: a Região Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul. Os elementos mais importantes a serem comparados são aqueles relacionados com os indicadores geográficos, demográficos, econômicos e educacionais, uma vez que eles representam um ponto de partida para a compreensão dos diferentes sistemas de mídia regional. Ao se examinar as grandes regiões brasileiras em uma perspectiva comparada o aspecto que mais chama atenção é a profunda assimetria existente entre elas, no que se refere à população e domicílios, à relação da população urbana com a população rural, assim como o número de municípios no país, e por fim, o PIB de cada região, o PIB per capita, os indicadores de analfabetismo e o IDH, que são os elementos mais importantes para 465 se compreender um sistema de mídia. A mídia impressa, assim como vários setores da economia brasileira, vem passando por dificuldades desde o ano de 1999, quando ocorreu a desvalorização cambial no país. Mais recentemente os jornais e revistas, estão sofrendo com a diminuição dos investimentos publicitários que é um importante termômetro da economia. Esta situação reflete-se nas tiragens dos jornais. A principal dificuldade para o desenvolvimento da mídia impressa reside em dois importantes fatores: nível de escolaridade e índice potencial de consumo. Estes dois fatores têm como conseqüência uma grande assimetria no caso da mídia impressa, que encontra nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, o maior número de títulos assim como as maiores tiragens. Segundo a ANJ e a Associação Brasileira de Representantes de Veículos de Comunicação (ABRE), existem atualmente 2.684 títulos de jornais, dos quais somente 523 são diários. Em 2003 calculou-se uma tiragem de 3.335 milhões de exemplares em 2003 (Mídia Dados 2004, p.334). Entretanto, estes dados são muito imprecisos, pois somente se poderia falar com segurança dos 75 jornais auditados pelo IVC. Quando se examina a distribuição dos títulos de jornais diários e não diários de acordo com as regiões brasileiras também se constata a grande concentração de títulos nas regiões sudeste e 466 sul, que juntas representam 75,5 por cento de todos os títulos de jornais diários existentes no país e 86,9 por cento dos jornais não diários. Por outro lado, chama atenção o pequeno número de títulos existentes na região nordeste, 10,7 por cento dos jornais diários e 4,7 por cento dos jornais não diários, apesar de possuir a segunda maior população do país, Esse fato se explica em primeiro lugar pelo grande número de analfabetos absolutos e funcionais na região, assim como pelas condições econômicas. Mas um fator positivo com relação aos jornais regionais é que enquanto os jornais do eixo Rio-São Paulo estão perdendo leitores, o mesmo não se poderia dizer dos jornais regionais. “Como tem acontecido nos últimos anos, os jornais que circulam fora do eixo Rio-São Paulo tiveram em 2005 um desempenho mais positivo que seus congêneres paulistas e cariocas (Mídia Dados 2006, p. 326)”, pois “esses veículos vem sendo beneficiados pelo processo de amadurecimento de seus respectivos mercados e também pela regionalização dos investimentos publicitários por parte dos grandes anunciantes do país” (idem, p.326). Quanto às revistas, consideradas de forma geral como uma mídia nacional e com uma grande concentração dos principais títulos em São Paulo, nos últimos anos assiste-se a uma crescente edição de revistas fora do eixo Rio-São Paulo. Mas apesar do significativo número das revistas regionais e de sua grande diversidade de gêneros, elas ainda enfrentam uma série de dificuldades, devido ao seu caráter ainda recente. A 467 tendência parece ser de um crescimento expressivo, pois elas não parecem sofrer tanto a concorrência da Internet como os jornais. O Brasil possui um grande número de rádios AM e FM (3.668) que está presente em todas as regiões do país, embora se observe uma maior concentração nas regiões Sudeste (36,7 por cento), Sul (23,9 por cento) e Nordeste (23,1 por cento). Entretanto, quando se considera a rádio FM percebe-se que o Sudeste possui 45,0 por cento de todas as rádios do país. O surgimento de redes nacionais de rádio, no início da década de 90 do século passado, introduziu outra realidade, pois à antiga pulverização dessa mídia nas regiões brasileiras, observa-se agora uma centralização das cabeças de rede na cidade de São Paulo. Foi assim se consolidando uma nova realidade no meio radiofônico, com a possibilidade de intermediação entre o local, o regional, o nacional e o internacional. As grandes redes nacionais do Sudeste, com seus correspondentes e parcerias internacionais vão distribuindo por todo o território brasileiro as informações sobre o que está ocorrendo no mundo e na cidade. A televisão é a mídia de maior alcance nacional, pois está presente em 90,4 por cento dos domicílios brasileiros (Projeção de Domicílios com TV, 2006, Mídia Dados 2006, p. 161). As redes nacionais surgiram com a criação do sistema nacional de microondas ainda na década de 60. O surgimento das redes regionais de televisão está 468 relacionado, principalmente, com a formação de grupos de mídia regionais que começam a buscar uma maior sinergia entre as várias emissoras do grupo. Trata-se de um fenômeno dos últimos 20 anos do século passado e início da década atual. A implantação tardia da TV por Assinatura no Brasil, que se deu somente no início da década de 90, ao contrário dos EUA (anos 70) e mesmo de outros vizinhos da América Latina, como a Argentina (início dos anos 80), pode explicar em parte os números ainda modestos, que em 2005 totalizava pouco mais de 4 milhões de assinantes (Mídia Dados 2006, p.218). Mas existem também outros fatores que podem justificar essa situação, como a crise econômica do país que vem desde o início dos anos 80 do século passado, e por fim o sucesso da televisão aberta brasileira que ainda atrai os telespectadores de forma massiva e constante, como se pode verificar por seus altos índices de audiência. Pode-se afirmar, entretanto, que a TV por assinatura no Brasil ainda tem grandes perspectivas de desenvolvimento, apesar das dificuldades ainda enfrentadas pelas operadoras. Conclusão Apesar da intensificação dos processos de globalização e regionalização da mídia brasileira não se poderia deixar de constatar que, em muitos casos, não se está assistindo a uma melhoria na qualidade dos conteúdos veiculados. Ao contrário, o que se observa, principalmente nos programas de rádio e televisão, 469 é a reprodução dos mesmos gêneros e formatos apresentados na programação nacional. O investimento na qualidade não pode ser uma questão menor quando se fala na ampliação do acesso à mídia. O breve panorama da mídia regional aqui apresentado é muito mais um convite para a realização de estudos mais sistemáticos que permitam construir um quadro de referência para o estudo de seus diferentes aspectos, uma vez que com o desenvolvimento econômico dos mercados regionais, a mídia regional está passando por um processo de grandes mudanças. Dessa forma, poderia-se contribuir para a superação de uma visão etnocêntrica, que em sua grande maioria ainda têm privilegiado as pesquisas sobre a mídia nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão localizadas as maiores e mais importantes empresas de mídia, assim como as agências de publicidades e os grandes anunciantes. 470