UM REFÚGIO DE AMOR OU UMA CASA EXILADA
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UM REFÚGIO DE AMOR OU UMA CASA EXILADA
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 A TOCA: UM REFÚGIO DE AMOR OU UMA CASA EXILADA DO MUNDO? Rebbeca Leite Fuks∗ RESUMO: Em um primeiro momento analisaremos neste artigo a relação que o casal protagonista de Os Maias mantém com suas respectivas casas. Carlos da Maia, enquanto proprietário de inúmeras casas, não possui laço afetivo com nenhuma. Maria Eduarda, por sua vez, vive como uma eterna desterrada a procura de um lar para se estabelecer. Após uma breve reflexão sobre cada um dos protagonistas, nos deteremos em uma casa específica dentro do romance (a Toca) para investigar seu funcionamento e suas particularidades. Optamos por estudar exclusivamente a Toca porque, embora tenha sido habitada por um breve período, ela é a única casa efetivamente construída pelos protagonistas. Palavras-chave: Os Maias; Casa; Toca, Século XIX. ABSTRACT: Firstly, this study will analyze the relationship between the two protagonists of Os Maias and their (respective) houses. Carlos da Maia, as a owner of many houses, doesn’t have a special relation with none of them. In the oposite side, Maria Eduarda lives homeless always trying to find a place to establish. Following a brief reflection about the two lovers, the peculiarities of a particular house (Toca) is examined in detail, due to the fact that, although it was inhabited for only a brief period, it is effectively the only house built by the protagonists. Keywords: Os Maias; House; Toca, 9th Century. A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança da rua de S.Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, como casa do Ramalhete, ou simplesmente “Ramalhete”. (QUEIROZ, 2010: 9) É curioso como já na abertura do romance temos como centro de cena a casa da família Maia. Antes mesmo da apresentação dos personagens, a narrativa nos põe diante de uma rica descrição desta morada burguesa de herança aristocrática i. Eça de Queiroz não poupa adjetivos para retratar as casas do romance. Entendemos como necessária Mestranda da Pós-Graduação em Letras Vernáculas. área de concentração de Literatura Portuguesa, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 124 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 uma leitura mais cuidadosa sobre essas casas porque elas são sintomáticas da postura de seus personagens e de uma determinada época. Num primeiro momento, procuraremos enfocar aqui a relação dos dois personagens centrais do romance (Carlos da Maia e Maria Eduarda) com as casas em que circulam. Antes de tudo é preciso lembrar que Carlos da Maia é um herdeiro (assim como seu pai, Pedro da Maia, e seu avô, Afonso da Maia). Enquanto proprietário de muitas casas, Carlos da Maia circula desde o início do romance em diversas moradas sem de fato estabelecer um laço afetivo com nenhuma. Ao nascer, Carlos reside com seus pais em um lar em Benfica. Mais tarde, nosso protagonista se muda para Santa Olávia, onde passará boa parte de sua infância. Ao amadurecer, Carlos escolhe uma profissão (seu desejo era ser médico) e precisa se mudar para perto da universidade, em Coimbra. Neste período ele habita provisoriamente o Paço das Celas, lugar conhecido por suas famosas noitadas. Quando se forma, Carlos monta dois espaços privados onde pretende trabalhar (o consultório e o laboratório). Ao tornar-se um jovem adulto, ele se muda para o Ramalhete. Como se apaixona por Maria Eduarda e seu amor é proibido (e portanto precisa ficar resguardado do resto da sociedade), Carlos aluga a Toca, propriedade que pertencia originalmente ao seu amigo Craft. Por fim, quando o amor de Carlos e Maria Eduarda se revela como incesto, sua única saída é programar uma viagem pelo mundo que será feita ao lado do amigo Ega. A partir daí Carlos não estabelece mais residência fixa, transitando de hotel em hotel de acordo com os países que visita. Nas últimas cenas do romance somos informados que sua vida passa a se fixar em Paris, onde resolve morar em um quarto de hotel. 125 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 Como é possível notar, Carlos da Maia é um proprietário por excelência. Ele é dono de diversas casas sem nunca possuir realmente nenhuma. Todas as casas que chegaram até suas mãos foram herdadas, pois, há pelo menos três gerações, a família Maia cultivava o hábito do não-trabalho. Os Maias viviam exclusivamente de renda. As únicas construções que a família ergueu foram o consultório e o laboratório, idealizados por Carlos com o intuito de trabalhar. Mas se analisarmos a fundo essas duas construções veremos que, em ambos os casos, os ambientes acabaram sendo inúteis para a sociedade. Talvez essas construções servissem mais como um elogio ao ego de Carlos da Maia do que propriamente uma vontade de contribuir com o mundo que estava ao redor. Como afirma Mônica Figueiredo: Criado segundo os imperativos pedagógicos de uma educação à inglesa, Carlos desperdiçará a vida como espectador de si mesmo. Ausente de qualquer forma de produção, desistente, diletante e fraco, recusa as responsabilidades do mundo do trabalho, permanecendo como um desempregado de si e de Portugal. (FIGUEIREDO, 2010: 23) Por outro lado, Maria Eduarda é representante do outro extremo da mesma questão. Se seu amado e irmão, Carlos da Maia, é proprietário de inúmeras casas, o destino fez com que ela fosse uma eterna desterrada. Maria Eduarda nasce em Portugal mas logo em seguida acaba se mudando. Sua mãe arranja um amante e, para viver este amor, o casal adúltero decide fugir para o estrangeiro. Com esta partida os irmãos Carlos da Maia e Maria Eduarda são separados. Carlos é deixado com o pai, Pedro da Maia, e Maria Eduarda é levada com a mãe para fora do país. A partir deste momento a personagem sofre uma longa peregrinação por inúmeras casas em diversos países (entre eles França e Inglaterra). Ao regressar para Portugal, Maria Eduarda se torna concubina do brasileiro Castro Gomes e passa a residir em uma casa alugada e previamente 126 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 mobiliada. Durante seu romance com Carlos da Maia, ela se muda com a filha (Rosa) para uma quinta alugada (pelo seu amado) que posteriormente será batizada de Toca. No fim do romance, Maria Eduarda abandona Portugal e resolve se refugiar com a filha em Paris, onde acabará se casando com um homem mais velho. Sobre essa última casa o romance pouco informa. A partir dessa breve retrospectiva é possível perceber que Maria Eduarda nunca possuiu de fato uma casa (embora sempre estivesse a procura de uma). Toda sua história sempre foi marcada por um nomadismo. Essa precariedade diz respeito inclusive ao próprio nome. Maria Eduarda nunca adotou o sobrenome Castro Gomes porque não chegou a se casar efetivamente com o brasileiro. O sobrenome Maia também não foi adotado em nenhuma das duas oportunidades (nem quando Maria Eduarda se relacionou com Carlos da Maia nem quando descobriu que tinha direito ao nome porque pertencia a famíliaii). É interessante comparar a história de vida e de habitação desses dois personagens ao longo do romance. No que diz respeito a morada, Carlos da Maia aparenta ser o símbolo do excesso enquanto Maria Eduarda é a representação da falta. No entanto, ao fim da narrativa ocorre uma reviravolta. Carlos encerra o livro sem casa, se submetendo a um quarto de hotel sem passado, sem história e sem lembranças. Seguindo o caminho oposto ao do irmão, Maria Eduarda consegue enfim um tão desejado lar ao se unir em matrimônio com um homem maduroiii, se reintegrando assim, finalmente, a uma vida burguesa em sociedade. O conceito de casa frequentemente se associa a idéia de continuidade familiar. Se formos um pouco adiante e pensarmos na continuidade da família Maia, é única e 127 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 exclusivamente por meio de Rosa, filha de Maria Eduarda, que a “dinastia” dos Maias consegue prosseguir. Refletindo sob esse aspecto, Carlos é a representação da esterilidade. Ao começo do romance o personagem tem tudo. Ao fim ele não possui casa e sequer deixa herdeiros. Maria Eduarda, por sua vez, dá seguimento a família através de Rosa e finalmente consegue se estabelecer perante a sociedade através de um casamento tardio, adquirindo por consequência um lar. De todas as casas listadas incansavelmente no romance, daremos destaque aqui àquela que parece ser a mais interessante: a Toca. Optamos por refletir exclusivamente sobre a Toca porque, ainda que tenha sido habitada por pouco tempo, ela é a única casa efetivamente construída pelos protagonistas do romance. Construída não no sentido literal porque sabe-se que a quinta pertencia originalmente a Craft. Afirmamos construída porque são os personagens que dão significado as coisas que lá estão. São eles que batizam a quinta de Toca, por exemplo. São eles que inauguram o espaço promovendo eventos entre amigos. São eles que fazem pequenas alterações na decoração. Todas as outras casas do romance seguiram um caminho diferente: elas permaneceram em um tempo efetivamente longo (gerações e gerações) sem que os personagens tenham de fato agregado significado a elas. Começaremos essa análise pela própria decisão de Carlos de adquirir a Toca. Em uma conversa casual, Maria Eduarda demonstra um certo interesse em passar os meses de verão com a filha fora da cidade. Num gesto impulsivo, Carlos imediatamente se recorda da quinta de Craft localizada nos Olivais e procura o amigo para negociar o aluguel do espaço e a compra das coleções que lá estavam. Em uma breve conversa o acordo é fechado. O narrador afirma: “Depois foram almoçar, Carlos nem por um 128 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 momento pensou na larga despesa que fazia, só para oferecer uma residência de verão, por dois curtos meses – a quem se contentaria com uma simples casinha entre árvores de quintal” (QUEIROZ, 2010: 290). Apesar do impulsivo gesto de Carlos da Maia ao fazer negócios com Craft, o avô, Afonso da Maia, apoiou o neto assim que recebeu a notícia da compra. Ao contrário de Maria Eduarda, que desde o início da idéia de aquisição da quinta se pergunta “Somente, é necessário saber o que esse paraíso me vai custar...” (QUEIROZ, 2010: 290). É coerente a postura dos dois personagens. Carlos nunca se preocupou com as finançasiv, sua renda sempre foi administrada pelo avô e por Vilaça (pai e posteriormente filho). Nunca lhe faltou nada e todas as suas vontades sempre foram instantaneamente satisfeitas. Por outro lado, Maria Eduarda sabia reconhecer o valor das coisas porque já havia experimentado viver sem elas durante o período em que morou fora de Portugal. No relato que faz sobre seu passado ela afirma como precisou penhorar seus objetos de valor e até mesmo suas roupas brancas. Assim que o negócio com Craft é fechado, Maria Eduarda se muda com a filha Rosa, a babá miss Sarah, a cachorrinha Niniche, a empregada Melanie e o empregado Domingos para a quinta dos Olivais. Uma das primeiras dúvidas do casal é, então, como nomear aquele ninho de amor. A escolha do nome Toca já merece em si um estudo a parte. O nome é bastante representativo da história de amor vivida por Maria Eduarda e Carlos da Maia. O diálogo que dá nome a Toca se inicia com Maria Eduarda: - Isto é encantador! – repetia ela. - É um paraíso! Pois não lhe dizia eu? É necessário pôr um nome a esta casa... Como se há de chamar? Villa-Marie? Não. Château-Rose... Também não, credo! Parece o nome de um vinho. O melhor é batizá-la definitivamente com o nome que nós lhe dávamos. Nós chamávamos de a Toca. Maria Eduarda achou originalíssimo o nome de Toca, Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão. 129 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 - Justamente e com uma divisa de bicho, - disse Carlos rindo – Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam! (QUEIROZ, 2010: 303-304) Por um lado o substantivo “toca” alude a uma idéia de proteção, de refúgio, de resguardo. E de fato a intenção do casal era se afastar daquela sociedade que provavelmente condenaria a relação dos dois. Para Carlos da Maia era interessante que Maria Eduarda se mudasse para o campo, para uma casa ampla, escondendo-a assim do avô e deixando de lado sua vida social para viver um amor às escondidas. O personagem deixa aflorar seu sentimento de possuidor ao tecer o seguinte comentário sobre a Toca na última frase do trecho selecionado (“- Justamente e com uma divisa de bicho, - disse Carlos rindo – Uma divisa de bicho egoísta na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!”). Parece interessante a escolha semântica que Carlos faz. O universo da Toca remete, para ele, a uma espécie de animalidade. Não por acaso, cenas antes, durante um jantar na casa de Afonso da Maia, o narrador aponta o seguinte comentário de Ega: Mas o Ega resistiu. O campo, dizia ele, era bom para os selvagens. O homem, à maneira que se civiliza, afasta-se da natureza; e a realização do progresso, o paraíso na Terra, que pressagiam os Idealistas, concebia-o ele como uma vasta cidade ocupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquezinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça. (QUEIROZ, 2010:.308) A fala de Ega, apontado por muitos críticos literários como alter ego do escritor Eça de Queiroz, não pode passar impune diante de uma leitura mais atenciosa. Esse pequeno comentário se encontra cravado em uma cena que interrompe a descrição da Toca. A Toca era justamente uma construção do campo, cercada de florestas. Ao contrário do Ramalhete, que estava fincado no meio da cidade de Lisboa. Para que a 130 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 Toca, lugar de encontro entre um amor proibido pudesse existir naquela sociedade vitoriana, ela precisaria estar afastada do centro urbano. É necessário lembrar que a sexualidade era um dos grandes medos burgueses. O único tipo de sexualidade aceita na sociedade do século XIX era aquela que já estivesse sido devidamente adestrada, civilizada. Este período histórico se preocupou imensamente em reprimir a sexualidade e afastá-la das vistas da sociedade. Segundo Mônica Figueiredo: “Em verdade, o século vitoriano era obcecado pelo controle”, vivendo atemorizado pelo medo de o perder. As virtudes burguesas, que os críticos do seu tempo e para além dele tanto atacavam, ou seja, o culto às boas maneiras, o respeito doentio à privacidade e o autocontrole extremado “eram estratagemas destinados a disciplinar o caos da experiência e a dominar as pressões das paixões” (GAY, 1995, p.241) (...) Se a proibição é sempre um ato a posteriori, que só existe a partir da evidência da possibilidade da transgressão, o que está por trás de toda a moralidade burguesa é o imenso pavor do desejo (FIGUEIREDO, 2002: 28-29) Talvez por isso a Toca precisasse ser tão isolada do mundo. É curioso como no comentário de Ega parece haver uma associação velada com a questão da sexualidade. Ega não sugere que o campo seja totalmente exterminado. A sua proposta é que a natureza seja justamente domada, contida. Que o homem, do alto de sua civilização e racionalidade, possa colher, quando for conveniente, um pedaço da selva. Com o tempo, as idas e vindas da Toca passaram a se tornar cansativas devido ao longo trajeto. Maria Eduarda também não parecia mais satisfeita com a condição de Carlos ter de voltar todas as noites para o Ramalhete deixando-a sozinha numa casa tão grande. Como uma maneira de ganhar tempo já que não tomava coragem para seguir seus planos de fugir para a Itália, Carlos da Maia decide alugar uma pequena casa nos arredores da Toca. É importante retomar esse trecho aqui: Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca, Carlos reparou em uma casita, à beira da estrada, com escritos; e veio-lhe logo a idéia de a alugar, para evitar aquela desagradável partida de madrugada com o Mulato estremunhado, borracho, 131 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 despedaçando o trem pelas calçadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um refúgio confortável. Tomou-a logo – e Batista veio ao outro dia, com móveis em uma carroça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quase triste: - Mais outra casa! - Esta, exclamou Carlos rindo, é a última! Não, é a penúltima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não sei onde... (QUEIROZ, 2010: 322) Como observamos, era interessante para Carlos da Maia manter essa relação assim, próxima e ao mesmo tempo distante. A tão prometida fuga para a Itália se tornava um ideal cada vez mais longínquo. Como afirmamos anteriormente, Carlos era possuidor de inúmeras casas, e essa nova casa seria apenas mais uma delas. Se a quinta era para Carlos da Maia uma casa entre tantas outras, para Maria Eduarda aquela casa era sua possibilidade de ser feliz se fixando finalmente em um lar. Neste período histórico a relação que um homem estabelecia com a sua casa era completamente distinta da relação que a mulher possuía com o lar. A respeito deste tema Nicole Castan observa: A expressão "vida privada no feminino" pode parecer paradoxal, a tal ponto a mulher dessas sociedades se vê confinada ao lar. Com certeza e de modo geral, ela é excluída dos papéis públicos e das responsabilidades exteriores (políticas, administrativas, municipais, corporativas). (...) Pois sua ocupação é prioritariamente doméstica; o cenário: a casa; sua vocação: encarnar a imagem de esposa e mãe, arraigada pela Igreja e pela sociedade civil. A exigência de honra — feita de aparência, fidelidade aos seus e a sua boa reputação — resume-o muito bem; portanto, uma dedicação constante a todos que vivem sob seu teto a destina a servir, ou seja, a cuidar: alimentar, criar, atender na doença, assistir na morte — essa é a ocupação das mulheres, (...) Serva, portanto, mas também senhora, e esta última condição lhe confere a autoridade necessária para desempenhar suas tarefas, exigindo as virtudes correspondentes de modéstia, dedicação e economia. Isso leva a rever a ideia de uma subordinação rigorosa ao chefe de família; impõe-se mais uma divisão de poderes e tarefas. Madame Phlipon, mãe de madame Roland, foi casada com um conhecido mestre gravador parisiense. Nesta condição, ela comanda a casa, enquanto o marido reina na oficina, onde se misturam artesãos e clientes. (CHARTIER, 2009: 407) Embora Carlos da Maia não fosse de forma alguma considerado um homem trabalhador, a análise de Castan parece extremamente preciosa para pensar em Maria 132 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 Eduarda e em sua relação pessoal com a Toca. Retomamos aqui a seguinte cena do romance: E ela percorria os quartos, devagar, examinando a acomodação dos armários, palpando a elasticidade dos colchões, atenta, cuidadosa, toda desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração. E era realmente como se aquele homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio. - O quarto com as duas janelas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena não pode dormir naquele enorme leito de pau preto... - Muda-se! - Sim, pode mudar-se... E falta uma sala larga para ela brincar, às horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos... - Deita-se abaixo! Ele esfregava as mãos, encantado, pronto a refundir toda a casa; e ela não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus. (QUEIROZ, 2010: 303) Maria Eduarda se preocupa com cada detalhe da casa e em como esses espaços poderão atender a necessidade de sua filha Rosa, ainda pequena. Embora a menina esteja sempre assistida de perto por sua babá miss Sarah, indiscutivelmente é Maria Eduarda quem dá o tom da educação à inglesa que a menina recebe. Ao percorrer a Toca para conhecer seus ambientes, Maria Eduarda fica abismada com a decoração do local, especialmente a do seu quarto. Para ela tudo soa excessivo e antiquado: tapeçarias por todos os lados, quadros, lâmpadas, colchas. Não há um pedaço do quarto que não seja coberto por brocados ou por um móvel. Esse gosto não agrada Maria Eduarda, que qualifica tudo aquilo como excêntrico, exótico, com um ar atulhado de museu. Cabe a nós refletir sobre quem organizou aquele espaço e porque o teria organizado daquela maneira. Fica claro páginas antes que Craft é um burguês diletante de origem inglesa. De acordo com Roger-Henri Guerrand: Quanto mais se avança pelo século, mais o apartamento burguês se assemelha, em seu mobiliário, a uma loja de antiguidades onde a acumulação aparece como o único princípio diretor da composição interior do espaço. (...) ao longo de todo o século XIX, os burgueses, sobretudo os parisienses (mas são eles que “dão o tom”), são aterrorisados por rebeliões populares. E procuram em seu domicílio o sweet home que os tranqüiliza: “O espaço reparte-se simbolicamente em 133 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 interior-família-segurança/exterior-estranho-perigoso”. Não deixar nuas as paredes, nem o assoalho, nem os ladrilhos, como nas casas pobres torna-se uma obsessão. (PERROT, 2009: 310) Ainda pensando na Toca, curiosamente a mesma já vem mobiliada. Carlos sequer se dá ao trabalho de preencher aquele espaço com a história do casal. Seu dinheiro compra tudo pronto, inclusive um ninho de amor devidamente bem decorado, segundo os valores da época. Em uma cena do romance lemos o espanto de Maria Eduarda ao descobrir que a Toca já estava pronta antes mesmo da chegada de seus moradores: Maria Eduarda parecia surpreendida, quase desconfiada. - Há de ser necessário levar roupas de cama, roupas de mesa... - Mas há tudo! – exclamou Carlos alegremente, - há quase tudo! É tal qual como em um conto de fadas... As luzes estão acesas, as jarras estão cheias de flores... É só tomar uma carruagem e chegar. (QUEIROZ, 2010: 290) Enquanto Maria Eduarda questiona sobre os detalhes práticos da mudança, seu amado Carlos da Maia anuncia que tudo o que é preciso para se viver já se encontra lá. A comparação entre as duas falas do casal é preciosa se analisada a fundo. Como típica mulher oitocentista compreende-se que Maria Eduarda esteja preocupada com os detalhes do lar. Mas não é só isso. Relembramos aqui que a protagonista do romance passou dificuldades durante a vida e para se manter sempre precisou ser responsável por tudo aquilo que estava ao seu redor. Carlos da Maia, por sua vez, nasceu em berço de ouro, em uma propriedade onde, nos apropriando e deslocando suas próprias palavras, “há tudo”. Devido a sua herança familiar aristocrática, Carlos da Maia possuiu uma condição de vida que o permitia não se preocupar com nenhum detalhe do cotidiano. Apesar do encantamento diante da Toca mobiliada, Maria Eduarda ao visitar a casa propõe pequenas alterações no espaço. É preciso lembrar que sua condição de amante não lhe permitia grandes extravagâncias no que diz respeito a mudança de 134 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 decoração na casa. Havia certamente um sentimento de gratidão por aquele homem provedor. Mas se há algum personagem responsável por dar vida a Toca, ou melhor, por deixar vestígios de sua presença, esse personagem é Maria Eduarda: A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já se podia usar o salão nobre, que perdera seu ar rígido de museu, exalando a tristeza de um luxo morto: as flores que Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçar dos seus frescos vestidos, tinham comunicado já um sutil calor de vida e de aconchego (QUEIROZ, 2010: 319) A passagem anteriormente mencionada faz alusão ao salão nobre da Toca. Analisando os ambientes das casas finisseculares, é interessante pensar na distribuição dos aposentos. Peter Gay afirma a respeito dessa nova morada burguesa: O dinheiro comprava a distância. Os lugares de moradia separavam a família do mundo exterior e os membros da família uns dos outros. Paredes, cortinas, painéis, portas da rua sólidas, cercas vivas e muros estrategicamente dispostos constituíam símbolos, e às vezes mais do que isso, que advertiam os estranhos a manter-se distantes. Asseguravam a privacidade dos moradores do lado de dentro, libertando-os dos intrusos externos, algo que era muito importante para a maioria dos burgueses. (GAY, 2002: 283-284) A privacidade sempre foi uma prerrogativa burguesa e, nesse contexto, os quartos particulares deveriam sempre permanecer fechados. É no século XIX que se intensificam hábitos como trancar as gavetas, escrever diários pessoais e não violar as correspondências. Em seu estudo sobre as moradas vitorianas, Peter Gay também faz alusão a espaços como um salão nobre (sobretudo para receber visitas), um salão de jantar, um jardim, uma biblioteca e um salão de tapeçarias, que coincidem com as descrições da Toca. Outro espaço importante e até então pouco estudado é o espaço destinado aos empregados. Eça de Queiroz aponta uma série de empregados domésticos em sua narrativa. São jardineiros, mordomos, babás, arrumadeiras, entre outros. Em uma breve passagem do romance, o narrador ao explicar o modus operandi da Toca 135 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 afirma: “a governanta, os criados, subiam às dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente” (QUEIROZ, 2010: 320). Essa nova estrutura espacial é uma exigência que surge com a ascensão da burguesia: A privacidade significava separar-se das crianças, e, mais essencialmente, dos empregados domésticos. “A família constitui uma comunidade e os empregados, outra.” Essa separação nítida beneficiava ambos: “Como moradores sob o mesmo teto, cada classe tem o direito de fechar a porta para a outra e ficar a sós”. As realidades da sociedade de classe média do século XIX não podiam ser mais claramente expostas. (GAY, 2002: 284) A marca do tempo histórico não aparece só nas descrições das moradas, ele também é nítido através do comportamento dos personagens. Por conta da época em que existiu, a Toca teve uma curta duração de vida. Um espaço como aquele ia na contramão de boa parte dos valores burgueses oitocentistas. Maria Eduarda era supostamente uma mulher adúltera e jamais teria seu relacionamento com Carlos da Maia ratificado pela tão moralista sociedade vitoriana. A breve existência da quinta é sinalizada temporalmente através das estações do ano. Não é por acaso que Maria Eduarda se muda para a quinta em pleno verão e é no verão que o casal vive o auge do seu amor. Os meses se passam e eis que se aproxima o outono. O parágrafo que anuncia o fim da Toca precisa ser lembrado aqui: Carlos e Maria pensavam também em abandonar os Olivais. Carlos não poderia por dever doméstico permanecer ali instalado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além disso aquele fim de outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucólica, com a quinta desfolhada e alagada (QUEIROZ, 2010: 369) Algumas cenas após esse trecho, Carlos da Maia recebe um exemplar do jornal difamador “A Corneta do Diabo”. Se por acaso a divulgação do jornal não estivesse sido impedida a tempo, Carlos da Maia teria manchado seu nome de família por Maria 136 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 Eduarda. É nesse momento que nosso protagonista começa a se questionar sobre o futuro do casal. então ali, sob essas árvores desfolhadas onde durante o verão, quando elas se enchiam de sombra e de murmúrio, ele passeara com Maria, esposa eleita da sua vida – Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra doméstica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem lhe permitiam em verdade casar com ela... (QUEIROZ, 2010: 371-372) A imagem da árvore é, de certa forma, um presságio do que irá acontecer com o destino do casal. O fim da Toca representa o fim do segredo. A relação entre os dois amantes não consegue resistir em público, enquanto no espaço do privado ela se mantinha devidamente resguardada. A grande questão que leva ao fim do romance não é a ausência de desejo entre o casal. Carlos da Maia e Maria Eduarda provavelmente se desejariam tanto em um contexto público quanto em um privado. No entanto, manter a relação na Toca era confortável, trazê-la para o mundo real (exterior) exigiria explicações perante a sociedade. Carlos sabia que pagaria um preço muito caro por divulgar esse amor. Algumas páginas após o trecho anteriormente citado, Maria Eduarda se muda para a rua de S. Francisco e a Toca se torna mais uma das casas esvaziadas de sentido que pertence a Carlos da Maia. Em suma, é possível afirmar com segurança que a existência da Toca precisou se restringir a um tempo e a um espaço determinado para não escandalizar a sociedade burguesa retratada por Eça de Queiroz. O relacionamento entre uma mulher supostamente casada e um herdeiro aristocrata jamais seria aceito em uma sociedade que prezava excessivamente valores como a família e a boa reputação. O espaço da Toca já nasceu fadado a não ter sucesso a longo prazo. Sabemos muito sobre o nascimento da Toca, desde a decisão de adquiri-la até as pequenas mudanças que 137 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras – UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição Especial/ 2012 ISSN: 2176-3798 Maria Eduarda promove na decoração. Porém não sabemos quase nada sobre seu fim. Curiosamente, o narrador é econômico ao contar como este projeto de lar se desfaz. Referências bibliográficas: - CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. - FIGUEIREDO, Mônica. De vencedores vencidos: Bento Santiago e Carlos da Maia. Algumas considerações sobre o romance oitocentista. Disponível em: http://www.bn.br/portal/arquivos/pdf/Monica_Figueiredo.pdf Acesso em: 04 mai. 2011 - FIGUEIREDO, Mônica. No corpo, na casa e na cidade, a ficção ergue a morada possível. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. (Tese de Doutorado) - GAY, Peter. 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