ANCESTRAIS
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ANCESTRAIS
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Do lado paterno meus ancestrais eram piratas sanguinários no mar, chefes guerreiros em terra. Não temiam nem a Deus nem aos homens. Do lado materno, eram amáveis, insípidos camponeses que se debruçavam confiantes sobre a terra de sol a sol, ceifavam. E na tarde do dia sentavam-se no banco de pedra em frente às suas casas, de braços cruzados, entregando suas esperanças a Deus. Fogo e terra. Como poderia eu harmonizar estes dois ancestrais combativos no meu interior? Sentia que esse era o meu dever, meu único dever; o de reconciliar os irreconciliáveis, o de arrancar de minhas entranhas o grosso negrume ancestral e de o transformar, fazendo uso de minha melhor habilidade, em luz. Não é de Deus o mesmo método? Não é nossa a obrigação de usar este método, seguindo seus passos? Nosso tempo de vida é uma faísca. Mas é o bastante. Alheio segue o mundo inteiro este método. Cada coisa viva é uma oficina onde Deus, secreto, processa e transubstancia o barro. Eis porque as árvores florescem e frutificam. Eis porque os animais se multiplicam. Eis porque o macaco conseguiu ultrapassar seu destino e se perpendicular sobre os dois pés. E agora, desde que o mundo se fez, está permitido ao homem de penetrar na sua oficina e labutar com Ele. Quanto mais carne ele transubstancia em amor, valor e liberdade, tanto mais se torna realmente filho de Deus. É um dever opressivo. Insaciável. Durante toda a minha vida lutei e ainda luto, mas um sentimento de escuridão ainda permanece no meu coração. E a luta continuamente recomeça. Os velhos ancestrais paternos estão profundamente encravados em mim. Persistem, flutuantes e me é muito difícil distinguir seus rostos na escuridão impenetrável. Quanto mais persisto na busca do primeiro ancestral em meu íntimo, atravessando as camadas amontoadas na minha alma – indivíduo, nacionalidade, espécie humana – tanto mais me absorve o sacro horror. A principio parecem feições de um irmão ou de um pai. Depois, à medida que afundo para as raízes, salta de minhas profundezas um queixo protuberante, cabeludo, famélico, sedento e bramindo de olhos cheios de sangue. Esta é a besta gorda e crua entregue a mim para ser transubstanciada em homem. E de ser elevada mesmo além deste homem se me for capaz de fazê-lo no espaço de tempo que me é dado. Do Macaco ao homem, do homem a Deus, que temerosa ascensão! Uma noite, caminhava com um amigo por uma montanha coberta de neve. Tínhamos perdido nosso rumo e a escuridão caíra sobre nós. O céu estava polido de qualquer nuvem. A lua pendurava-se muda e totalmente redonda sobre nós. A neve cintilava, num azul pálido desde a encosta da montanha onde nos encontrávamos até a planície abaixo. O silêncio congelado e inquieto: Insuportável. Durante mil eras as noites assim banhadas pelo luar se parecem, antes que o silêncio se tornasse insuportável também para Deus e que Ele pegasse no barro modelando o homem. 2 ANCESTRAIS Adiantei-me de meu amigo alguns passos com minha mente envolta em uma estranha vertigem. Tropeçava como um bêbado enquanto avançava. Parecia-me caminhar sobre a rugosidade lunar ou por uma terra velha e desabitada antes que acontecesse a vinda do homem, mas intensivamente familiar. De súbito, numa curva do terreno, percebi algumas ínfimas luzes tremulando palidamente no longínquo horizonte, perto do abismo de um desfiladeiro. Devia ser uma pequena aldeia cujos habitantes ainda estavam acordados. Neste instante, algo de surpreendente ocorreu. Ainda estremeço ao me lembrar. Parando, estendi meu punho cerrado em direção à aldeia e gritei em fúria: “Eu vos estraçalharei a todos”. Uma voz rouca que não a minha. Meu corpo todo começou a tremer de pavor assim que ouvi esta voz. Meu amigo correu a mim e aflito agarrou-me o braço. – O que é que há com você? – perguntou. – A quem você vai estraçalhar? Meus joelhos tornaram-se moles. Senti um súbito e inexprimível cansaço. Mas vendo o amigo a minha frente, voltei a mim. – Não fui eu, não fui eu, – murmurei. – Foi outra pessoa. Tinha sido outra pessoa. Quem? Minhas sensações nunca se tinham aberto tão profundas e tão reveladoras. Daquela noite em diante, tinha ao menos certeza do que tinha adivinhado por anos: dentro de nós está camada após outra de escuridão. Vozes roucas, bestas famigeradas e cabeludas. Nada morre então? A primeira fome, sede e aflição de todas as noites e todas as luas antes da chegada do homem continuarão a viver e ansiar conosco. A desejar e serem atormentadas conosco enquanto permanecemos vivos. Com terror ouvi o início do rugir da carga de horror que carrego em mim. Nunca me salvaria então? Nunca se limpariam minhas entranhas? De quando em vez, esporadicamente, uma doce voz ecoa no centro perfeito do meu coração: “Não tema. Criarei as leis e estabelecerei a ordem. Sou Deus. Tem fé”. Mas, imediatamente, rosnam minhas profundezas e a doce voz é calada: “Pare de se vangloriar. Desmancharei tuas leis, arruinarei tua ordem e te destruirei. Pois eu sou caos!” Dizem que o sol por vezes pára seu rumo para escutar o canto de uma jovem. Se fosse verdade! Ah, se a necessidade, fascinada pela força de um canto oriundo das profundidades terrestres pudesse mudar seu curso! Ah, se nós, de choros, risos e cantos pudéssemos criar uma lei capaz de sobrepor a ordem sobre o caos! Ah, se a doce voz dentro de nós pudesse encobrir o rugido! Quando estou bêbado, ou zangado, ou quando toco a mulher que amo, ou quando a injustiça me sufoca e então levanto minha mão em rebeldia contra Deus e o diabo, ou contra os representantes de Deus ou do diabo na Terra, ouço estes monstros rugindo em mim, galopando contra a porta da armadilha para esmagá-la, alçarem-se novamente e retomar as armas. Afinal, sou o último e mais amado neto: além de mim eles não têm mais esperanças ou refúgios. Do que ainda lhes resta para vingar, gostar ou sofrer, só poderá ser feito através de mim. Se morro, morrerão comigo. Quando eu cair no meu túmulo, um exército de monstros cabeludos e homens aflitos cairá junto comigo.Talvez seja por isso que tenham me atormentado e estejam tão apressados. Talvez seja esta a razão porque ANCESTRAIS 3 minha juventude foi tão inquieta, insubmissa e desgraçada. Mataram e foram mortos desrespeitando a alma. Tanto a sua como a dos outros. Amaram a vida e escarneceram da morte com algum desdenhar extravagante. Comeram como monstros, beberam como bezerros, não se desonravam com mulheres quando era caso de irem para a guerra. Seus torsos ficavam descobertos no verão e envoltos de pele de carneiro no inverno. Seja verão seja inverno fediam como animais em cio. Sinto meu bisavô ainda pleno de vida no meu sangue. Creio que de todos é ele o que vive com mais vibração nas minhas veias. Sua cabeça raspada acima da testa, tem uma longa trança atrás. Acompanhou os piratas algerianos e cruzou os altos mares. Estabeleceram seu esconderijo nas ilhas abandonadas de Grabousa, na extremidade ocidental de Creta. Ali alçaram a bandeira negra e abateram os navios que passavam. Alguns velejavam em direção a Mecca cheios de peregrinos islâmicos; outros em direção ao Sepulcro Sagrado cheios de cristãos a caminho de se tornarem hadjis. Aos gritos, os piratas jogavam seus ganchos e escalavam até o convés, machados em punho. Sem mostrar piedade nem por Cristo nem por Maomé, assassinaram velhos, escravizaram jovens e tombaram sobre as mulheres, refugiando-se de volta a Grabousa: De bigodes cheios de sangue e cheiro de fêmeas. Outras vezes caíam sobre caíques carregados de especiarias que apontavam do oeste. Os velhos ainda rememoram boatos sobre a ilha de Creta cheirando a canela e noz moscada porque meu ancestral, o homem de trança, saqueara uma nave carregada de especiarias e não tendo onde armazená-las, as enviou para as aldeias de Creta como dádivas a seus netos e netas. Comovi-me profundamente ao ser informado deste incidente, ocorrido há não tantos anos atrás, por um cretense centenário, isto porque, sem saber do motivo, eu gostava sempre de carregar comigo um tubo de canela e algumas sementes de noz moscada nas minhas viagens, assim como de tê-los a minha frente sobre a mesa de escrever. Sempre que, ouvindo as vozes misteriosas no meu interior conseguia acompanhar o fluxo do sangue em vez do da mente (que sofregamente arfa e para) chegava com uma certeza mística aos meus princípios ancestrais mais remotos. Depois, com o tempo, esta misteriosa certeza fortaleceu-se através de indícios palpáveis da vida diária. Apesar de no início acreditar que fossem acidentais e de não lhes prestar atenção, tornei-me finalmente capaz, fundindo a voz do mundo visível a aquelas secretíssimas em mim, de penetrar na escuridão original da minha mente, de levantar a porta do alçapão e ver. E a partir do momento em que vi, minha alma principiou sua solidificação. Seu fluxo não era mais de uma flutuação constante como da água. Um semblante começou a se fortalecer e a se congelar ao redor de um núcleo luminoso. O semblante de minha alma. Em vez de prosseguir primeiro para a esquerda e depois para a direita, seguindo caminhos sempre mutáveis para poder alcançar a besta da qual descendia, persisti com firmeza porque conhecia meu rosto verdadeiro e meu único dever: o de trabalhar esse rosto com tanta paciência, com tanto amor e talento do que fosse capaz. “Trabalhar” o rosto? O que significava isto? Queria transformá-lo numa chama e, se tivesse tempo antes da chegada da morte, de transformar essa chama em luz, para que Caronte nada encontrasse em mim para levar. Pois que esta era a minha maior ambição: que não restasse nada para a morte – nada mais que alguns ossos. 4 ANCESTRAIS Como auxílio para alcançar esta certeza tinha eu o solo de onde os meus pais tinham nascido e crescido. O tronco de meu pai vinha de uma aldeia de nome Barbari, a duas horas de Megalo Kastro. Quando o imperador bizantino Nicephoros Phocas, no século x retomou Creta aos árabes, aqueles que sobreviveram ao massacre foram espalhados por ele em várias aldeias às quais denominou de Barbari. Foi numa destas que meus ancestrais paternos semearam suas raízes. Todos têm características árabes: são orgulhosos, obstinados, calados, abstêmios, anti-sociais. Guardam sua raiva e seu amor durante anos dentro de seus peitos, nunca emitindo uma só palavra. De repente, como um raio, com o diabo no corpo, explodem num frenesi. Para eles o benefício supremo não é a vida, mas a paixão. Não são nem bons nem acomodados. Suas presenças são insuportáveis, não pelos outros, mas por si mesmos. Um demônio interior os estrangula. Sufocando-se, tornam-se piratas ou apunhalam seus braços, tontos de estupor para no jorrar do sangue encontrar alívio. Ou, como eu, seu desmiolado neto, trabalham na manutenção do peso obscuro e o transformam em espírito. O que quer dizer isto: transformar meus bárbaros ancestrais em espírito? Significa sua destruição submetendo-os ao teste máximo. Outras vozes ainda marcaram secretamente o caminho até meus ancestrais. Meu coração pula de alegria quando encontra uma tamareira. Poder-se-ia pensar que voltou a pátria, a aldeia beduína coberta de pó cujo único precioso ornamento é esta tamareira. E uma vez quando penetrava pelo Deserto Árabe no dorso de um camelo, olhando por sobre as areias que se estendiam a meus pés em ondas soltas e desesperançadas – amarelas e rosas, arroxeando ao entardecer, desertas de todo vestígio humano – fui tomado por uma estranha emoção. Meu coração lançou o grito da fêmea do gavião que volta ao ninho abandonado durante anos, milhões de anos atrás. Depois houve isto: Uma vez vivi em completa solidão numa cabana isolada de uma aldeia grega. “Pastoreando os ventos” como costumava dizer um ascético de Bizâncio. Em outras palavras, escrevia poesia. Esta pequena casa escondia-se entre as oliveiras e os pinheiros e o mar Egeu de infinito e profundo azul se fazia visível, mais abaixo, por entre os galhos. Ninguém passava com a exceção de Floros, um pastor simples, meio sujo e com uma loura barba. Vinha com seus carneiros todas às manhãs trazer-me uma garrafa de leite, oito ovos cozidos e algum pão. Depois ia embora. Quando me via debruçado sobre meus papéis a escrever, balançava sempre a cabeça. – Que os Santos nos ajudem! O que espera de todos esses escritos? Nunca se cansa? – O que era seguido de uma cascata de risos. Um dia chegou apressadíssimo, tão mal humorado e cheio de raiva que nem disse bom dia. _ Algo errado Floros? – Droga, patrão, deixe-me em paz. Não fechei os olhos por um minuto esta noite. Mas o senhor não ouviu? Onde estão seus ouvidos? Não escutou no pastor, na montanha daquele lado? Que o diabo o carregue! Esqueceu de afinar os guizos de seu rebanho! Como poderia eu dormir?...Vou embora! – Para onde, Floros? – Afinar os guizos, é claro. Assim poderei me acalmar. E como ia dizendo, um dia durante o jantar quando ia até o armário buscar sal para os ovos, um pouco se derramou no chão. Meu coração parou. Abaixando-me rapidamente, comecei a catar grão por grão no que conscientizei o que estava fazendo e tive medo. Porque toda essa pena por um punhado de sal caído no chão? Que valor tinha? Nenhum. ANCESTRAIS 5 Depois, sobre as areias, descobri ainda outros indícios que me permitiram alcançar meus ancestrais, se os seguisse. Esses eram o fogo e a água. Sempre dou um sobressalto de preocupação quando vejo um fogo queimando à toa. Não quero vê-lo fenecer. Sempre corro para fechar uma torneira quando a vejo jorrando sem ter um vaso para encher, uma pessoa para saciar ou um jardim para molhar. Experimentei todas estas estranhas coisas, mas nunca as combinei com clareza na minha mente a ponto de descobrir sua unidade mística. Meu coração apenas não suportava a visão da água, do fogo ou do sal se desperdiçando; eu sempre me exaltava quando via uma tamareira; e quando penetrava no deserto não queria partir. Mas minha mente não ia mais longe que isto. Isso durou muitos anos. No entanto, na sombria oficina no meu interior o assunto, aparentemente, se desenvolvia em segredo. Todos esses fatos inexplicados se agrupavam secretamente em um só. E quando se colocaram uns ao lado do outro, abruptamente, enquanto eu perambulava numa grande cidade sem pensar em absoluto no seu significado, encontrei. Sal, fogo e água eram os três preciosíssimos bens no deserto! Certamente por causa disto algum ancestral em mim – um beduíno – levantava-se ligeiro e saía em socorro do sal, fogo e a água que via perder. Uma chuva suave caía naquela tarde na grande cidade. Lembro-me de ter visto uma menina que se abrigava sob o vão de uma porta. Vendia pequenos buquês de violetas encharcadas. Parando a observei, mas minha mente – longínqua, mais tranqüila agora e extremamente feliz – vagabundeava pelo deserto. Tudo isso pode ser fantasia ou auto-sugestão. Um deserto romântico pelo exótico e remoto. Todos os fatos estranhos que enumerei podem não ser absolutamente estranhos ou podem não ter o sentido que lhes dou. Sim. Tudo isso é possível. Contudo, a influencia deste engano conscientizado e cultivado, desta ilusão (se for ilusão) que correntes de sangue idênticas, gregas por parte de mãe e árabes por parte de pai correm em minhas veias, tem sido positiva e frutificante dando-me força, alegria e riqueza. Minha luta para fazer uma síntese desses dois impulsos antagônicos é o que tem dado objetivo e unidade a minha vida. No instante em que o pressentimento indefinido em mim tornou-se certeza, o contorno visível do mundo se organizou e minhas vidas interiores e exteriores encontrando a dupla raiz ancestral, ficaram em paz uma com a outra. Assim, muitos anos depois, o ódio secreto que eu nutria por meu pai, foi capaz, após sua morte, de transformar-se em amor. 6 ANCESTRAIS