baixar o pdf - Efêmero Concreto

Transcrição

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BR ITAD EIR A.02
Ian Guper (São Paulo-SP)
Fachada (2012)
Óleo sobre tela
O FORA DE DENTRO
Concreto é uma massa que ao endurecer adquire resistência. É o
real, o existente, o verdadeiro. É ainda o substantivo que nomeia
o que é perceptível aos sentidos – aquelas sensações que exigem
o esgotar do frenético para funcionar plenamente em ambientes
urbanos. Afinal, para ver, ouvir, tocar, cheirar e experimentar
inteiramente é preciso parar, e estar disposto. Cessar o fluxo e permitir-se enxergar, comover, refletir. Receita simples para o exercício do agir
com a intenção de transformar, de concretizar a mudança.
O impulso de intervir fez com que moradores de Berlim criassem hortas
e jardins urbanos em áreas mortas. Esses “guerrilheiros da jardinagem”
nos mostram quanto é possível semear a cidade que desejamos
com as próprias mãos. Tendo como cenário uma praça de nome
Liberdade, a bailarina Cassilene Abranches topou o desafio de
abandonar a segurança proporcionada pela caixa preta do teatro e
se jogar sem medo no espaço inesperado das ruas.
No Observatório, imagens do metrô de São Paulo transcendem
o cotidiano com interferências que transitam entre o real e o
imaginário. E, se temos o poder de transformar o que está ao redor, o
entorno também exerce sobre nós influência semelhante. O escritor
Marcelino Freire conta em fato e ficção sobre as partes que deixou
de si e os pedaços que levou consigo das cidades onde viveu.
Como algumas questões ultrapassam aspectos geográficos,
investigamos como é a vida dos artistas de rua de Buenos Aires. Para
fechar, uma história de fuga do familiar em busca do desconhecido,
pois, afinal, em meio a tantas histórias e trajetos, estamos sempre
procurando por nós mesmos.
capa Fernando Vilela
foto capa Everton Ballardin
tiragem 5 mil exemplares
distribuição gratuita
gráfica PANCROM
02.BRITADEIRA
O artista Ian Guper representa em óleo sobre tela
formas naturais e concretas.
06.REPORTAGEM
Jardineiros: uni-vos
Atividade conhecida como “jardinagem de guerrilha” mostra como
é possível dar vida a locais esquecidos pelo poder público.
314.EM OBRAS
Uma praça chamada Liberdade
A convite da revista, a bailarina Cassilene Abranches, do Grupo
Corpo, faz coreografia urbana em cartão-postal mineiro.
24.OBSERVATÓRIO
Surreal subterrâneo
Em ensaio fotográfico, Diego Kuffer cria caleidoscópios surreais
com imagens da Linha Amarela do metrô paulistano.
38.CONFLUÊNCIA
Anotações de viagens
De Sertânia a Recife, de Paulo Afonso a São Paulo. Memórias das
terras onde Marcelino Freire viveu e amou.
efemeroconcreto.com.br
[email protected]
direção Deco Benedykt, Nucci edição Roberta Dezan arte Nucci assist. de arte Laila Szafran
articulação Deco Benedykt revisão Rachel Reis colaboradores Fernando de Almeida,
Henrique Amud, Ian Guper, Jonia Caon, Kelly Cristina Spinelli, Ludmila Azevedo, Luiza Fagá,
Marcelino Freire, Mariano Juarez, Rodrigo Mendes, Rodrigo Piza Levy agradecimentos Caio T.
Silva, Carla Fonseca, Catarse, Cassilene Abranches, Estufa, Fábio Maleronka, famílias, Grupo
Corpo, Nabil Bonduki, Raffaela P. Meneguetti, Tatiana C. Waldman, Thiago Rosenberg
46.REPORTAGEM
Passando o chapéu
Os anseios, as dificuldades e as recompensas de quem usa
as ruas de Buenos Aires como palco para sua arte.
56.TAPA-BURACO
A procura por si mesmo entre florestas e cidades.
JARDINEIROS:
UNI -VOS
POR LUIZA FAGÁ
FOTOS RODRIGO PIZA LEVY
Duas iniciativas semelhantes na cidade de Berlim, na
Alemanha, transformaram espaços abandonados e
utilizados como depósito de lixo em hortas e jardins –
atividade conhecida mundialmente como “jardinagem
de guerrilha”. Além de embelezar a cidade, esse tipo
de ação nos ensina sobre perseverança, colaboração
e revitalização de locais esquecidos pelo poder público
e ainda nos mostra como é possível arregaçarmos as
mangas e plantarmos uma cidade mais verde com as
próprias mãos.
R EPOR TAGEM.06
H
á, em Berlim, uma casa que
chama a atenção por sua
estética e localização pouco
convencionais. Sediada no bairro de
Kreuzberg, tem dois andares, é feita
de material reciclado e fica entre
duas grandes árvores – sendo que
uma delas atravessa a construção.
No terreno triangular ao seu redor,
uma horta beirada por ruas em seus
três limites.
“A casa da árvore do muro”, como
é conhecida na cidade, é de
autoria do imigrante turco Osman
Kalin, que deixou a península
de Anatólia em 1964, chegou
à Alemanha no início dos anos
1970 e, no começo dos 1980, se
estabeleceu em Berlim – cidade
com a maior população turca fora
da Turquia.
Em 1983, ele decidiu encher de
vida uma área morta – um terreno
que oficialmente pertencia a
Berlim Oriental, mas que ficava ao
ocidente do muro. Tal confusão
geográfica era possível porque,
apesar de a fronteira entre os
territórios leste e oeste ser irregular,
a construção do muro desenhava
linhas retas. Como nesses espaços
nada era feito, muitos viravam
depósitos de lixo. Osman, então
aposentado, limpou o local e lá
plantou uma horta. A casa só viria
a ser construída depois da queda
do muro.
Fachada da “casa da árvore do
muro”, de Osman Kalin
Hoje, aos 89 anos, o jardineiro sofre
de Alzheimer. Quem conta a história
é seu filho Mehmet Kalin. Ele diz que
no começo os oficiais de ambas
as Berlins desconfiavam de Osman.
“Como meu pai passava muito
tempo mexendo nessa terra, que
ficava bem próxima ao muro, os
oficiais achavam que ele poderia
estar cavando um túnel.”
Embora incomodado com a
presença de Osman, o exército
ocidental se viu impedido de
tomar qualquer providência, já
que não tinha jurisdição sobre
aquele pedaço de terra. O
exército oriental, então, decidiu
agir. “Oficiais armados chegaram
para questionar o meu pai, que
respondeu que estava apenas
trabalhando. Em seguida, ele jogou
seus documentos no chão, aos pés
dos guardas, e disse pra eles que
aquilo eram apenas pedaços de
papel. Se queriam conversar, que
agissem como seres humanos.” Com
o tempo, o senhor Kalin conquistou
a confiança dos militares, que só
lhe impuseram uma condição:
não construir nada mais alto que a
grande muralha.
Daqui eu não
s a io, d a q u i
ninguém me tira
Aí derrubaram o muro. A
primeira providência de Osman
foi expandir seu terreno alguns
metros sentido oeste. A segunda,
reunir sucata – de madeira usada
a estrado de cama – e elevar
sua propriedade em direção
às nuvens. “Quando meu pai
começou a construir a casa,
policiais passaram aqui para
perguntar quantos andares ela
teria. Meu pai respondeu que, do
10
Voluntários trabalham na horta
do Prinzessinnengarten. Ao lado,
entrada da “casa da árvore”
chão ao céu, aquele espaço era
dele”, conta Mehmet.
Mas na história dessa horta nem
tudo são flores. Após a reunificação
da cidade, a prefeitura de Berlim
tentou desapropriar o terreno
diversas vezes. Osman sempre
contou com o apoio dos vizinhos,
um em especial: a igreja evangélica
Saint-Thomas, cujas grandes costas
de tijolo alaranjado dão de frente
para a casa da árvore.
Mesmo antes da queda do muro,
era da igreja que o jardineiro
comprava os vários litros de
água necessários para irrigar sua
plantação. Quando, em 2004, a
pressão para que ele abandonasse
sua casa aumentou – catalisada
pela valorização econômica da
espaços sejam plantados hortas e
jardins. Seu filho Mehmet, porém,
considera o termo muito forte.
“Meu pai nunca quis brigar com a
polícia ou com o governo; ele só
queria trabalhar e, como foi ele
quem plantou a horta, acreditava
que tinha o direito de ficar lá.”
área onde fica o terreno –, o pastor
Christian Müller tomou a frente
da discussão com um argumento
definitivo: o pequeno pedaço
de terra ocupado pelo jardineiro
pertencia, na verdade, à igreja e a
casa não poderia ser posta abaixo
sem prévia autorização desta.
Mehmet não vê contradição no fato
de autoridades cristãs oferecerem
proteção para “um homem sem
Deus”, em suas palavras. “Para o
meu pai, as pessoas estão acima da
religião. Ele respeita todo mundo e
por isso é muito respeitado.”
O jardim móvel
que não quer se
mover
Osman Kalin é considerado por
alguns como um dos precursores
da jardinagem de guerrilha (ou
guerrilla gardening), movimento
que propõe a ocupação de áreas
abandonadas para que nesses
Também no bairro de Kreuzberg, a
1 quilômetro e meio e 24 anos de
distância da plantação de Osman
Kalin, surge outra horta urbana.
O Prinzessinnengarten é uma
iniciativa de Robert Shaw e Marco
Clausen, que em 2009 reuniram um
mutirão de cerca de 150 voluntários
para limpar e semear uma área –
oficialmente propriedade do Estado
– que há mais de cinco décadas
era utilizada como depósito de
entulhos. Localizado no cruzamento
de duas ruas de movimento intenso,
o jardim chama a atenção de
longe e, ao contrário da horta
privada de Osman, é aberto a
quem quiser conhecê-lo.
Shaw e Clausen não tinham
experiência com agricultura antes
de iniciarem a empreitada, e o
que sabem hoje foi aprendido
no decorrer do caminho,
com os diversos parceiros
que o Prinzessinnengarten foi
conquistando ao longo do tempo.
Colaboração, aliás, é uma das
raízes do projeto, que contabiliza
30 mil horas de serviço voluntário
por estação de plantio. Os frutos
de tanto trabalho – obviamente
orgânicos – são vendidos lá
mesmo, a preços acessíveis. Além
disso, há um pequeno restaurante
no local que prepara receitas com
os ingredientes colhidos da horta.
Os legumes e as verduras do
Prinzessinnengarten são cultivados
em caixotes, sobre camas de
compostagem, para que possam
ser transportados de forma fácil
e eficiente. Segundo Shaw e
Clausen, em hortas urbanas a
mobilidade é um conceito-chave,
pois permite que se responda
rapidamente às reestruturações
da cidade. Os jardins móveis são
pensados não como soluções
permanentes, mas como
alternativas provisórias para
terrenos sem uso, negligenciados
por seus proprietários legais ou
pelo poder público.
concertos e exposições de arte,
peças infantis e abaixo-assinados
que envolvem temas relevantes
para a comunidade local também
são sediados por lá.
A relevância de um ambiente
como o Prinzessinnengarten,
porém, vai além do cultivo. O
jardim, que recebe cerca de
50 mil visitantes por ano, se
tornou um importante espaço
de socialização e cultura,
onde se pode aprender sobre
sustentabilidade e colocá-la em
prática. Qualquer um pode se
voluntariar para participar dos
trabalhos necessários para a
manutenção do espaço e sugerir
e encabeçar novos projetos que
explorem seus potenciais. Além
disso, eventos como pequenos
Como aconteceu com a horta de
Osman Kalin, o Prinzessinnengarten
foi ameaçado pela valorização
econômica do bairro: o terreno
ocupado corria o risco de ser
vendido para a iniciativa privada.
Aqui, não havia pastor que
pudesse interceder, mas o apoio
da comunidade local garantiu a
permanência do jardim: a petição
divulgada no site do projeto
(prinzessinnengarten.net) contou
com mais de 30 mil assinaturas.
Em carta aberta, os fundadores
defendem que, “quando se trata
Vista geral do Prinzessinnengarten.
Ao lado, caixotes sobre camas
de compostagem
de áreas públicas, não se deve
levar em conta apenas interesses
financeiros de curto prazo. O valor
social, cultural e o engajamento
ambiental também devem ser
considerados. Só assim espaços
livres poderão ser preservados ou
criados”. Uma coisa se sabe: cabe
à sociedade plantar a cidade na
qual se deseja viver.
Luiza Fagá é paulistana. Jornalista e
cineasta, atualmente mora em Berlim.
EM OBR AS .14
POR LUDMILA AZEVEDO
FOTOS RODRIGO MENDES
A bailarina Cassilene Abranches, do Grupo Corpo,
faz uma crônica contemporânea por onde
passaram escritores modernistas em Belo Horizonte e
coreografa movimentos do próprio local e de quem
momentaneamente o ocupa. Ao invadir o espaço sem
bordas das ruas, cria um novo cotidiano urbano e borra
a hierarquia arte-público.
16
Primeiro ato
Imagine um cartão-postal num
sábado desses que vêm depois
de um feriado. Uma Belo Horizonte
quase vazia. Mas o movimento
persistia como se fosse ali a
“Cidadezinha Qualquer” descrita
por Drummond. O homem anda
devagar, a vida anda devagar.
Ele também passeava por ali,
certamente em passos tranquilos,
num tempo em que as pessoas
faziam footing. Assim está registrado
em crônicas, prosas e poesias.
Devagar. Famílias, casais, amigos
e pessoas solitárias estão em dia
de pausa. Entreolham-se quando
a bailarina chega. Está diante da
fonte: luminosa à noite, desligada
naquele momento de inspiração.
Ela também observa. Alonga-se e,
na ponta dos pés, no esticar dos
braços, começa a desenhar outros
cenários. As maneiras particulares
de se mover estão ali, o permanente
teste de domínio da estrutura-espaço. O movimento de quadris,
assinatura do Grupo Corpo, do qual
faz parte, integra-se aos passos da
bailarina e coreógrafa – faceta que
vem se intensificando desde que
assinou Contracapa, para o Ballet
Jovem Palácio das Artes.
Não há trilha sonora. Apenas
ruídos vindos de um microfone
distante sendo testado num palco
provisório. É o “som, som”, “ei, ei” de
um show que vai acontecer no cair
do dia. Pouco importa. Ela segue
sua coreografia, explorando seus
limites físicos e a velocidade dos
movimentos. Alterna narrativas
e chega a ultrapassar o que
é meramente visível, palpável
ou compreensível. O fotógrafo
acompanha freneticamente e
impõe outro ritmo à calmaria.
Deita no chão para não perder a
luz, o foco, o ângulo perfeito, os
curiosos, essa tal liberdade que a
praça evoca.
As pessoas seguem desconfiadas
diante dela. Após longas pausas –
ou seriam entreatos? –, quebram o
quase silêncio. “Arreda aí para não
atrapalhar a moça”, diz um senhor
ao neto de bicicleta, que queria
sair na foto.
Segundo ato
Ela se aproxima de artistas de rua
munidos de fitas, bolas e outros
apetrechos típicos de malabares.
A coreografia ganha contornos
vigorosos. À medida que amplia
os movimentos para acompanhar
a trupe vinda da Colômbia e da
Argentina, os sorrisos se abrem e
transformam o sábado vagaroso.
No próximo gesto, entra em cena
uma garota. Como quase toda
menina, ela também quer ser
bailarina. Estica os bracinhos de
modo desengonçado, tenta ficar
elástica, concentrada e longilínea.
Ao chamar a atenção dos demais,
cai na gargalhada, sai correndo e
se joga no colo dos pais.
O coreto interditado está ocupado.
Na escadaria, adolescentes de
preto e jeans rasgados parecem
alheios a qualquer coisa. “Posso
ficar aqui com vocês?”, pergunta a
bailarina. Diante do consentimento,
ela decifra o código do grupo e
reproduz uma atitude mais forte.
Saltos repetidos do alto daqueles
degraus. Por cima dos jovens, de
modo abrupto, radical.
“Ó que dó, gente. Que povo
maluco! Ninguém pode arrumar
um colchão pra ela?”, desabafa
a senhora com pronúncia
tipicamente nordestina, em meio
a um lugar com uma profusão
de outros sotaques. Todos que
ocupam o cartão-postal parecem
não ser dali.
Ato final
Em outra extremidade desse lugar
oportunamente projetado em
estilo eclético, com elementos
neoclássicos, a bailarina troca o
figurino. A malha preta e justa,
que revela o físico de quem
desde sempre entrega o corpo
ao balé, dá lugar ao vestido
fluido claro. Venta e ela utiliza o
poste como suporte cênico, pisa
sorrateiramente na grama; algo
vetado na Praça da Liberdade.
Vai entender...
Devagar, as cortinas parecem se
abrir. “Olha, mãe, a bailarina”,
aponta a menina. O homem com
a câmera pendurada no pescoço,
às voltas com uma dezena de
crianças, fotografa a coreografia.
Um grupo observa e conversa ao
pé do ouvido tentando interpretar
o inesperado. “Sabia que ela era
bailarina”, constata a senhora no
banco em tom de provocação à
amiga ao lado.
Quando os ensimesmados, os
retraídos, os desconfiados e os
vagarosos pensam se o aplauso é
cabível, o sol se despede, enfim,
deixando o toque alaranjado nas
copas das árvores e nos casarões
antigos ao redor da Liberdade. Ele
se foi lentamente nesse sábado
incomum, como a bailarina, que
fica suave até desaparecer e
voltar a ser Cassilene Abranches,
que, em algumas horas, parte
para turnês em outras praças.
Ludmila Azevedo é jornalista
especializada em cultura e possui o blog
ludj.blogspot.com.
Niemeyer, pela biblioteca pública,
por um palácio e até mesmo
por uma edificação conhecida
como “rainha da sucata”, a praça
renderia observações interessantes.
A ideia de fazer poesia com o
corpo, “esse excelente, completo
e confortável corpo, tão infenso
à efusão lírica”. Cassilene é
conhecida justamente pelo caráter
poético que imprime em cada
gesto, independentemente da
cena, do pretexto ou do lugar.
Daí o fascínio da maioria em
simplesmente observá-la.
Se a leveza inerente ao balé
transparecia a cada momento da
intervenção, a artista vivenciava um
turbilhão de sensações. A proposta
desafiadora a tirou da zona de
conforto proporcionada pela caixa
preta do teatro. “Aos poucos fui me
sentindo à vontade, especialmente
por perceber o interesse e a
curiosidade das pessoas.”
O ensaio
(ou as escolhas e sensações)
Montanha. O ponto de partida.
Não há lembrança maior do que
viver cercado por ela. Ainda que
se passem dias, meses e anos fora
de Minas, abrir a janela todos os
dias e observá-la é mais que um
hábito. A ideia de que a curva
está em tudo, especialmente na
cintura, renderia uma série de
possibilidades coreográficas.
Bastou falar em montanha para ela
se empolgar e partir para outras
geometrias. Conscientemente
ou não, a reprodução do
movimento da Serra do Curral está
impregnada nos jeitos e trejeitos
daqueles que andam por aqui.
Uma particularidade do povo
mineiro, talvez. Foi quando surgiu
a intenção de traduzir em dança
esse tal gingado.
nunca fechou em décadas, ou o
casarão que já foi e sempre será o
Instituto Moreira Salles. Ela poderia
coreografar entre tantos aquis e
acolás. Também há a Praça do
Papa, com aquele horizonte belo
aos pés e a imensidão rochosa ao
fundo. Pipas coloridas no céu e as
pessoas aproveitando a doçura de
não fazer nada.
O palco poderia ser o centrão. A
Praça 7, cercada de calçadões
largos, a porta do Cine Brasil,
que vai reabrir, o Café Nice, que
A Praça da Liberdade, porém,
teria um gosto especial. Cercada
pelo recém-inaugurado circuito
cultural, pelo prédio sinuoso de
Instantes tangenciados pela
surpresa, pela “troca com os artistas
de rua como se fôssemos cúmplices
falando a mesma língua. Mas, sem
dúvida, o que mais me encantou
foi a garotinha que não se conteve
e se juntou a mim, na tentativa de
reproduzir os mesmos movimentos.
Naquele momento, me senti a
inspiração para um caminho que
ela poderia vir a seguir. Cada
segundo na praça foi intenso
e absolutamente sensacional”.
Assim, o encaminhamento ao
espetacular não se reduzia em favor
da intervenção, pois encantador
mesmo é se movimentar em direção
ao outro.
OBS ER VATÓR IO.24
SURREAL
SUBTERRÂNEO
Desdobramento da série Transitórios, Linha Amarela
toma o pulso da veia subterrânea da cidade de São
Paulo e poetiza o serpentear de vagões e o fluxo intenso
de passageiros. Ao desconstruir imagens, o fotógrafo
Diego Kuffer cria caleidoscópios surreais e transforma o
cotidiano de túneis e trens.
32
Diego Kuffer é paulistano, formado
em administração de empresas pela
Faap e pós-graduado em semiótica
psicanalítica pela PUC-SP. Em 2010,
abandonou a carreira em marketing
para se dedicar à fotografia, como
arte e profissão.
APOSTAMOS
NA S U A A P O S T A
Ajude a Efêmero Concreto a ser a primeira revista
nacional totalmente viabilizada pelos seus leitores
Cada uma das três edições já lançadas
da Efêmero Concreto nasceu de um
jeito diferente.
A primeira delas só pôde ser impressa
e distribuída graças à colaboração de
mais de 200 pessoas – que acreditaram
na ideia e apoiaram o projeto por
meio do Catarse, plataforma online
de financiamento coletivo.
A segunda edição, por sua vez,
contou com a ajuda do Itaú Cultural
– que bancou os gastos de produção
da revista – e dos artistas que, abrindo
mão de seus cachês, participaram da
festa de lançamento da publicação.
E este número foi produzido, impresso
e distribuído de forma independente.
Não é à toa, portanto, que ele chegou
um pouco atrasado: a equipe da
revista levou muito mais tempo para
conseguir o dinheiro destinado aos
jornalistas, fotógrafos, ilustradores,
artistas e demais profissionais que
colaboraram para a edição, bem
como ao pessoal da gráfica, que deu
corpo aos 5 mil exemplares desta
Efêmero Concreto #3.
Depois de todas essas experiências,
resolvemos voltar ao financiamento
coletivo. Queremos apostar na
ideia de que o crowdfunding pode
ser entendido não apenas como
o pontapé inicial de um projeto,
mas também como o seu meio de
produção permanente.
Podemos, juntos, fazer a primeira
publicação do Brasil totalmente
financiada pelas pessoas – sem se
prender a marcas, lucro ou ao governo.
Será possível?
SEG 25 MARÇO
catarse.me/efemeroconcreto4
FAÇA PARTE! APOIE!
Nesta edição da Efêmero Concreto contamos com
o apoio de grandes e importantes parceiros que nos
ajudaram a realizar mais uma etapa deste sonho.
CONF L UÊNCIA.38
ANOTACOES
DE VIAGENS
POR MARCELINO FREIRE
ILUSTRAÇÃO FERNANDO DE ALMEIDA
O escritor Marcelino Freire conta sobre as terras nas quais
deixou parte de si, sobre o poder e o impacto de uma
primeira vez e sobre as lembranças que leva consigo por
todos os pontos que percorre, seja nos mapas da ficção,
seja na realidade.
40
A
primeira terra em que morri
foi Sertânia. Cidade do
Sertão de Pernambuco, a 350
quilômetros do Recife. Vivi lá até os
3 anos.
Minha mãe arrastou os nove filhos –
eu, o caçula.
Fugimos da seca. Para estudar.
Meu filho, ninguém é ninguém
sem o estudo.
Você ainda será um médico,
um advogado.
Uma mãe nunca cria um filho para
ser poeta.
A segunda terra em que morri foi
Paulo Afonso. Cidade da Bahia.
Lembro-me da cachoeira. Minha
infância foi cheia de água.
Mulungus, algarobas. Havia verde.
E o sol queimava.
A primeira roda-gigante foi em Paulo
Afonso. O primeiro cavalinho.
O primeiro circo.
No quintal mesmo, de casa, meu
irmão montou uma lona para o fim
de semana.
E a gente se apresentava. Fazia
de conta que era gorila, palhaço,
mulher barbada.
O primeiro animal que domestiquei
foi um urubu.
A terceira terra em que morri foi
o Recife.
Cheguei aos 8 anos.
Minha mãe teimava: ia de um
lugar ao outro. Atrás de faculdade.
Para os filhos serem gente.
Moramos no bairro de Água Fria,
perto de Olinda.
E Olinda tinha praia e Carnaval.
E eu comprei minha primeira
bicicleta com o salário de
office boy.
Fiz teatro no Recife.
Tive grupo de poesia.
Fui à casa de Gilberto Freyre.
Participei de oficinas literárias.
Sofri de paixão.
Isso que acaba nos tirando o chão.
A vontade que dava de pular de
alguma ponte.
Rio Capibaribe.
A quarta terra em que morri foi
São Paulo.
Dia 13 de julho de 1991.
Dia de minha vinda.
Chovia e fazia 12 graus.
Nem imaginava que um dia eu
moraria em um prédio de
12 andares.
E beberia na Vila Madalena.
Vasculharia sebos.
Conheceria uma geração de
escritores.
Coordenaria oficinas de criação.
Em São Paulo, virei um agitado. Não
sei dirigir carros. Tomei gosto por
cafés amargos.
São Paulo me deu um sotaque – eu
não sabia que falava cantando.
E cordelizado.
Eu digo que amo São Paulo. Mas só
quero sexo.
Nessa cidade envelheço.
E aqui serei enterrado.
Um pouco da poeira de Sertânia irá
comigo. Da paisagem irá comigo.
Bodes, berros. O gogó da gata.
Um sopro de teimosia irá comigo.
Um verbo. A quentura dos galhos.
A água do balneário. O Cine
Castelo de Paulo Afonso. Homens
fantasiados de cangaceiros. No
Carnaval. O dia em que meu irmão
me vestiu de menina. E eu tinha um
cabelo liso. E umas pernas finas. Irá
comigo também minha primeira
fantasia.
Do Recife as leituras. A poesia de
Manuel Bandeira irá comigo. A
Rua da União. A 7 de Setembro. O
desfile militar – para ver meu irmão
mais velho passar marchando. As
duas goiabeiras. Meu pai e o jogo
de bicho. Meu primeiro conto. O
espetáculo de teatro que ajudei a
produzir. A casa, a casa. Sempre
sonho com aquela casa.
Vejo.
São Paulo habita todas as
paisagens. E organiza para mim
um inventário. Um testamento.
São Paulo um dia acordará para
trabalhar. Enquanto eu durmo.
Onde estarei? Lá, com certeza, lá.
Do outro lado do mundo.
Na primeira terra em que viverei.
A primeira poesia
Que o tomate te mate.
Que a batata te bata.
A primeira vontade
Ser tuberculoso igual
o Manuel Bandeira.
O primeiro pensamento
Urubu sabe o que come.
O primeiro microconto
– Faz um favor para mim?
– Qual?
– Aperta o gatilho.
Quando a gente escreve cria uma
cidade. Uma mistura de todas as
cidades em que vivemos. Ou onde
gostaríamos de viver. Erguemos
um pântano quando a gente
escreve. Atravessamos pontes.
Abismos altos. Somos habitantes
de planetas que não existem. Por
exemplo: esta rua.
Não há número nas casas quando
a gente escreve. Nem portas.
As janelas sempre abertas. E
o coração fica no centro. Os
mendigos não envelhecem sujos.
Quando a gente escreve um
bando de gente vem morar no
nosso olhar. Sem pedir licença.
Nada de alvará.
Nem de comprovante de
residência.
Não me peça para ficar.
Quando a gente escreve a viagem
é outra. Sempre na próxima
esquina. Qualquer palavra solta.
A primeira foto
Sou eu mesmo?
O primeiro beijo
Foi numa galinha.
A primeira saudade
Não vai embora.
A primeira dúvida
Será que ele gosta
mesmo de mim?
Urgente.
Quero uma outra arquitetura
para minha literatura. Como se
eu tivesse, em algum momento,
atravessado uma portinhola para
uma outra esfera. Longe de minha
ladainha costumeira. Porque me
dizem: você escreve muito sobre a
miséria. Uma reza sem fim. A moça
banguela. Escreve hiper-realista
sobre ela. Você não levanta outras
paisagens. Por que não tenta?
Uma miragem que seja. Por mais
pequena, uma nova voz se erga.
Uma flor do lácio. No asfalto.
Fiquei tentado.
Rascunhei alguns gráficos.
Pedi conselhos.
Andei, por esses dias, vendo
fotografias.
Reli contos do Cortázar.
Reparei os cruzamentos que ele
faz. Em Paris, Buenos Aires, no
ringue, no nocaute.
Misturei as estações.
Parece, até, que estou
psicografando. Ou sonhando.
Terras tão distantes essas que
nascem quando escrevemos.
Sem contar as plataformas.
Eu tenho um blog chamado Ossos
do Ofídio.
O último pôste
Quando escrevo sou um índio. E
tenho uma tribo. Uma toca. Um
rio à minha volta. Um canto único.
De guerra. Acredito que defendo.
Com unha e flecha. O que resta
da floresta.
Quando escrevo sou um velho.
Que carrego comigo as dores do
tempo. Um coração baleado. Um
amor do passado. Em meus poros.
Cavo na própria pele uma cova.
Para habitar os mortos.
Quando escrevo creio que sou um
doido. Varrido do mapa. Que não
tenho casa. E vivo à solta. Sou um
bicho. Não uma pessoa. Mordo
quem venha se meter. No meu
mundo. Vou sem medo ao poço
sem fundo.
Quando escrevo sou um soldado.
Desses que se armam com o
próprio corpo. Tocam fogo nas
vestes. Correm em chamas. À
praça. Um guerreiro em prece. Em
brasa. Não sou covarde. Nem
viro fumaça.
Quando escrevo estou cantando.
Para uma multidão. Uma canção
antiga. Algo que sai do peito.
Minha palavra ganha força. E peso.
Mesmo sozinho no meu canto. Sinto
que sou a voz de um povo inteiro.
Quando escrevo eu sou sempre
o outro.
Em que me vejo.
Para terminar
Só começando.
Marcelino Freire é escritor. Publicou,
entre outros, os livros Angu de
Sangue (Ateliê Editorial, 2005) e
Contos Negreiros (Editora Record,
2005 – Prêmio Jabuti 2006). É criador
da Balada Literária e integra
o coletivo EDITH, pelo qual lançou o
livro de contos Amar É Crime (2011).
[marcelinofreire.wordpress.com]
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R EPOR TAGEM.46
PA S S A N D, O
O CHAPEU
POR KELLY CRISTINA SPINELLI
FOTOS MARIANO JUAREZ
Não importa se determinada cidade incentiva, ignora
ou proíbe a arte feita nas ruas. Tanto faz se os performers
– estrangeiros ou locais – trabalham para os turistas ou
para quem vive ali. Os anseios, as dificuldades, os sonhos,
os impasses e as recompensas de quem usa o espaço
urbano como palco parecem independer de questões
geográficas. Das brigas com vizinhos a um improvável
encontro com os Red Hot Chilli Peppers, histórias dos
artistas de rua de Buenos Aires.
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“O
brigado, obrigado a todos!
Mas nós não vivemos
apenas de aplausos. Não se privem
do prazer de contribuir. Um show
de tango custa, no mínimo, 100
dólares por pessoa, portanto, se
você gostou, não vai sair caro
deixar 20 dólares, 20 reais ou 20
pesos”, repete Pedro “El Indio”
Benavente, depois de rodopiar
com sua parceira Diana Parra pela
Plaza Dorrego, em Buenos Aires,
capital argentina.
O cabelo enrolado, bem preto e
comprido, preso em um rabo, e a
camisa com alguns botões abertos
ajudam a entender o apelido de
um dos mais conhecidos artistas
de rua da feira de San Telmo. Em
uma das mãos, El Indio segura um
chapéu preto, o qual passa ao
redor do círculo de espectadores
para receber as gorjetas, que
parecem fartas.
Senta-se para descansar e escuta
uma senhora pedir a Diana: “Meu
marido gostaria de dançar com
você”. Diana olha para o parceiro,
que responde por ela. “Se
contribuírem, não há problema”,
diz esboçando um sorriso
enquanto assiste à moça caminhar
com o senhor de cabelos brancos
até uma espécie de tapete feito
com caixas de papelão, que faz
as vezes de palco.
Faz frio e, já que não está se
apresentando oficialmente, Diana
dança com uma blusa de lã
coberta por uma jaqueta. Quando
a dupla voltar ao trabalho, após
o descanso, ela estará com as
costas expostas ao vento, porque
seu vestido de show é decotado
até quase a cintura.
“A pior parte de trabalhar na rua é
o frio, ou o calor nos dias de verão,
quando você passa o dia inteiro
suando”, fala Diana, ao sentar-se, finalmente. Ela é colombiana,
tem 24 anos, e dançar na praça
é uma das fontes de renda que
a mantêm na Argentina. “Muitas
vezes, trabalhar na rua é melhor
do que em outros lugares. Tem
gente que acha humilhante,
mas não é. É a sua arte, pura e
transparente, não uma coreografia
que você repete diariamente,
como nas casas de tango,
sob uma estrutura puramente
mercantilista”, acredita.
Seu sonho é ser convidada a fazer
parte de um grupo de baile de
uma companhia profissional e sair
pelo mundo em turnê (em 2012,
o casal Paola Sanz e Facundo de
La Cruz, que se apresentava na
Rua Florida, foi o vencedor do
campeonato mundial de tango e
ganhou o passe para uma nova
vida: recebeu 40 mil pesos, uma
viagem a Paris e a oportunidade
de fazer uma turnê pelo Japão).
Já El Indio, mais velho e experiente,
fez o caminho oposto: foi integrante
do Ballet Nacional Folclórico, esteve
em diversas turnês pelo mundo e
se apresentou com o balé Bolshoi,
na Rússia, mas decidiu largar as
companhias por sentir-se mais feliz
ao dançar nas ruas – o que já faz
há mais de 20 anos. “É assim que eu
transmito a minha cultura; não me
apresento pelo dinheiro”, diz. Ainda
assim, o público o escutará repetir
seu pedido por gorjetas como um
mantra após cada apresentação.
Afinal, o artista tem que viver.
O boneco de
madeira e a
pinga ruim
A alguns quarteirões dali, Guillermo
Bernasconi tem seu próprio ritual. Ele
está vestido com a mesma camisa
e com os mesmos suspensórios
que sua marionete, um boneco
de madeira com jeito de bêbado
que segura uma garrafa em
uma das mãos. No chão, um
aparelho toca tangos conhecidos,
enquanto Bernasconi faz o boneco
caminhar por seu pequeno palco,
aparentando estar triste com a vida.
A marionete tropeça, olha para o
céu e toma da garrafinha. Termina
desmaiada em um dos cantos,
perto de um poste de luz, em uma
rotina de 3 minutos, repetida cerca
de 90 vezes entre o meio-dia e as 6
da tarde de cada domingo.
Artesão, Bernasconi tomou gosto
pelo trabalho com títeres e
marionetes quando morou no Brasil
e fez oficinas com os integrantes do
Giramundo, um dos mais premiados
grupos de bonecos do mundo.
Diz que em terras canarinhas,
onde desenvolveu esse show, seu
personagem se chamava Zeca
Pagodinho e a garrafinha que
carregava tinha uma etiqueta na
qual se lia “pinga ruim”. O artista
sabe agradecer em português as
gorjetas dos brasileiros.
Na Argentina, o boneco se chama
Cholito, nome dado por um
espectador que acabou virando
um dos alunos de Bernasconi. Ele
dá aulas e se envolve em toda
e qualquer atividade que tenha
a ver com as marionetes, já que
os artistas raramente conseguem
manter-se só com o que ganham
nas ruas. Em uma feira como a
de San Telmo, que recebe 10 mil
turistas a cada domingo, o dia
costuma render entre 200 e 300
pesos (86 e 130 reais).
A vizinhança é
quem manda
Nem todo mundo gosta da
presença dos artistas pelas
ruas da cidade. A feira de San
Telmo é dividida em pequenas
organizações de vizinhos, que se
responsabilizam pelo que acontece
em travessas e ruas – são várias
pequenas feiras, na verdade. Cada
qual decide se permite ou não a
presença dos artistas.
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Em dezembro de 2004, um incêndio
na boate Cromañón – que
resultou na morte de 200 jovens
durante um show, figurando uma
das maiores tragédias da história
contemporânea argentina – fez
com que uma orquestra típica
de tango recém-formada, El
Afronte, não encontrasse lugar
para trabalhar. Além do medo
generalizado, a prefeitura passou a
fiscalizar com mais rigor a estrutura
dos lugares onde os grupos musicais
poderiam se apresentar.
Bernasconi trabalha na Rua
Defensa, dividindo seu espaço
com uma série de mágicos e
estátuas vivas que ficam na porta
de alguns antiquários. De vez
em quando a polícia aparece
e manda todos embora, por
reclamação dos vizinhos ou dos
donos das lojas – em geral fazendo
uso do Código de Contravenções
da Cidade de Buenos Aires (a Lei
1.472), que em seu artigo 82 prevê
multas de até mil pesos por “ruidos
molestos”, apesar de a mesma
lei, no artigo seguinte, dizer que
o trabalho dos artistas de rua não
constitui crime.
“Agora está tranquilo, mas no
começo do ano não nos queriam
aqui”, diz Bernasconi. “Eu sou
dos poucos que têm autorização
da organização da feira para
trabalhar, mas mesmo assim já tive
muitos problemas”, conta. O Indio
Benavente também já passou
por maus bocados – chegou
a ser ameaçado de prisão por
realizar milongas na Plaza Dorrego.
“É incrível como a mesma
prefeitura que promove o tango
como patrimônio cultural da
humanidade aceite tirar os artistas
da rua”, indigna-se.
Mesmo assim, em poucas horas de
um domingo é possível ver mais
de 20 artistas circulando por ali.
É uma tradição antiga, em geral
impulsionada por crises financeiras.
Diz-se que durante o chamado
“corralito”, em 2001, quando muita
gente perdeu todo o dinheiro de sua
poupança e a Argentina mergulhou
em uma gravíssima recessão,
muitas duplas de tango perderam
o emprego em casas de shows e
passaram a fazer suas performances
em praças e calçadas.
Os 11 músicos se reuniram e a
orquestra passou a tocar em uma
das travessas de San Telmo todos os
domingos. O cantor, Marco Bellini,
mescla as dramáticas melodias
tangueiras, cantadas com a ajuda
de um microfone, com a venda de
dois CDs do grupo e de entradas
para shows. “Levem o primeiro por
35 pesos, ou os dois por 60, mais
uma entrada grátis para o nosso
show de amanhã com aula de
tango”, diz, enquanto distribui uma
filipeta na qual estão descritas as
três apresentações semanais da
orquestra, duas delas em clubes de
tango. Em 2012, a El Afronte partiu
para a quinta turnê na Europa.
Esse é um sucesso que o Buenos
Aires Jazz Cuarteto, que se
apresenta aos domingos na Pasaje
San Lorenzo, uma das travessas da
Rua Defensa, nem sequer almeja.
O grupo, formado há um ano e
meio por colegas do conservatório
superior de música Manual de Falla,
encontrou na rua uma forma de
ganhar dinheiro nos fins de semana.
No entanto, os músicos não
consideram o local ideal para
mostrar sua arte, pois, além da
inadequação acústica, eles têm
que focar um repertório mais
popular e, no inverno, tocam com
os dedos congelados. Gostariam,
no mínimo, de ser contratados para
apresentações fixas em um bar.
Por enquanto, ganham uma média
de mil pesos de gorjetas a cada
dia de apresentação, que dividem
entre os quatro. E brincam sobre a
ocasião fatídica em que levaram
apenas 13 pesos para casa cada
um, justo quando o preço do metrô
saltou de 1,10 para 2,50.
Enquanto o salário não aumenta, os
músicos colecionam boas histórias,
como a maioria dos artistas de rua.
Um mendigo, uma vez, colocou
uma empanada dentro do chapéu
do quarteto, no lugar da gorjeta –
depois recuperada pelo cachorro
que estava com ele. Mas talvez o
melhor caso seja o contado pelo
Indio Benavente. Era 1993, ele
estava dançando com uma de suas
antigas parceiras ali pelo Caminito,
perto do estádio do Boca Juniors,
outro ponto turístico importante da
cidade. Não entendia por que uns
garotões cabeludos colocavam
mais e mais dinheiro no chapéu.
“Achei que eram uns torcedores
do estádio, mas não fazia sentido”,
conta. Foi se informar com um
colega, que lhe disse que, na
verdade, se tratava dos Red Hot
Chilli Peppers. Resultado: o grupo o
convidou para se apresentar em seu
próximo show, no dia seguinte, no
Estádio Obras Sanitária. Dançou “La
Cumparsita”, de Carlos Gardel, com
sua parceira, tocada ao vivo pelo
baixista Flea.
Como figurantes
num cartão-postal
As ruas de San Telmo são um
exemplo do que acontece
semanalmente em feiras de Buenos
Aires. Uma pequena multidão de
turistas percorre o bairro, circulando
entre barracas de artesanato,
restaurantes e artistas. Há uma série
de mágicos, dançarinos, titeriteiros,
estátuas vivas e músicos, alguns
com local fixo para se apresentar,
outros itinerantes.
Anônimos, os artistas de rua são
como figurantes nos cartões-postais da cidade, atrações para
as quais o turista aponta, tira fotos
e faz comentários. Poucos sabem
que entre eles há ganhadores de
mundiais, alunos de conservatórios,
profissionais que saem em turnê
pelo mundo.
Lidam com vizinhos incomodados
e com a prefeitura, que não
reconhece sua existência.
Enfrentam o frio, o calor e o
sol, e a chuva que os impede
de trabalhar. Mas reclamam
principalmente de quem para,
olha, fotografa e não deixa
nenhum centavo.
No domingo em que estivemos ali,
um grupo de turistas se encantou
com Ricardo Ferrer, estátua viva
da feira de San Telmo há dez anos.
Ele fica das 11 às 19 horas posando
na Rua Defensa, bem ao lado do
show de marionetes, para ganhar
algo entre 200 e 300 pesos. Não
come o dia inteiro, nem nos breves
intervalos, para não engolir a tinta
branca que cobre seu rosto.
“Será que tem que pagar para tirar
foto dele?”, pergunta uma moça
para a amiga. “Que nada; para
ali na frente dele rapidinho.” Elas
posam em frente à estátua, batem
uma foto e saem andando sem
deixar sequer uma moeda.
Poucos minutos antes, os meninos do
Buenos Aires Jazz Cuarteto tinham
recebido quatro pintas de cerveja
de presente, trazidas pelo garçom
do bar vizinho. Foram oferecidas
por outro artista, um russo chamado
Pavel. Músico de uma orquestra de
câmara, ele havia se apresentado
no dia anterior no Teatro Colón e
seguia dali para o Uruguai. Deu-lhes parabéns e lhes desejou
“muita sorte, muita arte e bastante
dinheiro”, resumindo o desejo da
maioria dos artistas que vivem de
passar o chapéu.
Kelly Cristina Spinelli é jornalista,
ilustradora e mais uma estrangeira
em Buenos Aires. Escreve e ilustra
uma coluna semanal para o Terra
Magazine e contribui para revistas
como Piauí e Trip.
TAPA- BUR ACO.56