Le Monde Diplomatique - Cultura e Política
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Le Monde Diplomatique - Cultura e Política
LE MONDE diplomatique BRASIL Projeto transnacional redesenha o território político da cultura Seminário busca novos laços entre gupos sociais, artísticos, populares e acadêmicos Páginas 3, 4 e 5 Mariza Veloso e Heloísa Buarque analisam o papel da cultura nas ações transformadoras Páginas 6 e 7 O rapper GOG faz saudação à arte e à luta anti-racial do mestre Abdias Nascimento Página 8 ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA Cultura e Política na integração da América Latina Um território comum para a política e a cultura O Grupo Executivo da Articulação é formado pelo argentino Eduardo Balán (Rede de Arte e Transformação Social), pelos brasileiros Guilherme Reis (Cena Contemporânea) e Iara Pietricovsky (Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc) e pelos bolivianos Carlos Hugo Molina (Centro para la Participación y el Desarrollo Humano Sostenible – Cepad) e Sebastián Molina (Sociedade da Informação e Comunicação). O que entendemos por “cultura” e “política” em nosso continente são categorias que, no decorrer da história, se combinaram de formas muito diferentes. Nos últimos anos, parece haver uma busca das duas dimensões na criação de uma equação original, atenta e, quem sabe, aquilo que De Souza Santos chamou de uma “transição paradigmática”. Cultura e política protagonizam processos que, em diferentes partes do continente, ativaram uma poderosa revalorização dos conteúdos rituais, simbólicos e institucionais provenientes de manifestações populares, tanto na perspectiva dos movimentos sociais como nas lutas dos povos originários, das reivindicações de gênero, das lutas sindicais e das múltiplas identidades raciais e étnicas que convivem em nosso território latino-americano. É necessário enfatizar que, além do líder dos movimentos indígenas na Bolívia e do sacerdote que falou em guarani no Paraguai, duas mulheres presidem a Argentina e o Chile, e um metalúrgico ocupa a presidência no Brasil. Um fluxo e refluxo transcendente de transformações têm conectado os rios subterrâneos que fazem a comunicação, subjacente à realidade, entre a cultura e política, talvez construindo um único caudal simbólico que ainda não conta com sua própria estrutura. Porque nada evita que essas lideranças formais encontrem sérias dificuldades para criar na política pública visões que aparecem com maior nitidez nas manifestações culturais reclamando direitos. Como em um sistema velho ainda predominante, a pobreza, a degradação do meio ambiente, a desigualdade e a violência sobressaem na vida cotidiana, embora indiscutivelmente sua eliminação faça parte das reivindicações das maiorias populares. Mas o velho assiste a sua própria desarticulação, com renovadas forças éticas e políticas implementando paradigmas de nítida referência a direitos políticos, sociais, civis, econômicos, culturais, ambientais e sexuais. Além disso, esses cruzamentos entre política e cultura convivem com fenômenos de outra ordem que, no entanto, também são expressões de uma mesma transformação. São subculturas urbanas, novas tecnologias, manifestações de religiosidade popular que se mesclam aos avanços das igrejas eletrônicas. São criações das indústrias culturais hegemônicas e dos meios de massa que permeiam expressões de bairros, coletividades ou grupos. É a explosão de organizações sociais que adotam a arte como eixo de projetos comunitários... Todos, artistas de uma mudança de multifa- Realização: Projeto Articulação Latino-Americana: Cultura e Política Edição e Produção: Geraldinho Vieira e Luciana Costa Reportagem: Valmir Santos | Foto capa: AfroReggae / Mila Petrillo Contatos do Grupo Executivo: Carlos Hugo Molina (Bolívia): [email protected] | Eduardo Balán (Argentina): [email protected] Guilherme Reis (Brasil): [email protected] | Iara Pietricovsky (Brasil): [email protected] | Sebastián Molina (Bolívia): [email protected] Miguel Mello ces que envolve e mistura tudo que identificamos com a cultura e com conflitos e instrumentos da política, reabrindo a discussão do sentido do espaço público. Não passa despercebido a ninguém que na América Latina a arte e a política viveram uma espécie de romance apaixonado durante toda sua história: desde as imagens de Siqueiros, passando pelo Olodum e AfroReggae, Victor Jara, o Sertão, o carnaval uruguaio, ou Rodolfo Walsh na Argentina, até o continente integrado na escola de samba do mesmo Rio de Janeiro que reinventa o hip hop nas favelas. Política e poesia, política e pintura, política e cinema, política e teatro Política e arte são, e sempre foram, elementos de uma roda que não pára de girar, às vezes com maior fluidez e outras não isentas de profundos debates. Porém, os termos dessa relação são os mesmos que lhe davam vida há algumas décadas? É possível pensar em uma nova equação entre eles? Paralelamente a esses debates, a conflituosidade se torna densa, em termos políticos e econômicos, enquanto tangencia as estruturas de um tema fundamental, como é a definição do sentido democrático dos meios de comunicação. Se um dos cenários privilegiados do cruzamento entre política e cultura é o espaço público e comunitário, o outro é, sem dúvida, o dos grandes meios de comunicação. Arte, comunicação, cultura e política são faces de um debate que, na América Latina, se reveste de características muito singulares e diversas. Neste suplemento se dá conta da experiência fomentada por uma rede, a Articulação Latino- Americana: Cultura e Política – ALACP, que pretende construir ferramentas para, em todo o continente, fortalecer os processos, as iniciativas e as lutas que, em uma perspectiva de direitos, ocorrem nos países latino-americanos. Em um esforço em prol da conectividade com experiências sociais, populares, sindicais, artísticas e acadêmicas, tal articulação propõe uma agenda comum e um intenso programa de trabalho para o próximo Fórum Social Mundial na cidade de Belém, Brasil, com ações na Argentina, Brasil, Chile, Peru, Bolívia e vários países da América Central visando, basicamente, promover o encontro entre dois mundos que, aparentemente, seguem caminhos diferentes, como são aqueles que se consideram produtores exclusivamente culturais e os que fazem do político e do social a sua tarefa cotidiana. Porque no centro do debate surge, mais uma vez, o que parece ser o núcleo integral das duas construções (cultura e política) que são, nada mais, nada menos, as visões sobre democracia. Diante das realidades de pobreza e ameaça a nosso planeta e a nossos recursos naturais, torna-se urgente transformar a política e a democracia em ferramentas participativas de um desenvolvimento sustentável e eqüitativo. E, nessa linha, a reinvenção da democracia está exigindo, cada vez com mais força, uma recuperação crítica e renovada das práticas culturais geradoras de uma real cidadania. Com muito a dizer e fazer nesse sentido, os movimentos sociais, de gênero, etnia e raça, culturais e artísticos estão explorando formas de intercâmbio para dotar suas práticas com a eficácia e a amplitude necessárias aos problemas atuais. É nessa perspectiva que a Articulação lança ao mundo um espaço de conexão entre cultura e política, por meio de sujeitos políticos que produzem, de forma inédita e consistente, os movimentos sociais e culturais comprometidos com os direitos humanos e sua implementação radical. A Articulação Latino-Americana: Cultura e Política começou a ser pensada em 2007, por pessoas e organizações (muitas das quais hoje integram o Grupo Consultivo do projeto) comprometidas com a defesa e promoção dos direitos humanos. As reuniões foram convocadas pela Fundação Avina. O projeto tem ainda o apoio do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) e da Oxfam Novib. Arquivo STF Pedro França Com um seminário internacional realizado no Brasil, a rede Articulação Latino-Americana: Cultura e Política começou um caminho de reflexão e de busca de novas conexões entre grupos sociais, populares, sindicais, artísticos e acadêmicos que fazem da cultura um fator de transformação social e de demandas por direitos. A Articulação propõe uma agenda comum e um intenso programa de trabalho para o próximo Fórum Social Mundial na cidade de Belém, Brasil, com ações na Argentina, Brasil, Chile, Peru, Bolívia e vários países da América Central Por Valmir Santos* D esde a sua criação, em 1991, o Mercado Comum do Sul, o Mercosul, evocando o físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642), um dos protadesdenha o universo das formas culturais. A ignorância dos países sogonistas do Renascimento Científico. bre os modos de criação e produção artísticos dos demais atravanca o Um exemplo latente desse outro mundo possível foi citado coincidentemente caminho de um bloco que, apesar dos 18 anos de maioridade simbólica, duas vezes no seminário, nas falas da historiadora Wânia Sant’Anna e da antropadece de obsessiva fixação nas plataformas da economia e dos negócios em detripóloga e socióloga Mariza Veloso, da Universidade de Brasília (UnB). Ambas se mento de horizontes mais afeitos à cidadania, como as manifestações artísticas ou a lembraram de Joênia Batista Carvalho Wapichana (foto), a primeira advogada proteção ao ambiente. O déficit de direitos sociais é sentido na pele por milhões de índia a fazer uma defesa oral no Supremo Tribunal Federal. No mês anterior, ela crianças, mulheres e homens para os quais o acesso à cultura deveria mobilizar os havia subido à tribuna do STF para defender a demarcação contínua da reserva governantes tanto ou mais quanto os estimulam os tratados de livre-comércio. Não Raposa/Serra do Sol, em Roraima. E o fez lançando mão, em certas passagens, é por acaso que ganha força a idéia da simbiose de movimentos sociais e culturais, do dialeto indígena do seu povo wapichana. “É de emocionar ouvir essa mulher com esperanças de esse magnetismo irradiar para todos os recantos latinos. Essa pintada com traços de guerra [no rosto] e podendo se expressar também por meio percepção encampou o I Seminário Articulação Latino-Americana: Cultura e Poda linguagem dos brancos, do direito”, disse Veloso, autora do artigo O papel da lítica (foto, à direita), realizado em Brasília nos dias 1° e 2 de setembro. O encontro cultura na integração sul-americana (ver página 6). “Guardei aquela imagem, internacional constituiu o primeiro fruto do projeto de mesmo nome sobre o qual chorei. Aprendi muitíssimo com a Joênia quando fazíamos parte do Conselho pensadores, artistas, produtores e militantes da Argentina, Bolívia, Brasil e ColômNacional dos Direitos da Mulher, o qual ela também foi a primeira indígena a bia trabalhavam havia pelo menos nove meses. integrar”, rememorou Sant’Anna. Aberto ao público, o seminário colocou em relevo o pensamento As duas manhãs do seminário transcorreram sob o signo da mocrítico sobre as realidades regional ou continental; a troca de expederna arquitetura de Oscar Niemeyer, num dos auditórios do reO festival riências bem-sucedidas em alguns territórios; e a convicção urgente cém-inaugurado Museu da República, na Esplanada dos MinistéCena de que a interseção cultura-política não pode ficar fora da agenda rios, desenhado por esse homem de 100 anos cujo ímpeto social. A atriz e antropóloga Iara Pietricovsky, uma das coordenaContemporânea transformador não esmorece. A diversidade característica da fordoras do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), destacou a mação brasileira perpassou o encontro ainda na homenagem ao abrigou a aproximação desses dois vetores fundamentais: de um lado, a culpensador Abdias Nascimento, ícone da causa anti-racista, co-funtura dos movimentos sociais, a militância; e, de outro, a manifestadador do Teatro Experimental do Negro, no Rio de Janeiro da agenda da ção por meio das artes, a expressão cultural em sua essência. “É década de 1940, dramaturgo, poeta, pintor e homem público ceinterseção como se essas duas dimensões ainda não se articulassem, não conslebrado nas vozes da cantora Ellen Oléria e do rapper GOG, refetruíssem caminhos comuns de mudanças”, afirmou. A necessidade cultura-política rências da cultura negra politizada em território brasiliense, como de ampliar a força de ação dessas duas instâncias teve acolhida no destaca reportagem na página 8. “Esta é uma geração proativa”, Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. definiu a editora e coordenadora do Programa Avançado de CulA tônica política de sua nona edição expôs maturidade ao incorporar a discussão à tura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Heloísa grade paralela de espetáculos de dança, teatro e música que igualmente problematiBuarque de Holanda (ver página 7). zam as questões da contemporaneidade em suas temáticas e linguagens. Eis o caleidoscópio sobre o qual o seminário permitiu uma alentadora refleO ator, músico e professor argentino Eduardo Balán, coordenador do grupo de xão. Resultou uma generosa partilha de proposições por parte do público e dos cultura comunitária El Culebrón Timbal, nos arrabaldes de Buenos Aires, diagnosparticipantes que saíram convencidos de que seus caminhos podem levá-los a um ticou “a audácia política e artística” desse formato para uma mostra de artes cênifuturo mais próximo quando se trata de construir uma sociedade mais justa, éticas. Ele afirmou que é importante ter consciência de que a América Latina vive uma ca e digna da condição humana. É o que contempla a cobertura do encontro época de mudanças profundas no âmbito da tecnologia, com o potencial da internestas páginas, com textos que possibilitam ao leitor uma interpretação dos acenet, e da política institucional nos processos de democratização, vide as eleições dos nos e passos iniciais do projeto Articulação Latino-Americana: Cultura e Polípresidentes Lula (Brasil), Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Rafael tica, como nesta anedota bastante elucidativa sugerida por Balán: “Os engenheiCorrea (Equador) e Fernando Lugo (Paraguai). Mas isso seria apenas a ponta do ros costumam brincar que a única coisa que se constrói a partir de cima é o poço. iceberg: a sociedade, segundo Balán, começa a transformar também os paradigmas Para tudo o mais, é necessário começar da base”. de como a cultura e a política estruturam a vida, o cotidiano das populações. “Quem *Valmir Santos é jornalista e mestrando em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo. sabe, somos todos Galileus diante de uma nova etapa da humanidade”, disse o ator, Este suplemento é parte da edição no 15 (outubro de 2008) de Le Monde Diplomatique Brasil 2 3 ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA O ator Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, endossou que, historicamente, os brasileiros costumam “voltar as costas para a América Latina”. Fundada em 1979, a entidade que agrega cerca de 900 núcleos trata de combater tal ensimesmamento por meio de uma Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo que chegou à terceira edição, este ano, e levou a São Paulo, para apresentações e debates gratuitos, coletivos fundamentais na região, como o colombiano La Candelaria, o cubano Buendía e o equatoriano Malayerba. Ele mesmo integrante da Companhia do Latão, Piacentini lembrou que os grupos da classe teatral do Brasil vêm demonstrando, sobretudo nestes anos 2000, força de arregimentação para reivindicar políticas públicas para o setor. Foi assim que veio à tona o Manifesto Arte contra a Barbárie, em 1999, em defesa “de uma prática artística e política que se contraponha às diversas faces da barbárie – oficial e não-oficial”. O documento resultou da vontade de alguns grupos de artistas e de entusiastas dessa arte que depois elaboraram um anteprojeto e viram aprovado o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, em vigor há seis anos. Atualmente, a meta dos artistas é conquistar um Programa de Fomento em âmbito federal, bandeira que desde 2004 atrai grupos de vários estados em torno dos encontros anuais do movimento político Redemoinho, que principiou com foco em espaços de criação, compartilhamento e pesquisa teatral e acabou tornando-se um personagem-chave para contracenar com o Legislativo e o Executivo. Para além das fronteiras nacionais, o produtor independente Roberto Malta, da diretoria da Rede Brasil de Promotores Culturais, associação criada em 1996 e hoje com cerca de 600 membros, costura para 2010 a primeira edição quadrienal do Fórum Cultural Latino-Americano, em cidade-sede a definir. A inspiração, em parte, vem do Fórum Cultural Mundial que ele mesmo ajuda a organizar desde 2000. O objetivo é reunir criadores e pensadores de 18 países para discutir teorias e práticas da cultura interligadas por cinco eixos: desenvolvimento, política, economia, mídia e cotidiano. Um dos desafios, conforme Malta, é “fazer com que a política se superponha às cores partidárias e ideológicas”. Uma tarefa hercúlea num continente que tenta restaurar democracias após sucessivas ditaduras militares. O coordenador do grupo argentino de cultura comunitária El Culebrón Timbal, Eduardo Balán, disse que está em xeque o próprio regime político em que se vive. A rigor, a clássica democracia representativa foi gerada no ventre do capitalismo, sob os auspícios do mercado. A ela, há que se opor a democracia participativa. “Numa cultura popular de autogestão coletiva não pode haver economia dirigida por força do mercado, mas sim uma economia participativa. Nesse sentido, como construir um modelo de vida comunitária?”, perguntou Balán, para responder em seguida. “Evoluir para a democracia participativa, transcendendo e superando a democracia representativa. Carece outro modo de ver a democracia, na qual economia, cultura, política e representação estão dirigidas pela comunidade e não pelas forças do dinheiro.” Na atual conjuntura, a internet é desde já uma aliada decisiva, lembrou o boliviano Sebastián Molina, militante do movimento de imprensa cidadã. Ele instigou todos a utilizar a internet como “ferramenta de resistência à tirania dos meios tradicionais de comunicação”. Na sociedade da informação, a blogosfera converteuse em poder real nas mãos dos movimentos sociais. Equilibrar cultura e política no pêndulo de uma crise econômica foi a experiência que a Argentina viveu de forma aguda na crise de 2001, quando milhões de cidadãos foram às ruas exigir renovação total da política e das instituições (“Que se vayan todos”, era o grito de guerra). Balán testemunhou essa travessia: “O movimento cultural na Argentina ainda não dispõe de estruturas e organismos públicos que dêem conta de sua diversidade e dinamismo, tanto no terreno das várias expressões artísticas como no universo das comunicações e do desenvolvimento de experiências locais e/ou regionais. No centro dos debates está presente o trânsito a uma democracia participativa que efetivamente contribua à produção cultural e à vigência de uma lei de radiodifusão democrática – em um marco de políticas que dotem de legalidade todo esse enorme tramado que durante as últimas décadas soube mesclar a rebeldia com a beleza”, diagnosticou. (VS) El Culebrón Timbal: nos bairros da Argentina promovendo participação democrática e cultura comunitária E ra natural que o seminário de lançamento da Articulação Latino-Americana: Cultura e Política evocasse, indiretamente, o Fórum Social Mundial, cujo primeiro encontro aconteceu no Brasil, em 2001. Os ímpetos humanista e revolucionário daquele espaço descentralizado para o debate sobre os malefícios do neoliberalismo catalisaram vários momentos da roda protagonizada por produtores culturais, artistas e representantes de entidades nacionais e internacionais em Brasília. Não faltou disponibilidade para a reflexão e a organização descoladas de lubrificadas máquinas de governo e de interesses partidários de turno. Correlacionar estratégias sociopolíticas (extensivamente educativas) e artísticas é um modo de propiciar novas diretrizes sobre o pensamento e a militância contemporâneos. As quatro mesas trouxeram ao todo 12 convidados que versaram, em freqüência colaborativa com o público, sobre as perspectivas do projeto em si, as noções de cidadania, de políticas públicas para determinadas áreas e de iniciativas concretas de fusões político-culturais. O boliviano Carlos Hugo Molina, coordenador do Centro para la Participación y el Desarrollo Humano Sostenible (Cepad), de Santa Cruz de la Sierra, se permitiu um exercício de desconstrução semântica do nome do seminário. “Se é articulação, quer dizer que ela ainda não existe. E cultura e política não são apenas conceitos, estamos falando de gente, de populações”, observou. Daí a pertinência de aprofundar questões e idéias geradas sob o princípio de rede, de capacidade de interlocução entre os “atores sociais” que aí estão e os que virão. Em suas propostas para uma equalização dos marcos humano, social, cultural e político, Molina elencou três pontos: 1) contribuir para a reinvenção da democracia e a afirmação de culturas cidadãs de responsabilidades e direitos; 2) promover articulações inovadoras dos movimentos culturais e sociais; e 3) construir uma América Latina feliz, plural, eqüitativa e ambiental e politicamente sustentável. Sim, “feliz”, defende. “É uma proposta filosófica que não significa desconhecer a realidade, alienar-se. Ser feliz para não perder o espírito humano”, sustentou em sua explanação sobre políticas públicas. “Cultura não é só a dimensão da expressão artística. Implica mudança de valores, de atitudes. Há o viés revolucionário, transformador. Por isso, digo que política é Exu, é o que nos faz acelerar a velocidade de conexão necessária para que ela se expresse no plano da cultura, que se materialize”, afirmou a antropóloga Iara Pietricovsky. A representante do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), ONG de Brasília, sublinhou que não dá mais para pensar questões nacionais sem colocá-las em relação com os contextos de integração regional, de institucionalidades políticas em curso como o Mercosul, a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) e sua antípoda, a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), para citar três exemplos. “Existe toda uma teia de atos, decisões e ações sob pontos de vista político, econômico e institucional que definem nossa vida. Se não nos tornarmos ‘atores e atrizes’, sujeitos políticos dessa ação, vamos continuar no espaço que sobrar e não na condição de protagonistas que a gente quer. Nós, brasileiros, temos que começar a nos conectar a esses processos junto aos demais países, sem medo dos conflitos e das diferenças. Quem sabe, conseguiremos fazer uma onda que vá daqui até os EUA”, projetou. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Ney Piacentini, Eduardo Balán (fotos Pedro França), Guilherme Reis (foto Miguel Mello), Sebastián Molina (foto Pedro França), Roberto Malta (divulgação) e Carlos Hugo Molina (foto Pedro França) 4 O lugar social das artes? Arte versus utilitarismos N um seminário realizado em pleno Museu da República, no coração da capital brasileira, as artes visuais não poderiam passar em branco. Elas ganharam um recorte na voz da professora Marília Panitz (foto), do Instituto de Artes de Brasília. Ela ressaltou o papel dos coletivos de criação que firmam “articulações entre a arte crítica e a subversão”. Muitos deles estão engajados diretamente em lutas sociais que já não se apresentam ligadas a estruturas partidárias. Sob o ângulo brasileiro, citou o Movimento Passe Livre, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto em centros urbanos e os movimentos vinculados a questões de gênero e a lutas por liberdade de orientação sexual. “Uma pergunta torna-se recorrente para quem toma contato com esses trabalhos: o que neles sobra da experiência estética? Essa é uma questão que a gente tem que colocar”, propôs Panitz. Da platéia, a artista plástica Yana Tamayo lançou a pergunta que não queria calar: “Afinal, qual o lugar social das artes?”. Trouxe à memória a polêmica recepção da crítica especializada ao tema central da 27ª Bienal de São Paulo, mostra internacional de arte contemporânea que, em 2006, problematizou o Como Viver Junto. “Houve muito questionamento se boa parte do que fora exposto era arte ou ação socioeducativa”, disse Tamayo. Panitz divisa esse fosso (ou ponte?) entre a contrapartida social e a ação no campo da linguagem. “Um museu que não considera essas questões está fadado a si mesmo, corre perigo de ser sempre extremamente pedagógico. Isso também vale para as galerias”, ponderou. No segundo e último dia do seminário, o ator Guilherme Reis, diretor-geral do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, rememorou a edição histórica do I Festival Latino-Americano de Arte e Cultura, o Flaac, que a Universidade de Brasília (UnB) organizou em 1987, sob gestão do então reitor Cristovam Buarque, que ainda se aventuraria por uma segunda edição, em 1989. Esse projeto visionário de formação do espírito cultural e do seu tempo chegava a concentrar na cidade uma média de 700 artistas. “Era um caos absoluto, não tínhamos estrutura. Além disso, vivíamos um momento político muito difícil. Fazíamos um trabalho de sedução nas embaixadas das ditaduras mais ferrenhas. Além de importantes grupos que hoje se tornaram referências latinas, uma mesma noite poderia reunir nomes como o do poeta nicaragüense Ernesto Gardenal (então ministro recém-empossado), Caetano, Mangueira, Fito Paez, Charly García e Celia Cruz”, disse Reis. De certa maneira, a alegria e a solidariedade emanadas daquela saudosa confraternização alimentam as lembranças e ativam os futuros em jogo. (VS) E m sua participação no I Seminário Articulação Latino-Americana: Cultura e Política, o jornalista espanhol Carlos Gil Zamora, editor da revista Artez (www.artezblai.com), uma publicação há 12 anos voltada às artes cênicas, traçou um breve panorama dos modos de criar e produzir teatro na Europa, do pós-guerra à atualidade. O Estado de Bem-Estar Social que assegurou direitos fundamentais à cultura, à educação e à saúde tem sido profundamente abalado em tempos neoliberais. Na Espanha, a maioria dos espaços é pública, principalmente municipal, mas o fazer teatral resulta caro. É afetado por vieses partidários, personalistas e inclusive por variações de práticas de censura, outrora moral, em períodos de repressão, e hoje financeira, como chamou a atenção o jornalista. “Como sou um homem que vive em contradição perpétua, declaro-me aferrado defensor do que na Europa se chama agora de excepcionalidade cultural, que consiste em arrancar das garras do mercado e do neoliberalismo as artes cênicas e, insisto, todas as manifestações culturais. Prefiro um teatro protegido pelo Estado que deixá-lo nas mãos do mercado puro”, defendeu Zamora. Sobre o trânsito da criação com a ação social, ele se disse a favor do teatro como valor absoluto, como arte, e não de um teatro utilitário. Recorreu ao diretor brasileiro Augusto Boal, idealizador das técnicas do Teatro do Oprimido, para quem a expressão “teatro político” é um pleonasmo. “Toda estética comporta uma ética, e toda ética, uma política”, sintetizou o jornalista. (VS) As organizações que apóiam a Articulação Latino-Americana: Cultura e Política são parceiras dos povos do nosso continente, da consolidação da democracia e da busca de modelos sustentáveis e inclusivos de desenvolvimento... FORTALECENDO O TECIDO SOCIAL... Fundada em 1956, a Novib é uma organização holandesa para a cooperação internacional. A partir da formação da Oxfam Internacional, o nome da Novib passou a ser Oxfam Novib. O seu objetivo inicial – converter-se numa organização que representasse a população holandesa na luta contra a pobreza e a injustiça – ampliou-se. Outros objetivos se juntaram ao longo dos anos: justiça econômica e justiça de gênero. São objetivos que se cumprem por meio do financiamento de iniciativas em mais de 60 países onde a Oxfam Novib trabalha com mais de 900 organizações. O trabalho na América Latina tem um caráter especial: a organização vem investindo na cooperação, no fortalecimento da sociedade civil e dos movimentos sociais, na consolidação de democracias e na promoção da identidade cultural dos povos - em especial dos povos indígenas, e nos direitos das mulheres. Avina reconhece o papel fundamental da cultura nos processos de desenvolvimento, pois contribui para a afirmação da identidade dos povos e para o resgate de sua dignidade, sendo elemento efetivo para a mobilização do exercício de uma cidadania plena e das boas práticas de participação política e social na construção de valores compartilhados. ...E PROMOVENDO A IGUALDADE DE GÊNERO O Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher – Unifem promove a implementação dos compromissos pela igualdade de gênero assumidos pela comunidade internacional, o que inclui a Plataforma de Ação de Pequim; a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw); e a Resolução do Conselho de Segurança 1325 sobre Mulher, Paz e Segurança. ...FOMENTANDO ALIANÇAS ENTRE SETORES… A Fundação Avina contribui para o desenvolvimento sustentável da América Latina, fomentando a construção de alianças entre líderes sociais e empresariais, e articulando agendas de ações coletivas. Está orientada pela visão de uma América Latina próspera, integrada, solidária e democrática, inspirada em sua diversidade, e constituída de uma cidadania que a posiciona de forma global, construindo seu próprio modelo de desenvolvimento inclusivo e sustentável. A O Escritório Regional do Unifem para os países do Cone Sul foi criado em 1992 e atua na Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai com a missão de apoiar ações inovadoras que beneficiem as mulherese que garantam sua participação nos processos de desenvolvimento. O Unifem desempenha um papel catalisador dentro do Sistema das Nações Unidas, visando à incorporação da perspectiva de gênero em projetos e programas de desenvolvimento. 5 Pedro França Por uma militância em rede O poder da cultura na integração sul-americana A política do hip hop nas favelas brasileiras Professora da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco, Mariza Veloso afirma que a dinâmica dos movimentos sociais nos países sul-americanos começa a despontar como possibilidade concreta para a organização de ações transnacionais, e que “as estratégias desses movimentos deverão ser concebidas sem nenhuma estreiteza do nacionalismo cultural” Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, Heloísa Buarque de Holanda aponta para o que une e define o hip hop no Brasil: um conjunto de ações mediadas pela cultura, buscando a transformação das comunidades. Para Heloísa, “a periferia vê o acesso à cultura como um direito básico e fator estratégico para a transformação social” num lugar passivo, ou mesmo tendo como pressuposto uma idéia mecanicista de cultura” (Alves Souza 2004:35). Parece-nos razoável afirmar que também houve avanço na discussão sobre as dinâmicas culturais e sua importância nos ordenamentos sociais e nos acordos coletivos nacionais e transnacionais. Alves de Souza afirma ainda que a dinâmica cultural atual é capaz de propor mecanismos e estratégias que suscitem o sentido de pertencimento e a capacidade de viabilizar direitos. Não há como discordar do sociólogo José Maurício Domingues quando se reporta à questão do regionalismo na América do Sul afirmando que “pouco a pouco o novo regionalismo finca raízes societárias mais fundas entre nós. Dar-lhes organicidade e institucionalizá-las de forma inovadora é ainda um desafio”. Acredito que as “forças vivas” da sociedade são fundamentais nesse processo, e entre tais forças estão a cultura e o respeito à diversidade de suas manifestações. Nos anos 1980 e 1990, o processo de redemocratização impulsionou múltiplas dinâmicas sociais de “revitalização” da sociedade, o que permitiu uma redefinição da identidade sul-americana, revendo-se a sua posição como subdesenvolvida, subordinada e subalternizada em relação às potências internacionais. É precisamente na década de 1990 que ocorre a consolidação robusta e renovada de movimentos sociais latino-americanos, decorrentes, entre outros fatores, da consolidação de um novo ambiente democrático que possibilitou o aparecimento de novos atores sociais no cenário sul-americano. São novas redes sociais, como as ONGs e as mídias alternativas, que influenciaram o fortalecimento de novas subjetividades coletivas. O discurso em torno da universalização dos direitos humanos, da justiça e da responsabilidade social assume a linha de frente do debate político. A dinâmica dos movimentos sociais e a proliferação de organizações que têm surgido na sociedade civil dos países sul-americanos despontam como possibilidades concretas para a organização de movimentos sociais transnacionais. FAVELIZAÇÃO POLÍTICA NACIONALISMOS Para viabilizar estratégias de integração regional sul-americana será necessário que estas sejam concebidas sem nenhuma estreiteza do nacionalismo cultural nem visão essencial e ontológica de cultura. Nos anos 1920 e 1930, o nacionalismo cultural foi importante em toda a América do Sul e especialmente significativo para os processos de construção e consolidação das culturas nacionais, sendo estas pensadas a partir de seus elementos constitutivos, considerando as diversas etnias presentes no contexto sul-americano. A integração não pode ser confundida com unificação, mas sim como possibilidade de disseminação das diferentes tradições e práticas culturais que possam permitir novas conexões entre diferentes grupos sociais. O processo de integração não pode ser pensado fora da moldura da configuração sócio-histórica e cultural, em que ganham destaque os baixos níveis de educação e escolaridade e as dificuldades de acesso à informação e aos bens culturais. INTEGRAÇÃO As manifestações culturais, estéticas e patrimoniais podem colaborar para a constituição de novos agenciamentos, de novas e renovadas identidades coletivas, viabilizando a reprodução social de diferentes grupos sociais, inclusive de múltiplos grupos subalternos, como os camponeses, os indígenas e os artesãos, e possibilitando novas articulações entre cultura e desenvolvimento sustentável. É preciso antes de tudo romper com os cânones da exotização da cultura e da arte latino-americanas, construídos pelo “olhar estrangeiro”, e permitir que os grupos produtores de arte possam expressar sua própria voz ou seu próprio sotaque, de forma altiva e com plena legitimidade. Alves de Souza (2004) observa: “A integração latino-americana adotou padrões inovadores nos anos 1990, mas já veio alojada no contexto da globalização, portanto muito marcada pela idéia de proeminência do mercado. A cultura foi colocada 6 INFORMAÇÃO Segundo o UN-Habitat Report, a população favelada cresce hoje 25 milhões de pessoas por ano e os novos pobres periurbanos serão em 2020 cerca de 45% a 50% do total dos moradores da cidade. No Brasil, a população que vive em favelas ou “aglomerados subnormais” cresceu 45% nos últimos anos, três vezes mais que a média do crescimento demográfico do país. Hoje, temos 51,7 milhões de favelados (atrás apenas de Índia e China). É possível identificar várias respostas a esse cenário. Uma das mais interessantes é o caso dos processos que se desenvolvem na cultura do hip hop tal como vêm sendo praticados nas favelas e comunidades de baixa renda no Brasil. O hip hop, nascido na Jamaica e “criado” nos EUA, adquire algumas características locais bastante específicas, resultando em novas formas de organização comunitária e intervenção por meio da procura de novos sentidos e efeitos para a produção e para o consumo culturais. A forma de ação distintiva desses novos projetos sociais é uma atitude proativa, agindo a partir e para a comunidade, com maior eficácia do que as velhas políticas de reação, oposição e denúncia de abandono do Estado. Ela privilegia a ação pedagógica em lugar do confronto agressivo. De forma mais geral, o que é reivindicado é o acesso à cultura, visto como um direito básico e fator estratégico de qualquer projeto de transformação social. Algumas prioridades são estabelecidas nessas ações culturais, entre elas a conquista de visibilidade por meio de divulgação intensiva da informação sobre a condição de vida nas favelas e a formação de quadros nas áreas da cultura e do desenvolvimento (gerando capacidade de se situar no mercado de trabalho, a partir de uma pedagogia de formação do empreendedor engajado - porque se cria um compromisso para a redistribuição dos saberes adquiridos) OUTRAS PALAVRAS LITERATURA O hip hop, nas periferias urbanas das metrópoles brasileiras, é mais abrangente do que sua forma original norte-americana, composta tradicionalmente pelo rap, grafite, MCs e break dance (b-boys). No Brasil, o hip hop agrega a literatura (uma tendência muito forte e prestigiada do nosso hip hop), algumas formas de competição esportiva como o basquete de rua e, o que parece mais interessante, um investimento bastante significativo nas formas de aquisição e produção de conhecimento. O que une e define o hip hop no Brasil é a criação de um conjunto de ações mediadas pela cultura, buscando a transformação de suas comunidades. Essa atitude é agora experimentada simultaneamente como arte e ativismo. Chama atenção ainda que a jovem cultura negra do hip hop parece agora mais descompromissada com uma cultura focada em suas raízes (ainda que estas sejam um elemento central dessa produção), sendo assim capaz de articular um fórum supranacional de jovens pobres e pretos que levantam a bandeira da resistência. Em sua ação individual na favela do Capão Redondo, Ferréz - que assume publicamente o compromisso de sua literatura em estilo e em ativismo com o movimento hip hop - é autor de vários livros (como Capão pecado, Manual prático do ódio, Ninguém é inocente em São Paulo, Os inimigos não mandam flores) e exerce uma forte liderança entre seus “brothers”. Graças à projeção que sua literatura ganhou, Ferréz faz uma campanha pelo direito à cultura nas comunidades pobres e cria, em parceria com o rapper Mano Brown, o movimento 1 DASUL, uma empresa cultural que, entre várias frentes de ação, tem sua produtora de CD e uma marca de roupas chamada Irmandade que produz uma média de 400 peças por dia, além de deter os direitos de comercialização de outros seis grupos de rap. A grife publica ainda panfletos antidrogas e planeja a criação de uma clínica para dependentes químicos na favela do Capão Redondo. Outros dois casos notáveis do papel instrumental da literatura como fator de mobilização dos direitos culturais de uma comunidade são o “Cooperifa”, do poeta Sergio Vaz; e o projeto de literatura de Alessandro Buzo, coordenador do movimento “Favela Toma Conta”. Os saraus da Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia (segunda foto, da esq. para dir.), nos arredores do Capão Redondo, São Paulo, congregam uma média de 500 pessoas por semana para ouvir e declamar poesia. Vaz é um ativista da poesia e já tem cinco livros publicados, entre eles Subindo a ladeira mora a noite e Colecionador de pedras. Alessandro Buzo é o cronista da periferia mais popular do Itaim Paulista, comunidade pobre a 38 quilômetros do centro de São Paulo. Escreveu os livros O trem – Baseado em fatos reais (2000), Suburbano convicto – O cotidiano do Itaim Paulista (2004) e Guerreira (2007). Além da militância de divulgação da leitura e da luta pelos direitos culturais de acesso ao livro, Buzo fundou o movimento “Favela Toma Conta” (duas fotos da direita), uma articulação do hip-hop com a literatura. Buzo inaugurou na sua comunidade a loja Suburbano Convicto, onde são vendidos livros, roupas, CDs e DVDs, transformando de certa forma o cenário cultural de sua favela, e promove eventos regulares como o “Suburbano no Centro” e “Encontro com o Autor”. NARCOTRÁFICO Miguel Mello Estabelecer conexões entre cultura e direitos parece ser uma tarefa urgente e necessária, especialmente quando se está tratando de América do Sul. A compreensão da cultura não se resume aos mecanismos de produção de identidade, mas também é importante considerar as estratégias para a produção de novos agenciamentos societários e valorativos. A cultura não deve ser pensada apenas no âmbito das políticas culturais estatais ou das propostas de acordos multilaterais, nem como mero produto, evento ou espetáculo, mas sim como processo permanente de criação de uma urdidura simbólica que permita o múltiplo entrecruzamento de experiências e tradições. Será necessário construir estratégias e canais de expressão próprios, de modo a possibilitar que os mais diferentes e diversos grupos sociais presentes no continente possam desfrutar de reconhecimento e visibilidade no espaço público, e ainda, conforme argumenta Hannah Arendt, que tais grupos possam expressar não apenas suas identidades, mas também exercer sua palavra e sua ação nesse espaço público e, principalmente, serem reconhecidos como legítimos. Cabe lembrar que uma forma contundente de violência simbólica é a própria invisibilidade de determinados grupos sociais na sociedade contemporânea, como tem sido o caso de indígenas, negros e mulheres no Brasil ao longo de vários séculos, e também de muitos grupos étnicos e de migrantes em praticamente todos os países sul-americanos. Os grupos subalternos inexoravelmente tendem à invisibilidade. Precisamos deixar de pensar as práticas culturais e o desenvolvimento sul-americano apenas como emergentes. É preciso também mudar a postura e pensar a América do Sul como espaço insurgente, onde alternativas podem surgir e um novo espaço público pode se desenvolver – um novo espaço público onde é possível atuar e agir em conjunto, mesclando a diversidade, para que de fato irrompa a construção de novas subjetivas coletivas. Pensar a cultura como campo de possibilidades interativas e propositivas a respeito da organização dos interesses coletivos é uma tarefa necessária para todos os atores envolvidos no processo de integração. As práticas culturais, mais do que outras instâncias, ensejam e contribuem para a organização dos interesses coletivos. A integração do continente passa inexoravelmente pela necessidade do que Gramsci chamou de “produção de sentido comum” (Quijano, 2001). Para tanto, é importante produzir e implementar operações de gramática de reconhecimento mútuo entre diferentes grupos e diferentes países. Políticas culturais devem ser interpretadas como vetores visando à construção de valores coletivos. A cultura não é apenas uma “reserva de valor”, mas um repertório produtivo que passa a agenciar novas responsabilidades coletivas na construção de um continente justo e democrático. Divulgação Editamos abaixo alguns trechos da conferência de Heloísa Buarque de Holanda (foto abaixo) no seminário de Brasília. A íntegra está nos sites: www.inesc.org.br | www.cenacontemporanea.com.br | www.cepad.org | ww.artetransformador.blogspot.com | www.culebrontimbal.com.ar Dois exemplos, entre muitos, de naturezas diferentes, da força dessa nova cultura periférica são: primeiro, o Grupo Cultural AfroReagge (primeira foto, à esquerda); segundo, o impacto da criação e do consumo da literatura nessas comunidades (falo especialmente do trabalho dos escritores Ferréz, Sergio Vaz e Alessandro Buzo, e do surpreendente poder de mobilização da literatura hip hop). O AfroReggae é uma ONG criada pelo impacto, na imprensa e sociedade civil, gerado por um confronto sangrento entre os chefes do narcotráfico e a polícia que terminou com um terrível massacre de 21 inocentes. Os moradores inauguraram, e desenvolvem desde então, uma estratégia singular cuja meta é retirar os jovens do trabalho com o narcotráfico por meio do estímulo à produção cultural nessa comunidade. É importante lembrar que, desde a década de 1980, as favelas brasileiras são dominadas pelo narcotráfico, o que tende a desmobilizar as possíveis articulações de organizações de base nessas comunidades. Esse uso estratégico da cultura desenvolve-se e amplia-se no sentido dos usos da cultura como fator de geração de renda, de alternativa ao desemprego progressivo, de estímulo à auto-estima, de afirmação da cidadania e, conseqüentemente, de demanda por direitos políticos, sociais e culturais nessas comunidades. 7 Miguel Mello FORÇAS VIVAS Mila Petrillo Editamos abaixo alguns trechos da conferência de Mariza Veloso (foto abaixo) no seminário de Brasília. A íntegra está nos sites: www.inesc.org.br | www.cenacontemporanea.com.br | www.cepad.org | www.artetransformador.blogspot.com | www.culebrontimbal.com.ar Marilda Borges ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA João Wainer ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA ARTICULAÇÃO LATINO-AMERICANA: CULTURA E POLÍTICA Saudação à luta anti-racial de Abdias Nascimento E Miguel Mello mos capazes, sim. Sem essa da ideologia que nos coloca sempre para trás, que diz que somos simplesmente negativos, problemáticos, burros. O professor Abdias nos mostra isso por meio de suas expressões culturais também: como escultor, como pintor (foto, ao centro), como dramaturgo, como teatrólogo... Ele não foi um negro diferente, mas um negro que soube buscar dentro de si a superação”, afirmou GOG, emocionado. Acervo Ipeafro CONSCIÊNCIA NEGRA Acerca das relações raciais, as evitações sociais, econômicas, políticas e culturais que afetam a população negra há séculos, a historiadora Wânia Sant’Anna (foto, à direita) enfatizou um feito extraordinário que o movimento negro do país conquistou após a ditadura militar (1964-1985). “Não é trivial, como reação política de grupos forjada nesse período de democratização, o fato de termos conseguido constituir a data cívica de 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra”, pontuou. Além de servir à reflexão, a data, implantada em 2003, reafirma a instituição de Zumbi (1635-1695), líder do Quilombo de Palmares, no atual estado de Alagoas, como um herói nacional. Há aí um forte componente de memória coletiva. “O resgate da história da escravidão se dá não apenas como explicação das relações étnico-raciais que experimentamos, mas como fonte para mudanças que devem ocorrer nos dias de hoje”, comentou Sant’Anna. Ao lançar mão de expressões como “mal-estar perpetuado” e “liberdade condicionada” para espelhar o discurso objetivo das relações de poder na sociedade, a historiadora identificou três situações típicas nos processos de interdição que a população negra costuma sofrer. Primeiro, ela é desqualificada. Depois, desclassificada. Por fim, desapropriada. Em seus estudos, Sant’Anna analisa como a capoeira, o samba e a religiosidade foram reprimidos de forma avassaladora ao longo dos séculos e, igualmente, resistiram ao apagamento. (VS) Carta à Mãe África Composição e interpretação de GOG no CD Aviso às Gerações - 2006 É preciso ter pés firmes no chão / Sentir as forças vindas dos céus, da missão... / Dos seios da Mãe África e do coração / É hora de escrever entre a razão e a emoção / Mãe! Aqui crescemos subnutridos de amor / A distância de ti, o doloroso chicote do feitor... / Nos tornou algo nunca imaginável, imprevisível / E isso nos trouxe um desconforto horrível / As trancas, as correntes, as prisões do corpo outrora... / Evoluíram para a prisão da mente agora / Ser preto é moda, concorda? Mas só no visual / Continua caso raro ascensão social / Tudo igual, só que de maneira diferente / A trapaça mudou de cara, segue impunemente / As senzalas são as ante-salas das delegacias / Corredores lotados por seus filhos e filhas... / Hum! Verdadeiras ilhas, grandes naufrágios / A falsa abolição fez alguns estragos / Fez acreditar em racismo ao contrário / Num cenário de estações rumo ao calvário / Heróis brancos, destruidores de quilombos / Usurpadores de sonhos seguem reinando... / Mesmo separado de ti pelo Atlântico / Minha trilha são seis românticos cânticos / Mãe! Me imagino arrancado dos seus braços / Que não me viu nascer, nem meus primeiros passos / O esboço! É o que tenho na mente do teu rosto / Por aqui de ti falam muito pouco / E penso... Qual foi o erro cometido? / Por que fizeram com a gente isso? / O plano fica claro... É o nosso sumiço / O que querem os partidários, os visionários disso / Eis a questão... / A maioria da população tem guetofobia / Anomalia sem vacinação. / E o pior, a triste constatação: Muitos irmãos patrocinam o vilão... / De várias formas, oportunistas, sem perceber / Pelo alimento, fome, sede de poder / E o que menos querem ser e parecer... / Alguém que lembre no visual você. (Refrão*) A carne mais barata do mercado é a negra / A carne mais marcada pelo Estado é a negra / A carne mais barata do mercado é a negra / A carne mais marcada pelo Estado é a negra. Os tiros ouvidos aqui vêm de todos os lados / Mas não se pode seguir aqui agachado / É por instinto que levanto o sangue Banto-Nagô... / E em meio ao bombardeio / Reconheço quem sou, e vou... / Mesmo ferido, ao front, ao combate / E, em meio à fumaça, sigo sem nenhum disfarce / Pois minha face delata ao mundo o que quero: Voltar para casa, viver meus dias sem terno / Eterno! É o tempo atual, na moral / No mural vendem uma democracia racial / E os pretos, os negros, afro-descendentes... / Passaram a ser obedientes, afro-convenientes. / Nos jornais, entre- 8 vistas nas revistas / Alguns de nós, quando expõem seus pontos de vista / Tentam ser pacíficos, cordiais, amorosos / E eu penso como os dias têm sido dolorosos / E rancorosos, maldosos muitos são / Quando falamos numa mínima reparação: – Ações afirmativas, inclusão, cotas?! / – O opressor ameaça recalçar as botas... / Nos mergulharam numa grande confusão / Racismo não existe e sim uma social exclusão / Mas sei fazer bem a diferenciação / Sofro pela cor, pelo patrão e o padrão / E a miscigenação, tema polêmico no gueto / Relação do branco, do índio com preto / Fator que atrasou ainda mais a auto-estima: – Tem cabelo liso, mas olha o nariz da menina / O espelho na favela após a novela é o divã / Onde o parceiro sonha em ser galã / Onde a garota viaja... / Quer ser atriz em vez de meretriz / Onde a lágrima corre como num chafariz / Quem diz! Que este povo foi um dia unido / E que um plano o trouxe para um lugar desconhecido / Hoje amado (Ah! muito amado...), são mais de quinhentos anos / Criamos nossos laços, reescrevemos sonhos / Mãe! Sou fruto do seu sangue, das suas entranhas / O sistema me marcou, mas não me arrebanha / O predador errou quando pensou que o amor estanca / Amo e sou amado no exílio por uma mãe branca. *Colagem de A Carne, composição de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette interpretada por Elza Soares. Miguel Mello Acervo Ipeafro xistem os artistas que têm preço e os que têm valor. Quem tem preço, os caras têm dinheiro para comprar. Quem tem valor está sempre nas resistências.” As palavras ricocheteiam feito uma letra de rap. De fato, servem à embocadura do rapper GOG numa de suas intervenções em que pediu o microfone durante o seminário que marcou a primeira atividade pública da Articulação LatinoAmericana: Cultura e Política. Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, e a cantora e compositora Ellen Oléria (foto box abaixo), ambos artistas expoentes do movimento negro contemporâneo em Brasília, interpretaram ao vivo a canção Carta à Mãe África (ver abaixo), de autoria do primeiro, uma saudação voz-violãoe-palavra ao pensador Abdias Nascimento (foto, à esquerda), de 94 anos, cuja vida carrega a causa anti-racista nas entranhas e cuja trajetória de perseveranças humanista e intelectual – homenageada no seminário – foi mostrada em vídeo exibido pelos organizadores. Abdias, filho de uma doceira e de um músico e sapateiro, nasceu em Franca, no interior paulista. Em breve resumo biográfico, ele cresceu numa família coesa, carinhosa e organizada, porém empobrecida, como informa o site www.abdias.com.br. Na década de 1930, aliou-se à Frente Negra Brasileira contra a segregação racial em estabelecimentos comerciais da cidade. Foi um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro, em 1944. Após o golpe militar de 1964, partiu para o exílio e, nessa condição, ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Como deputado federal, nos anos 1980, foi o primeiro afro-brasileiro a dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Na década seguinte, atuou como senador. Entre as secretarias que comandou no estado do Rio de Janeiro, estão a da Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras e a de Cidadania e Direitos Humanos. “Sua história mostra, principalmente a nós, negros, que so-