Discussion Paper

Transcrição

Discussion Paper
Discussion Paper:
Conferência Internacional Condomínio da Terra –
Um Novo Património Para Uma Nova Economia
Paulo Magalhães
Investigador CESNOVA/FCSH.Univ. Nova Lisboa
Coordenador do Condomínio da Terra, Quercus – ANCN
Indíce
3
Resumo
4
Capitulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
4
Dilema de Ação Colectiva
5
Condições Para Ultrapassar o Dilema
6
Organizar a Fuição Coletiva
7
A Inadequação Espaço-Temporal do Direito
9
De uma Formulação Política Vaga à Necessidade
de um Suporte Jurídico
11
Capitulo 2 / Um Património Natural Intangível da Humanidade
11
Embriões de uma evolução
13
Elementos para um novo objecto de direito
14
Um espaço seguro para a Humanidade
16
A incerteza ambiental como certeza social
18
Um património atribuído a quem?
20
A gestão do Património Intangível da Humanidade
24
Resumo
3
As alterações climáticas são um caso clássico de deterioração dos bens
comuns. O uso partilhado de um mesmo bem por um grupo alargado,
resulta numa subdefinição da propriedade. As soluções encontradas até
hoje, resumiram-se à divisão e privatização do bem, uma vez que a alternativa do uso comunitarista resulta na “tragédia dos comuns”. O trabalho de
Elinor Ostrom sobre os bens comuns desmontou esta fatalidade e abriu a
possibilidade do Happy End. Na Resolução 43/53 de 6/12/1988- AG/ONU,
considera alterações climáticas como “Commom Concern of Mankind”,
apontando uma nova fisionomia ao regime de Património Comum da Humanidade, diferente do previsto na UNCLOS. Pela primeira vez o regime
de Património Comum da Humanidade, ultrapassa um espaço geograficamente delimitado, ou uma área dos fundos marinhos, e alarga-se a uma
“preocupação” que é comum a toda a humanidade
Na impossibilidade de proceder a divisão e privatização do sistema
climático, e partindo dos Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity, avança-se com a proposta de configuração de
um Património Natural Intangível da Humanidade relativamente aos Sistemas Climático e Oceânico.
Esta solução possibilita a resolução de uma série de problemas
operacionais complexos, como seja o problema da inadequação do alcance espaço-temporal do Direito aos novos fenómenos globais e intergeracionais, bem como as inevitáveis “falhas de mercado”. Ao ultrapassarmos
a dificuldade de assinalar direitos completos de propriedade aos recursos
ambientais comuns, estamos a abrir as portas para a criação de um sistema
de contabilidade de direitos e deveres relativos a esse património comum
dentro dos limites planetários de um "espaço de manobra seguro para a
humanidade”, e à criação de um sistema relativo à sua governação.
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
4
Dilema de Ação Colectiva
O primeiro momento a ter em conta numa abordagem ao desenvolvimento
de instrumentos em matérias que envolvam interesses coletivos, será o de
tentar perceber quais as condições que bloqueiam a ação coletiva num
grupo, independentemente da sua dimensão, analisando as situações onde
as decisões não coordenadas, dão origem à busca de vantagens individuais,
que produzem um uso sub-óptimo dos recursos disponíveis para todos.
Este problema está identificado pelas ciências económicas, como o
“dilema clássico da ação coletiva” ou também conhecido como “dilema do
prisioneiro”, no qual se um utilizador retrai o seu uso do recurso comum e
o outro não o fizer, o recurso esgotar-se-á da mesma forma, e um dos utilizadores terá perdido o benefício de curto prazo que foi obtido por outros
utilizadores. Quando ampliado a uma escala global, este dilema transforma-se na “armadilha social" que Elinor Ostrom (2011) considera “potencialmente o maior dilema que o mundo enfrentou”. Mas nesta escala existe
uma pergunta que continua sem resposta: qual é na realidade esse “recurso comum”? Se por um lado não deixa de ser o próprio planeta e o seu
sistema natural, por outro, este “recurso comum global” não deixa de estar
espartilhado pelas jurisdições soberanas de cada Estado. Esta sobreposição
de espaços territoriais que usam um sistema natural comum, continua a ser
a base do conflito estrutural com que a crise ambiental nos confrontou. Por
bem público, entendemos aqueles bens ou serviços que podem ser consumidos por uma grande quantidade de indivíduos em simultâneo, sem que
o consumo do bem ou serviço por um, resulte na diminuição do consumo
por outro indivíduo. Além disso, para se tornar público, não se pode excluir
o acesso ao bem daqueles que não contribuem ou pagam por ele, o que
denominamos princípio da não-exclusividade. Um bem, para ser caracterizado como público, deve ser não-rival e não-excludente e, para ser global
os “seus benefícios devem ser quase universais em termos de Estados,
pessoas e gerações” (KAUL; GRUNBERG e STERN, 1999: segundo
definição do Relatório de Brundtland, 1987). Um clima estabilizado dentro
de limites que potenciaram o desenvolvimento humano, foi até há pouco
tempo “bem público global”, porque ao desconhecermos os seus limites,
seria ilimitado e portanto, não-rival.
Com a crise ambiental, o deficit provocado por uma procura crescente e uma cada vez maior escassez na disponibilização de serviços ambientais, o consumo destes “recursos comuns” passou a exercer-se numa
base de rivalidade, embora mantendo as características de livre acesso e
não exclusividade, o que transformou estes bens públicos-globais em
verdadeiros “bens comuns”. Nestas novas circunstâncias, novos temas surgem na agenda dos debates internacionais, e interesses, antes vistos como
nacionais, passam a ser percebidos como internacionais, e a necessitar de
uma articulação na organização do seu uso. Para se organizar o uso desse
“bem público global”, será necessário, como primeiro passo estrutural e
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
5
fazendo uso dos conhecimentos que possuímos hoje acerca dos processos-base dos sistema natural do nosso planeta, identificar o bem, delimitá-lo como um recurso que está fora do objeto das soberanias dos estados,
e atribuí-lo a alguém.
Condições para ultrapassar o dilema
O problema que se coloca é que, num grupo alargado, qualquer indivíduo
pode beneficiar dos bens comuns sem que necessariamente tenha contribuído para a sua produção. Seguindo instintos individualistas ou de interesse próprio, os indivíduos evitarão custos de contribuir para a sua
produção ou manutenção, podendo obter os benefícios do uso do bem
comum, independentemente de suportar, ou não, a sua quota-parte nos
custos. O indivíduo beneficia do princípio de não-exclusão. Assim, poderá
beneficiar do seu uso já que outros indivíduos contribuirão para a sua
manutenção.
No fundo, este paradoxo – o problema do free rider – traduz o fato
de que um indivíduo que não queira suportar os custos da existência do
bem, poderá (mesmo não contribuindo para ele) usufruir da sua existência
já que o bem se encontra disponível para todos. Ao seguir a lógica do free
rider, há muitas situações em que um bem poderá não ser fornecido, ou ser
fornecido apenas em quantidades ou qualidades inferiores às da situação
ideal.
A resolução do problema free rider passa pela adoção e aceitação
de regras que regulem ações individuais de forma a que os custos sociais e
os benefícios sociais sejam tidos em conta. Aceitar voluntariamente regras
num grupo alargado pressupõe construir previamente alicerces em que a
confiança possa começar a surgir. Ao estudar as variáveis que aumentam
a probabilidade da auto-organização se tornar eficaz na resolução de problemas de ação coletiva, Elionor Ostrom, abriu caminho para a transformação da inevitável “tragédia dos comuns” 1 para um “drama dos comuns”, uma que vez que a expressão “drama” tanto pode ser uma tragédia
como uma alegoria, tornando o Happy End possível. Esta investigadora,
Nobel da Economia em 2009 pelo seu trabalho nos commons, acredita
que o resultado socialmente ótimo pode ser alcançado se a maioria das
pessoas envolvidas estiver disposta a "cooperar", mas ninguém é motivado
a mudar a sua escolha de forma independente das escolhas que previu que
os outros vão fazer. “O fator crucial será uma combinação de características estruturais que levem muitos dos envolvidos a confiarem uns nos
outros e a estarem dispostos a fazer uma ação conjunta que agregue o
valor aos seus próprios custos de curto prazo, porque ambos vêm um
benefício a longo prazo para si próprios e para os outros, e acreditam que
a maioria dos outros irão igualmente cumprir. (...) É obviamente muito
mais fácil construir soluções para os problemas de ação colectiva relacionados com os recursos de menor escala do que para aqueles relacio-
1.
HARDIN, Garret –
The Tragedy
of the Commons, Science.
162, 1243–1248, 1968
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
6
nados com um bem comum global”. 2 Num contexto de uma “impossibilidade política” de 20 anos de tortuosas negociações sobre as emissões de
gases de efeito estufa, identificar, definir e construir estas condições estruturais, deverá ser então uma tarefa prioritária, uma vez que constitui o processo base para construir a confiança, e desconstruir a fatalidade da “Tragédia Comum”.
2.
OSTROM, Elinor.
A Multi-tScale Approach
to Coping with Climate
Change and Other
Collective Action Problems,
in Solutions Journal, 2011
Organizar a Fruição Coletiva
O Direito do Ambiente, não só devido à sua curta existência, mas também
pela sua complexidade e caráter difuso e indeterminado do seu objeto, é
ainda um Direito com problemas estruturais, não só na conjugação com o
restante ordenamento jurídico interno de cada país, mas também na articulação entre as dimensões simultaneamente locais, globais e temporais
com que a questão ambiental nos confronta.
A base deste problema estrutural foi em nossa opinião claramente
identificada por Colaço Antunes quando afirma: “O bem ambiente não se
presta a uma fruição de troca e alienação, mas a uma função de fruição
colectiva.” Esta tarefa de organizar a “fruição coletiva”, 3 prévia à função
sancionatória, tem sido omitida nas abordagens às relações jurídico-ambientais. A organização das relações causa/efeito que se realizam através
dos sistemas naturais globais, parecem-nos ser o problema central sobre o
qual o Direito se depara: é a dificuldade que há em conciliar um bem cuja
fruição pertence aos membros de uma comunidade em geral com a estrutura de direito subjetivo, que pressupõe a existência de um substrato
suscetível de apropriação individual. Como nota Jorge Miranda,4 “não há
em rigor, um direito a que se não verifiquem poluição ou erosão”. Neste
sentido, o direito de cada cidadão a um ambiente ”ecologicamente equilibrado” não é uma posição jurídica subjetiva que se traduz na susceptibilidade de um aproveitamento individual de um determinado bem, mas sim
na possibilidade de utilização desse bem, só que numa posição de concorrência com outros utilizadores que não podem ser igualmente excluídos da
utilização desse mesmo bem, e que podem interferir na fruição deste bem
por parte desse indivíduo.
Muitas têm sido as tentativas de recorrer aos instrumentos de
mercado, para promover a organização de uma fruição “de troca e alienação”, com objetivos de atingir ótimos ecológicos e sociais, integrando
economia e ambiente. Acontece que, os sistemas naturais globais, a “mão
invisível” dos serviços ambientais ou a qualidade ambiental, não são
suscetíveis de apropriação individual, e que como Colaço Antunes afirma,
possuem uma “função de fruição coletiva” e não “de troca e alienação”. O
fato de ninguém poder ser excluído desta “fruição coletiva global” implica
que todos poderão ter acesso às melhorias introduzidas no sistema comum
global sem pagar, o que impede função de troca e alienação de um
mercado tradicional. Da mesma forma todos podem interferir na quali-
3.
Citado por,
Amado Gomes, Carla,
Textos Dispersos
de Direito do Ambiente,
Associação Académica
da Faculdade Direito
de Lisboa, Lisboa 2005,
p-22.
4.
(Idem)
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
7
dade dessa fruição de forma negativa, diluindo por todos os respectivos
encargos.
Qual então o papel reservado ao Direito neste contexto? Uma das funções
primárias do Direito, deverá ser a de organizar a fruição coletiva de bens
ou sistemas naturais globais relativamente aos quais vários agentes possuem o direito de os usar, sem qualquer direito a poder excluir outros
agentes.
Ora esta organização implica uma análise das conexões causa e
efeito que originam relações globais cruzadas. O Direito do Ambiente
deverá, então, buscar o seu objeto de estudo na harmonização das relações
humanas que se exercem através destes sistemas naturais globais de fruição coletiva e na conformação entre os interesses individuais e coletivos
que a mútua dependência destes bens obriga. A identificação das dinâmicas de usos com efeitos negativos e dos benefícios provocados nesses sistemas naturais globais, é uma tarefa base para perceber os conteúdos destas
relações e construir as condições estruturais da confiança necessária a
uma ação colectiva.
Partindo do pressuposto, com o qual se concorda, de que “a principal tarefa da gestão ambiental deixou de ser o combate ao desenvolvimento selvagem e passou a ser o fomento ao desenvolvimento sustentável”,5 a criação de condições organizacionais que permitam este “desenvolvimento sustentável”, parece ser a mutação genética de base para qual o
Direito do século XXI deverá caminhar.
5.
BONAPARTE, P.
“O ICMS Ecológico”, Tese.
Departamento de Direito
da Pontifícia
Universidade Católica
do Rio de Janeiro, 2005.
A inadequação Espaço-Temporal do Direito
Para além desta enorme tarefa de organização de uma “fruição coletiva
global”, que terá de superar o dilema aparentemente insolúvel, entre as
atividades realizadas pelos Estados dentro dos limites da sua jurisdição
soberana, e seus efeitos sobre os sistemas naturais globais, acresce ainda o
fato destes efeitos, que podem ser encargos (poluição) ou benefícios
(serviços ambientais), serem cumulativos nos sistema natural global e
como tal possuem uma dimensão temporal que ultrapassa várias gerações.
Estes factos, no seu conjunto, constituem uma situação sem precedentes no
Direito Internacional, que exige um salto conceptual capaz de enquadrar
esta realidade que nos era desconhecida.
Para a situação se tornar ainda mais complexa e delicada, senão
mesmo numa “impossibilidade”, estes desafios comportam um inibidor
receio de ameaça ao principio fundamental da soberania. “O ambiente,
como bem jurídico internacional emancipou-se de todos os outros bens
jurídicos, e especialmente da soberania espacial dos Estados.
O ambiente é o pronuncio do Fim-do-Estado?“.6 Tem-se a consciência da
complexidade de todas estas implicações globais, mas não se possui ainda
um sistema que assegure um suporte jurídico global que enquadre as
relações de interdependência ecológica a nível global e entre as gerações
6.
PUREZA, José Manuel –
O Património Comum
da Humanidade: Rumo
a um Direito Internacional
da Solidariedade?
Porto, Afrontamento, 1998.
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
8
atuais e futuras, sem entrar em contradição com o conceito de soberania e
a aniquilação do conceito de Estado.
Até hoje, as tentativas para ultrapassar esta inadequação do alcance espaço-temporal do Direito aos novos fenómenos globais, manifestaram-se em conceitos indeterminados e interesses difusos que circulam
simultaneamente fora e no interior de cada Estado, que são de cada um e
de toda a humanidade, e passam pela Biosfera Património Comum da
Humanidade, Global Commons, Commom Concern of Humankind,
Património Comum Ecológico da Humanidade, etc. “O interesse e preocupação com a humanidade oferece uma dificuldade de definição precisa
dos seus contornos (...)”.7
A possibilidade destas formulações ainda embrionárias de “preocupações jurídicas” evoluírem da actual formula política vaga e se tornarem num instrumento jurídico operacional, conformador de direitos e de
deveres, está dependente da capacidade de se construir um suporte jurídico
global que seja capaz de dar resposta à dimensão global e intemporal do
interesse de toda a humanidade de forma harmonizada com a essência da
soberania dos Estados.
O conceito de Commom Concern of Humankind 8 ega a contraposição absoluta entre interesse coletivo autónomo da comunidade internacional e o interesse subjetivo individual de cada Estado. Significa antes,
o reconhecimento da primazia do interesse comum da Humanidade na
preservação do equilíbrio ambiental, logo, de um interesse que por rarefacção, é assumido por cada Estado como seu.
A resposta a este difícil desafio, parece-nos que se coloca num
nível estrutural, na construção de um conceito que permita uma solução,
com uma dimensão de espaço global e uma noção de tempo intergeracional. Por mais intransponível que este desafio se possa afigurar, sem esse
novo conceito humano, as nossas sociedades não serão capazes de harmonizarem a sua organização com o funcionamento global da sua casa comum. Recorrendo à evolução do conhecimento do funcionamento do sistema natural do sistema terra, e aos instrumentos jurídicos que já possuímos, é possível construir de um novo objeto de direito capaz de identificar
e delimitar esse interesse da humanidade, definindo um património
comum que deve ser gerido no interesse de todos e com regras que são
válidas entre todos. Com base nesse ponto fixo que só o direito pode dar,
é possível que muitos dos envolvidos possam começar a confiar uns nos
outros e a estar dispostos a fazer uma ação conjunta que agregue o valor
aos seus próprios custos de curto prazo, porque todos vêm um benefício a
longo prazo para si próprios e para os outros, e acreditam que a maioria
dos outros irão igualmente cumprir.
A interdependência ecológica global resulta neste novo contexto:
O benefício de cada Estado reside primariamente na concretização do
interesse comum.9
7.
(Ibidem)
8.
A emergência da questão
ambiental constitui
precedentes ao direito
internacional, gerado
o “interesse comum”
do interesse dos estados.
Na Resolução 43/53
da Assembleia Geral
das Nações Unidas de 1989
dada a natureza única
legal deste recurso comum
como “intangível”,
uma vez que não
se restringe aos “global
commons”, mas se estende
também a todas as áreas
sujeitas ou não à jurisdição
nacional. Pode-se sugerir
que as “questões
de interesse comum”,
são aquelas
que inevitavelmente
transcendem as fronteiras
de um único estado
e exigem uma ação coletiva,
uma vez que nenhum estado
pode resolver os problemas
que elas representam
ou receber todos
os benefícios que elas
proporcionam.
9.
(Ibidem)
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
9
De uma formulação política vaga à necessidade de um suporte
jurídico
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM),
assinada em Montego Bay, em 1982, sob o signo da divisão e partilha do
espaço oceânico e do consenso na distribuição do poder entre os Estados,
tem vindo a afirmar-se ao longo dos seus 30 anos de existência, como
uma "re- volução pacífica" em contraponto ao direito tradicional anterior,
assente no princípio da liberdade dos mares. Se por um lado, a matriz de
harmonização destes interesses foi baseada num regime fundado numa
divisão do espaço geográfico dos oceanos, através da consagração de
zonas de jurisdição nacional, por outro lado, foram definidos espaços
internacionais: o alto mar, onde continua a prevalecer a liberdade de navegação, e a "Área" internacional dos fundos marinhos, cujos recursos foram
definidos como "património comum da humanidade". Se esta solução é
tecnicamente muito interessante, e constitui um prenúncio da conciliação
os interesses individuais de cada Estado e os colectivos e de toda a Humanidade, e não resolve no entanto o problema da verdadeira dimensão do
ecossistemica do oceano global, cujo os processos biofísicos-chave são
determinantes para a qualidade do oceano em cada uma das zonas de
jurisdição nacional.
No mesmo sentido, a Resolução 43/53 de 6/12/1988-AG/ONU
sobre alterações climáticas, na impossibilidade de proceder a divisão e
privatização do sistema climático, afirma no primeiro parágrafo do seu
preâmbulo que "a mudança climática da Terra e os seus efeitos adversos
são uma preocupação comum da humanidade”. Mas, se por um lado, esta
opção jurídica é ainda apenas uma “preocupação” e não é um instrumento
apto a implementar soluções, esta configuração não deixa de ser da maior
relevância na construção de um instrumento de carácter global, capaz de
incorporar a dimensão ecossistémica do planeta.
Mesmo a CNUDM, que foi negociada sob o signo do consenso e
do compromisso na divisão dos oceanos entre os diversos interesses e
poderes nacionais, ainda que sem apontar para soluções, não deixou de
referir no preâmbulo, que: “Conscientes de que os problemas do espaço
oceânico estão estreitamente inter-relacionados e devem ser considerados como um todo”.
A impossibilidade da CNUDM dividir o oceano enquanto “sistema natural” global, é por- tanto, colocada no mesmo plano da impossibilidade material de operarmos uma divisão do sistema climático.
Esta abertura do conceito Commom Concern of Mankind ao global, ainda apenas enquanto preocupação, e não como conceito jurídico com
dimensão operacional, não deixou no entanto de apontar uma nova fisionomia ao regime de Património Comum da Humanidade.
Pela primeira vez o regime de Património Comum da Humanidade,
ultrapassa um espaço geograficamente delimitado, ou uma área dos fun-
Capítulo 1 / Organizar a Fruição Coletiva
10
dos marinhos, e alarga-se a uma “preocupação” que é comum a toda a
humanidade, quer no interior dos espaços de jurisdição dos Estados, ou
fora deles. É uma “preocupação” global e que inclui a actual geração e
todas as gerações futuras, o que implica a redefinição desse regime, tal
como havia sido consagrado na CNUDM. Quando analisamos a alteração
da composição química e biológica dos oceanos ou da atmosfera, estamos
a trabalhar num plano em que se pretende aferir a “qualidade” deste bens
e a sua aptidão para desempenhar a função de suporte biológico para
condições de vida humanas. Neste plano de análise global, estamos a trabalhar com “sistemas” que desempenham determinadas funções e que se
caracterizam por um movimento global constante, de forma simultânea no
interior e exterior dos territórios dos Estados.
No oceano a manutenção do valor limite de saturação média na
industriais, evitando a acidificação dos oceanos, bem como a manutenção
das concentrações de CO2 abaixo dos 350 ppm, para manter as alterações
climáticas dentro de um limite seguro, são um “common interest of
Humankind”. Este conceito tem raízes comuns em conceitos como os
global commons, Common Heritage of Humankind, ou ainda, intergeneration equity/responsibility/ rights. A opção da consagração jurídica de um
problema ou de uma preocupação como o Common Concern of Humankind, constitui simultaneamente uma identificação do problema e um ato
proclamatório de apelo à sua resolução, mas não é ainda um instrumento
apto a implementar soluções. Ora a necessidade de se caminhar na concretização deste interesse, obriga a que se delimite o conceito indeterminado
e genérico do “interesse comum da humanidade” em algo mais palpável
que não exista apenas no espírito dos seres humanos como “preocupação”.
Segundo Tolba (1990) “(...) é muito importante que o conceito
Common Concern of Humankind seja aprofundado para tornar o seu
conteúdo e escopo compreensíveis e claros. É também importante para se
ter a certeza de como este conceito pode ser interpretado em termos de
direitos e obrigações dos Estados no processo da sua implementação. É
compreensível que assim seja, pois esse é um conceito novo nas relações
internacionais e no Direito internacional. Ele continuará a desenvolver-se no futuro próximo e a sua interpretação dada hoje, irá evoluir. Contudo, antes do início das negociações sobre a convenção climática é necessário identificar os principais elementos deste conceito”.10 Simone
Borg (2008) identifica este Common Concern of Humankind, como um
estatuto legal de um recurso comum ”intangível” que abrange os bens
comuns globais. José Manuel Pureza falava já de “bens comuns globais
pós-materiais”.11
10.
TOLBA, M. , Note of the
Executive Director of UNEP,
Dr. Mustafa K. Tolba, to the
Group of Legal Experts
meeting. Malta, December
13-15, 1990.
11.
PUREZA, José Manuel –
O Património Comum
da Humanidade:
Rumo a um Direito
Internacional
da Solidariedade?,
Porto, Afrontamento, 1998.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
11
Embriões de uma evolução
A natureza possui uma dimensão, que embora exista dentro do espaço
geográfico do planeta, está para lá do espaço físico das soberanias e dos
bens materiais fisicamente apropriáveis. Essa outra dimensão funcional
que se rege pelas leis da física e da química, e que faz o sistema global da
vida funcionar, não cabe espacialmente e temporalmente em nenhum dos
conceitos jurídicos anteriores, tal como os conhecemos hoje.
Parece então existir uma dimensão “imaterial” da natureza, que se
enquadra na noção de ciclo natural, de processos biogeoquímicos, de
trocas de massa e energia e de circulações que cruzam o planeta e geram
dinâmicas de movimentos, múltiplas conexões. Embora a complexidade de
todas estas interações ainda nos seja desconhecida, e por isso é-nos difícil
defini-las e delimitá-las, certo é que sabemos que essa natureza funcional,
intangível, pós-material ou imaterial, é a essência da dinâmica da vida, e
como tal é vital para a humanidade.
Se por um lado a evolução dos conhecimentos relativos aos processos-chave globais, possibilitaram a abertura do “Livro da Vida” relativo à
“mãe natureza”, aos seus ciclos e ao seu funcionamento num nível global,
por outro, num nível micro, a revolução da informação de origem genética
abriu o “Livro da Vida” relativamente às características hereditárias que
se transmitem ao longo das gerações humanas e em todos organismos
vivos. Estes novos conhecimentos trouxeram novos e profundos problemas
ao direito, não só devido à possibilidade de aproveitamento económico
desta informação para os mais variados fins, mas também, num plano
ético, o problema de existir a possibilidade de o homem vir a ter meios de
alterar a sua própria natureza, e tocar na questão básica do significado
do fenómeno da vida.
Das necessárias discussões éticas, passou-se à elaboração de determinadas normativas internacionais, especialmente das declarações de direitos, emitidas por organismos internacionais como a UNESCO, e percebemos a consolidação de algumas tendências que vão influenciar a discussão na elaboração legislativa no direito interno de cada país signatário.
Dos factos mais interessantes desta discussão, é precisamente o
surgimento de um novo objecto de direito, sem que no entanto este novo
género de objecto jurídico esteja formalmente instituído. Durante a período de elaboração da CDB,12 argumentou-se que o património genético é
dotado de particularidades especiais em comparação com a maioria dos
bens ambientais, especialmente pelo caráter intangível que lhe é conferido
pela noção de "informação de origem genética". Essa informação genética
é única, embora, em regra, esteja presente em todos os exemplares de uma
mesma espécie. Sendo esta informação de origem natural, estaremos
perante uma “informação natural intangível”, e que no caso de lhe ser reconhecida alguma proteção jurídica, estaremos perante um novo objecto
de direito: O Património Natural Intangível.
12.
Convenção sobre
Diversidade Biológica,
assinada na Conferência
do Rio 92.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
12
Este possível percurso do património natural, do “material e
geograficamente delimitável” para o “imaterial e intangível”, constitui um
paralelo relativamente ao processo de consolidação do património
cultural. Se o reconhecimento da importância do património cultural
material foi consagrado na Convenção para a Proteção do Património
Mundial, Cultural e Natural, em 1972, só passados 30 anos se consolida o
reconhecimento de um instrumento de proteção do património imaterial,
com a elaboração da Convenção para a Salvaguarda do Património
Cultural Imaterial, em 2003. Como o próprio nome indica, esta convenção
restringe-se aos bens produto do espírito humano, considerando património cultural imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões, bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados que as comunidades, os grupos
e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante
do seu património cultural.” O caráter intangível que a noção de património genético incorpora, levou a que num primeiro momento, se tivesse
convencionado arrolar os recursos genéticos como integrantes do
“Património Comum da Humanidade” e, portanto, isso implicaria no
direito de todos os países de usufruir os benefícios de determinados
“bens”, que são considerados de uso comum e, competindo a todos a responsabilidade em preservá-los no interesse das gerações futuras.
No entanto, depois desta primeira abordagem, o aproveitamento
comercial dos recursos genéticos, solicitou o estabelecimento de um
regime jurídico que regulamentasse a sua exploração, anteriormente orientada pelo princípio do livre acesso ou, por outras palavras, o acesso concedido com a tolerância/anuência dos países possuidores de maior biodiversidade. Embora num plano conceptual estes recursos genéticos, como
resultado da história da própria vida no planeta, possam ser considerados
um património de toda a humanidade e de todas as gerações, o seu
carácter geograficamente localizado, obrigou à procura de regimes que
permitissem um compromisso na repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do acesso a esses recursos. O problema foi que, este bem
biodiversidade e a informação genética nela contida, não preenche tecnicamente os pressupostos necessários para ser caracterizado como bem
público global. A necessária localização do ser vivo em determinado território, impede que os seus benefícios devem ser quase universais em termos
de Estados, pessoas e gerações. Ao não ser universal, a aplicação do
regime de “Património da Humanidade”, iria potenciar a utilização deste
regime de forma perversa, como um instrumento que permitiria que os
países detentores de tecnologia tivessem o direito de acesso a essa informação genética, sem terem de previamente chegar a acordo com os países
que detém esse recurso. Foi neste sentido, que surgiu a Convenção sobre a
Diversidade Biológica de 1992, em que a solução passou pelo enaltecimento da soberania dos Estados nacionais sobre o património genético dos
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
13
seus povos, e a consagração de regras de acesso e formas de compensação
que permitam que essa repartição seja justa e equitativa.
O carácter não universal da biodiversidade, foi determinante na
consagração do regime de exploração, não podendo o regime de Património da Humanidade ser utilizado como fundamento para a biopirataria e
gerar benefícios apenas para aqueles que possuem capacidade técnica para
a sua exploração.
Mas, ainda que relativamente a uma outra “informação genética”,
outras características deram origem a uma abordagem completamente
diferente: relativamente ao genoma humano, prevaleceu a tese que impediu a exploração comercial do genoma como parte do corpo humano e o
registo de patentes para garantirem essa exploração. A informação que
faz de um ovo humano uma pessoa humana, mediante o processo biológico de desenvolvimento e diferenciação, o seu carácter universal e comum
à família humana, fundamentaram a consagração na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, do princípio do respeito absoluto pelo genoma humano e pela informação nele arquivada.
Nos termos desta Declaração Universal a investigação sobre o genoma humano e as suas aplicações não podem prevalecer face ao respeito
pelos direitos humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana.
Elementos para um novo objecto de direito
Uma equipe liderada por Rockstron, publicou em 2009 um trabalho inovador sobre as fronteiras físicas, relativas às condições de vida humana no
planeta: “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for
Humanity”13 em que se procura uma nova abordagem para a sustentabilidade global através da definição dos limites planetários dentro do quais
se espera que a humanidade possa operar com segurança. Esta equipe
internacional apresentou um novo conceito, os limites planetários, para
estimar um espaço operacional seguro para a humanidade no que diz
respeito ao funcionamento do Sistema Terra. Fizeram um esforço preliminar na identificação dos processos-chave do Sistema Natural Terrestre, e
partindo dessa identificação tentaram quantificar para cada processo um
nível do limite que não deve ser transgredido, se quisermos evitar a
mudança global ambiental inaceitável. Foram identificados 9 limites,
tendo sido propostas quantificações para sete deles. Estes sete são:
1 – Mudanças climáticas e a concentração de CO2 na atmosfera;
2 – Acidificação dos oceanos;
3 – Ozono estratosférico;
4 – Ciclo biogeoquímico do nitrogénio e do fósforo;
5 – Uso de global água doce;
6 – Mudanças no uso do solo;
7 – Perda de biodiversidade, e dois não quantificados, são a poluição
química e a concentração de aerossóis na atmosfera.
Apesar de algumas flutuações naturais do ambiente nos últimos 10.000
13.
ROCKSTROM, J et al –
Planetary Boundaries:
Exploring the Safe
Operating Space
for Humanity, Ecology
and Society, Vol. 14,
No.2, Art.32.
(2009)
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
14
tem-se mantido dentro da faixa de variação associada com o estado do
Holoceno, com os principais parâmetros biogeoquímicos e atmosféricos
flutuando dentro de uma faixa relativamente estreita (Dansgaard et al
1993, Petit et al 1999,14 Rioual et al. 2001).15 Desde a Revolução Industrial,
momento a partir do qual alguns cientistas referem que se inicia o
Antropoceno, (como uma nova época geológica relacionada com o forte
impacto das actividades humanas no clima e no funcionamento dos
ecossistemas da Terra), os seres humanos estão efetivamente a empurrar o
planeta para fora do intervalo de variabilidade do Holoceno em muitos
processos-chave do sistema da Terra (Steffen et al. 2004).16 Sem estas
pressões de origem antropogénica, o estado Holoceno pode ser mantido
por milhares de anos no futuro (Berger e Loutre 2002)17. Então o padrão
que define o que poderá demarcar uma alteração inaceitável, será a medida
definida em relação aos riscos que a humanidade enfrenta na transição do
planeta do Holoceno para o Antropoceno. A manutenção destes processos
chave flutuando dentro de uma faixa relativamente estreita serão os
elementos desse Common Interest of Humankind, e a sua ultrapassagem o
Common Concern of Humankind. Foram estes processos chave universais, relativos ao equilíbrio biogeoquímico que surgiu pós-última glaciação, que permitiram o desenvolvimento humano do últimos 10 milénios.
Um espaço seguro para a Humanidade
Kelsen (1984) afirma que “A natureza é, segundo uma das muitas definições possíveis, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de
elementos que estão ligados uns aos outros como causa e efeito, segundo
um principio que designamos de causalidade”.18 A ordem normativa da
conduta humana está condicionada pelas leis da natureza, pelas consequências das alterações químicas e físicas que ocorrem na atmosfera ou
nos oceanos, em suma, pelo funcionamento global de todo sistema natural
terrestre. A partir do momento em que se percebe que através dos
sistemas naturais, as atividades humanas provocam alterações na constituição química da atmosfera e dos oceanos, e que essas alterações modificam as dinâmicas dos processos climáticos do PH dos oceanos, é possível estabelecer nexos de causa/efeito globais, que estendem as relações
humanas à escala global. Quando analisamos a alteração da composição
química e biológica dos oceanos ou da atmosfera, estamos a trabalhar
num plano em que se pretende aferir a “qualidade” deste bens e a sua
aptidão para desempenhar a função de suporte biológico para condições
de vida humanas. Neste plano de análise, estamos a trabalhar com
“sistemas” que se auto-regulam e geram diferentes equilíbrios, que podem ser mais favoráveis ou hostis ao desenvolvimento humano.
A partir do momento em que percebeu como os ecossistemas
influenciam de forma positiva o equilíbrio destes sistemas globais
naturais, ao contrário da biodiversidade material ou da informação gené-
14.
DANSGAARD, W.,
S. J. Johnsen H. B. Clausen,
D. Dahl-Jensen, N. S.
Gundestrup, C. U. Hammer,
C. S. Hvidberg,
J.P. Steffensen, and A. E.
Sveinbjörnsdottir. 1993.
Evidence for general
instability of past climate
from a 250-kyr ice-core
record. Nature 364:218-220.
15.
RIIOUAL, P., V.
Andrieu-Ponel, M.
Riettu-Shati, R. W.
Battarbee, J. L. de Beaulieu,
R. Cheddadi, M. Reille, H.
Svobodova,
and A. Shemesh, 2001.
High-resolution record of
climate stability in France
during the last interglacial
period. Nature 413:293-296.
16.
STEFFEN, W., A. Sanderson,
J. Jäger, P. D. Tyson, B.
Moore, III, P. A. Matson, K.
H, -J. Schellnhuber, B. L.
Turner, II, and R. J. Wassn.
(2004) Global change and the
Earth system: a planet under
pressure. Springer Verlag,
Heidelberg, Germany.
17.
BERGER, A., and M. F.
Loutre. (2002)
An exceptionally long
interglacial ahead?
Science 297:1287–1288.
18.
KELSEN, Hans,
Teoria Pura do Direito,
trad. João Baptista
Machado,
Editora Arménio Amado,
Coimbra, 1984.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
15
tica nela contida, ficamos a perceber que não são os ecossistemas em si
próprios que ficam disponíveis para serem usufruídos por um grande
número de pessoas, mas sim os serviços globais que são disponibilizados
por estes ecossistemas. Isto é, as alterações químicas que os ecossistemas
realizam na atmosfera19 ou na hidrosfera, e que são benéficas para a
manutenção do sistema terrestre dentro das fronteiras do Holoceno, são
serviços de interesse comum para toda a humanidade. Estes serviços não
são materialmente apropriáveis, mas podem ser contabilizáveis, percebendo-se desta forma qual o contributo de cada um, para a manutenção do
planeta dentro das fronteiras que permitem usufruir de condições de vida
humanas dentro do sistema natural terrestre. Estes “limites do planeta”,
mais do que fronteiras do nosso planeta, são os nossos “limites de segurança” para podermos usufruir de condições ambientais para a vida
humana.
A concretização deste Common Interest of Humankind, pode
passar pela incorporação “deste espaço seguro para a Humanidade” na
organização das sociedades, através do reconhecimento dos limites dos
elementos que constituem esta faixa estreita do Holoceno, num Património
Comum da Humanidade. Esta possibilidade de se aplicar a um “sistema
natural” o regime de Património Comum da Humanidade, foi avançado
por José Manuel Sobrino: “Certamente uma abordagem jurídica formal à
noção de Património Comum da Humanidade, excluiria os recursos vitais
assim como o sistema climático, em si mesmo. Mas na minha opinião, a
evolução da comunidade internacional, a dimensão patrimonial desses
bens, a necessidade de transmissão, possibilitaria a aplicação dos princípios fundamentais do Património Comum da Humanidade e torná-los,
portanto, livres de quaisquer apropriações estatais ou privadas, acessíveis
a todos e realizada numa gestão internacional e institucionalizada, tendo
especialmente em conta o desenvolvimento desigual dos Estados. Neste
sentido, pode-se argumentar que o sistema climático para a humanidade
tem uma dimensão de herança que envolve a ideia de transmissão de um
clima adequado para a vida na nossa geração e para futuras gerações.” 20
Esta proposta de aplicação dos princípios fundamentais do regime
de Património Comum da Humanidade ao sistema climático parece-nos
que é um avanço conceptual notável e é um passo na concretização do
Common Interest of Humankind, uma vez que um património pressupõe
um sistema de gestão, que neste caso seria de direitos e obrigações entre
Estados. Esta transferência de uma preocupação que apenas existe no
espírito dos seres humanos, para um bem, que é um sistema funcional que
abrange toda a biosfera, que se movimenta simultaneamente no interior e
fora da jurisdições do território dos Estados, que possui limites biofísicos
e não se confunde com os limites e elementos constitutivos da soberania
dos Estados, é uma operação mental que pode permitir a adaptação da
realidade social às condicionantes dos sistemas naturais globais.
19.
SOBRINO, José Manuel –
Desarrollo sostenible,
calentamineto global y recursos
vitales para la humanidad,
Anuario da Facultade
de Dereito da Universidade
da Coruña, revista jurídica
interdisciplinar
internacional, 12, 2008.
20.
SOBRINO, José Manuel –
“Hácia um património
ecológico comum de la
humanidad”, 4 fev. 2011.
21ª Jornal Estado
de Direito.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
16
Segundo a equipe liderada por Rockstrom, as variáveis de controlo
que asseguram o equilíbrio biogeoquímico do Planeta, que garantem que
os outros limites também não sejam afectados de forma irreversível, e
mantenham a capacidade de resiliência e regeneração, são três:
1 – Mudanças climáticas e a concentração de CO2 na atmosfera;
2 – Acidificação dos oceanos;
3 – Ozono estratosférico.
Sendo possível capturar, nestes três grandes sistemas as alterações
químicas, positivas ou negativas, que cada país realiza no sistema comum,
é possível gerir estes contributos de forma a assegurar a manutenção das
condições ambientais do desenvolvimento humano dentro do “campo de
jogo planetário”. A nossa proposta é que os limites destes 3 grandes
sistemas, constituam os limites desse Património Natural Intangível da
Humanidade, que deve ser gerido num compromisso justo e equitativo, se
queremos evitar alterações induzidas pelo homem numa escala global.
A incerteza ambiental como certeza social
O nosso planeta tem limites quanto à quantidade de crescimento que pode
suportar? Como a definição de limites planetários pode transformar a
nossa abordagem ao crescimento? "Quais são os pré-requisitos planetárias não negociáveis que a humanidade precisa respeitar a fim de evitar
o risco de deletério ou mesmo mudança ambiental catastrófica de escala
global?"21 A resposta foi a de que a capacidade para o planeta proporcionar condições ambientais para a humanidade, tem limites. Quais esses
limites?
Segundo os autores do já referido relatório, “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity”, os limites propostos são ainda básicos, e constituem apenas estimativas primárias,
rodeadas por grandes incertezas e lacunas de conhecimento. Grande parte
da incerteza na quantificação de limites planetários tem como fundamento
a falta de conhecimento científico sobre a natureza dos limiares biofísicos,
a incerteza intrínseca de como sistemas complexos se comportam, as
formas em que outros processos biofísicos, tais como mecanismos de
feedback, interagem com uma variável de controlo primário, e a incerteza
sobre o tempo permitido de superação de uma variável de controlo crítico
no Sistema Terra, antes de um limite ser ultrapassado. Isto gera uma zona
de incerteza em torno de cada linha de limite planetário.
Estes limites são assumidos como não-lineares, como transições
no funcionamento conjunto de sistemas humano-ambientais (Schellnhuber
2002, Lenton et al. 2008), como o recente recuo abrupto de gelo do mar
Ártico causado pelo aquecimento global antropogénico (Johannessen
2008). Estes limites são características intrínsecas destes sistemas e são
frequentemente definidos por uma posição ao longo de uma ou mais
variáveis de controlo. Alguns processos do Sistema Terrestre, como a
21.
ROCKSTROM, J et al –
Planetary Boundaries:
Exploring the Safe
Operating Space
for Humanity, Ecology
and Society, Vol. 14, No2,
Art. 32, 2009.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
17
mudança uso do solo, não são associados com limites conhecidos a nível
continental à escala global, mas podem, através de contínuo declínio das
principais funções ecológicas (como sequestro de carbono), causar colapsos funcionais, gerando feedbacks que disparam ou aumentam a
probabilidade de um rompimento de um limite global noutros processos
(por exemplo, alterações climáticas). Tais processos podem, no entanto,
provocar dinâmicas não-lineares nas escalas inferiores (por exemplo,
ultrapassagem de limites em lagos, florestas e savanas, como resultado
da mudança do uso do solo, uso de água, e carga de nutrientes). Estas mudanças não-lineares, de um estado desejado para um estado indesejável, se
ocorrerem de forma cumulativa em todo o planeta, tornam-se uma
preocupação global para a humanidade.
Qualquer processo para determinar estes limites entra num campo
de enorme complexidade e inevitáveis incertezas, em que cada transgressão de um limite pode provocar transgressões noutros limites, uma vez
que o sistema é uno e complexo. Segundo os autores, o preenchimento
dessas lacunas vai exigir grandes avanços da ciência da resiliência do Sistema Terra.
O que fazer perante as permanentes incertezas relativas aos limites
da resiliência do sistema terra?
Parece-nos que o principal desafio com que se depara ao direito do
ambiente, é o da complexidade. O paradigma ecológico caracteriza-se,
dizíamos, pela processualidade complexa, que engendra inevitavelmente a
incerteza. “Ora, cabe ao direito transformar esta incerteza ecológica em
certeza social”. 22
Dada a complexidade de toda vida em sociedade, e a necessidade
de diariamente trabalhar com a incerteza, o direito em inúmeras áreas da
organização social, construiu um sistema de presunções, um ponto fixo,
um padrão que só a lei pode oferecer. Este padrão “consiste na dedução,
na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um fato
certo, provado ou conhecido, e se chega a um fato desconhecido.”23 E
esta é uma das funções primordiais do direito, que tornou a vida em
sociedade possível. Determinar uma distância segura, mesmo partindo do
melhor conhecimento científico disponível, envolve sempre juízos normativos de como as sociedades escolhem para lidar com o risco e a incerteza.
O relacionamento com realidade ambiental tem de partir de um
pressuposto de que está a realizar uma abordagem a um sistema natural
profundamente complexo, com efeitos globais não-lineares, que ultrapassa
os sistemas de prova científica tradicional. Perante isto, e por mais legítimo
e necessário que seja o desejo de conhecer o funcionamento do sistema, é
fundamental perceber o que se pretende aqui, é a construção de uma organização humana, que seja mais capaz de se adaptar ao funcionamento
global deste sistema terrestre, e “dialogar” com a complexidade que vai
conhecendo. Embora já tenhamos evoluído imenso no conhecimento sobre
22.
A. MORAND,
“La coordination materèrielle:
de pesée des intérêts à
l’écologisation du droit”,
in Le Droit de
l’environnement dans la
pratique. Agosto de 1991,
p.212. Citado por François
Ost, A Natureza á Margem da
Lei, A ecologia à prova do
direito, Insituto Piaget,
Lisboa 1995, p-11.
23.
VARELA, Antunes,
Manual de Processo Civil,
2ª Ed. 501.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
18
a resiliência e funcionamento do sistema natural do nosso planeta, parece
que a nossa única certeza é que as condições que se mantiveram estáveis
durante o período do Holoceno com os principais parâmetros biogeoquímicos e atmosféricos flutuando dentro de uma faixa relativamente
estreita, é que constituem a nossa margem de segurança, os nossos limites.
Sendo esse o nosso ponto fixo, o nosso padrão, sobre ele podemos
construir um conceito humano de património, e de uma contabilidade de
relações humanas, que agora se alargaram à escala global. E como
conceito humano que é, há-de ser sempre imperfeito, mas tem a vantagem
de a qualquer momento poder ser alterado, se o conhecimento que
construirmos sobre a realidade ambiental assim o ditar. É demasiado sério
e imprevidente o risco de a prova científica da catástrofe, surgir apenas
com a catástrofe.
Um património atribuído a quem?
Parece hoje evidente que a CNUDM dividiu o espaço oceânico, mas não
dividiu o sistema oceânico. Todos continuam, dentro de cada uma das
jurisdições soberanas dos mares territoriais e zonas económicas exclusivas, a usar um mesmo sistema obrigatoriamente comum. E o mesmo se
passa com o sistema climático. Numa situação de um uso de determinado
bem por um número alargado de pessoas, os direitos de propriedade estão
subdefinidos. A existência de muitos agentes a utilizar o recurso, nestas
condições, leva à “falha de mercado”, a um ineficiente nível de utilização
do recurso e a uma especial propensão para o uso excessivo do recurso.
Da Motta faz notar que “é a ausência de (ou dificuldade de assinalar) direitos completos de propriedade dos recursos ambientais que
torna o seu uso menos eficiente. Caso a especificação dos direitos completos fosse possível, uma negociação entre os usuários poderia ocorrer
de forma que os usos de maior retorno (mais eficientes) fossem priorizados, ou seja, as trocas de direitos no mercado induziriam a que os
usuários de maior benefício de uso (ou menor custo) fossem aqueles que
pagassem mais por esses direitos. Os termos da negociação seriam com
base nos custos e benefícios percebidos pelas partes. Para que um mercado de direitos, entretanto, se realize será necessário que os direitos de
propriedade sejam bem definidos e que haja um grande número de
participantes comprando e vendendo com diferentes custos e benefícios.
Por outro lado, um mercado, assim institucionalizado, diversificado e
atomizado requer um apoio institucional e legal mais sofisticado.” 24
A institucionalização de mercados verdes de carbono ou de biodiversidade, que constituem em si interessantes laboratórios experimentais e
conceptuais para a construção de uma economia verde, não respondem à
dimensão global dos benefícios e encargos que se pulverizam de forma
difusa pelos sistemas naturais globais. Estas opções, ainda que possam ser
válidas em algumas situações locais, não se substituem a um enquadra-
24.
DA MOTTA, Ronaldo Seroa,
dos recursos ambientais
para uma economia verde,
Na 8, Junho, Belo Horizonte,
2011, p.188.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
19
mento global, sob pena de se incorreram em novas falhas e profundos
efeitos indesejados. “Uma solução global para o desafio da sustentabilidade é um pré- requisito para uma vida sustentável à escala local e
regional”. 25 Se para a economia esta “ausência de propriedade” leva à
“falha de mercado” e ao uso ineficiente, para o direito essa “natureza
global” ou a “qualidade ambiental planetária” são “interesses difusos” que
vagueiam numa nebulosa jurídica de onde derivam conceitos indeterminados como Biosfera Património Comum da Humanidade, Global
Commons, Common Heritage of All Life, etc.), em que se misturam
elementos constitutivos da soberania do Estado e os interesses da humanidade. “O interesse e preocupação com a humanidade oferece uma
dificuldade de definição precisa dos seus contornos (...)”. 26
Os sistemas jurídicos nacionais e o Direito internacional já há
muito tempo reconheceram a propriedade comum ou a existência de recursos ou interesses partilhados de forma equitativa. O conceito de res communis é uma forma de propriedade comum, que impede a apropriação
individual, mas permite uso comum de um recurso.
Contrasta com res nullius, em que existe um bem a que todos
podem ter acesso, mas este não pertence a ninguém e pode ser livremente
usado. É a ausência de um interesse comum. Quando esta propriedade
comum se alarga a toda a humanidade passam a ser considerados res
omnium, bens de todos. “Na sequência desta ideia, surge a noção de responsabilidade intergeracional pela preservação das res ominium. Se todos
os bens e recursos da Terra são património comum da humanidade,
então todos os seres humanos, pertencentes quer às gerações presentes
quer às futuras, devem ter acesso a esses mesmos recursos”. 27
O conceito de res communis omnium, como um regime de propriedade comum alargado a toda a humanidade que impede a apropriação
individual, mas permite uso comum de um recurso numa perspetiva
espaço-temporal, poderá ser o conceito que melhor enquadra a situação
em apreço.
Do reconhecimento das alterações climáticas pela Resolução 43/53
de 6/12/1998-AG/ONU, como “interesse comum”, podemos decorrer que o
próprio sistema sobre o qual estas alterações climáticas se realizam, neste
caso o próprio sistema climático, já não pode ser considerado como res
nullius, isto é, já não existe ausência de um interesse, e como tal, embora
seja um bem a que todos podem ter acesso, já não pode ser livremente
usado. “A noção de interesse comum leva à criação de um sistema legal
cujas regras impõem deveres na sociedade como um todo e em cada
membro individual da comunidade”.
A existência deste “interesse comum da humanidade” requer então
um sistema legal que lhe atribua um suporte do qual derivarão deveres e
direitos relativamente a uma comunidade, que desta vez se alarga a toda a
humanidade.
25.
COSTANZA, R. et al. 2011.
How Defining Planetary
Boundaries Can Transform Our
Approach to Growth, The
Solutions Journal.
26.
PUREZA, José Manuel,
O Património Comum da
Humanidade: Rumo a um Direito
Internacional da Solidariedade?,
Porto, Afrontamento, 1998.
27.
ARAGÃO, Maria Alexandra
de Sousa, O princípio do
poluidor pagador, Pedra
angular da politica
comunitária do ambiente,
Boletim da Faculdade de
Direito, Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora,
Coimbra 1997, p-30.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
20
Neste contexto, o regime de Património Comum da Humanidade
continua a ser o único que pode fornecer enquadramento jurídico-internacional adequado à regulação de bens que nos convocam para outras
dimensões da condição humana, situadas já não no domínio do estritamente material, mas sim no que de qualitativo envolve também o bem-estar da humanidade.28
Surgido na década de 1960, o conceito do Património Comum da
Humanidade, deu origem aos regimes legais especiais da Antárctida, fundos marinhos profundos e da Lua, e distingue-se no direito internacional
anterior, em parte devido à inclusão da palavra "herança", uma vez que esta
conota um aspecto intergeracional de salvaguarda do bem comum.
“Da ideia de Património Comum da Humanidade, podem-se
retirar duas consequências: primeiro, que sobre estes recursos existe uma
espécie de comunhão, uma sobreposição e um paralelismo de direitos
absolutos, cuja finalidade é a satisfação tanto de interesses coletivos com
individuais; segundo, que as gerações atuais os detêm apenas a título
fiduciário. A responsabilidade fiduciária das gerações presentes perante
as futuras significa que os recursos devem ser deixados às futuras
gerações, tal como foram encontrados, preservando tanto a variedade
como a abundância como ainda a qualidade dos bens.”29
Considerando as condições de equilíbrio do Holoceno, como um
Património Natural Intangível, ele só será atribuído à Humanidade no seu
todo. E cada geração que se sucede na história do planeta, detêm-no
apenas a título fiduciário.
28.
SHELTON, Dinah, Common
Concern of Humanity, Iustum
Aequum Salutare,
V2009/1.33-40
29.
ARAGÃO, Maria Alexandra
de Sousa, O princípio do
poluidor pagador, Pedra
angular da política
comunitária do ambiente,
Boletim da Faculdade de
Direito, Universidade de
Coimbra, Coimbra Editora,
Coimbra 1997, p-31.
A gestão do Património Natural Intangível
da Humanidade
A dispersão dos benefícios por todo o sistema natural da terra, beneficiando todos os que contribuíram ou não para implementar a tarefa de
manter/recuperar ecossistemas, torna necessário a criação de um sistema
de contabilidade de contributos não só negativos, mas também positivos,
de forma a que todos possam sentir que os seus interesses estejam salvaguardados.
Esta dispersão dos benefícios e encargos ambientais por toda a
humanidade, é identificada pela economia como uma “falha de mercado”,
uma vez que “não existe uma instituição de troca onde o sujeito que afeta
positivamente outro(s) receba uma compensação por isso ou o sujeito que
afecta negativamente outro(s) receba uma compensação por isso ou o
sujeito que afecta negativamente outro(s) suporte o respetivo custo”.30
Depois de ultrapassado o problema da “falha de mercado” através
da configuração dos sistemas naturais globais (climático e oceânico) como
res communis omnium, onde os diferentes contributos são capturados e
contabilizados, para construir uma economia “verde” capaz de assegurar
30.
SOARES, C.A Dias –
O imposto ecológico.
Contributo para o estudo
dos instrumentos
económicos de defesa
do ambiente. Coimbra:
Universidade de
Coimbra/Coimbra Editora,
2001.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
21
uma provisão de serviços ecológicos adequada à procura, é necessário
fazer corresponder “direitos” à provisão destes serviços, e de “deveres”
relativamente ao seu consumo e, desta forma, construir uma contabilidade
relativa aos diferentes contributos de cada um relativamente à manutenção
desse património comum.
O estudo das externalidades positivas e negativas que se realizam
sobre bens de uso coletivo, em que cada agente pode aumentar ou diminuir
o bem-estar dos restantes agentes que partilham o uso desses bens ou
sistema comuns, e as condições em que é possível harmonizar os benefícios individuais com os benefícios comuns, evitando uso desordenado e
competitivo (tragédia dos comuns), tem despertado grande interesse da
comunidade científica, não só nas áreas das ciências económicas e gestão
mas também nas áreas das ciências naturais. Nestas áreas do conhecimento investiga-se sobre modelos que respondam a questões como:
“Quais os contextos que favorecem um comportamento egoísta? Quais os
contextos que favorecem outras formas de comportamento que incluem
horizontes temporais alargados e/ou considerações sobre o bem-estar
dos outros?”. 31 Para estas ciências, as respostas a estas questões apontam
para soluções pragmáticas que evitam o proibicionismo, habitualmente
designado de Command and Control, o qual não funciona devido às
próprias características das sociedades humanas, e preferem uma “gestão
de incentivos”. Para uma abordagem eficaz parece-nos fundamental
proceder à análise das diferentes formas de influenciar os sistemas
naturais, não apenas no sentido de proibir e responsabilizar os agentes que
provocaram danos nestes bens, mas igualmente reconhecer os benefícios
coletivos que individualmente cada agente pode provocar. A inclusão dos
contributos positivos na contabilidade das relações, em confronto com
contributos negativos, constitui um ponto base para responder às questões
de reciprocidade, confiança e previsibilidade, que são na opinião de
Ostrom (2011) as condições estruturais necessárias para ultrapassar o
“dilema do prisioneiro”.
Existem diversas formas de organização dos recursos e diversas
formas de gestão, e umas poderão ser entendidas como mais adequadas
que outras na gestão de determinados tipos de recursos, mas parece ser
consensual a necessidade de existir gestão.
A questão dos recursos globais requer cuidados muito particulares
na sua forma de abordagem, assim como na forma de encontrar soluções.
A primeira questão a resolver é a de saber se o “mercado” é ou não o
instrumento adequado à gestão destes sistemas naturais globais: “até que
ponto pode-se recorrer aos chamados “mecanismos de mercado” para
assegurar a necessária transformação na utilização dos recursos naturais? Esta análise pode parecer contraditória, pois propõe um caminho
diametralmente inverso ao que historicamente move os agentes económicos, visando a maximizar seus retornos.”32
31.
OSTROM, E. 2011.
A Multi-Scale Approach to
Coping with Climate Change
and Other Collective Action
Problems, in Solutions
Journal, (consultado
em 05/06/2011)
http://www.thesolutionsjou
rnal. com/node/586
32.
MAY, Peter, Mecanismos
de mercado para uma
economia verde, Economia
e oportunidades, Nº 8,
Junho, Belo Horizonte, 2011
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
22
Sem uma abordagem estrutural integrada num suporte jurídico
global, são infinitas as possibilidades da existência de efeitos perversos da
utilização de instrumentos económicos em matéria ambiental. Quando se
fala em atribuir um valor económico aos serviços ecológicos, imediatamente se pensa que será necessário transformá-los em produtos transacionáveis e que ter-se-á que criar um mercado convencional. Essa não é a
abordagem correta, porque está-se a falar de bens de livre acesso e não se
pode usar um mercado convencional para gerir bens de cujo consumo
ninguém pode ser excluído. Uma vez que todos os países consomem e
disponibilizam serviços ecológicos que se refletem nos sistemas naturais
globais, só obtendo o saldo entre a totalidade da oferta e do consumo,
pode-se encontrar uma plataforma de justiça e assegurar equidade não só
intrageracional mas também intergeracional.
“De quais instituições a sociedade dispõe para sinalizar e apoiar
a transição rumo a uma economia verde? Deve-se reconhecer, antes de
qualquer coisa, que o mercado é apenas uma, entre várias instituições
constituídas pelas sociedades humanas para administrar as relações de
troca e produção (North, 1990). O mercado, em muitos casos, pode não
ser a instituição mais adequada para sinalizar uma mudança na
trajetória tecnológica, mesmo que essa trajetória esteja alicerçada pelo
alto desperdício e pelo uso de insumos exauríveis, devido ao fato de o
mercado não contemplar os bens públicos (Vatn, 2010). Desse modo, em
que condições seria aceitável apropriar-se da eficiência alocativa do
mercado para imprimir uma finalidade verde aos processos económicos?” 33
A opção da configuração de um sistema natural global como uma
res communis alargada a toda a humanidade, como bens públicos globais,
que estão por natureza fora do mercado, poderá vir a constituir um alicerce
que possibilita a resolução de uma série de problemas operacionais complexos, como seja o problema da inadequação do alcance espaço-temporal
do Direito aos novos fenómenos globais, o problema de quantificação
desse “interesse comum” e as inevitáveis “falhas de mercado” decorrentes
da indefinição da propriedade destes bens ambientais globais e a possibilidade da criação de um sistema de contabilidade de direitos e deveres
relativos a esse património comum.
“Mecanismos de mercado ou de regulação de Estado estão longe
de terem a vitalidade para uma mudança radical da relação com uma
administração da casa (planeta) que harmonize a interação das atividades humanas com o meio ambiente biótico e abiótico”. 34 A criação de
uma plataforma onde todos os contributos positivos e negativos se encontram, e onde uma entidade especialmente vocacionada para prosseguir os
interesses comuns, gerindo acertos e coordenando os objetivos globais, é
uma condição base para se alcançar compromisso a repartição justa e
equitativa dos benefícios.
33.
MAY, Peter, Mecanismos
de mercado para uma
economia verde, Economia
e oportunidades, Nº 8,
Junho, Belo Horizonte, 2011.
34.
D’AVIGNOM, A. Caruso,
Luiz. “O Carácter
necessariamente sistêmico
da transição rumo à economia
verde”. Economia Verde,
Na 8, Junho, Belo Horizonte,
2011.
Capítulo 2 / Um Património Intangível da Humanidade
23
O ambiente não é um produto que se transacione é um bem a
manter. Como afirma Robert Costanza (2011), “não é que tenhamos que
pagar pelos serviços, nós já estamos a receber o valor sem o pagar. O que
é preciso perceber é que se destruirmos os ecossistemas então vamos ter
que pagar e isso vai custar-nos muito mais do que podemos suportar”.
24
ALMEIDA, I. MENDONÇA, A. CRAVEIRO, J. A Globalização e o Indivíduo: Os riscos globais e os contextos da experiência Humana.
X Congresso Psicologia Ambiental, Lisboa, 27/30 Janeiro 2009.
BEDER, Sahron, “Avaliando a Terra: Equidade, Desenvolvimento Sustentável e Economia do Ambiente”,
in, http://resistir.info/ambiente.custo_da_terra.html
BONAPARTE, P. “O ICMS Ecológico”, Tese. Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005.
SUKHDEV, Pavan (Coord.). 2008.“TEEB Prelimiar Report, The Economics of Ecossystems and Biodiversity”, Comissão Europeia.
CANOTILHO, J.J.Gomes, “Privatismo, Associativismo e Publicismo na Justiça Administrativa do Ambiente” in: Revista de Legislação
e Jurisprudência no 3857, 3858 e 3859, 3860, 3861,
COSTANZA, R. et al. 1997. “The Value of the World's Ecosystem Services and Natural Capital”. Nature (387): 253-260.
COSTANZA, R. et al. 2011. How Defining Planetary Boundaries Can Transform Our Approach to Growth, The Solutions Journal.
Disponível em: http://www.thesolutionsjournal.com/node/935 (consultado em 06/06/2011).
CARBALLO, A. et al. 2008. ”La huella ecológica corporativa: concepto y aplicación a dos empresas pesqueras de Galicia”, Revista Galega
de Economía, vol.17, no. 2.
DIAS SOARES, C. 2001. “O Imposto ecológico – Contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente”, Coimbra,
Universidade de Coimbra, Coimbra Editora,.
ESCARAMEIA, Paula, Prelúdicos de uma Nova Ordem Mundial: O Tribunal Penal Internacional, in Nação e Defesa, Lisboa, 2003.
EUROPEAN ENVIRONMENTAL AGENCY. 2010. “Ecosystem accounting and the cost of biodiversity losses: The case of coastal Mediterranean
wetlands”, European Environment Agency, Copenhagen.
FILIPE, J. et al. 2007. “O Drama dos Recursos Comuns”, Edições Sílabo, Lisboa, FRANCO, António Sousa, Ambiente e Economia,
Centro de Estudos Judiciários, Textos Ambiente, Lisboa, 1994.
HERENDEEN, R. A. 2000. "Ecological footprint is a vivid indicator of indirect effects." Ecological Economics 32(3) 357 358.
KANT, Immanuel, A Paz Perpétua e outros opúsculos, Lisboa, Edições 70, 2004. KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, Coimbra,
Arménio Amado, 1984. KELSEN, Hans, A Justiça e o Direito Natural, Coimbra, Almedina, 2001. LENOBLE, Robert, História da Ideia
de Natureza, Lisboa, Edições 70, 2002.
LOVELOCK, James, GAIA, “A Prática Científica da Medicina Planetar”, Lisboa, Instituto Piaget, 1996.
MAGALHÃES, Paulo. 2007. “O Condomínio da Terra, Das alterações climáticas a uma nova concepção jurídica do planeta”, Coimbra, Almedina.
MORIN, Edgar., Introdução ao Pensamento Complexo, Lisboa, Instituto Piaget, 2001. MORIN, Edgar., Terra-Pátria, Lisboa,
Instituto Piaget, 2001.
OST, François, A Natureza à Margem da Lei, A ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, Lisboa 1995.
OSTROM, Elionor. 2011. A Multi-Scale Approach to Coping with Climate Change and Other Collective Action Problems, in Solutions Journal,
(consultado em 05/06/2011) http://www.thesolutionsjournal.com/node/586
OSTROM, Elionor. 2000. Collective action and the evolution of social norms. Journal of Economic Perspectives, 108, 137–158.
PUREZA, José Manuel, O Património Comum da Humanidade: Rumo a um Direito Internacional da Solidariedade?, Porto, Afrontamento, 1998.
ROCKSTROM, Johan, et al - Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity, Ecology and Society, Vol.14, Nº2, Art.32,
2009
SOUSA ARAGÃO, Maria Alexandra de, O Princípio do Poluidor Pagador, Coimbra, Universidade Coimbra, Coimbra Editora, 1997.
25
SERRES, M., O Contrato Natural, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1991.
SINGER, Peter, Um Só Mundo, A ética da globalização, Lisboa, Gradiva, 2004.
SOBRINO Heredia, José Manuel – Desrrollo sostenoble, calentamineto global y recursos vitales para la humanid, Anuario da Facultade de
Dereito da Universidade da Coruña, Revista jurídica interdisciplinar internacional,12, 2008.
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, Regressar à Terra, Consciência Ecológica e Política de Ambiente, Lisboa, Fim do Século, 1994.
SOROMENHO-MARQUES, Viriato, O Futuro Frágil, Os Desafios da Crise Global do Ambiente, Nem-Martins, 1998
TAMANES, Ramón, Ecologia y desarrolo sostenible, La polémica sobre los límites del crescimento, Madrid,Alianza Editorial, 1995.
TOLBA, K. Mostafa, Iwoma Rummel-Bulska, Global Enviromental Diplomacy,Negotiating Environmental Agreements for the World, 1973-1992,
London, The MIT Press, 1993.
WEERAMANTRY, Christopher G., Sustainable Development, in, New Technologies and Law of the Marine Environment, London, Kluwer
Internacional, 2000.
WEINER, Jonathan, Os Próximos 100 Anos, Lisboa, Gradiva, 1991.
Conferência Internacional Condomínio da Terra –
Um Novo Património Para Uma Nova Economia
Tlm: 939 992 185
E-mail: [email protected]
Website: www.condominiodaterra.org