Agora é mata ou morre
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Agora é mata ou morre
Um jornal da FFamecos/PUCRS amecos/PUCRS – Ensino de Jornalismo desde 1952 – PPorto orto Alegre, junho de 2006 – ANO 8 – Nº 48 JOCHEN LUEBKE/ AFP MEU DEUS! CAMPANHA Inclusão social do deficiente PÁGINA 5 IMIGRAÇÃO 50 anos de Japão no Brasil MANUELA KANAN Agora é mata ou morre PÁGINA 9 Colônias mantêm cultura PÁGINAS 6 e 7 INFÂNCIA A rrua ua como casa e escola MANUELA KANAN O endereço é a calçada PÁGINA 11 DANÇA Tango: sensual e dramático TATIANA FELDENS Ritmo dá tom em Buenos Aires PÁGINA 12 2 OPINIÃO Porto Alegre, junho de 2006 EDITORIAL F ABIANE B E N T O O deputado estadual Ruy Pauletti (PSDB), ex-reitor da Universidade de Caxias do Sul, encaminhou ofícios ao reitor da PUC, ir. Joaquim Clotet, e à diretora da Famecos, jornalista Mágda Cunha, parabenizando pela “qualidade do jornal Hipertexto, em especial suas matérias, que proporcionam informações atualizadas e relevantes”. Em 1974, universitário, criou a Associação de Promoção da Cultura (APC), onde lançou as primeiras bases conceituais da televisão a cabo. Destacou-se, também, pelo livro ‘A história secreta da Rede Globo’, em que relata os bastidores do maior grupo de mídia do país. Outras atividades do jornalista ficam por conta de ter sido coordenador da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, do Fórum pela Democratização da área no país, da campanha da Federação Nacional dos Jornalistas na Constituinte de 1988. Também articulou a criação do Conselho Nacional de Comunicação, vinculado ao Congresso. A comunicação no Brasil perdeu um de seus principais teóricos na esfera pública. F ÁBIO R AUSCH , González O presidente da Academia Rio-Grandense de Letras e assessor especial da Reitoria da PUCRS, ir. Elvo Clemente, enviou e-mail destacando a página da edição de maio que assinalou os dez anos da morte do ex-diretor da Famecos, jornalista Antônio González. “Comoveu-me a bela reportagem sobre a vida e o trabalho do sempre caro amigo Antoninho”, disse. EDITOR ESPECIAL ZERO HORA Hipertexto, o prego e o martelo P OR G UST AVO USTA SOUZA , Z ERO H ORA Toda vez que tenho em mãos uma nova edição do Hipertexto consigo experimentar o sentimento de um arquiteto olhando para o prédio que projetou. Fico com a sensação de dever cumprido por ter participado do planejamento e construção de uma pequena obra, mas que a cada dia é aprimorado e se consolida como laboratório para a formação de promissores jornalistas. Quando me convidaram para narrar sobre como o Hipertexto contribuiu na minha formação, a primeira imagem que me veio em mente foi de uma certa manhã, em junho de 1999. Naquela dia, o professor Celso Schroder me convidou para participar da elaboração do projeto gráfico de “um futuro periódico universitário”. A manhã em que se fundiram o nascimento do Hipertexto e do Gustavo efetivamente como jornalista. Foram dias e noites de conversas, discussões e idéias com profissionais consagrados – entre eles o Luiz Adolfo e a Ana Maria Benedetti. Para ver se teria viabilidade, colocamos o projeto em prática, mas de modo experimental, durante a realização da 51ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que ocorreu na PUCRS em julho daquele ano. E deu certo! Assim, em outubro de 1999, na companhia da “editora-aluna” Lisiane Oliveira e de mais 17 “repórteres-alunos”, vi um sonho sendo concretizado. Éramos um jornal. E com algumas peculiaridades. Primeiro, “Hypertexto” era escrito com “y”. Parece estranho, não é? Mas não poderia ter saído de outra mente que não fosse a do professor Tibério. Esse dinossauro do jornalismo que, ao lado do mestre Leonam, sempre exige de seus alunos, além da matéria, o molho final para deixá-la mais gostosa ao leitor. Apesar de ele ser um ilustre cidadão do Alegrete, tenho certeza que essa frescura foi dele. Segundo detalhe, e o mais intrigante: a capa tinha como manchete “Um jornal à vista”. Mas não era o Hipertexto, não! Nossos repórteres – dois guris do segundo semestre – haviam desvendado que o prédio em construção na Rede Pampa seria sede de um novo jornal diário no Estado. O que dois anos mais tarde veio a ser O Sul, onde tive meu primeiro emprego como repórter. Hoje, acredito que as experiências editorial, gráfica e de reportagem pelas quais passei no Hipertexto estão sendo fundamentais na minha trajetória. Apesar de estar no sangue o ofício de repórter, atualmente atuo como editor de plantão de Zero Hora. Sou responsável pelo jornal na madrugada. Cargo que me exige muita atenção, agilidade e responsabilidade no momento de avaliar se devo ou não parar a rotativa e fazer atualizações na edição que está rodando. Posto que exige muito feeling para decidir se a notícia merece destaque na capa ou contracapa. Obviamente, nas suas devidas proporções, a realidade do Hipertexto está muito próxima a do mercado. São reuniões de pauta, de capa, reportagens, edição, diagramação, checagem de informação, preocupação com o conteúdo, casamento de foto com título e legenda. Ou seja, é o que acontece aqui fora da faculdade. Foi isso o que eu aprendi aí dentro. Isso é o que eu faço hoje: quebro a cabeça todos os dias para não cair no comum, para não ser apenas mais um jornalista que não cumpre sua missão social: a de informar com qualidade, ética e paixão. Gustavo Souza com o primeiro número do Hiper na redação de ZH Enfim, não estou tentando dizer que todos que passarem pelo Hipertexto estarão inteiramente prontos para cair no mercado e serão os melhores focas já vistos nas redações. Todavia, acredito em um velho brocardo: Foi dado o prego e o martelo, agora vocês só têm de pregar. Apoio cultural: Zero Hora. Impressão: Pioneiro, Caxias do Sul. Tiragem: 5.000 Hipertexto Jornal mensal da Faculdade de Comunicação Social (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Avenida Ipiranga 6681, Jardim Botânico, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected] Site: http://www.pucrs.br/famecos/ hipertexto/045/index.php Reitor: Ir. Joaquim Clotet Vice-reitor: Ir. Evilázio Teixeira Diretora da Famecos: Mágda Cunha CARTAS O jor nal jornal Adeus a Daniel Herz O falecimento do jornalista Daniel Herz, em 30 de maio, representa a perda não só de um profissional notável no exercício de suas atividades, mas, sobretudo, de um militante. For mado pela Unisinos, entendia que um país democrático passa, antes, pela democratização do sistema de comunicação utilizado. Além disso, sempre teve o cuidado de realizar ação política através da análise teórica. No entanto, seu recato ao não assinar produções intelectuais tornou difícil a identificação completa do que fez. Herz morreu no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, após seis anos de sofrimento devido a um câncer de medula, classificado como “mieloma múltiplo”. Aos 51 anos, ainda conseguiu acompanhar o desenvolvimento de sua última bandeira, a introdução da TV Digital no Brasil. HIPERTEXT O HIPERTEXTO Coordenadora/Jornalismo: Cristiane Finger Produção dos Laboratórios de Jornalismo Gráfico e de Fotografia. Professores responsáveis: Tibério Vargas Ramos e Ivone Cassol (redação e edição), Celso Schröder (arte e editoração eletrônica) e Elson Sempé Pedroso (fotojornalismo). ESTAGIÁRIOS Gerente de Produção: Thaís Almeida Editores: Ana Carola Biasuz, Fábio Rausch e Natália Gonçalves. Editoras de fotografia: Daiana Bein Endruweit e e Fernanda Fell Editora de arte: Manuela Kanan Repórteres: Alessandra Brites, Carmel Mostardeiro, Francisco D. Prato, Guilherme Zauith, Jesus Alberto Bardini, Júlia Pedrozo Pitthan, Laion Machado Espíndula, Lucca Rossi, Luisa Kalil, Mariana Gomide, Mauro Belo Schneider, Natália Gonçalves, Rafael Ter- ra, Raíssa de Deus Genro, Renan V. Garavello, Raphael Leite Ferreira, Tatiana Feldens, Tatiana Lemos, Vinícius Roratto Carvalho, Wagner Machado da Silva. Repórteres fotográficos: Daiana Bein Endruweit, Eduardo Mendez, Elisa Viali, Fabrícia Albuquerque, Fernanda Fell, Juliana Freitas, Lucas Uebel, Manuela Kanan, Marina Volpatto, Nicolas Gambin, Rodrigo Tolio. Diagramadores: Bruno Bertuzzi, Julia Pitthan e Manuela Kanan. H IPER TEXT O IPERTEXT TEXTO 3 N ACIONAL Porto Alegre, junho de 2006 Base aliada está um ano sem mensalão O carismático presidente Lula, imune a denúncias políticas, continua liderando as pesquisas P O R F ÁBIO R AUSCH Um ano depois de o ex-deputado cassado do PTB Roberto Jefferson declarar, no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, que parlamentares do Partido Progressista e do PL recebiam mesada, de R$ 30 mil, para votar projetos do governo na Casa, o Partido dos Trabalhadores, enfraquecido, eticamente, contrasta com a imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Carismático e entusiasmado pelos resultados do mandato que encerra, ele concorre à reeleição. Para isso, conta com um índice de aceitação pessoal próximo a 40%. Nem os 26 pedidos para seu impeachment, quatro a mais do que foi movido contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em dois mandatos sucessivos, abalaram a imagem de Lula. O PSDB, mediante representação no Tribunal Superior Eleitoral, tenta instaurar investigação judicial contra o petista, “por abuso de poder político e de autoridade, ao utilizar recursos e infra-estrutura públicos para antecipar a campanha”. O ex-comentarista da Rede Globo Franklin Martins, durante o 32º Congresso Estadual de Jornalismo, realizado nos dias 2 e 3 de junho, em Porto Alegre, ressaltou que os articuladores da última campanha de Lula não mais estão com ele. São os casos do ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado José Dirceu, que, depois de ser sair do governo, foi cas- sado no plenário da Câmara; do exministro da Fazenda Antônio Palocci; e do ex-marqueteiro do PT Duda Mendonça. Todos foram afastados por acusação de envolvimento em práticas consideradas irregulares e corruptas. Além disso, Martins entende que falta sustentação política no governo. “O PT saiu muito arranhado da crise, já que a capacidade de Lula em atrair apoio político diminuiu no processo e o abalo da questão ética proporciona desconforto ao presidente”. O sociólogo da Fundação de Economia e Estatística Carlos Winkler estima que, para o próximo mandato parlamentar, o PT tenha sua bancada reduzida a 30% no Congresso Nacional. Em contrapartida, ele atribui o sucesso pessoal do presidente Lula às ações de governo desempenhadas, como os progressivos amentos do salário mínimo (em abril, o ganho real foi de 13%, passando a R$ 350) e os pacotes de apoio à agricultura familiar, além da implementação de políticas sociais (ao final do atual mandato, 10 milhões de famílias devem receber média mensal de R$ 40 através do Bolsa Família). “Esse conjunto de fatores faz com que Lula tenha um acentuado grau de legitimidade”, diz. Embora considere importante o trabalho da Polícia Federal e do Ministério Público, cujo procurador geral, Antônio Fernando de Souza, comprovou a existência do mensalão em relatório recente, Winkler ob- EVARISTO SÁ/AFP Roberto Jefferson abriu o bico e foi cassado serva um comportamento “viciado” no decorrer das comissões parlamentares de inquérito. Uma investigou o pagamento de mesada a parlamentares, outra, a supervalorização em licitações dos Correios. “Basta denunciar qualquer um, reverberar isso na mídia, para tornar qualquer fato verdadeiro”, assevera. Martins frisa que a crise recente mostrou a insuficiência do modelo político vigente, cuja conseqüência é “a fragmentação partidária, falta de controle dos partidos sobre seus parlamentares e do eleitor em relação eleito”. O analista sugere uma revisão sistêmica para o início do próximo governo. A cláusula de barreira, der- rubada no Congresso Nacional para outros pleitos, mas garantida nesta eleição por determinação do Supremo Tribunal Federal, obriga os partidos a obterem 5% dos votos para deputados, nacionalmente, e, pelo menos, em nove estados, 3%. Caso contrário, a sigla fica impedida de ter um funcionamento parlamentar pleno e de acessar aos recursos do fundo partidário. O analista político prevê migrações ou fusões partidárias entre as legendas que não atenderem à determinação eleitoral. “Dois anos depois das eleições, de 19 partidos restarão oito ou sete em funcionamento”. O sociólogo da FEE lamenta que Compós e Alaic selecionam Jornalismo perde um dos trabalhos da FFamecos amecos seus principais militantes D A R EDA ÇÃO As associações Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e a Latino-Americana de Pesquisadores da Comunicação aprovaram, cada uma, quatro trabalhos desenvolvidos na Famecos/PUCRS. No 15º Encontro da Compós, ocorrido entre 6 e 9 de junho, na Universidade Estadual de São Paulo, em Bauru, que teve 297 participantes, o coordenador do Pós na Famecos, Juremir Machado da Silva, a doutoranda Juliana Tonin e a mestranda Bárbara Mickel apresentaram textos no Grupo de Trabalho de Comunicação e Tecnologia. A professora Cristiane Freitas esteve no GT de Comunicação e Cultura, enquanto o professor Antonio Hohlfeldt e o aluno de iniciação científica Fábio Rausch, no de Jornalismo. Segundo a coordenadora do Pós na Unesp, Ana Silvia Lopes Davi Médola, o evento da Compós garantiu “um efetivo debate sobre disciplinas da comunicação e suas re- lações com outras áreas do conhecimento”. Ela acredita que o intercâmbio entre universidades do país contribui para “a criação de um ambiente de cooperação no desenvolvimento do diálogo acadêmico”. Para o Congresso da Alaic, a ser realizado entre 19 e 21 de julho, no campus da Unisinos, foram selecionados os trabalhos da diretora da Famecos, Mágda Cunha, e do professor Luciano Klöckner no GT Jornalismo, Linguagem e Conhecimento; de Antonio Hohlfeldt e Fábio Rausch no de Jornalismo e Poder; e o da professora Doris Haussen no de Formatos Jornalísticos. A pauta de discussão do evento será “O papel da comunidade científica latino-americana e da mídia em um contexto de desconfiança nas instituições democráticas”. Os temas estão voltados às relações entre comunicação e cultura, desenvolvimento, história e política. Inscrições até 20 de julho, via internet (www.unisinos. br/eventos/alaic) ou direto na Unisinos. P O R M AURO B ELO S CHNEIDER Seu nome não integrava a lista das celebridades, mas ele tinha muitos amigos e era reconhecido pela seriedade e o zelo com que abraçava as causas. A morte de Daniel Herz deixa uma laD IVULGAÇÃO cuna na história da comunicação brasileira. Formado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o Daniel Herz jornalista faleceu em 30 de maio, no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Há seis anos vinha lutando contra um câncer de medula, classificado como “mieloma múltiplo”. Herz era um militante de causas ligadas às políticas e democratização da comunicação. Desde cedo demonstrava o seu engajamento por essas questões. Foi em 1974, duran- te a faculdade, que criou a Associação de Promoção da Cultura (APC), em que lançou as primeiras bases conceituais da televisão a cabo. Quando cursou mestrado, teve como fonte de inspiração o professor de engenharia elétrica da Ufrgs Homero Simon. A partir daí nasceu o livro A história secreta da Rede Globo, que relatou os bastidores do maior grupo de mídia do país. A vida de Herz era repleta de responsabilidades. Foi professor e chefe de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coordenador da Frente Nacional de Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, coordenador da campanha da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) no Congresso Constituinte, secretário de Comunicação do primeiro governo do PT na prefeitura de Porto Alegre e primeiro coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, surgido na década de 90. Aos 51 anos, sua última bandeira de luta foi a introdução da TV digital no Brasil. o sistema político brasileiro configure um “semi-presidencialismo, capaz de tornar o presidente da República refém do Congresso”. Há um ano sem mensalão, as atividades parlamentares ficaram imobilizadas. Para vigorar no início de abril, o salário mínimo contou com a edição de medida provisória pelo governo federal, já que o Orçamento da União para este ano ainda não havia passado por votação. Algumas das medidas para a solução, diz Winkler, são a reforma política e o financiamento público de campanhas. No momento, três dos 19 indicados para a cassação no plenário da Câmara perderam o mandato. O motivo é acusação de participação no esquema do mensalão. Além de Roberto Jefferson e José Dirceu, o expresidente do PP Pedro Corrêa foi cassado. Neste mês, 12 integrantes do Conselho de Ética recomendaram o mesmo destino ao ex-líder do PP José Janene, cujo julgamento deve acontecer em julho. Sobre as eleições marcadas para outubro deste ano, Martins considera que Lula larga em vantagem, pelo fato de concorrer no cargo. Nos Estados Unidos, ao longo do século 20, apenas dois presidentes candidatos à reeleição foram derrotados, Bush pai e Jimmy Carter. “Um presidente, nessa condição, tem a possibilidade de fazer agenda política, como neste ano, em que o governo aumentou o salário mínimo e concedeu um pacote para a agricultura”. MARCOS COLOMBO/ASCOM Matte, Mariane e Clotet Mariane de Lucca na Espanha Uma visita de 20 dias à Espanha e Portugal é o prêmio que a jornalista Mariane De Lucca Teixeira, recémformada em Jornalismo pela Famecos, vai usufruir em julho. Indicada pela faculdade, ela foi selecionada para participar do Programa Becas Líder, promovido pela Fundação Carolina, da Espanha, ao apresentar cinco textos sobre as principais problemáticas do mundo. O prêmio foi entregue em cerimônia com a presença do reitor Joaquim Clotet e do gerente do Programa Universidades do Santander, Carlos Guilherme Matte. 4 SOLIDARIEDA D E Porto Alegre, junho de 2006 HIPERTEXT O HIPERTEXTO Receita para envelhecer lúcido e ativo Eles se mantêm produtivos através de trabalhos manuais, exercícios físicos, canto e jogos de memória EDUARDO MENDEZ R AF AEL F ERREIRA AFAEL Um raciocínio simples: por que ficar parado esperando a morte chegar se eu ainda posso fazer tantas coisas na vida? É com esse pensamento que um grupo de idosos se reúne todas as semanas para conversar, trocar experiências e realizar diversas outras atividades. O Projeto Enrique’Ser na Melhor Idade (o nome faz referência a Santo Enrique) foi criado no dia 3 de agosto de 2004 por iniciativa da Companhia Santa Teresa de Jesus, fundada por Santo Enrique. Na época, foram distribuídos aproximadamente de 3.000 convites nos prédios e igrejas dos bairros Centro e Cidade Baixa, anunciando o início do projeto que se desenvolve na casa das irmãs na Avenida João Pessoa. Cerca de 70 pessoas estiveram presentes na primeira reunião do grupo e assinaram um livro de registros, o que concedeu um caráter oficial ao evento. Os participantes foram convidados a fazer parte de um programa cuja a finalidade seria ajudar a eles mesmos. Ao invés de ficar em casa “criando teias de aranha” e sentindo-se inúteis, eles poderiam se unir para trocar experiências, aprender coisas novas uns com os outros, ajudar pessoas carentes e, principalmente, manterem-se sempre ativos. Hoje, quase dois anos depois, eles continuam se reunindo todas as terças e quintas-feiras na casa das Irmãs Teresianas, na avenida João Pes- soa. Embora, muitos dos participantes iniciais não estejam mais com o grupo, vários novos membros se uniram a ele, mantendo assim a média de 70 pessoas, entre 50 e 70 anos de idade, desde o começo. Uma mudança perceptível na formação atual: diversos homens estão participando do projeto, diferente do que era visto antes, quando era composto quase exclusivamente de mulheres. As irmãs teresiana Maria Guarnieri, 64 anos, e Adelaide Giacobo, coordenam o grupo. Segundo Maria, o objetivo principal do trabalho é dar um novo ânimo para a vida desses idosos. “Fazer com que tenham uma velhice feliz, sejam amados, criem novas amizades”, afirma. Para isso, são propostas diversas atividades como artesanato, coral, fisioterapia, curso de memorização e o grupo de convivência. Este último é considerado, por ela, a mais importante de todas realizações do projeto. Nos encontros todas as terças-feiras, os integrantes discutem os assuntos nos quais têm interesses em comum, contam seus problemas uns para os outros, dividem suas diferentes experiências de vida, aprendem conhecimentos com os outros e apóiam-se mutuamente. Outra atividade muito importante é o coral organizado pelo professor de música Ângelo Constantino Pires. Objeto de dedicação dos idosos, que ensaiam uma vez por semana, as sessões de canto já levaram o grupo a realizar várias apre- Projeto Enrique’Ser na Melhor Idade vai completar dois anos sentações públicas das quais sentem orgulho. Técnicas vocais De acordo com Ângelo, são desempenhadas, em média, uma apresentação por mês. Por serem guiados por um professor formado, os membros adquiriram afinação, fôlego e técnicas vocais que não seria de se esperar de pessoas da terceira idade. Assim, mesmo aqueles que não possuem grande talento para o canto, conseguem participar sem enfrentar muitas dificuldades. Nos últimos tempos, há participação também de instrumentos musicais, como o violão e a gaita ou sanfona. O artesanato, ensinado pela voluntária Arminda Rodrigues Pereira, é uma maneira de mostrar aos ido- sos que eles ainda podem criar muitas coisas na vida. Além de servir como passatempo, os produtos feitos são vendidas, complementando a renda dos participantes, quase sempre dependentes de pequenas aposentadorias e da ajuda dos filhos para sobreviver. O tipo de trabalho realizado pelos membros do grupo muda a cada bimestre, diversificando os itens produzidos. Já foram ensinadas a confecção de bolsas, tricô e crochê, feitas na maioria das vezes com materiais recicláveis. No mês de maio, a tarefa realizada foi a pintura de objetos de madeira e, em breve, será a vez da produção de trabalhos manuais. Como muitos dos integrantes já estão em idade avançada, alguns sofrem com os efeitos do tempo. Para NICOLAS GAMBIN Idosos se reúnem todas as terças e quintas-feiras na casa das Irmãs Teresianas, na avenida João Pessoa, em Porto Alegre manter a saúde, tanto física quanto mental, são oferecidas, uma vez por semana, sessões de fisioterapia e aulas de memorização. A terapeuta voluntária Gisele Gabinosky cuida da mobilidade física dos idosos, ensinando a eles exercícios necessários “para não enferrujar”, como diz uma das integrantes. Isso garante a muitos deles um serviço ao qual jamais teriam acesso devido ao custo financeiro que este tipo de terapia costuma demandar. Para manter suas mentes em forma, o professor Ângelo promove exercícios de memória e raciocínio, ativando as faculdades mentais desgastadas pelo passar dos anos. Em alguns casos, a saúde da pessoa chega a ser surpreendente. Como é o caso de Dona Egídia, 87 anos, que canta e dança o tempo todo, superando inclusive a própria filha que também faz parte do grupo. Outro exemplo é de Dona Isolete que, aos 78 anos, mantém-se ativa durante o dia inteiro participando de várias atividades e eventos. “Sermos novos Enriques no mundo moderno”, esse é o objetivo da Companhia Santa Teresa de Jesus que criou o grupo há dois anos. Para isso receberam o incentivo da recém criada Pastoral da Terceira Idade que segue os padrões de espiritualidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Irmã Maria explica que o objetivo das Irmãs Teresianas é também “fortalecer a espiritualidade na terceira idade”. Idosos ainda fazem doações a carentes Além do benefício proporcionado pela participação no projeto Enrique’Ser na Melhor Idade, os idosos também ajudam outra pessoas. São organizadas campanhas para arrecadar doações para famílias carentes. Na época de Natal, por exemplo, reuniram brinquedos, calçados e roupas que depois foram doados para crianças da Ilha das Flores. A próxima ação beneficente deverá atingir as famílias carentes da Vila Grande Cruzeiro. Serão formados pequenos grupos de cinco participante. Cada grupo “adotará” uma família necessitada da região e vai ajudá-la da maneira que for possível, arrecadando alimentos e roupas. O professor de música Ângelo Constantino Pires, de 34 anos, trabalha com idosos há 10 anos e já esteve em projetos cujo enfoque era atender pessoas de baixa renda. Sua preocupação com carentes desperta a admiração e confiança nos membros do grupo, gerando um sentimento de responsabilidade social e solidariedade. H IPER TEXT O IPERTEXT TEXTO R E S P O N S A B I L I D A D E5 Porto Alegre, junho de 2006 Igreja prega inclusão social do deficiente A Campanha da Fraternidade de 2006 alerta para o destino de 27 milhões de brasileiros CARLA KUNZE CARLA KUNZE O lema da Campanha da Fraternidade 2006 da Igreja Católica – um trecho da Bíblia em que Jesus dirige a palavra a um homem que não pode caminhar –, diz tudo: “Levanta-te e vem para o meio.” Traduzindo: não te deixes excluir, ou ainda, luta pelo teu direito à cidadania. Cidadania pressupõe uma série de fatores, e um dos mais importantes é um dilema para os portadores de deficiência do nosso tempo: a inserção no mercado de trabalho. Eles não são mais aqueles filhos criados fechados em casa, que os pais, por proteção ou vergonha – decorrentes talvez de um sentimento de culpa pela deficiência, muitas vezes gerada por tabus religiosos -, escondiam da visão pública. Hoje eles se encontram em um número muitas vezes maior, no Brasil são aproximadamente 27 milhões, e precisam ganhar o seu sustento, quando não da família que montaram. Na Roma antiga, os pais eram autorizados a matar seus filhos defeituosos. Outros povos execravam publicamente os indivíduos deficientes. De lá pra cá, a evolução das relações humanas trouxe a estas pessoas consideradas “diferentes” a esperança de conquista da cidadania plena. Durante muito tempo, pelo menos até o final dos anos 40, os deficientes resumiam-se aos nascidos com malformações congênitas ou os acometidos por doenças da velhice. Os inválidos por acidentes ainda representavam uma porcentagem mínima, a maioria não sobrevivia. A partir do final da Segunda Guerra Mundial, este número aumentou e a deficiência passou a ser considerada um fenômeno causado pela realidade social. Com a retomada da industrialização, nos anos 50, duas vertentes iniciaram um confronto: uns acreditando na reabilitação dos deficientes para o trabalho e outros se opondo à reserva de vagas nas grandes indústrias. Os anos 60 e 70 trouxeram os movimentos reivindicatórios, e com eles, o surgimento dos primeiros documentos que iriam dar cunho político, econômico e social às questões de trabalho para os deficientes. A ONU lançou, em 1971, a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental e em 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Seguindo seus preceitos, a OIT aprovou, em 1983, a Convenção 159 Sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes. Legislação No Brasil, ainda não havia nenhuma ação concreta do poder público ou da iniciativa privada antes da Constituição Brasileira de 1988, quando se consolidaram os direitos sociais e individuais dos portadores de deficiência, inclusive os de acesso ao trabalho no País. Em dezembro de 1999, o Governo Federal editou o Decreto 3.298, que regulamenta a Lei 7.853 (1989), garantindo às pessoas portadoras de deficiência as reais possibilidades de inclusão em todas as esferas da vida, reconhecendo que, como todos os cidadãos, estas pessoas têm direito à participação social plena, princípio embutido na Convenção 159. O Decreto retoma, no seu Art. 36, o que já estava presente no Art. 93 da Lei 8.213 (Plano de Benefícios da Previdência Social, 1991): a obrigatoriedade legal da empresa com cem ou mais empregados de preencher de 2 a 5% de seus cargos com beneficiários da Previdência Social reabilitados ou com portador de deficiência habilitada. Entre 1991 e 2000, a fiscalização sempre foi rarefeita. Mas, através de uma portaria, a partir do início de 2000, o Ministério do Trabalho e Emprego ficou incumbido de fiscalizar o cumprimento do Decreto. O Ministério Público do Trabalho tem convocado as empresas privadas a submeterem-se à Lei. Deste momento em diante, o debate em torno do tema emprego para as PPDs tem sido sobre como, na atual conjuntura econômica do país, as empresas privadas conseguirão contratar a porcentagem de deficientes estipulada pelo Decreto e se há portadores de deficiência profissionalmente qualificados para assumir os postos de trabalho abertos pela imposição das cotas. Muitos não estão qualificados para exercer tarefas profissionais específicas, até porque não tiveram escolaridade ou não passaram por nenhum programa de educação profissional, mas o fato é que precisam trabalhar para ter independência econômica e qualidade de vida. Mesmo com todas as possibilidades de sucesso nestes empreendimentos educacionais e profissionalizantes, uma parte da população deficiente fica de fora. São os portadores de deficiência mental. Mesmo quando fazem cursos e têm a oportunidade de estagiar, principalmente em órgãos públicos, o destino deles é o retorno ao lar. Eles terminam o estágio e não conseguem efetivação, ninguém dá emprego a eles e acabam retornando à casa dos pais. Para muitos, esta é uma situação de humilhação. Depois de terem se mostrado capazes de pegar o ônibus sozinhos para ir e voltar do trabalho, assumir e cumprir as tarefas que lhes são dadas, de acordo com sua capacidade, quando estão a poucos passos de se efetivarem no cargo de cidadão, como todo e qualquer jovem estagiário almeja, alguém os informa que tudo acaba ali, o esforço foi em vão. Aí entram, então, o carinho e a dedicação de pais que se unem a educadores e formadores na tarefa de dar a este jovem a estrutura capaz de impedir a sua total exclusão social e até a marginalização. Cooperativa CrêSer foi fundada por um grupo de mães para suprir limitações das escolas especiais Cooperativa de mães para garantir o trabalho após a maioridade Ao completarem 21 anos, os jovens portadores de necessidades especiais têm de deixar as escolas especiais onde estudam, e a continuidade da sua formação depende, muitas vezes, de iniciativas que partem dos próprios pais ou de entidades assistenciais. Em 1997, um grupo de mães com filhos em várias escolas especiais, preocupadas com o destino que teriam ao completarem maioridade, decidiram formar uma cooperativa e buscar ajuda em vários setores do poder público e da iniciativa privada. Nascia ali a Cooperativa CrêSer, que alguns anos depois, em 2000, conseguiu a construção da sede que mantém no número 1001 da rua Capitão Pedro Werlang, no bairro Intercap, zona leste da capital. Em parceria com a Secretaria Municipal da Educação (Smed), que disponibiliza os professores, a instituição proporciona a continuidade da educação destes jovens no período da manhã, quando funciona ali uma escola EJA – Educação de Jovens Adultos. É única unidade do EJA no estado a atender exclusivamente portadores de deficiência mental. À tarde, a CrêSer oferece oficinas de formação profissional. São adultos com Síndrome de Down, Paralisia Cerebral e Esquizofrenia que aprendem ofícios e trabalham nas oficinas de papel reciclado, panificadora e confeitaria, e na horta, produzindo mudas e cultivando verduras em uma horta CARLA KUNZE Projeto tem panificadora e confeitaria para formação profissional mantida sem agrotóxicos no terreno da entidade. Marcos, filho de uma das ex-presidentes, Marizete Marques da Cruz, é um exemplo disso. Ele trabalha com as mudas, e já está cultivando e comercializando em casa. “E o que ele quer, decidiu isso de três meses pra cá, disse que é isso que ele quer fazer da vida dele. Fico feliz, meu filho encontrou seu caminho e a CrêSer tem parte nesta vitória”, diz. Os pais dos jovens são responsáveis pelas oficinas e pela administração da cooperativa. Todos doam algumas horas na semana, o tempo que podem, ao trabalho com os jovens. Gustavo, 28 anos, morador da Restinga, é filho de uma mulher que carrega no nome o significado que ultrapassa a responsabilidade e o amor de uma mãe: Santa. Santa Catarina Serpa Bassetti, uma das fundadoras da CrêSer, conta que Gustavo tem uma lesão cerebral que limita as possibilidades de se inserir formalmente no mercado de trabalho, que já é competitivo para que não tem necessidades especiais. Participando há quatro anos das oficinas, mãe e filho encontraram naquele espaço mais do que uma alternativa à exclusão social a que estavam destinados, ali eles unem-se a outras famílias com quem compartilham dramas pessoais, dificuldades, conquistas e alegrias. Gustavo trabalha na reciclagem de papel: “Ele adora trabalhar, sabe que sobra um dinheirinho, às vezes pras comprar as coisas de que ele gosta”. 6 R E P O R TA G E M H Porto Alegre, junho de 2006 Costumes da terra do sol nascente chegaram ao Pampa há 50 anos A tradição japonesa se integra, mas conserva sua origem em casa e no coração MANUELA KANAN MANUELA KANAN A dois anos do centenário da imigração japonesa no Brasil, a ser celebrada em 21 de junho de 2008, o Rio Grande do Sul enxerga sua própria comemoração. Apesar de vários nipônicos terem chegado ao estado para fugir dos efeitos da guerra, a maioria veio das próprias colônias de São Paulo. Mesmo assim, a migração não deixa de ser mais recente. Augusto Isamu Aso, dono da loja Midori – Arte e Decoração, explica que, como chegaram antes, os “japoneses paulistas” são mais abrasileirados, os gaúchos ainda puros. Talvez pelo histórico isolacionismo, os japoneses têm uma característica de manterem sua cultura, ou pelo menos parte dela, mesmo longe de seu país. Esse fato pode ser considerado como motivo principal dos agrupamentos em comunidades e colônias. Geralmente adaptam algumas de suas peculiaridade ao estilo de vida ocidental. Um exemplo é a maioria dos nascidos no Brasil ter dois nomes: um brasileiro, outro japonês. Reconhecer um japonês não é difícil, não só pelas características físicas, como olhos puxados ou cabelos escuros e lisos. Eles têm uma maneira de agir que denuncia sua origem sem fazer esforço. O jeito sério e introspectivo. Uma risada tímida, mas sincera. Um jeito de falar objetivo e enrolado ao mesmo tempo. Uma vontade de sempre ajudar os outros. Um impulso por fazer as coisas direito. Esse comportamento próprio conquista os brasileiros, fazendo crescer o interesse por um país e uma cultura tão distante e ao mesmo tempo tão próxima. Eles podem até não conversar muito no início, mas depois de conhecê-los e conquistar sua confiança, a história muda completamente. Uma das surpresas na convivência é a alimentação. Entrando na casa de um japonês, não será difícil encontrar os famosos hashi, também conhecidos como palitinhos, junto aos garfos e facas. Instrumento utilizado desde a antigüidade para a alimentação, se mantém em uso até hoje. A dificuldade ocidental de manuseá-los é comum, o que faz alguns restaurantes oferecer em uma versão simplificada, com uma “borrachinha” na ponta, formando uma pinça. P O R C ARMEL M OST ARDEIRO OSTARDEIRO E M ANUELA K ANAN Isao Ishibashi veio pela primeira vez ao Brasil em 1988 como professor delegado do Ministério da Educação do Japão para fiscalizar cinco escolas japonesas que existem no Brasil. Ficou até 1991. Durante essa época, ele alternava três meses no Brasil e o mesmo período no Japão. “Não aprendi nada de português”, diz ele. De 1994 ao início de 2000, veio outra vez como professor da Fundação Japão. Do segundo semestre de 2000 para cá, dá aulas de japonês na PUCRS. Assim como ele, outros 1,5 mil japoneses vivem no Rio Grande do Sul. Há também três mil descendentes. A maioria deles vive em Porto Alegre: cerca de 600 pessoas. Depois da II Guerra Mundial, o Japão esta- va arrasado pelos combates. “É como a situação atual do Iraque”, enfatiza o cônsul do Japão em Porto Alegre, Hajime Kimura. E a recuperação foi lenta. Por isso, os japoneses queriam tentar outra vida em outros países. Um deles foi o Brasil. A imigração japonesa para cá começou em São Paulo. Temse como data de início o dia 18 de junho de 1908, quando desembarcaram no Porto de Santos 781 japoneses. Eram, em sua maioria, agricultores de famílias sem muitas posses que desejavam voltar ao seu país de origem. No Rio Grande do Sul, a imigração aconteceu, além dos fatores sociais e econômicos do Japão, também porque o governo do estado precisava de técnicos agrícolas. Firmaram, então, Japão e governo estadual, uma parceria. O primeiro grupo de japoneses a desembarcar no estado, em 1956, era formado por 23 homens. Desses, MANUELA KANAN Jogo treino de Softball do time feminino da comunidade Enkyo Jogo infantil realizado em Gravataí na sede do Enkyo, durante o Undokai, a gincana familiar japonesa Samurai, já é bastante conhecida. Dependendo da família, o costume ainda é mantido, mas nem sempre com tanta fidelidade. Em alguns lugares, um par de chinelos, chamado suripa, é deixado perto da porta de entrada. Os jovens, entretanto, preferem ficar de pés descalços. Boa parte dos orientais assiste ao canal NHK, uma das principais emissoras do Japão. Os programas exibidos são bastante variados, desde telejornais e novelas até programas de auditório e música. É claro, tudo em japonês. Entretanto, a cultura vai se fundindo cada vez mais à brasileira. Aos poucos, o que antes era mantido em homenagem à tradição começa a perder a importância ou a prioridade. Aso explica que por ter se casado com uma ocidental, acabou deixando um pouco de lado esses costumes, aderindo mais aos locais. O mesmo ocorreu com seus irmãos. Fidelidade às raízes: comunidade pratica jogos típicos do Japão Colônia promove cultura, assistência e esportes No Rio Grande do Sul, imigrantes e descendentes de japoneses se organizam em comunidades ou associações. Todas são interligadas com o consulado e existem em diversas cidades do interior como Pelotas, Santa Maria, Itapuã e Viamão, assim como na capital. As mais representativas são de Gravataí, chamada de Enkyo, Ivoti, e a de Porto Alegre, conhecida como Nikkei, denominação dada aos descendentes nascidos fora do Japão ou que vivem regularmente no exterior. A maioria dos nipo-brasileiros de Porto Alegre é membro do Nikkei. Sua antiga sede, situada em Guaíba, foi vendida para a construção da fábrica da Ford no Rio Grande do Sul. Com a desistência da companhia, a associação pretende recuperar o terreno. Entre os eventos que organiza, um dos mais importantes e com maior repercussão é o Undokai (literalmente undo: esportivo, kai: encontro). Uma espécie de gincana familiar em que equipes competem para ganhar pontos e prêmios. Também promovem almoços, churrascos, encontros esportivos, como jogos de futebol e vôlei, e até festas juninas. A Enkyo oferece assistência a todas as comunidades japonesas gaúchas. Concede bolsas de estudo e, através de convênio com o Hospital São Lucas da PUCRS, oferece auxílio médico aos nipo-brasileiros. Atualmente, é uma das maiores e mais forte associação do estado. A colônia de Ivoti não fica muito atrás, porém teve um desfalque significativo nos últimos anos. Por esse motivo, em 2005, alguns jovens criaram o Seinenkai, que significa literalmente encontro de jovens, para “resgatar a cultura japonesa” da região. Estudar japonês Apesar de não ser mais tão comum hoje, os pais costumavam incentivar os filhos a estudar japonês desde cedo. A escola Moderuko era freqüentada por crianças em alfabetização para aprenderem a língua, e por adolescentes e adultos.Para incentiválos a manter os estudos, os professores passavam filmes infantis, equivalentes aos “clássicos da Disney”, como a Cinderela para as crianças. Uma das mais difundidas foi a obra Tonari no Totoro (Meu vizinho Totoro), de Hayao Miyazaki, o criador de A viagem de Chihiro, laçado em 2001. O filme conta a história de duas meninas que se mudam para o campo, para ficar mais perto da mãe que está doente. Lá elas encontram um novo amigo, um ser mágico que divide uma grande aventura com as duas (Totoro). As colônias do interior, mais tradicionais, têm suas próprias escolas. Em casa, os pais só conversam com os filhos em japonês. Porém, a maioria desiste quando entra no colégio, por desinteresse ou falta de tempo. Hoje, o ensino infantil da língua é re- 7 COMUNIDADE É MAIOR EM PORTO ALEGRE Arroz no café O prato dominante é o arroz branco, chamado de hakumai ou gohan, quando cozido. Eles utilizam em casa uma panela elétrica específica para o cozimento do arroz, que não só facilita a preparação como mantém a comida quente por bastante tempo. É inevitável que algo seja perdido na adaptação cultural. É o que acontece com o hábito de comer arroz no café da manhã. “Hoje, não só os mais jovens, como os próprios issei comem pão na primeira refeição do dia, do mesmo jeito que os ocidentais”, diz Aso. A tradição de tirar os sapatos antes de entrar em casa, bem retratada por Tom Cruise no filme O Último HIPERTEXT O HIPERTEXTO alizado dentro de casa, pois as escolas estão direcionando seus cursos para os mais velhos. Esportes Um dos esportes mais desenvolvidos no Japão é o baseball. Coube aos imigrantes nipônicos a tarefa de difundir os jogos no Brasil. Assim, foi criada a Confederação Brasileira de Baseball e Softball, com sede em São Paulo. Desde então, técnicos, torcedores, jogadores e até dirigentes de clubes têm sido predominantemente de origem oriental. De acordo com o jornalista Yuji Azuma, em texto publicado no site da CBBS, “o japonês exerce hoje no beisebol o papel que o europeu teve no futebol brasileiro do início do século passado”. No Sul, os times existentes pertencem às comunidades e colônias, com destaque para a equipe de Ivoti, o All Star Team. As japonesas não ficam para trás, jogam softball, uma versão mais moderada ENTENDA As denominações issei, nisei e sansei significam primeira (issei), segunda (nisei) e terceira gerações (sansei) de japoneses. Ou seja, quem nasceu no Japão e migrou para o Brasil é a primeira geração; os filhos, nascidos brasileiros, são a segunda, e assim por diante. Literalmente, sei significa geração e i (na verdade é uma contração de ichi), ni e san representam os números um, dois e três. do baseball, com diferenciação de regras para diminuir a dificuldade. Para o pessoal de mais idade, existe o getoboru, um jogo semelhante ao críquete, trazido ao Brasil pelos imigrantes. É jogado tanto pelos homens, quanto pelas mulheres. Nas gincanas são realizadas competições, com times de cerca de cinco pessoas. Também é importante ressaltar a dança tradicional, chamada de bon-odori, apresentada pelas mulheres em diversos eventos. 22 eram os melhores estudantes formados por uma escola agrícola. O 23º era graduado em jornalismo por uma das melhores universidades do seu país. Eles vieram para se fixar aqui e com o objetivo de formar uma cooperativa com os gaúchos, mas o plano não vingou, por razões políticas principalmente. Antes disso, alguns japoneses já viviam no estado, mas a imigração planejada aconteceu somente a partir de 1956. Para comemorar os 50 anos, há uma longa programação que está ocorrendo desde o início deste ano. “O ponto alto será em agosto”, destaca Kimura. No dia 18 de agosto, será inaugurado o Monumento à Imigração Japonesa na cidade de Rio Grande, com a presença de autoridades. Nos dias 19 e 20, serão apresentadas, no Centro Cultural do Gasômetro, na capital, canções e danças japonesas, ce- rimônia de preparação de um bolo de massa de arroz, taikô e exposição de bonecos e brinquedos japoneses. Acontecerão também oficinas de origami, kirigami, bonsai, manga e anime, entre outras atividades. Comparando culturas, Ishibashi diz que o povo brasileiro é aberto aos estrangeiros, mas reclama que aqui se pagam muitos impostos e não se vê o retorno. Além da língua, outro fator que dificulta a vida dos japoneses recém chegados ao Brasil é a significação dos gestos, que são muito diferentes nas duas culturas. Flores e verduras Quando chegaram ao Brasil, a idéia inicial era de trabalhar na agricultura. No RS, se destacaram na produção de flores e verduras. As colônias do interior ainda atuam nessa função. Mas o domínio nipônico vem diminuindo nos últimos tempos. “Os filhos de japoneses estão estudando e são mais instruídos, não querem ficar no campo”, explica Ivo Hideki Korogi, estudante de Engenharia Mecatrônica na PUC e membro do Nikkei. Para muitos, a alternativa é ir trabalhar no Japão, arrecadar dinheiro e depois voltar. São os chamados dekasseguis, brasileiros de ascendência japonesa. São a maior parte dos 270 mil brasileiros que residem na terra do sol nascente. Isso ocorre graças à Lei de Controle de Imigração, editada em 1990, que permite aos japoneses e seus cônjuges ou descendentes até a quarta geração o exercício de qualquer atividade legalmente por um período relativamente longo. Nessa época, o governo precisa atrair mão de obra devido à rapida expansão econômica do país, obrigando-os a facilitar a entrada de trabalhadores. 8 ESPORTE Porto Alegre, junho de 2006 HIPERTEXT O HIPERTEXTO DAIANA ENDRUWEIT Campeão mundial enfrenta desafio fora do tatame Recuperação de cirurgia no ombro e Campeonato Mundial são as próximas batalhas do judoca gaúcho João Derly P O R V IN IC IUS C ARVALHO ICIUS O primeiro campeão mundial de judô brasileiro, João Derly, passará três meses sem competir devido à artroscopia realizada no ombro esquerdo, no dia 5 de junho último. Os médicos da seleção brasileira de judô e da Sogipa, clube de João, decidiram operar o atleta para que ele esteja recuperado antes do Campeonato Mundial por equipes, em setembro. A cirurgia foi realizada por causa das dores no ombro que o atleta sentia desde o ano passado. João, 25 anos, começou a praticar judô quando criança para ajudar a tratar problemas respiratórios. É considerado um atleta que mistura os estilos europeus e japoneses de judô, características de alguns atletas do sul do Brasil. “Talvez isso explique meu bom desempenho nas competições internacionais”. Ele se considera um judoca técnico (estilo japonês), por conhecer e aplicar todas os tipos de golpes, mas também bastante forte (característica européia), que derruba o adversário utilizando a força e o preparo físico. Muita coisa mudou na vida de João Derly após a vitória no mundial do Cairo, no Egito, em 2005. Antes do campeonato, o atleta cogitava a possibilidade de largar os treinamen- tos por falta de recursos. “A mídia ajudou muito na divulgação dos méritos que alcancei e isso fez com que alguns patrocinadores procurassem a mim e à Sogipa. Depois do Mundial, tenho condições de me dedicar aos treinos sem outras preocupações,” conta o judoca. Em maio, João Derly teve grande destaque no desafio Brasil e Japão de Judô, na cidade de Maringá, no Paraná. “Foi um embate entre duas das maiores forças do judô no mundo e foi relevante para conhecer a luta adversária”, acrescenta João que, apesar das dores no ombro, derrotou pela segunda vez o japonês Hiroyuki Akimoto, em sua terceira vitória seguida contra lutadores nipônicos em menos de um ano. A recuperação A cirurgia não deve prejudicar os treinamentos de Derly. “Não chega a ser um problema grave”, acredita, “fico afastado dos treinos específicos de judô por menos de três meses, mas fisicamente continuo treinando. Parado mesmo acho que vou ficar umas duas semanas.” O atleta também projeta que estará pronto em setembro para o Campeonato Mundial por Equipes. Os desafios do segundo semestre não são exclusivamente interna- cionais. Em dezembro, está marcada a seletiva final para os jogos olímpicos de Pequim, para a qual João já se classificou e vem estudando os adversários. “Leandro Cunha, do Clube Pinheiros, conhece bem meu estilo de luta e dificulta muito nossos combates, não raras vezes nossas lutas terminam empatadas.” Hoje, Leandro é o substituto de João na Seleção Brasileira. O judô brasileiro está passando por uma fase de conquistas. Além do Campeonato Mundial passado e a vitória sobre o Japão, uma das equipes mais fortes e tradicionais, podese esperar boas campanhas nos jogos pan-americanos e nas Olimpíadas. “O judô é um esporte que ainda está em desenvolvimento no País, apesar de ter crescido nos últimos anos através de intercâmbios com atletas de fora”, conclui Derly. Judô, uma luta leal O judô é uma arte marcial criada no Japão em 1882 por Jigoro Kano, que tinha apenas 23 anos. Os lutadores encaram-se concentrados por breves instantes. Eles encontram-se em uma área quadricular de 16 metros quadrados, separados por dois metros de distância e por um árbitro de terno azul marinho, camisa branca e gravata. Enquanto um deles veste um quimono branco e faixa preta, o outro está todo de azul, menos a faixa, também preta. Os corpos arqueados para frente no ângulo de mais ou menos 45 graus sinalizam um cumprimento, uma saudação que permite ao árbitro gritar “Hagimê”, palavra japonesa que dá início ao combate. O judô conta hoje com mais de dois milhões de praticantes no Brasil. É a luta de origem cultural japonesa mais popular no País e já rendeu aos brasileiros 12 medalhas em jogos olímpicos. Uma cena que parece retirada de algum filme ou desenho de samurais japoneses acontece diariamente em clubes e centros esportivos de todo o país. Os lutadores não trocam socos, nem mesmo chutes, o objetivo de cada um é projetar o adversário de costas no chão, ou imobilizá-lo quando derrubado. Ao fim da luta, os judocas, cumprimentam-se mais uma vez. Mesmo que não queiram, são obrigados a fazê-lo, a saudação e o respeito ao adversário fazem parte da disciplina do esporte. A história de uma União que comemora 100 anos MANUELA KANAN P O R L UISA K ALIL Porto Alegre conta com um dos maiores clubes esportivos da América Latina. No Brasil, está entre os três maiores. Fundado em 1906, o Grêmio Náutico União oferece três complexos com diversidade esportiva, além de eventos sociais, como o Baile de Debutantes e a festa de Ano Novo. Em abril, o clube comemorou 100 anos de história, revelando talentos esportivos como da ginasta Daiane dos Santos, ex-atleta da casa. O clube começou em um barraco de tábuas, conhecido como sede do Ruder Verein-Freundschaft (em português: Sociedade das Regatas da Amizade). Os fundadores eram descendentes de famílias alemãs – Carlos Arnt, Hugo e Arno Depperman, Arnaldo e Emílio Berscht. Os amigos, que convocaram as irmãs para elaborar a primeira bandeira do clube, o mesmo símbolo usado até hoje, tornaram conhecido o local chamado de “clube dos guris”. No espaço eram promovidas quermesses, passeios pelo Guaíba e reuniões dançantes. Em 1917, o governador Borges de Medeiros tomou providências para assegurar o patrimônio e direito dos cidadãos gaúchos. Porto Alegre, em tempo de administrações republicanas (1889 a 1940), tinha seus primeiros hospitais e faculdades. Telefonia, indústria e rádio ainda eram novidades. O clube precisava ter identidade nacional para se manter na sociedade porto-alegrense. Assim surge o nome Grêmio Náutico União, substituindo Sociedade das Regatas da Amizade. Hoje o clube divide suas atividades em três áreas, cada uma com seu destaque. A primeira que deu origem ao GNU, localiza-se na Ilha do Pavão, próximo ao rio Guaíba. Foi atingida por um incêndio em 1978, quando se perderam documentos preciosos sobre as regatas do passado. No bairro Moinhos de Vento, localiza-se a única unidade de um clube no Brasil com funcionamento 24 “Freqüento-o há muitos anos. Gosto de vir aqui nos finais de semana, para jogar tênis ou simplesmente encontrar os amigos”, declarou. Tradição: o mesmo símbolo desde a fundação do clube por alemães horas. Lá se encontra o “Palácio dos Esportes”, com quadras poliesportivas, arquitetadas com materiais especiais. Quem freqüenta a sede Moinhos não raro se depara com a figura do empresário Anton Carl Biederman, atual patrono do clube. Aos 70 anos, Biederman costuma nadar di- ariamente nas piscinas da chamada “sede 24 horas”. Além destas unidades, ainda há o múseu no bairro Alto Petrópolis, inaugurado em 2004. O União tem 450 funcionários e 60 mil associados. Rui de Almeida, 56 anos, é sócio desde 1970. Seus filhos também fazem parte do clube. Berço de estrelas O incentivo a modalidades esportivas faz o União ser associado a atletas consagrados, como Daiane dos Santos que deu seus primeiros passos nas quadras do GNU. O clube tem se destacado tradicionalmente em esportes como esgrima, vôlei e ginástica olímpica. O clube oferece a modalidade Ginástica Olímpica desde 1957, ano de inauguração da sede Moinhos de Vento. Daiane era apenas uma criança que gostava de pular e virar cambalhotas quando começou a treinar no clube. Em 2003, a pequena gaúcha de apenas 1,45 cm conquistou, aos 19 anos, o primeiro lugar no solo no Campeonato Mundial de Ginástica Artística, em Anaheim, nos Estados Unidos. Outras medalhas vieram após a vitória no Mundial. H IPER TEXT O IPERTEXT TEXTO 9 MUNDO Porto Alegre, junho de 2006 Copa entra na fase do faroeste Classificado como líder de seu grupo, Brasil começa a enfrentar os duelos mortais. Só um sobrevive TORSTEN BLACKWOOD/AFP POR JESUS B ARDINI Depois de duas magras vitórias nas primeiras partidas e uma goleada na terceira, com dois gols de Ronaldo Fenômeno, a Seleção brasileira garantiu sua vaga nas oitavas de final da Copa da Alemanha. De agora em diante, é mata ou morre. A primeira eliminatória é contra Gana, dia 27, ao meio-dia. O início da corrida pelo hexa não empolgou. No apático jogo contra a Croácia, o Brasil mal se mexeu. A promessa do quadrado mágico formado por Ronaldinho Gaúcho, Ronaldo Nazário, Kaká e Adriano, pouco fez em campo. O único gol que garantiu a vitória brasileira veio aos 43 minutos do segundo tempo pelos pés de Kaká, que chutou fora da grande área, marcando um belo gol sem chances de defesa para o goleiro croata. O Fenômeno simplesmente não compareceu em campo e foi substituído por Robinho, que deu mais agilidade ao grupo, mas sem resultados. Depois das críticas no primeiro jogo, o técnico da Seleção, Carlos Alberto Parreira, garantiu o quadrado mágico e a presença de Ronaldo, alegando que o jogador precisava entrar no pique da competição. Ao enfrentar a Austrália, mostrou pouca evolução. No primeiro tempo, a equipe sofreu com a forte marcação dos australianos. Ronaldo recebeu um chute na canela que passou em branco pela arbritagem. Mesmo assim, chutou diversas vezes a gol, todos para fora. Os brasileiros revelaram falta de entrosamento e todas tentativas de gol vieram de jogadas individuais. Nazário continuou sem brilho e lento, embora com atuação melhor que no jogo anterior. Ronaldinho, em posição equivocada, fez sua parte: toques precisos e boa articulação no meio-campo, mas seu talento desperdiçado, já que sua posição deveria ser atacante. A zaga brasileira também falhou. Os australianos chutaram ao gol de Dida três vezes, exatamente iguais. Por esta falha na defesa, Dida se esforçou e acabou fazendo defesas importantíssimas, mas que poderiam ser evitadas. O primeiro gol veio no começo do segundo tempo. Ronaldo passou a bola para Adriano que chutou com força no gol adversário. Os australianos pressionaram dando sustos na Seleção. O atacante Bresciano, da Austrália, contribuiu bastante para isso. A torcida, conformada com a vitória de um gol apenas, assistiu a entrada do atacante Fred aos 42 minutos do segundo tempo. Na ofensiva, Kaká cabeceou no travessão e, Fred, aos dois minutos em campo, aproveitou a sobra e assinou o segundo gol selando a classificação à próxima fase. Na quinta-feira, dia 22, às 16 h, a Seleção enfrentou o Japão, em Dortmund, e venceu de 4 a 1, de virada. Além de Ronaldo duas vezes, marcaram Juninho Paulista e Gilberto. No grupo do Brasil, a Austrália empatou com a Croácia em 2 a 2 e também se classificou. MARINA VOLPATTO Televisor de plasma rouba a cena Nos jogos do Brasil na Copa não faltaram torcedores apinhados em mesas de bares numa das principais ruas da boemia porto-alegrense. A Lima e Silva foi tomada pelo verdeamarelo. Os bares capricharam na decoração. Bandeiras do Brasil, faixas e serpentinas enfeitam também os estabelecimentos menos movimentados. Porém, o que mais tem servido de atração aos clientes são os televisor de plasma. Os estabelecimentos que ofereceram a tecnologia foram os mais procurados. Os donos dos locais garantiram a validade do investimento. Segundo eles, a expectativa é de que o consumo de bebidas e refeições dobre na hora dos jogos, mesmo que durem apenas 90 minutos. Os televisores custam em média R$ 6 mil. O investimento é pesado, mas os proprietários esperam recuperar o dinheiro não apenas na Copa. Contam também com o faturamento no retorno do Brasileirão em julho. LUCIANO LANES Saudades dos chineses Os 19 alunos chineses que por um ano estudaram nas faculdades de Comunicação Social (Famecos) e Letras (Fale) da PUCRS estão se despedindo de Porto Alegre, para iniciar viagem de regresso à terra natal. Eles receberam dia 21 de junho diplomas de conclusão do intercâmbio de 11 meses no país. Na solenidade, esteve presente a assessora para Assuntos Internacionais e Interinstitucionais da Universidade, Silvana Souza Silveira, que parabenizou os alunos pela coragem e determinação em encarar uma realidade diferente e os costumes ocidentais. A diretora da Famecos, Mágda Cunha, lembrou as dificuldades iniciais e o desafio de fazer jorna- Zé Roberto e Juan na defesa do Brasil, no jogo contra a Austrália, a segunda partida da Copa Torcida para o Brasil e a Alemanha; com caipirinha ou chope Aprendendo a gritar gol no Goethe POR RAÍSSA GENRO lismo em outra língua. Ressaltou que mais do que ensinar, se aprendeu muito com o projeto, constatando ser possível conviver com a diversidade. Leonel, o orador da turma oriunda da Universidade de Comunicação da China, agradeceu a acolhida da Universidade e dos profes- sores e disse ter vivido “uma experiência muito legal no Brasil, um crescimento pessoal. Gostaríamos de voltar mais vezes”. No final do evento, os intercambistas interpretaram, por meio de peças teatrais, situações vividas no Brasil, como a ida a uma cartomante. Um grupo de executivos procurou o Instituo Goethe de Porto Alegre para ter aulas de alemão, com objetivo específico de ir para a Copa deste ano. As aulas foram realizadas duas vezes por semana, com um total de uma hora e meia cada. O curso terminou em 13 de junho, data do primeiro jogo do Brasil. Eles tiveram noções de apresentação, como preencher um formulário, números, como pedir um telefone, assuntos adequados para quem está chegando na Alemanha. O Instituo Goethe é o Instituto Cultural da República Federal da Alemanha e possui unidades no mundo todo. Ele proprociona o co- nhecimento da língua alemã, além de fomentar a colaboração cultural em nível nacional. Busca transmitir uma visão geral do país através de informações políticas, sociais e culturais. Além do curso dirigido realizado para os executivos, os módulos intensivos que começaram em março e abril também trataram do tema. Durante a Copa, como já tradição no Instituto, serão transmitidos todos os jogos do Brasil e da Alemanha. O detalhe é o acompanhamento: caipirinha nos jogos verde e amarelos e chope, nos do país sede. Uma boa pedida para quem vai torcer e gritar muito neste mundial. Instituto Cultural Brasileiro-Alemão Rua 24 de Outubro, 112 1 0 MEMÓRIA Porto Alegre, junho de 2006 A cidade do prefeito Loureiro da Silva HIPERTEXT HIPERTEXTO O FERNANDA FELL “Eu faço versos na pedra, construindo o poema de uma cidade nova”. L A ION M A C H A D O E S P Í N D U L A Avenida Farrapos. Retificação e canalização do Arroio Dilúvio. Avenida Salgado Filho. Criação do DMAE. Avenida Três de Novembro, atual André da Rocha. Saneamento dos bairros Navegantes e São João. Estas são algumas marcantes obras dos períodos administrativos de José Loureiro da Silva em Porto Alegre. De descendência direta de Jerônimo de Ornelas Menezes e Vasconcelos, primeiro povoador das terras onde se acha assentada a cidade de Porto Alegre, Loureiro da Silva orgulhava-se de suas origens lusitanas e de suas profundas ligações com a cidade que tanto amou e por duas oportunidades governou. “Bravo, galhardo, honrado, generoso, assomado e incontido” eram suas características, de acordo com João Pereira Coelho de Souza, seu colega e amigo. Mais do que isso. O charrua, assim era chamado por ter fortes traços de índio, era um homem de obras, um “engenheiro”, cujos olhos brilhavam ao ver mais uma avenida ser inaugurada. Porto Alegre. Rua General Neto, número sete. 19 de março de 1902. Nasce Loureiro. Filho de Mariano Barbosa da Silva e Cecília Loureiro da Silva. Ingressa no Ginásio Júlio de Castilhos, em 1910, onde cursa o ensino elementar, médio e secundário. Em 1918, ingressa à faculdade de Livre Direito, mais tarde integrada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 10 de novembro de 1937. Getúlio Vargas implanta o Estado Novo. Um pouco antes, no dia 21 de outubro, Flores da Cunha, governador do Rio Grande do Sul e opositor de Vargas, renuncia ao cargo, para surpresa dos que esperavam por um confronto armado entre os partidários de Flores e as forças federais. Daltro Filho é nomeado interventor do estado por Vargas. Este, sem perda de tempo, constrói, com homens que tinham se posicionado contra Flores, a nova estrutura de poder do Rio Grande. Entre estes homens está o deputado Loureiro da Silva, que deixa a Assembléia Legislativa para tornar-se prefeito de Porto Alegre. Em sua primeira gestão (19371943), Loureiro assume uma cidade que se encontra num momento crítico. Além dos problemas originados pelo crescimento, havia dívidas, algumas do século anterior. Tratavase de “arrumar” a casa. Comprimir despesas. Para isso, um dos seus atos foi dispensar 180 funcionários que recebiam salários sem trabalhar, conhecidos como “deputados” da limpeza pública. “Era destemido. Sempre imbuído de sinceridade de propósitos. Lutava com todas as forças a fim de que triunfasse a sua vontade, mesmo que a vitória lhe causasse o desgaste político”, lembra o vereador João Antônio Dib (PP), que foi Secretário dos Transportes na segunda administração de Loureiro. Precisava ser destemido. Precisava de sua impetuosidade para enfrentar vários problemas: o sistema viário não comportava mais o tráfego crescente de veículos. As vias do centro urbano, pela falta de espaço para estacionamento, estavam congestionadas; enchentes periódicas, extensão limitada das redes de esgotos. Eram problemas que requeriam soluções imediatas; os órgãos administrativos, concebidos 30 anos atrás, necessitavam de reformas. Era preciso aperfeiçoar o quadro de funcionários, mecanizar os serviços e racionalizar a forma de taxação dos imóveis. Para realizar o tão sonhado Plano Diretor (um estudo aprofundado com a finalidade de projetar e “desenhar” uma cidade ideal) era preciso ter tempo. O que Loureiro não tinha. Havia problemas que deveriam ser solucionados urgentemente. Enquanto os primeiros passos preparatórios ao surgimento do plano de urbanização eram dados, o novo prefeito determinou a realização de levantamento topográfico e avaliações para dar início a algumas obras, como a abertura da Avenida Farrapos. De acordo com Dib, “o Plano Diretor de desenvolvimento da cidade até hoje serve de modelo para os administradores de Porto Alegre”. Comenta também que em menos de um ano, Loureiro procedeu a reforma tributária e saneou as finanças. Monumento e avenida Loureiro da Silva são homenagens da cidade ao ex-prefeito Administra Porto Alegre pela segunda vez Leonel Brizola é candidato a governador pelo PTB em 58. Loureiro, apesar de não ter sido escolhido candidato novamente, faz campanha para Brizola. Porém, um acontecimento irá determinar sua saída do partido. O comício de encerramento da campanha para o estado será transmitido ao vivo pela Rádio Farroupilha. O jornalista Jaime Keunecke, o Jotaká, anuncia o discurso de Loureiro como se a rádio estivesse no ar. Algum tempo depois, o Charrua descobre a artimanha de Brizola. Este ordenou que transmitissem apenas o discurso do Jango e o seu. Um ano mais tarde, a ala moça do Partido Democrata Cristão convida Loureiro a concorrer à Prefeitura de Porto Alegre. No início, Charrua resistiu. Mas, a mobilização de populares e o apelo dos moços o sensibilizaram. A cidade que tanto amava precisava dele. “As finanças (de Porto Alegre) estavam em péssimas condições. Um quadro caótico. Três meses de salário do funcionalismo em atraso. Os fornecedores se negavam a fornecer e empreiteiros não aceitavam executar obras”, conta Dib. Loureiro sai às ruas a fazer campanha. Não é tarefa fácil derrotar a máquina do Partido Trabalhista, implantada na Prefeitura Municipal e no Palácio Piratini. Sem recursos financeiros, sem apoio das estruturas do poder, a campanha é tímida, consiste no contato pessoal, no aperto de mãos dos eleitores, na visita a empresas e fábricas. Resultado final: o Charrua é eleito com 53% dos votos válidos para nova gestão de 19601964). De acordo com Dib, então secretário dos Transportes, em um ano de administração as finanças do município já estavam mais ou menos em ordem e a prefeitura deixava de ser a “caloteira oficial”. No segundo mandato os principais atos de Loureiro foram: organização do Conselho Municipal de Transportes coletivos, da Guarda Municipal, do DMAE e do Conselho Deliberativo da Casa Popular. Construção de 85 prédios escolares, calçamento de 150 ruas e pavimentação da Estrada Antonio de Carvalho, ligando a Bento Gonçalves à Protásio Alves. O sonho de ser gover nador nunca se realiza governador Fim do Estado Novo. Getúlio Vargas começa a se articular politicamente. Monta o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Loureiro é convidado a participar da organização deste partido. O Charrua via no incipiente PTB uma oportunidade para chegar ao Palácio Piratini. A partir daí, Loureiro dedicou-se inteiramente à construção deste. Fundando diretórios ou deixando co- missões provisórias no interior do estado. Loureiro teve papel essencial nas negociações para o ingresso de Alberto Pasqualini no PTB. Um passo fundamental para o partido. Tornou-se, mais tarde, no maior ideólogo do trabalhismo. Eleições para o governo do estado. Loureiro e Pasqualini são os nomes que disputam a vaga de candidato pelo PTB. O Charrua fica à es- pera de uma nova oportunidade enquanto Pasqualini perde o Palácio Piratini para Walter Jobim. Em 1954 tudo indicava ser a sua vez. O nome do Charrua era anunciado como conciliação das várias correntes partidárias. Porém, Pasqualini novamente é escolhido pelos trabalhistas e sofre nova derroda, agora para Meneghetti. Eleições para presidente. 1960. Um acordo entre Fernando Ferrari e Loureiro da Silva parece ser o caminho que o conduzirá até o governo do Estado. O pacto: Loureiro deve apoiar Ferrari para vice-presidente e Ferrari o retribuirá nas eleições de 62 para governador. O Charrua cumpriu sua parte. Porém, Ferrari não vence e decide concorrer a governador do Rio Grande do Sul em 62, rompendo com o acordo firmado. Também é derrotado. A emoção que o der derrr ubou “Ao deixar a prefeitura (em 1964), Loureiro disse que queria ir a Tapes comer carne gorda e tomar cerveja gelada embaixo das árvores”, revela Dib. O Charrua pretende dedicar-se a si e a sua família, na sua fazenda de Tapes. O governador do estado do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, enfrenta renovados problemas internos, fruto de confronto de idéias, posições e expectativas dos políticos mais íntimos do poder instalado. O governador planeja uma ampla reforma no secretariado e pretende realimentar-se com a presença de nomes destacados da política estadual. Um deles é Loureiro da Silva, a quem é oferecida a Secretaria da Fazenda. Em uma conversa reservada com o governador argumenta a recusa do convite. Meneghetti lembra que a Secretaria da Fazenda o faria candidato natural à sua sucessão. O Charrua se “rende”. Dia 3 de junho. Encontraria, às 16 horas, os seus ex-acessores Edgar Irio Simm e Manoel Braga Gastal na sede da Exprinter. Depois, iria ao Palácio Piratini e por último, seria recebido por Alberto Hoffmann, na Secretaria da Fazenda. Aplausos. Abraços. A manifestação popular surge espontânea. Loureiro leva quase uma hora para ir da Rua Uruguai à Praça da Alfândega. Uma pequena multidão o conduz até a sede da Exprinter. Está emocionado, feliz. Conversa, “brinca”. De repente, Loureiro cai. Um enfarto o separa de sua esposa Lisette e dos filhos Achiles e Irene. A emoção o leva. “Pra mim, a causa de sua morte foi a emoção. Loureiro foi aplaudido enquanto andava pela Rua da Praia e a emoção o derrubou”, lamenta Dib. H IPER TEXT O IPERTEXT TEXTO SOCIEDADE Porto Alegre, junho de 2006 11 MANUELA KANAN Ninguém quer ver as mazelas da cidade Exclusão social e drogas levam adolescentes a morar nas ruas P O R T HAÍS A LMEIDA “S.O.S. Porto Alegre, a cidade está morrendo. Nós, moradores, estamos perdendo a sensibilidade, banalizando o que vemos no cotidiano, embrutecendo o olhar”, alerta a professora e historiadora Sandra Jatahy Pesavento, em carta publicada pelo jornal Zero Hora em março último. Ela se declarava triste e apreensiva sobre a situação da cidade, em especial, do bairro Cidade Baixa e imediações. Cidadã Emérita, Sandra faz um apelo para que as pessoas e autoridades reflitam sobre a paisagem do cotidiano. Para ela, a população está perdendo a capacidade da emoção ou de enxergar aquilo que se oferece à vista todos os dias, talvez, de tanto ver a mesma cena se repetir dia após dia. Sandra mora na avenida Venâncio Aires, Cidade Baixa, bairro boêmio, que também acumula muitos moradores de rua. “Uma cena é freqüente: meninos de rua a dormir ao sol alto, na calçada, atravessados no passeio, entupidos de loló ou sei lá o quê. Não encolhidos em um cantinho, mas estirados no meio da calçada, boca aberta, braços em cruz, no meio do dia, perdidos na vida. A cena já se tornou banal. As pessoas passam e precisam se desviar”, desabafa. O começo do fim Uma hora da tarde. O sol está forte. Numa das mais famosas ruas da Capital, José Bonifácio, onde, todo o domingo, acontece o Brique da Redenção, duas pessoas estão largadas no chão, acomodadas sob a sombra de uma árvore. Ao redor deles, dois carrinhos de compras, cheios de bugigangas e recicláveis. Ao aproximar-se deles, é possível sentir o forte odor que exala dos seus corpos. Desconfiados, eles ficam inquietos. A mais agitada, Margarete, é a primeira a falar. Não deixa os outros falarem, quer só ela responder as perguntas, inclusive, sobre a vida dos outros integrantes do grupo. Margarete Alexandre da Rosa tem 22 anos, mora na rua desde os oito anos de idade. Ela conta que quando se separou do marido, a mãe não a aceitou em sua casa pelo fato dela usar drogas e, por isso, foi morar na rua. Deixou para trás uma filha, família, amigos, em busca de saciar um desejo maior causado pela dependência. Além de cheirar loló, Margarete é viciada também em crack, droga que começou a usar aos 13. Sem cabelo, com aparência desgastada pelas substâncias que ingere, chama atenção devido às marcas no corpo. Nos braços, várias cicatrizes apontam para um triste passado. São sinais dos vários cortes que ela mesma fez em uma tentativa de suicídio, provavelmente, ocorrida num momento de depressão, conseqüência do uso de drogas. No pé, Margarete mostra onde a bala entrou, de um tiro que levou do exmarido. Ela se diz casada com outro transeunte, Luis Fernando Gomes da Silva, 29 anos, o mais velho da turma. Questionada sobre o lado Margarete e seus pupilos: loló à luz do dia. Não estão nem aí para quem anda pelas ruas ruim de viver na rua, Margarete cita as brigas com Luis Fernando, com quem está há dois anos e de quem apanha muito. Segundo ela, o principal motivo é ciúmes. Como sustentam o vício Para sobreviver, pedem dinheiro nas sinaleiras, cuidam veículos estacionados, ou ganham moedas de pessoas que passam por eles. Margarete descrever como faz o pedido: “Oi senhora, boa tarde, com licença. A senhora não tem um trocadinho, cinco ou dez centavos já ajudam, a gente compra um pão. Tá certo que a gente usa pra comprar droga, mas primeiro a gente compra alguma coisa pra comer”. A frase é bem conhecida das pessoas. Quem já não foi abordado na janela do seu veículo, ou mesmo andando pela rua? Desnecessário lembrar o desconforto do momento em que a diferença social e o desequilíbrio causado por essa provocam conflitos, mascaramentos e exclusões. O sem-teto é a expressão máxima deste processo, um número cada vez mais expressivo diante dos olhos da sociedade. O que mais choca no diálogo com essas pessoas é a questão das drogas, tornando-se o principal impedimento para sua re-inclusão. Momentos após Margarete ter encenado o pedido de auxílio, ela olha para o colega ao lado e numa risada diz que, às vezes, eles compram droga primeiro, para depois adquirir comida. Admite que as pessoas são muito boas e que sempre ganham dinheiro suficiente para viver, seja das esmolas recebidas, seja das pessoas que se comovem ao vê-los na rua. Isso quer dizer que muitas pessoas, mesmo sem a intenção, os ajudam a sustentar o vício. Um dos companheiros da jovem tem 17 anos. Ele saiu de casa há pouco mais de um ano. Motivo, drogas. Um dia pegou dinheiro de um conhecido para comprar crack e não voltou nem com o dinheiro, nem com a droga. Foi jurado de morte e, por isso, nunca mais colocou os pés no bairro Bom Jesus. Encontrou nas ruas, a segurança que não teve ao permanecer em sua casa. Enquanto a falante Margarete narrava suas aventuras, uma menina franzida, com corpo de criança e cabelos despenteados se aproxima. Chega calada, segurando duas garrafas de 600 ml com um líquido no fundo de cada uma. Entrega uma para Margarete e outra para o jovem. Começa uma discussão sobre qual garrafa contém mais substância. Enquanto não é feita a comparação, Margarete não sossega. É loló. Ambos não se incomodam com a presença de outras pessoas, muito menos com a luz do dia. Continuam a cheirar a droga sem parar. Uma delas tem 16 anos e está grávida de dois meses. Encontra-se na rua há três semanas. Ela não confirma, mas segundo o rapaz de 17, a razão para estar na rua, é ele. Como não pode voltar para casa, ela foi viver com ele na via pública. É melhor morar na rua do que em casa”, alega a jovem. A difícil convivência com os vizinhos da calçada Cerca de 20 pessoas formam o grupo de excluídos sociais que costuma ficar na rua Venâncio Aires e imediações. À noite, eles se juntam e dormem em frente à loja de uma grande rede de celulares ou diante do prédio de uma farmácia. “O problema é que a farmácia funciona 24 horas e eles querem dormir aqui na frente. As pessoas que chegam para comprar algum produto ficam com medo, apesar de não serem agressivos, de não serem ladrões, são apenas pessoas pobres. Mas as pessoas têm medo e acabam não entrando na loja”, queixa-se Cláudio Silveira, gerente do estabelecimento. O comerciante da Cidade Baixa também reclama da sujeira deixada após a passagem das organizações que levam comida. “O pessoal que traz comida, apesar de querer ajudar, atrapalha porque eles não querem comida. Simplesmente depois que eles vão embora, atiram tudo o que ganham pela calçada. Dispensam tudo, porque sabem que outra ONG vai passar no dia seguinte e dar mais”, revela. Um funcionário que trabalha na farmácia ofereceu, certa vez, moradia a um sem-teto. Deu um quarto dentro de, deu comida e emprego. Nem dois meses depois e sem-teto voltou para a rua, segundo ele, para cheirar loló. Durante o dia, o grupo se separa. Procuram trocar de lugar por cau- sa da Brigada Militar, que os obriga a tirar as bugigangas de frente dos estabelecimentos e do Pronto Socorro. “A polícia bate na gente, querem tirar a gente a força. Alguns pedem licença, outros chegam batendo. Todo o dia eles correm a gente. Eles não têm pena”, afirma uma das adolescentes. Carregam com eles dois carrinhos de compras e três cachorros: Negão, Doninha e Mimosa. Nos carrinhos estão panelas, cobertores e latinhas que juntam dos lixos e do chão para vender. Eles contam que duas ONGs, Pandeco e Deus e Amor, se revezam na distribuição de sopão, roupas e cobertores. O dinheiro que entra vem de esmolas e da venda de latinhas. Segundo um dos meninos, é possí- vel ganhar em um único dia R$ 20,00 pedindo nas sinaleiras. Dos recicláveis recebem muito pouco, apenas R$3,00 por quilo. Um restaurante próximo oferece todos os dias um pote grande com comida que sobrou do bufê de almoço. “Eles não incomodam. Só algumas vezes passa um deles bêbado e começa a pedir esmola aqui na frente, mas pedimos para sair e somos sempre atendidos”, diz José Adair de Abreu, recepcionista do Prato Verde, o restaurante que doa comida para os sem-teto. Eudes Pioner, taxista há 15 anos, explica que há várias turmas e o maior problema é a sujeira, porque carregam muito lixo de um lado para outro. “Por onde passam, deixam um rastro, parece um lixão”, reclama o taxista. Em estudo realizado na década de 90 pela Fundação de Educação Social e Comunitária (FESC), da Prefeitura, em parceria com a Faculdade de Serviço Social da PUCRS, foi constatada a existência de um número de 222 moradores de rua, maiores de 14 anos, em Porto Alegre. O estudo aponta as principais causas: problemas de relacionamento familiar (28,8%) e a dependência de álcool e drogas (22,5%). “A vida deles é uma vida de sobrevivência, enquanto houver droga, um prazer mínimo, continuam na rua”, observa o psicanalista Walton Pontes Carpes. 12 PONT O TO FINAL ELISA VIALI Porto Alegre, junho de 2006 HIPERTEXTO TATIANA FELDENS Tango: melancolia e sensualidade da alma portenha tas. Porém, são mais tradicionais, com apresentações modestas. P O R T ATIANA F ELDENS Um bandoneon soluçante, o toque nostálgico nas cordas apuradas dos violinos e violoncelos. Ao ritmo da melancolia portenha, os passos entusiasmados do jovem par anunciam aos presentes um acontecimento: bailarão um tango! O dançarino tira o chapéu inclinado à cabeça e enlaça a parceira na pista de dança. O show das luzes e da fumaça ajuda a criar a atmosfera moderna e glamourosa do espetáculo, direcionando para o palco os olhares atentos dos visitantes. A dançarina, de cabelos presos, rodopia numa saia justa, onde se abre uma generosa fenda. Ao ritmo que conduz o casal – guiando passos e entusiasmando os demais – soma-se um piano e o contrabaixo. Esta cena pode ser presenciada todos os dias na casa de show para turistas mais famosa de Buenos Aires, o Señor Tango, com capacidade para 1.800 pessoas. Nas mesas, é possível ver visitantes dos EUA, da África do Sul, Alemanha e, é claro, do Brasil. Os funcionários do local aproveitam essa diversidade, a começar pelo próprio proprietário, Fernando Solera, um dos mais conhecidos intérpretes de tango portenho. Acompanhado por músicos e dançarinos, ele cumprimenta os visitantes em todas as línguas, com direito até a piadinhas, principalmente com brasileiros. O gênero popularizado por Carlos Gardel no início do século 20 rendeu clássicos como Mi Buenos Aires Querido, El Dia que me Quieras, Caminito e Adeus Pampa Mio, todas incluídas no repertório de Solera durante o show. Além desta casa, onde o show é mais acrobático, glorioso e encenado à moda hollywoodiana, outras “tanguerías”, como são conhecidos os estabelecimentos desta dança, podem ser apreciadas em muitos pontos de Buenos Aires: como na La Ventana, El Viajo Almacén e Esquina de Gardel, entre outros. Esses lugares também são destinados aos turis- Fenômeno Cultural O tango, a mais importante forma de expressão cultural da Argentina, é um fenômeno completo, com baile, música, canção e poesia, além de outros ingredientes, como sensualidade, profissionalismo e tradição. É quase impossível passar por Buenos Aires sem ter contato com essa dança. Andando pelo bairro portuário de La Boca, por exemplo, o turista pode esbarrar com apresentações em via pública. Na rua Caminito – uma das mais famosas do bairro e que conser va suas construções multicoloridas, feitas de chapas de zinco ou restos de madeiras, que lembram os prédios do Pelourinho, na Bahia – é possível ver casais dançando esse ritmo, surgido no século XIX. Para Ricardo García Blaya, argentino que estuda a história da dança, “o tango é, em primeiro lugar, um gênero musical essencialmente bailável, com um ritmo e uma estrutura que o distingue de todos os outros gêneros musicais”. Como toda canção nova, recebeu as influências do contexto sócio-cultural do final do século XIX, que acompanhou parte da evolução da dança. O marco social, onde nasceu o tango, é Buenos Aires de 1880, uma cidade com enorme crescimento demográfico sustentado pela imigração, fato importante para compreender o surgimento desta dança. “A cidade tinha em 1880 uma população de 210 mil habitantes e uma importante imigração européia. Em 1910, cresce a 1,2 milhão de habitantes”, com presença maciça de europeus, vindos principalmente da Alemanha, Espanha, Itália e França. A música e a dança foram, assim, “contaminadas” por outros gêneros musicais trazidos por esses estrangeiros, tais como a habanera, ritmo de origem afrocubana, e a milonga, um canto e dança de Andaluzia (Espanha), que no fim do século XIX fez sucesso na capital argentina. Ele nasceu nos bordéis do submundo TATIANA FELDENS Corpo e alma: bailado em via pública O tango esteve associado no princípio aos bordéis e cabarés do subúrbio de Buenos Aires – âmbito de contenção da população imigrante masculina. Segundo Julian Beszkin, estudante de artes na Universidad de Buenos Aires, o tango não era bem visto em casas de família e se destinava apenas às mulheres prostitutas e aos homens. Com o passar do tempo, a dança deixou as zonas baixas e se estendeu aos bairros proletários, passando a ser aceita pelas famílias. A melodia provinha da flauta, violino e violão. As letras abordavam temas da vida e eram obscenas e melancólicas. “Falam sobre cocaína e a vida de traições”, conta Beszkin. Para Voltaire Schilling, historiador gaúcho, “é a lírica de vidas destroçadas por traições e falsidades, desilusões e crimes. Mulheres pérfidas e amigos tramposos são o sal da dramaturgia tanguista: ‘Mi china fue malvada, mi amigo era un sotreta’. É a estética de um mundo canalha e ressentido”, avalia. Señor Tango: a casa de shows mais famosa de Buenos Aires UM FRANCÊS COM CARA DE ARGENTINO Além de ter sido o inventor do tangocanção, Charles Romuald Gardès, mais conhecido como Carlos Gardel, foi o grande divulgador do ritmo no exterior na década de 20. O sucesso da dança no Velho Mundo refletiu dentro do país, principalmente na classe alta, que antes refutava o ritmo, mas que agora passava a incorporar a dança. Falecido em 1935, aos 45 anos, vítima de um acidente aéreo em Medellín, na Colômbia, Gardel foi intérprete, compositor e ator de inúmeras canções e musicais. Com ele, o rit- mo portenho ganhou uma faceta mais romântica e deu a volta ao mundo. Nascido na França, em 1890, chegou a Buenos Aires com sua mãe quando tinha apenas dois anos. Começou a cantar por volta dos 17 anos e aos 25 já era popular em toda a América espanhola. 1927 foi o ano de sua consagração na Europa, alcançando grande sucesso em Paris. Logo vieram os EUA e o sucesso no cinema. Lá, nos estúdios da Paramount, em Nova York, atuou em vários filmes que fizeram grande sucesso.