Ano IV, número 1, 2012

Transcrição

Ano IV, número 1, 2012
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 1, 2012
ISSN: 1984-7157
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia
Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao
pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de
investigação pragmatista a questões contemporâneas
ISSN: 1984-7157
Corpo editorial:
Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega)
Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia
James Campbell – Universidade de Toledo (EUA)
Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina)
Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica)
Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)†
Inês Lacerda Araújo - PUC-PR
Heraldo Silva – UFPI
José Nicolao Julião- UFRRJ
Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University
Maria José Pereira - UCG
Aldir Carvalho Filho - UFMA
Vera Vidal - Fiocruz
Ronie Silveira – UNILAB
Reuber Scofano - UFRJ
Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ
Expediente
REDESCRIÇÕES
Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF
ISSN: 1984-7157
Editor Convidado: Ronie Silveira
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes
Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr.
Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato
Ilustração da capa: A Queda de Ícaro – Brueghel (1558)
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 1, 2012
Sumário
Editorial
Notas e Comentários
Por que eu preciso tanto ir ao Brasil - Hans Ulrich Gumbrecht (por Marcelo de Mello Rangel e Thamara
de Oliveira Rodrigues).
Artigos
A reconstrução da Filosofia, da Democracia e da Educação como experiência reflexiva - Darcísio Natal
Muraro
Experiência e Natureza: lições deweyanas à prática docente na escola pública braseileira - Marcela
Calixto dos Santos e Leoni Maria Padilha Henning
Dossiê Hans-Ulrich Gumbrecht
Sem culpa de vencer, sem medo de sofrer – Susana de Castro
História e Modernidade em Hans-Ulrich Gumbrecht - Marcelo de Mello Rangel e Thamara de Oliveira
Rodrigues
A presença sentida do passado: arquitetura, preservação e cronótopos - Luara França
Tradução
No amplo presente - Hans Ulrich Gumbrecht (por Inês Lacerda Araújo).
Resenha
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnação: Ensaios Escolhidos. Introdução e organização
Luciana Villas Bôas; Tradução Luciana Villas Bôas, Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed.
PUC-Rio, 2012. Por Marcello de Mello Rangel
SEARLE, J. Liberdade e Neurobiologia. Reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem e o poder político.
São Paulo: UNESP, 2007, 101 páginas. Por Lauren de Lacerda Nunes e Gabriel Garmendia da Trindade
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Editorial
Editorial
Neste número, Redescrições dedica um dossiê a Hans Gumbrecht. Ele é
professor de literatura da Universidade de Stanford, foi aluno de filósofos, teóricos da
literatura e historiadores fundamentais ao século XX - entre eles Hans-Georg Gadamer,
Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Reinhart Koselleck. Vários de seus livros já foram
traduzidos para o português, dentre eles, Produção de Presença, Modernização dos
Sentidos, Em 1926: vivendo no limite do tempo, Elogio da beleza atlética e,
recentemente, Graciosidade e estagnação. No final de agosto de 2012, esteve no Rio de
Janeiro e, a convite de professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
UFRJ, inaugurou o “Laboratório de Filosofia Política e Metafísica: Politeia” com duas
conferências no IFCS: Depois de 1945 - Latência como origem do presente e Como e
porque a estética pode nos ajudar a entender a fascinação com o esporte.
O “Dossiê Gumbrecht” contém textos de autores brasileiros, que abordam várias
facetas de sua obra, uma tradução de trechos de seu último livro Our Broad Present a
ser lançado ainda neste ano nos EUA, uma resenha de seu último livro lançado no
Brasil, Graciosidade e estagnação, e um pequeno texto seu no qual relata alguns
momentos de sua passagem mais recente pelo Rio de Janeiro.
Além disso, o presente número de Redescrições traz um artigo sobre as
implicações pedagógicas do conceito de experiência na obra de Dewey, um outro artigo
sobre o sentido da educação filosófica e uma resenha do livro de Searle sobre as
relações entre Neurobiologia e liberdade.
A equipe de Redescrições deseja a todos uma boa leitura!
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
Editor convidado
Notas e Comentários
POR QUE EU PRECISO TANTO IR AO BRASIL
Hans Ulrich Gumbrecht
Quando eu vi os colegas da UFRJ que foram ao Galeão no início da manhã da
segunda-feira, 20 de agosto, eu percebi que nós não nos conhecíamos, o que é incomum
entre as minhas muitas idas ao Rio, onde tenho ensinado e dado conferências, desde
1977 quase todos os anos e em diversas instituições acadêmicas. Normalmente, nos
meus primeiros encontros no Brasil, sou recebido com o abraço de um amigo – mas às
vezes meus amigos não podem me encontrar no aeroporto, porque estão ocupados e
sabem que eu, de algum modo, me localizo no Rio. Nossa conversa não foi nada mal
naquele dia 20 de agosto, uma sequência comum de alusões gerais e vagas sobre
determinadas questões políticas, onde todos, antes de tudo, tentavam evitar a irritação
própria ao tema – por outro lado, embora nunca tivéssemos nos encontrado, à medida
que conversávamos, passamos de uma conversa precária e tensa a uma confortável e
verdadeiramente relaxante.
Minha primeira conferência era já na tarde do dia de chegada. Dado que as
universidades brasileiras estavam em greve (como frequentemente), um número
razoavelmente grande de pessoas apareceram para ouvir o que eu tinha a dizer sobre a
década que se seguia a 1945, e sobre minhas observações, dentro desse período, a
respeito de uma mudança na construção coletiva do tempo e no que nós continuamos a
chamar de “história” até os dias de hoje. Mas a conversa não parecia despertar a
atenção, a discussão seguinte permaneceu apenas cortês. O que me lembro e mais gostei
naquela noite de início de primavera, foi o grande pátio do bonito e ligeiramente
decadente edifício no centro histórico do Rio, onde está localizado o Departamento de
Filosofia da UFRJ. Eu apreciei estar rodeado por suas altas paredes – como se uma
inspiração pudesse se abater. Mas nenhuma inspiração veio no primeiro dia.
O dia seguinte foi de escrita em meu quarto de hotel feio e ruidoso, com sua
visão trivial para os fundos e nada de extraordinário veio naquelas quatorze horas de
trabalho. Eu terminei o que precisava terminar e me senti solitário. Uma conferência e
um diálogo brandos, mas perfeitamente aceitáveis, esperavam por mim no dia seguinte,
quarta-feira. “Mas qual foi o objetivo de viajar milhares de milhas?”, eu pensava

Texto original em inglês, intitulado – “Why I so need to go to Brazil”. Traduzido por Marcelo de Mello
Rangel e Thamara de Oliveira Rodrigues.
enquanto esperava pela minha colega, novamente, em frente ao hotel para me pegar
com o seu carro. Ela não chegou no momento em que pensei que tivéssemos
combinado; poderia ser que ela também tivesse dúvidas sobre o quão significativo e útil
tudo isso poderia ser, eu pensava enquanto olhava para cada carro que passava tentando
encontrar um rosto familiar. Antes de minha segunda conferência, no terceiro dia de
minha estadia - eu deveria dar um seminário em seu curso sobre Heidegger e “A Origem
da Obra de Arte”, um texto que eu acreditava conhecer bem. Eu não deveria fazer nada
de especial, eles estavam apenas tentando tirar o máximo proveito da minha presença,
meus colegas me disseram (e eu sempre me sinto lisonjeado com palavras como essas).
Estávamos em menos de 10 pessoas numa pequena sala em algum lugar no final de uma
escada estreita, sentados ao redor de uma mesa, e a partir do momento no qual eu
comecei a falar senti uma expressiva resistência intelectual no ar.
O que eu sempre gostei muito sobre esse ensaio é a sua descrição do antigo
templo grego que, como um catalisador, faz com que você veja o céu de um modo
nunca antes visto, com que ouça as ondas do oceano como nunca ouviu antes, com que
sinta a terra sob os seus pés como nunca sentiu antes. Isso, eu insisto, era um dos modos
e das cenas do que Heidegger poderia ter desejado expressar através da frase
“desencobrimento do Ser” (“unconcealment of Being”). Todos ao redor da mesa
ouviram respeitosamente e ninguém parecia estar impressionado com o que eu acabara
de dizer. Alguém perguntou se a “Origem” seria um ensaio mais distanciado de “Ser e
Tempo” do que eu tinha dito – e, acima de tudo, se não era sobre o “mundo” e sobre a
“terra” juntos como “desencobrimento do Ser” (“unconcealment of Being”), e não sobre
uma totalidade notável de dimensões, que não necessariamente estão juntas apenas por
terem sido visualizadas como um conjunto. Eu nunca tinha pensado sobre a
possibilidade dessa totalidade e menos ainda sobre esta totalidade enquanto “Ser”
“Sein”, eu fiquei seduzido quando alguém então descreveu conceitualmente e em
detalhes intrigantes e vigorosos o impacto no interior da Catedral de Chartres – que
retivera um pouco de sua força original ao longo dos mais de oitocentos anos de
existência (embora não tenha sido construída por pessoas como nós e para o nosso
“mundo” do início do nosso século XXI).
De repente, foi isso que eu ouvi e aprendi, e quando, uma hora mais tarde, nós
descemos aquela escada estreita novamente, eu tinha descoberto uma dimensão
completamente nova do texto de Heidegger e, talvez, até mesmo de sua filosofia em
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geral. Mas eu não quero escrever sobre o conteúdo de minha descoberta aqui, este não é
um tratado filosófico nem mesmo em sua forma mais diminuta. Tudo o que eu quero
dizer é que, naquela noite, quando eu estava tomando outro café ainda no profundo e
belo pátio, estava tão claro para mim, novamente, por que é que eu sempre tenho de
voltar ao Brasil. Esta intensidade dos momentos intelectualmente decisivos quando eu
menos espero por eles, acontece comigo sempre que estou lá, e eu não mereço isso, eu
apenas posso deixar que isto aconteça.
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Artigos
A RECONSTRUÇÃO DA FILOSOFIA, DA DEMOCRACIA E DA
EDUCAÇÃO COMO EXPERIÊNCIA REFLEXIVA
Darcísio Natal Muraro
UEL – Universidade Estadual de Londrina
[email protected]
RESUMO: O debate sobre o ensino de Filosofia no Brasil tem se pautado por uma
argumentação voltada preponderantemente para a defesa daquilo que pode ser chamada
de ensino da “tradição filosófica” ou do desenvolvimento da habilidade de pensamento.
Invariavelmente essas abordagens do ensino da filosofia se convertem num exercício
retórico, reduzindo o filosofar a uma arte literária fechada que não ilumina nem
transforma a confusão em que a criança e o jovem encontram em suas experiências de
vida. Pretendo argumentar neste artigo que a educação filosófica pode ser pensada em
outro patamar, estabelecendo como seu objeto primeiro de reflexão o campo contínuo,
interconectado e conflituoso da experiência de vida. Para desenvolver minha
argumentação, tomo como referência a compreensão da filosofia tal como desenvolvida
nas principais obras de John Dewey, como uma atividade social e cultural de valor
indispensável, uma vez que ela tem a tarefa de pensar os problemas da experiência
presente. A filosofia passa a habitar a experiência gerando e vitalizando os sentidos.
Seguindo essa linha de argumentação, a filosofia tem duas tarefas a cumprir: primeira,
ela deve fazer a indagação que leva à reflexão crítica da experiência, detectando e
delineando as interpretações e classificações que a sobrecarregam, de forma a permitir a
clarificação e a emancipação desses preconceitos infundidos na cultura; segundo, a
investigação filosófica, diagnóstica e projetiva, deverá localizar e interpretar os conflitos
éticos, políticos, educacionais que ocorrem na experiência de vida, de forma a projetar
meios para resolver tais problemas. Ambas as tarefas pressupõem o diálogo e a
democracia na criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para
problematizar, investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência. A filosofia
empírica que se almeja para a educação filosófica é a filosofia da, na e para a
experiência. A filosofia empírica tem como preocupação criar aquela atitude de amor
pela contínua busca da significação humana mais profunda da experiência, rompendo
com a tendência da cultura de massa que busca manter os indivíduos na superficialidade
do consumismo. Somente assim a filosofia poderá criar raízes na experiência e ser uma
fonte de reflexão transformadora das situações problemáticas cumprindo sua função
educativa de promover o crescimento da própria experiência, rompendo com a condição
mero conteúdo a ser transmitido ou habilidade a ser treinada como produto de consumo
para fins externos.
PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Democracia. Experiência.
THE RECONSTRUCTION OF PHILOSOPHY, DEMOCRACY AND
EDUCATION AS REFLECTIVE EXPERIENCE
Abstract: The debate over the teaching of philosophy in Brazil has been based by an
argument turned mainly to the defense of what might be called the teaching of
"philosophical tradition" or of the development of thinking skills. Invariably these
approaches of the teaching of philosophy become a rhetorical exercise, reducing the
philosophizing to a literary art that does not illuminate or transforms the confusion into
which children and youth are in their life experiences. I intend to argue in this article
that the philosophical education can be thought of in another level, establishing as its
primary reflection object the field continuous, interconnected and conflicting life
experience. To develop my argument, I take as reference the understanding of
philosophy, as developed in the major works of John Dewey, as a social and cultural
activity of essential value, since it has the task of thinking about problems of present
experience. The philosophy inhabits the experience generating and vitalizing the
meanings. Following this line of reasoning, the philosophy has two tasks to perform:
first, it should do the quest that leads to critical reflection of experience detecting and
delineating the interpretations and classifications that burden it, in order to allow
clarification and emancipation of these prejudices infused in the culture; second, the
philosophical research, diagnostic and projective, should locate and interpret the
ethical, political and educational conflicts, that occur in the life experiences in order to
design ways to solve such problems. Both tasks require dialogue and democracy in the
creation of a form of social life with freedom of intelligence to question, investigate,
share and communicate the meanings of experience. The empirical philosophy that aims
to philosophical education is the philosophy of, in and for the experience. The empirical
philosophy is to create concern that attitude of love for the continuous quest for deeper
meaning of human experience, breaking with the trend of mass culture that seeks to
keep individuals in the superficiality of consumerism. Only in this way, philosophy can
take root in the experience and to remain as a source of transformative reflection of the
problematic situations and not remain merely content to be taught and transmitted as a
consumer product for external purposes.
Key-words: Philosophy. Democracy. Experience.
1.Introdução
O debate sobre o ensino de Filosofia no Brasil tem se pautado por uma
argumentação voltada preponderantemente para a defesa daquilo que pode ser chamada
de “tradição filosófica” ou, mais explicitamente, defende-se o ensino de filosofia como
o estudo da história da filosofia, estudo da filosofia pelos filósofos, ou estudo dos
problemas dos filósofos, ou a reflexão sobre os temas das diversas áreas do pensamento
filosófico e, ainda, de forma mais divergente, o desenvolvimento de habilidade de
pensamento. Invariavelmente essas abordagens do ensino da filosofia se convertem num
exercício dialético, reduzindo o filosofar a uma arte literária fechada que não ilumina
nem dirige a confusão em que a criança e o jovem encontram-se imersos em suas
experiências de vida. Pretendo argumentar nesse artigo que a educação filosófica pode
ser pensada em patamar, ou seja, estabelecendo como seu objeto primário o campo
contínuo, interconectado e conflituoso da experiência de vida. Para desenvolver minha
argumentação tomo como referência a compreensão da filosofia como uma atividade
social e cultural de valor indispensável, uma vez que ela tem a tarefa de pensar os
problemas da experiência presente, tal como elaborado por John Dewey.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Início com uma breve referência à vida deste pensador que pode iluminar nossa
reflexão. Dewey declarou, em sua breve biografia, intitulada Do Absolutismo ao
Experimentalismo, que os problemas sociais foram a fonte inspiradora de seu
pensamento: “Os interesses sociais e os problemas desde um período muito cedo
constituíram uma apelação intelectual para mim e me forneceram o alimento intelectual
que muitos parecem ter encontrado principalmente em questões religiosas” (DEWEY,
1930, p. 20). Ele nasceu e viveu num período de grandes transformações da sociedade
norte-americana: urbanização, industrialização e centralização econômica, imigrações e
inúmeros problemas sociais. A emergência desses problemas contrastava com uma
educação marcadamente centrada na transmissão de conteúdos. O aluno dessa escola
devia exercitar sua memória repetindo fórmulas e adotar a conduta moral imposta pela
autoridade escolar. A filosofia da época girava em torno da repetição do pensamento
filosófico europeu. Dewey vislumbrou outras tarefas para a filosofia e a educação:
pensar os desafios e problemas concretos de sua sociedade. É neste sentido que se pode
entender filosofia como “amor à sabedoria”, ou seja, pensar os problemas que se
originam dos conflitos e dificuldades da vida social. Para ele, a tarefa premente era
reconstruir a filosofia como forma de pensar os significados mais profundos da
experiência, a fim de conduzir inteligentemente o agir humano. Mas por que reconstruir
a filosofia?
O pensamento filosófico havia enveredado pelos caminhos da metafísica ou de
um exercício da razão em busca das origens e finalidades absolutas, distanciando-se dos
problemas da experiência. Neste sentido, ele se posicionou: “A filosofia repudia
investigações sobre origens e finalidades absolutas, a fim de explorar valores
específicos e condições específicas de sua produção” (DEWEY, 1965, p. 13). A
filosofia como arte de pensar restrita a um pequeno grupo de especialistas não cumpria
sua função social, ética e política. Era necessário romper com este enclausuramento da
filosofia e reaproximar a filosofia da sua finalidade primeira, que é a de pensar os
problemas da vida: “[...] a filosofia deverá se tornar um método de localizar e interpretar
os mais sérios dos conflitos que ocorrem na vida, e um método de projetar meios para
tratá-los: um método de diagnóstico e prognóstico moral e político” (Idem, p. 18). Além
disso, a filosofia deveria pensar os problemas da educação e aqueles que envolvem a
conduta da mente humana. Em todos os casos, a filosofia não poderia ficar restrita ao
mero exercício especulativo da metafísica, mas ter na prática sua fonte de validação:
“[...] uma filosofia que tem a modesta pretensão de trabalhar para projetar hipóteses
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para a educação e a conduta da mente, individual e social, está, desse modo, sujeita a
provar na prática as idéias que ela propõe” (Idem, 1965, p. 18)
O método de filosofar consiste na própria atividade do pensamento no processo
da dúvida-investigação e transformação da situação experienciada. Dewey deixou
explícito que analisando como pensamos podemos inferir algumas etapas comuns no
processo de pensar que ele denominou “pensamento reflexivo”. A primeira etapa do
processo reflexivo é sentir uma situação como indeterminada, caótica, confusa ou
duvidosa. O que ocorre na situação é um conflito, desajuste ou bloqueio da interação
entre o indivíduo e meio (natural e social). A situação indeterminada é sentida na forma
de um estranhamento que desperta o pensar. A segunda etapa implica a decisão de
querer interpretar os dados da situação para definir o problema, tendo-se, então, uma
situação problemática. Para superar o método de tentativa e erro e tornar o ato de pensar
numa experiência autenticamente reflexiva, são necessários dois movimentos, nesta
etapa: examinar os dados oriundos da observação atenta da situação que origina o ato de
pensar, para retirar dela os dados relevantes, e, por outro lado, buscar as informações,
conhecimentos e conteúdos acumulados em experiências anteriores do sujeito ou da
cultura. Nessa etapa do processo reflexivo os conhecimentos acumulados nas
experiências anteriores, assim como os conhecimentos acumulados na cultura (os
conteúdos das áreas de conhecimento) são extremamente importantes para interpretar a
situação e orientar a investigação no processo de elaboração das hipóteses. Esses dois
movimentos articulados permitem localizar e definir a situação e o problema. Na etapa
seguinte, a reflexão continua com a elaboração de hipóteses e suas consequências como
soluções possíveis para o problema. A situação evolui para uma situação hipotética. A
conclusão do processo reflexivo consiste na elaboração de um plano de ação para por à
prova a hipótese (verificação) e transformar a situação problemática, gerando, assim,
um novo conhecimento. Pensamento reflexivo é a atividade inteligente que exige
esforço consciente e voluntário para reconstruir a experiência através da investigação:
“O pensamento reflexivo faz um ativo, prolongado e cuidadoso exame de toda crença
ou espécie hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz dos argumentos que a
apóiam e das conclusões a que chega.” (DEWEY, 1979, p. 18, itálicos do autor) Dewey
identifica a atividade de pensamento reflexivo como sendo a própria atividade da
investigação, conforme podemos ver em sua definição de investigação: A investigação é
a transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em outra que é
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de tal modo determinada nas suas distinções e relações que a constituem que converte
os elementos da situação original em um todo unificado. (DEWEY, 1960, p. 104,
itálicos do autor)
Para esse autor, o pensar reflexivo permite dar um salto no desconhecido a
partir do que é conhecido pelo processo da inferência, da interpretação, da suposição, da
observação cuidadosa. Ele disse: “[...] um pensamento (o que uma coisa sugere, e não a
coisa tal como se apresenta) é criador, é uma incursão no novo. Ele subentende alguma
inventividade” (DEWEY, 1979b, p. 174). O novo, familiar de alguma forma, é visto sob
nova luz, sob diferente uso dado ao mesmo na busca de transformação da situação
problemática. A novidade que o pensamento produz consiste na percepção de novas
relações para as coisas familiares, permitindo a contínua reconstrução da experiência.
Praticamente todos os conhecimentos como as descobertas científicas, invenções,
teorias e as produções da arte resultam desse processo. O mesmo ocorre no campo da
filosofia, num processo contínuo de reconstrução. A tentativa de Dewey foi de
reconstruir a filosofia fazendo, por lado, a crítica ao distanciamento da reflexão
filosófica da experiência e, por outro lado, propondo que a investigação filosófica, na
forma de pensamento reflexivo, se ocupasse de pensar os problemas éticos, políticos,
lógicos e educacionais da experiência presente. Isto tem consequências importantes para
o ensino de filosofia, como argumentou Henning (2011, p. 166):
Focalizando a nossa atenção ao ensino de Filosofia, parece que Dewey
estaria nos aconselhando a investir na investigação constante das
nossas ideias e crenças, no exame crítico, preocupando-nos em
desenvolver um pensamento bem fundamentado e justificado em
razões sobre cuja elaboração teríamos um pleno domínio e controle
das conclusões a que estaríamos chegando. Tal esforço intelectual
seria notadamente de nossa própria autoria – embora devendo sempre
sermos orientados e ajudados pelo professor, um colaborador
indispensável e um profissional capacitado, no que diz respeito à
construção dessa autonomia.
Segundo Dewey, o pensamento reflexivo não é uma forma lógica externa à
experiência, fornecida pela mente ou pelo pensamento, mas construído no próprio
processo da investigação da experiência problemática. Acompanhemos o argumento do
autor no excerto a seguir:
[...] o pensamento não significa algum estado transcendental ou ato
introduzido subitamente dentro de uma cena natural prévia, mas que
as operações do conhecimento são respostas naturais do organismo,
que constitui conhecimento em virtude da situação de dúvida na qual
ele surge e em virtude do uso da investigação, reconstrução e controle
sob o qual é colocado (DEWEY, 1953, p. 332, tradução nossa).
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Assim, é possível inferir que, para ele, o objeto primário da investigação
filosófica, a sua genuína habitação, seja o campo contínuo, interconectado e conflituoso
da experiência individual e social.
A reconstrução da filosofia significava que para realizar sua tarefa ela deveria
habitar a experiência humana, ater-se aos problemas reais da vida, diante da avalanche
das transformações. Conforme nos disse Dewey:
Essa mudança não implica numa [sic] diminuição da dignidade da
filosofia, não significa a remoção da filosofia de seu lugar altaneiro,
sublime, para o de um rude utilitarismo, significa, isto sim, que sua
função primordial é a de racionalizar as possibilidades da experiência,
especialmente a da coletividade humana (DEWEY, 1958, p. 130,
tradução nossa).
Esta citação nos coloca diante do problema de entender como o autor pensou
esta função da filosofia de “racionalizar as possibilidades da experiência”. Desta forma,
o trabalho a seguir consiste em compreender a concepção de experiência do autor.
2.Experiência e filosofar
A concepção de experiência é uma das categorias centrais para entendermos o
filosofar. Ela é a origem e lugar de todo processo de filosofar. Com a filosofia habitando
a experiência, Dewey pretendia superar os dualismos tradicionais das filosofias que
separavam a experiência do conhecimento e, por consequência, todas as demais
divisões, como inteligência e ação, inteligência e emoção, teoria e prática, saber e fazer,
espírito e corpo, trabalho e lazer, etc. Estas filosofias dualistas têm sua origem na
divisão social das classes – classes doutas e classes trabalhadoras, ricos e pobres, os que
mandam e os que são mandados – uma vez que refletem a condição social da sua
existência. Esse dualismo serve também para legitimar a continuidade dessa divisão de
classes. A sua crítica às filosofias dualistas tem essa dupla função: a necessidade de
reconstruir a filosofia por meio da reconstrução da concepção de experiência e recolocar
a prática do filosofar como condição da vida democrática, exigindo a reconstrução da
educação. Cabe recuperar neste momento o conceito de educação do autor: “[...] é uma
reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece e aumenta o sentido
desta, e também, a nossa aptidão para dirigir o curso das experiências subseqüentes”
(DEWEY, 1979b p. 83, grifos do autor).
Neste primeiro momento, concentrarei o estudo para a para a seguinte questão:
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como Dewey concebia a experiência?
A sua concepção de experiência está intimamente relacionada à própria vida.
Nesse sentido, é necessário retomar a base biológica da vida. A condição de
possibilidade da vida é o ambiente natural e social. Disse Dewey: “um organismo não
vive em um meio, vive em virtude de um meio circundante” (DEWEY, 1960, p. 25,
itálico do autor). A experiência vital consiste, segundo o autor, “[...] primariamente de
relações ativas entre um ser humano e seu ambiente natural e social” (DEWEY, 1979b,
p. 301). Em sentido mais geral, o ambiente da experiência é a própria natureza, que
inclui a cultura como manifestação das suas próprias potencialidades. A experiência é
da natureza, e como tal ocorre na natureza e no organismo humano – que também é um
objeto natural – representando como as coisas são experienciadas1.
A experiência consiste nessa interação vital de organismo e meio que combina
dois elementos: um ativo, no qual a experiência é uma tentativa prática, um agir sobre o
objeto do meio em que ela transcorre, em alguma direção circunstanciada no espaço e
no tempo; o outro reativo, no sentido de que a experiência é um sentir ou sofrer as
consequências do objeto sobre nós, originando uma significação. Há sempre uma
combinação entre aquilo que podemos fazer sobre as coisas e a mudança produzida
reagindo sobre a vida do organismo. Disse Dewey:
O organismo atua sobre as coisas que o rodeiam, valendo-se de sua
própria estrutura, simples ou complexa. Em sua conseqüência, as
mudanças que produzem nesse meio circundante reagem a sua vez
sobre o organismo e sobre suas atividades. O ser vivente sofre as
conseqüências de seu próprio agir. Esta íntima conexão entre agir e
sofrer ou padecer é o que chamamos experiência. O agir ou o sofrer,
desconectados um do outro, não constituem nenhum dos dois a
experiência. [...] Uma coisa vem a sugerir e a significar a outra.
Temos, pois, uma experiência em um sentido vital e significativo.
(DEWEY, 1958, p. 110-111).
A simples ação-reação que resulta numa modificação física, desacompanhada
da relação de causa-consequência, é admitida como experiência, mas é desprovida de
valor. A simples atividade, disse Dewey, é dispersiva, centrífuga, dissipadora2. Em outra
passagem ele esclareceu melhor a importância da reflexão, que acresce de valor a
experiência: “1) A experiência é, primariamente, uma ação ativo-passiva; não é,
primariamente, cognitiva. Mas 2) a medida e valor de uma experiência reside na
percepção das relações de continuidades a que nos conduz” (DEWEY, 1979b, p. 153,
1
2
Cf. DEWEY, 1958, p. 4a.
Cf. DEWEY, 1979b, p. 152.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
itálicos do autor).
O processo de estabelecer a relação de continuidade implica perceber que uma
coisa “sugere” ou “significa” a outra no curso da experiência. Infere-se aqui o trabalho
do pensamento que, por meio da linguagem, capta o sentido que constitui a experiência.
Separar um aspecto do outro – a ação e a reação que são geradores do significado – é
destruir o processo da experiência. Por exemplo, o ato da criança de por o dedo no fogo
efetivamente se constituirá em experiência quando se associa a dor sofrida como
consequência desse movimento, de tal maneira que por a mão no fogo passa a significar
queimadura, dor, sofrimento, algo a ser evitado pelas mudanças que o fogo ocasiona. A
presença do pensamento no processo da experiência é condição para que ela seja
acrescida de significação e para que resulte em aprendizado, formando, assim, o
conjunto de noções de cada indivíduo3. Sem captar o significado que se dá pela
conceituação, a experiência perderia completamente sua possibilidade de crescer,
ampliar e ser transmitida, portanto, de ser educativa. Dewey enfatizou a importância da
conceituação no trabalho pedagógico de condução da experiência educativa:
[...] em toda fase de desenvolvimento, cada lição, para ser educativa,
deveria conduzir a uma certa dose de conceptualização de impressões
e idéias. Sem essa conceptualização ou intelectualização, nada se
ganha que possa contribuir para uma melhor compreensão de novas
experiências. (...). tal intelectualização é o depósito de uma idéia,
definida e geral a um tempo. Educação, em seu aspecto intelectual, e
obtenção de uma idéia do que é experimentado são expressões
sinônimas (DEWEY, 1979a, p. 155/6, itálicos do autor).
O valor da experiência está nas relações de continuidade lógica e prática que
ela permite que sejam construídas. A reflexão é o esforço intencional para descobrir as
relações entre a coisa que fazemos e a consequência que resulta desta ação,
estabelecendo a continuidade entre ambas e destas para futuras ações. Pensar, para ele,
“[...] é o discernimento da relação entre aquilo que tentamos fazer e o que sucede em
consequência. Sem algum elemento intelectual não é possível nenhuma experiência
significativa” (DEWEY, 1979b, p. 158). Na experiência reflexiva ou experimental, que
difere da experiência de erro-acerto, a observação é ampliada, conforme declarou
Dewey: “Analisamos para ver com justeza o que existe entre as duas coisas, de modo a
ligar a causa ao efeito, a atividade e a conseqüência” (DEWEY, 1979b, p. 158). É nesta
espécie de experiência que surge o elemento intelectual, ao procurar descobrir
3
Cf. DEWEY, 1979b, p. 153.
18
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
minuciosamente as relações entre os atos e suas conseqüências. Tal forma de proceder,
ativa e inteligente, ocorre desde a infância, pois quando, disse Dewey, o infante “[...]
começa a esperar, começa a considerar alguma coisa atual como sinal de alguma coisa
que vai se seguir está, embora de modo muito simples, a formar juízos. Pois toma uma
coisa como prova de uma outra, reconhecendo, assim, uma relação entre ambas”
(DEWEY, 1979b, p. 159).
É possível, assim, ampliar o domínio sobre as coisas suprindo a falta de
algumas condições necessárias para determinado efeito, ou mesmo eliminando algumas
causas que produziriam efeitos indesejáveis. O elemento intelectual que surge do
processo de descobrir as relações entre nossos atos e o que acontece em consequência
deles aumenta o valor da experiência, por tirá-la do fragmentário, do isolamento e da
dispersão. A qualidade da experiência está na própria transformação, que opera no
sentido de ampliar as possibilidades da vida, ou seja, permite maior participação e
comunicação. Significados e valores são extraídos, preservados e colocados a serviço de
novas experiências. Acerca desta mudança no curso da experiência, afirmou Dewey:
“Quando o ato de tentar ou experimentar deixa de ser cego pelo instinto ou costume, e
passa a ser orientado por um objetivo e levado a efeito com medida e método, ele tornase razoável – racional” (DEWEY, 1979b, p. 300). E o sentido de racional no curso da
experiência é que “A razão deixa de ser faculdade remota e ideal, e significa todos os
recursos por meio dos quais a atividade se torna fecunda em significações” (DEWEY,
1979b, p. 304). A experiência não é mais mera abstração de fatos, mas empírica,
experimental, ou seja, atividade prática dirigida pelo conjunto de significações
hipoteticamente concebidas pela reflexão.
O filosofar sobre a experiência é este esforço deliberado para, como disse
Dewey, “[...] tornar explícito o elemento inteligível de nossa experiência” (DEWEY,
1979b, p. 159). Desta forma, o pensar muda a maneira do agir humano, que passa a ser
orientado por um fim em vista, hipotético, ou seja, torna possível estabelecer as relações
entre meios e objetivos e/ou valores da ação.
Os impedimentos para o crescimento da experiência eram, para Dewey, a
rotina e os procedimentos caprichosos. A primeira porque é escrava dos “hábitos
passivos”, dos automatismos e deixa as coisas como estão. Os segundos porque se
prendem ao ato momentâneo e desprezam as associações das ações com as energias do
ambiente. Todos falham no mesmo ponto: “[...] recusam-se a reconhecer sua
responsabilidade pelas futuras consequências oriundas da ação atual” (DEWEY, 1979b,
19
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
p. 160).
Estas responsabilidades somente podem ser conhecidas e assumidas pelo
esforço da reflexão que cria os significados da experiência: “A reflexão subentende
também interesse pelo desenlace – uma certa identificação simpática de nosso próprio
destino, pelo menos imaginativamente, com o resultado do curso dos acontecimentos”
(DEWEY, 1979b, p. 161). Consequentemente, em termos educacionais, a reflexão
deveria se constituir como um princípio da aprendizagem. Aprender é aprender a pensar
de forma que o pensar se transforme no método de aprender, isto é, um hábito ativo
capaz de reconstruir os hábitos passivos. Pensar, como processo ativo de investigação
da situação problemática da experiência, gera a compreensão e transformação da
experiência e não o acúmulo de dados na memória, para que sejam lembrados mais
tarde, se solicitados. Por isso, a educação tem essa exigência radical: pensar. E o tipo de
pensamento que interessa à educação é o pensamento inquiridor: “Pensar é inquirir,
investigar, examinar, provar, sondar para descobrir alguma coisa nova ou ver o que já é
conhecido sob prisma diverso. Enfim, é perguntar”. (DEWEY, 1979a, p. 262).
O conceito de experiência de Dewey fundamenta-se na unidade de pensamento
e ação, da vontade e da intenção de transformar uma situação problemática e da
continuidade entre o passado, presente e futuro. Porém, ele alertava que as coisas podem
ser experienciadas sem que o ato se caracterize como uma experiência, pois a distração
e dispersão impedem a percepção das relações entre as coisas4. Temos uma experiência,
disse ele, “[...] quando o material experimentado segue seu curso até sua realização.
Então, e só então, ela é integrada e delimitada, dentro da corrente geral da experiência,
de outras experiências” (DEWEY, 1953, p.34). Neste sentido, podemos inferir que há
interdependência entre as experiências na medida em que as significações apreendidas
servem de instrumento para se pensar as novas situações experienciais. Disse Dewey:
Quanto mais aprende um organismo – isto é, quanto mais resultam
retidos e integrados, na fase presente de um processo histórico, os
termos anteriores – tanto mais tem que aprender se quiser seguir
adiante; caso contrário, temos catástrofe e morte. Se a mente é um
processo mais de vida, um processo mais de registro, conservação e
uso do que foi conservado, então deve ter traços empiricamente: o de
uma corrente em movimento, de mudanças constantes, que, contudo,
têm um eixo e direção, articulações, associações, assim como
iniciações, hesitações e conclusões. (DEWEY, 1958, p. 282)
4
Cf. DEWEY, 1953, p. 34.
20
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Em outra passagem, o autor argumentou pela importância que tem o acúmulo
de experiência para a constituição do próprio “eu”:
[...] o processo do viver é contínuo; tem continuidade por ser um
processo permanentemente renovado de ação sobre o meio e
exposição à ação dele, juntamente com a instituição de relações entre
o que se faz e o que se sofre. Portanto, a experiência é
necessariamente cumulativa, e seu conteúdo ganha expressividade por
causa da continuidade cumulativa. O mundo que experimentamos no
passado se torna parte do eu que age e sofre a ação em outras
experiências. Em sua ocorrência física, as coisas e eventos
experienciados passam e acabam. Mas algo de seu significado e valor
é preservado como parte integrante do eu. Através dos hábitos
formados na interação com o mundo também habitamos o mundo. Ele
se torna um lar, e o lar faz parte de nossa experiência cotidiana.
(DEWEY 2010, p. 211-212).
O contínuo acúmulo dos significados das experiências permite que a
observação e o julgamento vão se tornando cada vez mais ampliados e minuciosos. O
pensar resulta em conhecimentos, mas estes têm valor na medida em que podem ser
usados para fecundar novas experiências. A experiência combina, assim, um duplo
movimento do pensar, o retrospectivo e o prospectivo, necessários para a continuidade
da vida num mundo em contínua mudança.
Uma experiência tem uma consumação e não uma cessação: há continuidade
entre as experiências e um acúmulo de significações graças à linguagem: “A experiência
é o resultado, o sinal e a recompensa desta interação do organismo e o ambiente, que
quando se realiza plenamente transforma a interação em participação e comunicação”
(DEWEY, 1953, p. 22). O registro simbólico da experiência permite a sua ampla
comunicação. Desta forma, a experiência passada enriquece a experiência presente,
dando a estas novas direções e significados. Além disso, a experiência deixa de ser uma
coisa isolada e se conecta com a experiência da própria humanidade possibilitando a
continuidade social.
Para Dewey, os significados se tornam possíveis devido à linguagem, que um
instrumento que permite a associação humana: “Significados não viriam à existência
sem a linguagem, e linguagem implica dois “eus” (selves) envolvidos em um
empreendimento conjunto e partilhado” (DEWEY, 1958, p. 299). Desta forma,
podemos inferir que as significações construídas nas experiências implicam um modo
de agir social: por um lado implica o aprendizado da linguagem como um instrumento
que permite a continuidade da significação das experiências do indivíduo pelo processo
de generalização e acúmulo das mesmas; por outro lado, permite a comunicação dos
21
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
significados no grupo tornando possível a participação do indivíduo com o grupo,
constituindo a vida associada. Nessa perspectiva, a comunicação 3 disse Dewey, “[...]
quando o seu uso estabelece uma genuína comunidade de ação” (DEWEY, 1958, p.
185).
A comunicação modifica as formas orgânicas de agir, transforma os
acontecimentos em objetos ou coisas com uma significação. As significações
introduzem novas qualidades na experiência: do ponto de vista social, temos a dimensão
da cultura, e, do ponto de vista individual, a origem do “eu” ou da própria mente. A
cultura é tanto condição como produto da linguagem. O ambiente cultural, ao atuar
modificando a conduta orgânica, dota esta de propriedades intelectuais. O
desenvolvimento da linguagem neste ambiente cultural é a chave para compreender esta
transformação da conduta humana. Dewey colocou da seguinte forma esta questão:
A transformação do comportamento orgânico em comportamento
intelectual, caracterizado por propriedades lógicas, é produto do fato
de que os indivíduos vivem em um ambiente cultural. Este viver os
força a assumir em seu comportamento o ponto de vista dos costumes,
crenças, instituições, significados e projetos que são pelo menos
relativamente gerais e objetivos. [...] A linguagem ocupa um lugar
destacado e exerce uma função peculiarmente significativa no
complexo que forma o ambiente cultural. Ela é em si mesma uma
instituição cultural. [...] Ela é (1) a agência através da qual outras
instituições e hábitos são transmitidos, e (2) ela permeia tanto as
formas como os conteúdos de todas as demais atividades culturais.
Além disso, ela tem a sua própria e distintiva estrutura que pode ser
abstraída como uma forma. (DEWEY, 1960, p. 45).
A linguagem foi concebida, na filosofia deweyana, como o instrumento da
cooperação social e estabelece a continuidade entre a origem e desenvolvimento das
significações. Dewey coloca a linguagem como o “instrumento dos instrumentos”5, ou
seja, o próprio uso dos instrumentos está sujeito às condições aportadas na linguagem
em virtude de sua capacidade representativa ou de sentido. A aptidão para responder às
significações no contexto social de uso e empregá-las para guiar a ação no grupo, não se
limitando às reações dos contatos físicos, torna possível a experiência inteligentemente
dirigida, diferenciando a ação do homem do comportamento dos demais animais.
As ações conjuntas dos seres humanos são possíveis graças à presença de
sinais. Diz Dewey: “No ser humano, esta função passa a ser linguagem, comunicação,
discurso, em virtude da qual as conseqüências de uma forma de vida se integram na
5
Cf. DEWEY, 1958, p. 186
22
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
conduta de outra” (DEWEY, 1958, p. 230). A comunicação promove um amplo
aprendizado de hábitos em número e complexidade:
Comunicação não apenas aumenta o número e variedade de hábitos,
mas tende a ligá-los sutilmente e, eventualmente a sujeitar a formação
de hábitos, em um caso particular, ao hábito de reconhecer que novos
modos de associação irão exigir um novo modo de uso dele (DEWEY,
1958, p. 231).
A formação de hábitos coloca para o ser humano um número crescente de
necessidades e o leva a um novo relacionamento com o mundo. Os hábitos levam o
indivíduo a fazer buscas e experimentalismos, a fazer variações e expor-se ao erro e
fracasso. Mesmo nesse caso, tal exercício aumenta a susceptibilidade, sensibilidade e
capacidade de responder ao erro ou fracasso.
A mediação social criada para a formação dos hábitos é a educação. A
concepção de educação deweyana tem o pensar como princípio da aprendizagem.
Pensar é o princípio educativo, para Dewey: “[...] é evidente que a educação, quanto a
seu lado intelectual, está vitalmente relacionada com o cultivo da atitude do pensar
reflexivo, preservando-o onde já existe, e substituindo os métodos de pensar mais livres
por outros mais restritos, sempre que possível” (Dewey, 1979a, p. 85, itálicos do autor).
Ele defendeu que a função da educação é a formação de hábitos “[...] a educação
consiste na formação de hábitos de pensar despertos, cuidadosos, meticulosos”
(Dewey, 1979a, p. 86, itálicos do autor). Faz Nessa perspectiva, faz sentido defender o
desenvolvimento do hábito do filosofar desde os primeiros anos de escolaridade,
permitindo à criança lidar com esse aspecto de sua experiência.
3.A reconstrução da Filosofia
O problema colocado anteriormente da reconstrução da experiência se converte
no problema de reconstrução da filosofia, ou mais especificamente, como declarou
Dewey “... um estudo da experiência de vida por meio da filosofia” (DEWEY, 1958, p.
37). Um estudo que penetre no interior da experiência, exprimindo os profundos
conflitos e as infindas incertezas da civilização, buscando descobrir uma nova ordem de
relações não patentes e fornecendo claridade à própria experiência. Introduzindo um
novo significado à experiência, a filosofia passa a fornecer um método para a
experiência comum dos homens. Portanto, a tarefa da filosofia é ajudar a clarificar os
significados ou sentidos ou direções na experiência. Neste sentido, afirma Dewey acera
23
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
desta primeira tarefa da filosofia: “Sua primeira incumbência é clarificar, emancipar e
estender os bens inerentes às operações da experiência naturalmente originada”
(DEWEY, 1958, p. 407). Por isso, ela tem amplo valor humano e libertador, na medida
em que sugere direção inteligente à ação, à emoção e ao relacionamento social.
Por outro lado, a experiência está saturada com classificações e interpretações
produzida pelas reflexões das gerações passadas e que parecem material fresco e
ingenuamente empírico, mas são convencionalismos. São apelos ao preconceito e ao
fanatismo.6 Se, mesmo desconhecendo as fontes e a autoridade dos conceitos
produzidos na história, eles forem considerados preconceitos, independentemente de
serem verdadeiras ou falsas, a filosofia seria a crítica dos preconceitos. Assim, a outra
tarefa da filosofia em continuidade com a anterior é a de detectar e refletir sobre os
resultados das reflexões passadas expressadas nos conceitos que usamos e que se
encontram soldados aos materiais da experiência de primeira mão, ou seja, tornaram-se
hábitos ou habituais. A filosofia desnuda intelectualmente os hábitos adquiridos na
assimilação da cultura. Seu papel é inspecionar criticamente esses hábitos para ver do
que são feitos e de que nos servem adotá-los, contribuindo com o avanço inteligente da
própria cultura. Caso contrário eles frequentemente ofuscam e distorcem a própria
experiência:
Uma filosofia empírica é, de qualquer modo, algo como despir-se
intelectualmente. Não podemos nos despojar permanentemente dos
hábitos intelectuais que contraímos e vestimos quando assimilamos a
cultura de nosso tempo e de nosso lugar. Mas o progresso inteligente
da cultura exige que abandonemos alguns desses hábitos, que os
inspecionemos criticamente, a fim de descobrir sua constituição e seu
uso para nós. Não podemos retornar à primitiva ingenuidade. Não
obstante há uma ingenuidade cultivada dos olhos, dos ouvidos e do
pensamento, a qual é atingível, mas só pode ser adquirida através da
disciplina de um pensamento rigoroso (DEWEY, 1958, p. 37).
A “disciplina de um pensamento rigoroso” denota a tarefa crítica da filosofia
diante do conhecimento de seu tempo e espaço: “[...] objetiva a crítica das crenças,
instituições, costumes, política com respeito a seu significado sobre o bem” (DEWEY,
1958, p. 408). Desta forma, a crítica aos preconceitos significa para Dewey “[...]
clarificação e emancipação, quando eles são detectados e atirados fora” (DEWEY, 1958,
p. 37).
Dewey concebe a filosofia como sendo inerentemente crítica, entendendo que
6
Cf. DEWEY, 1958, p. 33.
24
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ela tem uma posição distinta entre os vários modos de crítica em geral: ela é a crítica da
crítica. A necessidade da crítica advém da tendência dos conceitos se tornarem rígidos
compartimentos não comunicativos e, portanto, não interativos. Dewey menciona a
variedade de especializações como a ciência, a indústria, a política, a religião, a arte, a
educação, a moral, etc. que, quando se institucionalizam ou profissionalizam, se isolam
e se petrificam. Daí a necessidade da tarefa crítica da filosofia:
A super-especialização e a divisão dos interesses, as ocupações e os
bens criam a necessidade de um meio geral de intercomunicação, de
uma crítica mútua em torno da tradução de uma região ilhada da
experiência à outra. Assim, como um órgão de crítica, a filosofia
resulta, com efeito, um mensageiro, um oficial de conexão, fazendo
reciprocamente inteligíveis as vozes que falam línguas provincianas, e
desta forma, ampliando e retificando as significações de que estão
grávidas. (DEWEY, 1958, p. 410).
Diante do perigo do homem se perder diante da avalanche de especialização
científica, Dewey previu o papel da filosofia como promotora de um diálogo que
permite recompor um cenário completo, abrangente e integral. Ao mesmo tempo, a
filosofia pode orientar o homem na escolha dos valores que lhe garantem a continuidade
da vida.
A filosofia como crítica ou a filosofia experimental, como postulada por
Dewey, significa uma prática radicalmente diferente da metafísica. A filosofia não nasce
de algum impulso especial ou de um setor separado da experiência. Ela se origina da
“[...] totalidade da condição do homem, esta situação humana cai integralmente dentro
da natureza” (DEWEY, 1958, p. 421). Portanto, a crítica faz sentido quando ela
considera a importância da natureza: “Observar, registrar e definir a estrutura
constitutiva da natureza não é, pois, uma questão neutra ao ofício da crítica. É o
esquema preliminar do campo da crítica, cujo principal alcance é permitir a
compreensão da necessidade e natureza da função da inteligência” (DEWEY, 1958, p.
422).
Considerando o que foi exposto acerca de pensamento e experiência, podemos
identificar algumas conseqüências para a reconstrução da filosofia. Por um lado, a
filosofia faz perguntas para promover a crítica dos conceitos e valores que usamos para
compreender a própria experiência situada num contexto espaço-temporal, sóciocultural; por outro, ela pergunta pelos conceitos e valores que precisam ser criados ou
reconstruídos como instrumentos necessários para controlar e conduzir inteligentemente
a experiência diante dos problemas e conflitos que a afetam radicalmente. A
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
compreensão sem o controle nos colocaria na situação de expectadores ou
contempladores de um mundo estático, o controle sem compreensão nos leva à
escravidão ou alienação. Ambas as tarefas pressupõem o diálogo e a democracia na
criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para problematizar,
investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência.
Nessa mesma linha, Amaral inferiu que a tarefa da filosofia propugnada por
Dewey é ajudar o homem a lidar com o presente, o atual, o existencial que é
problemático, cheio de arestas e difícil de manejar: “Dewey clama pela participação
ativa da filosofia nas lutas e nos debates da vida de seu tempo. Exige mesmo que ela
entre no palco onde se desenrola a luta do homem pela sobrevivência com o fito de
ajudá-lo a encontrar a justa solução para os problemas” (AMARAL, 1990, P. 110)
A filosofia empírica que se almeja para educação filosófica é a filosofia da, na
e para a experiência. Filosofar sobre a experiência poderá transformar radicalmente a
vida da criança e do jovem na medida em que lhes permite assenhorear-se
intelectualmente de sua experiência, ou de sua vida. A filosofia experimental tem como
preocupação criar aquela atitude de amor pela contínua busca da significação humana
mais profunda da experiência rompendo com a tendência da cultura de massa que busca
manter os indivíduos na superficialidade do consumismo. Somente assim, a filosofia
poderá criar raízes na experiência permanecendo como fonte de reflexão e
transformação e não mero conteúdo a ser ensinado e transmitido como produto de
consumo para fins externos. No entendimento de Amaral (1990, p. 112): “[...] o papel
que Dewey efetivamente atribui à filosofia, isto é, de ser um método de resolver
problemas, em suas relações com as condições reais da vida presente.” Isto porque,
segundo essa autora, esses problemas que a filosofia é chamada a lidar dizem respeito
“[...] à necessidade de conciliar suas crenças sobre valores que devem dirigir a conduta.
(AMARAL, 1990, p. 112).
Essa discussão nos leva a explorar um campo especial de problemas que são os
que se originam das relações entre experiência e democracia, ou em sentido mais amplo,
as relações entre filosofia e educação, pensamento e democracia.
4.Experiência, democracia e educação
A concepção deweyana de democracia se baseia em dois critérios: o interesse
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
comum e a interação e reciprocidade cooperativa entre pessoas e grupos. A maior ou
menor graduação de presença destes critérios torna a vida mais ou menos social ou antisocial, amplia ou impede a endosmose social. Conforme expõe Dewey: “Os dois
critérios para aferir-se o valor de alguma espécie de vida social são a extensão em que
os interesses de um grupo são compartidos por todos os seus componentes e a plenitude
e liberdade com que esse grupo colabora com outros grupos” (DEWEY, 1979, p. 106).
Dewey estabelece estreita relação entre estes critérios e o desenvolvimento
intelectual. A expansão da vida mental é dependente do crescente contato social ou
cultural e com o meio físico. Neste sentido, Dewey alerta que diante da inexistência dos
critérios mencionados na vida social, a experiência perde em significação, pois fica
restrita a poucos estímulos para o pensamento se sentir desafiado à pesquisa: “A falta do
livre e razoável intercâmbio, que nasce de vários interesses compartidos, desequilibra o
livre jogo dos estímulos intelectuais. Variedade de estímulos significa novidade, e
novidade significa desafio e provocação à pesquisa e pensamento” (DEWEY, 1979, p.
91). Consequentemente, o isolamento e rotina significam restrição para a vida social: “A
verdade fundamental é que o isolamento tende a gerar, no interior do grupo, a rigidez e
a institucionalização formal da vida, e os ideais estáticos e egoístas” (DEWEY, 1979, p.
92).
Para Dewey, a coexistência em boa medida destes dois critérios caracterizam
uma sociedade democraticamente constituída. Nasce daí o conceito de democracia, para
Dewey: “Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, essencialmente,
uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada”
(DEWEY, 1979, p. 93)
Numa sociedade democrática, o primeiro critério proposto, o dos interesses
comuns compartilhados, significa a ampliação em quantidade e variedade dos pontos de
participação e, mais importante ainda, aumenta a confiança no reconhecimento de que
tais interesses recíprocos são os que devem servir de direção e controle social. Interesse
comum, na explicação deweyana, significa a necessidade de cada indivíduo pautar suas
atividades tendo em vista as ações dos outros, e levar em conta estas condutas para
orientar e dirigir as suas próprias. A extensão para o maior número de indivíduos deste
critério, mostra o alcance da democracia, pois, como observou Dewey, “[...] equivale à
supressão daquelas barreiras de classe, raça e território nacional que impedem que o
homem perceba toda a significação e importância de sua atividade” (DEWEY, 1979, p.
93).
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
O segundo critério de uma sociedade democrática, o da interação e
reciprocidade cooperativa com outros grupos, torna possível a cooperação mais livre
entre os grupos sociais. Por isso, é possível desenvolver hábitos sociais necessários ao
processo de adaptação contínua, tendo em vista a necessidade de ajustamento às novas
situações problemáticas criadas pelos intercâmbios. Quantidade e variedade de
intercâmbio proporcionam a diversidade de estímulos para o indivíduo reagir, variar
seus atos, liberando energias que ficariam reprimidas numa convivência em grupo
fechados e com restrições inibidoras.
Dewey identifica que as características da sociedade democrática são fruto das
ações
humanas
no
desenvolvimento
da
indústria,
comércio,
migrações,
intercomunicação e resultado do domínio das energias naturais pela ciência. A
continuidade e ampliação da vida social democrática dependem do esforço voluntário.
Mas isto somente se consegue com a educação. Desta forma, a democracia e educação
constituem os pilares da vida social. Uma educação deliberada e sistemática é mais
condizente com a comunhão democrática em que os interesses se interpenetram e se
regulam mutuamente proporcionando progresso ou readaptações. Uma sociedade
democrática somente será eficiente se a vida associada dos concidadãos for uma
experiência onde os significados são construídos e comunicados numa ação conjunta.
Repudiando a autoridade externa, política e intelectual, governantes, líderes e cidadãos
regulam suas ações a partir dos critérios da democracia. Daí ser a democracia um
princípio que, como forma de vida, deve afetar completamente o ser humano:
A idéia de democracia é mais ampla e mais completa do que suas
possíveis aplicações nos mais felizes dos casos. Para ser realizada, ela
deve afetar todos os modos de associação humana: família, escola,
indústria, religião. E mesmo no que tange a arranjos políticos, as
instituições governamentais são apenas um mecanismo de fixar numa
idéia canais de operação efetiva (DEWEY, 1991c, p. 148).
Por isso, a democracia é um ideal amplo e aberto em permanente reconstrução.
A sociedade democrática é a única capaz de permitir a livre e necessária comunicação
da experiência entre os indivíduos proporcionando a continuidade da vida social. A
sociedade democrática é o espelho do próprio organismo humano. Para sobreviverem,
os seres humanos mantêm contínua interação com o ambiente (escala biológica). No
âmbito social, a interação exige associação e cooperação comunitária, ações mediadas
pela comunicação com os outros membros da espécie. Para Dewey, a sobrevivência
humana significa sobrevivência social que se realiza através do pensamento inteligente
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
do homem.
A própria inteligência tem origem na cooperação social, conforme pensa
Dewey: “[...] inteligência é um bem, um ativo social que se reveste de função tão
pública quanto é, concretamente, sua origem na cooperação social” (DEWEY, 1970, p.
77). A inteligência é o instrumento socializador por excelência e adequado para atuar
com eficácia no sentido de restabelecer a continuidade da experiência.
A cooperação social é uma necessidade natural, inata para a sobrevivência do
ser humano e se manifesta nas demandas por companhia, emulação, organização para
atingir fins comuns, expressão e manifestação estética, a necessidade de governar, etc.7
A inteligência nasce e se desenvolve a partir desta condição humana e se torna um
poderoso recurso para a vitalidade social. É o recurso que a raça dispõe como mediador
dos conflitos: “A condição efetiva para a integração de toda divergência de fins e de
todos os conflitos de crenças está em nos darmos conta de que a ação inteligente
constitui o único recurso definitivo da humanidade, em qualquer campo” (DEWEY,
1929, p. 252). A ação inteligente só é possível se houver essa estrutura social sensível
aos conflitos sociais e que permite a investigação pública dos modos de resolver os
conflitos da vida associada e comunitária. Desta forma as crenças adquirem valor e a
experiência individual pode adquirir significações universais, ao se integrar ao todo da
sociedade e nela se imortalizar. Por sua vez, a inteligência está sempre em crescimento:
Não é a inteligência uma coisa que se adquire de uma vez e para
sempre. Ela está em constante processo formativo, e sua conservação
requer constante alerta na observação das conseqüências, requer um
espírito compreensivo empenhado em aprender, bem como uma
coragem decidida a promover reajustamentos (DEWEY, 1958, p.
109).
Um sistema não democrático, como a escravidão ou a ditadura, coloca
empecilhos para o desenvolvimento da inteligência, pois determina um padrão de
comportamento e reprime ou elimina as manifestações que fogem do mesmo. O que se
cultiva nesses sistema é a rotina e não a observação, reflexão, reajustamentos. Se a
inteligência está em crescimento, dentro das fragilidades históricas, na mesma via estão
a liberdade e a democracia. Para Dewey:
A liberdade que é a essência da democracia é, sobretudo, a liberdade
de desenvolver a inteligência; [...] Em qual extensão nós somos
realmente democráticos será, no final, decidido pelo grau pelo qual as
ameaças totalitárias existentes despertam-nos para a mais profunda
lealdade à inteligência pura e indefinida, e às intrínsecas conexões
7
Cf. DEWEY, 1946, p. 184.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
entre ela e a livre comunicação: o método da conferência, consulta e
discussão no qual elas tomam lugar, a purificação e a associação dos
resultados líquidos das experiências da multidão de pessoas (DEWEY,
1991, p. 276).
Liberdade é, para Dewey, um conceito essencialmente social e intrinsecamente
ligado à inteligência. Sua definição de liberdade está relacionada à capacidade de poder
fazer que implica a capacidade de poder refletir: “[...] liberdade não é precisamente uma
idéia, um princípio abstrato. É poder, poder efetivo de fazer coisas específicas. Não
existe liberdade em geral; liberdade no sentido amplo. Se alguém quiser saber qual a
condição da liberdade em um determinado momento, alguém tem que examinar o que as
pessoas podem fazer e o que não podem fazer” (DEWEY, p. 1946: 111, itálicos do
autor). Dewey insiste que o sentido da liberdade não deve ser confundido apenas com a
liberdade de movimento (ir e vir), mas que sua mais plena significação encontra-se no
pensamento:
A única liberdade de importância duradoura é a liberdade de
inteligência, isto é, liberdade de observação e de julgamento com
respeito a propósitos intrinsecamente válidos e significativos. O erro
mais comum que se faz em relação à liberdade é o de identificá-la
com liberdade de movimento, ou com o lado físico e exterior da
atividade. Este lado exterior e físico da atividade não pode ser
separado do seu lado interno, da liberdade de pensar, desejar e decidir
(DEWEY, 1997, p. 61).
A liberdade de pensar, desejar e decidir é desenvolvida quando se aprender o
método da inteligência, ou seja, adquire-se o hábito de pensar reflexivamente que é o
método democrático, ou método da inteligência cooperativa. Estamos falando do
método empregado pelas ciências que é um poderoso instrumental de controle, criado
pela inteligência humana e se constitui num desafio para ser utilizado analogamente na
solução dos problemas referentes à conduta humana. Desta forma, o ser humano
aprende a aprender, adquire a autonomia de pensamento ou auto-educação
proporcionando o crescimento e contínuo amadurecimento.
O sistema democrático é o que oferece as melhores possibilidades para o
desenvolvimento da inteligência, uma vez que ele torna possível a ação compartilhada, a
cooperação, a experiência inteligente investigativa e livremente comunicada. Os
sistemas autoritários repelem a atividade reflexiva, diz Dewey: “Onde quer que impere
a autoridade, o pensamento é tido como duvidoso e nocivo” (DEWEY, 1958, p. 144).
Por sua vez, o método da inteligência é o método que alimenta a democracia, e,
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
portanto, seria útil estar presente na educação para formar os hábitos investigativos ou o
pensamento reflexivo. Desta forma, a construção deste hábito deve se constituir num
princípio educativo, proporcionando uma auto-educação permanente por se constituir
num aprender a aprender como forma de autogoverno, que pressupõe um contexto de
liberdade e democracia.
Neste sentido, Ghiraldelli, analisando o pensamento Deweyano, afirmou esta
íntima conexão entre filosofia, educação e democracia:
John Dewey entendia que a verdadeira educação era ‘crescimento’ em
favor da diversidade e, sendo assim, só podia existir na democracia,
dado que a democracia era entendida por ele como uma experiência
histórica capaz de fazer proliferar pessoas e comportamentos mais
variados. A filosofia, uma vez reconstruída, responderia a suas velhas
perguntas epistemológicas e axiológicas à medida que usasse a
educação como um ‘banco de provas’, observando a vida educacional.
Esta, por sua vez, geradora de comportamentos, pessoas, situações
variadas e ricas, não poderia ser senão o campo mais fértil para uma
investigação empírica para responder perguntas do tipo ‘como se
processa o conhecimento?’ e ‘como são gerados os valores?’
(GHIRALDELLI, 2002, p. 40)
O debate acerta do crescimento é muito caro na obra de Dewey a ponto de se
constituir num critério moral e educacional. A experiência educativa é aquela que gera
crescimento e, a experiência deseducativa é aquela que provoca parada no crescimento.
Crescimento significa a possibilidade de reconstruir a experiência. O crescimento só é
possível na medida em que a experiência estabelece contato com as outras experiências.
Nesse sentido, o conhecimento acumulado ao longo da história, devidamente inserido
no processo reflexivo da experiência do aluno, é valioso porque é fator de crescimento
das experiências das novas gerações. Henning, comentando as idéias de Dewey, se
posicionou neste mesmo sentido:
O autor chama a atenção ao nosso olhar, como educadores, o qual não
poderá se distrair jamais do horizonte de “crescimento” da criança,
que deverá se constituir pela atração às futuras experiências, num
movimento permanente de obter cada vez mais desenvolvimento.
Desse modo, cada conhecimento só é valioso, educacionalmente, se
impulsionar esse crescimento (HENNING, 2011, p. 141).
Para Dewey, a democracia tem significado moral e ideal: “Temos de ver que
democracia significa a crença de que deve prevalecer a cultura humanística; devemos
ser francos e claros em nosso reconhecimento de que a proposição é uma proposição
moral, como qualquer idéia referente a dever ser” (DEWEY, 1970, p. 212, itálicos do
autor). O significado moral e ideal da democracia foi extraído por Dewey da própria
estrutura original da natureza humana. A natureza humana é constituída de inteligência
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
como instrumento que a espécie dispõe para conduzir sua experiência. O método da
inteligência é o método ou hábito do pensar reflexivo, método também da vida
democrática. A defesa feita por Dewey do significado moral e ideal da democracia
implica também a defesa da inteligência ou pensamento reflexivo e, por sua vez, da
educação como modo de vida permeado por esses três valores: pensamento, liberdade e
democracia. Defender um significado moral e ideal para a democracia é defender a
própria vida. Conforme Amaral: “[...] crença no modo de viver democrático, como o
mais humano de todos, o único verdadeiro porque o único que responde pelas
necessidades vitais do homem, uma vez que a seu ver a própria estrutura biológica do
ser humano está organizada segundo os mesmos princípios democráticos” (AMARAL,
1990. p. 115).
O autor explicita a significação moral e ideal da democracia mostrando que a
democracia: “[...] exige de todos uma retribuição social e porque se proporciona, a
todos, oportunidade para o desenvolvimento das suas aptidões distintivas. O divórcio
dos dois objetivos na educação é fatal à democracia; a adoção da significação mais
restrita de eficiência priva-a de sua justificação essencial” (DEWEY, 1979, p. 133).
Decorre daí o valor da educação, pois é por meio dela que se pode
proporcionar a todos a possibilidade de se aquinhoarem dos benefícios sociais e
desenvolverem suas aptidões individuais, e exige, também, de todos a respectiva
retribuição social. Para Dewey, a educação deve propiciar um ambiente favorável para
que cada indivíduo tenha a possibilidade de desenvolver sua natureza potencialmente
social. Da mesma forma, a reflexão da filosofia sobre as necessidades humanas na luta
pela sobrevivência deve ser regida pelos fins e valores democráticos para a garantia dos
mesmos. A filosofia deverá ser o corolário da democracia.
Assim sendo, a fé na democracia guarda íntima relação com a fé na experiência
inteligente e na educação. A fé na democracia representou, para Dewey, a possibilidade
de que através da comunicação da experiência, a Grande Sociedade se transformasse
numa Grande Comunidade, revigorando o sentido público da investigação dos conflitos
sociais através do método da inteligência, do pensamento reflexivo e inquiridor, que
permite reconstruir e expandir os significados da experiência.
Este esforço para extrair da extensa obra filosófico-educacional de Dewey
parte de sua proposição de reconstruir a filosofia a partir da idéias de reconstrução da
experiência, da inteligência e da democracia pode contribuir para pensar o problema do
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ensino da filosofia. Nesta perspectiva, inferimos que a aula de filosofia deveria operar o
processo reflexivo no interior da experiência do estudante compreendendo que essa
experiência é real, unitária, única e conflituosa, e que inclui necessariamente o
pensamento e a ação. Neste sentido, a aula de filosofia deixa de ser uma atividade de
contemplação expectadora do conhecimento, como tradição dogmática, e o converte
num instrumento que passa a habitar e transformar experiência do educando, gerando e
vitalizando os sentidos e possibilitando mudanças sociais significativas.
A aula de filosofia passa ser uma atividade investigativa, experimental, ou seja,
uma atividade de pensamento reflexivo que leva a tomar consciência da situação através
da pergunta, da problematização e da criação de hipóteses. O papel da reflexão
filosófica é localizar e interpretar os conflitos éticos, políticos, lógicos, estéticos e
educacionais que ocorrem na experiência vida, de forma a projetar meios para resolver
tais problemas e reconstruir a experiência. Essa atividade pressupõe o diálogo e a
democracia na criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para
problematizar, investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência.
Filosofar sobre a experiência poderá transformar radicalmente a vida do
estudante na medida em que lhes permite assenhorear-se intelectualmente da
experiência, aprendendo estabelecer os nexos de continuidade entre o conteúdo e o
método, a filosofia e as demais disciplinas, a vida escolar e a vida em sociedade. A
filosofia experimental pode criar atitude de amor pela contínua busca da significação
humana mais profunda da experiência rompendo com a tendência da cultura de massa
que visa manter os indivíduos na superficialidade do consumismo. A filosofia poderá
criar raízes na experiência permanecendo como fonte de reflexão, exame crítico e
transformação e não mero conteúdo a ser ensinado e transmitido como produto de
consumo para fins externos a experiência.
Referências:
AMARAL, Maria N. C. Pacheco. 1990. Dewey: Filosofia e experiência democrática.
São Paulo: Perspectiva/EDUSP.
DEWEY, John. The quest for certainty: a study of the relation of knowledge and action.
12 ed., New York: Minton, Balch & Company, 1929. 318 p.
______. From absolutism to experimentalism. In: ADAMS, G.P., MONTAGUE, W.P.
Contemporary American philosophy, vol. II. New York: The Macmillan Co., 1930.
p.12-27.
______. Experience and education. New York: The Macmillan Company, 1939a.
______. Essays in experimental logic. New York: Dover publications, 1953. 444p.
______. Experience and nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958. 443p.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
______. Logic. The theory of inquiry. New York: Henry Hold and Company, 1960.
546p.
______. The influence of Darwin on Philosophy and other Essays in contemporary
Thought. Bloomington: Indiana University Press, 1965. 309p.
______. Como pensamos como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo
educativo: uma reexposição.Tradução: Haydée Camargo Campos. 4ª ed. São Paulo:
Nacional, 1979a. Atualidades pedagógicas; vol. 2. 292 p.
______. Democracia e educação. Tradução: Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São
Paulo: Nacional, 1979b. Atualidades pedagógicas; vol. 21. 416p.
______. The latter works of John Dewey, 1925-1953:1939-1941 (LW). Edited by Jo
Ann Boydston. Volume 16. Carbondale: Sounthen Illinois University Press, 1991a.
523p.
______. The latter works of John Dewey, 1925-1953: 1949-1952. (LW). Edited by Jo
Ann Boydston. Volume 16. Carbondale: Sounthen Illinois University Press, 1991b.
______. The public and its problems. 12a. ed. Ohio: Ohio University Press, 1991c. 236
p.
______. A arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
GHIRALDELLI JR, Paulo. O que é filosofia da educação – uma discussão
metafilosófica. In: GHIRALDELLI JR, Paulo. (org.) O que é filosofia da Educação? 3ª
ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. pp. 7-87.
HENNING, Leoni Maria Padilha. Contribuições ao ensino de Filosofia no Brasil partir
dos princípios deweyanos sobre educação. In: Educação em Revista, Marília, v.12, n.1,
p.155-168, Jan.-Jun., 2011.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
EXPERIÊNCIA E NATUREZA: LIÇÕES DEWEYANAS À
PRÁTICA DOCENTE NA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA1
Marcela Calixto dos Santos2
Leoni Maria Padilha Henning3
Resumo: No primeiro capítulo do livro Experiência e Natureza, John Dewey (18591952) explora os conceitos de “experiência” e “natureza” mostrando-os de forma
interrelacionada considerando a vida do ser humano e, principalmente, quanto ao
aspecto cognitivo. Por estas razões, ele argumenta em favor da necessária consideração
da relação intrínseca entre experiência e natureza, de forma a defender a utilização do
método empírico nas pesquisas científicas, uma vez que para o autor, não há sentido no
dualismo entre teoria e prática. Diante desta exposição, nos esforçamos para tentar
relacionar tais princípios filosófico-educacionais em sua aplicabilidade numa realidade
limitada pela falta de recursos materiais e financeiros, como no caso das escolas
públicas brasileiras - onde muitos professores, acabam por restringir suas aulas apenas
às explicações teóricas, se atendo somente ao campo da experiência secundária. Das
ideias deweyanas que foram expostas, podemos extrair algumas lições para a prática
docente, que muito podem ajudar a melhorar e aperfeiçoar o trabalho educacional de
muitos professores, especialmente os de instituições públicas. Considerando que os
seres humanos estão a todo o tempo experienciando e, por este motivo, podemos
observar que experiência é vida, um dos caminhos possíveis para o professor, a nosso
ver, seria tentar envolver o conteúdo escolar na realidade das experiências ordinárias de
seus alunos, mostrando que existe relação entre ambos. Dessa maneira, o professor pode
ensinar esses alunos a tirar proveito desses conhecimentos, compartilhá-los entre si,
somando-os aos conhecimentos adquiridos fora da escola, para aplicá-los em suas
respectivas vidas cotidianas.
Palavras-chave: Experiência, Educação, Dewey, Prática Docente, Método Empírico.
Abstract: In the first chapter of the book "Experience and Nature", John Dewey (18591952) explores the concepts of "experience" and "nature" showing that they present a
interrelated feature, considering the human life and, mainly, as the cognitive aspect. For
these reasons, he argues in favor of the necessary consideration of the intrinsic
relationship between experience and nature, defending the utilization of the empirical
method in scientific research, since for the author, there is no sense in the dualism
between theory and practice. Before this exposure, we strive to try to relate the
philosophical-educational principles in its applicability into a reality limited by the lack
of material and financial resources, as in the case of Brazilian public schools - where
many teachers end up restricting their classes only to theoretical explanations, sticking
up only to the field of secondary experience. From the deweyanas ideas that have been
1
Artigo aperfeiçoado a partir do texto Experiência e Natureza: Algumas contribuições á Prática dos
Docentes Sul-americanos que foi publicado nos anais do I Congresso Latinoamericano de Filosofia da
Educação: Identidade e Diferença da Filosofia da Educação na América Latina, 2011.
2
Docente atuante nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Ensino de Londrina e
Discente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:
[email protected].
3
Professora Orientadora, atuante no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina.
E-mail: [email protected]
exposed, we can extract some lessons for teaching practice, that can greatly help to
improve and increase the educational work of many teachers, especially those of public
institutions. Considering that human beings are continuously experiencing and for this
reason, we can observe that experience is life, one of the possible ways for the teacher,
in our view, would be to try to involve the school contents in the reality of ordinary
experiences of their students, showing that there is a relationship between both. By that
way, the teacher can teach these students to take advantage of this knowledge, to share
them with each other adding them to the knowledge acquired outside school and
applying, them in their respective everyday lives.
Key-words: Experience, Education, Dewey, Teaching Practice, Empirical Method.
Apresentação
A partir de leituras realizadas sobre algumas obras de John Dewey (1859-1952),
percebemos no conceito de “experiência” um ponto central a ser compreendido se
quisermos apreender bem a proposta e as análises realizadas pelo filósofo, como
também, se nos empenhamos a avançar em nossa compreensão sobre as teorias
pedagógicas, uma vez que nelas esta noção é frequentemente encontrada apresentando,
contudo, sentidos mesmo sutilmente diversos. Neste artigo buscamos centrar nossos
esforços na busca pela compreensão do conceito acima referido, e para isso, destacamos
o livro Experiência e Natureza (1980) do qual tomamos o 1° capítulo para análise. O
título deste capítulo é “Experiência e método científico” e nele Dewey explora os
conceitos de “experiência” e “natureza” relacionados entre si em relação à vida do ser
humano e, principalmente, quanto ao seu aspecto cognitivo. Por estas razões, é nesse
capítulo que ele argumenta em favor da necessária relação da experiência e natureza, de
forma a defender a utilização do método empírico nas pesquisas científicas. Contudo, o
autor adverte quanto à dificuldade para se realizar um trabalho dessa natureza uma vez
que o dualismo entre teoria e prática, dentre outras expressões de dualismos, gerou um
fosso cada vez mais aprofundado desde a separação estabelecida primordialmente entre
esses dois elementos.
Entendemos que uma compreensão mais ampla, quiçá mais satisfatória, em
relação à complexidade do conceito de “experiência” requer estudos rigorosos, os quais
devem levar em conta o conjunto de ideias elaboradas pelo autor. Para tentar realizar
um cuidadoso exame e exercitar um estudo dessa natureza, retomaremos algumas
concepções localizadas nos livros Democracia e Educação (1959) e Experiência e
Educação (2010) com o intuito de ampliarmos a nossa compreensão e elucidarmos com
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
maior precisão a noção de experiência contida e integrada no panorama maior de sua
construção filosófica.
Ampliando os objetivos deste estudo, intentamos contribuir com a formação
docente tomando por base os princípios filosófico-educacionais expostos e discutidos,
sugerindo ainda tais conhecimentos como componentes importantes à atuação
profissional, mas tentando, contudo, provocar uma reflexão enriquecida pela própria
situação em que os professores realizam o seu trabalho. Situação frequentemente dotada
de importantes prejuízos pela falta dos recursos básicos que deveriam estar presentes no
processo de ensino-aprendizagem. Daí o nosso interesse em apreendermos as sugestões
de Dewey, relacionando-as a essa problemática concreta da situação imperante numa
considerável parcela da educação latino-americana, com especial ênfase, na realidade
brasileira.
1. Experiência e Natureza e o Método Empírico
De início, é importante destacarmos que Dewey (1980, p. 3) denomina a sua
filosofia como “[...] naturalismo empírico, ou empirismo naturalista, ou [...],
humanismo naturalista”. Ao tentarmos entender as razões que levaram este intelectual a
utilizar tais designativos em relação à filosofia que elabora, tomamos em conta a
constante e intrincada relação que o autor faz entre o homem e a natureza, em cujo
âmbito natural de vivência e sobrevivência do primeiro o impele a agir, sofrer as ações
do meio e reagir, interpretando assim a vida que aí se desenvolve e o fazendo sempre
pela perspectiva natural. Considerando estas razões, para Dewey (1980), a experiência é
o ponto de partida e o método para lidarmos com a natureza. Deste modo, a experiência
está estreitamente interligada à natureza, e, por isso, ambas se constituem como
conceitos centrais a serem entendidos na estrutura da linha filosófica advogada pelo
autor. Observemos a seguinte citação:
Apenas é possível esperar revelar, no decurso da discussão
considerada como um todo, as significações que estão aderidas a
“experiência” e “natureza”, e desta maneira insensivelmente produzir,
desde que se seja afortunado, mudança nas significações previamente
aderidas a elas. Este processo de mudança pode ser acelerado pelo
chamar a atenção para outro contexto, no qual natureza e experiência
convivem harmoniosamente juntas – onde a experiência apresenta-se a
si própria como o método, e o único método, para atingir a natureza,
penetrar seus segredos, e onde a natureza revelada empiricamente
(pelo uso do método empírico na ciência natural) aprofunda, enriquece
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
e dirige o desenvolvimento posterior da experiência (DEWEY, 1980,
p. 3).
A partir desta citação, compreendemos que a experiência é um termo que, para o
autor, não possui apenas uma significação, mas sim está atrelado a diversas
significações. Um destaque que podemos mostrar diante disso é que a experiência não
pode existir sem a natureza, pois é o convívio harmônico das duas que fará com que a
experiência se constitua racionalmente como o “método” para alcançar a natureza,
compreendendo-a de maneira mais profunda. Isso porque a teoria e a investigação
científica só podem ser validadas se, além de tudo, estiverem conectadas à experiência e
à natureza, considerando que, as teorias filosóficas devam ser formuladas com base nas
experiências.
Na sequência, tentaremos elucidar melhor esta concepção.
1.1 A Noção Deweyana de Experiência
No livro Democracia e Educação (DEWEY, 1959), o autor nos esclarece que as
diversas e infinitas interações estabelecidas entre os seres vivos - objetos naturais e
parte integrante da natureza - com as coisas, permitem que a experiência ocorra. Neste
contexto, em meio às inumeráveis experiências que acontecem na natureza, há aquelas,
oportunizadas pelos órgãos dos sentidos do nosso corpo natural em interação com a
ambiência na qual a vida opera, que nos permitem a percepção destas experiências.
Diante destas explicações, Dewey (1980, p. 4) nos aponta que o:
[...] material experienciado é o mesmo para o homem de ciência e para
o homem da rua. O último não pode acompanhar o raciocínio
intermediário sem preparação especial. Contudo, estrelas, pedras,
árvores e coisas comuns são o mesmo material de experiência para
ambos.
Assim, compreendemos que a experiência humana é constituída nas diversas
interações do homem com as coisas, as quais são naturalmente experienciadas. Portanto,
no mundo, existem relações que conectam e afetam os seres vivos de diversas maneiras:
estes seres se relacionam entre si e também se relacionam com as coisas e com os
fenômenos, de maneira que acabam se encontrando numa condição íntima com a
natureza. A ciência é historicamente constituída graças às teorias engendradas nas
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
experiências dos seres humanos com a natureza, pois estas teorias incentivam e
proporcionam oportunidades de análise sobre o caráter das coisas. Por tais razões,
Dewey (1980, p. 5) declara que “Não é a experiência que é experienciada, e sim a
natureza – pedras, plantas, animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim
por diante”. Neste sentido, a experiência é indefinidamente elástica, tendo em vista que,
concomitantemente, ela se desenvolve de forma a penetrar profundamente a natureza. A
consequência ou a dedução – no caso, a teoria – provém desta extensão da experiência,
que nos ajuda a conhecer melhor a natureza.
Para entender melhor as experiências humanas, Dewey (1980) as classifica
analiticamente entre primárias e secundárias. A “experiência primária” constitui-se pelo
contato direto com os objetos naturais – “[...] o sol, terra, plantas e animais da vida
comum, diária” (DEWEY, 1980, p. 7) - enquanto que a “experiência secundária” é fruto
deste contato, que, por meio da reflexão, constitui-se como um produto derivado e
refinado. Assim, é possível significar as coisas e ligá-las num sistema global, de forma a
estabelecer relações entre as coisas, as quais, pela aparência, pareciam “particularmente
isoladas” (DEWEY, 1980, p. 8). Não obstante, é fundamental destacarmos que, segundo
as explicações do filósofo, esses produtos derivados devem se voltar à natureza a fim de
terem sua validade testada, pois caso contrário, a permanência deles no campo da
investigação reflexiva e dirigida pode engendrar dissimilaridades no entendimento de
seus resultados em relação à realidade natural, tornando-os desconexos do mundo e
totalmente ineficazes para a lida compreensiva dos humanos em suas respectivas
realidades.
Atentando para os princípios filosófico-educacionais deweyanos que foram
expostos até o presente momento, principalmente sobre o caráter da experiência
secundária, percebemos que as elucidações aqui referidas já podem embasar um
princípio da teoria pragmática deweyana que prega que a experiência deve ser
enriquecida no cotidiano do aluno. Para Dewey (1959, p. 83, grifos do autor), a
educação “[...] é uma reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece e
aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão para dirigirmos o curso das
experiências subseqüentes”. É a partir das possibilidades atuais que estão disponíveis ao
aluno, que ele poderá enriquecer suas experiências de forma a aperfeiçoá-las e
multiplicá-las, contribuindo então, de maneira consequente, para o aperfeiçoamento de
si e da sociedade.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Resta somente assinalar (o que merecerá depois maior atenção) que a
reconstrução da experiência tanto pode ser social como pessoal. [...].
Estas [as comunidades progressivas] se esforçam por modelar as
experiências dos jovens de modo que, em vez de reproduzirem os
hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos melhores de modo que
a futura sociedade adulta seja mais perfeita que as suas próprias
sociedades atuais. Há já tempos que o homem vem sentindo a
extensão em que a educação conscientemente praticada pode eliminar
manifestos males sociais fazendo os jovens seguir caminhos que não
produzam aqueles males – como também não lhe tem faltado a
intuição de que a educação pode tornar-se um instrumento para
realizar as mais belas esperanças humanas. Entretanto, estamos sem
dúvida longe de compreender a eficácia potencial da educação como
agente edificador de uma sociedade melhor, de compreender que ela
não só representa o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes,
mas também da futura sociedade que será constituída por eles
(DEWEY, 1959, p. 85-86, acréscimos nossos).
Para Dewey, a experiência é íntegra e seus caracteres pertencem tanto ao gênero
da “vida” quando ao gênero da “história” - o que lhe atribui um sentido duplo, mas que
é indiviso em sua plenitude. “Vida denota uma função, uma atividade compreensiva, em
que organismo e ambiência acham-se incluídos” (DEWEY, 1980, p. 10) e que se
desenvolve pela interação das condições internas com as externas, como por exemplo,
“[...] ar respirado, alimento consumido, terreno percorrido [...] pulmões respirando,
estômago digerindo, pernas caminhando” (DEWEY, 1980, p. 10), constituindo a nossa
experiência mais fundamental. Já em relação à história, o autor nos explica que ela é
“amplamente conhecida”, tendo em vista que, além de se objetivar ao ser humano, ela
também diz respeito à Terra, que é o ambiente em que ele vive, ou seja, ela diz respeito
à trajetória da vida do ser humano realizada no universo e que se encontra
consecutivamente em mudança. Vivendo e experienciando o mundo!
[...] as proezas realizadas, as tragédias sofridas; também o comentário
humano, registro, a interpretação que inevitavelmente se seguem.
Objetivamente, a história compreende rios, montanhas, campos e
florestas, leis e instituições; subjetivamente, inclui propósitos e
planos, os desejos e emoções, através dos quais aquelas coisas são
administradas e transformadas (DEWEY, 1980, p. 10).
1.2 A Experiência em relação à educação
Para Dewey (1959, p. 2), além do aspecto físico, a vida se manifesta ao mesmo
tempo no âmbito social, tendo em vista que ela “[...] subentende costumes, instituições,
crenças, vitórias e derrotas, divertimentos e ocupações”. Embora a auto-renovação da
40
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
vida seja indefinida - pois todos os seres nascem e morrem - é pela dependência das
necessidades pessoais que os seres vivos estão continuamente se readaptando ao
ambiente e, consequentemente, propiciando o surgimento de espécies mais adaptadas
aos seus obstáculos, frente aos quais as precedentes espécies lutavam.
A partir desta lógica, explica-nos Dewey (1959), a vida está essencialmente
relacionada com a experiência e com a educação. E é por meio da comunicação que as
pessoas constantemente adquirem e compartilham as experiências dos mais diferentes
tipos e formas. Portanto, o ambiente e o meio proporcionam as condições necessárias
para que uma atividade se realize ou se iniba.
O autor (DEWEY, 2010) nos alerta, entretanto, para a existência de experiências
deseducativas, a saber, aquelas que engendram consequências não frutíferas ao
indivíduo, apresentando-se com perfil qualitativo e/ou construtivo, mas que impedem e
distorcem o amadurecimento das experiências vindouras. Em suas palavras:
Experiência e educação não são diretamente equivalente uma a outra.
[...]. Uma experiência pode ser de tal natureza que produza
indiferença, insensibilidade e incapacidade de reação, limitando,
assim, as possibilidades de experiências mais ricas no futuro. Uma
outra experiência pode aumentar a destreza de uma habilidade
automática, de forma que a pessoa se habitue a certos tipos de rotinas,
limitando-lhe, igualmente, as possibilidades de novas experiências.
Uma experiência pode ser imediatamente prazerosa e, mesmo assim,
contribuir para a formação de uma atitude negligente e preguiçosa
que, desse modo, atua modificando a qualidade das experiências tudo
o que elas podem proporcionar. Outras experiências podem ser tão
desconectadas umas das outras que, embora agradáveis e até
excitantes, não se articulam cumulativamente. A energia se dissipa e a
pessoa se torna dispersa. Cada uma das experiências pode ser
vigorosa, intensa e ‘interessante’, mas, ainda assim, a falta de conexão
entre elas pode gerar artificialmente hábitos dispersivos, desintegrados
e centrífugos (DEWEY, 2010, p. 27).
Nesse sentido, para Dewey (2010, p. 38), “Toda experiência é uma força em
movimento. Seu valor só pode ser julgado com base em para que e em para onde ela se
move”, sendo também por essência, social, pois “[...] envolve contato e comunicação”
(DEWEY, 2010, p. 39). A qualidade da experiência é determinada pelo aspecto da
continuidade (influência sobre as experiências futuras) e, também, pelo aspecto da
imediaticidade que ela deve manifestar implicando em revelar se no determinado
momento em que ela está ocorrendo é agradável ou desagradável (DEWEY, 2010).
Considerando que estamos contínua e sucessivamente experienciando e que a vida é
educativa, pois sempre estaremos aprendendo, o filósofo declara que “[...] o problema
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central de uma educação baseada na experiência é selecionar o tipo de experiências
presentes que continuem a viver frutífera e criativamente nas experiências
subseqüentes” (DEWEY, 2010, p. 29).
Os planos educacionais são fundamentais para que as atividades escolares não
fiquem soltas, desconectas umas das outras, proporcionando experiências deseducativas.
Assim, considerando a relevância de o educador construir um plano educacional para
saber o que fazer e como fazer em meio ao processo de ensino aprendizagem, ele deve
ter claro o conceito de experiência, para que possa tomar “[...] decisões acerca das
matérias curriculares, dos métodos de ensino e de disciplina, bem como dos recursos
didáticos e da organização social da escola [...]” (DEWEY, 2010, p. 29). A educação
planejada em conformidade com as experiências dos alunos e, consequentemente, “[...]
com os princípios do crescimento, o que é natural” (DEWEY, 2010, p. 31), segue um
princípio aparentemente mais simples. Contudo, “Descobrir o que é realmente simples e
agir de acordo com essa descoberta é uma tarefa extremamente difícil” (DEWEY, 2010,
p. 31), pois faz parte de um processo lento e árduo de formação.
Tomando em conta essas considerações principais, na sequência tentaremos
problematizar a reação do método empírico desta perspectiva no campo de ação
educacional, tentando não negligenciar, em nossa análise, as diversas condições
desfavoráveis em relação à teoria, uma vez que há fatores singulares que tecem a
realidade educacional brasileira. Desse modo, buscamos trazer uma singela, porém
significativa contribuição reflexiva para a prática do educador leitor.
1.3 Problemática da prática docente e os ensinamentos de Dewey
Perante esta resumida exposição, uma das maiores inquietações possivelmente
surgidas na mente do leitor gira em torno da problemática de como aplicar esses
princípios a uma realidade limitada por precariedades materiais e financeiras - como no
caso de muitas escolas públicas em nosso país. Diante desta realidade, muitos
professores acabam por restringir suas aulas apenas às explicações teóricas e às
necessidades mais imediatas. Então, nos perguntamos: como o professor poderá
enriquecer as experiências pessoais de seus alunos nestes casos? Como possibilitar a
reconstrução da experiência, avançando para uma experiência reflexiva ou secundária?
E ainda, como aplicarmos esses princípios empíricos em meio ao processo de ensino42
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aprendizagem, estabelecendo relações entre a teoria e a prática no bojo dessas
determinadas situações? Sem dúvida, eis aqui um grande desafio instigante que requer
rigorosos estudos e reflexões.
Contudo, intentamos poder encontrar uma “possível” resposta de Dewey para
esta problemática ainda no capítulo supracitado. Para este autor, os objetivos da
experiência secundária que são obtidos pela reflexão,
[...] definem ou delineiam uma vereda pela qual o retorno às coisas
experienciadas é de tal sorte que o significado, o conteúdo
significativo daquilo que é experienciado ganha uma força enriquecida
e expandida por causa do caminho ou método pelo qual foi alcançado
(DEWEY, 1980, p. 8).
Considerando essa citação para a nossa realidade, uma das soluções embasada
nesses princípios advogaria o papel do professor enquanto condutor do aluno, de modo
que este aprenda a aproveitar os inúmeros conhecimentos informativos, os quais ele tem
acesso na escola e também fora dela. Assim, primeiramente, o professor deveria
considerar as experiências pessoais de cada um, fazendo com que houvesse o
estabelecimento interdisciplinar nas relações entre os conteúdos, informações e
conhecimentos. Desta forma, encontramos uma via pela qual pode ser possível ensinar
os alunos a tirar proveito de tais conhecimentos para aplicá-los cotidianamente em suas
respectivas experiências.
Seguindo este caminho, o professor deveria se esforçar para conseguir apontar
situações onde fosse possível ao aluno verificar e testar os conhecimentos
desenvolvidos em sala de aula, a fim de ampliar e enriquecer as suas experiências
ordinárias em meio à realidade de cada um. Isso porque, segundo Dewey (1980),
conforme acontece nos estudos científicos, a utilização da experiência, além de testar os
valores de quaisquer teorias, por consequência, proporciona sentido às situações
cotidianas, de maneira a torná-las mais significativas, frutíferas, lúcidas e reais. Sobre a
relevância da experiência na investigação científica, o autor nos elucida que:
Os problemas aos quais o método empírico dá lugar propiciam, em
uma palavra, oportunidades para mais investigações, que produzirão
frutos em novas e mais ricas experiências. Mas os problemas a que dá
lugar em filosofia o método não-empírico são obstáculos para a
investigação, becos sem saída; são quebra-cabeças, em vez de
problemas, resolvidos apenas pelo chamar o material original da
experiência primária de “fenomenal”, mera aparência, meras
impressões, ou por algum outro nome depreciativo (DEWEY, 1980, p.
9).
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Levando em conta essas ponderações, Dewey (1980) ainda nos explica que em
nossas pesquisas, a obtenção de resultados honestos, perante a amplitude e inteireza da
experiência, depende da utilização do método empírico. Este método, sistematicamente
defendido por ele, é o único que toma a experiência como ponto de partida para o
pensamento filosófico, não separando o objeto experienciado de suas operações e
condições. Desta maneira, o método empírico não é dualista, tendo em vista que assim
observamos uma consideração dos objetos de conhecimento como estando todos interrelacionados entre si.
[...] para o método não-empírico, objeto e sujeito, mente e matéria (ou
quaisquer outras palavras e ideias que sejam utilizadas), são separados
e independentes. Decorre daí que tenha que enfrentar o problema de
como é possível o conhecimento; como um mundo externo pode
efetuar uma mente interna; como os processos mentais podem atingir
e apreender objetos definidos em antítese a eles. Naturalmente vê-se
embaraçado para dar uma resposta, uma vez que suas premissas
tornam o fato do conhecimento tanto não-natural quanto nãoempírico. Um pensador transforma-se em materialista metafísico e
denega realidade ao mental; outro converte-se ao idealismo
psicológico e sustenta que a matéria e a força são apenas eventos
psíquicos disfarçados. As soluções são abandonadas como tarefas sem
esperança, ou então escolas diversas amontoam uma complicação
intelectual sobre outra apenas para atingir, através de um longo e
tortuoso caminho, aquilo que a experiência ingênua já possui
(DEWEY, 1980, p. 10-11).
Conforme o método empírico, o problema deve partir da experiência primária e
retornar a ela, como já foi dito. Estando o mundo das coisas intimamente conectado aos
interesses humanos – por exemplo, observa-se que “A história do desenvolvimento das
ciências físicas é a história do crescente apoderar-se, pela humanidade, de
instrumentalidades mais eficazes no lidar com as condições da vida e da ação”
(DEWEY, 1980, p. 11), os estudos específicos só conseguem beneficiar o progresso da
humanidade – especialmente no desenvolvimento das tecnologias - quando as coisas,
como os objetos físicos, aparecem destacadas e separadas apenas “temporariamente”.
Deste modo, as coisas, como os objetos científicos, são concebidas como coisas
independentes, devendo ser interpretadas de forma conexa aos acontecimentos da
experiência primária. Esta última - por estar ligada a propósitos, meios e objetos também não deve ser tratada como completa por si própria.
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Percebendo mais atentamente esta relação existente entre o gênero da vida e o da
história em relação à experiência, podemos dizer que a experiência é vida, tendo em
vista que ela está relacionada às ações humanas. Como já foi dito acima, não há
evidência de que a experiência aconteça a todo tempo e a todo lugar, mas poderíamos
dizer que os seres humanos estão a todo o momento experienciando, enquanto vivem
(DEWEY, 1959). Assim, observamos que o autor apresenta um caráter unitário em sua
visão de mundo e de sociedade, evitando fortemente qualquer postura dualista:
[...] o efeito imediato da ciência moderna foi acentuar o dualismo da
matéria e do espírito e por esse meio tornar os estudos físicos e os
humanistas como dois grupos sem conexões mútuas. [...]. A
experiência, em verdade, não conhece separação alguma entre os
interesses humanos e um mundo puramente mecânico e físico. A
morada do homem é a natureza; a execução de seus intuitos e
objetivos depende das condições naturais (DEWEY, 1959, p. 313314).
Para ele, as coisas estão todas interconectadas entre si por meio de diversos tipos
de relações. Por essas razões, o conhecimento científico pode muito melhorar,
enriquecer, elucidar e multiplicar as experiências ordinárias de cada um, de maneira a
colaborar para com o progresso da sociedade.
Destarte, nos reportando para a sala de aula de uma escola limitada em termos de
recursos financeiros para o trabalho requerido nos processos de ensino-aprendizagem,
insistimos que um dos caminhos que o professor pode efetuar seria o de tentar envolver
o conteúdo escolar na realidade das experiências ordinárias de seus alunos. Nesse caso,
umas das alternativas metodológicas que podem ser utilizadas pelo professor, como
exemplo, seria a criação de oportunidades para cada aluno se expressar, mostrar seus
respectivos pontos de vista sobre o assunto, debater o conteúdo, tentar encontrar
exemplos para as coisas que for aprendendo, dentre outros. É muito importante que o
aluno aprenda a refletir sobre os fatores que envolvem e se envolvem nas suas ações.
Dewey (1980) nos explica que, embora o ser humano naturalmente tenda a focar
suas atitudes tomando as coisas experienciadas como independentes, o simples fato de o
indivíduo vivenciar naturalmente a experiência independentemente de emoções e
objetivos preestabelecidos, torna as qualidades das coisas experienciadas concernentes
ao todo – cósmicas. O ser humano só tende a separar a experiência e as coisas
experienciadas do seu cotidiano e do ambiente em que vive, quando se envolve com
sentimentos vaidosos, egoístas e gananciosos. É importante destacar aqui que não é
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errado fazer análises, pois na análise, além de adquirirmos uma habilidade de controle,
como já dissemos acima, nela a separação é temporária. Para o filósofo:
É obvio que um mundo total, não analisado, não se presta a ser
controlado; que, pelo contrário, ele é equivalente a sujeição do homem
a tudo o que aconteça, como se ao destino. [...]. A abstração de
determinadas qualidades das coisas consideradas como devidas às
ações e estados humanos constitui o pou sto da habilidade de controle
(DEWEY, 1980, p. 12).
A crítica deweyana se apresenta em direção à redução da experiência “[...] ao
simples processo de experienciar [...]” (DEWEY, 1980, p. 11), onde a experiência e os
objetos experienciados são considerados isolados entre si e tratados como completos por
si mesmo. Não considerar que a experiência é o caminho pelo qual se torna possível
atingir a natureza, os objetos e suas funcionalidades, consiste em um grande equívoco.
Dewey (1980, p. 13) nos esclarece que “[...] o desenvolvimento do
‘subjetivismo’, representa um grande progresso”, visto que este foi muito relevante para
o desenvolvimento da humanidade, uma vez que ele tornou possível o reconhecimento
dos sujeitos como centro de suas experiências. Todavia, em seus escritos, o autor faz
uma séria critica ao subjetivismo desenfreado. Tomando esta crítica para o contexto da
sala de aula, observamos que é essencial ao professor tomar cuidado para mão misturar
tendências egoístas em meio às finalidades de ensino-aprendizagem. Isto porque se o
foco não estiver repousado sobre o objetivo de desenvolver e enriquecer as experiências
pessoais de cada aluno, os resultados de seus ensinos e suas aulas podem distanciar os
alunos das boas consequências e até mesmo podem gerar ensinamentos equivocados.
Assim, a melhoria da vida do educando, e, talvez até da sociedade, que deveria ser uma
possível consequência deste processo de ensino-aprendizagem, torna-se inviável.
Sem nenhuma dúvida, o subjetivismo nas análises reflexivas influi fortemente
nos resultados. Como exemplo, Dewey (1980) aclara que temos a tendência de nos
aprisionarmos e de nos absorvermos nas experiências primárias, de maneira a
aceitarmos suas propriedades experienciadas exatamente como se apresentam a nós, em
nossa vista. O autor nos explica que “Crenças habituais em moral, religião e política
refletem similarmente as condições sociais sob as quais se apresentam” (DEWEY,
1980, p. 13), e por isso, o nosso contexto de vida, nossas crenças e expectativas afetam
fortemente as nossas visões sobre as coisas, e por consequência, nossas crenças e
concepções. Adquirir consciência sobre esse fato é um avanço para o ser humano.
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Então descobrimos que cremos em muitas coisas não porque as coisas
são assim, mas [...] que as qualidades que atribuímos aos objetos
devem ser imputadas às nossas próprias maneiras de ter experiência
deles, e que estas, por sua vez, se devem à força das interconexões
sociais e do costume (DEWEY, 1980, p. 13).
Dewey (1980) ainda nos explica que quando dizemos ter experiência sobre
alguma coisa, na realidade estamos apenas experienciando alguns poucos elementos
desta coisa. Isso porque, neste processo, acabamos que reduzindo a experiência às
características do ato de experienciar, através da utilização dos sentidos humanos.
Quando não estamos mais diante dessa coisa que foi experienciada, podemos retornar a
ela, utilizando-se das características sensoriais delas de maneira a revivê-las
imaginativamente pelas ideias, ou seja, pela memória.
A experimentação pode ocorrer de infinitas maneiras, logo, o “objeto” da
experiência “[...] é infinitamente diferente e mais amplo do que aquilo que é afirmado
ser experienciado” (DEWEY, 1980, p. 15). Deste modo, aquilo que foi experienciado é
uma determinada parte da experiência real, e por estas razões, o relato da experiência só
pode dar conta daquilo que foi experienciado. Nesta lógica, aquilo que é experienciado
serve para testemunhar as “[...] características dos acontecimentos naturais” (DEWEY,
1980, p. 16), e por isso, a experiência pode e deve ser utilizada para esse fim.
Não podemos nos esquecer de que a consciência social é um aspecto
fundamentalmente relevante na teoria deweyana. Vejamos:
Ter sobre as coisas as mesmas idéias que os outros, assemelhar-se
espiritualmente a eles e ser, assim, verdadeiramente, membro de um
grupo social, consiste, por conseguinte, em dar às coisas e aos atos as
mesmas significações que os outros dão. De outro modo não haveria
compreensão comum nem vida social (DEWEY, 1959, p. 32).
Nesse sentido, considerando o subjetivismo presente nos indivíduos principalmente em relação às diversas formas em que as experiências podem ocorrer –
no processo de ensino-aprendizagem, o professor deve promover situações
participativas em todos os momentos de suas aulas, de forma a proporcionar
oportunidades para que seus alunos se expressem e compartilhem os conhecimentos
entre si, visto que esses modos de compartilhamento de experiências e conhecimentos,
“intercâmbios
sociais”
(DEWEY,
1959),
enriquecerão
significativamente
experiências de cada um.
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as
No âmbito da concepção de experiência, as experiências estéticas e morais são
muito importantes, tendo em vista que suas características são reais, ou seja, elas
caracterizam uma dada realidade, daí serem verdadeiras sob a perspectiva das
experiências intelectuais. Assim, fantasia, imaginação e desejo tornam-se relevantes na
teoria filosófica, e devem ser levadas em conta, pois considerando que fazem parte da
vida social, enquadram-se entre os problemas dos seres humanos no mundo. Portanto,
como o autor diz, “Ilusões são ilusões, mas a ocorrência de ilusões não é ilusão, e sim
uma genuína realidade. Aquilo que se encontra ‘na’ experiência estende-se muito além
daquilo que a qualquer tempo é conhecido” (DEWEY, 1980, p. 17, grifos do autor).
Podemos concluir deste pensamento que a existência da subjetividade, acima de tudo, é
um fato, e por este motivo, merece atenção.
Dewey (1980) ainda nos explica que do mesmo modo em que devemos entender
o valor das coisas notáveis, diferentes, perceptíveis, patentes e óbvias, também devemos
nos atentar para a abundância das coisas monótonas, obscuras, crepusculares e escuras,
uma vez que elas também fazem parte do processo individual de experienciar. “A
existência da ignorância tanto quanto da sabedoria, do erro e até da insanidade, tanto
quanto da verdade, será tomada em consideração” (DEWEY, 1980, p. 17).
Observando esses apontamentos, vemos que coisas e expressões que são
consideradas sem importância ou negativas podem ser muito significativas para ajudar
na melhoria do processo de ensino-aprendizagem a partir do momento em que há uma
busca pelo entendimento delas – por exemplo, o “erro” do aluno em uma avaliação pode
indicar hipóteses da lógica de seu pensamento, assim como também, aspectos que
necessitam ser melhorados e enfatizados nas práticas futuras do trabalho docente.
O autor explica que:
[...] qualquer objeto manifesto é portador de conseqüências possíveis
que estão ocultas; a atividade mais manifesta possui componentes que
não são explícitos. Exercitemos o pensamento o quanto possamos e
nem assim todas as conseqüências poderão ser previstas ou tornadas
parte expressa ou conhecida da reflexão e da decisão (DEWEY, 1980,
p. 17).
Percebemos com frequência que, nas discussões a respeito do método empírico,
muitos teóricos cometem o equívoco de entender que a experiência deva ser concebida
como um modo de conhecer. Criticando tal pensamento, o qual Dewey (1980)
denomina de “intelectualismo arbitrário”, o autor nos adverte que “[...] as coisas são
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objetos para ser manuseados, utilizados, trabalhados, gozados e sofridos, mais do que
coisas para ser conhecidas. Elas são coisas tidas antes de serem coisas conhecidas”
(DEWEY, 1980, p. 17, grifos do autor). Podemos então perceber mais uma vez
expresso nessa frase, o caráter humano e social da experiência, dizendo implicitamente
que o conhecimento deve elucidar nossas práticas cotidianas no dia-a-dia, e os fins
devem repousar no desejo pelo alcance de aperfeiçoamento, melhora e progresso. É
nesse sentido que os conhecimentos devem nos ser “úteis”.
O agir tem que acontecer de maneira inteligente, reflexiva e consciente, em
razão de que o conhecimento pode melhorar e enriquecer nossas experiências,
especialmente as experiências “brutas” (DEWEY, 1980). Como nosso filósofo
constantemente repete, os modos de experienciar são amplos e infinitos, além de se
constituírem na única maneira pela qual seja possível alcançar-se a natureza.
A amplitude e a infinidade das experiências ordinárias nos obrigam a escolher
materiais e a fazer seleções, em conformidade com nossos fins. Os aspectos que não são
selecionados acabam sendo deixados de lado, visto que no momento eles não estão
sendo importantes para as intencionalidades em voga. Embora muitos filósofos não
admitam essa amplitude das experiências primárias, eles mesmos acabam por praticar
essas seleções. Devido as nossas preocupações, as escolhas, as quais são
simplificadoras, assinalam “[...] um interesse moral, no sentido amplo de preocupação
com o que é bom” (DEWEY, 1980, p. 21, grifos do autor), e, sendo assim, essas
escolhas acabam por ser inevitáveis. O problema surge “[...] quando a presença e a
operação da escolha são ocultadas, disfarçadas, negadas” (DEWEY, 1980, p. 22), pois,
em decorrência de tal desonestidade, o disfarce e a negação (das escolhas) originam
muitas diferenças, impossibilitando então uma real validação do experimento – como as
tendências egoístas citadas acima.
Uma das principais preocupações do pesquisador deve consistir na busca por
realizações de escolhas mais significativas, o tanto quanto possível. Isso porque o
pesquisador deve se esforçar por buscar estabelecer relações entre as razões destas
escolhas e às suas consequências. Assim, no contexto de sala de aula, igualmente, o
professor deve procurar fazer as melhores escolhas de conteúdos, examinando
cuidadosamente o motivo de tê-las preferido em detrimento de outras, relacionando
então os conhecimentos às suas razões e às suas consequências para a vida dos seus
alunos com o fito de aperfeiçoar o agir e o pensar ordinário deles, proporcionando
consciência sobre o seu agir.
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Embora o homem tenda naturalmente a adotar como realidade aquilo que para
ele possua grande valor, esse fato não traz problemas para a experiência comum, visto
que a experiência está continuamente voltando-se “[...] para outras coisas que,
apresentando igualmente valor atual, são igualmente reais” (DEWEY, 1980, p. 20).
Portanto, uma das principais razões pelas quais a experiência deve se voltar à natureza,
se dá pelo fato de que “A experiência bruta está carregada do emaranhado e do
complexo” (DEWEY, 1980, p. 20), tanto que a filosofia tende a buscar estabilidade e
descanso, sem problemas e surpresas - por isso, não é difícil observarmos uma
predileção em muitos pesquisadores pelas questões matemáticas, diante da maior
estabilidade que este campo de conhecimentos oferece.
Dewey (1980) explica que, embora o método empírico não garanta que todas as
coisas relevantes a serem descobertas sejam encontradas, mostradas ou comunicadas
por meio de sua utilização, ele expõe detalhadamente o caminho percorrido pelo
pesquisador ao encontrar os resultados que consiga descobrir. De tal modo, outras
pessoas podem percorrer o mesmo caminho, autenticando e ainda ampliando tais
conclusões com total segurança.
A clarificação dos valores no âmbito da experiência primária, “tal como se
apresenta”, para as intenções de análise e de controle são mínimos, visto que ela se
apresenta cheia de fatores que necessitam de análise e controle. Essa deficiência é
comprovada exemplarmente pela existência da reflexão. Outro exemplo também é
observado na física e na astronomia antiga, as quais possuíam pouco valor científico,
devido “[...] a falta de aparelhagem e de técnicas de análise experimental [...]”
(DEWEY, 1980, p. 24), por apresentarem as coisas da experiência primária de maneira
como ocorriam naturalmente. Então, podemos entender que, para Dewey (1980), é
necessário desenvolvermos a experiência, experienciarmos mais para testarmos nossas
conclusões, avaliando se as coisas são como estão se apresentando a nós em
determinada circunstância.
Diante do exposto, podemos dizer que, talvez seja pelo desconhecimento de
dados precisos sobre a experiência primária ou mesmo por simplesmente não
considerarem esses dados, muitos teóricos não utilizam os estudos empíricos, acabando
por engendrarem uma concepção preconceituosa contra estes estudos, adverte-nos o
autor. Esse fato acaba por gerar um paradoxo, pois se considerarmos o “pré-conceito”
no sentido do termo, concluiremos que há a necessidade de estudos em relação a tal
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assunto, uma vez que o conceito acaba sendo formado antes de uma análise cuidadosa.
Esta postura ocorre também entre muitos docentes, sustentando-se, no caso da escola
pública, tanto na falta de investimento em condições mínimas de ensino, quanto na má
formação profissional, em muitos dos casos. Entretanto, sendo a educação escolar uma
esfera social, muito afetada pela realidade concreta – na qual se desenvolvem constantes
interações, ações, reações, comunicações, não podemos desconsiderar a necessidade de
tais preocupações.
A primeira exigência do método empírico reclama que os métodos e as
produções refinadas devam se ligar à experiência primária, a fim de que se reconheça a
origem das necessidades e dos problemas. A segunda exigência reivindica “[...] que os
métodos secundários e as conclusões secundárias sejam trazidos às coisas da
experiência ordinária, em toda a sua rudeza e crueza, a fim de que sejam verificados”
(DEWEY, 1980, p. 26). Por meio deste procedimento, as metodologias de reflexão
analítica engendram elementos, os quais proporcionam designações, observações e
experimentos futuros. Para nosso filósofo:
Nenhum relato científico receberia atenção se não descrevesse a
aparelhagem através da qual os experimentos foram levados a efeito e
os resultados obtidos; não que tal aparelhagem seja venerada, mas
porque tal procedimento diz a outros pesquisadores como deverão
trabalhar para obter resultados que estarão ou não de acordo, na nova
experiência, com os resultados obtidos previamente, e para portanto
confirmar, modificar e retificar a primeira experiência. O resultado
científico registrado é de fato a designação de um método a ser
seguido e a predição daquilo que será encontrado quando observações
especificadas forem cumpridas. Isto é tudo o que uma filosofia pode
ser ou fazer (DEWEY, 1980, p. 26, grifos do autor).
Considerações Finais
É extremamente complicado dominarmos um entendimento preciso e livre de
dificuldades quando tratamos da relação teoria e prática na realidade do contexto de
ensino-aprendizagem. Não existem receitas prontas. Frente à diversidade e
complexidade de cada aluno singularmente, o professor vai se deparando com novos e
exclusivos desafios a cada dia (DEWEY, 2010). Perante as mudanças do mundo,
sempre haverá uma nova necessidade, um novo problema e diversos desafios
cotidianos. Assim, a dinamicidade do mundo é o ambiente no qual o professor participa
como um fator integrante, mas em relação ao qual busca elaborar compreensão e se
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instrumentalizar para o controle de situações que o levaria a uma experiência de vida à
deriva. Por estas razões, a necessidade de pesquisa é constante na carreira do professor,
ainda mais em meio a contextos onde houver empecilhos ao processo.
Na escola pública brasileira, no bojo dos discursos da prática docente são
recorrentes as queixas dos professores quanto às condições materiais com as quais
convivem enquanto profissionais. Encontramos muitas vezes nesse sentido, lamentos de
que tais situações não permitem mudanças de situações satisfatórias que são idealizadas.
Das ideias deweyanas que foram expostas no 1º capítulo de Experiência e Natureza,
podemos extrair algumas lições para a prática docente, as quais muito podem ajudar a
melhorar e aperfeiçoar o trabalho educacional dos professores.
De acordo com a concepção deweyana, considerando que os seres humanos
estão a todo o tempo experienciando e por este motivo, a experiência é vida,
entendemos que, um dos caminhos que o professor pode seguir, buscando melhorar
qualitativamente o processo de ensino-aprendizagem, em meio aos seus desafios,
consiste na tentativa de envolver o conteúdo escolar na realidade das experiências
ordinárias de seus alunos. Por esta via, é possível mostrar que existe relação entre
ambos, conteúdos escolares e vida cotidiana. Desta maneira, o professor pode ensinar
esses alunos a tirar proveito desses conhecimentos, compartilhá-los entre si, somandoos aos conhecimentos adquiridos fora da escola, para aplicá-los em suas respectivas
vidas cotidianas. O aluno deve aprender a pensar suas ações. Apenas como exemplo
podemos aludir a uma situação em, a partir de sua criatividade, o professor poderia
utilizar como instrumentos metodológicos, a criação de oportunidades para os alunos se
expressarem, mostrarem seus respectivos pontos de vista sobre o assunto, debaterem o
conteúdo, exemplificarem as coisas que forem aprendendo, como jogos e brincadeiras,
dentre outras tantas maneiras. E ainda, em conformidade com uma das defesas de
Dewey (1980), que a nosso ver é muito relevante, o professor deve tomar cuidado para
não misturar tendências egoístas ou de um individualismo exacerbado em meio às
finalidades de ensino-aprendizagem. Isso porque se o foco não estiver repousado sobre
o objetivo de progresso social, no sentido de crescimento e enriquecimento das
experiências pessoais de cada e de todos os alunos, os resultados de seus ensinamentos e
suas aulas podem distanciá-los das boas consequências e até mesmo serem equivocados.
É importante enfatizar aqui que isso não significa ao professor aceitar
tacitamente as condições limitadas e precárias que lhes são impostas, mas sim por meio
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de seu trabalho e com a análise reflexiva das condições, mobilizar a mudança, tendo em
vista o desenvolvimento qualitativo da sociedade. A partir do momento em que as
experiências dos alunos vão se enriquecendo, entendemos que mudanças significativas
podem se desenvolver no cotidiano em que eles convivem, visto que o ser humano é um
ser social, e as suas atividades, em grande parte, envolvem socialmente outras pessoas.
É a partir dessa compreensão que, entendemos, podemos impulsionar momentos para
uma possível transformação social.
Referências:
DEWEY, John. Democracia e Educação. Trad. Anísio Teixeira. 3. ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional. 1959.
______. Experiência e Educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2010. (Coleção Textos Fundantes de Educação).
______. Experiência e Natureza. Trad. Otávio Rodrigues Paes Leme. In: CIVITA, Vitor
(ed.). Dewey. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Cap. 1, p. 3-28. (Os Pensadores).
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Dossiê Hans Ulrich Gumbrecht
SEM CULPA DE VENCER, SEM MEDO DE SOFRER
Para mim, não é só dar o passe perfeito, no momento certo, que muda tudo.
O que muda tudo é a busca pela superação.
Alessandra Nascimento
(jogadora da equipe feminina brasileira de Handebol,
eleita a melhor ponta direita dos jogos de Londres)
Susana de Castro (UFRJ/PPGF)
Resumo: o esporte de alta performance é uma das poucas atividades das sociedades
contemporâneas na qual tanto espectadores quanto atletas podem xingar o adversário,
desejar que lhes ocorram as piores coisas, sem se sentir culpados. O esporte é, portanto,
um local especial em que a busca pela excelência não vem seguida pela exigência
altruísta moral de respeito pelo outro. O que explicaria o fascínio pelos esportes seria
essa possibilidade de elogiarmos sem culpa o uso da força e da coragem? Os atletas e os
fãs do esporte guardam, é claro, em regra, a devida distância emocional dos
acontecimentos. Sem essa distância emocional o evento esportivo deixaria de ser
espetáculo e transformar-se-ia em conflito aberto
Palavras chaves: arête; fascínio; esportes competitivos; performances; belo.
Abstract: the sports of high performance is one of the few activities in today’s societies
in which both spectators and athletes can bad mouthing ones opponent without feeling
guilty about that. Professional Sports constitutes a special place where the search for
excellence is not followed by an altruistic and moral demand of respect towards others.
What would explain today’s fascination of sports would be this possibility of
experiencing ‘noble’ values, that is, the possibility of praising the exhibition of force
and courage without feeling guilty about that? Athletes and fans keep the right
emotional distance from the events. Without such emotional distance the sport event
would be no more an exhibition to be an open conflict.
Key-words: arête; fascination; sports of high-performance; beauty.
Por que jogos e competições esportivas atraem tantos espectadores ao redor do
globo? Uma resposta corriqueira entre intelectuais é atribuir o fascínio pelos esportes
aos mecanismos mercadológicos de sedução do sistema capitalista. Dessa perspectiva,
os espectadores e apreciadores dos esportes seriam, de uma maneira geral, vitimas de
um modelo de relações sociais alienantes (ao invés de confrontar seus próprios
problemas, ‘mergulhariam’ no prazer anestesiante do espetáculo) ou usariam os eventos
esportivos, em particular os jogos entre equipes, como válvula de escape para suas
frustrações. Não creio que esse tipo de enfoque de fato explique o fenômeno do fascínio
pelos esportes, porque mais refletiria uma postura distanciada, de alguém que não vê
com bons olhos o compartilhamento coletivo do júbilo ou da tristeza. Na verdade, o
clamor de júbilo ou de tristeza em uníssono da torcida parece significar para os incautos
críticos a ameaça da perda momentânea de suas, a duras penas conquistadas,
individualidades. Penso podermos dizer que toda tentativa de explicação do fascínio
despertado no público pelas disputas esportivas que parta de um distanciamento crítico
não satisfará seus fãs. Para que possamos dar aos fãs dos esportes uma explicação para o
fascínio que sentem, é necessário abandonarmos o paradigma crítico, isto é,
abandonarmos o ponto de partida racionalista moderno que privilegia o mental sobre o
emocional ou corpóreo.
Há no horizonte filosófico contemporâneo uma miríade de autores que buscam
explicar os fenômenos sociais a partir de uma perspectiva não realista, ou não
universalista. Em comum a todos está a convicção de que as ditas verdades científicas
ou filosóficas, na verdade, não escapam à dimensão histórica da vida, são, portanto,
fruto das contingências e do momento. Apesar de descartarem os universalismos
positivistas, tais filósofos colocam na linguagem o papel que antes era ocupado pelas
representações como lócus da verdade. Assim, não obstante o caráter não racionalista de
seus estudos, estes não nos servem para explicar, por si sós, fenômenos como fascínio e
júbilo coletivos. Se quisermos explicar o fascínio pelos esportes devemos buscar
ferramentas conceituais que descrevam tal fascínio sem buscar necessariamente dar-lhe
sentido ou oferece-lhe interpretação. Temos que buscar descrevê-lo como torcedores e
não como analistas ou comentaristas de esportes. Buscamos, aqui, modos de descrever
o fascínio pelos fenômenos esportivos que consigam apreender de um modo sintético o
que ocorre conosco quando somos invadidos pela euforia diante das belas jogadas ou
das extraordinárias performances dos atletas. Faz-se necessário que não busquemos
explicar os eventos esportivos para além de sua efetividade ou materialidade. Ao
contrário, nosso objetivo é encontrar ferramentas teóricas que nos ajudem a descrever o
momento do jubilo ou da tristeza, coletivo ou individual, com o esporte.
Seguindo Hans Gumbrecht (2007, pp. 37-41) e Roland Barthes (2009, p.98),
56
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
podemos, primeiramente, explicar o fascínio pelos esportes a partir da estética, pois se
tratam aqui efetivamente de acontecimentos aos quais predicamos com frequência o
adjetivo ‘belo’. Ainda que o belo provoque a formulação de um juízo de gosto, portanto,
aparentemente de uma opinião particular, esse tipo de juízo obedece, como mostrou
Kant, a três regras principais: (i) “satisfação pura desinteressada”; (ii) “não está baseado
em conceitos nem os visa”; e (iii) responde a uma “universalidade subjetiva” (apud
Gumbrecht, 2007). No primeiro caso, quando descrevemos uma performance esportiva
como bela, isso significa que estamos em uma situação em que não estamos esperando
nenhum lucro com tal performance, ou que ela tenha um efeito concreto em nossas
vidas. No segundo caso, não precisamos estar municiados de conceitos para identificar
um evento ou uma jogada como belos, apenas a sensação interna de prazer ou desprazer
serve de base para nosso juízo de gosto. Por último, no espetáculo esportivo, assim
como no artístico, estamos separados das relações hierárquicas cotidianas, por isso
temos a expectativa de que todos que estejam vendo o mesmo fenômeno concordem
com nossa avaliação de que se trata de um acontecimento belo. Para Kant, “a beleza é a
forma da intencionalidade de um objeto, que é percebido nele sem a representação de
um fim”. O que torna um objeto ou um desempenho esportivo belo é o fato de ele ser
realizado sem intencionalidade exterior aos próprios movimentos, isto é, não
representam em si um objetivo para a nossa vida diária, mas a harmonia intrínseca ao
ordenamento dos movimentos produz uma impressão de intencionalidade (Gumbrecht,
2007, p. 40). Barthes chama de graciosidade a beleza no esporte e a associa ao estilo do
atleta. Ainda que, por exemplo, o espectador de uma tourada saiba qual será o seu
desfecho, nem por isso deixa de admirar a forma com a qual o toureiro introduz “ritmo
na fatalidade”. O fato de a coragem do toureiro não ser desordenada, cada um de seus
movimentos segue uma coreografia própria a sua arte, imprime ao espetáculo a
“aparência de liberdade”. A combinação entre fatalidade e liberdade é a fórmula
presente nas tragédias gregas. Tal qual nos espetáculos gregos, o espectador das
touradas experimenta a possibilidade de não ser meramente um joguete do destino
implacável (retornaremos ao tema ao final).
Mas a presença do belo na performance esportiva não é suficiente para que a
possamos classificar como obra de arte, em sentido estrito, visto que, diferente de um
espetáculo artístico, como balé ou ópera, o desempenho esportivo é irrepetitível.
Precisamos, assim, encontrar critérios que expliquem porque a efemeridade das jogadas
e das atuações dos atletas não nos causa desinteresse, mas sim atração.
57
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Ao tentar explicar o efeito do efêmero, da impossibilidade de repetição,
esbarramos em um ponto crucial para o entendimento da atração pelos esportes
competitivos e de alta performance, a saber, a ‘presença’. Gumbrecht usa este termo
(2007, p. 50 e seg.) para descrever o estado de absoluta unidade entre o atleta, seu corpo
e seu equipamento -- seja este um bastão, uma máquina, uma bola ou um animal --, e
entre o(s) espectador(es) e o atleta. ‘Total unidade’ pode ser também descrita como
absoluta concentração, sem que se queira dizer com isso que o atleta ou o espectador
estejam analisando ou interpretando o acontecimento. Ao contrário, nesses momentos
especiais em que ocorrem os fenômenos únicos e não repetíveis das jogadas ou das
performances extraordinárias, a condição para que elas ocorram é que os atletas estejam
em um estado pré-lógico, pré-cognitivo, não distanciado, em total simbiose com os
elementos materiais e corpóreos necessários para a sua atuação. Da parte do espectador
há também uma espera atenta, uma espera para o surgimento do extraordinário. O
espectador, torcedor ou não, que vai ao espetáculo esportivo assistir o atleta disputar um
torneio certamente imagina que possa vir a ser testemunha de uma quebra de recorde,
mas para que ele/ela testemunhe o extraordinário no seu exato momento de ocorrência,
precisa estar ‘aberto’ para que isso aconteça. Estar aberto para que um evento
extraordinário aconteça não significa estar analisando ou calculando os movimentos dos
atletas, mas sim colocar-se em um estado de total comunhão com suas ações. Essa
comunhão entre espectador, atleta e suas ações é o mesmo tipo de comunhão que o
atleta sente com seu equipamento e as partes do seu corpo. Nem o atleta nem o
espectador estão pensando, ‘refletindo’ sobre suas ações, distanciado e alheio à
efetividade, ao seu entorno material. Sem essa base física e material, o extraordinário da
performance atlética excelente não surgiria, mas o contrário também é verdadeiro, sem a
dimensão do alcance da excelência através da atuação humana, o material não se
sobressairia no meio de outros materiais. Mas é preciso sublinhar que a expectativa de
atletas e espectadores é a da vitória do indivíduo sobre a resistência física imposta pelas
condições de seu desafio. Assim, o corredor automobilístico não só precisa conhecer em
detalhes o funcionamento de seu carro, mas também memorizar cada detalhe do
percurso para saber tirar o melhor do seu carro na disputa contra o cronometro; ou, na
etapa da montanha, o ciclista da Tour de France deve superar a força gravitacional que o
empurra implacavelmente para baixo (Barthes, 2009).
Além da ‘beleza’ e da ‘presença na efemeridade’, o que também caracteriza a
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
performance atlética é a ‘excelência do desempenho’. Uma das técnicas de treinamento
empregadas pelo grande velocista de natação, o russo Alexander Popov, era mentalizar o
tempo fora da piscina. Ele ‘calculava’, sem uso de cronômetro, o índice a ser atingido
na piscina. Há outros tipos de performances cuja finalidade é a consecução de uma
atividade ou ação com vistas à transformação da realidade (Gumbrecht, 2007, p. 56). O
jogador e o atleta não almejam transformar a sociedade, nem mesmo o esporte; a
obediência às regras próprias a cada modalidade de esporte é condição sine qua non
para que possamos, por exemplo, comparar os desempenhos dos atletas quando estes
não ocorrem no mesmo local. Diferente de outros tipos de performances, o que
caracteriza a peformance esportiva nas modalidades profissionais seria, então, a busca
da excelência, da arête.
‘Arête’ é termo grego que transposto para o latim virou ‘virtus’ e com o tempo
ganhou um significado moral, oriundo do cristianismo, ausente na expressão original.
‘Arête’ era entendida pelos gregos como o exercício excelente de uma atividade na qual
o indivíduo se sobressaia. Por exemplo, a arête de um político é o seu apurado senso de
justiça, a de um citarista, a alta habilidade no manuseio do instrumento, a de um
soldado, a força e a coragem no combate, e assim por diante. Não apenas nos esportes,
mas em todas as práticas públicas, esperava-se que o cidadão buscasse a excelência.
Para ter um parâmetro que comprovasse a excelência de sua práxis era preciso que ele
se medisse sempre com indivíduos tão bons quanto ele. Um exemplo clássico é o da luta
entre Heitor e Aquiles na Ilíada. Os dois mais bravos guerreiros, o maior herói entre os
gregos e o maior entre os troianos, apesar de estarem em campos opostos, sentem que se
valorizam pela oportunidade de medir suas forças entre si – lutar contra adversário
inferior seria humilhante para qualquer um dos dois.
Ainda que hoje a população de uma maneira geral, pelo menos nas grandes
cidades, não compartilhe dos dogmas religiosos, os valores que ainda prevalecem, como
mostrado por Nietzsche na última fase da sua obra, aquela na qual se dedicou à tarefa de
‘transvaloração’ (Nietzsche: 2011; s/d), são oriundos da moral judaico-cristã. Nesse
sentido, quando falamos que alguém é virtuoso estamos automaticamente elogiando o
seu altruísmo. A civilização ocidental está fundada na possibilidade forjada pelo
dispositivo judaico-cristão universalizado, segundo o qual o ser humano é naturalmente
social, e, portanto, a sua verdadeira natureza é refletida na sua obediência a normas e
preceitos. Para o filósofo alemão trata-se de uma ‘segunda’ natureza, artificial, criada
com a finalidade de tornar o ser humano um animal gregário, apto à vida em sociedade
59
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
(Barros, 2002, p.86). Essa ficção universalista rechaça a verdadeira natureza animal do
ser humano, tornando-o um animal domesticado, não ativo, e enfraquecido. Aquele que
segue em primeiro lugar os seus instintos é tachado de egoísta e imoral. Esse estado
artificial de segunda natureza social ‘adoeceria’ o homem, já que não poderia seguir sua
natureza instintual.
Minha hipótese é que dificilmente podemos viver em sociedade sem ceder a essa
ficção normativa, mas nem por isso deixamos de procurar criar espaços nos quais
possamos dar vazão aos nossos instintos. Um desses lugares são os esportes de alta
performance. Seja como praticante, seja como espectador, buscamos através dos
esportes os acontecimentos extraordinários, aqueles nos quais há superação, disputa,
adrenalina, tensão. Os valores que estão presentes aqui estão mais próximos da noção
grega de arête. Na disputa só há um vencedor, mas muitas vezes até o perdedor, pode
provocar a comoção e o estado de elevação emocional coletiva. O Brasil inteiro chorou
a derrota, na Copa do Mundo de Futebol de 1950 no Maracanã, da seleção brasileira
para a equipe do Uruguai. O que ficou na lembrança sobre esse dia não foi a
performance do time vitorioso, mas sim nossa derrota. Por outro lado, a medalha de
ouro da seleção feminina de vôlei na última olimpíada, a de Londres, foi especialmente
comemorada. A equipe chegou à final desacreditada, apesar da inspirada vitória no tiebreak contra a fortíssima seleção russa. Ninguém imaginava que a seleção feminina
pudesse ganhar do selecionado americano, considerado o melhor do torneio. Para a
surpresa das próprias jogadoras, a vitória ocorreu. Não foi porque as americanas
jogaram mal que as brasileiras ganharam, as brasileiras ganharam porque não deixaram
o time americano jogar o seu jogo.
Apesar de mobilizar as paixões de todos os envolvidos, atletas e torcedores dos
esportes guardam, é claro, a devida distância emocional dos acontecimentos esportivos;
não levam tudo para o lado pessoal1. Sem essa distancia emocional o evento esportivo
deixaria de ser um espetáculo e passaria a ser um conflito aberto (Barthes, 2009, p.
104). No campo e nas quadras dos esportes coletivos o que contribui para a distância
emocional necessária dos jogadores com relação aos acontecimentos do jogo é a
presença de um elemento intermediário que faz com que as equipes não entrem em
confronto direto: a bola em seus diferentes formatos, oval, redonda, disco, e diferentes
1
Deixei propositadamente de lado a discussão sobre a violência nos estádios, a atuação das torcidas
organizadas e as batalhas campais nas arquibancadas. Esse fenômeno necessitaria de outro tipo de análise,
talvez mais sociológica ou histórica do que filosófica.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
materiais, de couro, borracha, fibra acrílica. Além, é claro, da obediência a regras, da
presença dos juízes, do recurso aos cartões e às suspensões etc.
Ninguém busca resolver na quadra um assunto pessoal, mas não obstante isso,
no calor do jogo e da disputa, todas as provocações e xingamentos são validos,
permitidos até como formas de aliviar a tensão insuportável. São memoráveis as
constantes provocações das equipes cubanas e brasileiras de vôlei feminino quando suas
jogadoras se encontravam na rede. E quem não se lembra da cabeçada de Zidane em
Materazzi? Um verdadeiro ‘touro’ em ação! No caso de Zidane, entretanto, a distancia
foi rompida e o que antes era uma disputa entre dois jogadores de seleções adversárias,
passou a ser a disputa de dois homens pela honra da irmã de um deles. Só podia acabar
mal, pois apesar do calor da disputa levar a provocações entre equipes, é necessário
manter a mente tranquila, e, consequentemente, as emoções sob controle, para
aproveitar os erros dos adversários ou aprimorar o desempenho. Nos esportes
individuais essa tranquilidade mental faz-se ainda mais necessária, como o demonstram
as performances dos jogadores de tênis, dos nadadores, ou dos pilotos de Fórmula 1.
Na busca por critérios que descrevessem o fenômeno do fascínio pelos esportes
a partir da perspectiva do torcedor e do atleta, e não do comentarista, nos deparamos
com três conceitos. Os esportes de alta performance nos fascinam porque são belos,
porque captam a presença na efemeridade e finalmente porque mostram a excelência do
desempenho. Neste percurso esbarramos na noção grega de arête e mostramos como o
esporte resgata um modelo de existência anterior ao predomínio dos valores judáicocristãos. Aqui, sobrepor-se ao outro não é motivo de culpa, mas razão de existência.
Para finalizar, gostaria de retomar a aproximação feita por Barthes entre esporte e
tragédia.
Quando analisa a performance de um toureiro, Barthes diz que o espectador fica
fascinado com a atuação do toureiro porque este imprime às suas ações a aparência de
liberdade. Desde a perspectiva trágica, a aparência de liberdade significa o fato de o
herói (no qual o espectador se projeta) ter conhecimento da impossibilidade de
contornar seu destino inexorável, a morte, e, no entanto, fornecer a suas ações o brilho,
a aparência de ‘liberdade’, isto é, de possibilidade de assenhorear-se da morte. Assim, o
espectador sente júbilo (catarse) com o espetáculo esportivo porque vê no atleta/herói o
vencedor, ainda que aparente, efêmero e ilusório, de um partida em que, na verdade,
nunca venceremos.
O heroísmo do atleta está também na sua capacidade de enfrentar a dor e o
61
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
sofrimento como condição para o júbilo da vitória. Mas mesmo o amargor da derrota
não é um xingamento contra a vida. Ao contrário dos defensores do modelo ‘viagraprozac’ de vida – tão presente no american way of life difundido pela indústria de massa
--, a tristeza e melancolia são constitutivas da vida. Os happy-ends das indústrias
cinematográficas e de propaganda ‘vendem’ a ideia de que por vivermos em uma
sociedade democrática, devemos ser obrigatoriamente felizes, pois vivemos em uma
comunidade colaborativa de iguais, protegidos pelas instituições que garantem nosso
bem estar social, isto é, nossa dose certa de lazer, trabalho e saúde: “Sociedades
modernas e igualitárias, no entanto, sejam de posicionamento político democrático ou
autoritário, baseiam-se sempre na premissa de que estão tornando a vida mais feliz.”
(Warshow, 2012, p.109). Esta ideologia do bem estar das sociedades contemporâneas,
nomeada por Michel Foucault de ‘bio poder’ (1985), está presente hoje na forma com a
qual governos e indústria fazem campanha a favor da prática de esportes como
sinônimo de saúde.
Apesar de a prática esportiva estar associada, de fato, a hábitos saudáveis, todos
sabemos que os esportes de alta performance cobram um preço alto aos atletas. Para
atingir o ápice de suas carreiras, atletas fora de série como Cassius Clay, alias
Muhammad Ali, e Ayrton Senna, pagaram preço altíssimo. O primeiro, com a saúde, e o
segundo, com a vida. Outros, como Garrincha e João do Pulo amargaram o ostracismo
pós-auge e pós-pódio.
Referências:
BARTHES, Roland. “O que é o esporte?”. In: Serrote. São Paulo: IMS, 2009. Vol. 3. pp.
94-105.
BARROS, Fernando de Moraes. A maldição transvalorada – o problema da civilização
em O Anticristo de Nietzsche. São Paulo: discurso editorial, Unijui, 2002.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. A vontade de Saber. Trad. Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Graal, 1985.
GUMBRECHT, Hans U. Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
------------------. Anti-Cristo. Trad. Carlos Grifo. Lisboa: Editorial Presença, s/d.
WARSHOW, Robert. “O gângster como herói trágico”. In: Serrote. São Paulo: IMS,
2012. Vol. 3. pp. 108-115.
63
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
HISTÓRIA E MODERNIDADE EM HANS ULRICH GUMBRECHT
Marcelo de Mello Rangel**
Thamara de Oliveira Rodrigues***
Resumo:
Neste artigo, nosso objetivo é o de reconstituir a descrição que Gumbrecht faz da modernidade a
fim de compreender parte significativa de suas reflexões sobre a História. Nossa análise será
realizada, em especial, a partir do texto – “Cascatas de modernidade”, introdução ao seu livro
“Modernização dos Sentidos”. Explicitaremos as seguintes ideias sobre o trabalho do autor: 1há uma descontinuidade entre homem (consciência) e real; 2- o real também se mobiliza de
maneira a desestabilizar os significados e sentidos que constituem determinado mundo e 3- a
história (investigação do passado) também se torna fundamental no que concerne à
possibilidade de evidenciação do que o real (ou a história) é, e isto através da descrição dos
comportamentos teóricos e práticos dos homens no passado, de suas compreensões e estratégias.
Palavras-chave: Gumbrecht, teoria da história, filosofia da história
Abstract:
In this article, our objective is to reconstruct the description that Gumbrecht makes of
modernity, in order to understand significant part of his reflections on history. Our analysis will
be performed, in particular, from the text – “Cascatas de modernidade”, the introduction to his
book "Modernização dos Sentidos." We will explain the following ideas about the work of the
author: 1 - there is a discontinuity among man (conscience) and real; 2 - the real also mobilized
in order to destabilize the meanings and senses that are given world, and 3 - the history
(research of the past ) also becomes important with regard to the possibility of disclosure of the
real (or history) is, and this behavior by describing the theoretical and practical men in the past,
their insights and strategies.
Keywords: Gumbrecht, theory of history, philosophy of history.
Neste artigo, nosso primeiro objetivo é o de reconstituir a descrição que
Gumbrecht faz da modernidade, e isto porque esse exercício nos possibilitará entender
parte significativa de suas reflexões sobre a História. Nossa análise será realizada, em
especial, a partir do texto – “Cascatas de modernidade”, que serve de introdução ao seu
livro “Modernização dos Sentidos”. A partir da reconstrução da história da
modernidade, Gumbrecht nos permite acompanhar e compreender que: 1- há uma
descontinuidade entre homem (consciência) e real; 2- o real também se mobiliza de
maneira a desestabilizar os significados e sentidos que constituem determinado mundo e

Agradecemos a Susana de Castro pelo convite, e a Valdei Lopes de Araujo e a Hans Ulrich Gumbrecht
pelo carinho e diálogo.
**
Professor Doutor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto,
beneficiário de auxílio financeiro da CAPES – Brasil.
***
Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.
3- a história (investigação do passado) também se torna fundamental no que concerne à
possibilidade de evidenciação do que o real (ou a história) é, e isto através da descrição
dos comportamentos teóricos e práticos dos homens no passado, de suas compreensões
e estratégias.1 Em outras palavras, a reconstituição histórica torna-se decisiva para
Gumbrecht no que diz respeito à compreensão e à lembrança da dinâmica própria ao
real (ou à história), tornando possível aos homens a composição de estratégias
adequadas à sua existência.
Gumbrecht inicia sua reconstituição histórica da modernidade tematizando os
séculos XV e XVI, ou ainda, dois eventos específicos, a saber: a invenção e
disseminação da imprensa e a descoberta da América.2 Ao longo dos séculos anteriores,
do que se convencionou chamar de Idade Média, os homens iam se relacionando entre
si e com os demais entes que constituíam o real de maneira estável, ou seja, eram
capazes de organizar sua experiência satisfatoriamente a partir de enunciados e juízos
bíblicos determinados, orientados pela convicção de que esses sentidos eram suficientes
à organização de seu mundo e da existência. No entanto, de repente, e essa é a estrutura
do real (da história) para Gumbrecht, tais sentidos deixaram de ser suficientes à
explicação e à orientação dos homens no mundo, o que significa dizer – o real (ou a
1
Outra função que a investigação histórica tem a partir e no interior dos textos de Gumbrecht é a de
possibilitar a experiência de sentidos e materialidades passados, incomuns a um determinado horizonte
histórico, o que exporia os homens em geral a experiências ideais à complexificação de compreensões, de
suas interpretações (do repertório de predicações e juízos), quer em relação ao próprio passado quer,
especialmente, em relação ao presente. Não teremos a oportunidade de explicitar pormenorizadamente, no
espaço desse artigo, essa outra função da história a partir e no interior das reflexões de Gumbrecht, no
entanto, cabe ainda uma pequena citação: “Em vez de obter clareza por meio de definições, o historiador
está obrigado à tarefa de desenvolver descrições cada vez mais complexas e sofisticadas dos momentos e
das situações do passado – descrições que podem se refletir em conceitos de período sempre mais
complexos. Afinal, não seria nosso interesse dispensar o passado, controlando-o em conceitos eficientes,
mas somente pôr a nós mesmos e ao nosso presente em confronto com as imagens mais ricas possíveis da
alteridade histórica”. Cf.: GUMBRECHT, 1998, p. 11.
Gumbrecht, também, entende que o passado pode servir de pano de fundo para compreendermos o
presente, no entanto, sublinhamos, aqui, que não se trata de um exercício historiográfico que se funda na
pré-compreensão de que o tempo é um agente necessário de transformação e que, por conseguinte, o
presente precisa ser diferente desse passado reconstituído, muito menos de um exercício amparado pela
pré-compreensão de que há algo que se mantém decisivo no interior de um determinado passado e de um
determinado presente, algo ou sentido que os une e que precisaria ser evidenciado. Para Gumbrecht essas
pré-compreensões, próprias ao que chama de “cronótopo historicista”, serviriam apenas como medidas
que, ao fim, provocariam (ou ainda forçariam) determinadas interpretações através e ainda a despeito das
fontes. A reconstituição da história, nesse caso especial da história da modernidade, serviria,
simplesmente, a alguma compreensão do presente através do passado, através de conjunturas que podem
ajudar à compreensão do presente em razão de semelhanças e também de diferenças radicais apenas
possíveis, que se tornam mais visíveis a partir do reconhecimento do outro (do passado).
2
A noção de evento utilizada por Gumbrecht possui uma inspiração foucaultiana e heideggeriana.
Significa, grosso modo, a emergência de um horizonte histórico específico, determinado por sentimentos,
por significados e sentidos inéditos ou até então obscurecidos, que passam a orientar os homens em geral.
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história) passara a expor os homens a entes e a situações inéditas, que impunha limites
significativos ao conhecimento que possuíam até então.
É no interior desse tempo instável, no qual os homens não contavam com um
conjunto de significados e de sentidos capazes de orientá-los mais ou menos bem, que
ocorre uma espécie de perda do valor de verdade do princípio Deus, os enunciados e
juízos bíblicos passam a ser tematizados e perdem sua força, antes natural, de
determinação e delimitação do real, da experiência. Se os homens, até então, se
contentavam com a repetição de determinados sentidos, a partir de eventos como a
invenção e disseminação da imprensa e da descoberta da América eles se viram
obrigados a constituir sentidos capazes de delimitar sua nova experiência, necessidade
que é restituída por um método, por um caminho determinado, que é o da subjetividade,
pois “a sequência de inovações que, como já propus, pode ser representada
metonimicamente pela invenção da imprensa e pela descoberta do continente americano
aponta para a emergência do tipo ocidental de subjetividade (...)”.3
Antes de continuarmos acompanhando a descrição de Gumbrecht sobre a
modernidade, sublinhamos que sua restituição histórica já nos permite perceber sua
compreensão no que diz respeito ao real (ou à história), a saber: o real (ou a história) é
dotado da possibilidade (de uma possibilidade necessária, podemos dizer) de
desestabilização dos mundos constituídos e estáveis, de maneira autônoma e
imprevisível. Em outras palavras, trata-se da possibilidade (necessária) da erupção de
acontecimentos inéditos, suficientes à constituição de entes específicos para os quais os
homens em geral não possuiriam, até então, um repertório adequado de significados e
sentidos. Assim, temos três conclusões importantes: 1- Gumbrecht entende que há uma
relação de descontinuidade necessária entre homem e real (ou história), que se torna
evidente através dos momentos nos quais o real (ou a história) atualiza a sua
possibilidade de desestabilização do mundo e 2- compreende que a investigação
histórica é um método (caminho) significativo no sentido de auxiliar os homens, hoje, a
evidenciar e “produzir” estratégias adequadas a sua existência no interior do real (da
história).
Continuemos, então, acompanhando a reconstituição da história da modernidade
de Gumbrecht. Como vimos, os séculos XV e XVI são, na descrição do autor, um
momento de descontinuidade radical do real (da história), que fora enfrentado à época a
3
Idem, ibidem, p. 12.
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partir de uma dupla compreensão: a de que haveria uma descontinuidade entre espírito,
por um lado, e corpo e matéria, por outro, e, também, a de que o real não se mostraria
devidamente, ou seja, não permitiria aos homens compreendê-lo imediatamente. Essa
última compreensão produziria a necessidade de que o espírito, discreto em relação à
matéria, compreendesse e evidenciasse os fenômenos mais propriamente, interpretando
os entes e alcançando, assim, um acesso privilegiado em relação à sua essência.
Determina-se, então, uma estratégia de relação com o real a qual Gumbrecht chamou de
“campo hemenêutico”. Como podemos ler:
O campo hermenêutico produz o pressuposto de que os significantes da superfície
material do mundo nunca são suficientes para expressar toda a verdade presente na
sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante demanda de
interpretação como um ato que compensa as deficiências da expressão.4
O século XVII e boa parte do XVIII, de maneira geral, experimentaram certa
estabilidade, ou seja, os homens em seu interior teriam sido capazes de produzir um
repertório de significados e sentidos suficientes à compreensão do real (do mundo), o
que provocara, inclusive, a produção de um “clima histórico” (Stimmung) otimista. Os
homens criam ter se desfeito dos enunciados e juízos equivocados produzidos pela
tradição, em geral obliterada pela ortodoxia política e teológica, e, enfim, interpretado
definitivamente os entes e as estruturas fundamentais do real. No entanto, próximo aos
anos de 1800, o real (a história) provocaria mais uma descontinuidade que colocava em
questão os enunciados e mesmo o método subjetivo próprio ao “campo hermenêutico”.
E, aqui, torna-se interessante perceber como o autor evidencia, uma vez mais, o real (a
história) como sendo uma estrutura caracterizada pela capacidade autônoma e
imprevisível de se transformar, e é essa compreensão que entendemos voltar
incessantemente em seu texto, com o objetivo de evitar a constituição ou mesmo a
repetição de estratégias inadequadas à existência no interior desse real (da história) no
mundo contemporâneo.
Por volta de 1800, em especial a partir da Revolução Francesa, os homens se
viram, uma vez mais, expostos a um conjunto de entes inéditos, os quais seu repertório
sentimental e semântico não era capaz de compreender. A Revolução Francesa
provocara sentimentos, pensamentos e atitudes até então desconhecidas, situações
inéditas e, nesse momento histórico, os homens começaram a desconfiar não apenas de
seus conhecimentos, mas também, como sublinhamos mais acima, do próprio método,
4
Idem, ibidem, p. 12-13.
67
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
que utilizavam para a sua produção - a interpretação objetiva e simples do “observador
de primeira ordem”. Aparece, assim, no interior desse clima histórico a um só tempo
otimista e constrito, uma estratégia epistemológica específica, própria ao “observador de
segunda ordem”, momento que ele classifica como “modernidade epistemológica”.
Acompanhemos:
Ao se observar no ato de observação, em primeiro lugar, um observador de
segunda ordem torna-se inevitavelmente consciente de sua constituição corpórea –
do corpo humano em geral, do sexo e de seu corpo individual – como uma
condição complexa de sua própria percepção do mundo. Ao mesmo tempo, aquelas
superfícies materiais do mundo a que apenas a percepção pode referir-se (mas que
estavam reduzidas a um status subordinado dentro do campo hermenêutico) estão
em processo de reavaliação. O interesse pelo materialismo do século XVIII pela
anatomia, pelas funções e pelos objetos dos sentidos humanos e seu crescente
fascínio pela especificidade da experiência estética, parecem ser sintomas
históricos que prefiguram tal retorno de corpos e materialidades.5
Se, ao longo dos séculos XV e XVI, os homens enfrentaram a desestabilização
de seu mundo, a fragilização de seus enunciados e juízos, a partir da compreensão de
que o método adequado a ser seguido era o do distanciamento radical entre sujeito
cognoscente e objeto, entre espírito e matéria, próximo a 1800, por outro lado, os
homens não só viram seu mundo desmanchar como também apostaram em uma
estratégia específica, e isto porque compreenderam que o método da primeira
modernidade, a estratégia cartesiana, equivocou-se em sua percepção de que espírito e
matéria seriam entes necessariamente discretos. Nesse clima histórico o qual chamamos
de constrito, retorna o interesse pela matéria, pelo corpo, ou seja, pelo papel que eles
ocupam na interpretação, não sem motivo, portanto, a filosofia no século XIX, quer na
Alemanha, na França, na Inglaterra, quer no Brasil, se dedicou ao estudo do corpo e dos
sentidos. No entanto, Gumbrecht alerta para a especificidade desse interesse pelo corpo,
e isto porque apenas “parece” que o corpo retorna e passa a ser compreendido
novamente como fora na Idade Média, ou seja, como uma parte necessária da totalidade
homem, âmbito fundamental à experimentação do real (do mundo) e mesmo parte
constitutiva à produção de sentido.
Em outras palavras, reaparece o interesse pelo corpo, em especial pelos sentidos,
e seu papel fundamental no que diz respeito à experiência estética e à tradução
conceitual (interpretação) do real, no entanto, o que está em questão aqui, é uma
estratégia que se preocupa em investigar o corpo para torná-lo transparente, ou melhor,
5
Idem, ibidem, p. 13-14
68
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
para conhecê-lo e, assim, tornar o entendimento ainda mais eficiente no sentido de
compreender (e determinar) o mundo. Ou nas palavras de Gumbrecht:
Uma vez, contudo, que a percepção como ato físico e o mundo material como seu
objeto se tornaram novamente tópicos, surgem as questões de saber como eles se
relacionam com um tipo de experiência que é baseada exclusivamente em
conceitos – e se a percepção física e a experiência conceitual podem em todo caso
ser mediadas ou reconciliadas.6
O que temos na “modernidade epistemológica” é que a medida da interpretação,
do conhecimento detido do mundo através da produção de conceitos privilegiados,
continua sendo orientadora. Por um lado, temos acontecimentos históricos originários
(Ursprung), capazes de liberar experiências e apresentar entes inéditos, o que torna os
repertórios até então vigentes inadequados à delimitação da experiência, e, por outro,
temos a confiança e a manutenção do que podemos chamar de paradigma da
interpretação ou do “campo hermenêutico”. Em outras palavras, os homens em geral, no
interior de um mundo instável, “acelerado” - para usar um termo caro a Koselleck - e
diante de fenômenos que não podiam compreender e determinar (ou posicionar),
insistiram na força do aparato intelectivo no tocante à reorganização do mundo, como se
o que faltasse, até então, fosse apenas uma compreensão adequada dos elementos que
são fundamentais à produção de uma interpretação privilegiada do mundo em sua
totalidade, entre eles o corpo. O que significa dizer, em linhas gerais, que se passava ao
exame detalhado do corpo como mediador da relação entre inteligência e real, para que
a inteligência pudesse superar os efeitos dessa mediação, estabelecendo uma relação
privilegiada com o real.
Gumbrecht está mostrando, através de sua reconstituição histórica, que a
“modernidade epistemológica” não fora capaz de perceber a dinâmica própria do real
(ou da história), ou seja, a sua possibilidade autônoma e imprevisível de reconstituição,
e assim optava, inadequadamente, por uma espécie de aperfeiçoamento do método
cartesiano, do “sujeito de primeira ordem”. Aqui, podemos perceber, novamente, parte
da força que sustenta o trabalho de reconstituição histórica (da modernidade) realizado
por Gumbrecht: evidenciar a dinâmica própria do real (da história) e, ainda mais, indicar
para o seu tempo que a compreensão e estratégia subjetivista e referencialista, própria
6
Idem, ibidem, p. 14.
69
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ao “campo hermenêutico”, não devem e talvez não possam mesmo ser repetidas uma
vez mais.7
Gumbrecht continua sua análise evidenciando que o século XIX e a sua
disciplina fundamental, a história, intensificaram, equivocadamente, o paradigma da
interpretação, ou melhor, da compreensão (e determinação) privilegiada do real, a partir
de dois métodos específicos o da historicização e o da narrativa. Por um lado, os
filósofos e cientistas se dedicaram à compreensão da mediação e “interferência”
provocada pelo corpo no que se refere à produção de um conhecimento imediato do real
e, a um só tempo, passavam a insistir em macronarrativas, em discursos organizados por
um sentido fundamental capaz de organizar as experiências e entes inéditos. Essas
macronarrativas podem ser compreendidas como uma espécie de discurso capaz de
solucionar a forte ambiguidade e equivocidade do conhecimento (da linguagem),
produzidas, especialmente, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade
do século XIX, período que Koselleck chamou de Sattelzeit.
O que é ainda mais interessante a partir das reflexões de Gumbrecht é que essas
narrativas historicizadas parecem se resguardar da instabilidade provocada pela
“aceleração do tempo” no interior do “cronótopo historicista” por uma espécie de
recurso derradeiro à ideia de progresso. Em outras palavras, a cada transformação e
questionamento de sentidos disponibilizados pela inteligência, os homens respondiam
com a filosofia da história, compreendida como uma explicação teleológica e necessária
que subsumia qualquer equivocidade a um sentido transcendental positivo, que se
realizaria a despeito de seu próprio conhecimento.
No entanto, Gumbrecht ainda destaca um terceiro momento da modernidade, a
“Alta Modernidade”, na qual teria havido uma crise profunda da representação.8 Entre
7
Consideramos, junto a Gumbrecht, que os homens no interior do mundo atual talvez não possam repetir
o gesto subjetivista e referencialista próprio à modernidade, pois ao mesmo tempo em que o autor
explicita a sua preocupação no que concerne à repetição desse equívoco hoje, também alerta para uma
transformação profunda própria às últimas décadas do século XX, a qual teria produzido um novo
horizonte histórico, um “cronótopo” inédito – a “Pós-modernidade”. Nele, os homens talvez já não mais
possam se orientar pelo paradigma “campo hermenêutico”, e isto porque, nesse novo “cronótopo”, eles
simplesmente já não estão mais propriamente interessados em conhecer o real (e também o passado), mas
sim em experimentá-lo. No “cronótopo pós-modernidade”, os homens em geral se dedicariam
precipuamente à experiênciação de sentidos passados e à produção de um real apenas virtual, ou seja, de
alguma forma teriam desistido do real, de compreendê-lo.
8
Para sermos mais precisos, o que Gumbrecht chama de “crise da representação” teria sido
experimentado na Europa desde 1800 e, desse modo, ele se refere quer à crise do “observador de primeira
ordem” quer à crise radical do par sujeito-interpretação intensificada pelas reflexões e trabalhos das
vanguardas, pois, como afirma: “É possível analisar a história da arte e da literatura na Europa desde 1800
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, alguns artistas, como os
surrealistas e os dadaístas, teriam compreendido que havia um problema mais
fundamental em questão, que a reavaliação das condições de possibilidade do
conhecimento para a superação definitiva das mediações entre aparato intelectivo e real
não seria capaz de produzir um acesso privilegiado do homem em relação ao mundo que
é o seu. Eles teriam insistido, então, em apontar para o caráter de impossibilidade
radical do próprio conhecimento no que tange à representação do real, pois como
podemos ler:
Nunca antes e nunca depois estiveram os poetas tão convencidos de estar
desempenhando a missão histórica de ser ‘subversivos’ ou mesmo
‘revolucionários’ (o que pode, ao menos em parte, explicar o enorme prestígio das
vanguardas entre os intelectuais de hoje). Em vez de tentarem (como fez Balzac)
preservar a possibilidade de representação, em vez de apontarem para os problemas
crescentes com o princípio da representabilidade (a principal preocupação de
Flaubert), os surrealistas e os dadaístas, os futuristas e os criacionistas – ao menos
em seus manifestos – se tornaram cada vez mais decididos a romper com a função
da representação.9
O que Gumbrecht evidencia, então, é uma postura de negação radical, em
especial dos poetas vanguardistas, da possibilidade de qualquer relação estável entre o
homem e o real, de qualquer possibilidade de representação de algo como o real. Assim,
se pouco antes (podemos dizer que (quase) simultaneamente), o “campo hermenêutico”
sofria uma crise profunda, e procurava superá-la a partir da insistência no par
subjetividade e interpretação, por outro lado e pela primeira vez, artistas e filósofos
negavam o método “campo hermenêutico”.
A reconstituição histórica da modernidade, proposta por Gumbrecht, quer também
evidenciar esse momento crítico no que tange às pretensões interpretativas do “campo
hermenêutico”, e a origem de uma postura que Gumbrecht compreende também ser
equivocada - a assunção da impossibilidade de representação de qualquer realidade, e
mesmo, o esquecimento do real ou da realidade como medida fundamental ao
como uma concatenação de reações diferentes a aspectos diferentes dentro da crise da
representabilidade”. Cf.: Idem, ibidem, p. 17.
9
Idem, ibidem, p. 19.
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pensamento, à arte e à ação. Gumbrecht evidencia sua compreensão de que há algo
externo ao sujeito (à linguagem), que é o real ou a realidade, âmbito transcendental que
orientaria os homens, e mais, que seria o espaço ideal à sua realização. Assim, esse real
ou realidade não podem ser abandonados sem o risco de uma espécie de pobreza da
experiência (para usar uma compreensão cara a Walter Benjamin) e da vida interior. Em
outras palavras, a reconstituição da história da modernidade proposta por Gumbrecht
evidencia, uma vez mais, uma compreensão e estratégia que seriam equivocadas em
relação à dinâmica própria do real (da história) e que não deveriam ser reencetadas hoje:
a de que não há relação possível entre sujeito e real, e que o mais adequado seria desistir
disso que a modernidade (metafísica) teria chamado de real, e se dedicar, então, a uma
espécie de livre jogo (subjetivista) no interior da linguagem.
Referências:
ARAUJO, Valdei Lopes. Observando a observação: sobre a descoberta do clima
histórico e a emergência do cronótopo historicista, c.1820. In.: CARVALHO,
J.M. & CAMPOS, A.P. Perspectivas da Cidadania no Brasil Império.
Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter
Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Editora Vozes,
2009.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
____.
Graciosidade e estagnação
Contraponto/PUC-Rio, 2012.
–
Ensaios
escolhidos.
Rio
de
Janeiro:
____. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-Rio, 2010.
____. Depois de aprender com a História. In.: Em 1926 - vivendo no limite do tempo.
Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1999.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3ª ed – Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:
Editora Universitária São Francisco, 2008.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC Rio, 2006.
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A PRESENÇA SENTIDA DO PASSADO: ARQUITETURA,
PRESERVAÇÃO E CRONÓTOPOS
Luara França
Resumo: Este artigo pretende conectar a ideia de produção de presença com as
teorias de restauração e patrimônio. A presença do passado tem, utilizando o suporte
teórico de Hans Ulrich Gumbrecht, um paladar material que é impossível de ser
descartado. Quando falamos sobre presença do passado, estamos falando sobre entrar
no passado, sentirmo-nos dentro do passado, deixar nossos corpos produzirem
presença. Em todas essas nuances, a presença é material. Sendo assim, tentamos, nesse
artigo, ver esse tipo de produção de presença em conexão com os monumentos
patrimoniais arquitetônicos. Para esse propósito, foram utilizadas as teorias de Alois
Riegl e John Ruskin.
Palavras-chave: presença do passado, arquitetura, Gumbrecht, Alois Riegl, John
Ruskin.
Abstract: This paper aims to connect the idea of production of presence with the
restoration’s and heritage’s theories. The presence of the past has, using the Hans
Ulrich Gumbrecht theoretical support, a material taste that is impossible to overlap.
When we talk about presence of the past, we are talking about get in the past, feel
ourselves inside the past, let our body produce the presence. In all this ways, the
presence is material. As so, we tried, in this paper, to see this kind of production of
presence in connection with the architectural monuments of heritage. For this purpose,
Alois Riegls’ and John Ruskin’s theories were used.
Key-words: presence of the past, architecture, Gumbrecht, Alois Riegl, John Ruskin.
Em que momentos sentimos o passado? Diferentes respostas podem surgir:
quando lemos literatura, história, poesia, ao assistir um filme, uma peça, um
espetáculo de dança. De qualquer forma é preciso entrar no passado, ou deixar que sua
parcela que está dentro de nós possa tomar conta da situação. É a ideia do espaço que
utilizamos para referirmo-nos à presença do passado, é preciso entrar, provocar o que
está dentro, deixar o corpo produzir presença.
Nesse viés de pensamento é possível ver a arquitetura como fonte privilegiada
da presença do passado. Entramos em um prédio, deixamos nosso corpo fazer parte de
um edifício, levamos em consideração o espaço e a materialidade de uma obra
arquitetônica. Não é possível desvencilhar materialidade, arte e sensações na
arquitetura. Dessa forma, entender a presença do passado como proposta por Hans

Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Ulrich Gumbrecht1 associada à ideia de preservação de monumentos arquitetônicos (o
patrimônio de pedra e cal) não parece uma empreitada de todo impossível.
Esse artigo procurará associar tais ideias através de três pensadores: Alois
Riegl, John Ruskin e Hans Ulrich Gumbrecht. Em um primeiro momento, a ideia de
preservação de Riegl estará no centro da escrita, sua ligação com algumas ideias de
Gumbrecht será explorada. Já em um segundo momento, teremos os edifícios,
notadamente antigos, analisados por Ruskin trazendo mais densidade à discussão.
*
* *
Alois Riegl foi o primeiro autor a discutir a preservação e restauração de
monumentos como a entendemos hoje. Seu principal escrito, El culto moderno a los
monumentos2, foi publicado originalmente em 1903 como texto da Comissão de
Monumentos Históricos de Viena. A principal preocupação de Riegl é o debate sobre o
caráter do monumento e, consequentemente, sua melhor forma de preservação. Antes
de Riegl, a restauração de monumentos podia ser vista de duas formas: sob a tutela de
Viollet-le-Duc3 os monumentos deveriam ser “refeitos” a fim de acompanhar as
modificações da época, e sob os olhos de John Ruskin4 e William Morris os
monumentos deveriam reter seu caráter de passado.
Após escrever seu livro Produção de Presença, Gumbrecht passou a se
concentrar na possível produção de Stimmung de uma época. Em seu artigo “Uma
rápida emergência do ‘clima de latência’” podemos caracterizar o conceito como:
Stimmung é normal e corretamente traduzida por “disposição” ou, como uma metáfora, por
“clima” e “atmosfera”. O que as metáforas “clima” e “atmosfera” compartilham com a palavra
“Stimmung”, cuja raiz alemã é “Stimme” (“voz”, em alemão), é que elas sugerem a presença de
um toque material – talvez o mais leve toque material possível – sobre o corpo de quem quer
que perceba uma disposição, um clima, uma atmosfera, ou uma “Stimmung”. Tempo, vozes e
música todos têm um impacto físico, ainda que invisível sobre nós. É um toque físico que nós
associamos com alguns sentimentos “interiores”. Toni Morrison descreveu o lado interior da
“disposição” como um paradoxo, isto é, como “ser tocado por dentro”. 5
Desta forma, a Stimmung pode ser, ao mesmo tempo, passado e sensação.
Embora os estudos de Gumbrecht nesta área estejam voltados para o mundo pós-1945,
é possível identificar tal sensação durante todo o século XX. Ainda segundo
1
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2010.
2 Der modern Denkmalkultus. Sein Wesen und seine Entstehung. Viena e Leipzig, 1903.
3 VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
4 RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
5 GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Uma rápida emergência do ‘clima de latência’”. In: Revista Topoi, v. 11,
n. 21, jul.-dez. 2010, p. 313.
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Gumbrecht:
A partir de Nietzsche, la Stimmung se va a entender sobre todo como una forma de experiencia
típica de un más o menos remoto pasado, como una forma y una experiencia de la armonía que
parecía no tener lugar en el presente. Este punto de vista llevó al historiador del arte Alois
Riegl a predecir que la dimensión de la Stimmung, entendida como un «principio de nostalgia«
(al menos así se puede describir hoy su tesis), tendría un gran futuro en el siglo XX. 6
Para entender o que Gumbrecht chama de “princípio de nostalgia” é
interessante entender a valoração dos monumentos para Riegl, pois é sua preocupação
para com os vestígios materiais do passado que leva o historiador da arte a se dedicar à
restauração de monumentos. Para Riegl, todo monumento possui uma dimensão
histórica e uma dimensão estética, e assim, todo monumento de arte é também um
monumento histórico, bem como, todo monumento histórico é também artístico. Os
valores são, assim, divididos primeiramente em dois blocos: valor rememorativo ou
valor de passado (subdividido em valor de antiguidade, histórico e intencional), e valor
de contemporaneidade (subdividido em instrumental e artístico).
Cada um desses valores necessitaria de uma forma própria de restauração e
preservação. O monumento com grande valor de antiguidade não poderia, para Riegl,
ser restaurado, uma vez que são suas marcas de passado que caracterizam seu valor. Já
o monumento com alto valor histórico não deveria sofrer alterações drásticas, mas
seria imprescindível que sua preservação fosse incisiva, a fim de evitar uma
deterioração rápida do monumento. Por último, o monumento com valor intencional
deveria ser restaurado e preservado, uma vez que seu valor baseia-se em ser do
presente e não permitir o esquecimento do passado.
Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, a divisão de monumentos de Riegl é
importante, pois:
Riegl se dá conta de que, para nós, modernos, o interesse suscitado por determinadas obras
advém menos de seu poder de rememoração de fatos ou personagens notáveis, e mais por
indicarem, sobretudo através de seu estado material, o caráter de antigas, evocadoras de um
tempo passado. Nesse sentido, constituiriam monumentos, pois têm valor de rememoração, mas
não monumentos históricos no sentido tradicional, pois remetem simplesmente “à
representação do tempo transcorrido desde sua criação, que se trai a nossos olhos pelas marcas
de sua idade”. Em suma, referem-se ao tempo, ao ciclo de criação e morte, como experiência
intuitiva porém difusa, como a todos os homens. 7
6 Idem. Lento presente: Sintomatología del nuevo tiempo histórico. Madrid: Escolar y Maio Editores,
2010. p. 171.
7 FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. pp. 66/67.
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Pode-se perceber a semelhança entre a ideia que resulta dos monumentos –
“evocadoras de um tempo passado” – e a ideia de Stimmung aliada à presença do
passado. Quando Gumbrecht faz referência ao “princípio de nostalgia”, que Riegl
previu como marca do século XX, ele está se referindo à postura de Riegl ao dizer que
“se o século XIX foi o do valor histórico, o XX parece ser o do valor de anciedade” 8.
Ao decretar o Valor de Antiguidade como o valor do século XX, Riegl se aproxima de
uma ideia de conhecimento do passado mais ligada à sensação produzida que ao marco
historiográfico definido pela interpretação (que seria o valor histórico, característico
do século XIX), aproximando-se bastante das reflexões propostas por Iser a respeito da
obra de Henry James9.
O monumento que possui valor histórico seria “constituído a posteriori pelos
olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na massa
dos edifícios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma
pequena parte”10. Enquanto no valor de antiguidade:
[...] el monumento es solamente un sustrato concreto inevitable para producir en quien lo
contempla aquella impresión anímica que causa en el hombre moderno la idea del ciclo natural
de nacimiento y muerte, del surgimiento del individuo a partir de lo general y de su
desaparición paulatina y necessariamente natural en lo general. Al no presuponer esta
impresión anímica ninguna experiencia científica, y dado, sobre todo, que no parece necesitar
para su satisfacción de ningún conocimiento adquirido por la cultura histórica, sino que es
producto de la simple percepción sensorial, aspira a llegar no sólo a las personas cultivadas. 11
[...] el valor de antigüedad prescinde em principio totalmente de la manifestación individual
localizada como tal y valora únicamente la impresión anímica subjetiva, que causa todo
monumento sin excepición alguna, es decir, sin tener en cuenta sus características objetivas
específicas, o más exatamente, teniendo en cuenta solamente aquellas características que
indican la asimilación del monumento en la generalidad (las huellas de vejez), en lugar de las
que revelan su individualidad originaria y objetivamente cerrada.12
Desta forma, o valor de antiguidade, característico do século XX, é muito
próximo à ideia de sensações e materialidade que a presença do passado de Gumbrecht
8 RIEGL, Alois. Le Culte moderne des monuments. Paris: Seuil, 1984. p. 56. Apud. Ibidem. p. 67. A
tradução de Maria Cecília Londres Fonseca preferiu utilizar a palavra “anciedade”, enquanto a tradução
espanhola utilizou a palavra “antigüedad”, no original alemão a palavra aparece como “Alterswert”.
Neste capítulo utilizaremos Valor de Antiguidade.
9 Cf. FRANÇA, Luara. “Como se deu a perda de mundo ou aquilo que foi possível interpretar: estética da
recepção e momentos de intensidade nos escritos de Iser, Jauss e Gumbrecht.” In: Temporalidades, Belo
Horizonte Vol. 3 n.1 (Jan./ Jul. 2011)
10 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, Editora UNESP, 2006.
p. 25.
11 RIEGL, Alois. Op. Cit. p. 31.
12 Ibidem. p. 39/40.
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pede em uma cultura de presença. Ele responde a um histórico que, para Riegl, vem
desde o século XVIII, de substituição de valores clássicos próprios da Idade Moderna.
O homem moderno de Riegl não consegue mais encontrar nas ruínas a tranquilidade, o
sentimento barroco de inalterabilidade do curso da natureza, o nascimento e a morte a
que toda obra humana está suscetível.
Outro fator que colabora com a visão de monumentos com valor de antiguidade
e produção de presença é o caráter “não intelectualizado” da sensação produzida.
Antes de Riegl, o valor de um monumento era entendido como “depende[nte], para sua
dignidade e prazer no mais alto grau, da vívida expressão de vida intelectual envolvida
na sua produção”13. Riegl confere o necessário caráter de “histórico” ao monumento,
advoga por sua preservação e compreensão hermenêutica, mas ele, também, confere a
todo monumento outro caráter através do Valor de Antiguidade.
Todavia, mesmo expressando valores diferentes no que diz respeito à
intelectualização do monumento, o texto de John Ruskin, A Lâmpada da Memória,
possui aspectos que valem ser aqui mencionados. Para Pinheiro, na introdução de A
Lâmpada da Memória na obra de Ruskin, “o principal aspecto que torna um edifício
digno de preservação não é a beleza, mas seu aspecto histórico, i.e. memorial; e, nesse
sentido, sublime, conforme as acepções ruskinianas a respeito”14. Pois:
É na longa duração, com a passagem do tempo, que a arquitetura vai se impregnando da vida e
dos valores humanos; daí a importância de construir edifícios duráveis, e de preservar aqueles
que chegam até nós. Não é à toa que Ruskin cogitou em chamar seu o sexto capítulo das Sete
Lâmpadas de Lâmpada da História, em vez de “Lâmpada da Memória” 15.
Assim, Ruskin também confere especial atenção à idade do monumento, como
podemos perceber nessa passagem:
Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua glória
está em sua Idade, e naquela profunda sensação de ressonância, de vigilância severa, de
misteriosa compaixão, até mesmo de aprovação ou condenação, que sentimos em paredes que
há tempos são banhadas pelas ondas passageiras da humanidade.16
Porém, a necessidade de uma educação intelectual prévia para a apreciação da
obra o diferencia de Alois Riegl. Uma obra deveria possuir um caráter de significação,
13 RUSKIN, John. Op. Cit. p. 25.
14 PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. In: RUSKIN, John. Op. Cit. p. 29.
15 PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. In: RUSKIN, John. Op. Cit. p. 27.
16 RUSKIN, John. Op. Cit. p. 68.
78
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tal ponto seria mais importante que a fruição não intelectualizada. Citando Ruskin: “É
preferível a obra mais rude que conta uma história ou registra um fato, do que a mais
rica sem significado. Não se deveria colocar um único ornamento em grandes edifícios
cívicos, sem alguma intenção intelectual”17.
É possível, todavia, compreender a necessidade desta afirmação a partir da
ideia ruskiniana de restauração. Para Ruskin não deveria haver nenhum tipo de
interferência no aspecto material dos monumentos, seria preciso uma grande
intervenção e conscientização no que diz respeito à preservação, mas não seria
interessante, em nenhum momento, utilizar uma construção ou adereço externo à
época de produção do monumento. O autor chega, inclusive, a pedir que quando a
estrutura de um prédio antigo estivesse danificada ele fosse aparado por andaimes
externos que não seriam escondidos. Todos veriam que aquele prédio era antigo e não
fora renovado por técnicas mais recentes. Assim, quando Ruskin afirma que nenhum
ornamento deve ser colocado nos edifícios podemos entender, também, que ele se
refere à restauração posterior.
Quando Ruskin fala do sublime, do pitoresco diz:
O pitoresco é, nesse sentido, a Sublimidade Parasitária. [...] ou seja, uma sublimidade que
depende de acidentes, ou das características menos essenciais, dos objetos aos quais pertence; o
pitoresco desenvolve-se inconfundivelmente na proporção exata de sua distância do centro
conceitual daqueles aspectos nos quais a sublimidade é encontrada.18
[...] o pitoresco é assim procurado na ruína, e supõe-se que consista na deterioração. Sendo que,
mesmo buscado aí, trata-se apenas da sublimidade das fendas, ou fraturas, ou manchas, ou
vegetação, que assimilam a arquitetura à obra da Natureza, e conferem a ela aquelas
particularidades de cor e forma que são universalmente caras aos olhos dos homens. [...] o
pitoresco ou a sublimidade extrínseca terá exatamente essa função, mais nobre nela do que em
qualquer outro objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo que, como já foi dito,
constitui sua maior glória.19
Assim, a imagem do pitoresco, da sublimidade, em Ruskin traz em si uma
“distância do centro conceitual” que pode ser associada à presença do passado de
Gumbrecht, à Kuntswollen e ao Valor de Antiguidade de Riegl. Tal ligação se dá no
momento em que os três autores reconhecem um valor que está além da
conceitualização, além da historicidade (sem estar fora do tempo, já que é reconhecido
como antigo) e além da técnica artística. Outro fator a ser considerado é que nos três
autores esse desejo, esse valor, só pode ser realizado com o passado. Para Gumbrecht,
17 Ibidem. p. 63.
18 RUSKIN, John. Op. Cit. p. 71.
19 Ibidem. p. 77.
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a presença não é somente a presença do passado, mas o desejo pelo passado é o viés
mais evidente da cultura de presença e do cronótopo do presente espesso. Para Ruskin,
o pitoresco é “procurado na ruína”, ele supõe a deterioração. Já para Riegl a
Kuntswollen “ejercen sobre el hombre moderno una impresión que nunca podrá
alcanzar una obra de arte moderna”20.
Desta forma, o interesse pelo passado monumentalizado, patrimonializado, não
pode ser entendido somente como um interesse pela interpretação histórica do
passado. Existe, na própria ideia de patrimônio um aspecto material e sensorial que
ultrapassa o entendimento conceitual. Mesmo trabalhando com autores inseridos no
cronótopo tempo histórico (Ruskin 1819-1900 e Riegl 1858-1905) é possível
identificar uma preocupação sensorial que pode conferir uma nova forma de encarar o
patrimônio de pedra e cal.
Para referirmo-nos ao tempo através da linguagem utilizamos, frequentemente,
palavras do espaço. A língua, em seu caráter eminentemente linear, aproxima o tempo,
em seu caráter simultâneo, ao espaço. Como exemplo pode-se usar as estruturas de
Mário Perini: “Eva nasceu em Belo Horizonte” e “Eva nasceu em 1976”. Percebe-se
que as frases são muito semelhantes, as posições e o próprio “em” são iguais. Isso
acontece também em “Ela chegou em cima do vale” e “Ela chegou em cima da hora”.
Na análise sintática ainda não existe consenso sobre a classificação dos chamados
adjuntos adverbiais de tempo. A partir dessa análise pode-se dizer que o tempo na
linguagem é, na verdade, uma metáfora do espaço. Os adjuntos adverbiais de tempo
são adjuntos adverbiais de lugar metaforizados. O tempo é, então, expresso pelo lugar.
Tal exemplo mostra que o problema da representação do tempo está sendo
pensado em diversos níveis, e não só no nível historiográfico. Nesse artigo pretendeuse mostrar como o cronótopo presente lento procura meios diferentes para a
apresentação do passado. Seja através do patrimônio ou da arte, a narrativa
hermenêutica do cronótopo tempo histórico mostra-se insuficiente para lidar com esse
novo espaço temporal. Já se alia, na frase anterior, espaço e tempo, aliança
característica do cronótopo atual. Para Gumbrecht: “Ambos os movimentos, o
adiamento do futuro ameaçador para um futuro distante e o preenchimento do presente
com múltiplos passados, convergem na impressão de que no tempo social pós-
20 RIEGL, Alois. Op. Cit. p. 27.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
moderno o presente está se tornando mais amplo”21. É possível perceber que
Gumbrecht utiliza a ideia de “amplo”, predominantemente espacial, para tratar do
tempo. Mais uma vez a indissociabilidade de tempo e espaço é sentida da
contemporaneidade.
Esse artigo não advoga ― nem os escritos de Gumbrecht, acredito ― por um
fim da interpretação ou da procura hermenêutica de sentido no passado. O que se
pretendeu mostrar é que existe um viés presencial no passado, e que o estudo do
passado e do patrimônio têm muito a ganhar com a identificação e utilização desse
viés. É preciso admitir que existe alguma coisa além do sentido, alguma coisa que
sentimos quando entramos em um edifício, que está aliada ao nosso passado
latente/presente e que não pode ser alcançada através da interpretação: uma associação
de tempo e espaço que é sentida na presença.
Referências:
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, Editora
UNESP, 2006.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
FRANÇA, Luara. “Como se deu a perda de mundo ou aquilo que foi possível
interpretar: estética da recepção e momentos de intensidade nos escritos de
Iser, Jauss e Gumbrecht.” In: Temporalidades, Belo Horizonte Vol. 3 n.1 (Jan./
Jul. 2011)
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1998.
______. “Uma rápida emergência do ‘clima de latência’”. In: Revista Topoi, v. 11, n.
21, jul.-dez. 2010.
______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2010.
______. Lento presente: Sintomatología del nuevo tiempo histórico. Madrid: Escolar y
Maio Editores, 2010.
RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
21
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1998. P. 285.
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VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
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Tradução
NOSSO AMPLO PRESENTE1
Hans U. Gumbrecht
1. Rastreando uma hipótese
Um famoso colega meu (recentemente aposentado), cujas obras, argumentos e
elegância intelectual eu admirei desde o começo de minha carreira acadêmica, muitas
vezes diz a respeito dele mesmo, com aparente modéstia, que em toda sua vida, ele teve
“apenas uma boa ideia”. Então, após uma hábil pausa para avaliar o efeito de suas
palavras, ele muda seu significado acrescentando que isso dificilmente é assunto tão
sério, pois “a maioria das pessoas não chega a tanto”. Nesta altura, gostaria de seguir o
exemplo do acima mencionado companheiro, cujo nome é Hayden White. Por uns bons
quarenta anos de pesquisa e de escrita, minha única ideia (que teve, eu espero, algum
impacto) tomou a forma de uma teimosa insistência de que as coisas-do-mundo, a cada
vez que as encontramos, também possuem a dimensão da presença. Isso se dá mesmo
de nosso ponto de referência cotidiano e intelectual para interpretar e significar – e
mesmo se nós quase sempre desprezamos a dimensão da presença em nossa cultura.
Por “presença” eu queria dizer – e ainda significo – que as coisas
inevitavelmente permanecem à distância ou próximas a nossos corpos; se elas nos
“tocam” diretamente ou não, elas têm substância. Eu me referi a esse caso em Produção
de Presença, que apareceu em alemão como Diesseits der Hermeneutik. O livro recebeu
esse título – que pode se tornar Hermenêutica desse Mundo, porque é minha impressão
que a dimensão da presença deve merecer uma posição de prioridade com relação à
práxis da interpretação, que designa significado a um objeto. Isso não se dá porque
presença seja “mais importante” do que as operações de consciência e de intenção, mas
antes porque, talvez, ela seja “mais elementar”. Ao mesmo tempo, o título alemão
denota algo semelhante à suave revolta edipiana de um homem já acima dos cinquenta
anos. Relegando a interpretação e a hermenêutica para um terreno acadêmico restrito
(por assim dizer) foi uma pequena – e mesmo talvez insignificante – vingança contra
uma “profunda” e embaraçosa tradição intelectual, que encontrei incorporada em alguns
ês is da profundidade entre meus “pais” acadêmicos. Devido à minha formação e
( ês)inclinações, eu nunca me senti inteiramente confortável em tal profundidade.
1
Trechos do livro, Our Broad Present (Columbia University Press: no prelo). Direitos de tradução e
publicação cedidos pelo autor para a revista Redescrições. Trad. Inês Lacerda Araújo.
Quase naturalmente – se isso é mesmo possível no mundo intelectual – e sem
qualquer objetivo particular programático, minha intuição de presença se desenvolveu
em três direções. In 1926: Living on the Edge of Time (Em 1926: Vivendo na Beirada do
Tempo), que antecedeu Production of Presence (Produção de Presença), perguntei que
consequências a atenção à dimensão da presença deveria ter em nossa relação com o
passado. Um ensaio sobre a beleza dos atletas dirigia essa mesma pergunta com relação
à experiência estética. Finalmente, em
The Powers of Philology (Os Poderes da
Filologia) eu tentei mostrar que a dimensão da presença afeta invariavelmente as
demandas de tipo textual.
Em seguida – e eu ainda não desisti inteiramente desta esperançosa pretensão –
gostaria de ver se eu usufruiria da boa sorte de poder lutar por uma segunda ideia. (A
isso eu fui levado por Jorge Luis Borges e imaginei que o que é intelectualmente
decisivo, não consiste de “descoberta” ou “produção” de ideias e sim de “topar” com
elas e “agarrá-las” – interceptar ideias e dar-lhes forma.) Infelizmente, eu ainda não
“captei” uma segunda ideia, e todos os projetos pelos quais lutei em anos recentes são
claramente extensões de minha intuição concernente à presença. Eu tentei descrever
Stimmung, a relação que temos com nosso ambiente, como uma presença-fenômeno – o
“mais leve toque que acontece quando o material do mundo circundante afeta a
superfície de nossos corpos.” No momento, estou trabalhando em um livro sobre a
década seguinte à Segunda Guerra Mundial, pois acredito que nesse período uma forma
de “latência” predominou – uma presença, ou seja, ser entendida como uma espécie de
“passageiro clandestino”, que pode produzir efeitos e irradiar energia ao escapar dos
esforços para identificá-la e apreendê-la.
Depois que os livros sobre presença apareceram, amigos cujas opiniões eu levo
bastante a sério, me surpreenderam instando-me a refletir sistematicamente e escrever
sobre as consequências existenciais e mesmo éticas dessas publicações. A tarefa, eu
suspeito, exigiria demasiado de mim – ou será que eu meio inconscientemente, fingi
modéstia apenas para esconder uma rejeição visceral pela “ética” e outros tipos de
literatura prescritiva e de “autoajuda”? De qualquer modo, minhas reservas eram
dificilmente consistentes. Como comprovei pelos capítulos do livro em mãos (para não
dizer nada de outras obras), eu fui induzido com satisfação, dessa e de outras vezes, a
analisar os fenômenos sociais e culturais da perspectiva da presença – ou pelo menos
esboçar as linhas que tal investigação deve assumir. Houve ocasiões e pedidos para
assim fazê-lo por detrás de cada parte deste livro, mesmo se eu sempre visasse
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escapatórias, alegando completa falta de competência ou aduzindo alguma outra razão.
É tanto uma obrigação como um privilégio de humanistas praticarem “pensamento de
risco”. Quer dizer, em vez de subordinar-se a esquemas racionais de evidência e aos
condicionamentos de sistemas, nós “cientistas da mente” (Geisteswissenschaftler)
deveríamos buscar confrontar e imaginar tudo o que possa acarretar uma ruptura na vida
cotidiana e nos pressupostos que determinam suas funções. Para tomar um exemplo
básico: ninguém pode simplesmente “fugir” dos ritmos e estruturas que constituem
nosso presente globalizado e suas formas de comunicação; ainda assim, ao mesmo
tempo, é importante agarrar-se à possibilidade de assim agir desde que isso forneça uma
alternativa ao que é apenas muito apressadamente aceito como “normal”.
Os cinco capítulos que compreendem o livro à mão têm um ponto de
convergência superficial – o que não significa inconsequente – com o mundo
contemporâneo em seu surgimento quando, ao aceitar demandas de outros, eu me
justifico e me desculpo pelo que escrevi na sequência como casos de risco intelectual.
Mais tarde, descobertos leitores favoravelmente inclinados, e por meio de suas
observações, eu acedi também que outro plano de convergência existia, no qual as
análises e argumentos dos capítulos se ligaram e produziram um diagnóstico do presente
complexo e perfilado. A complementaridade e a coerência que ficaram evidentes a
posteriori se devem, evidentemente, ao fato de que cada parte do livro procede tomando
dois encadeamentos de pensamento que são muito diferentes na origem e na tonalidade.
A primeira das teses (inspirada por Michel Foucault e Niklas Luhmann) de que a
emergência de observações de segunda ordem formatou a estrutura epistemológica da
cultura ocidental desde princípios do século 19. Reinhart Koselleck chamou o período
entre 1780 e 1830 de Sattelzeit (“época de espera”); desde então, o pensamento
autorreflexivo se tornou o habitus de intelectuais, sinônimo de pensamento em si.
Mas se, de outro lado, eu pretendo contextualizar minha perspectiva e análise
dos dias atuais em termos de consequências que dizem respeito a observações de
segunda ordem institucionalizadas em 1800, eu também cedi, vez por outra, à tentação
de conceder à história da epistemologia, uma ressonância que vem da tradição da crítica
cultural. Talvez esse tom melancólico tenha sido ouvido pela primeira vez no
materialismo prematuro do século 17, ainda mais que ele representou o protesto
existencial (e nunca realmente “político”) contra uma cultura que, de um modo cada vez
mais unilateral, postulou um fundamento transcendental para a estrutura e as funções da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
consciência humana – um desenvolvimento acompanhado pelo desbaste de uma
corporeidade concreta como substrato da vida humana. Hoje – quando, para muitas
pessoas, o dia-a-dia ocorre como uma fusão de consciência e software – esse processo
alcançou níveis que dificilmente serão ultrapassados. Eu enfatizo uma disposição
culturalmente crítica porque, aqui, meu pensamento se encontra com tentativas feitas
por outros de descrever nosso presente, mesmo se, ao mesmo tempo, ele também difira
deles. Sob títulos como “biopolítica”, “política do corpo” e “eco-crítica”, o corpo
humano – e com ele as coisas-do-mundo – estão agora recebendo atenção renovada e
interesse. Para mim, também, este é um ponto para o qual convergem múltiplas
trajetórias. As observações de meus contemporâneos quase sempre envolvem uma
crítica da situação presente e sugestões para mudá-la. Partidário, entretanto, de um
fundamental ceticismo com relação à possibilidade de direcionar acontecimentos – ou
mesmo de mudá-los em parte – eu prefiro me conservar a uma distância cautelosa.
Creio que as situações que enfrentamos hoje representam uma continuação da evolução
humana “por meios culturais”. Por essa razão – não obstante aparências em contrário –
elas se localizam fora do que podemos ter esperança de controlar.
Um quadro intelectual para a análise do presente resulta no que a história da
epistemologia que seguiu a emergência de observações de segunda ordem intersecta
com a crítica cultural de tipo melancólico. Em parte, os capítulos do livro pressupõem
essa convergência; em parte, eles a elaboram. É central neste quadro a ideia de que a
configuração de tempo que se desenvolveu no início do século 19 foi, por já
aproximadamente meio século (e com efeitos que se tornam cada vez mais claros),
seguida por outra configuração para a qual sequer nome ainda há. O título conferido a
partir do cronotopo agora obsoleto – “consciência/pensamento histórico” enfrenta
testemunhar o fato que foi em certa ocasião tão vastamente e profundamente
institucionalizado que poderia ser tomado como tempo tout court. A última e duradoura
realização de Koselleck foi ter historicizado, contra essa tendência, a própria
“consciência histórica”. A fim de fornecer um fundamento e um contraste para o
cronotopo que governa nosso próprio tempo, eu gostaria de me referir, em seis pontos,
aos aspectos da mentalidade histórica que Koselleck descreve.
Primeiro, a humanidade “historicamente consciente” imagina a si mesma em
uma trajetória linear movendo-se através do tempo (desse modo, não é o próprio tempo
que muda como ocorre em outros cronotopos). Segundo, o “pensamento histórico”
presume que todos os fenômenos são afetados pela mudança no tempo – quer dizer, o
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
tempo aparece como agente absoluto de transformação. Terceiro, como a humanidade se
move através do tempo, ela pensa que deixou o tempo para trás; a distância tomada pelo
momento presente deprecia o valor das experiências passadas como pontos de
orientação. Quarto, o futuro se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades
em direção ao qual a humanidade está fazendo seu caminho. Entre o futuro e o passado
– e este é o quinto ponto – o presente se estreita em um “breve, não mais perceptível
momento de transição” (nas palavras de Baudelaire). Eu creio – sexto ponto – que o
presente comprimido dessa “história” acabou por fornecer ao sujeito cartesiano seu
habitat epistemológico. Foi neste lugar em que o sujeito, adaptando experiências do
passado ao presente e ao futuro, fez escolhas entre as possibilidades oferecidas pelo
último. Escolher opções entre as coisas que o futuro aguarda é a base e moldura para o
que chamamos “ação” (Handeln).
Ainda hoje, reproduzimos o tópico do “tempo histórico” na conversação diária,
tanto quanto nos discursos intelectuais e acadêmicos, mesmo se ele não fornece mais a
base para os modos como adquirimos experiências ou agimos. Que não vivemos mais
em um tempo histórico pode ser visto mais claramente com respeito ao futuro. Para nós,
o futuro não mais se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades; pelo
contrário, é uma dimensão cada vez mais fechada para todos os prognósticos – o que, ao
mesmo tempo, parece esboçar algo como uma ameaça. O aquecimento global
continuará com todas as consequências que foram previstas já há algum tempo;
permanece a questão de se a humanidade conseguirá obter crédito suficiente para mais
uns poucos anos, antes que a mais catastrófica das consequências dessa situação ocorra.
Apesar de toda a fala sobre como o passado supostamente desvaneceu, outro problema
apresentado pelo novo cronotopo é que nós não mais somos capazes de legar algo à
posteridade. Ao invés de cessar de fornecer pontos de orientação, os passados
inundaram nosso presente; sistemas automatizados de memória eletrônica têm um papel
central nesse processo. Entre os passados que nos submergem e o futuro ameaçador, o
presente se tornou uma dimensão de simultaneidades expandidas. Todos os passados de
memória recente formam parte deste presente distendido; é cada vez mais difícil para
nós excluir qualquer tipo de moda ou música que se originaram em décadas recentes do
tempo de agora. O amplo presente, com seus mundos simultâneos, até agora tem
oferecido demasiadas possibilidades; então, à identidade que ele possui – se é que tem
alguma – faltam-lhe contornos claros. Ao mesmo tempo, o fechamento da futuridade
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(pelo menos em sentido estrito) impossibilita agir, pois ação alguma pode ocorrer onde
não há lugar para sua realização ser projetada. O presente que se alarga dá lugar para
mover em direção ao futuro e ao passado, entretanto tais esforços parecem,
ultimamente, que retornam ao seu ponto de partida. Nesse ponto, eles produzem a
impressão de “mobilização” intransitiva (para emprestar uma metáfora de Lyotard). Tal
movimento imóvel quase sempre se revela estagnado, o fim de um propósito
direcionado. Se, então, o estreito presente da “história” era o habitat epistemológico do
sujeito cartesiano, outra figura de referência (e autorreferência) deve emergir do amplo
presente. O que segue deve explicar por que nós, desde já há alguns anos, sentimos a
pressão intelectual – que não cessou de se intensificar – que leva ainda mais uma vez, a
que aspectos dessa physis façam parte do modo como concebemos e conceituamos os
seres humanos?
Em nosso presente, a disposição epistemológica para configurar um modelo de
autorreferência que é mais firmemente enraizado no corpo e no espaço, se encontra com
um desejo que emergiu na reação a um mundo determinado pela ênfase excessiva na
consciência; esse é o desejo que, como ressaltamos, encontrou sua nota e expressão no
melancólico esforço da crítica cultural. Quanto ao novo e expansivo presente, então, já
há sempre duas dinâmicas que se opõem e ao mesmo tempo formam um campo de
tensão. De um lado se tem uma insistência na concretude, corporeidade e na presença da
vida humana, onde o eco da crítica cultural se mistura com os efeitos do novo
cronotopo. Tal insistência permanece oposta à espiritualização radical, que abstrai de
espaço, corpo e contato sensório com as coisas-do-mundo – esse é o “desencantamento”
decorrido pelo “processo de modernização”. Entre estes dois poderosos vetores, nosso
novo presente começou a desdobrar suas formas particulares e a envolver uma
fascinação única.
Com frequência eu ouço a crítica ou objeção de que eu claramente e mesmo
nostalgicamente, tomo partido da presença e dos sentidos contra as realizações culturais
da consciência, da abstração e, finalmente, da tecnologia eletrônica. Tais observações
são certamente acuradas, não me preocupo em me defender contra elas. Parece
desnecessário fazê-lo, sobretudo porque eu de modo algum objetivo fazer exigências
normativas em minhas escolhas. Contudo eu recorreria certamente aos privilégios da
idade – uma idade que avança nos anos – que me seja permitido preservar alguma
distância, até mesmo uma distância polêmica, dos desenvolvimentos dos últimos
tempos. Estou certo de que o mundo eletrônico, seus ritmos e suas formas de
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comunicação, me repugnam e dificultam minha aceitação porque iniciaram sua marcha
em um momento no qual – pelos quarenta anos de idade – encontraram certos arranjos
de minha vida diária e de meu trabalho que me faziam sentir confortável e produtivo.
Muitos deles – por exemplo, escrever longas notas em cartões em branco de tabelas com
uma superfície suave ou ditar a correspondência em um pequeno gravador – hoje
parecem como ilhas distantes de atividade ameaçada pela inundação eletrônica que
nunca regredirá.
O futuro de nosso planeta cada vez mais aquecido transforma uma visão que
tenho de um presente tecnológico desde muito ultrapassado, que se estende para nosso
amplo presente. Nós que somos mais velhos não temos o direito de permanecer em
nossas ilhas tanto quanto possível? Por que deveríamos nos adaptar de modo
desajeitado às demandas da eletrônica que dominam o novo presente? Já estamos
vivendo em um vasto momento de simultaneidades. Não há necessidade de nos alijarem
– nós que fazemos parte dos muitos passados – de nossos paraísos no amplo presente.
2. No amplo presente
As maneiras pelas quais os horizontes do futuro e do passado são
experimentados e conectados com um presente cada vez mais ampliado dão forma ao
ainda não nomeado cronotopo, no qual a vida globalizada dos primeiros anos do século
21 transcorre. “Vista do exterior”, a forma desse novo cronotopo o torna diferente de
outros cronotopos, em especial o da “consciência histórica”. “Vista do interior”, ela dita
as condições sob as quais o comportamento humano encontra suas estruturas
constitutivas e suas experiências. A visão segue – para ser historicamente preciso – a
intuição de Edmund Husserl de que “o tempo é a forma da experiência”. Os contornos
da vida no presente (que difere fundamentalmente daquela do “tempo histórico”) sequer
foram esboçados por uma perspectiva que não se concentrasse tão somente no
fenômeno individual. De modo algum eu pretendo ter feito isso aqui de modo completo
ou mesmo elegante. Meu propósito é mais modesto. Nas páginas seguintes, eu reunirei
observações sobre os cinco capítulos deste livro; talvez isso produza uma primeira
visão, algumas especulações iniciais sobre a vida no novo presente.
O relato fragmentado de nosso amplo presente consiste em quatro oscilações
que, certamente – e esse aspecto vale ressaltar – não esgotam e nem são indicação de
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
sua totalidade. Eu considero que a oscilação é constitutiva do presente, e por isso creio
que será produtivo para nossa compreensão reter essa figura de pensamento,
considerando que um dia o projeto de dar conta do todo do amplo presente possa ser
levado a cabo. A dramática polarização entre o cotidiano, de um lado, e de outro a
crescente insistência, se amplamente reativa, nas demandas de presença, formatam
nosso presente. Essa polarização cria o campo de força no qual, hoje, vivemos. Os
opostos que o compõem não podem ser “mediados” nem “resolvidos” – o que mesmo se
quer dizer com “síntese” da reflexividade à distância e intensidade participativa?
Eu creio que “oscilação” é chave, pois, em qualquer momento dado, pode-se
ocupar apenas um dos dois lados do campo. De um momento para outro a liberdade
absoluta de mudar de posição existe, e é impossível esquecer o outro pólo e até mesmo
resistir à sua atração. Isso pode, pelo menos em parte, explicar a mobilização
intransitiva que caracteriza o presente, que ameaça nos esmagar e, como regra geral,
força a linearidade de nossos projetos e ações a uma ineficiente circularidade.
Finalmente, vale a pena enfatizar mais uma vez que a liberdade de seguir impulsos do
movimento em diferentes direções, o que de fato apreciamos, não tem levado à
liberdade de selecionar os móveis da atenção à vontade – nem, certamente, a conduzir
projetos a bom termo. O amplo presente sempre nos direciona a determinados objetos;
isso não significa, pelo menos em princípio, que não devemos estar genuinamente
interessados e apaixonados por eles.
Para começar – e aqui está a primeira das quatro oscilações que serão
discutidas – o amplo presente aponta para nós (mais talvez do que nunca na história da
humanidade) o planeta Terra, o lugar das condições mesmas para nossa sobrevivência
individual e coletiva. A necessária referência ao planeta não é mais apenas a
consequência de uma disposição de espírito que se espalhou rapidamente na segunda
metade do século 20, quando projetos para a “conquista do espaço” se tornaram mais
fundamentados. Desde então tem sido aceito que as condições que favorecem a vida no
planeta não durarão. Consequentemente uma nova, ainda que muito tímida virada para
as coisas do mundo e seu cuidado se desenvolveu, tanto como tarefa científica como
política, mas também como um habitus cada vez mais intenso da existência cotidiana.
Oposta a essa necessidade e paixão pela proximidade das coisas surge um
ceticismo filosófico acrítico, o qual, depois de séculos de uma longa pré-história
encontrou sua expressão intelectual canônica na assim chamada “virada linguística”. As
observações que fazemos asseguram certeza apenas nas linguagens que usamos (e,
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pode-se acrescentar, na introspecção permitida pela consciência). Assim, prossegue o
raciocínio, “conhecimento” compartilhado sobre objetos externos à linguagem e à
consciência, ficará sempre sob suspeita de ser meramente “uma construção social da
realidade”, o que implica ser impossível chegar ao que é “real realmente”. A
potencialidade dramática do primeiro ponto de oscilação torna-se clara se virmos nessa
posição filosófica (a qual, em termos de consequências com relação a nossas vidas é em
si bastante inofensiva) um paralelo com a fusão dos mercados “real” e “financeiro”, que
muitos especialistas consideram a raiz da crise financeira que tomou conta do mundo
desde 2008 – quer dizer, se identificarmos um paralelo entre o estilo filosófico que
armazena apenas a linguagem e a consciência, de um lado, e o comércio e especulação
com “derivativos”, de outro lado. Prolongadas crises econômicas impõem o atraso nas
medidas e intervenções ecológicas e políticas, com consequências para a
sustentabilidade do planeta que, ao que tudo indica, são irreversíveis. Não há uma óbvia
alternativa pronta para uso, pois mesmo especialistas não sabem como uma nova
economia possa começar sem acabar voltando a esse tipo de especulação.
A segunda oscilação envolve a dimensão corporal de nossa existência. Em um
ambiente de trabalho normal, que em um número crescente de profissões se dá na frente
de uma tela de computador, nossos corpos se tornaram obsoletos sob muitos aspectos
funcionais. Ao mesmo tempo, entretanto, os discursos da crítica cultural reivindicam a
definição de direitos corporais, e o novo e largo presente também atribui a eles uma
posição de importância epistemológica. Um aspecto do segundo ponto de oscilação
concerne uma tendência que se encontra particularmente nas sociedades europeias, de
ceder a responsabilidade e o poder sobre os corpos individuais inteiramente ao Estado.
Expectativas de cuidados à saúde organizados e financiados pelo Estado aos doentes e
idosos literalmente não conhecem limites. (É impossível convencer intelectuais
europeus que é possível haver pessoas que, mesmo indo contra seus interesses
econômicos, não desejam entregar os cuidados com sua saúde ao Estado.) Levando em
conta o pacifismo de facto e as iniciativas de protesto civil por toda parte, há notável
pequena resistência ao serviço militar obrigatório (o qual, em muitos contextos
nacionais, serve, é claro, para minimizar o desemprego entre jovens). Mais assustador
de tudo, talvez, seja o fato de que há ainda a norma nos sistemas legais ocidentais de
incluir o suicídio como violação à lei. Claramente, o corpo e a vida não estão à
disposição do sujeito individual.
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No outro extremo do segundo campo de oscilação – e neste as demandas são
mais radicais do que em qualquer outra época – assume-se que o corpo do indivíduo,
como um objeto de jogo e de experimentação, está disponível de graça ao indivíduo – e
que é apenas correto que esse seja o caso. Os limites da sexualidade legítima, cremos,
devem ser determinados somente pela tolerância e consentimento dos adultos
envolvidos. Claramente, em desacordo com os códigos legais concernentes ao suicídio,
é proibido hoje para o Estado restringir os altos níveis de risco envolvidos em certo tipo
de esportes (por exemplo, escalar montanhas). Conta como dado que em toda vida
individual a liberdade deve ser preservada na escolha de parceiros sexuais,
pertencimento a comunidades religiosas e ocupações profissionais – e que cargos
abandonados sejam preenchidos em dado momento e à vontade, por meio de arranjos
transitórios. Nossa vida no amplo presente está se dissolvendo cada vez mais em
exercícios práticos, como mostrou em primeira mão Peter Sloterdijk.
Depois da oscilação, na verdade um salto, entre o desejo pela vida coletiva em
nosso planeta e o apagamento de concretude da vida (que parece enfraquecer uma e
outra vez), e após a segunda oscilação, que ocorre quando se abre mão do direito ao seu
corpo para os cuidados do Estado mesmo enquanto, ao mesmo tempo, se arroga
agressivamente possuí-lo como joguete, surge a terceira das quatro oscilações que
caracterizam a vida em nosso amplo presente. Esse campo de força também começa
com o lado físico da existência humana, ao menos em parte. Ele diz respeito a uma
flutuação que ocorre na lida com o poder. Aqui eu entendo “poder” como violência que
se deslocou da esfera da ação e do efeito imediato para o cerne de cru potencial.
“Violência” concerne aos corpos humanos que, ao bloquear ou ocupar espaço, oferecem
resistência a outros corpos. Faz parte do processo de modernização – alguns diriam
parte do todo processo histórico que merece ser chamado “processo civilizatório” –
seguir a ordem geral para que a proximidade da violência seja transformada em poder,
que existe em reserva.
Desde meados do século 20, tornou-se prática usual no mundo ocidental não
mostrar armas publicamente. Desde que o comunismo de Estado entrou em colapso na
Europa Oriental, em 1989, as paradas militares se tornaram raras no palco internacional.
Para intelectuais e muitas organizações internacionais, a pena de morte passou a ser
vista como sintoma de barbárie, e a cada dia a questão se torna mais premente quando –
com exceção talvez de casos extremos de autodefesa – é possível identificar situações
nas quais o uso de força militar é justificado. A proposta feita no início de 2010 pelos
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
políticos alemães de não combater o Talibã militarmente mas, ao invés disso, oferecer €
30 000 para todos os que aderissem à renúncia de suas convicções ideológicas, pode
representar a culminância da eliminação progressiva da força militar como instrumento
político.
Contudo, nesse mesmo presente, e em grau maior do que jamais, as pessoas
infligem violência a seus próprios corpos desnecessariamente e sem uma motivação
clara e prática. Parte ou talvez o cerne da “mobilização geral”, que já discutimos, é a
obrigação geral e impessoal de sempre estar em excelente “forma” física. Essa
exigência não respeita diferenças de idade e, consequentemente, o prolongamento
indefinido da juventude se tornou um objetivo universal. A cirurgia plástica é o próspero
comércio da atualidade e suas operações são a mais favorável expressão da nova
autorreflexividade física. Já na adolescência a pressão para adaptar seu corpo a imagens
ideais é experimentada com tal intensidade entre as jovens mulheres especialmente, que
acaba em diversos tipos de desordem alimentar – o equivalente a uma duradoura
violência ao próprio corpo. Há, além disso, piercings, tatuagens, mutilação autoinfligida
e, finalmente, ondas de suicídio; aqueles que são “suas próprias vítimas” quase sempre
associam (desde que ainda possam falar) essas atividades com o forte desejo por testar a
presença de seus corpos por meio da dor.
Tais formas de comportamento, eu creio, não pertencem aos micropouvoirs –
isto é, às operações de poder exercidas no eu – que Michel Foucault discutiu inúmeras
vezes, especialmente em seus últimos escritos. Foucault estava se referindo a uma figura
estruturalmente similar à auto-reflexão: a internalização de valores socialmente
estabelecidos, aos quais as pessoas adaptam sua “própria” conduta individual.
Entretanto, como nenhuma violência física está em jogo aqui, só é possível falar de uma
função do poder auto-refletida. Estas formas de comportamento que se opõem
fortemente à eliminação da violência da sociedade e da política, e não podem ser
reconciliadas com ela, são casos nos quais o poder é exercido no eu – não há autoridade
que permaneça por trás dessas atividades, e que seja responsável por elas. Se a mídia
eletrônica produz uma obrigação autoescravizante “de estar disponível” que nos tornou
pessoas cuja subjetividade não tem dono, então a violência auto-reflexa representa um
tipo de intensificação dramática diante da qual somos indefesos. Quanto mais a situação
se torna autoevidente e urgente para nós, tanto mais importante parece ser para nossa
sobrevivência que nos lancemos nos sonhos e ilusões do mundo como um lugar sem
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
violência ou poder.
A quarta e última oscilação de nosso amplo presente que gostaria de discutir,
concerne o modo como pensamos. As mídias eletrônicas por meio de sua tendência em
eliminar o espaço da comunicação, vêm acelerando o tempo pelo qual se faz a
circulação de pensamentos. Como em um amplo presente com um futuro obstruído não
há mais lugar para conceber a ação humana com base em aspiração de fins, o pensar
pode, hoje mais do que nunca, se tornar sinônimo de circulação – quer dizer, um
processo de meramente passar pelos pensamentos. (Por essa precisa razão, talvez,
alguns de nós experimentem a “criatividade” como habilidade de interceptá-los.) Em
vez de conceber projetos ou “edifícios” de pensamentos, nosso papel no sistema de
circulação de conhecimento se parece com o atleta jogando “futebol de um só toque”.
Em vez de tentar reter a bola até dar um passe decisivo ou um petardo, jogadores
deveriam chutar a bola a um parceiro que se movimenta livremente em uma posição
descoberta. A bola deveria circular sem interrupção, sem parar até mesmo nos breves
momentos de descanso. Como jogadores líderes, os “mestres pensadores” também
parecem desaparecer sob essas condições.
De outro lado desse quarto campo de oscilação polar, é o pensamento
justamente como uma práxis e uma dimensão da existência que tem sido reivindicado
como um modo de tomar distância das acelerações existenciais alimentadas pela
“mobilização geral” – de fato, até certo grau, ele até oferece certo potencial para a
resistência.
Hoje, a equação do “pensamento” e a “distinção” nas obras de Aristóteles
receberam uma atenção renovada ainda mais quando essa última é compreendida não
em termos da diferença entre conceitos, mas como uma intervenção que ocorre entre as
coisas-do-mundo. Nas últimas décadas, nenhum filósofo penetrou nesse tema com mais
paixão que Jean-François Lyotard. Simplesmente tomando o tempo necessário, seja só
ou em grupo, pensar sem um objetivo prático na mente representou, para ele, a última
possibilidade de ação “revolucionária” que sobrou para os intelectuais (o que quer que
possamos considerar estar em jogo com o título “revolucionário”, cujo uso é uma
espécie de salvo conduto).
O mais importante para mim são as especulações de Lyotard sobre os modos de
pensar específicos dos sexos, que são recobertos com experiências particulares de
funções corporais e físicas – por exemplo, sua intuição de que a intensidade específica
do pensamento feminino deve ter algo a ver com a intensidade específica do sofrimento
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
físico. É claro que o objetivo não é voltar às suposições do mestre pensador que nos
deixou em 1998. Pensar é um ponto de referência na oscilação que caracteriza nosso
amplo presente, pois no pensamento se pode saltar do sentimento de aceleração e
complexidade que nos deixa perplexos, até um enclave desacelerado de calma.
Quanto mais vezes e talvez até mesmo mais desejosamente nos últimos anos eu
me deixei levar pela tentação em insistir na presença e, por isso mesmo, em descrever e
analisar o fenômeno individual de nosso presente, mais encontrava uma reação, a qual
rapidamente se transformou em objeção, de que o quase agressivo pessimismo de meus
diagnósticos entrasse em conflito com o até certo ponto otimista (ou, de qualquer modo,
amigável) tom do que eu disse. No que me toca, posso ver, em ambos, no que escrevi e
na minha vida, um crescente pessimismo aliado com ocasional “otimismo” – entretanto,
não vejo contradição entre eles.
As condições sociais, e por assim dizer, as condições cósmicas para esse
pessimismo – com todos seus muitos efeitos – são óbvias. Elas formam o tema dos
capítulos deste livro (sem, com tudo isso, ser parte de um programa de pessimismo
gritante). Um pensamento complicador, que é tão simples quanto terrível, obscureceu
essa cena há não muito tempo atrás, e ainda não me deixou. Ele me ocorreu pela
primeira vez quando eu estava lendo “Carta sobre o Humanismo”, que Martin
Heidegger escreveu como resultado imediato da Segunda Grande Guerra. Pode ser posta
de modo melhor como uma questão retórica: como poderão os seres humanos presumir,
com certeza, que suas habilidades cognitivas e intelectuais serão suficientes para
assegurar a continuidade da existência enquanto espécie? Muitas culturas na história
viveram sob a premissa existencial de que há simetria cognitiva – até mesmo harmonia
– entre o “homem”, que é produto de desenvolvimento, e o universo que forma seu
ambiente (o qual ele tenta compreender). Os avanços que as ciências naturais
permitiram nas últimas décadas dificilmente encorajam permanecer com essa crença.
Mas mesmo se uma situação melhor existisse com respeito à inteligência humana, e
mesmo se o futuro ecológico revelasse projeções menos dramáticas, nós, como espécie
e como comunidade compartilhando um destino cósmico, nós não podemos prosseguir
com certeza. Isso, entretanto, nada mais é do que a reafirmação dos argumentos
“verdes”, que ninguém precisa ouvir novamente.
Recentemente, meu filho mais velho, que é piloto da Força Aérea Alemã, falou
com notável conhecimento de causa de uma Guerra Mundial por recursos. Eu
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
certamente escaparia dela, ele também, possivelmente. Mas sua filha, minha neta Clara,
não. A última parte do que ele disse me afetou profundamente – “bateu na minha porta”,
como se diz, de modo mais profundo que as abstrações do pensamento filosófico ético o
fariam. Ao mesmo tempo – à parte uma “experiência geral” até certo ponto vaga – não é
inteiramente claro porque a vida e o sofrimento potencial de minha neta me pegaram
desse modo tão intenso. De qualquer modo, eu posso associar a intensidade de minha
preocupação com a intensidade da alegria que experimento quando Clara reconheceu
meu rosto pela primeira vez – com nossa alegria quando ela senta em meu colo e,
juntos, olhamos para uma gravura de um livro.
É seguro dizer que todos nós sentimos um anelo especial pelos momentos de
presença em nosso amplo presente. Eu não diria que é “otimismo” eu tentar encontrá-los
– agarrá-los e estar aberto para sua completude. Em vez disso, é uma questão de desejode-presença. Desistir dele – ou sacrificá-lo à pseudo-obrigação intelectual de crítica
permanente – seria realmente pedir muito.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Resenha
RESENHA
Resenha: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnação: Ensaios
Escolhidos. Introdução e organização Luciana Villas Bôas; Tradução Luciana Villas
Bôas, Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012.
Marcelo de Mello Rangel
O primeiro capítulo de “Graciosidade e Estagnação” é dedicado à compreensão da
história dos conceitos, e isto a partir da evidência de que ela teve uma ascensão e um
esmorecimento súbitos. Chamo atenção para o início desse capítulo. Gumbrecht sentado
à escrivaninha, em meio a sua biblioteca, observando seus Dicionários: os doze volumes
do Dicionário histórico de filosofia, de Joachim Ritter, encadernados em azul-ferrete; à
sua frente, em vermelho duradouro e à altura do chão “na margem inferior de seu campo
de visão”, os oitos volumes dos Conceitos históricos básicos organizados por Otto
Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck, “para momentos de necessidade aguda de
orientação histórica”; além dos Conceitos estéticos fundamentais, em “elegante” cinza
metálico, “como convém ao tema”; do Manual de conceitos político-sociais básicos na
França (1680-1820), amarelo e que “durante anos foi especialmente importante”; ainda
mais ao fundo, em azul-marinho e “quase intactos”, os fascículos da Enciclopédia do
conto de fadas e, “novamente à altura do chão”, em encadernação pós-moderna e
marmorizada, o dicionário da Ciência da literatura alemã, “lançado como terceira
edição ‘totalmente revista’ do Léxico da história da literatura alemã”.
Esse início, além de agradável, condensa e antecipa boa parte do que será discutido
ao longo das páginas subsequentes. À escrivaninha, Gumbrecht procura e observa seus
dicionários e demais obras de referência, construídos todos a partir das compreensões e
estratégias próprias à história dos conceitos (ou às histórias dos conceitos?), no entanto,
algo mais parece relevante. Os Conceitos históricos básicos e o dicionário da Ciência
da literatura alemã encontram-se à altura do chão, fora de seu campo de visão, em lugar
de difícil manuseio, e isto porque já não recorre tanto a eles. O Manual de conceitos
político-sociais básicos na França parece (quase) amarelado e, mais ao fundo, ainda

Prof. Dr. Programa de Pós-graduação em História da UFOP. Agradeço aos meus caros Susana de Castro
pelo convite e estímulo, a Valdei Lopes de Araujo e a Hans Ulrich Gumbrecht, pelo carinho e diálogo. O
presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a
formação de recursos humanos.
mais distante, a Enciclopédia do conto de fadas, “quase intacta”. Apesar de estarem ali,
em sua biblioteca, esses dicionários e obras de referência não participam mais de sua
rotina. Se precisava procurar por eles é porque não eram mais imprescindíveis, o que
está em questão, então, é o próprio esmorecimento silencioso da história dos conceitos.
Segundo o autor, a história dos conceitos é própria a uma época, as décadas de 60,
70 e 80, no interior da qual ainda se tinha esperança em relação à preparação de um
futuro melhor, ela seria uma espécie de último suspiro “historicista”, o qual se dedicava
à compreensão do presente a partir de uma análise o mais fiel possível do passado, e isto
em prol de uma intervenção adequada (e cientificamente controlada) no presente e
capaz de construir um futuro ideal. No entanto, desde a década de 90, no interior do que
chama de “cronótopo pós-moderno”, o futuro teria se fechado, ou ainda, passara a ser
imaginado e experimentado como um âmbito terrível, no qual ações terroristas e crises e
desastres climáticos, por exemplo, se adensariam. Os homens em geral, desde então, se
dedicariam a criar mundos no interior dos quais pudessem evitar a concretização desse
futuro terrível, nos quais revivessem incessantemente (com segurança) significados e
sentidos próprios ao passado, dinâmica que nos permitiria compreender, por exemplo, o
sucesso das festas plocs e a multiplicação de músicas, filmes e peças reencenados.
Gumbrecht evidencia, ainda, uma espécie de fragilidade e/ou de indecisão teórica
própria à história dos conceitos. Ela não teria se decidido, mais propriamente, no que
diz respeito à realidade, ou melhor, à relação entre linguagem e realidade, ou em outras
palavras, se existiria uma realidade para além da linguagem e se a história dos conceitos
seria capaz de acessá-la. Deficiência teórica ou mesmo indecisão (?) que seria, também,
uma espécie de necessidade de um tempo esperançoso, menos preocupado com questões
desse porte e mais dedicado à compreensão do passado para uma intervenção adequada
no presente em nome de um futuro ideal. Segundo Gumbrecht, essa deficiência ou
indecisão (?) talvez indique, também, algo como uma estratégia, no que concerne à boarelação entre a história dos conceitos e a história social, deficiência ou indecisão (?) que
“parece ter sido a força secreta do movimento da história dos conceitos”.
E claro, não é menos interessante a análise que Gumbrecht faz das reflexões de
Hans Blumenberg, de sua compreensão acerca da linguagem e do real, propondo sua
“metaforologia” como um empreendimento intelectual específico e disponível à época
de constituição e sucesso da história dos conceitos, o qual já disponibilizava uma crítica
contundente à ideia de que os conceitos são um meio privilegiado à compreensão da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
relação entre determinados mundos e o tempo, ou ainda, da especificidade de
determinados tempos históricos.
Ainda antes de terminarmos essa breve explicitação do primeiro capítulo de
“Graciosidade e Estagnação”, lembro do relato de Gumbrecht de uma reunião, na
década de 70, entre os principais expoentes da história dos conceitos (do grupo “poética
e hermenêutica”), da qual ele participou. Ele descreve Koselleck apresentando algumas
preocupações que então o aturdiam, o autor de “Futuro Passado” estudava e escrevia
sobre sentimentos específicos de parte dos judeus aprisionados pelo nacional
socialismo, sentimentos sublimes, impróprios à determinação linguística, e isto através
do exame de protocolos de sonhos de felicidade e de salvação num além-mundo.
Koselleck fora duramente criticado, “esbarrou no limite absoluto dos acontecimentos
transmitidos porque semanticamente comunicáveis, um limite que ele (e justamente essa
reserva foi decisiva) não procurou ultrapassar ou mesmo desfazer”. Gumbrecht oferece,
ao fim, uma análise detida da relação entre a história dos conceitos e o passado recente
alemão, de sua inadequação fundamental no que diz respeito à explicitação de uma
experiência que fora, também, extralinguística. Mais do que isso, (estranha) e se
pergunta pela não tematização explícita desse passado quer pelo próprio Koselleck, até
a década de 70, quer pela história dos conceitos em geral.
O segundo capítulo do livro recém-lançado de Gumbrecht, é dedicado à
investigação da relação entre linguagem e o que chama de “presença”, ou seja, os
corpos e materialidades que possuiriam uma existência autônoma (mas não
independente) em relação ao aparato intelectivo e à própria linguagem. Gumbrecht
critica, a um só tempo, a compreensão de que a literatura, de que a linguagem em geral,
seja capaz de evidenciar um real discreto e, ainda, critica o que seria uma espécie de
polo contrário, a compreensão de que não haveria real algum para além dos mundos que
seriam construídos no interior e a partir da própria linguagem, questionando autores
como Paul de Man (além de outros que também seriam orientados pelo
desconstrucionismo derridiano), pois “seria realmente a função central da literatura, em
todas as suas formas e tonalidades diferentes, chamar incessantemente a atenção do
leitor para a visão mais do que familiar de que a linguagem não possui referente (...)?”.
Segundo Gumbrecht, apesar da permanência de elementos próprios à “cultura de
sentido” “historicista” no interior do “cronótopo pós-moderno” - elementos como a
compreensão de que é possível o acesso privilegiado em relação ao real, ou bem a
compreensão de que a linguagem possui uma densidade intransponível, ou ainda mais,
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
que o real seria apenas uma impressão (uma imagem) postulada a partir dos mundos
construídos através da linguagem - viveríamos, hoje, numa “cultura de presença”, ou
seja, orientados, especialmente, pela pré-compreensão de que há uma relação tensa e
complementar entre sujeito (linguagem e inteligência) e real (corpos e entes ditos
naturais e objetos), não cabendo à interpretação, à evidenciação intelectiva, a
possibilidade de esgotamento do real. Nele, a relação entre sujeito e real seria
compreendida a partir de uma mútua implicação, que seria transcendental - o real como
a própria condição de possibilidade para toda e qualquer atividade intelectiva - e
transcendente - uma vez em que o real estaria em questão a cada atividade intelectivoprática. Nesse momento do livro, vale acompanhar, ainda, a leitura que Gumbrecht faz
de Heidegger, do Ser como espaço transcendental.
No terceiro capítulo, intitulado “Perda do cotidiano. O que é ‘real’ no nosso
presente”, Gumbrecht tematiza os reality shows (e também a internet, o e-mail, as
bibliotecas eletrônicas etc.), descrevendo-os como adequados à evidenciação do
cronótopo pós-moderno (do mundo contemporâneo). Segundo o autor, não se trata de
posicionar-se objetivamente frente a esse fenômeno, buscando interpretá-lo e produzir
enunciados adequados, mas sim de acompanhá-los e descrevê-los para deixar aparecer o
próprio mundo contemporâneo, o qual teria perdido o que podemos chamar de cuidado
pela aventura, ou melhor, teria produzido um novo real, virtual, quer através das mídias
ou mesmo através da história (importando do passado âmbitos já experimentados), e
isto porque, como já mencionamos acima, o real, mais propriamente, (podemos dizer
também o futuro), passara a ser pré-compreendido como imprevisível e, em última
instância, terrível: “isso significa que uma eventual perda da realidade no nosso
presente, caso possamos discerni-la, teria de ser definida como uma etapa específica de
exacerbação no decorrer de uma longa sequência histórica de desilusões da realidade”.
E ainda mais, investiga uma espécie de efeito colateral próprio a essa fuga da
realidade, a saber, de que os homens estariam sentindo uma espécie de nostalgia em
relação ao real, que seria restituída pelos próprios reality shows. Eles lembrariam e
permitiriam alguma experiência do real (perdido), do estar com amigos e familiares
relacionando-se fisicamente etc., aparecendo como um recurso virtual para o
enfrentamento, dessa vez, da nostalgia provocada pela própria opção da virtualidade (e
do individualismo extremo ou eletrônico). E contrariando a compreensão heideggeriana
de que esse mundo contemporâneo seria responsável por uma espécie de império do
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
impessoal (“massificação”), escreve sobre “esse novo cotidiano (que) de modo nenhum
confirmou o receio de Heidegger em relação ao enfraquecimento do indivíduo pelo
pronome impessoal ‘se’. Antes, as mídias eletrônicas conferem às consciências
individuais o poder de construir, a partir dos elementos que colocam à sua disposição,
os seus próprios mundos”.
No quarto capítulo, “Estagnação: temporal, intelectual, celestial”, o autor retoma as
discussões sobre o protagonismo da “cultura de presença” no “cronótopo pós-moderno”,
não obstante, lembra que elementos próprios à “cultura de sentido” historicista ainda se
fazem presentes. É especialmente interessante acompanhar a descrição fenomenológica
do mundo contemporâneo que Gumbrecht propõe a partir da tematização da queda do
socialismo de Estado na década de 80. O esmorecimento do socialismo de Estado
indicaria que o mundo contemporâneo perdia a sua “fonte de energia” (nas palavras de
Gumbrecht) própria ao “cronótopo historicista”, e entrava, assim, em um estado de
“estagnação”, como anuncia já no título do capítulo. Fonte de energia que significa,
também, uma atividade intelectual e prática incessantes a partir da expectativa (da
esperança) de que o futuro estava aberto e se constituía como espaço ideal à realização,
à felicidade. Chamo atenção, ainda, para a continuação dessa descrição do “clima”
(Stimmung) contemporâneo a partir da cena intelectual atual, hiperespecializada, na qual
grandes paradigmas teórico-práticos teriam se tornado raros, senão desaparecidos, e as
reflexões seriam determinadas pelo que chama de uma “cultura da memória”, própria a
um mundo que teria se virtualizado também através de um “presente ampliado”.
Ao fim do capítulo ainda descreve o que chama de “cultura de eventos”, que seria
uma espécie de lembrança e intensificação das reflexões de um Schiller e de um Adorno
(?), que nasceria a partir do desejo contemporâneo de resguardar-se do real (e de suas
surpresas, conflitos e tensões). A arte teria se tornado, assim, um espaço de
entretenimento e de ratificação de sentimentos e compreensões disponíveis ao invés de
provocar momentos sublimes capazes de complexificar e multiplicar enunciados e
juízos para o acompanhamento de um real que também tende à complexificação (a
partir de sua estrutura deveniente autônoma e transcendente), e “a pessoa que criticar
esse tipo de estrutura, seja por hábito adorniano ou até mesmo paixão política, revela-se
completamente antiquada ou descaradamente elitista, o que, no mundo da União
Europeia, talvez seja muito pior”.
No último capítulo, temos a descrição do fenômeno da dança, Gumbrecht é
auxiliado por reflexões as mais distintas, ao menos numa primeira visada, como
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Heinrich Von Kleist, o crítico de dança Edwin Denby e Heidegger (esse sempre
presente). Trata-se de um ensaio que nascera de um engano (se é que podemos utilizar
esse termo aqui, se é que ele é adequado à fenomenologia também gumbrechtiana), e
isto porque Gumbrecht fora convidado a escrever sobre jogo, mas entendera dança e,
quando percebeu seu “erro”, passou a falar sobre dança e jogo. Assim, relaciona ambos
os fenômenos, com o objetivo de explicitar esse último e, especialmente, de
acompanhar e descrever o fenômeno da dança. Toma o tango argentino para descrição e
termina com a compreensão de que a dança é um fenômeno antropológico fundamental,
ou melhor, pré-humano (instintivo ou ontológico), caracterizado pela necessidade da
experiência, a um só tempo, de equilíbrio e desequilíbrio, que resguardaria aos homens
o sentimento de aventura que teria sido obscurecido no interior do “cronótopo pósmoderno”. Gumbrecht mostra a dança como um fenômeno próprio à reaproximação
(equilibrada, ou melhor, entre equilíbrio e desequilíbrio), ou ainda, à reinserção (ou ao
reacolhimento), dos homens “no” âmbito real. A graciosidade capaz de ultrapassar o
clima de estagnação do mundo contemporâneo.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
RESENHA:
SEARLE, J. Liberdade e Neurobiologia. Reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem
e o poder político. São Paulo: UNESP, 2007, 101 páginas.
Lauren de Lacerda Nunes *
Gabriel Garmendia da Trindade **
Liberdade e Neurobiologia é um livro formado pela transcrição das conferências
proferidas por John Searle em Paris, no início de 2001, a convite da Universidade de
Paris-Sorbonne (Paris IV) e da UFR (Université de Formation et de Recherche), por
iniciativa de Pascal Engel. É importante ressaltar que o estilo oral dessas intervenções
foi conservado no livro.
Com este título instigante, a referida obra conduz à abordagem contemporânea
de problemas filosóficos canônicos como o livre-arbítrio, o poder político, a
consciência, entre outros temas tradicionais na filosofia. Searle é capaz de unificar tais
problemas sob o crivo de sua característica análise da linguagem e contempla o leitor
com uma abordagem atualizada. Por exemplo, o problema do livre-arbítrio, como o
título indica, é tratado sob a ótica da neurobiologia e Searle demonstra que esta ciência
em fase inicial coloca novas questões de extrema complexidade. Seria, por exemplo,
possível reduzir o livre-arbítrio a um estado de consciência e este a uma característica
do cérebro? Esta e outras questões são levantadas por Searle na primeira metade do
livro.
Na segunda metade do livro, quando Searle aborda questões sobre poder e poder
político, a linguagem é reconhecida pelo autor como instituição social de base. Sem a
linguagem, propõe Searle, instituições como o casamento e o dinheiro não seriam
possíveis. Searle realiza diversas relações entre poder político e linguagem, sempre
reafirmando que a correta análise da linguagem é capaz de considerar a totalidade do
mundo, reconciliando aquilo que se pensa com aquilo que as ciências naturais dizem. O
foco central da segunda metade do livro é justamente abordar como a política é possível
em um mundo formado por fenômenos físicos.
O livro é dividido em duas partes principais. A primeira delas é intitulada
*
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PPGF da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM-RS). Professora assistente na área de humanidades da Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA-RS), campus São Borja – RS. E-mail: [email protected]
**
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PPGF da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM-RS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: [email protected]
“Livre-arbítrio e neurobiologia” e subdivide-se nas seguintes unidades: O problema do
livre-arbítrio; A ação da consciência sobre o corpo; A estrutura da explicação
racional; O livre-arbítrio e o cérebro; A hipótese (1) e o epifenomenismo; A hipótese (2)
– O eu, a consciência e o indeterminismo; Conclusão. A segunda parte chama-se
“Linguagem e poder” e tem apenas uma subunidade: O poder político.
Na primeira subunidade, O problema do livre-arbítrio, Searle aponta os
principais aspectos do que ele considera uma espécie de “escândalo” na filosofia. Como
diversos outros problemas filosóficos insolúveis, o problema do livre-arbítrio apresenta
uma estrutura lógica padrão: por um lado tem-se uma crença ou conjunto de crenças às
quais se pensa ser impossível renunciar, por outro lado têm-se uma crença ou um
conjunto de crenças que entram em contradição com as precedentes, mostrando-se tão
restritivas quanto as primeiras.
De acordo com Searle, o problema do livre-arbítrio tem início porque se
considera que as explicações dos fenômenos naturais devam ser completamente
deterministas. Isso entra em choque quando se tenta explicar os comportamentos
humanos: parece que, de maneira característica, o fato de agir “livremente” ou
“voluntariamente” constitui para os seres humanos uma experiência que torna
impossível recorrer às explicações deterministas. Nesse sentido, Searle tenta explicar
como compreende o fenômeno do livre-arbítrio em suas linhas subsequentes.
Para Searle, existe uma espécie de “intervalo” entre um estado consciente e
outro, quando o agente está a tomar uma decisão. A consciência como que “percebe” a
existência de um intervalo mental onde é possível pesar determinadas razões a respeito
de uma decisão. O problema é que explicações por razões não são ordinariamente
causais, como, por exemplo, o fato de uma folha cair de uma árvore por força da
gravidade. Searle destaca que para as razões se tornarem causais, no caso da decisão
humana, deve haver um eu, uma entidade, um ego, que age nesse intervalo.
Por isso, é impossível reduzir o intervalo da decisão a algo determinado, o que
torna o problema do livre-arbítrio palpável. Logo, Searle conclui que o problema do
livre-arbítrio é voltado para fatos causais relativos a certos estados de consciência. O
que leva inevitavelmente à pergunta de como a consciência pode funcionar causalmente
sobre o corpo. Justamente sobre isso versa a próxima subunidade do texto de Searle,
intitulada A ação da consciência sobre o corpo.
Na referida subunidade a hipótese principal de Searle é: a consciência é uma
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
característica superior ou sistêmica do cérebro, causada por elementos inferiores, os
neurônios e as sinapses. Se isso estiver correto, como os neurônios se comportam no
caso do livre-arbítrio? A consciência, em seu plano “superior” concebe um intervalo na
hora da decisão racional. Como representar esse intervalo no plano neurobiológico?
Tarefa deveras complexa, uma vez que o plano neurobiológico é natural, logo
totalmente determinista. Seria o cérebro suficiente causalmente para explicar o
problema do livre-arbítrio? Com relação a isso, Searle levanta duas hipóteses: 1) O
estado do cérebro é causalmente suficiente; 2) Ele não é.
De acordo com a primeira hipótese, Searle afirma que não há liberdade no plano
neurobiológico, e cada etapa da sequência de acontecimentos neurobiológicos é causa
suficiente para a seguinte. A liberdade no plano psicológico/consciente seria mera
ilusão, o que torna essa hipótese insatisfatória. Já na segunda hipótese, Searle coloca
que a ausência de condições causalmente suficientes no plano psicológico/consciente
corresponde à ausência de condições causalmente suficientes no plano neurobiológico.
O problema com essa hipótese é que não existem intervalos no interior do cérebro e
teria que se examinar mais atentamente a relação existente entre a consciência e o plano
neurobiológico dos microelementos. Tarefa que Searle realiza em suas duas próximas
subunidades.
Intitulada A hipótese 1 e o epifenomenismo, esta seção se dedica a explorar
detidamente a primeira hipótese exposta anteriormente. Segundo Searle, a hipótese 1 é
um problema de engenharia. A palavra epifenomenismo refere-se ao fato de que a
consciência, enquanto tomada de forma separada do corpo ou do cérebro, não teria
influência nenhuma sobre o mesmo, este sendo o responsável pelas decisões racionais.
No exemplo da engenharia de um robô, funcionaria como se a experiência do
intervalo da decisão do robô fosse constituída por uma base material em que cada etapa
é determinada pela etapa precedente e pelo impacto de estímulos externos. Se os seres
humanos funcionarem assim, as decisões racionais não teriam nenhum impacto sobre o
universo e ocorreriam exclusivamente no plano dos microelementos. Essa hipótese
acaba com o tradicional dualismo mente/corpo, ao considerar a consciência apenas
como o estado em que se encontra o sistema dos neurônios, da mesma forma que a
solidez é o estado em que se encontra um sistema de moléculas, por exemplo.
Dessa forma, a experiência do intervalo na hipótese 1 seria epifenomenal, não
causalmente suficiente para induzir à ação, e a experiência dos processos conscientes de
pensamento não teria importância. Searle, entretanto, ressalta que comumente não
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
aceitamos o epifenomenismo da consciência, embora ele seja plausível no atual estado
de estudo do cérebro pela ciência. A não-aceitação do epifenomenismo da consciência
tem origem, segundo Searle, no fato de ele ir de encontro a tudo o que sabemos sobre
evolução. O epifenomenismo da consciência refuta a própria teoria da evolução, pois a
tomada de decisão racional é um fenótipo de considerável peso na escala evolutiva e no
desenvolvimento do organismo humano, destaca Searle. A questão é que a tomada de
decisão livre tem um preço alto a ser pago, que Searle expõe na sua próxima
subunidade.
Na seção A hipótese 2, o eu, a consciência e o indeterminismo Searle parte do
mesmo processo que adotou na seção anterior: construir um robô, agora baseando-se na
hipótese 2. Nesse caso, cada característica da consciência do robô seria inteiramente
determinada pelo estado dos microelementos, mas a consciência do sistema funcionaria
causalmente na determinação do estado próximo do sistema. Isso se daria por um
caminho de processos que não seriam deterministas, mas remeteriam a uma tomada de
decisão livre por meio de um eu racional agindo com base em razões. De acordo com
Searle e a sua abordagem do “intervalo”, a descrição desse robô baseado na hipótese 2 é
precisamente a situação humana.
O problema é que não se sabe se o cérebro satisfaz a essas condições e se for o
caso, não se sabe como ele faz. Qual seria a descrição neurobiológica de um eu racional
e volitivo? Como o cérebro cria um “eu” capaz de tomar decisões? Para se obter uma
“descrição cerebral” do eu, Searle afirma que se deve dispor dos seguintes elementos: 1)
uma descrição do cérebro que explique como este produz o campo unificado da
consciência1 associado à experiência do agir; 2) conhecer a maneira pela qual o cérebro
produz processos conscientes de pensamento, no âmago dos quais os parâmetros da
racionalidade já estejam integrados como elementos constitutivos.
A partir da descrição fornecida acima, Searle afirma não haver quaisquer
problemas metafísicos remanescentes relativos ao eu. Se for possível mostrar como o
cérebro chega a realizar tudo isso, a maneira pela qual ele consegue criar um campo
unificado de consciência para uma consciência capaz de uma atuação racional livre, terse-ia resolvido o problema neurobiológico do eu.
Mas mesmo que tudo isso seja resolvido, a questão que ainda permanece em
aberto é como o intervalo da decisão pode ter uma realidade neurobiológica. Para tratar
desse problema, Searle afirma inicialmente que as experiências que fazemos da ação
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
livre remetem às ideias de indeterminismo e racionalidade. Além disso, a consciência
intervém de maneira essencial na forma em que se tomam essas duas noções. O cérebro
é um órgão, portanto, natural e determinista. Como conciliá-lo com ideias de
racionalidade vinculada a indeterminismo? No intuito de clarificar a questão, Searle traz
um novo tema à discussão: ele afirma haver indeterminismo na natureza: o
indeterminismo quântico. A consciência é uma característica da natureza que manifesta
o indeterminismo. Logo, a consciência exprime um indeterminismo quântico.
É importante ressaltar, lembra Searle, que as perspectivas contemporâneas
habituais de pesquisa não se apoiam na mecânica quântica para explicar a consciência.
Principalmente porque é muito difícil passar de um indeterminismo à racionalidade.
Pois, usando os termos da física, indeterminação quântica equivale ao acaso e uma ação
livre é uma ação racional e não uma ação que ocorre ao acaso. Como explicar a relação
entre racionalidade e indeterminação quântica?
De acordo com Searle, não haveria outro método que não o mesmo da análise
entre os microprocessos do cérebro e a consciência. A indeterminação no plano dos
microelementos, se a hipótese 2 for verdadeira, pode explicar a indeterminação do
sistema, mas o acaso que se produz nesse plano não implica o acaso no âmbito do
sistema e o método de análise prova-se novamente frente a uma questão em aberto.
Dessa forma, Searle finaliza a análise da hipótese 2.
Como conclusão a essa primeira parte do livro, Searle afirma que nenhuma das
hipóteses expostas é verdadeiramente atraente. A hipótese 1 mostra-se em conformidade
ao que comumente se sabe sobre biologia. Porém, Searle mostra que basta a seguinte
pergunta para que ela se não se sustente: “se demonstrássemos que a tomada de decisão,
de fato não existe, você racional e livremente, tomaria a decisão de aceitar o fato de que
tais decisões não existem”? Essa pergunta, formulada no espírito da hipótese 1, lembra
Searle, no entanto, vai além do que ela permite: exige, racional e livremente que se faça
uma predição – coisa impossível com base na hipótese 1.
A hipótese 2 acaba por gerar mais problemas do que solucioná-los. Ela traz as
questões da consciência e da mecânica quântica. Para responder ao enigma do livrearbítrio é preciso, de acordo com Searle, que se esteja seguro em relação ao segundo
enigma, da mecânica quântica. Logo, a discussão, ainda permanece complexa e longe de
um final.
A segunda parte do livro se chama “Linguagem e poder”. O objetivo dessa
conferência é explicar a ontologia do poder político e o papel da linguagem na
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
constituição do poder. A pergunta principal de Searle nessa seção é: como pode existir
uma realidade social e institucional em um mundo feito de partículas físicas? Da mesma
forma que conduziu a discussão na primeira parte do livro, Searle tentará novamente
traçar paralelos e relações entre o fenômeno político e a realidade física. Como os dois
se relacionam? Qual é o vínculo entre eles? A linguagem, responderá o autor.
Para tanto, Searle inicia sua exposição separando os elementos da realidade
dependentes e independentes do observador. Como dependentes ele cita exemplos como
dinheiro e linguagem. Como independentes ele cita exemplos como força e gravidade.
Além dessas distinções, Searle acrescenta mais quatro: objetividade e subjetividade
epistêmicas e objetividade e subjetividade ontológicas. As primeiras seriam
propriedades apenas de asserções.
Uma asserção epistemicamente objetiva tem o seu valor de verdade determinado
independentemente de sentimentos e preferências do observador. Por exemplo, “Van
Gogh nasceu na Holanda”. Já uma asserção epistemicamente subjetiva caracteriza uma
opinião. Por exemplo, “Van Gogh é melhor que Monet”.
Objetividade e subjetividade ontológicas, por seu turno, seriam propriedades da
realidade. Por exemplo, a dor e a cócega seriam propriedades ontologicamente
subjetivas, dependem do fato de que sejam experimentadas por um sujeito humano ou
animal. As propriedades ontologicamente objetivas são, por exemplo, as montanhas e os
planetas. Suas existências não dependem das experiências subjetivas.
Em continuidade a esse raciocínio, Searle afirma que toda realidade política é
relativa ao observador. Uma eleição e um parlamento só são possíveis se as pessoas
adotarem certas atitudes a respeito destes. Logo, a política é formada por entidades
ontologicamente subjetivas, mas há algo de especial: é possível fazer asserções políticas
epistemicamente objetivas. Um exemplo disso é a presidência dos Estados Unidos:
relativa ao observador, ontologicamente subjetiva. Já o fato de que Barack Obama é o
presidente é um fato epistemicamente objetivo. A explicação para essa natureza dual da
política demanda uma análise criteriosa sobre alguns conceitos. O primeiro deles é o
conceito aristotélico de homem como animal político.
Existem animais sociais, mas o homem é um animal político, ressalta Searle. O
que se acrescenta aos fatos sociais para que se tornem fatos políticos? Um fato social é
basicamente
a
capacidade
de
intencionalidade
coletiva.
Está
presente
em
comportamentos de cooperação, desejos ou crenças compartilhadas, nos quais os
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
agentes estão conscientes do compartilhamento. Para haver a passagem dos fatos sociais
aos fatos institucionais precisa-se de dois elementos suplementares. A atribuição de
funções e as regras constitutivas.
Searle descreve a atribuição de função do seguinte modo: seres humanos
utilizam toda a espécie de objetos para realizar funções, graças às suas características
físicas. Por exemplo, o uso de um cajado para se apoiar, de uma faca para cortar, etc.
Em um nível mais elaborado utilizam facas para fabricar objetos como cadeiras.
Contudo, Searle destaca que os seres humanos, além disso, atribuem funções a objetos
sem considerar sua estrutura física, mas na aceitação de seu status.
O status é acompanhado de uma função somente obtida com a aceitação coletiva
pela comunidade do status desse objeto, e pelo fato de que esse status seja portador
dessa função. Um exemplo de tal objeto é claramente o dinheiro. Não é por sua
estrutura física que realiza sua função, mas porque se adota uma série de atitudes
coletivas a seu respeito. Como tudo isso é possível?
Searle afirma que o que torna a atribuição de função através do status aceito
coletivamente é a chamada “regra constitutiva”. São regras que, além de regular o
comportamento dos seres humanos, criam a possibilidade de novos comportamentos, e
explicam os fatos institucionais. Sua forma é “X é igual a (um valor de) Y no contexto
C”. Ou seja, tais regras corroboram asserções do tipo “certa pessoa possui certas
qualificações correspondendo ao posto de presidente dos Estados Unidos”.
Quando se afirma, “fulano merece ser chefe” levam-se em consideração certas
coisas como tendo certo status, e isso constitui o elemento-chave que permite passar da
simples atribuição de funções dos animais e da intencionalidade coletiva para a
atribuição de funções de status. Essa propriedade torna possíveis os fatos institucionais,
que são constituídos pelas funções de status, destaca Searle.
Os fatos institucionais são dotados de força sobre aqueles que os aceitam.
Entretanto, Searle assevera que não se trata de força bruta: os poderes institucionais são
sempre questões de direito, deveres e obrigações. Por isso, também são chamados de
poderes deônticos. Tanto esses poderes quanto os fatos institucionais são representados
por meio da linguagem. Searle é enfático nesse ponto: a linguagem é um meio de
representação dos fatos institucionais, um meio para que sejam existentes e as pessoas
acreditem neles.
Dessa forma, Searle adentra em sua área preferida: a linguagem. É importante
ser dito que ela não é um mero fato institucional: é a instituição social de base,
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
necessária para a existência das outras instituições sociais. Os elementos linguísticos se
autodefinem, pois se vive em uma cultura que os considera linguísticos e tem-se uma
capacidade inata para encará-los como tais. Por outro lado, o dinheiro ou o casamento,
por exemplo, não se autodefiniram, lembra Searle. Precisa-se de um meio para
identificá-los, e este meio é certamente o linguístico ou simbólico. Logo, a função da
linguagem é primordialmente comunicar, mas ela é também parte constitutiva da
realidade institucional.
Por fim, Searle intitula sua última subunidade de O poder político e nela faz uma
síntese de seu pensamento a respeito da política. Afirma inicialmente que sua concepção
de realidade social e de racionalidade não pode ser desatrelada de uma concepção
implícita do poder político. No intuito de corroborar essa ideia, faz uma lista de
propostas.
Na primeira de suas propostas, Searle afirma que o poder político é como já foi
mencionado, uma questão de funções de status e por isso é um poder deôntico,
totalmente diverso de qualquer ideia sobre poderes baseados na força bruta.
Na segunda proposta, Searle relaciona poder político e poder econômico e
ressalta que usualmente ambos são tratados como possuindo a mesma forma de
funcionamento. Searle afirma que, de fato, ambos são sistemas de funções de status e
que o reconhecimento de uma função de status é baseado em razões para agir,
independentes dos desejos imediatos dos agentes. As razões podem até vir a motivar
desejos, mas nem todas as razões procedem de desejos. O poder econômico é capaz de
repartir vantagens e sanções econômicas de acordo com os desejos dos agentes, o que o
faz perder sua força deôntica. O poder político pode ser assim também, mas nem
sempre, pois relações baseadas em desejos não são deônticas. Logo, os sistemas de
motivação racional decorrentes dos poderes político e econômico diferem de maneira
profunda. O poder econômico continua capaz de repetir vantagens, o político não.
Na terceira proposta, Searle afirma que o poder político advém das funções de
status e, portanto, vem da base, do reconhecimento coletivo para ser autêntico. Logo,
quando a estrutura da intencionalidade coletiva não é mais capaz de manter o sistema
das funções de status, o poder cai.
A quarta proposta afirma que os indivíduos, mesmo que façam parte da origem
de qualquer poder político em virtude da sua contribuição na elaboração da
intencionalidade coletiva, podem vir a se sentir impotentes. O indivíduo sente às vezes
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
que os poderes locais independem dele. Por isso, Searle afirma que se destrói a
intencionalidade coletiva ao se criar uma forma alternativa e oposta de intencionalidade
coletiva. Exemplos disso são os movimentos feministas.
Na quinta proposta, Searle afirma que as funções de status só podem existir se
forem representadas como existentes. Para isso é preciso que haja um modo de
representação e esse modo é o linguístico. Logo, aqueles que controlam a linguagem,
controlam o poder.
Searle demonstra na sexta proposta que existem outros modos de sistemas de
poderes deônticos. Por exemplo, as religiões e os esportes organizados. O que os difere
é a essência dos conflitos inerentes a esses sistemas. O conflito no poder político diz
respeito a bens sociais, na religião e nos esportes organizados isso não ocorre de
maneira necessária.
Na sétima proposta Searle relembra que funções de status são razões para agir
independentes dos desejos dos agentes.
Dessa forma, todo o sistema social está
fundamentado na capacidade dos agentes humanos reconhecerem razões para agir
independentes de seus desejos e mesmo assim, agirem em nome delas.
A oitava proposta torna explícito o fato de Searle ter somente se ocupado até o
momento com a estrutura lógica da ontologia das funções de status políticas. Passa ao
largo do problema de justificá-las. Isso tem uma razão. Para Searle, não há justificação
possível antes da compreensão ontológica das entidades em questão. Não se pode tratar
o sistema das funções de status meramente como um dado. Esse tratamento perpetua as
injustiças, que se mantêm indefinidamente por não serem analisadas nem haver
preocupação com a legitimação das funções de status.
Na nona proposta, Searle afirma ter ignorado propositalmente a legitimação e o
problema da mudança social. Mas afirma ter feito isso porque há um princípio de
explicação da mudança social e política na sua ontologia. Afinal, as mudanças capitais
implicam um movimento brusco no sistema de funções atribuídas, além de
transformações no background. As revoluções nada mais seriam para Searle do que
invocações de disposições do background suscetíveis de induzir transformações na
distribuição de funções de status.
Searle finaliza suas exposições ressaltando o quanto uma análise da ontologia
das funções de status políticas é importante e inerente ao processo político. Tendo
iniciado suas conferências pelo problema do livre-arbítrio e através deste conduzido o
leitor até o problema da dualidade mente/corpo, consciência/matéria Searle parte de tais
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
questões seminais até chegar à questão do poder político. Como fio condutor de toda a
discussão Searle utiliza a linguagem – meio de representação e instituição social de
base, capacidade inata de todo ser humano. Por meio da linguagem, Searle examina as
questões mais candentes da filosofia sem desconsiderar o panorama contemporâneo,
relacionando temas tradicionais com os novos questionamentos de novas ciências, como
a neurobiologia. Liberdade e Neurobiologia é certamente uma compilação de textos
instigantes e uma boa introdução ao amplo universo das contribuições de Searle, desde
a década de 1970 até os dias de hoje.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SEARLE, J. Consciousness, free actions and the brain. Journal of consciousness
studies, v. 10, n. 10, 2000.
NOTAS
1. Para maior esclarecimento sobre este conceito, ver SEARLE, J. Consciousness, free
actions and the brain. Journal of consciousness studies, v. 10, n. 10, 2000.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia
Norte-americana
Ano IV, número 1, 2012
ISSN: 1984-7157
Editor Convidado: Ronie Silveira
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de
Castro
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com

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