Os Habitantes

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Os Habitantes
JURANDIR, Dalcídio. Os Habitantes. Rio de Janeiro:
Artenova, 1976. 160p.
[9] Alfredo, na escada dos fundos, apoiou-se no corrimão.
Como se tivesse corrido tanto. Porta aberta para o alpendre, a cozinha
clareava o quintal molhado. D. Dudu debruçada no parapeito.
Ela sabe, a família ouviu, me esperam. D. Dudu vem avisar-me.
Esméia quis ver, não Viu? Sala, alcova, tudo ai só Valeu esta noite
pela presença da preta. Fiquem vocês com o entulho, donos. Daí,
agora, só minha mala e adeus.
Desceu num repente de escapar-se pelo portão.
— As três aí na cozinha atando as sete cartas no gogó do velho.
Era a D. Dudu, ali ao pé, espreitosa, abrindo um jenipapo: deste
um toma uma prova. A casca, joga fora.
Num alívio, sem Indagar das sete cartas, Alfredo com avidez
come com casca e tudo, saboreando Cachoeira, menino entre
jenipapos. Escolhia no alguidar o mais molinho. Dos verdes só travor
e nódoa até agora. Dos misturados com açúcar saiam pelo soalho as
sementes que se cobriam de formiga, pingou que pingou tempo no
vinho com farinha, vozes do verão a amarelar o jenipapeiro e bem
debaixo o bom maduro chão enjenipapado onde se aquietavam os
carneiros do seu Araguaia, sem acordar na moita vizinha aquela bela
adormecida a sono solto e o alarma: Danilo, Danilo, a cascavel [10]
dormindo. Dormindo, dormindo. Não mata a inocente dormindo.
D. Dudu se fechou no banheiro.
Recostado no parapeito, lambendo os dedos, retardando a sua
entrada na cozinha, Alfredo suspeitou. Ana podia ter saltado o gradil
e ali, no escuro, escanchada num ramo pelo quintal, espiava, a
repuxar o beiço.
D. Dudu tocou-lhe o ombro, de leve, cochichando:
— A conta de mentiroso. Sete. Tu nem sabes, rapaz.
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Deu uma volta, espiou sorrateira pela porta da cozinha, veio
devagarinho, veio misteriosa:
— Novidade.., que dá um jornal. Sete que são setecentos.
Primeiro entra. De sereno já chega. Mais jenipapo? Mais?. Trouxeram
em quantidade.
Alfredo pede para esperar um pouco, esquivava-se, desceu de
novo, D. Dudu seguiu-o.
— Que que então já perdeste no quintal, rapaz? A cabeça?
— Me deixe só comigo, D. Dudu, Foi só um instante a embriaguez do jenipapo. Ou sabe que pulamos a janela? Nos adivinhou
na sala? Farejou os jasmins? E que sete cartas são?
Franziu a testa, franziu-se todo como se principiasse a descobrir
que saltar aquela janela valia um destino, era um alcance, até onde
não sabia. Que fazer desse destino, desse alcance, daquele salto? Que
farei dele, dos instantes com a Esméia diante do espelho, debaixo do
lustre, diante de tudo que ali lhes foi doado?
Quintal escorrendo, as plantas pingavam, rangia o coqueiro.
— Olha, não me anda rente da cerca que a Graziela, aí, noutra
viagem, passou uma tarde espalhando, espalhou que foi uma
quantidade de caco de vidro.
Alfredo virou-se. D. Dudu explicou baixo, tapando o riso:
— Pra pé de menino da vizinhança que reine pular a cerca.
Se andou por aqui, Ana fugiu com o pé cortado, a palma do pé
sangrando. Eu e ela, ao mesmo tempo, um no outro: que queres de
mim? Se não cortou o pé, pelos navios mortos anda, a enfiar-se nos
chaminés, espichando o beiço para as mastreações e as bóias acendeapaga do canal. A palma do pé sangrando.
— Menino, Olha que tu corta o pé.
[11] — Não estou descalço, D. Dudu.
Mas Ana, cuspindo sempre aquela hóstia do orfanato, tirava as
chinelas sempre. De volta, crivada de caco de vidro, quem sabe
sangrava na esquina ou num velório, depressa a esticar o pé rueiro no
colo da avó e esta a tirarzinho os vidros, a passar ungüento e suas
rezas e Ana — chega, vovó, pare com a rezação, ah que a senhora é
até por demais — saltando com um só pé, a catar pelas panelas,
batendo carapanã, então me arme, me arme a rede vovô, que este pé
não me ajuda, ah se a senhora soubesse o que eu sei, o que foi que
peguei agorinha-agorinha, agorinha de noite, o cinema que apreciei,
tenho que me rir muito, um que eu sei que a senhora sabe, saltando a
janela com aquela preta-preta, na horinha que chega a família-dona...
Aquela casa? Aquela vai virar casa mal-assistida.
Farejou c rastro de Ana, aquele passo de vadiagem e patrulha,
deu com um caminho de formiga rodeando o pilão. Carapanã no
ouvido, carapanã no rosto, tentou abanar-se com uma folha de
mamoeiro.
Bom ir depressa até Ana, com ela tirar a limpo, se viu não viu,
que sabia, que espiou dele e da Esméia no sutil assalto. Pode a D.
Graziela sentir falta no “importante mobiliário em pau marfim, na
maravilhosa coleção de ricos e antigos objetos de arte e gosto”, como
se lê nos anúncios de leilão. Ana, então, virá acusar-me. Dois ladrões
que não furtaram nada, ao contrário deixam ai dentro um primeiro
calor.
Saiu correndo, bateu na porta da avó. Esta, a grenha de bruxa
velha, veio abrir com o dedo do silêncio, não fizesse ruído, que as
duas ferravam no sono.
Pelo rosto e voz da velha, via que das duas nem sonho. Levou-a
para a rede. Ela sempre a lhe pedir silêncio, o dedo ao lábio. As mãos
dela tremiam um pouco. Tão firmes de leveza e exatas no partejar,
agora cediam a um temor, a uma expectativa, a uma aflição.
Cochichava: não passasse no quarto dos fundos onde as duas
dormiam. Não falasse alto. Miudinha na rede, gemia como se fosse
perdendo a voz.
— Descanse, sossegue um pouco, eu já vou sim.
— Chegaram já faz que tempo. Sabe? Graças a Deus. Graças a
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Deus. Consegui na Ordem Terceira o lugar pra Dalila. De servente.
Tentou levantar-se. Tinha um parto em vista, assim pelas oito e
nove da manhã. Levantou-se, veio devagarinho, abriu [12]
devagarinho a janela, passou um bonde. Da rua lhe deram boa-noite.
— Amanhã é o seu colégio, meu filho. Amanhã é o seu colégio.
Alfredo pediu bença. Colégio. Colégio, dizia ela com tanto
respeito, delicadeza, confiança. Também para mandá-lo logo embora.
Colégio. Do colégio restava esta noite ao meio. Este ir e vir, quase
apanhado saltando a janela, e essa sua mentira, vã.
No meio da rua, parou no trilho. Na cocheira defronte os zebus
dormiam. E foi que se abriu a janela do lado, do quarto das filhas do
proprietário, e as duas irmãs, que nunca falavam com ninguém, um
instante apareceram. Dois rapazes pulam a cerca e entram. A janela
fechou-se. As meninas ricas do bairro! Voltavam do Colégio Santo
Antônio carregadas de deveres e vernizes, num nem te ligo na janela,
no bonde, na missa. Quando os fazendeiros iam ver os zebus, elas
ficavam de longe, de pé, direitas, prontas para falar francês, e tudo
etc, e tal como mandavam as Irmãs do Santo Antônio. D. Dudu
gabava-lhes o bom termo, sim que um tanto, ou demais, bestonas, por
se saberem filhas de que pai, dono de zebu de Minas, vacaria no Pará
e quinta na Beira, O pai com a D. Izaltina sangue tupinambá deu
aquela raça, beiço da tribo e olhos dalém mar, transpirando urucu e
azeite doce, nascidas na mão da velha parteira. Rangeu o cata-vento.
Os zebus dormiam. Espalhou-se um ar de estrume. A vacaria
proliferava.
No capinzal que dá passagem para a José Pio, cuidou ter visto
Ana, Ana, Ana, chamou por entre as toiças molhadas, chamou baixo,
um tanto suplicante, deu-lhe uma pressa, quis gritar, se via num
cavalo volteando o laço atrás da rês fugida. Lá embaixo, na escuridão
do encharcado, descendo para o estaleiro e o rio, a luzinha, um pavio
aceso. Quarto a defunto? Os sapos — olha ele, Ana, olha ele, Ana —
davam o alarmar. Anda na pinguela que espirra lama e faz saltar um
cururu, zunem os carapanãs. São Longuinho, São Longuinho, faz que
eu ache Ana, São Longuinho, Aproxima-se da barraca. A luz se
apagou. E agora, Santa Clara? Voltou tateando sobre a estiva, cainão-cai, debaixo dos carapanãs e da vergonha. Lá no quarteirão, a
única lâmpada na parada do bonde, canto da Brasiliana. Por isso,
naquele alumeio que lhe parecia longe, o sótão da moura ganhava
feição de torre de onde jorravam os contrabandos e os amantes.
Vence a pinguela, rompe o [13] capim, dá com o casal que pula da
fornicação, cada qual para seu lado, sumiram-se. Os sapos saltavam.
Ana, não, não é. Ë não. Essa aqui era um tanto escura, corpo de tatu,
pixaim em pé.
Chegou ao portão, esperou, sem esperança. Entro cínico ou
culpado?
Entrou.
No corrimão do alpendre, o queixo sobre o quintal, a D. Dudu.
Essa aí me espia como se dissesse: te tenho aqui na chave da mão,
meu tratante.
Matando formiga, bate o pé com a mordida na perna, espalha as
folhas do chão, desmancha a caravana.
— Tá vendo? lá vendo? Assanhaste as formigas, acudiu D.
Dudu, terrosa, espichada na sombra, sacudindo a saia.
— Alfredo, seu cerimonioso, já que achaste a cabeça no meio
das formigas, sobe, vem fazer sala, salvar os donos da casa que
chegaram. Tira do gogó do réu o laço das sete cartas.
E rindo, numa satisfação, inclinava a cabeça:
— Ao menos abre um intervalo na reunião. Rente da barba dele
o facho das três aceso, Entra a tempo de aparar a cinza.
Nini gritando do parapeito,: as formigas? Foi as formigas?
Alfredinho! Alfredinho! fez o rapaz estremecer como se ouvisse o
chamado de Lucíola no campo. Lá está a órfã saindo do choco,
murmurou, a perna ardendo de formiga. Onde elas guardam o celeiro?
No baile dos Juruenas? Avançou para os fundos. No baile dos
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Juruenas. No baile dos Juruenas.
— Agora é algum ladrão que viste?
— Vou no baile dos Juruenas.
— Teu baile! Teu baile! Dá cá um cheirinho de tua graça...
Fugindo dos donos da casa, menino?
— Ao contrário, sempre atrás da dona verdadeira.
D. Dudu pirrônica. Tire seu bico desta minha solidão, destes
meus sustos, não me indague mais nada nem as novidades me diga,
minha senhora, Para onde ia a caravana? Para o baile dos Juruenas.
Cava, cava, formigueiro, até esta outra casa vir abaixo com cristaleira
e tudo. A pé-cortado, coxa Inflamada de formiga, Ana, a esta hora
roga: que o valão da José Pio bem debaixo vá estourar bem debaixo
do palacete delas, com aquele zebu mal-assombrado cobrindo as
donas, fazendo raça, titias vacas, aquelas tetéias! Arre que a preta
enxugou o sovaco nas alvuras da família.
[14] — Se algum rumor ouviste, pequeno, só se é mucura. E
mucura. Vem, faz as honras. É o compadre do teu pai chegando com
as excelentíssimas. Tenho é que te contar. Tenho é que te contar.
Domina a impaciência — todas as matérias do Ginásio cruas —
vou faltar amanhã. Amanhã, desenho, sacode o limoeiro que borrifa,
afasta-se, viu a D. Dudu apanhar a saia, girar:
— Pra te contar, aquele-menino, só mesmo no muito muito
sossegado. Mas anda vem fazer presença. Olha, cuidado que senão as
formigas te carregam.
— Para o baile dos Juruenas?
Na porta da cozinha, Nini gritou: titia, titia, a chocolateira lhe
chamando! Já ferve. Côo? D. Dudu, atrás da chinela que lhe fugira do
pé — É o fogo das tuas primas que ferve a água, avexada? — foi
entrando na cozinha.
Alfredo protegeu-se entre as plantas, na folhagem, no terreno
minado. Aqui, à espera dos inocentes da vizinhança, os cacos de
vidro. Lá pelos fundos se agitavam os açaizeiros. Fazia lembrar
aquele passeio com as duas casadas Pedreira a dentro: D. Abigail,
tempo de moça, saindo com as outras do banho de priprioca e orisa
nuinhas pelo escuro debaixo do açaizal, lá fora São João, foguetinho
pela calçada, Belém pulando fogueira.
Ana, quis chamar. Cortaste o pé, te escondestes nos açaizeiros,
onde te agachaste, onde teu beiço empolado de ofensa e nojo?
Lá na cozinha, cercada de jenipapo, quem sabe, a família
deliberava, também a cobrar de D. Dudu a casa surpreendida na mão
de um par que pulou a janela, os dois na sala, na cadeira de embalo,
mergulham no jazigo conjugal e daí saltam a um rumor de porta
abrindo. A preta os seus encantos destilava, aqui rente da cerca, aqui
na veia, nesta ansiedade, neste sobressalto, espremia os seus jasmins,
a figa, sua colação de grau e noivado, seus navios passando no
Guajará, Esméia em toda a louça, mobília, cortinado, caramboleando
no Centro da mesa, roçou a anca na barba do nosso Imperador,
pendura no braçalete a lâmpada elétrica agora acesa pela família na
cozinha.
Ao parapeito, a apertar a barriga rasa, Nini ria ou soluçava? Os
açaizeiros se agitavam, os cachos mais altos, na [15] luz da porta
vizinha, balançavam como lustres. Daqui, pelos fundos, desemboco
na Manoel Evaristo, acudo o pé de Ana, atravesso as jacas e a nudez
de Zuzu, alcanço o estaleiro, pulo numa proa, fujo-me e logo do
bailéu — comandante manda, marinheiro faz — me aparecendo a
Ana. D. Dudu chamava.
Em torno da mesa, na cozinha, a família sentada, rostos de
viagem, em silêncio, inchados de desentendimento. Em vez do aperto
de mão, o nosso Imperador dá o delabençoe. Mini riu-se: ele não está
lhe tomando a bença, titio, O nosso Imperador levantou as
sobrancelhas, enseã, enseã, em que se desculpava ou mais se
embaraçava. D. Dudu levantou o queixo contra a sobrinha. Alfredo
apertou a mão de D. Jovita, das duas filhas, todas poupando
movimento e voz. Decidiam a expulsão do hóspede? Espiou o
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corredor, apanhando aquele vento, pela casa, de viagem, campo e
curral, carnes salgadas, jenipapo, couros, chegando com a família. Era
como se estivesse no Jandiá, este a ferver suas águas no verão, a
ausente a cavalo entre o alarido dos tetéus e a virar na lama as aningas
em flor. A loção de Graziela não protegia as senhoras nem a casa. A
família trazia os odores da condenada. Neste jenipapo que se abre,
naquele couro de maracajá, no beiju grosso, é o chão, o igarapé, os
cavalos, a grossa tarde de urro e fogo, a ferra no curral, a moça em
cima da tranca anotando as reses ferradas. Luciana brandia a marca
do ferro em brasa, marcava a testa de cada um da família. O. Dudu
coava o café. Alfredo olhou para os rostos à mesa, cada vez mais se
desentendiam em silêncio. Na cabeceira, ainda de paletó, gravata e
broche, o nosso Imperador não ocultava um ar surpreendido, confuso,
pilhado, num esforço para readquirir a chefia, a barba como úmida,
gasta, cuspida. A esquerda, a mãe de Luciana no seu traje de
desembarque, o colar, a travessa no cabelo a dizer sombriamente o
seu preço. Calcava a sua dureza e escureza, o todo acusador e
sumário, numa reserva tímida, mãos no colo, as mãos que
desnudaram a filha, salgaram o corpo da filha, mãos no colo, Como se
descansasse um peso, armas do desagravo e do castigo, e a boca, tal
qual como dizia a velha parteira, costurada lacrada. As duas filhas
fingiam excluir-se, embora se notasse em Graziela, carão bambo, colo
tampa de baú, gola fechada no pescoço, a astuciosa participante, a
mão de rapina sobre a mesa, dedos abertos, o dorso cru de garra que
minou o terreno das crianças, o fugitivo dente de ouro, agora, num rir
de banda. A irmã, baixinha [16] e perda, um rosto puído e
contrariado, apertava os olhos pisca-pisca, a torcer o focinho roxo, e
sua voz, na pergunta que fez a Nini sobre sacos de papel, escorreu
impaciente e rouca.
D. Dudu olhava para ela com simpatia de prima, uma vaga
cumplicidade a que a outra se fazia alheia. Nini trouxe a bandeja de
café, distribuiu as xícaras. Graziela levantou-se, tesa de barriga e
bunda, tira do bolso da saia o molho de chaves, vai, abriu o armário,
retira as xícaras grandes, desenrola da f olha de bananeira os beijus
duros. Nessa ocasião, D. Dudu, ao virar as costas para guardar o riso,
olhou fino para Alfredo. A irmã de Graziela falou nas coalhadas.
Graziela cortou.
— Não, Felipa, aquelas são sagradas.
Em três latas de querosene, seguiriam para a casa do Doutor
Gurgel, o advogado da Questã, para o ex-Governador, compadre da
família, e para o Arcebispo.
D. Felipa, como se lembrando, chamou, meio cansada:
— Floremundo, Floremundo, vem.
A pessoa não vinha.
— Floremundo!... chamou a Graziela numa espécie de ralho.
A pessoa não aparecia.
D. Dudu foi ao primeiro quarto, bateu, chamou.
Veio então aquele um alto, o longo rosto chupado, bigode
murcho, a boca triste, a mão pelo cangote cabeludo, o ombro
arriando, o paletó curto de tio bimba, caído o laço da gravata
bolorenta, fofo e descido o colarinho. Em toda a figura se podia ver
compridez, muito osso, silêncio, paciência, as fibras da mão
ressequida, o meio encandeado, a voz padecente, como está o senhor,
moço. Notícia de sua mãe? Do seu pai? numa cortesia antiga, o
tristonho senhor já bebendo gluteglute o café no pires. Alfredo apanha
da bandeja a xícara fumegante, agora convencido: o pai, no chalé,
tinha as suas razões, sim. Bebe o que café queimando a goela, como
coisa que só assim do sobressalto se livrava, das suposições e receio
pelo que consentiu na sala, o pulo, a invasão dos jasmins, o entrar
pelo portão, D. Dudu à espreita... Seu Floremundo, embaraçado, com
um Deus lhe acrescente, repõe a xícara na bandeja, recusa o beiju, o
requeijão, passando o indicador devagarinho pela boca. Alfredo
aceitou o requeijão, feito por D. Felipa na fazenda. Consentiu num
beiju, lhe deu de repente uma fome, outro beiju, outro pedaço de
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requeijão, mais café bebeu. Um instante olhou: Cercando o velho, as
três mulheres à mesa [17] vol|tavam ao debate sem palavras,
dominado pela D. Jovita, mais fechada, as mãos no colo. O marido,
barba na mão, destrancou um pouco a cara ao provar do requeijão,
pediu outro café.
Virou-se:
— O meu compadre, á aquele-menino, o seu pai, está me
devendo uma visita lá na fazenda. Estou que você pode ir. Nas férias.
Alfredo não respondeu, confuso um pouco e um pouco tentado
a uma imprudência: leu minhas três cartas, seu Braulino? Agora,
depois da chave entregue àquela, que desapareceu, e da visita da
Esméia, o seu protesto mudava, longe a primeira aula de química, o
trote, a manhã de latim, o mestre que sabia Horácio contra os roceiros
do Guamá. As três cartas acabavam letra morta. Agora Luciana não
gera o ingênuo protesto mas um quase tranqüilo juízo contra a
família, torna-o tolerante com as duas netas, ladrão de par com a
Esméia. De certo modo, com Certa pena pelo que acontece ao seu
Braulino.
Em pé, recostado no peitoril da janela, seu Floremundo parecia
abolir-se, os olhos na lâmpada e nos mosquitos em volta. Nini,
bandeja debaixo do braço, meteu-se entre os dois que se entreolhavam
com acanhamento.
— Já conhecia aqui o meu tio Floremundo, hein, Alfredo? Raro
vem na cidade, ele. Esse meu tio, não é por estar na presença dele mas
é o que corre, não é, tio Floremundo?
— Como sei lhe dizer, se não sei o que corre?
— Sabe, Alfredo, meu tio Floremundo, de bom que tanto só
agrava o que come.
— Ah mas assim não, assim também não. Tire a diferença.
— Não sou eu que diz, é mea tia, é mea avô, quem conheça o
senhor.
— Agora isso não. Coisas que já agravei neste mundo é peso.
— O senhor, titio, faz as suas visitas, este ano, agora? Sempre,
quando vem, o meu tio Floremundo vai no Tucunduba visitar os
doentes da pele. É ou não é?
— Desmentir não lhe desminto.. É, sim, senhora.
— É. Tenho um conhecido no Tucunduba e outro no Domingos
Freire. A boa obrigação é ir. Já foi?
[18] Vergou o pescoço, virado para o estudante que hesitou, fez
um aceno que já voltava e foi ao banheiro. Voltou.
— No Tucunduba? Foi?
Um domingo, com um grupo, domingo, sim, em Tucunduba.
Trazia dali aquela hortênsia ou nunca tinha visto antes uma hortênsia?
A hortênsia na janela de um lázaro. Veio um rosto, e outro, e entre os
dois a flor no jarro de barro. Procurou por lá — não viu, nunca mais
viu — o santo da esquina da Inocentes, a cujos pés desceu a bola e o
assombro geral naquela tarde de futebol.
— Viu no Tucunduba alguma hortênsia?
— Das vezes que tenho ido lá, não. Não reparei. E o senhor?
Dos lázaros trazia para sempre aquela hortênsia, tão sã, tão
viva, tão feliz de estar ali na janela entre eles.
Nini insistia:
— Então, Alfredo, já conhecia esse meu tio?
Seu Floremundo adianta-se:
— Eh desde que tempo. Conheci ele bem menino em
Cachoeira. Vi o senhor recitando um discurso no salão da
Intendência, mas bem mesmo, eu tanto soube apreciar. Agora que
esticou um pedaço, não espanta que me estranhe.
— Não, seu Floremundo, não lhe estranhei. Do senhor? Me
lembro bem.
— Sim, senhor, sim, senhor, então se o senhor se lembra,
estamos entendidos. Nosso conhecimento é já antigo.
Nini não se cansava:
— Sabe que já é do Ginásio?
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Seu Floremundo fez que sim, o dedo pelos beiços, quase numa
contrariedade, que a Alfredo não escapou. o estudante deu um olhar
para Nini que parasse.
É ginasiano, o ginasiano da rua. O nosso soldadinho de
chumbo. A D. Marta deu aula de francês pra ele, ano passado, O meu
tio vai ver o nosso ginasianozinho fardado. Fala, fala, fala aí francês
pro meu tio ver, anda, anda.
Rindo e insistindo Nini exibia as suas intimidades com o
ginasiano e com a professora, a representar um pouco diante do
público ali reunido. Tinha perdido o sono que tanto precisava para
não cochilar durante o dia na fabriquinha de sacos de papel.
— Amanhã, só para o Anil das Lavadeiras, é um milheiro.
[19] Milheiro que lhe fazia doer as costas, fazendo aquele sacos,
Não por se gabar mas ali, na fábrica, melhor acaba mento na colagem,
dobragem, acondicionamento, quem, que melhor que ela?
Perguntassem a seu Camilo, ao Catu; sim, que duas colegas, ali suas
amigas, veja! suas amigas, andavam no disse-não-me-disse tudo por
causa de quem ali era a primeira Ela, titia está aí pra ver, se mais
cabeça tivesse mais caprichava As prendas de berço nem todos
traziam.
Mais testuda, mais escorrida, mais solteirona antes do tempo,
Da órfã, só faltava o uniforme.
Alfredo guardava-se no receio de parecer bastante reconhecido a
ela, à sua afeição e desvelo, Via surgindo na cara de Nini a sombra de
Lucíola Precisava conter os fervores de Nini.
— Nini, te vejo mais no orfanato que na fábrica, menina.
Nini fez um ar de desconsolo, afinando a voz:
— Ah quem me dera eu no orfanato, Ah quem me dera ainda lá,
Mas assim por assim, estou com titia, Aqui também eu crio juízo.
— Nunca mais foi tomar bença da irmã Gelsomina?
— Ela me abençoa de longe. Viste, Alfredo, lá no quarto, como
está que é uma jóia o teu Outro uniforme? Adivinha quem passou?
Adivinha, adivinha.
Alfredo fingia ocupar-se com uns papéis do bolso.
— Adivinha.
Nini indicava o alpendre: D. Dudu catava o que fazer para
melhor disfarçar a sua atenção à mesa onde jazia, surda, a guerra.
— D. Dudu não costurou, esta noite, Nini?
Acabou a encomenda da loja, Hoje serviço dela foi o teu
uniforme, soldadinho de chumbo.
— Mas não era preciso... Não era preciso...
— Meu tio Floremundo em breve esse aí, esse moreninho, está
com um canudo na mão atado com uma fita cor de rosa.
— Nini... Regula a mola, Nini.
A órfã a festejá-lo:
— Te mandei um passarinho pingadinho de amarelo, Te mandei
um passarinho pingadinho de amarelo...
E repentino agarrando-lhe o peito da blusa:
— Mas Alfredo! Te abotoaste errado, rapaz. Onde então que tu
anda com essa cabeça, rapaz. Espera, Olha, eu preciso ler o teu
horóscopo.
[20] Deixando-se abotoar direito, Alfredo piscou para o seu
Floremundo numa súbita familiaridade com aquele compassivo
membro da família, um tanto jogado no ostracismo, sem voto nem
voz naquela reunião. Seu Floremundo, sempre de pé, sorria atencioso,
braços cruzados, como com frio. Nini não parava.
— Meu tio, peça pra ele ler pro senhor uma passagem daquele
livro de capa verde, do homem que roubou um pão o suspendeu
sozinho a carroça, peça. Não se faça rogado que é feio. A pessoa não
bate a porta da escola pra sair mais orelhudo. Ele que sempre anda:
meu nobre perdigueiro, vem comigo, vamos a sós, meu corajoso
amigo, pelos ermos vagar... Anda.
Deu uma batidinha na testa a lembrar-se, a lembrar-se. Sabia de
cor o pedaço tirado de O Colibri, de Abaeté, cópia que lhe deu a
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Pérola, colega dos sacos:
— Já pedi que Alfredo, esse mexelão de moça, copie numa
carta para as tantas fiteiras dele, pois vá lá, meu tio, oiça e me diga: a
chuva cai. Longamente oiço o sussurro das rajadas e o tanger de um
sino. Quem sois, indago, alucinado. A mesma voz me responde: é a
esperança. Que o senhor acha, meu tio?
— Ah mea sobrinha logo eu... Eu quem sou eu achar... na mea
fraca opinião. .. bem, me carece competência.
— Agora és tu, Alfredinho, anda te desacanha. O Ponto Final,
anda. O Tudo Acabado Entre Nós Dois. Anda, que amanhã te trago da
fábrica o teu horóscopo, seu dificultoso. Então aquele que tanto lês:
há dois mil anos te mandei meu grito. Não é? Pensa que já não te ouvi
aí da janela da frente recitando para uma pessoa debaixo do
jasmineiro ouvir? Senão não te trago o que dizem os astros de ti.
Alfredo puxou a moça para o lado — licença, seu Floremundo
— e lhe falou ao ouvido. Nini desconsertou-se um pouco, sem deixar
de rir com seus dentes grandes — a tua valência, a tua valência é o
meu tio aqui presente, senão, senão! Te respondia em cima da fivela.
Em cima da fivela. Mas eu te pego na primeira de copas, deixa-teestá, deixa-te-está!
— Engoliste ovo cru de japiín [sic] pra que ficasses falando
tanto?
— O ovo que tu me deste, tiraste do choco dos teus japiíns.
Deixa-te-está, deixa-te-está, pensa que não escrevo [21] pra tua mãe
contando uns tantos sucedidos aqui em Belém por parte do anjinho
filho dela? Duvida!
— Seu Floremundo, Nini cedo é da Fábrica Paraense de
Chapéus de Palha, a maior do Norte do Brasil. É ou não é, Nini?
Nini se fez prudente, logo ansiosa:
— Assim espero em Deus, assim espero em Deus. A Virgem de
Nazaré vai ter minha promessa no seu Carro dos Milagres nem que
seja noutro ano. Mas ainda espero neste. Não só acompanho o Círio
de pé no chão, como vou no trajeto desfiando o terço. Titia se
empenha.
— É a titia ou a Virgem de Nazaré, Nini? Qual das duas?
Nini avançou para Alfredo com a mão fechada:
— Não duvida, que te dou um godeme, herege. Teu mal é só
debicar. Mexe com santo, mexe...
— Estou debicando, seu Floremundo?
— Sim, que o senhor só fez foi perguntar.
— Até meu tio, até meu tio!
— Vais subir de graduação, sim, Nini. Te pega também com o
velho São Pedro lá de Santana. Está um porteiro sossegado, gordão, a
costa do pé meio cavada de tanto lhe beijarem, um pouco enjoado
com o cheiro de doce que vem da Palmeira ali defronte entrando pela
igreja, subindo pelos altares. Nini, a chapeleira, de fardamento
marrom, chapéu etc., e tal. Que tal, seu Floremundo?
— Faço voto.
— Tua promessa para o Carro dos Milagres? Qual? Um chapéu
de cera? Um saco? Uma cabeça?
— Pensa que os santos não estão te escutando? Tuas palavras
sendo anotadas lá no livro? Duvida, que não vou te trazer um chapéu
no dia do teu aniversário, seu ferino? E ofereço um pro meu tio. Sim,
meu tio?
— Como?
— Um chapéu de palhinha?
Nini contou o empenho da tia para metê-la na Fábrica de
Chapéus Para Homens, ali era mais assim-assim, menos mal pago, e
por quinzena. Sim que a pé, para chegar lá três quarteirões do
Esquadrão até a Quintino, passando o Igarapé das Almas. Deixava
aquela biboca dos sacos de papel com saudade, mas que remédio?
Entre saqueira de papel e chapeleira, embora não de atelier, sempre
tinha um grau. Esperava ser chamada, hoje ou amanhã, para o
aprendizado, No que aprendeu, conforme Deus, a vestimenta de todo
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dia. De [22] uniforme as moças da Fábrica de Chapéus faziam mais
figura que as piramutabas da Escola Normal. Estas, coitadas, com
todo o metidismo delas, olha a blusinha esgarçada, o cotovelo saindo,
a saia puída. As chapeleiras da Quintino, não. Era do regulamento,
aquele trinque delas, chovesse ou fizesse sol. Das meninas do
Ginásio, conhecia pouco. Alfredo que dissesse.
— Deixas então a Utopia?
— Que queres dizer com isso? Vê lá. Teu enigma não é comigo.
Utopia que nome é esse? Ou é verde?
— Verde, Nini? Verde, por quê? Por que verde?
— Então desenrola o carretel, enigmático.
— Sou um homem, não sou uma esfinge, aquela-menina.
— Tua cara é, é daquela que me mostraste no livro de
geografia, sim. Esfinge, esfinge!
Alfredo calou-se, receoso, sabendo até onde Utopia era o Catu,
o tipógrafo, que compunha e imprimia na fabriquinha os rótulos dos
sacos de papel. A toda hora, em casa, era Nini com o nome dele, e o
que Catu sabia da rua, das tipografias, do querer, jurado, ter uma
oficina, dono dela um dia. Alfredo se chegava: Nini, bem que Catu
podia ficar com aquela tipografia de Cachoeira, anos fechada, um dia
roubada inteira. Durante anos, os ratos ali imprimiam seus jornais de
telhado, os morcegos compunham pasquins mal-assombrando a vila.
Uma madrugada, chega o dono da tipografia, mete a chave, vira,
custou, sacudiu a porta, abre, e nada encontra senão um rato podre e
as letras B e S no cimento. Parte para o chalé, indaga do Major, o
Major num espanto, tudo sumiu? Correu que tinha sido Edgar
Menezes, e só Rodolfo, o tipógrafo no chalé, lastimava aquele fim.
Era um patrimônio cachoeirense. Embora fechada, esperando anos,
havia de um dia abrir para lançar aquele jornal da era nova tanto
esperada tanto adiada. Não era o sumiço que os assombrava, era
ninguém ter sabido em Cachoeira nem Rodolfo. Por isso, o tipógrafo,
pela madrugada, colou na porta da D. Duduca, amanheceu: aqui já
não se sabe nada da vida alheia. A modista mudou de ofício.
— Vamos, rapazinho, a Utopia, antes que o rato te roa a
palavra.
Nini sentia-se adivinhada, Alfredo malinou:
— Olha, olha, Nini, que eu digo...
— Da parte que me toca.., disse ela fingindo indiferença.
[23] — Seu Floremundo, já viu os sacos de papel da fabriquinha?
— Não apreciei ainda a fabricação. Espero ver.
— Digo por que estás na berlinda, Nini? Digo?
— Por mim sã não querendo.
Via a impaciência dela, o aborrecer-se, ela encrespou o rosto.
Adivinhava: Catu. Nini não queria saber porque estava na berlinda.
De homem, na fabriquinha, além do patrão, só havia um, o Catu.
Trazia para as moças um feixe de modinhas, estórias da seca,
saudades e desconsolações do Ceará, torrão de sua família. Nini,
colando saco, fazia que não escutava, rabo de olho nas outras,
guardando a sua astúcia, De todas ali, se via a menos preferida, a mais
no canto, E um cerol cortava a linha de Nini quando, em volta de
Catu, empinava a sua ilusão: Zuzu debaixo da jaqueira, por um fio a
desnudez. Catu passava: boa-tarde, Zuzu, suspendeu a chuva, não?
Boa-tarde, Catu, sem hora nem demora a chuva eivém. E assim das
lacas da Zuzu, prova um gomo, levava um pedaço, uma inteira, Era
entrar na fabriquinha, as moças lhe arrancavam a jaca, atirada na vala
da rua. Catu não parasse na jaqueira. Não chega o que aconteceu ao
patrão? A seu Camilo ao pé da jaqueira? Torna, torna, torna a parar, e
vê o que te acontece. Catu sã escutando, curvado sobre a impressora,
que a impressora, o compor, o imprimir, o cuidar pela nitidez dos
rótulos, não era mais cuidado, fervor.
Ou Nini, indo para a Chapéus, só assim vai chamar a atenção do
Catu, que ela tanto, e tão secretamente, queria, quer, “corto minha
língua mas não digo?” Catu passava pela jaqueira. Não nos vai dizer
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que até cópia de modinha já deste a ela? Insensato! Nosso dente
virasse serrote, serrada já estava aquela jaqueira, diziam as moças do
seu Camilo. Mas ontem, no que chegou, a Pérola gaguejou a
novidade: Catu de namoro agarrado com uma sarapeca da Goela da
Morte, uma tal de Batista, da Fábrica de Cordas, boca tamanhona voz
de pomba rola, atracador amarelo no pixaim curtinho, de tão curto o
vestido já lá em cima, todo sábado, pão de festa nos Estivadores.
— Que Utopia é essa, seu cabuloso?
— Onde mais? A fábrica do seu Camilo, onde te aturam, Nini.
— Batizou de Utopia? Que eu soubesse...
— Ouvi dizer que o teu patrão, lá na Espanha, era...
— Aí se falou que seu Camilo, sim, foi contra o Rei.
[24] — E aqui?
— Aqui não é república?
Batista, beiço feroz, ela ria, os dentes te comiam. Pobre Catu,
ressequido, minado pelo chumbo, falta de sangue, no beiço, no dente
daquela piraíba.
— Não é mais contra o rei?
— Penso eu que não. Indaga de quem sabe.
— Ouvi falar que não era só contra o rei. Que também contra
Deus.
— O excomungado te soprou?
— Quem?
— Quem lá trabalha e traz pra fora os ocultos da casa.
— Ouvi falar que ele freqüentava sessões de idéias em Belém.
Parece colega do seu Lúcio, um parente meu. De uma religião social.
— Conversa sério, rapaz! Onde foste desencavar toda essa
maçonaria, limpa-poço? Já sei quem é o poço, poço, não, trombeta. A
serpente que seu Camilo tem em casa!
— Serpente que imprime os rótulos?
— Então é ele mesmo que te conta?
— Onde escutei não vos cabe saber.
— Que religião social essa? Falando pondo na berlinda?
Ouviste na Brasiliana?
— Catu nunca te diz nada?
— Que é que queres dizer com isso? Na fábrica, cuidamos só
do serviço. Seu Camilo não é mal obedecido.
— Ouvi dizer que cultiva idéias.
— Seu Camilo, o que ele é, não esconde. Religião social só se é
no teu repertório. Me diz!
Seu Floremundo ouvia como desinteressado ou fingia.
— Pra que te diga, esse fundamento o dicionário que guarde.
Mas isso não é só contra o rei? Nem me atrevo indagar do seu
Camilo. É um homem muito do silencioso.
— Ele tem santo em casa?
Lá pra dentro onde ele e a família dele moram, nos fundos,
quando a gente passa pra ir no quintal, se vê uma Nossa Senhora na
parede do corredor. Que os dois filhos estejam batizados, a Nini, esta
aqui, ignora. Mas nunca ouvi da boca dele contra santo istozinho
assim que fosse.
Nini mostrava a unha do minguinho.
— Pelo menos contra os padres?
— Estou lhe prestando declarações, senhor subprefeito?
Quando uma tarde entrou uma senhora com um registro de [25] santo
e um papel de subscrição, ele só deu, não assinou. Deu um cruzado,
que eu vi. Missa, Círio, nunca vi a mulher dele ir. Mas não sou
testemunha.
— Seu Lícío, que tem as idéias do dicionário, contra os padres,
bufa. No que passa pelo arcebispado, diz adeus de mão fechada. É
esse, o teu patrão?
— Conosco só falando de serviço.
— As idéias do homem lindas no dicionário. Aqui fora ao pé da
Zuzu...
— Mas que mentira! Aleive da Zuzu. Zuzu! Zuzu! Seu Camilo
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passa pela jaqueira com algodão no ouvido e olhos só para o canto da
rua ver se inda pega o bonde que vem dobrando lá do Curro. E Zuzu
espalha. Zuzu que te disse que seu Camilo é contra Deus?
— Por que seu Camilo não cobre a vergonha dela colocando a
moça na fábrica?
— Mas cadê, cadê vaga? Nem uma nem uma. Zuzu é por
demais metida quanto é por demais falada. E era só Zuzu entrar, todas
nós: seu Camilo, faça nossas contas. Onde a sapa inchada foi buscar
aquela soberbia, não sei. Bicha!
— É que debaixo daqueles trapos vocês enxergam a filha do rei.
— Axi!
— Zuzu? Melhor que Zuzu, quem?
— Muito me admira, muito me admira que coloques na lagalhé
um tal diadema. Seu Camilo nunca se apresentou, numa palavra que
fosse, com uma de nós, operárias dele. Agora ela, na jaqueira, a bem
dizer, com licença da palavra, meu tio...
Nini debruçou-se, falou baixo, fazendo cruz na boca:
— Uma boa da sem-vergonha.
— Com uma semana fazendo saco de papel, Zuzu pode
comprar um vestido.
— Aquela? Lá na fábrica? Em que ela se fia?
— Ah correu com o D. Juan?
Nini enrouquecia:
— Alfredo, Alfredo... D. Juan, D. Juan, nesta infeliz rua, se um
tivesse, quem, senão vossa senhoria. Ou pensa que sou cega?
— Lá na reunião das idéias, seu Camilo quer vestir os nus. Aqui
fora ao passar pela jaqueira, quer tirar da maltrapilha o último
molambo. A fabriquinha lhe dá direito?
[26] — Seu Camilo, bom homem até que é. Não crê em Deus?
Mentira! Nos paga demais pouco porque o negócio dele também dá
um nada. Agora Zuzu, aí, sim, ali debaixo da jaqueira, não vem me
dizer que não é contra Deus.
— Ao contrário, Nini, ao contrário.
Nini temperava a goela:
— Ela te contratou pra anjo da guarda dela? Quanto o
ordenado? Dá a tua farda, veste ela com a tua farda.
— Seu Camilo, ao passar pela jaqueira, podia atirar em cima
dela trêszinhos [sic] metros de chita.
— Pois só por soberbia, Zuzu cuspia no pano. Logo agora que
era cospe quando o seu Camilo passa. O vestir dela é se despir, isto
que sim.
— Zuzu distribui jaca, não caco de vidro, entre os meninos.
Debaixo da jaqueira, ela não minou o chão.
— Mais baixo que a mea tia Graziela pode ouvir... Ouvindo a
cantoria daquela sereia? deixa-te-está que a mea avô Santa vai já, a
meu pedido, te fazer uma reza, te pendurar no pescoço um caroço de
tucumã brocado com uma oração dentro, seu enfeitiçado.
Alfredo sorriu, se lembrando da mãe, do tio, da Sabá
Manjerona, da tapuinha que dizia: mas se asserene mas se asserene,
noite dos maracujás, São Pedro quebrando pratos no céu. Enfeitiçado.
Agora, em vez na palma da mão, subindo e descendo, o coquinho
brocado, com uma oração dentro, pendura no pescoço.
— Um carocinho de tucumã oco oco, Nini? Pede, que eu quero.
A tua vó sabe?
— No pescoço, a reza dentro. Vou te pôr coleira, chamador de
mau tempo.
— Tens a letra da oração?
— Seu adiantado! Não te convém saber. Se eu, que sou eu,
nunca li, jamais tu. Leva ela dentro do caroço pendurado sem saber se
principia com A ou acaba com B. Pendurada. Dentro do oco do
caroço, O carocinho já te espera. Brocadinho todo por dentro feito um
cofre das palavras que vão te desenfeitiçar, enfeitiçado. Torna, torna a
comer jaca daquela jaqueira, torna a te pôr debaixo da jaqueira! Que o
seu Camilo, logo que prospere, depressa compra dos Lobões aquele
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terreno, derruba a jaqueira, adeus o ponto da encantadora, Ai é que te
pergunto: onde vais entronizar a filha do rei? Me vais é andar de
carocinho no pescoço. A vovó te prepara. Não sabia, tio Floremundo?
[27] Seu Floremundo só fez um aceno, não se sabia se sim se
não.
— Num instante, vais ficar cego ao passar pela jaqueira e surdo
de nunca mais ouvir aquelas vozes.
— Vozes?
— Dela, sim, ela entoa. A mãe é do reino das almas. Te mete
nas sessões dela, te mete! Quanto fluido já te deram? .Já estás de
espírito encostado? Minha avó vai te puxar do poço das jacas, seu
atraído, à força daquela oração no oco do carocinho. Atrás da jaqueira
tem um poço onde ela atrai e some os convidados.
Nini se deu conta do que disse, se calou, se benzeu.
Entre sério e divertido — enfeitiçado, enfeitiçado — Alfredo
numa indagação. Zuzu, o poço, era? Não. Zuzu provocava a ira das
moças na José Pio por tão soberba tão pobre, tão nua tão séria, por
muito melhor vestida quanto mais maltrapilha.
— Do caroço com a oração dentro, quem mais precisa é ela,
Nini. Contra a tamanha carecência, os riscos que corre, contra a
calúnia. E o manto de Nossa Senhora em cima dela.
— Blasfemo! Estás no livro das Ocorrências! Deixa-te-está!
— Nini, pra te dizer mais, Zuzu é pura.
— Está ouvindo, tio Floremundo, o sacrílego? Ouvindo, tio
Floremundo?
Aqui o alvo de Nini não é Zuzu, é a Batista, da Goela da Morte,
Zuzu tira das jacas o grude que passa no corpo. Da Batista o grude é
do beiço. As duas do mesmo fogareiro, da mesma ordinareza com o
Catu no meio.
— Pureza é andar — com licença do meu tio — tão...
— Por isso mesmo, por isso mesmo!
— É o que te ensinam no Ginásio?
Aqui Alfredo segredou:
— E ali na mesa, cá entre nós, naquele tão silêncio, que júri é?
Ah desculpe!
Deu com o seu Floremundo tão de cabeça baixa. Seu
Floremundo, parte da mesa, membro da família, servente daquela
justiça. Nini espalmou a mão num: tu! tu! Seu Floremundo riu, curta
risada, assim como um bom respirar, tudo nele um momentinho se
alumiou. No mesmo que riu, voltou a entristecer.
— Mas bem, não mude de assunto. É o que te ensinam no
Ginásio, Alfredo?
[28] — Infelizmente não. Zuzu me ensina muito mais.
— Alfredo, ao menos respeita o tio Floremundo. Está vendo,
meu tio, o que tanto aturo? Não estamos sós, Alfredo.
— Seu Floremundo, lhe desrespeitando?
Seu Floremundo espichou-se no silêncio, sorriu. Alfredo só
consigo: ali na mesa é um pouco, em ponto pequeno, mal comparado,
o célebre quadro, a lição de anatomia. Tudo ali na família se vê,
menos a barba imperial, a barba do pai que desabençoou a filha, a
barba que presidia o Conselho Municipal, a interinidade, a barba em
que se dependura a questã. Nisto, a D. Dudu chama a sobrinha que
hesitou, sem saber se dava outra resposta a Alfredo ou se atendia.
Alfredo, a roer-se, já se debruçava sobre o poço, pendurava no
pescoço da Zuzu o carocinho oco. Contra o rei e contra Deus. Duns
tempos para cá, Deus se cobria de um tal gelo. Daqueles três, o Deus
do pai, o da mãe, o Deus da nhá Lucíola, que o agitavam em menino,
iam restando cacos, como os de vidro da D. Graziela no quintal, a
cicatriz, aquele arrepio este bafo gelado. Então ao menos contra o rei.
Não, que reis no Brasil é só esse, à cabeceira dessa mesa, assinando a1
abdicação. Mas aquela república? Aquela, do Largo da Pólvora, de
facão, com as mães de Belém ao pé, enxotando de cima de seus
defuntinhos a mosca que cobre a cidade?
Lembrou-se do aragonês, de que falavam as senhoras daquela
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noite. Contra o rei e contra Deus. Estava no dicionário. De um beco
da Cidade Velha, enxugando o gogó e as saudades da Mãe Ciana, seu
Lício entrava na Sé para ler, com beatitude, os boletins da Anarquia
que chegavam da Espanha. Ou o manto de Nossa Senhora, em vez de
cobrir, ia, aí, sim, despir Zuzu? Deus? Deus?
Seu Floremundo se aproxima do estudante:
— As horas? O senhor sabe?
Quase um susto para Alfredo a idéia das horas. Foi à varanda, o
carrilhão parado. Na alcova — imprudente, mostrando-te, em
presença da família, assim tão íntimo da casa! — viu, entre as
floreiras, na mesa de mármore e pau marfim, o relógio francês
madeira e bronze. Parado. D. Dudu não dava corda nem naquele
quanto mais nesse, para a família não falar depois, sobretudo a
Graziela, que ela, Dudu, andava usufruindo, gastando o alheio.
Alfredo foi até a sala. Não ousou acender o lustre e tudo ali sentiu
como à espera do leilão. Sala e alcova tinham servido o essencial,
para uma noite só, aquela, em que recebiam a suposta visitante. Ela
[29] entra, saiu, ou nunca entrou ou saiu, real ou de mentira, não
importava. Não devolveu a chave. Sinal de que não era Luciana a
mulher da janela à tarde olhando a casa perdida. Ou era. Certamente.
Pode vir a qualquer noite. Debaixo do travesseiro ou da rede, da
ansiedade e da irresolução, a chave está. Restara a chave, abria a casa
na palma da mão e era tudo. D. Graziela sabe quantas chaves tem?
Mas a Esméia, Ismênia, Ismênia, esta de Vera visitou, sim. Aqui esta
coluna de ébano ganhou da preta a graça que lhe faltava. Nesta salva,
das mãos da preta, ficou este pouco jasmim murcho — que D.
Graziela descubra, fareje, indague, acuse — sem isto de que vale a
salva? E esse bronze bobo, Caçada Inglesa, no toque da assaltante
negra, impregnou-se de aventura, torna a caçada, agora, verdadeira.
No silêncio do relógio francês ressoa o minuto do salto. O minuto só
que Vai levar para o seu Floremundo. Voltou.
Também não sabia dar conta à conversa com o seu Floremundo.
E este, esfregando as mãos, paciente, esperava. O estudante foi no
alpendre, foi no quarto, encontra no chão o Francês sem Mestre, o
segundo volume de Os Miseráveis, a oração de Santa Rita dos
impossíveis para mandar ao pai, o Castro Alves, as cartas de Raul
[sic] — Nini mexeu ou não me lembro se deixei assim desarrumado.
Sem abrir a luz no quarto, abriu o atlas, abriu na África, aquela costa,
ali, aqui, de. onde, de onde o brigue que trouxe aquele bisavô e a que
preço? O deserto, o oceano, os leões, a esfinge, pulavam, bêbados, na
lição de geografia. Mas não podia nem rir do mestre pois no chalé,
quem sabe, ia a mãe, fechada na despensa, enxergando no caibro as
bonecas — que nunca levou de Belém — da filha morta, as bruxas de
pano desfeitas pela chuva. Tal suposição, por mais exata, era trair a
mãe, ofendê-la, expô-la diante de um público, esse, que povoa a
consciência dele. Abre o caderno e olha com surpresa: que é feito do
ginasiano? Quem estuda neste quarto? Estou passando um calote. De
cima do telhado, Luciana o espiava. Os livros o espiavam. Ser é
sentir-se espiado.
Agora no pescoço o tucumã com um contrafeitiço dentro. Deus?
Deus? Nem podia mais catar os cacos de Deus, metê-los no
carocinho. Deus? Naquele ano, pela cidade acesa de velórios de anjo,
as moscas nasciam do corpo podre do Senhor Morto. A noite, esta,
encalhou?
Esquecido do seu Floremundo, foi atando a rede, o Conde
sentia-se fatigado. A Condessa também mal tinha força [30] para
pronunciar uma palavra. Rodrigo levantou-se e disse: a revelação que
me fizeste, minha mãe, de tal modo me confunde as idéias que sinto
necessidade de repouso, O seu pedaço de Escrich decorado no balcão
do Saiu. Atou a rede, não se deitou, vai em busca do seu Floremundo.
A mesa, debaixo da lâmpada escura de mosquitos, entre
jenipapos e coalhadas, continuava a família, e ali à margem, remeiro à
espera dos viajantes sentados, o seu Floremundo agora nítido na luz,
mais exposto, mais entregue à curiosidade do rapaz.
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De fato, de fato. Comparado ao modelo, de que falava o pai, a
presente cópia não desmentia. Cópia, caricatura, ingênua ou rombuda
imitação, negativo de fotografia, o que fosse, parente, primo, talvez
pela tristeza, o certo é que alguns traços sugeriam a semelhança. O
filho do meu compadre Delabençoe é ver o D. Quixote, dizia o pai. Já
de volta dos moinhos, possivelmente. Ainda bem menino,
vasculhando as duas estantes da saleta, catando estampa, folha de revista, almanaque, catálogo, dicionário, Alfredo procurava essa figura
em pessoa, aonde andava? Quem era que servia de modelo ao
descalço, ao calado, ao bem pacífico bem magro senhor
melancolicíssimo do Mutá, o filho do Interino, chegando de remo na
mão e cigarro apagado atrás da orelha, pescoçudo, pernudo, a voz de
quem lá nó fundo do peito ou da tripa guarda uma longa desilusão ou
uma lombriga sem a qual já não pode mais viver? Lá está, psiu psiu,
lá vai de pé no chão e perneira, chapéu de sol aberto, o nosso
cavaleiro apontava o pai da janela para aquele passarão que amarrava
a canoa no toco da beirada, comia no banco da popa o aracu assado e
chibé e ia, depois de uma consulta no Ribeirão sobre as urinas, trocar
pernas, as suas pernas altas, pelo aterro; dava um tostão para o Bode,
na Rua da Boavista e conversava com o seleiro, ginjeiras do professor
com quem troca duas palavras, e pedindo para ver, mais uma vez, os
cadernos de caligrafia, os de letra gótica; um instante na Prisca —
taqui, comadre, um agradinho de minha parte, não repare. A senhora
nem nunca mais nos aparece... — no caminho fechado pelo capinzal,
ao cruzar com a Sabá Manjerona, inclina-se, com o seu guarda-sol,
dando passagem. A porta do velho compadre do seu pai, o receio de
entrar, ali no entrar era o viúvo desabado, a fome em torno da mesa
sempre posta é sem um grão de sal ou de farinha, o prato da finada, o
copo da finada, o berro contra os [31] advo|gados: nos tomaram tudo!
nos tomaram tudo! Deixava, à porta, na mão do vizinho: tome essa
encomenda pro seu Domingão; subia a torre da igreja, ver — o
pessoal não estoriava? — o corpo da falecida, aquela que ali, no
sagrado. Se deu a um. E sempre o seu Floremundo, de guarda-sol,
sempre só, triste sempre, aquela figura. Rompia no sol os
encharcados, fechando a boiama debaixo de cada pampeiro, sempre
ao relento a cabeça e o peito fundo. Mas na sede do município, por
particular respeito ao senhor seu pai, Presidente do Conselho e
Interino, abria o guarda-sol. É remador do Coronel Braulino?
perguntou-lhe, à porta do mercado, a D. Duduca, a modista. Não,
senhora. Filho. Um criado da senhora, raro é eu vir em Cachoeira, por
isso, Um pasmo no mercado aquele fiasco da modista, Na reunião
sonolenta onde, por fastio e cansaço, já de ninguém se falava mais, os
velhos despertaram um momento: mas tu. Duduca! Tu! E a compor
sempre, no chalé, o Cachoeira Nova, sem imprimir por falta sempre
de papel, o Rodolfo: coitada, tinha de arquivar a língua para sempre
aquela que de todos nós sabia tudo. Seu Floremundo, um metro e
oitenta e dois, não podia transpor a porta da Duduca, sem vergar-se,
por isso passava de largo, no rumo da Estação de Monta Onde não
tinha mais o gado de raça do Ministério nem o diretor estava — foi
fazer uma palestra na União Espírita em Belém e até hoje. De tudo ali
que se inaugurou ao som da banda do Miranda só ficou a Cerca de
arame, o banheiro carrapaticida com algum cururu pelas noites
falando do governo. Da Monta ia ao cemitério velho, em visita a uma
tia, arrancava capim por capim da sepultura, pondo em pé a cruz,
circulava por entre os mortos como um deles. No chalé, um custo
sentar, de pé, recostado na janela, taciturno, a responder: é, sim,
senhora. É, sim, senhora. Então se deu que a Inocência, servindo no
chalé, leva o café pro homem, este bebe, Deus lhe acrescente, nisto a
um chamado da beira se despediu. Vai, D. Amélia, prova do café
temperado no bule: mas, Inocência, trocaste, rapariga! Com que
temperaste o café, criatura de Deus! Só sal, criatura do diabo! A
Inocência, já com o bule na mão: não foi, D. Amélia, não foi, veja lá
se eu quisesse botar o homem pra fora era só pôr a vassoura atrás da
porta, é que estou com esta cabeça... Inocência padecia de suspensão.
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Quanta vez, se despedindo, seu Floremundo ouvia da D. Amélia
na porta: dê lembranças. Ele alteava a voz: farei presente, sim,
senhora. E daqui com os seus dentes a D. [32] Amé|lia: faz presente
coisa nenhuma, que aquelas de mim só querem é lonjura. Eu que me
dôo? Axi. Que boa maré te leve, passarão, merda pra tuas irmãs e tua
mãe.
Alfredo então estranhava. Do Quixote, o pouquinho que sabia
sem nunca vê-lo e do escrito nem uma linha, era que corria o mundo
de lança e espada. Aqui esse, nascido no Mutá, em vez da espada
trazia o remo n’água, em vez da lança, o chapéu de sol, com as suas
passadas bem vagarosas, voltando para o Mutá nos favores da maré,
lá desembarca, monta no boi mocho, chega na fazenda: sa bença,
mamãe, bença, papai, este diante do espelho com o pente fino,
lambuzado de brilhantina, pela barba de Imperador. A D. Jovita na
rede, o rosto talhado em pau e silêncio, as mãos no colo, governando
a casa. Agora em Belém, é a explicação, O nosso cavaleiro nunca se
queixou do sal no café e ignora o nobre apelido. Com um novo alívio
por adiar as apreensões, Alfredo ficou ao pé do cavaleiro, e entrou,
num desembaraço, a indagar-lhe dos mutuns caçados, das capivaras,
quantos bois desatolou no verão, se ia ver no Jabuti os zebus de
Minas.
— Então que deu jenipapo, não?
— Jenipapo que é imundice.
— E pro carnaval, fica?
Seu Floremundo — quem era ele pra ficar pro carnaval —
festividade que nunca usufruiu, nunca morou onde sempre se festeja.
Mesmo, por nascença e índole, era bem desanimoso.
— Carnaval que eu sei, que me lembra, é dum, mas faz é
tempo. Foi na boca do lago, chovia que chovia, a água então, olha a
altura. Mesmo assim no jirau rente d’água jogavam a modo dum
entrudo. Eu zinho na boca do toldo eu só que espiava, por um
desenfado. Era que era fio, Deus o livre, mesmo assim aqueles
viventes brincavam. De entrudo já me chega a lida todo dia no
atoleiro. Meu viver é mais no campo, do campo eu gosto e vivo que
nem cascavel.
— Aqui em Belém nem uma só vez, seu Floremundo?
Alfredo tinha nos olhos um carnaval em Cachoeira, cordão dos
pretinhos, entrando no chalé: o Major me conhece? Me conhecendo,
D. Amélia? A fila dos mascarados pelo aterro, como se fossem numa
procissão, vão entrar na igreja?
— Aqui em Belém nem um, seu Floremundo?
Também Alfredo, naquela sexta-feira, espiou a prima
ornamentando o Palace para o bal-masquê de sábado. Deu [33] um
giro pelo terraço do Grande Hotel, já a sociedade se jogava serpentina
e confete, lá dentro jantavam, a orquestra do salão tocava fúnebre.
— Nem nem um, seu Floremundo?
Seu Floremundo acena com a cabeça e pensa numa noite, nesta
cidade, chegando de repente, vai onde mora a Graziela — ela tratava
os dentes em Belém — e dá com aquele dominó amarelo, máscara
com uma tromba, no meio da sala. O dominó não falou, fazendo que
não conhecia o viajante. Aqui tem novelo, se diz o seu Floremundo.
— Deixa que já te conheci, minha irmã. És tu, sim, Graziela.
Sem tirar a máscara, trombejou:
— Que tu vieste fazer, Floremundo?
— Aviar esta receita de um senhor que passou por lá,
aconselhando homeopatia. Vou amanhã no Bacelar.
— Isso de homeopatia eu sei de quem a invenção. Quem doente
em casa? Papai? Mamãe? Felipa?
— Tu sabes quem.
— Aquela partiosa? A inventadeira de doença? De novo com as
partes dela?
— Deixei ela com bem febre.
— A febre dela eu bem sei. Eu sei a febre.
Luciana dada àquelas febres, a tal tonteira, umas dores de
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repente. Nisto fonfoneia o carro, o dominó — eu sei a febre dela, eu
sei a febre dela — desceu e só voltou de madrugada. Encontra o
irmão já de pé, fumando na janela sobre as folhas de zinco onde umas
roupas serenavam.
— Olha, Floremundo, não te faz de boca quente.
— O irmão — aqui tem novelo, aqui tem novelo — não
respondia.
— Te digo isto não por mim, por mim que não é, vou logo te
dizendo. Mas dizer lá não carece, que eu sei o que estou falando.
Melhor dado por não visto.
— Ora, cera! que tenho eu com o teu dominó e tua máscara?
Sim que lá tu és sempre de sermão no bico. É só a Luciana mexer um
dedo, não sais de ferro em brasa?
— Tu pensa que é uma coisa e é outra, Eu? Viro o juízo? Viro?
É ou não é?
— Não me compete.
Chega o irmão na fazenda.
— Floremundo, do carnaval, mano, tiraste o teu fiapo?
[34] — Junto de mim passou um mascarado. Um dominó
amarelo. Foi num lugar impróprio. Passou tua febre?
— E a Principala, já botando o dente de ouro?
— Botando.
A uma palavra de Alfredo., seu Floremundo saiu do pé da irmã
deitada na rede, e veio e admitiu, compassou a voz, batendo o
carapanã pelo cangote:
— Aqui em Belém, é verdade, me deixe me lembrar, espere...
Sim, só vi, uma viagem, andavam vendendo no Ver-o-Peso, rente das
proas, numa enfiada, desconforme de caro, um horror de máscaras.
Sim, que no toldo da canoa freteira, a Zéfiro, cobriram de confete o
piloto que dormia na camarinha. Mas bote confete, tão em
quantidade. Fantasiaram o dormir do homem.
E com um olhar para o alpendre, ganhando uma cautela,
chamou o Alfredo para o mais afastado:
— Vamos nos arretirando mais pra cá um pouquinho pois me
deixe ir lhe dizendo. Foi na mesma noite do confete no piloto, assim
pelas nove, o Utinga não sei se apitando, eu bem na beira do toldo em
cima, ralando a onça de tabaco. Me virei: pelas proas, lado do
necrotério, um zunzunzum. Firmei moa vista, era. Era que era então
que só visto. Veio vindo. Um bando daquelas umas. Com voz de
mascarados, ver piaçoca no lago. No geral vestidas a caráter. Tinha
então uma, coberta numa plumagem, asa de anjo, escorria dela um
luzimento, valia ver. Sustentava uma lança, mexia na asa, arpoava a
lança e eu daqui só te olhando, só te olhando. Até que uma outra de
cagão preto e penacho em riba das cadeiras, me espirrou certeiro a
lança-perfume, me bisnagou no meio mesmo do meu olho, Deus o
livre, me caiu o cigarro, até hoje sinto arder, vai espirrar, com licença
da palavra, na que te pariu, quis dizer, não disse, viola no saco
escorreguei pra dentro da camarinha. Então que num desatino iam que
iam tomando conta dos barcos, das canoas, se enfiando pela
mastreação. Pula nesta verga, ali no rolo do cabo, lá estão por cima do
velame, roçando no gurupé, aquela na boca da caranguejeira, bateu na
barrica d’água, o senhor tire um juízo. Estou lhe dizendo, vira e que
mexe, iam passando de convés em convés, bailéu em bailéu, segurando o cordame, gritavam já das popas, olha aquela escanchada na
cana do leme. Queriam içar as velas, a estripulia, veja! As donas faz
de conta que aquele canoal do Ver-o-Peso era delas, salão de baile
delas. Deixe estar que [35] corria o frasco, penso eu que até aquele
fumo oculto uns e umas fumavam, não duvide, fedia que fedia a
bebida, quem tinha serpentina jogava, quem não tinha dançava em
cima do toldo, uma dançante dobrou o espinhaço pela borda quase
quase na lama, não fosse a munheca do tripulante. Outra dá uma
topada na panela do mapará cozido, pulam no porão em cima dos
sacos de carregamento, invadiram camarinhas, Se amontoam mas oh
donas impossíveis, no rebuliço estou que bebiam demais, penso eu.
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Faziam dali, penso eu, o arraial delas, de suas folias, penso eu, o
terraço do Grande Hotel delas, o largo da Pólvora delas. Então se
ouviu deste barco, daquela canoa, do lado do Mercado de Ferro, da
parte onde sempre é a louçaria de barro, do encosto das geleiras, estrondou, só o senhor vendo, aquela goela só: Ei cunhado! Ei cunhado!
A zona embarcou toda! Larga o cabo! Tira a prancha! A zona
embarcou foi toda! Suspende o traquete, cunhado! só faltava a maré
encher, que a doca estava seca, as quilhas na lama, com siri e tralhoto
lambendo o limo das embarcações. Eu dentro da camarinha, Olho
ardendo sem poder abrir, assim mesmo espiava com o outro Olho
pela porta, pela vigia — o piloto dormindo dormindo debaixo do
confete — e cada vez mais lá por cima as donas na danação, espie.
Pena é o senhor não ter, por uma comparação que fosse, Subido num
daqueles sobrados, naquele do seu Antonico Silva, com o holofote da
Marinha em cima dos mastros e dos toldos, só pra tirar uma vista.
Que o que se viu por dentro daquele canal foi feioso, foi foi feio.
Nisto a polícia, crau! a debandada, chega a patrulha, crau! ferra o
pano, rompe a cavalaria quebrando os potes de barro, o mau tempo
em cima delas, gritavam debaixo dos mastros e dos cabos e
aquelazinha com um diadema e Um manto todo de cetim vermelho
que se pôs a gritar? Me dá essa bijarruna, me deixa me esconder
debaixo da bijarruna, meu pai era da Vigia, quem é aí os da Vigia?
Me escondam na bijarruna. Sou da Vigia, meu pai era piloto, me deu
que foi uma saudade do meu pai, Minha Nossa Senhora, me
arranquem deste manto, me arranquem deste diadema, me levem onde
a canoa do meu pai se afundou, inteirou seis anos, eu era inda menina
bem menina, lá na Vigia, eu era, sim, eu juro, eu juro, me cubram
com a bijarruna, me cubram com a bijarruna. Rasgou-se o manto, o
diadema abaixo, levada pelos soldados, foi no grampo. E foi que
parecia só ficava aquele suplicar dela no Ver-o-Peso, pelo carnaval
inteiro, ela só, [36] gri|tando. E eu querendo um poder para guardar a
menina na palma desta mea mão.
Puxou um fôlego.
— No que deu então aquela calmaria, o piloto se acordou
cuspindo confete: que foi? que foi? Olhe, até que não era para estar
lhe contando ao senhor semelhante passagem. Que feder, o Ver-oPeso fede, o trabalhar fede, ali a tripulação não larga de mão o canoal
carrega descarrega, espera maré, entrando, saindo... Mas naquele
instante no que botei o nariz de fora da camarinha, com perdão da
palavra, que tudo ali fedia a fêmea, com lança-perfume bebida e fumo
ah fedia e corre inda aqui pela entranha o grito daquela menina.
Calou-se com muito embaraço e igual reserva. Calou-se.
Calado. Está ouvindo o grito da irmã?
A modo que foi ontem, a irmã arranca os três dias da folhinha,
vai ao tabocal jogando terra nos bichos de criação: jogar nosso
confete, senhoras e cavalheiros. É uma batalha. E aquele repente em
que se enfia no velho fraque do pai, a máscara ela mesma fez, a
cavalo para o pagode dos Ervedosas, tamanho sábado gordo, no Mutá.
Precisou ir atrás dela, escondido da mãe, esta na fiúza que a filha só
tinha ido desinflamar um pirralho no retiro com garapa de aninga.
Flechou o galope atrás da irmã. Desajuízo dela era mais de
contrariação que lhe faziam de não poder pôr o pé na cidade? Só?
Estava entra-não-entra no pagode, oculta num mirizal, ali agachou-se,
de fraque e máscara.
— Mas Luciana!
O salto que ela deu para o pé do cavalo! O rosto que saiu de
debaixo da máscara! De volta, se agarrou na tranca da porteira, com o
gado preso no curral fazendo aquele pião. Entrar em casa, cadê? Olha
mea mãe, Luciana, olha a mea mãe, ela que já não anda muito
católica contigo. Ninguém te viu? Ninguém te conheceu tua cara
debaixo da máscara? Não se desgarrava da tranca. Brusco, destrancou
a porteira, deixando o gado sair, e dela iam saindo também as
lágrimas de raiva, lhe tirando o alvaiade do rosto. Numa caveira de
boi, espetada na cerca, com os urubus olhando, amanhece a máscara.
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— Seu Floremundo, tenho em lembrança, não sei direito, era
em casa em Cachoeira. Dum mutum aparecido, bastante tempo. Sã
me lembro é dele na varanda voando escuro. Era? O senhor que
levou?
[37] Seu Floremundo esfiapou pelo bigode escasso o sorriso, a
escutar com atenção tristonha. Com uma palmada no pé do Ouvido
matou o carapanã. Lia-se nele um repentino, manhoso gosto de só
escutar. Bastante queimado era. Castigado de campo, curral e caça.
— Trouxe o guarda-sol?
— Havera então de não trazer? Aqui sol dói.
— Também a chuva?
— O que sei lhe dizer é que a chuva aqui amofina a gente.
Preferível sempre abrir o chapéu das águas.
O cavaleiro arriava o ossudo. ombro, varando a sombra com os
seus ossos altos. Se distraía um pouco escutando esse zinho trazido
para o estudo, esse empinado, mal quebrando o ovo e já se fazendo de
galo. Viu ele piquixitinho no braço daquela que, nem por ser de pele
fechada e esposarana, menos senhora é. Até lhe deu, mais que uma
surpresa, um respeito, uma cerimônia ao vê-la pela primeira vez, na
porta do Major. Pode entrar, pode entrar, mas suba, seu Floremundo,
casa às ordens. Com a criança no colo, o rosto — cor, boca, voz — de
baunilha feito. Aquele sal no café, tinha certeza, se não procedeu dum
engano, de vasilha, foi por pinima daquela tapuia por certo hoje
espalhando rio abaixo a proeza dela. O chalé era digno de hospedar o
Coronel Braulino quando Interino do Município ou presente à
assinatura do Orçamento, não as filhas que nunca iam. Pois na
Camamoro, aquela preciosidade do Secretário, a pretinha metida a
branca que o Major sustenta, a pé rapado que virou família, a
negrinha de pé tuíra que ele carregou do Muaná na garupa, ouvia
constante das duas irmãs maiores e da mãe sob o silêncio do pai. Da
caçula, o que escutou só: se eu fosse agora em Cachoeira, mano, casa
onde eu só ia, outra não era sótão a casa da D. Amélia. Duvidando?
Pois duvida. Quem hospeda o pai, hospeda a filha.
Agora é o filho dela, tão dela, sossegado sem sossego, chegando
de uma noite sabia-se lá que noite. Mas palavras do moço a rua
latejava, rodando aí pelas horas de Belém a todo vapor. Que trouxe da
noite o menino? Um tanto mais sobressaltado que curioso, a indagar
de mutum, de capivara e de carnaval, por ser da educação, do bom
acolhimento indagar. Na pele do rapaz, se vê, as baunilhas da mãe,
aqui e ali, os ocultos da mãe, principalmente daquela, aquela tarde, na
porta do chalé. Do pai era o rir nos olhos, o puxar assunto, o abrir um
livro. Também a outra, nesta casa, era de estar em [38] cima de sua
leitura, moça de se dizer: esta sim, também... Também lá uma pessoa
criada entre bois, porcos e búfalos no Jandiá, nascida dona desta casa,
cobiçou esta cidade. De sua cobiça nasce esta moradia. Agora? Pelas
tripas de Belém correndo, onde todo dia é noite.
— Uma vez, seu Floremundo, levei de Belém um jabuti. Joguei
no rio. Não duvido que desembarcasse no Mutá atrás de ficar entre os
seus, seu Floremundo, que eu sei que o senhor cria.
Seu Floremundo pigarreou breve:
— Não, senhor, seu jabuti inda não chegou lá. Chegando lhe
comunico. Será bem recebido.
Sorriu, tirando o paletó jegue, e toda a ossada do peito apontou
sob a camisa, esta um presente do pai, pelas mãos de Luciana
marcada, foi em dezembro, dia de Nossa Senhora das Candeias, a
acender a vela no oratório, a candeia de azeite na porteira do curral,
numa lonjura de meia légua alastrava um fogo, fogaréu alto, a parição
daquela égua alvaçoa era por horas. Nesta camisa, a letra marcada, F,
me rói muito doído. Quando marcou a letra, tinha no braço um fogo
selvagem. Até imagina, imagina que ela foi, aquele dia, depois, pelo
raio arrebatada. No que apeou no curral, ele entra em casa, olha para
o quarto escancarado, dela restava a sandália virada que desvirou,
avança para a mãe sentada na rede, de olhar em cima dele, as mãos no
colo, a muxinga em pé. Graziela limpando o bandolim que nunca
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tocava. Felipa, das folhas do alecrim tirava um sumo, O vento abre e
fecha porta abre e fecha janela, debatia-se casa adentro, era rincho,
bicho piando, aquele soturno dos lavrados, despencou um jenipapo,
rangia o tabocal, todas as vozes dela, muitas, muitas, dentro de casa
soprando por baixo da rede da D. Jovita que não se embalava, o olhar
em cima, as mãos no colo, a muxinga ao pé. Depois, nem adeus
depois, nem forças para um dia procurá-la, flechar um galope até ao
Mutá: ó do barco! ó do barco! está aí, ai no toldo aquela mea irmã?
Viram? Com efeito, num galope chegou na caiçara e até sentiu a irmã
embarcada na caiçara, içada no cabo pelos cabelos, descida brusco no
porão, rês a outro consumo aqui nesta cidade que tudo come, tudo
obra.
— Com sono, seu Floremundo?
— Até que não. Pensavazinho um pouco.
— Então que tal um pulinho pelo quintal?
— Só não querendo...
[39] Fez ele, obediente, pois fugir daquela mesa de cozinha,
daqueles quatro engasgados num surdo escândalo, fugir, queria, sim,
depressa. Ele, a vagarosidade em pessoa, tudo num vagar fazendo,
bem do bem vagaroso, a maré que é a maré, enche tão depressa?
devagar no remo, em riba do cavalo, no ir à caça, no preparo de uma
ferra e de um embarque, devagar as suas armas carrega, o mundo não
carecia pressa, e até mesmo desenrolar os novelos de sua família era
sem avexame. A Questã anos no Foro, naquele areião guloso que era
o Advogado, indo pro fundo, papel e boi, quanto mais tempo dure,
mais orgulho dá ao pai, a caçula trazida por um raio ou por um fado,
de quem se tira esta casa e por quem se acaba o sossego do irmão, O
casamento — tudo, menos esperar por Isso — de Felipa de tamanha
idade, a mais velha. Pois esta semana passada aparece um que vê o
gado, sabe do dinheirinho dela no Banco, bastante foi o conversar
com ela um par de tempo, pediu a triste mão da carcomida Não,
Felipa, eu podia dizer, disse? Te lembra daquele pastor protestante,
olha que era outra apresentação de homem, uma pessoa que se sabia
que era, o pastor só faltou foi se rojar diante da caçula — andaram
contando o contrário — e ela com um não e um aperto de mão,
embora andassem espalhando que galopou pela beira do Mutá atrás
do recusado, coisa que se põe em dúvida. Felipa, depois do seu tiro na
macaca (tanto tempo já!) ao estranho que chega, acaba em sim,
senhor, sim, senhor, a voz pingando: então conforme seu trato, lhe
autorizo, O seu Cipriano escrivão trata dos papéis. Também acho que
pode ser já, luxo não carece, do meu enxoval eu me encarrego.
Parecia até vendendo um dos seus capados, o rosto crespo, piscando,
um argueiro em cada olho, arre que por esperar sentada até que veio
um. Não que acesa por marido nunca foi, nem por desesperada, não é
do seu calibre, então, então? Fogo no teu juízo, Felipa? O caruncho
que te comichou, sua cega? Viste a Principala se rindo? Viste a
Principala só consertando a goela? Viste depois a Principala te cobrar
aqueles dez contos que estavam na tua mão? Viste a Principala te
dizer: daquelas jóias, Felipe, ali juntas, só uma que é tua, tu sabes. E
tu disseste, sem mágoa nem suspeita: é, sim, Graziela,
Estuda um pouco o pretendente, Felipa. É ou não é um do
Arienga, comércio dele lá fechando as portas, cortados seus
aviamentos no Antonico Silva do Ver-o-Peso e do Pinto Alves, do
Porto do Sal? Sobe o Arari atrás de viúva que o [40] livre da falência,
chega no Camamoro: ah esta aqui, esse refugo, me serve, eu peço é já.
Amanhã, Felipa vai ao comércio aviar-se de paramentos que,
por esperarem tanto, amarelaram na prateleira. E aí nessa mesa,
debaixo da luz do inglês, se prolongava o que ouviu e viu na
Camamoro e durante a viagem na Lima Júnior fretada: é a Chefatura,
é a Justiça com a espada no endereço, la para o endereço com a
carroça, e arrecadar tudo, ladra! A mãe, a tal palavra, endereço, nunca
usou, agora ouvido nas sete cartas. Graziela relia o sobrescrito:
endereço. Travessa da Violeta. A mãe escutava.
— A letra? Dela?
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— Parecendo que sim, mamãe. De quem mais. Até que assim
assim a caligrafia.
— Estou te indagando?
— Dela, sim, a letra.
— Sabes? Quem te disse? A Justiça vai saber.
Tudo porque Graziela, vai, enfia a garra no bolso do velho, no
casimira azul marinho trazido, meu Deus, que distração, de
Cachoeira, traje do Interino, feitio do Leônidas, guardado sempre na
mala grande do chalé do Major Alberto. O velho trouxe a casimira
para um casamento no Setepele, ia servir de padrinho, foi adiado,
deixou a roupa na fazenda. Graziela dá Com as sete cartas de Belém e
ainda no mais aquele retrato, Foi pegar nas cartas, corre, na mão da
mãe. Lê, Graziela, que te falta? pra isso te mandei ensinar, Graziela,
ao pé da mãe sentada na esteira, lia, leu, releu, é a que sempre lê, a
leitora da fazenda, a guardadeira das chaves, documentos e segredos,
chocando a voz, meio ralhosa no falar, a Principala.
Algum desgosto, umas tantas contrariedades, meias suspeitas,
tenho dela, negar não nego, mas não me fere tanto, me fere é o receio
que Graziela vem me dando, aqui tem novelo, me arrepia um
pressentir que me faz nascer um grude grosso azedo na saliva.
O pai repuxava a barba, repuxava a consciência, obrigado a
escutar, obrigado a esta viagem, arrastado pela família à presença do
Dr. Gurgel, do ex-Governador, ao peso das sete cartas, por tudo que
sucedeu. Pelas sete cartas esquecidas no bolso, lidas alto, uma a uma,
com o endereço no sobrescrito, o pedidinho para tirar — sim, meu
anjo? — no Ferreira Gomes um jogo de louça, a caçarola, e o
milheiro [41] de palha para a barraca, o colar e o pano do robe no
prestação e o resto a pagar pela imagem de Teresinha de Jesus.
“Tenho também de botar o pivô, coração”. Estás ouvindo, cachorro?
rosnava a D. Jovita para o Bogarim, o cão de caça. Escutando, seu
sem-vergonha? indagava do papagaio que pousava no punho da rede.
A crua analfabeta mandava: Me diz de novo essa passagem. Não me
come uma só letra, não me salta um pingo. Me informa das datas.
— Espere, mamãe, que vou verter água.
— Inda mais essa. Aproveita me enche meu cachimbo.
Cobriu-se, na rede, com as varandas, a gargarejar de furor.
Possível que ali nas cartas esteja um rastro da renegada.
Em tudo por tudo, o velho, foi, carimbou a sentença contra a
caçula, sem carregar na mão. Uma palavra, pelo menos, dele, o filho
não escutou. Conversavam o trivial — gado, obras no retiro, o atrás e
o adiante da Questã — bulir no assunto, nem por sonho. E foi, uma
tarde, subiu no alpendre, fedendo a cavalo: papai, me dê uma opinião,
então. Não convém saber o certo? Indagar, cartas na mesa, da caçula
o que foi visto mesmo? Um investigar? O pai, debruçado no
parapeito, aninhava os dedos na barba sem nem dizer estou te
ouvindo, meu filho.
D. Jovita — tal como a chamava Luciana quando via a mãe
nada católica — suspeitava naquela amante do Marco da Légua,
tirada do bolso do casimira, um caminho em que ia o pai até dar com
a filha? Tramóia da perdida? Cartas falsas, escritas de mão esquerda,
para varrer da família todo o sossego? Por trás da rapariga do Marco
da Légua, não estava o sumetume daquela capivara? Com seu rancor
e repugnância da cidade, a D. Jovita farejava naquelas cartas um sinal
da amaldiçoada. Até que ponto o pai não sabia da filha? Sim, tinha o
retrato, era um porém. Graziela voltava a ler os documentos. No
mesmo quarto onde esteve presa a Luciana, o seu Braulino, só de
calça de pijama, a barba escumando sobre o peito de guariba velha,
abria a janela para o curral, debruça-se, vira-se para apanhar da mão
de Felipa a xicrinha de café, a ouvir a leitura na varanda, desce para o
curral e aquela leitura o acompanha, anda por uma distância e sempre
ouvindo a Graziela. Voltava e agora numa sucessão de ecos, meu
velho meu vovô. Se lembre, meu filhinho, de sua filhinha, dos
carinhos que lhe dei na sua barba linda que só eu sei pentear, meu
vovozinho. Não é assim que me pede que [42] eu lhe chame, meu
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vovô? Lido cru e grosso, como quem reza terço, pela Principala, a voz
da amante escorrendo pela casa.
Seu Floremundo saltou de suas cismas:
— Era um mutum açu, o que levei pra casa de sua mãe.
Casa de seu pai, quis emendar, não emendou, satisfeito.
Lá da mesa pareceu sair um regougo. Os dois aqui se caiavam.
Seu Floremundo pensou: o caminho, quem sabe, que o velho via, ou
dela se aproveitou, ou aproveitado pela amante, para tirar da toca a
perdida.
— Seu Floremundo, não me lembro bem. Bem bem, não.
— Ah mas já faz bote que tempo. Peso de tempo. Dei também
um pro seu Saiu, esse um mutum pinina, com topete senhor topete.
Um penacho que o mutum tem, serve pra encastoar em ouro.
No balaio da caçula, agora da Graziela, aqueles tantos
encastoados, o trancelim, a corrente...
— É preto-preto. Lustroso do lustroso.
Meu Deus, da mesma tinta e lustro o cabelo da caçula. Olha,
mano, cor deste meu cabelo e cor do penacho do mutum tirado é da
mesminha tinta. Quando num carnaval em Cachoeira, vou enfiar na
minha fantasia um penacho de mutum. Não sacode a cabeça, mano,
que eu ainda vou, sim, contigo, tu me leva, me fantasio na casa de D.
Amélia, oh que esse meu irmão! Que triste irmão és! Penduraste a tua
alegria no pé do urubu?
Também Alfredo via nos tios, um pouco na mãe, a cor do
penacho do mutum, lustroso de rosto e sossego no banho, beirada e
ladainha, no baile de Santana, no leme do barco, no lombo do cavalo.
Mutum e tios, da mesma família.
Tinha o seu Floremundo parecença com a nunca vista Luciana?
Do mesmo pai, Luciana e Floremundo? Não podia conceber. Em
Luciana aquela insubmissão, aquele frenesi para o risco, aquele
brusco desajuízo que via, um pouco, em Ana, e por um instante, um
instante só, na Esméia ao saltar a janela para dentro da sala.
Seu Floremundo muito sossegado:
— Da carne deles, do mutum, nunca provou? do mutum?
Nunca?
— Ah que o meu tio Sebastião falava...
— Que era ver carne de peru?
— Adivinhou. Peru.
[43] O gritinho da Nini: uai, vocês ai conversando com as formigas? Enxugando o quintal? Fizeram promessa de levar, sereno?
— Comer mutum, lá em casa, só mesmo uma pessoa lá, este seu
criado. Que aquela mea irmã, rá! Nem mesmo o cheiro longe. Dizia:
quem come mutum come gente.
— A caçula?
Seu Floremundo disfarçou, mirando as plantas, passou a mão na
folha do tajazeiro.
— Mutum, em casa, foi, par de vez, o meu peru.
Trancou-se para lembrar só consigo o aniversário dela, sim, sem
nem um festejo, assim sempre foi. Aquele assado de peru apareceu na
mesa, presente de uma comadre dela do Mutá, trazido de boi, dentro
da panela de barro. Luciana o que só comeu. Mas então comeu! Pois
era mutum, sua-diz-que-nunca-hã-de-comer-mutum, pois comeu
mutum, falou bem brando o irmão. A irmã tomou aquele sobressalto,
se enfarruscou, boca não mexeu. Minto. Falou pelos olhos por onde
mais falava.
— Canso eu de comer mutum.
A voz se tornava compassiva, nem o caçador nem o ferrador de
curral que conversava nem o andante entre os búfalos e as trovoadas,
farejando pelos encobertos, com um pingo de lua em cima do piriá, o
rastro das onças Alfredo queria escutar nessa voz o perdão a ressoar
longe, até que a desabençoada escutasse.
— Uma vez, beira do rio, vi um casal. O mutum macho fazia
pitiu, pitiu... pitiu. A fêmea: can... can... Peguei, levei, pedi: cria eles,
mana?
22
Aqui seu Floremundo vergou-se um pouco mais, estalou os
dedos, coçou-se nas costas, olhou as alturas da noite.
— Deixa ar que eu crio, disse ela. Um dia, o macho derrama da
cuia a garapa que a mea irmã fazia da batata da aninga. Ela
costumava levar a batata da aninga no quente das cinzas, depois
lavava, ia espremendo, ia espremendo, até que desse um caldo
igualzinho garapa de cana, só que sem a doçura. Com isto Luciana...
Escapou como um gemido. Há quanto sem soltar o nome.
Podia? Varrido não foi tudo em casa o que lembrava a caçula? Vem o
rapaz, esse — as coisas! — me tirando o nome da boca, me espreme
um pouco aqui por dentro. Pouco é mas tira o tamanho.
[44] Alfredo esperou, apoiando o pé na cerca, o coqueiro
rangia. Lá dentro a sessão em silêncio. Para entrar no quarto, sem
nunca ligar a luz elétrica, D. Dudu acendia a sua lamparina. Nini
gargarejava no parapeito.
— ... com a garapa da batata da aninga até que curava viventes
que sempre apareciam na fazenda, inflamação de um, inchaço de
outro. Só indagar da mea tia Santa. Indague, que ela lhe diz.
Padecente no cuidado dela, dessa mea tia, padecente que inflama a
barriga, ela cansa de tratar com aquele caldo. Também quanto a
qualquer batata agreste, Deus o livre, aquela mea irmã tinha a modo
de uma querença. Daquela batata, de que se faz um banho, do vai-evolta? Bote! Ralava passava pelo corpo do braço. Assim como tu
vais, tu volta, assim como tu vais, tu volta. Assim.
Alfredo: banho do vai-e-volta, vai e volta, ralando a batata no
banho.
— E conhecido.
— O que, seu Floremundo?
— Estou lhe dizendo da batata do banho. Sua mãe bem que
sabe.
Alfredo mentiu:
— Mamãe é que usa.
Falso banho, enganosa batata, lia nos olhos de seu Flora.
mundo.
Seu Floremundo disse o pau de que era feita a cerca aos fundos,
olhou para a laranjeira desfolhada com aquelas quatro laranjas tão
maduras lá na ponta do galho mais alto, como se para amadurecê-las
tivesse a laranjeira perdido toda a folhagem e o fôlego. D. Dudu
preferia vê-las podres a apanhá-las. As laranjas deviam estar anotadas
no caderno da Graziela. Seu Floremundo levantou a cabeça:
— Tem que tem chovido, não? Por lá nem se fala, é chuva que
fede.
Tirou o lenço, enxugou o rosto, como se ainda estivesse se
enxugando daquelas chuvas de lá e das saudades de Luciana. Dobrou
o lenço com cautela.
— Também se criou um japu. Ela criou com gema do ovo. O
japu pintava! Furtava os óculos do papai, o cachimbo da mea mãe, as
pulseiras da Graziela, tudo levando no bico. Ninho dele é como um
balde, no bojo põe o ovo, a boca do ninho que nem boca de cachimbo,
nunca chove dentro. Bicho que era bicho que tinha em casa! A caçula
era muito xerimbabeira. Os bichos naquele pegadio com ela. Chegou
de [45] amansar, a bem dizer debaixo do sovaco, um acuatipuru encarnado, que estoriam que encanta folha de qualquer mato, virando a
folha em pé de milho, em banana.
Faz um milharal daquele mirizeiro, e já espigando, anda!
ordenava a caçula. Quero agora mesmo desta sororoca um cacho de
banana inajá, anda!
Alfredo andou ciscando no terreno minado. Recolhido na
sombra, aquele-um alto calou-se. Das asas do mutum, do ninho do
japu, da garapa da aninga, do banho do vai-e-volta, do acuatipuru
encarnado, safa a irmã do seu Floremundo, encastoada em saudade.
Mas, homem, onde é que então estava que não acudiu, não arrancou
da mãe a castigada, com teus ninhos, com tuas penas, tuas cordas, os
xerimbabos dela, não armaste a rede onde a tua irmã ficasse? Onde
23
estavas que, em nome dos bichos, não trouxeste de volta a ama deles?
Ninho de japu, nunca chove dentro? Mas aqui em cima de Luciana,
chove, chuva de Belém, esta, sim, fede, seu Floremundo. Onde o teu
remo, cavaleiro do miri e da canarana, para recolher na canoa a moça
pela família vomitada, deixar a irmã onde ao menos alguém dissesse:
não te escasseio o meu jirau. A mãe no chalé poder ficar pode, minha
filha, que teu juiz não sou — podia recebê-la. Agora, sem o vai-evolta, sem o milho e a banana que tanto pediu ao bicho encantador,
agora, nós dois juntos, seu Floremundo, nesta lamentação disfarçada,
viraste, irmão ossudo e bimba, num japu desassado, sim, sim, já faz
hora que te espio, que descascas tua ferida, seu triste.
— O senhor então que de espingarda atira é bem, não? E eu que
nunca um tiro dei.
— O senhor, novinho que é, andando pelo mundo vai sortir
repleto a sua memória. Eu, não é por me gabar, boa mira Deus me
deu. Mas que tem por aqueles campos e beiragens uma quantidade
melhor que eu eh isso tem eh bote! Peso de gente. Quando der prazer
— mas vá! — de passar um dia por nossa casa, às ordens. Do
pouquinho que atiro, minha experiência lhe passo, a pontaria é pouca.
Escondeu as mãos, se fez mais descarnado, mais torto, como se
sustentar a cabeça lá em cima fosse muito.
Um assunto de pescaria, um resvalo nas lembranças da irmã, o
nome do Major Alberto, se o Leônidas, o alfaiate, voltou a montar sua
alfaiataria de bubuia pelo Arari, e veio o caso daquele que matou o
fazendeiro, foi pelos irmãos do morto obrigado a tirar da cova o
defunto...
[46] — Ah é arriscoso conviver com eles. Isto eu sei, é arriscoso. Não contesto.
— O senhor se dá bem com eles?
— Os Menezes lá de cima? Me dar bem, faço parecer, que é
meu dever, pois se são parentes.
— Os Menezes?
— Por parte de mamãe, sim.
Alfredo concentrou-se: Então Luciana é sangue de Menezes? É
Menezes? Oh família por toda a parte!
Seu Floremundo se assoava.
— O senhor visitou o preso?
— Na última viagem. Era como se eu fosse pedir perdão em
nome do sangue que corre neste meu corpo.
— Contra cobra, o senhor fechou o corpo?
Alfredo puxou por malineza, assim de súbito, sabendo a cobra
de que falava.
— Segurozinho sempre uma pelo pescoço, ela viva. Vezes, fiz.
O corpo me fecharam mas não foi no Arari. Se deu numa viagem, lá
no Soures, uma viagem, andava me queixando das urinas.
— O mestre de Condeixa?
— Fui bater na porta dum, lá de Condeixa. Tem ouvido? Dum,
não. Do.
— Mestre Jesuíno.
— Mas o senhor já me anda bem adiantado como coisa que o
seu estudo sempre soltazinho um tempo pra saber do que se passa por
aquelas cabeceiras. É. Ali no seu Jesuíno, sempre chegando um povo
de gente.
Ao pé do açaí coberto pela trepadeira, seu Floremundo
suspirou, a enxugar o rosto agora com a manga da camisa.
— Me curou de cobra, estou lhe dizendo, O nome dele corre.
No silêncio feito, o comprido fugiu, voou até onde era o curral
da fazenda, aquela tarde, a ver a irmã chegando a pé, puxando o
cavalo pelo cabresto, se dizendo mordida de cobra.
— Conheceste a cobra?
— Não. Mas, mano, não sinto nada-nada.
— Querias sentir? Vou já-já chamar mea mãe. Pra dentro! Te
recolhe, não te roda a cabeça?
— Não. Chamar mea mãe, não carece. Sinto nada-nada. Não
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carece.
— Querias sentir? Daqui com pouco vais ver o que é não sentir
nada. A vista turva? Tonteira?
[47] — Nem, nem a menor... Vi o bicho se enfiando...
— A modo que desejavas.
— E pálida, estou?
— Me deixa então ao menos chupar o lugar da mordição. Dá cá
tua perna.
— Agora tarde é. Me vendo amarela? Ou não estava venenosa?
Ou sou fechada de nascença?
— Se deu onde?
— Na volta daquele juquirizal.
— Dá cá, xá ver tua perna, estripulia. Por que que tudo te
acontece?
— Estás vendo? Nem sangue nem um arranho. Doer nem
ardume. Como é que nem ardume?
— A modo que desejavas.
— Amarelou meu rosto? Estou uma cera? Meu veneno mais
forte. Eu mesma precisava de uma dose.
— Nem que cobra era, nem nada? O dente de jacaré que te dei,
aquele, algum dia usaste?
— Na hora dei foi um pulo e já que já montei, flechei um
galope, aqui estou eu. Mas que cobra era, isso era, era. O dente?
Aquele dente? Ah, meu irmão, mutum comeu.
Montou de novo — mutum comeu! mutum comeu! — galopeou, galopeou. De com pouco ela se apeia:
— Te arreda de mim que o que transpiro mata. Agora mim que
vou me virar peçonhosa. Quem eu morder, rá! Olha o meu braço
suando do bicho. Empeçonhei meu dente.
— Tranca essa tua boca, te recolhe, ou és mesma de nascença?
Ferrada de arraia, chupada de morcego, escouceada de vaca, com
cicatriz de taboca, mordida por piranha, jogada pelo cavalo no
atoleiro, não te deram o Ginásio, por que tudo te acontece? Sua faladiante-do-espelho, vai, vai, vai falar de novo no espelho, vê o que te
acontece. Não faz nem ontem era aquela ferida na costa do pé, não
fosse a casca de ocapurana, não secava. Não está te inchando a perna?
Te escurece a vista?
— Olha, mano Floremundo, pra nossa mãe, nem um pio.
Inchando? Compara as duas, esta e esta. Está?
Bem nascida de perna, as duas lisas sem um senão.
— Me escurecendo a vista? Vez de escuro, vejo é tudo um
alvume, mas branco-branco que até teu rosto é, criatura, tudo alvo,
mano!
Descalça pelo curral meteu fundo e a gosto o pé na bosta verde,
girou, deu um salto — a cobra é que a esta hora [48] entre|ga a alma
ao diabo — tombou Como desmaiada, O irmão acudiu, ela se fazia
defunta, o pé esverdeado da obra, o cabelo desgrampou-se. Viu que
ela estava pegando uma feição outra. Pegou a mão dele para levantarse.
— Passou.
Então sem um pingo nas faces, olhando sério para o irmão.
Séria. Aquela — que ele uma vez espiou — a falante diante do
espelho, olhando o espelho no escuro — menina isso não presta!
Séria, como se daí em diante começasse o veneno, O efeito que foi
mais tarde, foi? No tabocal? No raio? Quando esfolada na surra?
Agora em Belém?
Outro assunto de caça, seu Floremundo, voz de folião de santo,
ia rezando:
— ... sempre esfrego pimenta no corpo do braço, na batata da
perna, no sovaco, passo a ponta da malagueta nos cantos do olho. Pra
dar sorte numa caçada, não tem, Mas bem, como ia lhe dizendo, eles
voaram...
— Voaram?
— Sim, estorio aquele casal de mutum. Minha irmã tratava
25
deles com caroço de açaí, com fruto de seringueira. Comiam. A
moela do mutum mói tudo. Precisava muito dessa moela, dizia a
minha irmã. Mas bem, voaram. Voaram de casa pra dormir no galho
baixo da mangueira. Minha irmã saiu gritando. Nessa ocasião batia
um ovo, dava a vida por uma gemada com farinha e açúcar moreno.
Saiu gritando: Voaram! Voaram!
Seu Floremundo salta o minuto em que via pelas feições da
irmã uma espécie de culposa ambição ou desabafo, não sabia.
Voaram. Voaram.
— Que anoiteceu, ninguém cuidou, Veio a coruja, pois, não
levou a fêmea? Aí foi que foi. Minha irmã, na mesma hora que deu
por falta, foi fechando o rosto, foi me dizendo: te devolvo o macho
antes que a coruja arranque ele da minha mão. A fêmea não foi voar,
perdeu-se? Ela passou o dia no Jundiá, só voltou pela boca da noite
com um feixe de pau saca! na cabeça, encheu água, tomou banho. Foi
mexer no gramofone velho que não falava, só rodava mudo e ali ficou
como se ouvisse música. A fêmea foi voar perdeu-se.
Tirou o cigarro, faltou palito, Alfredo lhe trouxe um tição.
— Nossa Senhora das Candeias lhe alumie.
Alfredo apagou o tição na terra, escutou:
— Também, com pouco, coisa de uma semana, macho, adeus
deu. Como sumiu, não decifro.
[49] — No dia daquele raio, o senhor estava?
— Não. Caçava.
— Que raio, não?
— Sim, senhor, foi. Cheguei depois. A faísca partiu o
bacurizeiro em duzentos e cinqüenta e dois pedaços pequenos e
dezesseis pedaços grandes que dois homens não suspendiam.
— E antes?
— Que antes?
— Sim, antes do raio.
Seu Floremundo desatou a gravata, tirou o colarinho, embolou
tudo no bolso da calça, pendurou o paletó no braço, deu um trago
forte, deu um passo até ao limoeiro, Alfredo sentiu que tinha se
adiantado.
Seu Floremundo olhava agora a cozinha de porta aberta para o
alpendre, as cabeças da família boiavam na claridade.
— Japu é como japiín [sic], os machos ficam cantando na exibição deles e as fêmeas nos ninhos trabalhando.
Explicação sem mais nem menos, para encobrir o que lhe
grudava a língua, chegava se escurecer por dentro. Meu filho, de tudo
isto chega. Só moela de mutum mói tudo isto.
Neste grude, nesta escurecença quando vejo, é ela.
Com ela na garupa, ou no banco da montaria, caçando marreca
Debaixo do mururezal, metia-se. Deus o livre, ali sustendo o fôlego,
vigiando as aves. Aquele bando delas descendo na baixa que se
avermelhava. Então, inocentes do caçador e da vigia, começavam a
comedia delas. Por baixo do boi marrequeiro, com a espingarda que
carrega pela boca, boi nem se mexendo o pau falou, o estouro, a
nuvem, o marrecal subindo, e saltando da água a Luciana com a
embiara, era ver filma no fundo, com aquele dizer só dela
toqueestoloque toqueestoloque.
Vendo o irmão sair para o campo (um cerco de jacaré ou
pirarucu num braço), a oferecida:
— Ah até que sonhei, esta noite, que o meu bom do mano ia me
levando com ele, agora. Dito e certo, vou? Toqueestoloque. Me
levando?
— Mas te guarda dentro de tua anágua, rapariga. Tu não carece
de ir, oferecida. Tu és fêmea.
— Fêmea eu sou, que eu sei, a mãe sabe, toqueestoloque, o
mururé sabe, os fundos, aquela cobra, que me sabendo donzela, não
quis me botar nem um veneno, toqueestoloque Que tem, que tem ser
fêmea?
[50] Escorrendo tijuco, a ouvir o coaxo: me chamando, cigana?
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Montada no jacaré morto, aquela irmã, aquela irmã! Umas tantas
horas, ia estranhando ela, quem tu és? Comi pouco sal contigo, que é
que tem que, te conhecendo tanto, num minuto te desconheço?
Arrasta o pirarucu no seco, escoa casco, no igapó atolou-se, distração
dela. Principia a ferra, já ela anotando, tarde inteira, bunda na tranca,
testa no sol, o gado de era, a geração do ano, o gado de nossa marca,
lápis, papel, a mão sabida. Por mais porca, até dum fofão saindo,
sempre limpa parecia. No atoleiro, não no fundo, no raso conforme
ficasse, a cabeça só de fora: é, é urubu, urubu, vem me comer meus
olhos como tu come os do boi atolado! Vêm, seus sem-vergonha!
Deus via, onde no mais grosso no mais bruto se encontrasse era
rasgando seda. Sim, que com a enfiada das marrecas, ou pegando
caramujo ou se encharcando na canhapira, no juízo dela estava: ah eu
em Belém, ah ela em Belém. Ainda conto me sentar lá, naquele sofá
que vi no leilão, ela, esta, quer, Santo Amâncio, dobre essa mea mãe.
Querer sempre, este é o meu fraco. Embarca os bois, mano, que me
pague aquela casa.
A casa. A casa. A vitória contra a Principala. A vitória contra a
mãe. Que o pai, este, sempre escondendo suas preferências pela
caçula e sempre visíveis a toda a família, mansinho ordenou a
construção. Relações na sociedade, a Questã, cabia ter casa em
Belém, as posses davam, embora a mãe tosse aquele rancor contra
Belém, e seu filho, mamãe, também, sim um azedume, já agora mais
um pouco e será mais. A caçula, no que soube, flechou o galope
campo arriba como se já fosse apear na porta de casa e abrir a sala
para o baile. Agora, sim, se não era o Ginásio, era Belém, Belém.
Desenha a Caixa D’água, borda o Teatro da Paz, o pavilhão do largo
de Nazaré, a torre da Sé, a casa do Museu. Uma tarde, trazia no pano
marcado o portão do Bosque. Belém. E a planta da casa, que veio, e o
serão em torno das acomodações, fachada, mobiliário, lustre,
campainha. Dos jornais chegados, recortava os anúncios de leilão e
marcava a lápis “importantes peças: arca e biombo chinês” que ela
deixou escrito na parede a tinta, depois raspado pela Graziela, e o
relógio francês, este, sim, que ali na alcova deve estar. No curral,
aquele laranjo, Floremundo, essa araçã, escolhia. Animais que fossem
mais filé, fizessem mais figura no matadouro. Ao piloto do barco:
olhe, seu Levindo, cuidadinho com a criação. Não me deixe a [51]
travessia tirar o peso dessa gente. Eles são a minha casa em Belém.
Quanto custava ao irmão se desapartar das reses, criadas no capim de
casa, tão debaixo da vista dele. Luciana era aquela volta da caiçara a
se embalar alto no trapézio do alpendre, a se embalar, a se embalar, lá
dentro a Principala, embuchada, limpava o bandolim que só os ratos
iam tocando. Findo o embarque, desatraca, as varas n’água
empurrando o barco, Luciana tirava o chapéu de pano, acenava:
Adeus, mea família! Gracejo que feria o irmão, saudoso das reses,
com um juízo contra a casa, contra a cidade, aquela, que tanto
enfeitiçava a irmã. Então veio, se espalhou, dos confins nasceu, pra
outros confins foi, de boca em boca, estoria neste rodeio, escuta na
calçara no acabar o embarque com a lambada da abaeté goela a
dentro, cai no ouvido das mulheres, no Ouvido da Caçula, a falância
do vaqueiro Talismã. Ver o vaqueiro, ninguém via nem ouvia. Nem
ao menos a poeira do seu cavalo. Seu rasto, no limpo cerrado, seco,
alagado, se deixava, só boi seguia. Do seu galope, diziam, um galope
longe Ou no meio do trovoadal, na sacudição dos relâmpagos, na sela
do vento, rédea no raio, furando o redemoinho. Um daqueles três de
cavalo branco Marajó adentro, travessia de Soure, travessia de
Chaves, era? O relincho dos três cavalos, por cima do mar, se ouvia
na Mexiana, por cima dos mondongos, se ouvia no Araruna. Talismã,
um dos três cavaleiros?
— Mano, comigo, toqueestoloque, vou de faca no dente ou
desapeio ele ou ele some comigo na garupa. Eu criança já bem taluda,
não dormia com a tesoura aberta debaixo da rede? Ensino de uma
velha sarapeca a minha mãe. Sou ou não sou salva do perigo?
Aconcheava a mão na boca: O três vaqueiros da outra Banda,
27
venham cá, que quero tirar a limpo se um de vós três é o que eu
cismo.
— Mas não brinca, não brinca, Luciana, Não brinca que Senão
só pelo vento tu acaba prenha.
Divino Espírito Santo! o que ele disse! Agora pese.
Sempre os dois irmãos, um com o outro, não na vista dos pais,
vergonha não tinham das palavras. Por ser de irmão, leal, nunca
ofendia. Felipa, essa, a fala, precisava se adivinhar se tinha. Graziela,
maneirosa, fazendo a muito ajuizada, não se dava a graças, Só a
caçula, ocasião que havia, batia com a língua no dente.
[52] — Brinca, brinca, abusa das palavras e vê. Depois: que é
isto na mea barriga?
— Agora isso, Floremundo, agora isso.
Os dois juntos, vinha a mãe; que tanto um tem com o outro, pra
se andarem assim no agarrado? Os dois, os olhos tamanhos para a
mãe. Uma tarde, a velha vai no Jandiá, vê, os dois tão esquecidos
conversavam. A mãe, de dentro dela a voz de onça: Floremundo! e
arrepio na boca, destilava uma ira.. O espanto inchou no filho.
Luciana, esta o que fez? Enfia o pé na água, deixou que se deixou
mirar no igarapé que ganhava mais sossego fazendo as vontades
daquela todo o tempo se olhando no espelho. Quando a mãe saltou,
até deu eco: como coisa que o pai dela é o igarapé, é o que está aí no
fundo. Pra casa, já, sua coma!
No trapézio do alpendre, vem e vai, o sol lavando a Luciana, vai
e vem e vem e vai, ela ia falando, joelho em cima, joelho embaixo,
aquela ventania no cabelo:
— Facilitou facilitou me despenco é já atrás daquele querubim.
Olha que ao redor da Camamoro, o que tem é lonjura. Não digo
o igapó, o igarapé, par de ilhas, é a lonjura rasa, comendo Os olhos. A
gente então some. Luciana tinha uma força de sumir, lá nela, que eu
que conte. Possível pelo sumiço se encontre o enigma, se aviste o
coxim, a cilha, a balança, a corda, a crina, os rumos do Talismã. Da
Outra Banda não veio uma aragem. Quantos cavalos cansou? As sela,
de que seleiro? Que fado é o dele, a galopar, sem corpo, sem tropel,
entra numa fechação, esparrama os búfalos, revira, sem ser visto, o
laço no meio das contagens, espanta os urubus de cima do bezerro
parido agorinha mesmo, vaqueirando sem ordenado sem fazenda sem
fazendeiro? Era conhecido o gado do mato na São Jerônimo, o
asselvajamento, bicho de pirizal, só pastando à noite, só pegado a tiro,
Pois vinha aquele invisível tocando cem reses da São Jerônimo para
dentro do curral, aí ficaram, de porteira aberta, rum sossego como
crias de debaixo de jirau. Chegavam os vaqueiros — isso é gado ou
visão? — e vêra! vêra! queriam tocar os bichos pra fora, estou lhe
dizendo, quem disse? Quem disse que um só se volta, ou raspe o pé
ou empine o rabo, estira o focinho para a porteira aberta? A modo que
a boiada num encandeio a modo viam o aquele-só, pelo faro, pelo
aceno oculto: O certo que o curral só se esvaziou a uma ordem dele,
de onde? As reses não quebravam o mistério.1
[53] Luciana abelhudosa a mãe lhe negando a cidade por uma
influência, teima:
— Não me segura Floremundo, que vou espiar mesmo, nariz
com nariz lá fora com esse-um de que tanto contam a fama. Cismo
que sou eu que ele anda atrás, Contrato os serviços dele.
Com ela, aquela noite, no tabocal? Fiz uma profecia? Ou no que
viu, foi no rasto dele, Pisou tresvariou?
Noites, bastante, acumulou, noites sobre noites, de primeiro,
sendo irmão, imaginando, cisma futrica o juízo, laçado pela estória,
crendo, descrendo o que aconteceu, foi? A mãe, que viu, que deu com
ela, do visto não declara, estrompou a filha, joga os pedaços da filha
pelo mundo Graziela, essa, cala-te, boca. O pai só Viu foi a filha
encamboada, a mãe batendo, a mãe batendo, a mãe batendo e só se
ouvia no quarto a mãe batendo.
A salva do Perigo. A fechada de nascença.
1
Cf. Sagarana.
28
No que sucede o raio, rachou-se o bacurizeiro o quarto
escancara-se. O irmão, que augurou não sabe. A salva do perigo.
Toda a viagem na lancha, agora no rolo deste outro, pouco,
escândalo foi o pensar nela, aqui, esta noite, no sereneio deste quintal
da casa dela, embarquei os bois que levantaram esta casa, a salva do
perigo. Agora de dentro de mim me sai a visão do vaqueiro e dela.
Esta cidade é assim tão trancada que nunca informa? Suas lonjuras
não deixam um número?
Chego a pé carregando a sela.
Aqui espio, aqui ouço o rapaz do Major Alberto filho daquela
senhora mais que morena, até que abria este meu coração com ela, lhe
dizendo de tudo isto, da finada em vida, isto me dói que me apostema
inteiro Vejo a família em redor das sete cartas e do retrato da rapariga
do Marco. No meio, a Graziela, o dominó guardado se cobrindo de
seus véus a santinha. D. Jovita minha mãe, mas deixe! Que Arcebispo
que ex-Governador, que nada! Invenção sua foi essa? Dedo da
Graziela? Tanto o que o meu pai já fez, aquele rio atesta, quantia. É o
forte da Carne dele. Soprou no ouvido, a dona do ouvido, adeus, o
sopro entrou macio lá dentro, abre e afia o esporão No que Olhou a
arma, a embiara está é já no pé Caçador Ë que usa aquela barba e a
descansada voz.
[54] Espero lá na frente bater três palmas, apertou a campainha:
mora aqui um senhor por nome Floremundo? Está aqui um bilhete.
A salva do perigo.
Em tua intenção, mana, duas marrecas do Jandiá, com a minha
pontaria arriei. Arriei, depenei, salguei, de conta que te trouxe. Ah já
chega! A noite passou? Viraste a que ninguém sabe, te juntaste aos
três cavaleiros de cavalo branco não mais no Marajó, agora de rédea
solta pelos lavrados e cerrados desta cidade.
Seu Floremundo vergou-se sobre o limoeiro, ao peso de seus
mutuns mortos, de seus silêncios e de seus ossos.
Alfredo, esse, lhe deu um espanto: até que altura vai a noite?
Não noite mais? Nunca tão longe foi. Ou mais curta? Esticou,
encolheu, o tempo?
Cessavam os açaizeiros. Atrás, na Manoel Evaristo, a padaria
trabalhava. Nunca tão longa noite. Esse homem, neste sobejo da
noite, por onde andava, que noite a dele, que não disse uma palavra
mais?
Amanhã, desenho. Liceu, amanhã. Os sem material, rua. Os de
material, desenhar este cubo.
— Seu Floremundo, lavar o rosto?
— Nem ouvi inambu cantar. Que nem um relógio, inhambu
canta nas cinco horas.
— Não tem mais em Belém, seu Floremundo.
— É verdade, menino, os inhambus daqui bateram asa.
— Os inhambus aqui apitam, seu Floremundo.
— Sim, senhor, tenho visto os bicos do que o senhor apelidou
de inhambu, chega de fumaçar. É a cidade, sim, senhor, que é, é, a
coisa que foi feita não está por fazer.
Alfredo não respondeu de súbito alheoso. A cidade. Esta cidade,
Então aqui debaixo das folhas, bom enterrar a noite, a aventura, os
professores, tudo que intimida, tudo que contraria, bom enterrar a
família, esta aflição por Luciana. Luciana era também a educação
perdida, o Ginásio que não foi. Mas ao menos encontrá-la, mesmo já
em ruma, em qualquer passagem, em qualquer batente, ouvi-la, vê-la.
Que isso terá Sido alivio ou a desilusão de toda busca.
Lá na cozinha, em torno das sete cartas, as quatro cabeças
acabavam também a noite.
Acocorocado, o seu Floremundo riscava o chão com uma tala.
Alfredo se chegou para saber que riscos, podia ser um [55] nome; via
no rosto do homem a sombra dos inhambus, aquele Outrora da
fazenda, ele e a irmã na caça, no curral, na pesca, aqui ela juntando os
bilros de tucumã, junto ele destrançando as enviras, os dois bem
irmãos. Mas seu Floremundo risca nada, risca sua solidão, sua
29
amargura, sua compridez, sua separação da família, seu pensar voltar
já, já, rumo do cantar do inhambu. Pouco se lhe dá que as três da
mesa arrastem o barbudo culpado até ao Bispo, ao peso de sete cartas
e de um retrato. A mãe, por ter recebido o Bispo na fazenda, vem
pagar a visita. Viram aquela chegada do Bispo na fazenda? Toda
penteadona, o colo papo de pomba, sapato rangendo, o rosário no
pescoço, Graziela a primeira a beijar o anel; a velha, na saia do lilás,
emproava a venta nas soberbias, atrás o velho, barba de ermitão, mais
atrás o filho, este — um de perneira e gravata — mas chamem a
Felipa na cozinha — e eivém ela, enxugando as mãos na barra do
vestido, no que que vai beijar o anel, o anel a encandeou, a criatura
tropeça, caiu de joelho, e o Bispo: te levanta, filha de Deus. O Pastor
sorria e logo um, outro, os mais, babando o anel, o alpendre encheu
com o Mutá inteiro, beirada e campo, berreiro de batismo e crisma, a
rede armada pela Graziela, D. Jovita com a terrina da coalhada. A
Igreja ia dormir aquela noite no Camamoro, rezou-se ladainha, Deus
se embalava de rede na varanda — Coronel, Coronel, olhe a capela da
fazenda, olhe a capela! — enseiã, enseiã. O Bispo benze os currais,
urra a vaca sangrando na faca do Tapajós no meio das salve-rainhas.
Os padres devoravam o toucinho e a coalhada. A comitiva embarcou
do Mutá com um mantimento mede o tamanho do mantimento, o
vento jogou o chapéu do padre n’água. Agora, com as Sete cartas e o
retrato, D. Jovita vem cobrar as contas no Arcebispado.
— Floremundo... Teu chá de pega-pinto, faço?
Que tu sabes do meu casamento? Isso, sim, me devias indagar,
minha irmã Felipa. Teu consolo, daqui em diante, é ler sempre a
infeliz mas sempre a honrada, por lei roubada — não quis a separação
de bens — pelo juiz obrigada a pagar os débitos na matriz do aviador,
teus bois, adeus, irmã. Ah Silva do perigo, em qualquer condição que
estiveres, não hás de ter pena, que eu sei teu sentimento, o juízo me
diz, é um perau, se sabe onde neste rio? Ah salva do perigo. De Felipa
casando, rir não vais nem lastimar, sim te lembrando: em coisa que
Felipa nunca falou, que se soubesse, foi casar, intensa ao namoro,
talvez por sem sal ou feiosa. Ou foi o [56] tem|po todo pensando,
lacrando o que pensava? Ou só agora se modificou?
Da Felipa, Luciana sempre dizia: Conhecer a Felipa, nunca é
em salão, varanda, lugar de etc e tal. É debaixo do soalho, sentada na
canoa velha de barco, ali nos nossos segredos. O caçôo que ela faz do
mundo, da Principala desafinando o bandolim, do pai de pente fino e
espelho adornando a barba, da mãe quando não está católica!
Descaroça o seu algodão, passandozinho a urtiga não que viu, onde
foi. uma viagem, uma visita. . Então sobre casamentos pelo rio Mutá,
Tarumã, Cairu, que presenciou, a urtiga dela arde. Arde muito mais
estoriando o casório da Serafina, da mesma idade dela, criadas a bem
dizer no mesmo peito, o da sia Fuluca, lá do São Sento, mãe de uma
quantidade de filho e sempre bem leiteira, hoje em glória. Só me caso
depois que tu te cases, era a Serafina para a Felipa. Uai, Serafina,
agora isso... Passou-se, que foi, o tempo. Num relâmpago, a Serafina
casando. Felpa. convidada, vai com irmão, lã está o noivo, o
semblante cicie esmorecido, meio a modo dizendo: que foi que eu
fiz? de branco, um ramo de flor no paletó — feito pelo seu Leônidas
— que era só goma. Da casa do seu Santos, trouxeram para o
cochicholo de seu Cipriano, onde se casavam, aquele que já serviu a
tanto casamento no estirão, o sofá velho. Serafina num fustão
enchamboado, grinalda e véu, a mancha de cano no rosto, a porção de
talco paissandu tapando a idade, pareceu no seu papel. Seu Cipriano.
o escrivão, leu corrido a ata. O Substituto o Dr. Campos, de
Cachoeira, sempre bebido, vermelhão, a orelha atorada, resfolegando
os declarou marido e mulher. Tão assim depressa. A noiva, como
assustada, e o leque na boca, saber assinar não sabia, o dono do sofá
assinou a rogo, falando: calam idade este nosso não saber ler nem
escrever, mormente neste estirão. A noiva, leque na testa como coisa
que o ralho nem tosse com ela. E veio de lá de dentro a mãe da
desposada, no que abraçou a filha, foge de mãos no rosto, grunhia um
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porco debaixo do soalho. Serafina não desgrudou a boca. O noivo,
dentro daquela goma, de duro não se mexia. O Juiz já vai? Vai, não
fica para a mesa? Todo o casamento foi deixar o Substituto na cabeça
do trapiche. Levado para a montaria, cambaleou na lama, encarnadão
gordo ouro, o inchaço na orelha, resfolegante, a suar, bem cibrado.
Então voltou o casamento para dentro, os noivos do seu Santos.
Felipa tinha se esquecido, ou disso traída em só olhar a cerimônia, de
cumprimentar os noivos, [57] vai agora. Serafina estava! A mão dela
um gelo. A irmã da raiva, a Diquinha, por ter chegado da cidade,
reclamava contra a pressa do Juiz. Casando com o pai na forca? Nem
ao menos põe a mão do noivo em cima da mão da noiva? Semelhante
proceder! Não estava direito Se pagava para isso Pra que que ele
então é Juiz? Fez foi nem cumprimentar os noivos, chama o remeiro
dele, põe-se a fresco Também... que Deus me tape a minha, não tira a
boca á dele, do frasco! Felipa, lhe veio no juízo: mão com mão quem
põe não é o padre? Diquinha com as novidades! Mal o pé no Ver-oPeso. da cidade se lambuza, Os noivos no sofá de seu Santos. Então
que lá de dentro chamam, tocou rancho, tocou rancho, mas venham,
se sirvam — se chegue. seu Leônidas — vão cada um se servindo —
se chegue D. Prisca — para a mesa cheia de xícaras de chocolate e
duas cornpoteiras com sequilho enfeitadas com flor de papel . No
centro aquele alguidar com a planta boiúna subindo num pau de
taboca. Rapazes, gente aí de fora, mas entrem! Chamem quem está no
trapiche, nas embarcações, falou o seu Cipriano no mesmo a enxotar
o porco que vira e mexe queria meter-se debaixo cio sofá, fossando o
véu da noiva: te convidaram seu enxerido? Cuche Cuche! Pelo jirau
dos fundos, a D. Davina Mateus danava-se com a sobrinha por ter
ficado bem junto se roçando no seu Agapito, pessoa baixa, que fez
queixa dela num jornal de Belém por via de terreno duns órfãos, que
estes, não demorou, acabaram no relento pois a D. Davina Mateus o
sítio deles — semeado, com fruteiras —— ela quis porque quis
procura a lei. dela é. Felipa olhava, sem tirar os olhos, olhava a noiva
esfriando o seu chocolate — o irmão soprava no pires E pela
dobrança da maré, la Se vai a amiga de véu e grinalda na montaria
rumo de casa, a ter que tirar sapato e meia, faz a água no automóvel,
lá se vamos com o casamento desembarcando pelo tijuco, a Serafina
aparamentada e o pé no tijuco, nisto chove, a casa deles nem de
cumeeira fechada estava, o seu Floremundo, lá dentro junto dos
noivos com c guarda-chuva aberto. Feche, feche o guarda-chuva Não
presta. Agoura mãe e pai. Os noivos refugiam-se a um canto em pé,
borrifados pela chuva. Não tinha mais o sofá do seu Santos.
Luciana, então, brincou: Assim por assim, Felipa, aí no
cotovelinho nem um ardume, uma comichão nenhuma? Felipa: agora
isso, Com a maciez vem cela, sem um travo sem um cuspe pois só
passar a sua urtiga, pois só usar de [58] caçoa|gem desejava. Assim
fazia crer. Também tudo que dizia, fosse a maior bobagem, era dito
sempre a sério e num ar muito benigno, a sobrancelha lá em cima,
inocente-inocente. Assim por assim, quem ia duvidar? Mas isto é só o
que sei dela, repetia a caçula, que Felipa é muito temerosa. É só
chegar gente adeus, é a caramuja, fica fazendo só o que tem de fazer,
quem tem de conversar sou eu, a diplomata, a fazedeira de sala,
inventando conversa, pra isso não me deram em criança chá de folha
quebra-ferro? A Felipa aí no oco do pau.
Sim, mas naquele casamento, já frio o chocolate, Felipa só
bebia era a Serafina no sofá do seu Santos, da noiva os Olhos não
tirava. Teu chocolate gelou, Felipa, foi preciso o irmão falar. Ela até
um tantinho assustou-se, o beiço na xícara, rejeita o sequilho, a modo
que só passou a língua na espuma de ovo do chocolate. Na viagem
para levar os casadinhos, dela só se ouviu: ah que este rio hoje está
que só lixo. Dos botões de grinalda distribuídos pela noiva, Felipa
disfarçou, fez por não ganhar um, a chamar na beirada o irmão para
pegar a canoa deles, solta da amarração, que fugia. De volta pelo rio
até ao Mutá, de onde a cavalo seguiriam para a fazenda, o irmão
vinha no remo, com o seu Tapajós pilotando, Felipe ali no banco do
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meio, mas meu Deus tão calada, tão encolhida debaixo do guardachuva. O irmão, no seu remar vagaroso, suspendia o remo para
enrolar um cigarro e dizer coisa e outra a seu Tapajós que só
respondia: hum hum ah isso é, ah isso é... Iam por um estirão
chuvoso, gerou um tal silêncio, era ou não era a Felipa no banco do
meio, encolhidinha, debaixo do guarda-chuva?
Luciana, esta, se falava de casamento, sim, um pouco por
enfeite. Repetia o que escutava dos canoeiros cametauaras, de
passagem pelo Mutá a oferecer cachaça, farinha e mel de cana:
casamento é que nem cacuri. Quem está de fora, quer entrar. Quem
está dentro, quer sair. O mais era faceirice, quanto mais tamanhona
moça por fora, por dentro mais menina. E uma noite: Mas,
Floremundo, o tempo passando e tu nunca te amarrando, rapaz?
Vergonhoso de pedir ali na vizinhança a mão da Mindoca, do Itacuã,
senão a irmã dela, a Idália, ou da outra irmã, a Biló, ou da mais velha,
a Lelé, se não prefere a minha xera, a Lucica, ou então a caçula, a
mais jeitosinha, a Cota? O Itacuã, aquele casão grande com as suas
vinte janelas ocupadas por vinte irmãs olhando o rio, está pra cair é
mais ao peso de tanta moça, lá, esperando casamento, seu cego.
[59] Luciana, coisa de um mês depois, nas suas voltas em riba
de cavalo, se distanciou, chega ao retirinho onde o irmão fez um tapiri
ali para descansar, guardar teréns de caça e pesca. Encontra aquela
figura de barriga grande bem acendendo fogo no tracuá, o rosto na
fumaça, os olhos lá dentro some-some. No que olhou de cima a baixo
aquela tão de casa, nada mais foi preciso: Jardelina, esse teu por onde
me anda? Deixem estar que Luciana se calou, aquele calar dela, que
sempre nunca era, o olhar soltando o que ela prendia por dentro.
Jardelina — Luciana bem que sabia — quando conheci ela, não
era mais, sim que inda bem verde. Mas pegou de mim aquela barriga,
desde aí sustento. Luciana, muito segredeira, então que me piscava,
até que entre o encilhar o cavalo e o armar o freio, vem, me cochicha:
eu de madrinha, viu? Boa-tarde, meu compadre, se fêmea, com meu
nome.
Fêmea. Coisa de um mês depois do que se deu com a futura
madrinha. Mas o nome, que era, botei? Cadê a madrinha? Espia na
canoa velha debaixo do soalho e olha se ela está, está? Esta uma osga.
E isto me sulapa, me tira o leme da mão. Até a Jardelina, sempre
assim respeitosa comigo, veio: seu Floremundo, o nome dela
empestava a criança? Não tinha de ser xera e afilhada? Que a sua
irmã, em segredo, na ausência do senhor, aqui apeava, em muito me
valeu. Estou que tudo ali com ela foi sua mãe ter virado cega. Sua
irmã, se não falou, por uma verdade foi. Não digo que só fosse por
uma orgulhosidade, uma teima, quem sabe e razão dela? Um
sentimento tenho de nunca mais uma noticia uma-uma que fosse,
daquela que deixou de ser a mea Comadre, que tanta que era vontade
dela e a minha e sua também, a sua promessa, o seu trato, seu
Floremundo. A Sebastiana, essa nossa filha, era pra ter o nome
daquela próxima na pia e no seu Cipriano, penso eu. Não foi, Nosso
Senhor põe na conta, a ele entrego.
No mesmo seguinte, fazendo no alguidar um vinho de mucajá, a
Jardelina em bom termo me fez ver: que do meu direito não é, eu bem
sei, primeiro me deixe lhe dizer. Mas é uma covardice era se eu não
viesse agora lhe falar o que por ai andei pescando com este meu
ouvido, cera dele eu tiro. Bom fique ciente. Por maldar não lhe digo,
ou como Coisa que estou lhe emprenhando, isto nunca foi meu costume. É que sua irmã, desculpe a metição do meu bico, eu soube,
andei sabendo, vento me soprou, a D. Graziela atrás de quem quisesse
balear pra ela um anum.
[60] — Se teu costume, Jardelina, é não ouvir falância, jamais
eu. Até que me admira, tu.
— Então, seu Floremundo, me manda me calar, me calo.
— Te mandar calar não te mandei. A boca não é tua?
O ouvido não é teu?
— Vou me desacostumar de lhe dizer umas tantas coisas. De
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hoje o que eu ouvir caiu no poço, lá fica, No que eu falar, me atore a
língua.
— Mas, Jardelina, um anum? Fazer o que do anum, Jardelina?
— Olhe, seu Floremundo, não inteirou uma semana, eu soube.
A quem ela pediu, a quem, quem que caça anum?
— Hum hum, me deixa me calar. Se eu digo quem, o senhor
logo atrás dele. Me calo.
— E balearam? Levaram o anum.. . Pra que serve o anum?
— Se tira o fígado, disque. Afie seu dente neste meu dedo que o
senhor não sabe..
— Parece então que já usaste o fígado do anum comigo,
Jardelina? Então tu ouviste? O fígado?
— Pelo que suspeitou agora, o senhor paga! O fígado lá dele do
bicho, seu alevantador de aleive!
Mas torrado, Jardelina, torrado, Jardelina? Tenho escutado por
aí.
— O senhor bem sabe o efeito que ele faz torrado, seu
Floremundo.
— A Graziela? Eta?
— Já não está aqui quem lhe falou, vigie bem. Vigie só. Já
inteirou mês que também escutei que a mea comadre, a sua irmã
caçula, bebeu inocente num chá a raspa de unha ralada, Consiga o
rastro de sua irmã, seu Floremundo.
Graziela, de dominó, cabacinha e bandolim, torrando o ligado
do anum? O chá virou a cabeça da outra? Ah sangue dos Menezes.
O salva do perigo, desata este novelo, e eu sei, bem sei, porque
do mutum querias a moela que mói tudo. As flechas te flecharam
dentro de casa, por tuas prendas de nascença, boa cabeça para livro, o
fazer tão bem renda, tão fino recebe as pessoas, e aquele dia, com as
notas da prova escrita de Cachoeira, tão inocente sentaste no trapézio,
no alpendre da fazenda, te embalando, te embalando, disseste: agora é
o Ginásio. O sonho da casa entornou o alguidar.
[61] Já não digo as tuas feições, gerada que foste para os
espelhos.
Me lembrando véspera do último ano, disseste que ias ficar só
de sombra vestida, tua combinação debaixo daquele teu vestido
branco, assim precisavas entrar o ano. O ano entrava e tu só de
sombra pelo quarto e como a tua sombra, um cetim, era rosa, entraste
o ano rosa. Teu chá de quebra-ferro não te fez falar, não falaste, como
coisa que a mãe te arrancou a língua, ou te deu o outro chá. Desde
aquela noite, escondeste a fala, acordaste de cauda no ar como o
mutum, foi voar, perdeu-se. Tanto feixe de paxiúba me preparaste
para fachear no lago atrás dos cardumes, agora nem um facho aceso
na minha mão atrás do teu passo.
Felipa, por sua parte, amordaçou a palavra. Sobre a caçula, uma
opinião não deu, não dá. Uma vez foi sentar no trapézio do alpendre
a corda puiu, rebenta, o trapézio no chão. Deixou de Sentar na canoa
de borco, caramuja no seu buraco, agora saindo para tirar da forca,
enforcando-se. aquele-um lá do Arienga. Se nada sabe, se aprovou, se
também condenou — fiz muito por saber — Felipa se trancou.
Felipa, ao menos quando a nossa mãe já por demais castigava,
não acudiste?
Felipa, sem me olhar, até parecia zuruó, a mão parada na massa
de tapioca que mexia na gurupema.
— Felipa, ao menos ela te escreveu de Belém quando aqueles
dias na casa da nossa tia? Do teu mandaste algum trocado?
Felipa se voltou:
— Queres teu chá de pega-pinto?
Foi, fez, bebi, os dois esta palavra.
E eu, que fiz? Que trocado mandei? Que noticia pedi? Juízo me
diz que esse casamento da Felipa é a modo de um padecimento dela
pelo que não fez a bem da irmã, ou: agora que estou casada ninguém
me proíbe de chamar pra mea companhia, no Arienga, aquela
penitente?
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Que fiz que não chamei, mordaça me botei não chamo. não
corro nesta cidade, tatu pelos buracos, até pisar no rasto?
Quem que não te proíbe, Felipa? Quem? Teu marido? Lá na
fazenda, o labioso, todo garboso da família dele, cheirava penico de
barro novo para suas moléstias do coração, e era com meias palavras
que aprovava o rigor aplicado na caçula. Tenho que ele quis primeiro
a Graziela, o tempo dum [62] embaraço, um minuto, ou calafrio
diante dela, Graziela se vestia de intocável, guardada para noivo à
altura. Pelos olhos trios, pelo franzir o canto da boca, se via o pique, o
aborrecer-se das pessoas que é muito dela. Nas artes de uma rabugice
a espertalhona, a unha de fome e a santa se entendem, ganham o
mundo.
— Floremundo...
D. Felipa esperava a resposta do irmão. A família levantara-se.
Graziela sacudia as suas chaves. Seu Floremundo pediu licença, subiu
para a cozinha. Logo desce a D. Dudu, macilenta feliz na sua galhofa,
atrás do Alfredo, cochichando:
— Vê se dependura naquela barca as sete cartas e o retrato.
Alfredo entrou. Ao pé do fogão, a D. Jovita acendia o
cachimbe. Graziela despencava o cabelo, apanhava os grampos, a
examinar a cozinha, se alguma coisa faltava, farejando um risco na
parede, um ralo na cadeira, um roído na mesa. D. Dudu, já de orelha
inchada, fazia fagulhar pelos olhos sua zombaria, seu desdém. Na
mesa, entre as xícaras, as sete cartas e um retrato de mulher.
Então que o seu Braulino vem da varanda, se aproveita, apanha
as cartas, o retrato, vai jogar no fogão aceso, logo a mulher lhe apara
o braço sem uma palavra, e sem uma palavra guarda os documentos
no bolso da saia. Seu Braulino se meteu na sala, um momento na
cadeira de embalo, abriu a janela, fechou, tira e não tira o paletó,
ensaiou sair, anda pela calçada, entrou, de novo abriu a janela. No
corredor, Alfredo e seu Floremundo se entreolhavam.
— Menino, olha o café. Hoje não tem ginásio? gritou a D. Dudu
numa apressada solicitude atrás de Alfredo que varava o portão.
— Já venho, D. Dudu.
Ocasião que amanhecia.
A caminho do Curro.
Abre-se a janela, a velha parteira abençoa o madrugador e lá vai
ele até ao quintal, apanha da roseira de Ana, aquela que se abria mais
cedo em Belém e no mundo, subiu, bate no quarto das moças:
dormindo? dormindo? Licença para levar a rosa, Ana? Bença, D.
Santa? Olhe, seu irmão chegou. Meu pão é hoje esta rosa.
Foi desfolhando a rosa, corria um pouco, os zebus saíam do
Jabuti, moças indo para o curtume, a Sabina. Sabina! Ama, afilhada,
dama daquele baile no chalé, agora mãe [63] sol|teira, a mesma
risonha, a mesma de face aberta e bem dormida, com ela e a bem
dizer ontem, tão meninos, de galo e galinha no galinheiro.
— Mas que te fez essa flor, mano?
Daqui a instante Sabina está metida entre couros verdes, as
mãos no tanque de água podre, entre aqueles fedores dia inteiro.
— Que te fez essa flor?
Os zebus passaram, as moças passaram. Do fim da linha vinha o
bonde. Sabina ainda virou-se:
— Quando escrever, lembrança pra madrinha Amélia.
Estudando muito? Aprenda também um pouco por mim.
Então ele se voltou e deu a ela o que restava da rosa. Olhou para
a casa da velha parteira e lá da janela, já na porta, saltando na calçada,
correndo até a esquina, agora no trilho, a Ana, descalça, num galope,
crescendo o olhar e o beiço e nisto o bonde se atravessa entre os dois,
Alfredo apanha o bonde, salta na José Pio.
Uniformizou-se, não com o bem gomado por D. Dudu que
reclamou atrás dele.
Presente à aula de desenho, adianta-se:
— Professor, entrei sem material. Rua?
O baixote, parafusando o bigode, bochecha inflamada. espiou-o,
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mediu-o, vai à porta, chama a inspetora:
— Por três dias, inspetora. Comunique à Secretaria.
E com bom metal português, no silêncio da aula, curvou-se,
cerimonioso:
— Sr. Alfredo Coimbra, o obséquio e as minhas congratulações.
Outros colegas, sem material, iam saindo.
— Obrigado, obrigado pela gentileza, professor.
Rua. Primeiro desceu ao pátio. Subiu, tentou o Secretário. Pela
gradinha, o Secretário:
— O senhor falta ao tiro, falta ao desenho, falta à concentração
cívica. Desacatou, ano passado, o lente de latim. Acusado de colar um
rabo no professor de matemática. Entrou, quando não era, na aula de
química. Errou a porta, rapaz, errou a porta. Monte banca de bicho.
Trabalhe de catraieiro. Tão tamanho bigu!
Ouvia em posição de sentido, olhando o teto, o sentido lá em
Cachoeira, ouvindo a mãe:
[64] — Pois foi, comadre Porcina. Ele passou, está no segundo
ano. Me gabar, não me gabo, que de filho ah vê lá que me gabe. A
sorte é que sabe. E comadre, e os seus?
— Argemiro na tripulação do barco do seu Coutinho, o São
Gabriel. O Laércio na fazenda dos Lobatos.
— É assim mesmo, comadre. Meu filho, eu que me gabo? Quis,
que seja, O que for, soará.
As delicadezas da mãe: apagar a diferença entre o seu filho e os
de sua comadre. Por isso mesmo, só fazia sobressair. Que tinha
perguntar pelos guris da comadre? Já não sabia? Dizendo não se
gabar, por demais que se gabava. Nem o traquete dos Coutinhos nem
o curral dos Lobatos. Ouvindo debaixo do soalho, rente a escada dos
fundos onde as duas conversavam, Alfredo se cobria de privilégio e
vexame. A mãe, na escada, sentava no degrau de cima, a comadre no
degrau de baixo, e rente, oculto, sem sossego, o felizardo no Ginásio.
Agora diante do Secretário, o que for, soará, Sabe o Secretário que
esse aluno é sobrinho de barqueiro e de um andador do mundo?
Daqui não és, embiara dos Coutinhos, besta de carga dos Lobatos. O
Secretário não entende a posição de sentido, a rígida atenção com que
é escutado? Ou não nasci eu também dum Secretário?
Vá. vá, pode ir, podo ir.
Deu meia volta, só, muito só. O Secretário chamava-o.
— Escreva a seu pai, pedindo material de desenho.
— Pois não, Secretário, foi bem lembrar.
— Escreveu que falta ao Tiro?
— Escrevi.
— Não precisa essa posição de sentido. Escreveu que desacatou
o mestre de latim?
— Ah é verdade, lembrou bem. Secretário, vou escrever já-já.
— Olhe a zombaria comigo! Casco-lhe mais três dias. A sua
expulsão, promovo a sua expulsão! Ou duvida?
Eu, Secretário?
Deu meia volta, só, muito só, ouvindo aquela conversação na
escada do chalé. Nisto, de juba, bengala e pasta, o lente de latim.
— Olá, olá, roceiro! Fora de aula? Rua, novamente? Onde os
teus roceiros do Guamá que não te acodem? A ti e a eles, esta!
Empunhou a bengala, sempre estrondoso, caiu-lhe a pasta.
Alfredo não deu um passo, vendo o mestre, soproso, [65] a apanhar os
papéis espalhados, o soneto, a tira do artigo contra o padre Dubois, o
recibo da água.
— E não me ajudaste nem a apanhar a pasta, roceiro. O tempora
o mores! Que tu sabes de agricultura, dos direitos da propriedade,
meu bisonho, meu quadrúpede marajoara? Ou não és marajoara? És
do Guamá?
Alfredo fitava-o, sem traquejo. assim apanhado à queima-roupa,
ainda sem costume de lidar’ com semelhantes figurões. O Secretário,
por exemplo, era mais temido que o Diretor, este sempre rispidamente
apressado. com a beiçorra em que pendia o charuto, a cátedra de
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Direito Romano na Faculdade e a banca alta de advocacia. O
Secretario, por unicamente Secretária, parecia mandar mais, muito
inapelável, muito draconiano, como dizia o Pereirinha, grau sete em
história universal.
— Que te fez o Secretário, múmia do Pacoval? Aquilo é um
carraceiro. Não lhe consinta mais que me dirija a palavra, nunca mais.
Que te fez ele?
Agora, se fazia de embaraçado, forçava a frieza, porque o lente,
por ódio ao Secretário, lhe falava com certa jovialidade, embora
sempre as patadas. Sabia que o Mestre, fazendo reabrir o Teatro da
Paz, fechado também meses, se empossou, sexta-feira, na Academia
de Letras, com os irmãos Nobres cantando Puccini e Donizetti. A
Folha do Norte publicou, entre o elixir de inhame e a milagrosa
pomada contra comichão e impingem, três sonetos do mestre e um
ditirambo, Neste, minuto, dominante de estatura, pasta no sovaco,
digerindo a imortalidade, o mestre contempla o aluno, entre olímpico
e benevolente.
— Como me decoraste, cabeça de passarinho. o fragmento do
artigo, aquele, que me obrigou a te suspender. muito bem merecido.
Ultimo ratio regum. Me avacalhando em plena aula!
— Primeiro, baixe a bengala e a voz, professor.
O lente conteve, o acesso, ou fingia, de furor, batendo a bengala
no soalho, a abrir a boca, como lhe faltando ar.
— Onde soletraste o meu artigo? Como foi que me decoraste?
Onde.?
— Eu lia em menino a uma senhora da Gentil que pedia a Deus
que os roceiros viessem no trem e tomassem a cidade. Ela, então, me
dizia: esse contra os bandoleiros vai ser teu mestre de latim.
— Como se merecesses! Como se merecesses!
[66] Alfredo se fingia respeitoso, medindo-lhe a juba, a bengala,
a pasta.
— Eu tinha a razão por mim. Eu tinha a razão por mim. Negas a
pecha que lhes dei de bandoleiros? Fui vê-los, sim, no pátio da
Central, mais de cem, do Guamá, o pátio à cunha. Eu tinha a razão
por mim. Pois numa terra opulenta como esta, a bradar... Stultorum
infinitus est numerus, rapaz!
Partiu batendo as botas para agredir o terceiro ano que que o
esperava. Alfredo via no ar a dentadura postiça da D. Inácia, a
Madrinha-Mãe, a rir: Te disse não? e disse não? E logo o rosto, o
cabelo desmanchado, o colo na Gentil, e Antônio quebrando a
lâmpada em Nazaré. A dentadura virava trem, um trem de Capanema,
um trem cabano.
Do Guamá, agora, só a notícia do Intendente chegando, com o
retrato a vinte mil na primeira página de A Imprensa, do seu
Laudelino. Das roças e dos roceiros nada mais se sabia. Nem daqueles
noivos, ocultos da polícia, levados pelo seu Lício, véspera do Círio,
àquela canoa amiga, deles nem uma lembrança. Onde os teus roceiros
que não te acodem? Guardar esta pergunta. E nem um filho deles
aqui, nesta escada, subindo ou descendo. Apenas eu, bicho de Marajó,
ainda arisco, carregado de mim e dos meus, carregado de Andreza e
Luciana. Espantou-se: entrava, catarroso e miudinho, o lente de
História. A disparar os raios de sua carreira eclesiástica, descia o da
Instrução Moral e Cívica, o Monsenhor Compêndio. Atrasado, numa
afobação, talvez em jejum, também subia o Pereirinha, de pasta nova.
Conseguira um papel de desenho, o lápis, com uma tia da travessa da
Angustura. Não iam deixá-lo mais entrar.
Rua. A praça, desenhar esta praça. Os sobradinhos, abrindo as
janelas, até que riam, desenhar os sobradinhos rindo. Vai convidar o
seu Floremundo prum giro pela cidade. Desce a Manoel Barata, passa
por Santana — como vai de saúde, São Pedro? Me ceda a chave. Da
calçada defronte fica olhando a fábrica de roupa: no térreo de portas
abertas, as moças costurando. Aquela, sua acompanhante a pé pelas
manhãs? Qual? Lá está, lá está, lhe faz adeus e todas olharam, as
máquinas pararam, as moças olhando. Rumou para a Biblioteca,
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receia o salão escuro; as estantes, pelas janelas, lhe dizem: não, não
entra. Aí fora é sol e tem. nos tabuleiros multa pupunha cozida. Não
está vendo, lá embaixo desta Campos SaIes, o rio?
Pela escada alta, tanto degrau, ao peso de seus volumes debaixo
do braço e da epopéia que há longos anos escreve [67] sobre os fastos
nacionais, sobrecasaca e cavanhaque, vem descendo o
Desembargador Jeremias.
Agora pode entrar na Agência Martins, é um rapaz, já não se
lembram do menino que aqui arrancou a capa da Cena Muda: trazia o
herói da fita em série O FURACÃO.
Mas por que Ana? Do bonde, pôde ainda perceber a pequena
agachando-se pelo trilho, a apanhar as pétalas pisadas pelos zebus,
será? Apanhava? Foi pela rosa, pelo salto na janela, pela Sabina?
Entrou.
— D. Santa está?
Ana fechou a mão, inclinou-se na cadeira, olhando a parede,
espicha o beiço, os braços largados.
— Eh Ana! D. Santa?
Derrubando a cadeira, Ana enfiou-se no quarto pisando tábuas
soltas, a sarrapilheira esburacada feito porta, a fresta de sol lá dentro
em que descia-subia aquele ar, Uns fios de teia de aranha, o cinto na
corda.
— Ana, me diz. O. Santa?
Para descer na cozinha de chão, tinha um degrau. Alfredo
desceu: estava úmido, pegajoso, dois pintinhos piavam, amarrada ao
pé do fogão a marreca assustosa, as moscas donas da casa. Voltou.
— Ana, ou foi a rosa? Queres quanto pela rosa? Em troca
espanto as moscas, dou milho pra marreca, tiro a cinza do fogão.
Meteu os dedos pelos buracos da sarrapilheira, parado é porta
do quarto.
— Ana, Ana, saíste pela fresta de sol?
Ana pulou do quarto, sarrapilheira abaixo, pisa o pintinho, voou
porta fora. No susto, soltou-se a marrequinha correndo pelo quintal.
Alfredo juntou aqui o machucado, lhe deu água, agasalhou o pinto na
palma da mão, chamou a marreca escondida entre as bananeiras.
Cresceu-lhe uma incompreensão, uma culpa obscura, toda a noite sem
um cochilo, acordado, acordado, três dias suspenso, o Liceu no ar, da
mãe nem uma linha, do tio nem sombra. Sabina, sobre o tanque dos
couros, a vê-lo sobre os livros. O pintinho sossegava. Corre atrás da
marreca apanha-a e amarra a bichinha ao pé do fogão, acariciando-lhe
a cabeça. Esperou. Com a sarrapilheira bateu que bateu mosca,
cansou-se, desistiu. Dalila entrava com uma talhada de melancia.
— Fez promessa?
[68] — Como?
— De bater mosca?
— D. Santa?
— A avó, o pé é dela pra mim saber aonde ela anda. Quem te
pôs de castigo batendo mosca?
— Ana ficou braba por via da rosa?
— Não tenho a boca de Ana pra te responder. Olha vou sair,
Fica ou me deixa trancar a porta?
— E a melancia? Dá uma prova?
— É pra meu cabelo, aquele menino, Ver se tiro a lisura do
bicho, uma praga de tão liso, escorre demais. Ah que Deus me dê um
tifo! Depois do tifo, sim, nasce ondulado.
— E a melancia ondula?
— Assim me imbuíram, Mas ah! Eu quero é um tifo.
— Que é, que te coças tanto? Estás com cavaquinho?
— Já-começa da braba. Sai que pega, rapaz.
— O Hidroterápico, um banho no Hidroterápico.
— Hidroterápico? Hidroterápico é a Pedreira, o mocó, as ervas
do caruana. Num instante a urucubaca diz adeus. Me meto na tina das
ervas com o pajé me dando de cuia.
— Me leva?
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— Só não querendo. Estás sem sorte no estudo? Queres eu
contrato. Queres?
— Vocês não estão matando a galope a avó de vocês, Dalila?
— Agora isso. Matando está é aquela, a filha dela, de boca no
mundo contra nós, Que tem a tia Dudu com nós duas pra querer nos
meter fechadura? A toda hora nos intimando a ir no Médico Legal
tirar a limpo se somos ou não somos? A fechadura? Naquela tetéia
dela, na Nini! Em mim, eras! A rédea dela para outra égua, pra esta,
arreda daí!
— Quando começas no hospital?
— Lavar pereba alheia? Carregar bacia de tifo alheio? Olha
meu nariz, achatado, não é? Um toco de nariz, não é? De tanto cheirar
sim-senhor de freira. Chega! Chega! Chegou! Daquele asilo tenho
ainda a marca das corubas. Antes na cavalaria lavando cavalo.
— Cavalaria? Agora um da cavalaria?
— Pra vós saber, maninho, mete um requerimento selado.
Alfredo tentava comparar as duas irmãs. Ana, na sua insolência
andadeira, concentrava-se. Possível em Ana uma danação, guardada,
freada.. Dalila era rasa como a sua anca, [69] na tina do pajé, tomando
banho de cuia. Soltava-se no vestido sem cinto, a abrir o cós coçandose em todo lugar. Estava em pleno desalinho, suada, como saboreando
a coceira.
— E agora, tua vó, Dalila?
— No oficio dela. Ela quer que eu me empregue no hospital?
Vá lá, a Dalila faz de conta que vai, faz que vai. não vai, que jeito?
Que outra, não eu. limpe as pústulas, não eu. Trancas a porta? Não?
Vou ao banho. Espertar a mãe do corpo.
Alfredo na rua olhou a vacaria, assobiou chamando vento para
rodar o moinho d’água. Na mesma janela que abriam, tarde da noite,
para os rapazes, as duas irmãs apareceram. Cotovelos na almofada,
sempre no não te ligo, muito mais donas de seus zebus, de sua
educação no Santo Antônio. Ao vê-lo, lhe deram as costas, uma de
tranças. a outra muito bem cacheada. Aos poucos se voltavam, abriam
a pasta de desenho cheia de laços e a caixa de lápis. Assim faziam que
desenhavam. Alfredo tornou a assobiar pelo vento. Bateram-lhe a
janela, sumiram-se. Tornavam agora, com um tamanho Atlas que
folheavam. Alfredo temperou a goela, caminhando. Breve, casando a
galope estariam chamando a velha parteira para pegar os de sete
meses. O estábulo fazia trescalar os seus estrumes. E elas, soberbas,
sobre o Atlas, já cobertas, ruminando no pasto.
Do pasto ao curtume onde Sabina trabalhava, menos dum
instante, A metade da rosa no cabelo? No peitilho? Guardada no
balainho, Ou atirada nos caldos de couro verde. Parece entender
porque lhe deu a rosa, a metade da rosa, que a outra metade, pisada de
zebu, Ana colheu da rua, pétala a pétala. Artes de menino com a
menina, E esta, nos olhos da operária, lhe pedia uma rosa, Alfredo
saiu do trilho para deixar passar o bonde e esperou que só ficasse,
neste sol. o silêncio do capinzal da vacaria marginando a rua. E via
que o capinzal se cobria de flor, flor de algodoeiro brabo, aquele que
amanhecia beirando o rio, defronte do chalé. colhida pelos carneiros e
as vacas por ali errantes, Saíam ele e Sabina marido e mulher do
galinheiro, e se viam entre uma fartura de flor, flor do algodoal brabo.
Com efeito, não só abriam na beirada entre as patas do gado, com as
formigas de fogo ao pé. Na cerca de casa, do lado onde era o galinheiro e a sentina, o banheiro, o poço, o ingá, só flor, variando a roxo,
a violeta, vá ver que azul e róseo, e ninguém, [70] a não ser o menino,
ou um e outro carneiro, dava por isso. Sabina, correndo atrás da
picota, nem via. Mas agora salta dos olhos dela a beirada em flor, a
cerca, o campo, vacas e carneiros pastando roxo. No chalé, telhado,
janelas, a mãe, o rosto lilás, pilando café, a cachorra, a borboleta, a
picota no jirau, é só flor de algodoeiro brabo. É o que está vendo nos
olhos da outrora dama daquele baile, Sabina, a braçal do curtume.
Na beirada, espiando pelos navios velhos, o estaleiro, aquela
barca portuguesa vai virando moradia de terra; lá está a armação do
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casco novo, aqui se faz um barco, um barco nascendo, quero uma
vaga nessa construção. Dobrou pela Podrona, lugar de bucho,
precisão e lama e onde estão moças as meninas vindas da seca, agora
neste lixo lindas; esta, por exemplo e aquela que põe o rosto na
janelita e abre o cabelo e chama pela vizinha: Marizô, um palmo de
fio do teu novelo, tem não?
Desembocou defronte da penitenciária. Lá em cima, na janela,
santo do flagelo, aquele cego e escaveirado retirante. A esta hora o
pajé dá banho na Dalila, Dalila lhe pedindo um tifo. No carrinho do
canto, o bucheiro pesa um quilo de livro e tripa. Com uma banda de
porco às costas, passa um tipo gritando para dentro da vila.
Ana o espiava, onde? Pelos olhos do cego flagelado, lá da
janela?
Olhou para o cego lá de cima que o condenava. Veio saltando
as poças do Una, entra na José Pio, passa pela jaqueira.
— Olhe, moço, olhe, moço, entre aqui dentro, entre aqui dentro,
sim?
A mãe da Zuzu, aquela senhora, alta e cafusa, que ia no
espiritismo, distribuía fluidos pela vizinhança. Debaixo da jaqueira, o
chão de tão alvo um trigo.
— Olhe, não repare, estou lhe chamando é por uma precisão,
por uma esperança, espero que o senhor possa. Me dá um
acanhamento.
Alfredo segurou o pescoço onde ainda não pendurava o
carocinho, um pouco vexado e já apressado de servir à mãe da Zuzu.
— O senhor sabe. Já tanto que queria... Zuzu, essa moa filha,
sempre me dizendo: Como é que a senhora vai agora tirar o tempo do
moço, mamãe? Lhe chamei agora, [71] me deu que foi uma coragem.
Zuzu! Zuzu! Vem cá! Me tira deste atrapalho.
A filha não aparecia.
— Pode, pode dizer. Sem cerimônia.
— Zuzu! Onde que essa menina se meteu? Zuzu!
Alfredo esperava, a pendurar no galho da jaqueira o carocinho
prometido pela Nini.
— A senhora tem poço aí atrás?
— Ter, tem, mas falta limpar. Água, a gente tira daí do vizinho.
Limpar o poço, quede pessoal? Quede posse?
A mulher foi aos fundos, chamando a filha. Voltou.
— Tão que aprecio o senhor de ver o senhor todo dia indo para
sua escota, sabendo que o senhor aproveita que aproveita o estudo,
ora bobo se não souber aproveitar. Ouço que o senhor é do Marajó.
Que fazenda é a de sua família?
— Fazenda? Não, senhora. Fazenda?
— Como então... Língua do pessoal espalhando que a sua
família tem. Ë então pobre? Ah bem... Pobre, hein, aprendendo? Olhe
lá...
Ficou um tanto pensativa. Chamou pela filha. Virou-se:
— É então pobre.
Ganhou um desembaraço.
— Entre, mas entre! Zuzu!
Dos fundos, silenciosa, nos seus molambos, braços e joelhos de
fora, nudez iminente, Zuzu chegava.
— Ah se o senhor pudessezinho ensinar meu filho, o caçula.
Que o senhor acha?
— Mamãe!
— Zuzu, faz pouco eu te chamava, agora te mando embora,
corta-conversa!
Zuzu corrigia os trapos numa compostura, a olhar para a mie e
para o rapaz, como a dizer-lhe: não repare na mamãe.
— Até que botei esse meu filho numa oficina praticando, mas
ler é sempre uma precisão, assim acho. Estou pelejando que ele
aprenda. O senhor pode? Do que eu tiver lhe pago que agora não —
mas olhe que eu lhe pago! — que pagar semelhante trabalho por
maior pagamento que fosse quem disse que se paga.
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— Em que livro está seu filho?
— Eh avalie! Nem da primeira folha do primeiro livro passou.
Tal está. É ou não é, Zuzu? Ora... como é a sua graça?
[72] Alfredo, mamãe. Alfredo.
O rapaz virou-se para a moça. Ela deu de ombro, o ombro nu
com uma tira, digna, do outrora vestido.
— Pois olhe, seu Alfredo, quando zinho puder ter um tempo
mas só quando o senhor tiver, que eu sei que o seu estudo ocupa é
horas. Olhe, vá pondo de parte umas tantas coisas. Mãe, por via de
filho, não mede. Agora que sei que o senhor é pobre nem esconde que
é, já me sinto mais... o senhor me tirou do apuro. O livro, tem, já
ajudou a desasnar conte nos dedos a quanta gente. De mão em mão,
cede pra este, pra aquele. Meu falecido no comprar disse; este, pra
quando chegar idade de filho desasnar. O senhor me creia que até pro
fundo já foi. Ah não lhe conto nada. Pois se deu numa viagem, suco!
essa ar xixitinha, A gente se alagou, a canoa então não emborcou? Lá
confronte o Outeiro, escuro, cada banzeirão, a embarcação maneira,
veio um rabo de refega. E eu e a mea falecida mãe e essa ainda gita,
santa misericórdia, segurando no que ia boiando, até que o corpo da
gente encalhou naquele beiço de lama de uma ilhinha me lembro que
essa mea filha até se assustou mais foi com os siris pulando no
escuro. A noite ventosa, mas Deus era que tinha estrela. Pois bem,
atrás de nós, não é o bauzinho bem de bubuia? Benzinho de bubuia, a
dizer: vim com vocês com vocês vou sem vocês não fico. Dentro do
bauzinho, o livro, que já pode contar que, esteve numa alagação, viu
por dentro d’água. Se as letras falassem até que então contava. Correu
de mão em mão, nesta, não demora naquela, pobre só tira, quando
poder pode, um fiapo das letras e pronto. Zuzu soletrou nele. Está que
é um bacalhau mas ainda dá um caldo. Vai Zuzu buscar.
Zuzu num jeito de que não queria ir, foi, trouxe. Ela e livro, até
que se pareciam, tirante o corpo dela, que desabrochava.
— Agrado nenhum que lhe dê, tenho. Zuzu, escolhe uma das
maduras. O senhor mesmo escolhe. Gosta de jaca?
Tudo recendia jaca, Zuzu, a mãe, o livro. No terreiro, a jaqueira
pejada. Alfredo folheava o bacalhau. Faltava a folha 3. Zuzu, muito
princesa nos seus trapos, como se o intimasse. Fardado, a ponto de
continência, o ginasiano combina o dia, aceita a jaca, pesada, que
carrega no ombro.
No que olha o portão da Esméia, um rosto fugiu-lhe por entre os
ramos do jasmineiro, o olhar na jaca que ele trazia no ombro. Ao fim
da rua baixa, no rio de maré alta, [73] passava um gaiola: apitou o
curtume, iam saindo as mulheres. Sabina com a metade da flor?
Aqui na varanda dos Boaventuras a mãe e a filha entonavam-se
para levar ao Arcebispo, ao Advogado e ao Ex-Governador os sele
documentos e o retrato. No corredor, na porta da sala, mais gordo a
mar; suado, coro o pacote de jornais debaixo do braço, o seu
Laudelino de A Imprensa, à espera do fazendeiro. Vinha ajustar a
noticia nos recém-chegados. Estirado no jazigo conjugal,
suspensórios descidos, mão na barba, o nosso Imperador chamou o
estudante:
— Me faça este favor, disse, baixo diga ao seu Laudelino, que
sim, publique o total dos nomes, com o meu retrato. Aqui os nomes,
entregue a ele este envelope. Que me desculpe não aparecer, de tanta
dor de cabeça que estou. Peça aí dentro um cafezinho pra ele.
Na varanda, a D. Jovita, num traje de viúva enfiava-se nos seus
colares. Graziela, no quarto, punha c chapéu, sem usar os espelhos da
alcova e da sala. Felipa e D. Dudu tinham ido às compras nupciais.
Cheiravam os jenipapos. Pelos fundos, na corda sobre as plantas, as
carnes un sol. Nini chega da fábrica, pega Alfredo pelo braço, vão à
cozinha onde o seu Floremundo, mais vergado, mais sozinho, mais
triste, comia. Na escada do alpendre, Nini, entregando o horóscopo,
soprou:
— A velha vai sair com roupa-de-ver-a-Deus.
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— Então vai haver o diabo?
— Com roupa-de-ver-a-Deus. Gruda a boca. Espera que ainda
vou lustrar os borzeguins do meu tio. Coitado, ele que tão carece.
— Nini, olha o que eu te trouxe. Ali. Ali rio pilão, no alpendre.
Nini, fazendo figa, atira a jaca sobre os cacos de vidro do
quintal da Principala.
— Deixa-te está! Hoje mesmo vou pedir da vovó o teu talismã.
Mas lê, lê o teu horóscopo. Escuta o que ele diz. Vejo que tu não tens
dó da tua mãe. Nem de ti mesmo. Tua mãe vai tornar conhecimento
dessa jaca, deixa-te está!
Alfredo dobrou o horóscopo.
— Um girinho pela cidade, aceita, seu Floremundo? Está aqui
no meu horóscopo. Só que o senhor paga o bonde.
— Só não querendo. É só o senhor se adispor. Querendo, às
ordens, mas primeiro se abanque, se sirva, vá desvirando o prato, se
sirva.
— Uai! E quem vai levar nós?
É a D. Jovita, fechando a testa, ao pé da mesa.
[74] Alfredo amassa o horóscopo: desta casa vou é me embora,
é já. Vai levantar-se, o seu Floremundo o apanha — se sente se sirva
— continuando a comer, com vagar e melancolia. Já a Graziela, de
chapéu, cintada a rigor, o almofadado colo, cheia de penduricalhos, se
aproxima, pondo um sossego na voz:
— Mamãe, dispense o Floremundo. Lá, ele a boca não vai abrir
uma só vez que eu sei. Nós só que vamos. Custa ir só nós duas?
— Nós duas? Era se fosse! A audiência é nas barbas dele.
D. Graziela, alagada de loção, veio, roçou na mesa:
— Despachaste as coalhadas, Floremundo? Já?
— Sobrou uma, por acaso, por cima da mesa? Estás vendo?
— Também as carnes? Os couros? Os jenipapos?
D. Jovita deu um olhar para Alfredo que cismou: também
ouviu, por boca de Graziela, as três cartas que ele escreveu ao velho a
favor daquela a cujo nome se faz cruz? O certo é que Luciana não se
desencarnava deles, da mãe, irmãos, pai, ou tirava deles tudo,
esvaziava-os. O. Jovita, porte morubixaba, estofada de roxo, arriou-se
na cadeira, as mãos no colo, guardando o olhar. E era como se
Luciana lhe pusesse um ferrolho na boca, retorcesse nos dedos da
velha os anéis honrados e com o dente pelas costas lhe arrancasse a
roupa-de-ver-a-Deus.
D. Graziela tinha mudado o chapéu, tirado no guarda-roupa da
alcova aquele mesmo que Esméia usou. Na preta uma soberania,
agora, na fazendeira, menos que um chapelinho. Seu Floremundo:
— Pois bem, mamãe, eu vou. Não carece isso tanto. Ajusto com
o moço um outro dia. Sim que só tenho amanhã só, que assim que a
lancha volte, me ponho. Só me esperem eu comerzinho este sobejo,
que comida no prato é impróprio deixar. Ah me deixem também fazer
companhia ao moço, pra ele não ficar comendo só. Mas se sirva,
menino.
— Não, pode ir, pode ir. Estou me servindo.
— Suas lições, hoje? Quero crer que o sono lhe tirou a visão do
estudo. Ou não?
Alfredo parou o garfo: esse homem está falando comigo ou com
a irmã que chega do Ginásio? No olhar dele, estou eu ou ela?
— De olho aberto a noite inteira... Ou aboliu o sono?
[75] — E o senhor, que também não dormiu?
O seu Floremundo guardou o suspiro.
— Eu, moço? Lá em casa? Durmo feito um acuatipuru. Nestes
dias que não. Uma cuíra...
Vieste, com a tua cuíra, indagar de mim se sou a tua irmã no
Ginásio ou um saltador de janela?
— Não vem me dando apetite de dormir. E a sua aula de hoje?
Assim querias, quando chegasses da fazenda, ouvir da Irmã
ginasiana.
41
— Aula de desenho. Desenhei um mutum. Não acertei foi o
bico.
— Me mostre, que conforme for, eu vou lhe dizendo o feitio.
Eu lhe dizendo, o senhor com o lápis na mão, não Custa fazer
semelhável.
— Deixei lá no Ginásio ah não vale a pena.
— Desenhar até que é um saber que muito me admira, Penso
eu, eu lhe digo. Olhe, por uma comparação, quando é um desenho de
uma planta de moradia, de um barco, de uma letra marcada na roupa.
D. Jovita elevou a voz:
— Pois bem, Floremundo, te dispenso. Olha, dá cá, me enche e
acende o meu cachimbo. A visita, tua obrigação não é. Não és tu. Dá
cá o cachimbo. Não és tu.
A mãe cachimbou fundo e grosso, sombria na sua cadeira. No
jazigo conjugal, debaixo da intimação, o nosso Imperador espirrou no
travesseiro.
— Mamãe, a senhora, mea mãe, se quisesse uma opinião...
— Te pedi?
D. Jovita tinha ficado de pé, costas para o filho, cachimbando.
Nini chegava do alpendre machucando com açúcar um jenipapo para
o Alfredo que se levantou. Seu Floremundo limpou a boca na ponta
da toalha, apanha delicadamente do chão uns bagos de farinha, lançou
peia janela. Fez vagaroso o pelo-sinal, desvergou-se com a sua
compridez e seus ossos, no que ficou de pé. Alfredo, ali defronte da
máquina de costura da D. Dudu, .quis armá-lo cavaleiro.
Mas seu Floremundo aqui já não está e sim no quarto dele, lá na
fazenda onde a irmã deixou, coberta pela esteira, suspensa na parede,
aquela folhinha parada no exato dia, 16 do outubro, semana, mês,
ano, século, eternidade. Na fazenda, o ponteiro não andou mais. A
mãe ateou fogo no tabocal e [76] até hoje é cinza no ar. Passa o dedo
no rosto, sai cinzento, passa a mão por dentro da família e vê a cinza
que dá. Come-se ali com o gosto daquela cinza, com a cinza tempera-
se o café e se faz a coalhada do Advogado, do ex-Governador e do
Arcebispo. Queimado o tabocal, bosque onde a bela adormecia, uma
quentura soprou para dentro de casa, um bafo, acabou-se a sombra e
os ventos que passavam pelo tabocal. Meu tabocal é me chamando,
dizia ela, quando as tabocas rangiam pela noite. Vou precisar
daquelas tabocas pra fazer um jirau, respondeu a Principala, aquela
taboca chama raio. Quem te chama não são elas que eu sei... A
caçula, como num acalanto, desafiava: Principala, Principala, as
tabocas me chamando...
Certo é que ainda rangem, quando ele, Floremundo, chega pela
madrugada, moído do campo, da caça e do mais que só ele sabe.
De todos nós, nesta casa, só o rosto do moço parece lavado. Ou
também não? Que é que o aflige? Agora, me espia oculto, como
sabendo de tudo ou como também culpado?
Veio a D. Graziela:
— Mamãe, papai já na porta. Vamos? Primeiro onde?
— Já não te disse?
— No Arcebispado, então?
— Não falo duas vezes.
No peitoril ficou o cachimbo e a cinza. Alfredo vê um cachimbo
enorme, feroz. Seu Floremundo vê a cinza só a cinza, só.
Agora no uniforme passado a capricho por D. Dudu, quepe na
mão, mirando-se no vidro da cristaleira, Alfredo indagou alto:
— Não pode sair assim, seu Floremundo? Em manga de
camisa?
Sem resposta, pôs-se a indagar de si mesmo: que vai me pedir
que não me pediu ainda? Me leva no caminho da irmã, vai falar de
minhas cartas? Me pede guia para correr as trinta mil portas da
cidade?
Diante da cristaleira, penteou-se; porta da cristaleira, vira
espelho mágico, espelho mágico. Não. Ai dentro as louças são
42
adornos de sepultura. Seu Floremundo, rejeitando os copos da mesa,
procurava uma cuia no alpendre.
— Não quer experimentar um da cristaleira, seu Floremundo?
[77] — Se quisesse, cadê a chave? No que acabo deste meu
gole d’água, vamos. Vou me vestir.
— Vá assim mesmo, seu Floremundo. Belém não é de cerimônia. O senhor não prefere cuia a copo?
Alfredo Olhou os sapatos remontados, a perneira pedia um
lustro. Faltou ao Tiro, à concentração cívica... Faltou mas foi espiar, a
paisana, no campo do Paissandu, os grupos escolares em ginástica ao
sol das onze, uma menina desmaiou, as bandas substituíam a merenda
escolar pelos dobrados cívicos; bebendo guaraná, entre ramalhetes de
flores, bandeirinhas e damas da São Jerônimo, as autoridades na
tribuna de honra forrada pelos pavilhões do Brasil e do Pará. Como na
corrida grega dos archotes, o que é necessário é que o facho simbólico
chegue ao templo divino que se perde lá longe no Impreciso da
distância, falava o orador, entre o Governador, o Comandante da
Região, o Arcebispo e os Cônsules, tudo saiu no jornal, toca o hino,
desmaiou outra mofina, eivém o carro do Arcebispo salpicando lama
nos olhos do pequerrucho aqui fora, pé no chão, costela varando a
pele — olha o tamanho da barriga -— que olhava, dedinho no beiço,
para o tabuleiro de cocada cheio do moscas. Na linha, os bondes
reservados esperavam os grupos escolares, os colégios, o Ginásio, a
Escola Normal. Alfredo tentou reconhecer professoras do seu Barão.
Diabo! Já nem mais pareciam, de tão usadas, com aquele tanto suar
debaixo do braço, e toca atrás dos alunos que apanhavam o bonde no
risco de desmaiarem em massa. Resfolegando, esfalfado, desculpe o
atraso, desculpe o atraso, desculpe o atraso, chegava o trem de
Bragança. Seu maquinista, jogue daí uma rapadura! Me atire um
camarão seco! gritavam os meninos. Passou no auto oficial o orador e
seus archotes. Pendurando no charuto a data cívica, entra o Diretor do
Liceu no landau do Comendador, este com os seus oito anéis de
banqueiro, presidente do Conselho e benemérito da Santa Casa de
Misericórdia. A pé, de guarda-chuva, alagado de suor cívico, saía
pelo portão o Secretário. Atrás, sempre maneta e de casimira, o
porteiro do Barão, que guerreou em Canudos, Já lá se vão em silêncio
as bandas, O pequerrucho na poça d’água apanhava a tampinha de
guaraná.
— Vá a você, seu Floremundo. Na cidade, quem repara? Lhe
Sirvo de ordenança.
Seu Floremundo bebendo água, bebendo ficou. Bebia de Cuia
num saborear de boi velho, gole a gole, devagaroso. Enxugou na
manga a boca satisfeita [78]
— Ah menino. Des dessa noite esta sede, que até me esqueci de
lhe dizer antes se era servido. A educação, fique desde já sabendo, é
do que mais careço.
— E a barba? Faz? Não precisa?
Seu Floremundo espreguiçou-se, emborcou a cuia na palma da
mão, tamborilou na cuja, fez um fôlego, espiou pela janela:
— Perigoso...
— O que então, seu Floremundo?
O vagaroso estirou o beiço para o quintal
— O tempo, seu Floremundo?
— Quem mais?
O tempo? A cidade? O tempo até que consentia, afofando a
tarde de sossegadas nuvens caseiras, a aragem pelas folhas do quintal.
Pelo vizinho, um gulugulu. Hora da vá da Esméia abancar no lado do
portão, com o seu tacacá. Com pouco, chegavam as duas freguesas de
toda tarde, as moças da cocheira que vendia zebu de Minas, como
sempre nem boa-tarde a ninguém, bebendo tacacá no cupim de suas
soberbias. Os rapazes do Aston Vila iam bater bola. O intérprete do
Hildebrand subia rumo de Manaus. Subitamente invadindo o
alpendre, largo e breve cantou a galinha nanica da Nini.
— O tempo sossegou, seu Floremundo. Vai fazer a barba?
43
— Mas depois de comer? Me rogando que eu estupore?
Vagarosamente, seu Floremundo entrou na alcova, espiou nos
móveis, no relógio francês, enfia a cabeça pelo cortinado do leito,
diacho, a modo que cheira a jasmim? Do pai velho que não é.
Jasmim. É da cama ou do jasmineiro vizinho ou rocei nas folhas dele
lá fora, não acerto. Vamos que a mãe fareje. Do velho? Não. É do ar,
uma corrente do jasmineiro das pretas. Mas por onde entrou, as
janelas fechadas, a porta? E jasmineiro, para recender assim, só de
noite, no calmo, os cachos no escuro. Vamos cheirar de novo. É.
Jasmim.
Na sala, arriscou um dedo pela palhinha do sofá, na perna da
coluna, o lustro parecia despencar. Voltou ao leito, soprou, sacudiu a
colcha, o cortinado, virou o travesseiro. Do pai não era. Dudu
cheirava a calça de homem que faz para a loja, a ferro de engomar. O
pai, agora, só cheirava a viagem, a sarro daquele cachimbo, e
embirrava com jasmim, agora se lembra, embirrava. E então?
Assustou-se, era Alfredo a seu lado:
— Poeira na cama, seu Floremundo?
— Até que não. Só apreciando.
[79] Ficaram em silêncio, à espreita, apurando o faro.
— Tenho de ir.
Falou o seu Floremundo, como se lembrando. Passaram-se para
a varanda. Alfredo entrou no quarto, quis apanhar a loção da Nini e
respingar no jazigo. O vidro na mala fechada a chave. Aproveitou a
breve ausência do seu Floremundo, correu, cheirou o travesseiro: era,
sim, Será que o cheiro aumenta, vai impregnar toda a casa, agora? Ou
seu Floremundo astuciou abrir o travesseiro onde a O. Dudu escondia
aquelas cartas?
Já o seu Floremundo olhava a cristaleira atulhada. Uma igual a
essa, Jardelina algum dia viu? Nem-nem por sonho. Jardelina. Outra
ocasião te levo na cidade, rapariga, disse a ela, uma tarde, por dizer
Jardelina escutou, depenava a marreca. Jardelina ah pessoa sossegada.
Seu Floremundo se amaciou por dentro, aquele sossego dela é minha
melhor sustância. Vigie Jardelina olhando essa cristaleira. Lá na
palhoça do retiro, lugar das tigelas, duas de barro, duas de folha,
xícara, prato, bule, era na tábua mesmo, o pote d’água com o caneco
na boca ao pé do esteio onde a Jardelina grudou, tirada de uma
revista, a pintura italiana. Olhando essa cristaleira, então que os olhos
de Jardelina ficariam inocentes, lá do fundo a matuta olhando, bem
menina, logo disfarçando, a procurar pela casa um serviço, Sossegada
que é mas sempre atrás de uma ocupação. Nem ao menos sabe que
existe louça assim, em tão tamanha quantidade, só de se ver, de
servir-se, deixa-te-está, te serve delas com os olhos. Desejo da
Jardelina — menos de boca, mais no juízo — era a máquina de
costura, me dá assim mesmo usada, já de muita mão, caraquenta,
semelhante uma que viu, virada a um canto, no Pindobal, espólio do
finado Duó Serra, reclamado por seis herdeiros. Era só pedir a seu
Mocinho para armar, azeitou, encorreiou, e tinha com que costurar
um pano. Jardelina era sabedora que em casa, na Camamoro, duas
máquinas, tinha. Duas. A velha, da mãe dele, de serventia diária, e a
nova, da Graziela. Fazendo par com o bandolim, a nova só só era limpa, encapada, sempre chegando da fábrica. Pois outra ocasião, vou
negociar, Jardelina, o ferro velho dos seis herdeiros, assim que me
desembaraçar das tantas obrigações, embarque de gado, esta cidade,
casamento da Felipa, bicheira dando nuns bezerros, tira certidão em
Cachoeira para os autos, que já medem légua e meia, da Questã. E
não esqueça que tem ainda de esperar a sentença do juiz sobre o
espólio. Seu [80] Leô|nidas vem servindo, de perito. A esta hora o
alfaiate anda pelo Anajás. longe, atrás de quem lhe encomende uma
roupa. Seu Leônidas, de volta, chega ao Mutá, avalia, e avalia reto,
nasceu conhecedor.
Pois não, outra ocasião, compro. O mais, Jardelina não
ambiciona. Por exemplo, essa lixaria aqui toda, de tudo isso um e
outro enfeite, Jardelina podia pendurar pela parede, nunca soube ser
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enfeitosa aquela rapariga Bom que ela nunca serviu a branco.
Jardelina. a família dela? Tivesse anotação de família, olhe idade! a
primeira linha escrita ia principiar lá dentro da maloca, tempo em que
aquele rio era, de ninguém mais, dos seus bisavós Que ele vivendo
com ela, branco não se considerava meio branco, branquicento, vá lá,
mais para a parte do índio, Diabo é a raça dos Menezes escorrendo na
família Nos olhos da Graziela — só não vê quem não quer —
prevalecia o olhar menez. Deles vazou também para a filha que ele
tem com Jardelina?
A pergunta de Alfredo, respondeu com brandura:
— Estou de navalha cega
Alfredo escarafunchava aquela resposta. Me deixe que afio
De afiar navalha, gostava. Afiou a do Leônidas. afiou a do seu
pai, e ainda não tinha a sua, que barba dele, a malpenugem, o barbeiro
tirava se rindo: Mas, meu filho, já querendo tão sem tempo? Pra se ter
barba, bote... Aproveite de grande a cara enquanto é lisa. Plantio de
barba quem faz é o mundo, meu penugento. Cada fio é uma aflição.
— Seu Floremundo, eu afio.
Como se lhe dissesse: barbeie suas aflições.
— Agora, não, não presta. Também me deu foi um fastio de
fazei... Uai! Nem a navalha eu trouxe... disse o seu Floremundo
tirando do bolso o colarinho, a gravata, o maço de dinheiro.
— Olhe, seu Alfredo, o favor que lhe pedi, só no meio da
viagem, lhe vou explicando qual. Mas menino o senhor já não é, que
eu sei, taludo que ficou, tamanho! Confio no homem que já vejo no
senhor, que eu sei. Então me espere, paciência, é o tico de tempo em
que mudo esta camisa, é só mudar.
Alfredo, pela varanda e por dentro de si mesmo, deu de novo
com o cachimbo, o sarro e a ferocidade da D. Jovita.
Que homem é que vê em mim? Indagação quase assustada, um
ter de descobrir quem sou, que não ia longe. [81] Com|parou o seu
Floremundo aos professores do Ginásio, Esse-um fedendo a boi,
sangrando com a ausência da irmã, dele vem uma voz. É dos
professores?
O convite do seu Floremundo era correr Belém até encontrar
aquela a quem os dois, por todos, devem pedir perdão?
Ou sou eu que estou, pela primeira vez, encontrando um
homem? Em Cachoeira, o pai, os tios e os Outros assumiam, de certo
modo, um parentesco tal que não podia julgá-los, considerá-los parte
do homem, esse que é o alheio desta cidade, o seu Camilo entre a
Anarquia e a fábrica, o pastor da Ponte do Galo entre a Dadá e o
barco do Maranhão, o Professor Moquém entre as decaídas do
subúrbio e o sobrinho tomando o hábito em Roma, já melado no
Cuspe da Antonieta. Nega que Lucíola foi, com efeito, também mãe
dele, que foi também nascido daquela solidão, noivado e morte?
Aquele repentino defunto no xadrez, que velou durante a noite ao
lado da mãe, da grávida e do carcereiro, aquele, por exemplo, era já
de sua família, tragicamente no chalé. E a filha, que agora pariu do
pai morto, irmã talqual, vai dizer que não? Escreveu para o chalé que
valessem a criatura, sabendo embora que tal mie e tal filho, a canoa
que tomam é da linha de Belém. Assim por toda a noite e no entrar
desta tarde, Alfredo encontra nesse seu Floremundo o homem que lhe
vem confiar o segredo. Pela primeira vez, de homem para homem.
Não lhe vem cobrar a entrada do pagode, como o Capoeira. É ocasião
pera lembrar o que se passou com ele, ainda do Barão, morando na
Inocentes, ele e o seu Antonino Emiliano, marido de D. Celeste.
Quando lhe revela que desmanchou em Muaná o sobrado da mulher,
para vender os azulejos, o seu Antonino diz por garimpagem pura, já
o juízo lá no Oiapoque, aqui a perder o menino? Só agora se sente
crescido? Ou mais exatamente, só agora se comunica?
Logo ressentia-se: a mãe, negando-se teimosamente a confiar
nele, a abrir-se. Escancare a porta da despensa, mãe, que veja a
senhora, oiça a mulher que tem dentro da senhora e a senhora
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descubra o homem que tem dentro do filho. Das lições que me dás,
teu silêncio é o que mais dói.
Uma esperança, chegou o momento, bom escrever-lhe. Trio
linhas, enquanto espero o seu Floremundo.
Experimentou a caneta. A pena cega. Destampa o tinteiro,
molha, e escreve, arranhando o papel, letra a letra: Mamãe, só agora,
me sinto... Enxugou o borrão com giz, vendo no ar a cena quando ele
caiu no poço trazido no mesmo [82] ins|tante pela mãe, que lhe dizia:
disto não diga nada a ninguém. Dito agora assim: tome esta vida que
lhe dou de novo e não diga nada a ninguém. Agora nesta carta, nesta
pena aberta, de repente pede: me ponha na palma da mão o que tanto
guarda. Ouvia a Areinha falando dela, de mal sem medir o mal, de
bem sem medir o bem, e tudo na mês era aquela, ação para trazê-lo a
Belém. Que a mãe, embora muito do chalé — ou não? — tinha as
suas fraquezas pela cidade, tinha. Aquela barraca na Bernal do Couto
que ela, em 1918, tanto tanto quis comprar? Por que não a vê, de
novo, no Teatro da Paz, a luz do palco sobre o rosto negro, o silêncio
dela, ao lado do Major, ouvindo a ópera? Perdida ópera do pai e da
mãe. Arias que nunca ouviu nem ouvirá mais, árias ao preço da
borracha, tempo do padrinho Barbosa com o ganso ouvindo
gramofone e a menina no tapete.
Guardou o papel, guardou aquelas palavras para um dia.
Seu Floremundo demorava. A esta hora a mãe dele, pai e irmã,
caminham para o Arcebispado.
Correu até a porta da rua, espiou o campo, o canto, a jaqueira, a
Penitenciária. Voltou: que é que faço do Ginásio? Ou o que é que o
Ginásio faz de mim?
Seu Floremundo voltou sem ter mudado roupa, o mesmo
conviva de quintal, tornou à cuia d’água.
— Foi o sal da carne, o não dormir resseca.
Volta do fogão onde acendeu o cigarro.
— Meu pai não ia aprovar que eu saísse pela cidade em manga
de camisa. Por mim que não. Esqueci de lhe dizer que Belém me
repugna.
Fez uma careta, fez que cuspia não cuspiu, espichado e soturno.
— Ouvi dizer que escureceu de mosca na cidade, quase comem
a população. Que deu nas crianças uma tal peste. Que só de anjo que
foi, São Pedro teve de dizer: por ora, chega. Que passou de muda uma
tulha de tucano. Que era só abrir a boca, olha, bote mosca dentro da
goela. Foi? Como foi?
— Quando eu ia saber direitinho, meus tios me levaram. Me
lavei das moscas lá no rio.
— Aquelezinho nosso rio, que até que aceia, isto é exato. Este
da cidade nem o salobro do mar que às vezes entra e vem cortar as
tantas fezes. Tudo aqui é o bastante pra uma peste.
[83] — Os tucanos não deixaram peste. Acho que até levaram.
Limparam um pouco a cidade.
— Olhe, olhe... O senhor fique aí de vigia. Vigie e me escreva.
— Ficar, fico, tenho de ficar.
— Mas tratezinho de saber como ficar. Até puxo que essa mea
sobrinha lhe pendure quanto antes o caroço de tucumã no pescoço.
Grite socorro antes do risco.
— Já não vou me fiando em talismã, seu Floremundo.
— Só de boca, que o Senhor diz. Só de boca. Eu que estou aqui
pra lhe dizer.
Alfredo voltou à porta da rua, espiou, e lá noutro lado, no
capinzal — pois não era? — a Ana de branco. Acenou-lhe. Ana lhe
deu as costas. No sol-com-chuva da tarde, ela caminhou para a linha
do bonde, de chinelas, via-se. Sumiu D. João adentro. Em que que
Ana mudava? Antes correndo, poldra solta, o pé andeiro, obrigatória
em quarto de defunto.
Esperou. Passou a Bina, a feia perfeita, num cetim colado,
lhe atirou uma carta, a terceira no mês.
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Abriu. Miudinha letra, o dizer sarapeca, o que tinha de feia e de
reboleado no corpo, tinha de inocente, triste-triste no escrever.
Já a Bina voltava do canto, reboleando nos seus cetins que lhe
davam um ar de uma do mundo e não era. O que parecia não era.
Bina, passando, falou ceará puro:
— Estou brincando não. Estou brincando não.
Alfredo arrepiou-se. Ficava um eco de malefício. Aquela
Inocente e feia transpirava paixão e praga. Lá vai dobrando a rua
debaixo da chuva miúda. Alfredo ouvia o chamado do seu
Floremundo.
— O senhor com pressa, não?
— Não, não. Espero.
— Não tem lição pra estudar agora?
— Hoje só é o seu passeio.
— Me admira que com tanta mosca na cidade, aqui nesta casa,
que demais podia ter, não tem. Não tem tanta.
Não lhe disse que foram os tucanos? D. Dudu zelou bem.
— Muita coisa aqui nesta casa fede. Repare com o seu nariz.
Aquela carne na corda. Aquele mobiliário, não sei por que, mas é. E
os mais cheiros. As moscas não tiveram noticia?
— Aqui a casa é em cima dum cemitério de bailes, seu
Floremundo.
[84] Seu Floremundo olhou o cachimbo da mãe. Andando sem
sossego, Alfredo amarrotou a carta, pulou para o quintal. As formigas
tinham restabelecido os seus comboios. Atrás da cerca, alguns
meninos espiavam. De repente atiraram pedra. Caiu-lhe aos pés um
caroço de manga. Os meninos assobiavam. Alfredo, na cerca, acenou:
— Algum de vocês entrou se cortou no vidro?
Os meninos apedrejavam.
Entrou, com uma pressa, uma coisa que devia ter feito sempre,
em menino, apedrejar. Até em mangueira apedrejou pouco. Tão
pouco. Agora os meninos da Manoel Evaristo para dentro do quintal
tome pedra.
— Respeito as praxes do meu pai. Assim é também em
Cachoeira se vou na ocasião que ele comparece no Conselho e
assume.
Assume, Alfredo escutou como se visse o velho Delabençoe, no
gabinete do Intendente, assinando pela mão do Major os ofícios,
rubricando os talões, visando os papéis da professora. Assume,
repetiu o seu Floremundo, com circunspecção filial.
— E assim, quando é isso, tenho de me enfarpelar.
Cerimonioso, resignado, deixa que Alfredo lhe tire as
abotoaduras.
Três palmas na porta da rua, a velha parteira entrando com um
embrulho. Sentou-se na varanda, seu Floremundo lhe pedindo a
bença. Alfredo lhe deu um gole d’água. A velha abriu o embrulho,
papel de loja, seis rosas para o Alfredo.
— Mas D. Santa!
Seu Floremundo se aproxima:
— Raça de rosa assim é raro.
Alfredo, sangue no rosto, que vai fazer com as rosas? Que dizer
à velha? Seis rosas diante delas o rostinho murcho-murcho da
parteira, rosto de pau roído, a voz desbotada.
— D. Santa, a rosa que apanhei, aquela, hoje... Ana ficou
braba?
— Cismo que não. Ana é braba de nascença. Está bordando.
— Agora?
— Na casa de uma comadre dela na Soares Carneiro. Algum
mal ter apanhado a rosa?
— Era de Ana.
— A prova é que te mandou essas ai me intimando que eu não
dissesse que foi ela. Floremundo, e tu? Demoras?
[85] — Demorar, mea tia? Eu nesta cidade demorando?
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— Até que fiquei pensando que Ana bem que podia passar um
mês lá na fazenda bebendozinho um leite... Que tu acha?
— É só a senhora falar...
— Com a peça de tua mãe? Agora isso... ah!
D. Santa, num gesto aborrecido, sossegou-se na cadeira, ali num
descanso. Com as seis rosas no braço, Alfredo foi espiar no quintal:
uma e outra pedra. A velha se levantava:
— Bem, gente, já me Indo. Agorinha-agorinha venho saindo
dum parto. De noitinha, conforme for, é outro.
— Seu Floremundo, vamos deixar primeiro a D. Santa em casa?
— Isso que não, meu filho. Daqui inda sigo... vou atar um
cordão na barriga duma pra a criança dela não subir pro peito. E mais,
tenho de ver mea neta na Ordem Terceira. Hoje primeiro dia dela, ah
graças a Deus.
Alfredo deixou as rosas, apanhou-as, tornou a deixá-las.
— Deixe numa cuia d’água.
Alfredo via a Dalila na tina, o pajé lhe dando banho.
— D. Santa, não é já tarde e longe pra senhora ir no hospital?
— Pra mim? Nem ir no bonde careço. Antes vou amarrar a
barriga da Sofia Arantes na D. Januária. Depois vejo a Dalila.
A velha desceu o batente, arqueada, consumida, levava de volta
o papel de embrulho, dobradinho.
— D. Santa, foi a Ana mesmo?
— As rosas? que que havera de te mentir? Agora se ela sabe
que eu soltei a língua. Ela não te escasseou aquela rosa, meu filho. A
prova não é as seis rosas que ai estão? O mais na Ana é mimo.
Alfredo entrou, ajeitou as rosas na cuia d’água, voltou ao
alpendre: as pedras cessaram.
— Certo que a mea tia carrega uma cruz com as duas netas, seu
Alfredo? A Dudu me jogou umas amostras, é? O senhor que
testemunha, é?
Alfredo olhava as rosas na cuia e a Dalila nas mãos do pajé.
— Que eu saiba, seu Floremundo...
— Já não está aqui quem lhe perguntou.
— Entreolharam-se, rindo, e logo Alfredo:
— Ir no hospital a esta hora, a esta hora!
[86] — Cisma que a neta... É?
— É o cansaço da velha, olhe que cansa.
— Sim, que muito cansa, é. Do senhor que não é a culpa.
Seu Floremundo entrou no quarto, abriu a mala, parou, meio
suspenso, meio contrariado. Esta repugnância pela cidade devo
guardar só comigo. Foi ruim dizer ao. moço. Vi o olhar dele. Deve ter
tomado como uma ofensa. Vi o olhar dele para a velha parteira. Mas o
estudo dele, esse, eu respeito, é o que talvez se salve nesta cidade.
Mudava de camisa? Era como se obscuramente dissesse: mudaria de
família? A camisa parecia menos suja que empapada de toda a
viagem e de todo o serão passado. Despiu-se dela, vagaroso, se
despindo da noite, aquela, do quintal, mais do quintal que do céu.
Custou a achar na mala outra camisa não marcada pela irmã. No
mesmo que vestia, empinou-se, atento: não disse? A chuvinha lá fora,
chuva da cidade, pingando a sua imundície, o que mais doeu no seu
Floremundo, já num repente de fechar a mala e sair-se, sem nada
explicar, mas depressa — contrariando seus hábitos — depressa no
Arari, depressa, entrando no retiro:
— Jardelina, tempo não tive de trazer tua encomenda. Outra
ocasião, te trago.
— Seu Floremundo, isto já nem me coça, deixe que lhe diga,
tenha paciência, mas o senhor é sempre da outra ocasião. Acaba o
senhor.., acaba gente por ai lhe botando o apelido de Outra Ocasião.
Entra o Alfredo, curioso da mala aberta: retrato de Luciana?
Seu Floremundo tão vagarosamente se vestia, bem verdade que
apressado por dentro.
— O senhor vai me guardar silêncio. O senhor sabe...
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Alfredo acendeu-se: é agora. Agora que vou saber. Não é o
retrato, a própria. Mas intimamente culpado por não dizer à velha
parteira que Dalila estava no pajé. Ao menos acompanhar a avó até o
hospital, trazê-la de volta. Seu Floremundo fechou a mala.
Seu Floremundo atravessado por um repentino mau agouro; a
Questã. Por que não vai, não desengasga no focinho do advogado
umas tantas verdades? Pela consulta sobre as sete cartas e o retrato, o
dr. Gurjel não vai se Contentar com as coalhadas. É mais uma soma
na conta da Questã. E embarque boi, prepare boiada, tira certidão,
paga o agrimensor -e sofra embargos. Em Cachoeira, seu [87] Domin|gão não se cansa de gritar no meio da casa: nos roubaram tudo. Os
advogados! Nos tomaram tudo! É o seu urro, todo dia, do viúvo e
esbulhado. Foi a sua Questã e ali está com açúcar no sangue, a mesa
posta sem um bago de farinha e o nos roubaram tudo.
Também no correr que vai nessa Questã, acabamos na beirada,
pedindo passagem no rio e ninguém escutando. Ninguém, ninguém. E
adeus o Advogado e o Arcebispo nunca mais.
Com esse temor, contou o seu dinheiro.
Alfredo, no alpendre, atento aos fundos da cerca, impacientouse. Os meninos voltavam a apedrejar. Desceu e viu, atrás dos
meninos, de branco, a Ana, que mandava apedrejar. Quis afastar uma
estaca e sair pelos fundos, impossível, e tome pedra, Ana tinha
desaparecido.
As pedras cessaram. Alfredo esperou. Espiou. Ana entre os
meninos, debaixo do açaizal. Ela agora no meio da rua, da Manoel
Evaristo. De crer que seguia para a baixa, dobrando, sem dúvida, para
o estaleiro. Os meninos debandaram.
Foi ao portão, batiam bola no campo, gente em volta do tacacá
debaixo do jasmineiro. Olhou a Penitenciária. Bina ali entrava se
despindo do cetim e do rebolado, devolvida aos seus daquela seca, ali
desde que tempo. E as roupas dela, de quem? Não era da fábrica nem
do mundo nem tinha zebu. Presente da madrinha, a madrinha de uma
das casas altas da Travessa do Curro? Os sobejos do cetim e do fustão
da madrinha lhe colavam no corpo, a feia passava pela Municipalidade e José Pio, na última moda, se por fora escandalosa, por
dentro castamente apaixonada. Os rapazes a esperavam no canto e ela
fechava a cara, a sacudir-se, asperamente fiel a Alfredo que dela se
escondia. Agora é a carta aqui na mão, carta de mal-amparo, que te
pede o que fio tens.
Ana, pelo estaleiro, chamada a bater a quilha do barco.
Aqui no jasmineiro, Ismênia não se expõe.
— Pronto, me enroupei, às ordens, falou o seu Floremundo,
paletó e guarda-chuva, num passo jururu.
Ao passarem pela taberna, sai por entre o peixe de salmoura e o
toucinho sob as moscas, numa aragem de perfume, a D. Brasiliana,
chapéu, sombrinha, bolsa.
— Sua família, seu Floremundo, viajou de auto. O carro deles
chamei pelo telefone. Um para o senhor?
[88] Estou vendo as tuas artes, Malazarta, cismou Alfredo
olhando a rua sem sinal de bonde. Seu Floremundo — mas se eu
nunca troquei duas com essa criatura — cumprimentou a dona,
banhado de espanto e perfume.
— É só chamar. Chamo, seu Floremundo?
Seu Floremundo, tentando abrir o guarda-chuva, olhou para o
Alfredo que espiava se vinha o bonde, olhou’ para
D. Brasiliana que levava o jacamim para debaixo do balcão e já
no rumo do telefone. Fingia não ver o ginasiano, este rio meio do
trilho, torcendo pelo bonde que não veia.
Seguiam de carro até ao Ver-o-Peso. Ela, entre os dois, teimava
não ver o ginasiano, sempre voltada para o seu Floremundo e seu
Floremundo atarantado. O carro sacolejava, a dona ralhando: mas que
tanto sacolejo é esse, seu Marituba?
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Não é bem como montar, seu Floremundo? Quando me leva lá
na sua bela fazenda? Me põe em cima dum búfalo, quando, seu
Floremundo? Não põe? Me ponha!
— Este-um aqui é mais na .feição da senhora. Sacode, sim, mas
não derruba nem assa. Mas dizer que dele não me arreceio, isso não
digo. Não é o fogo que faz o bicho andar?
— Olhe que fico esperando o seu convite, seu Floremundo.
Espero em Deus que um dia vou ser convidada, Que aquele seu pai,
de tanta promessa dele, criei calo na memória.
— Não tiro a razão da senhora, quem promete...
— Seu Floremundo, vá, marque data, me prometa então, que a
sua palavra é um tiro.
D. Brasiliana esticou o braço cheio de pulseiras, recendeu mais,
enfiou a mão pelo joelho adentro, era o nó da meia, a liga? Alfredo
não sabia. Qual das duas agora? A taberneira, a contrabandista? Nem
uma nem outra. Era a que fala ao telefone, a que anda de auto, agora
se apropriando da cidade, dama do alto comércio e das profissões
liberais.
Como então que seu pai? Que foi que deu no seu pai, na cachola
do seu pai? Fazer a senhora dele desarmar a rede branca dela lá na
fazenda, deixar lá o leite à toa coalhando e arriscar-se a tamanha
viagem? Neste tempo! Não é festa de Nazaré não é nada! E ter de ir
no Arcebispo e ter de ir no Advogado...
— Como?
— Não meta rolha na conversa, seu Floremundo, que de tudo
um pouco o ar me enche os ouvidos. Meu outro telefone é sem fio. Só
cortando a foice a barbona do seu [89] pai! Onde estavam as cautelas
do vosso galante e digno genitor?
D. Brasiliana escapou um risinho, logo se fechou, ensaiou um
bocejo.
— O senhor, que é filho dele, não atalhou a tempo? Não
preveniu? Como seu pai... Procedendo feito um menino.
D. Brasiliana mexeu o ombro para o lado do estudante. Seu
Floremundo se assoou, pesado e desentendido.
— Seu Floremundo, uma palavra, homem!
Seu Floremundo até assustou-se, o toque dela no braço, no
receio dele, no nojo, na sufocação, peso de perfume e ombro, aquele
rosto em cima; roçava-se nele a mulher, sacudia os braceletes, da
cabeça aos pés vestida de contrabando e já por dentro da família com
todo o seu telefone. Alfredo agora se admirava. Como D. Brasiliana
soube? O velho? Ou entre o Marco da Légua e a taberna corre uma
passagem secreta? Alfredo assobiou, impaciente. Ela sem vê-lo, a
desconhecê-lo, voltada para o seu Floremundo. Antes de sair na
Quinze de Agosto mandou parar. Entrou na casa defronte, rápido.
— Vamos, é melhor pelo Bulevar. Quero uma paradinha na
Alfândega.
Uma quadra, e de novo salta, entra no sobrado, não demorou
saiu, dando adeus às senhoras que se debruçavam na Janela.
— Bem, agora a Alfândega. Ah. Mesmo nesta chuvinha ti calor.
Ah.
Da bolsa tirou o leque azul de pontas douradas, abanou-se e
então fez que deu com o ginasiano, olhou de revés, indagou do
Ginásio, numa voz protetora. Alfredo, sem responder, encarou-a. Ela
interpõe o leque, logo abana-se, examina a farda do estudante, os
sapatos, muito madrinha. Espichou o beiço, fechou o leque, ar de
quem fala a menino:
— Então?
— Então o que, D. Brasiliana?
— Quantas?
— Quantas?
— Levo nesta bolsa a petição ao diretor dos Correios para botar
na nossa bela rua uma caixa postal. Só assim. Satisfeito?
— Boiei, D. Brasiliana.
— Quem não te conhece que Sarepeca.
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[90] Deu-lhe um beliscão na coxa, temperou a goela, agora com
o sacolejo do carro fez foi saltar os braceletes, colares, o peito, e mais
perfume e fitas do chapéu e cada vez mais Senhora no comércio.
— Primeiro aqui, pare.
Subiu no dentista, desceu.
—. Marquei hora, meu senhor. Este pivô, não me dou com ele.
Nunca foi no dentista, seu Floremundo?
Alfredo riu, um rir alto.
Ela com um talho de boas maneiras engraudava os olhos no
estudante que pôs as mãos na boca, enchia as mãos com o riso, abria
as mãos para fora, como para contagiar a cidade, fazer a rua rir, as
portas, o bonde parado, a carroça que atravancava. O carro sacoleja,
pára defronte da Alfândega, a moura saltou. Alfredo espiou a grade da
capatazia, o paredão: o velho Alcântara. Dele nem lembrança?
Esperaram. Com pouco a D. Brasiliana:
— Agora defronte da Recebedoria.
Entrou sob os cumprimentos e alas da Portaria, fiscais e
guaritas. Os dois, no fundo do carro. Já a senhora descia,
acompanhada de oficiais da repartição.
Dobraram pelo Ver-o-Peso.
— Espere.
Examinou no botequim os violões pendurados. Entre os
canoeiros, como sempre, grande dama, muito dada. Andou até às
proas de caranguejo e peixe, indagou preços, reclamou contra os
atravessadores, o adeusinho ao capitão da Força Pública, chuviscou,
abriu a sombrinha, a maré subia na calçada. O carro foi parar defronte
da Intendência.
— Fico aqui no Foro. Tenho de ir na Câmara. Pena não
acompanhar o senhor, seu Floremundo, na sua viagem. Outra ocasião,
sim?
E cochichou:
— A esta hora a sua família despachando altos papéis com o
Arcebispo. Como então que esse seu pai?! Mas tudo acaba em boa
amizade e boa paz, se Deus quiser, minha oração é forte. Não convém
susto. Por isso, não. Nossa Senhora de Nazaré põe uma pedra em
cima.
Olhou o céu, benzendo-se, sem se virar para o ginasiano, logo
acolhida por dois senhores de pasta e anel de doutor. Um deles,
Alfredo reconhece mas veja aquele ex-noivo da D. Emília Alcântara,
o Dr. Viriatinho, todo no H. J., cravo [91] na botoeira, boas banhas,
enxugando o cangote próspero.
O Porca Prenha. Alfredo quis saltar.
— O plenário está no meio, dr. Viriato? perguntou ela, franzida
a testa, tocando com o leque a aba do Porca Prenha que lhe tomou o
leque e se abanou jovialmente suado. Entraram no Palácio. Alfredo
quis segui-los mas esperou que o seu Floremundo despachasse o
carro. O alto espichou-se para o chofer:
— Meu senhor, deixe ver a quantia.
— Até aqui? Só-só até aqui? Nonada. O carro às ordens. Até
aonde desejava ir?
Laçado pela cidade, carregando o seu asco contra a cidade, seu
Floremundo virou-se para o estudante:
— Que o senhor diz?
Alfredo queria o plenário, um pulo na galeria, espiar.
— Pague, pague.
Mordeu o beiço, enfiado, com a sua pressa, conteve-se, os olhos
lá em cima naquelas janelas do plenário. Luciana não tinha onde. O
Porca Prenha! Seu Floremundo afunda-se no carro, mais barbado,
mais sombrio.
— Agora, seu moço, tão tarde que já é...
— Do Curro até que foi um instante, patrão, atalhou o chofer.
51
Alfredo não via o tempo da corrida mas o da passageiro no
carro. E só agora ia principiar a viagem, talvez a busca ou outros
desígnios (tu me pagas, taberneira), puxou do bolso o horóscopo.
— Vamos, seu Floremundo?
— Agora é nisto até lá.
Alfredo ouviu, ouvindo aquela rouquidão, aquele resmungo. Lá
da Câmara desciam os ares da O. Brasiliana. Alta, penteado torre-depisa na janela, a dama parecia fazer inclinar o velho caçarão, todas as
janelas se enchiam de sua figura, seus cabelos de repente imensos
ondulavam sobre a Intendência e o largo, labaredas de um Incêndio
escuro.
— Até lá, seu Floremundo?
Seu Floremundo piscou muito, destemperado, deitou no colo o
guarda-chuva, Alfredo endireitou-lhe a gravata.
— Ah que o senhor se arma de uma paciência comigo... Lhe
agradecer nem sei.
Olhou as janelas, ganhou um ânimo:
— O senhor aí da frente, aí no piloto, faça favor, viaje.
[92] Agora o piloto tem que virar a manivela, uma duas três
pegou. Alfredo olhava para as janelas.
— Depois lhe digo onde parar. Viaje até lá.
— Até lá? tornou Alfredo.
— Lá no Marco, é. Lá se sabe a rua e o número.
A rua e o número, repetiu Alfredo consigo, a rua e o número.
Voa, voa, piloto. A rua e ao número. João Alfredo, Quinze de Agosto,
Largo da Pólvora, Estrada de Nazaré, agora na Independência,
calados, a rua e o número, olha o Museu debaixo da chuva, os velhos
bichos gritando com fome, também viajavam os perfumes, soavam os
braceletes e os colares, o ombro da moura nos ossos do seu Floremundo, o beliscão na coxa, carro da moura entre os violões e os
caranguejos, entrando pelas janelas da Câmara, voa que adiante é a
rua e o número, clareou o tempo, estamos no Marco. Seu Floremundo
tirou do bolso a rua e o número, deu a Alfredo, o carro saltou nas
poças, aos solavancos, dobrou na Vilota, parou no oitenta e três,
assustando um galo suro que pulou para o meio da rua encharcada.
Custou a abrir a porta do carro. O ginasiano apeou-se, saltou a
vala, batendo palma. Barraca fechada, porta verde, janelita escassa,
bateu bateu. Espiou pelo buraquinho, escuro, escuro. Veio a vizinha,
uma de perna inchada, tirando espuma de sabão dos braços, titingosa:
— A vizinha dai? Desocupou não faz nem hora. Desalugou. É a
chave ou é só com a ausente?
Alfredo, deu-lhe um suor, sem responder. A ausente, a ausente.
Começou a chegar vizinho. A quadra amontoou-se em volta do carro.
Os meninos espiavam aquele-um alto ali dentro do carro, encolhido,
rosto esguio, muito só ele, a mão no guarda-chuva.
— Mudou num caminhão. Mudou num caminhão, exclamava a
vizinha.
— Num caminhão, foi, repetiam as outras,
— Ela, a D. Joinha, no que recebeu um recado de um senhor
gordo que veio de caminhão, um senhor com um maço de jornal, foi
tudo num instante.
Ao pé da cerca, o motorista indagando por ovos, queria meia
dúzia. Alfredo olhava o número da porta verde, o oito em preto, o seis
em vermelho — que dizia o horóscopo? De onde esse cheiro de
abricó? A perna-inchada:
[93] — Duma hora pra outra. De caminhão. Pra Onde, não
disse. Dela o que ficou, me pediu que eu agasalhasse comigo, foi um
pé de amor-crescido no paneirinho.
Alfredo enfiou a cabeça no carro.
— Seu Floremundo, D. Joinha voou.
D. Joinha. Seu Laudelino de A Imprensa. As astúcias do nosso
Imperador. A filha, esta, que a cidade devorasse.
52
— Assim então... murmurou o seu Floremundo, se desenroscando, debaixo dos olhos da meninada, a D. Jovita chega a
tempo de só reaver o pé do amor-crescido.
Deu a nota de dois mil réis aos meninos que foram correndo
trocar no canto. A perna-inchada mostrava a planta no paneirinho.
Dois ovos conseguiu o motorista. Alfredo apanhou o dinheiro das
mãos do seu Floremundo, pagou o carro que ao sair da rua se atolava
rodeado de menino.
Os dois seguiram a pé Vilota adentro, silenciosos, seu
Floremundo respirando o seu alivio.
— Olhe ali um pé de loucura, correu Alfredo para o cercado em
flor. Lá dentro, a moça, socando café no pilão, ..piava-o. Seu
Floremundo se chegou, vagaroso, bem mais alto, recortado na
iluminação da tarde. Queria andar um pouco mais.
— Desanferruja a perna e o juízo. Ah que aqui tem por demais
lama.
— Daí em diante é só baixa, olhe que vai atolar.
Pararam. Contra carapanã — olha nuvem — seu Floremundo
levantava o guarda-chuva.
— Então aquele seu Laudelino. Veja só o senhor, veja só o
senhor.
E ouvindo o apito das seis:
— Ah, mas aqui se mora é feio.
Já os sapos fabricavam a noite.
Voltaram em silêncio. Viram outro carro no oitenta e seis, nova
aglomeração, a perna-inchada explicando. Alfredo e Floremundo, no
escuro, espiavam. O carro fez a manobra, atolou-se na esquina.
— Levam o pé do amor-crescido? perguntou o seu Floremundo
numa zombaria triste. Esperaram que o carro se desatolasse. Ouviu-se
um trem. Os dois apanharam o bonde.
Ao descerem na José Pio, D. Brasiliana, num robe de florão,
com o jacamim ao lado, pesava um sal.
[94] — Passearam bem de carro, seu Floremundo? O telefone
às ordens.
No Arcebispado, a família esperou que esperou e foi o seu
espanto: o Arcebispo estava em retiro, por muitos dias.
D. Jovita — pois até aí só ela a filha que falava — então falou:
— Mas as coalhadas?
— As coalhadas, minha senhora?
— O cônego Jesualdo?
— O cônego?
As coalhadas que recebeu. Não mandaram para o retiro?
O sacerdote meneou a cabeça, tomou uma nota. No retrato da
parede, o Papa Benedito se fazia muito atento.
— Nem por um instante, reverendo, ele pode suspender as
orações?
O padre abria os braços numa consternação sem apelo.
— Olhe só que é um só instante, um particular só com ele e só
ele pode me dizer a palavra que tanto quero ouvir.
Nunca falou tanto na cidade, sobretudo num salão de bispo, e
falou brusco, surdamente, quase no ouvido do padre que os atendia
com uma atenção familiar, inclinado, macio de explicações, as mãos
cruzadas, atlético, a mão cabeluda, um tanto beiçudo, observava a
Graziela a quem o reverendo olhava com um repente de cobiça,
reparou o Coronel Braulino, este concordando em tudo, enseiã,
enseiã, corretamente culpado, a passear a barba pelo salão. Bispos e
papas da parede o fitavam, benignos. Benze-se diante das imagens,
tomado de uma Contrição protocolar em que suava muito.
D. Jovita teimava junto do padre:
— Mas as coalhadas?
Voltou-se para a filha:
— Ou aquele descansado, aquele poço do descanso, não
mandou entregar certo e a tempo, hein, Graziela?
53
Apoiada no velho consolo, Graziela respondia, pausando as
palavras, debaixo dos olhos do padre, e de novo o padre, dando à
velha santinhos, beiçudamente explicava, cabeluda mão de
esmurrador, inchando os músculos debaixo da batina, Como se
estivesse remando numa iole do Clube do Remo na Guajará. Ficaram
em silêncio em torno da mesa do Centro sob o olhar dos bispos e dos
papas. Noutra sala, acendeu-se a luz, apagou-se, veio correndo a gata,
desceu [95] a escada com arrebatamento e súplica. O padre cruza e
descruza as mãos, a inclinar-se para a D. Jovita fincada na busca do
desagravo conjugal. Tocou a campainha lá embaixo. Velo um rapaz,
sacristão ou fazendo as vezes de porteiro, cabeça à escovinha, olhou o
padre, murmurou, desceu — passa o tabuleiro de alface e vinagreira
— a gata miava subindo descendo a escada, o rapaz a enxotou para a
rua. O padre chamou o rapaz que não entendia o recado, o padre
impacientou-se, o rapaz desceu. Fez-se um recolhimento em todo o
velho Arcebispado. A família, ali de pé, a modo que ia ficar para
sempre, parte do mobiliário, dos ladrilhos, dos lentos, bispos e papas.
Graziela foi até a janela olhar a rua, olhar a gata que sumiu. Virou-se
para o salão, circulava os olhos até que viessem pousar nas mãos
cabeludas, no beiço do padre. O coronel esperava, barba tranqüila, as
sobrancelhas pacientes. D. Jovita, rígida, na sua roupa dever-a-Deus.
O padre não sabia como despedi-los e os três, como despedir-se. Toca
a campainha lá embaixo, Irrompe lima vara de seminaristas,
escureceu o salão, o Coronel intimidou-se, a D. Jovita estende a mão
ao padre, e este dá a mui para o beijo da Graziela, e os dois, marido e
filha, seguem a senhora pelas escadas do Arcebispado.
D. Graziela trazia no beiço a mão cabeluda, no ouvido os apelos
da gata. D. Jovita, o passo enfurecido, espalhava a sua roupa-de-vera-Deus e as suas iras pelos sobradinhos velhos que acordavam de
repente e se perfilavam à sua passagem, com andorinhas nos beirais.
No reboque, marido e filha, sem trocar palavra, lentos, como se
esperassem — vai desembocar desta esquina — a procissão do
Senhor dos Pessoa. Passavam pela Sé onde o seu Lício, lá dentro,
frente ao altar, usando as velas, lia beatificamente o seu Kroptkine
agora encadernado. A porta da igreja, a velha cafusa, balaio no braço,
tão desejosa de ali entrar, temia entrar e esperava. A família não
conhecia a Mãe Ciana. Bateu bonacheirão o sino de Santo Alexandre.
D. Jovita abriu a bolsa onde guardava as sete cartas e o retrato.
Guardou os santinhos. Parou, a esperar pela filha, olhou por uma
porta de parede grossa que abria fundo para um escuro em que se
entocavam os bicheiros, petrificados atrás da banca. Sala dali um ar
de mofo, presságio e morcego. Os três emparelharam e entram no
largo do Palácio a caminho do escritório do Dr. Gurjel na Manoel
Barata, passando pelo Foro. Era uma tarde de Júri.
[96] — Mamãe, espere, espere. Essa voz... Aí no Júri, mamãe.
É ele mesmo, mamãe. No escritório, não está, que eu sei. Está com a
palavra.
Os três entraram no Palácio da Intendência, na sala térrea, o
Júri, onde bradava o Dr. Gurjel.
Tinha nome no Crime, o tal que era o tal na tribuna,, a quebrar
vidraça e coração de jurado, fulminando a Promotoria. Coronel
Braulino ficou na ponta dos pés a ouvi-lo. E sempre na lapela do
orador o feixe de jasmim lilás. Era o advogado quem sustentava, nas
baixas e altas instâncias, a Questã. D. Jovita, a custo, rompeu o
aperto, entra na sala do Júri e apanhou um, talvez oficial de justiça, e
lhe pediu levasse o recado até lá, até aquele reboar que abalava a sala
quente, à cunha, com aglomeração na rua olhando pelas grades.
— Mas agora, minha senhora? Agora? De todo impossível. Isso
aí enfia pela noite, enfia pela madrugada.
D. Jovita avançou, recuou, chocando-se na barreira de gente e
sobretudo da voz que o possesso despejava, esbracejando, entre o
copo d’água e a pilha dos livros na tribuna. Nisto, no ombro da
senhora, o toque, e os perfumes e o roçagar de roupas e o chocalho
54
dos colares e braceletes, a D. Brasiliana descia da Câmara, em
companhia do Procurador Fiscal da Fazenda e do Porca Prenha.
— Ah, minha senhora, o Dr. Gurjel? Agora de todo impossível.
Está com a palavra. Não é, Coronel? Está com a palavra. É a Defesa
falando, D. Jovita.
Virando-se para a filha, D. Jovita:
— Mas as coalhadas? O poço do descanso mandou certo e a
tempo?
Tentava desviar-se de tal mulher que apresenta à família o
Porca Prenha — quem que não conhece o Coronel? De muito nome
no Foro. Como anda a Questão? — e aquele Procurador Fiscal,
gordurento, de ventarola. A moura, com um doutor de cada lado e de
braço, fazia grande sala.
— A família dele? Mas não sabia? No Mosqueiro.
D. Brasiliana olhou repentino para o Coronel, como a dizer-lhe:
ah, bicho velho, ah, meu barba do Imperador, só a~ minhas coalhadas
não me mandas. Sem perder o ar contrito é culpado, o Coronel ouvia
a Defesa.
— Bem Imagino a quanto já lá vão os honorários do Gurjel,
Coronel, murmurava o Porca Prenha, o olhar ávido.
[97] — Já marcado o casamento da D. Felipa, D. Jovita? indaga
a D. Brasiliana.
— Que faz o Gurjel que não mete um recurso... Ora, comigo,
Coronel...
Uma rajada sacudiu a sala, todos se espremiam na direção da
tribuna de onde despencou o volume do Código Penal, as rajadas
sucediam-se, trovoava a Defesa, o Porca Prenha tentava puxar o
Coronel para o pátio. Um súbito silêncio, a Defesa bebia água. D.
Brasiliana, leque em cima de D. Jovita, insistia no ouvido da senhora:
— Aqui em Belém o enlace ou lá na fazenda? Ela está
comércio, nas compras? Podiam me falar.
D. Jovita lhe fez um vago aceno, na birra de varar de novo o
aperto e chegar até ao pé daquele silêncio; logo reboa a Defesa. O.
Brasiliana recoloca-se na sua altura, torce breve o beiço para aquela
babacuara — babacuara! Empinou-se entre os dois doutores, agora
toda ouvidos, musa da Câmara e do Júri, esperando que a qualquer
minuto o olhar da Defesa colhesse dela a atenuante mais ao feitio e o
sentimento que arrancasse dos jurados a absolvição. A mesa, no
centro, chocando a sentença, sob as rajadas da Defesa. Os jurados
suavam, rostos pingando, pareciam fumegantes. No estrado, na
cadeira de espaldar, embuçado na toga e na irremovibilidade, o Juiz
cochilava, com o Cristo na parede cai-não-cai rodeado de osga e
mofo. E aqui entre os dois praças de cáqui desbotado e puído, o réu:
matou um no Murutucu e fazia ali o Dr. Gurjel se cobrir de glória rio
Crime. Agitando as mangas da toga e sua desatenção à Defesa,
afrouxando a gola, levantava-se a Promotoria para o café e tomar
fresco.
O. Jovita veio arfar um pouco na porta do Foro, seguida pela D.
Brasiliana, deixando o Coronel preso à Defesa. Graziela meio
aturdida, Pai e filha embaraçavam-se à procura de D. Jovita que aqui
fora parecia sufocada. A voz da Defesa escoava-se na praça. Pai e
filha puderam respirar, alcançando a senhora. Do ponto dos
automóveis, correram os choferes para o Coronel, disputando a
corrida. O Coronel despachou-os, D. Brasiliana, como pessoa do
Foro, intima do Legislativo e do Judiciário, conduzia a D. Jovita até a
esquina, acenando com o leque para os dois, o Porca Prenha e o
Procurador Fiscal, que ficavam à porta do Palácio.
[98] — Aqui vos deixo,. disse a O. Brasiliana já ao encontro do
Mendo, um que escrevia revistas para a festa de Nazaré, agora os dois
num longo abraço.
— Mas, Mendo! Me andavas falecido?
E de braço com o Mendo, leque no ar:
— Telefone às ordens, Coronel, às ordens, D. Jovita,
55
D. Graziela.
O Coronel agradecia, inclinado, chapéu na mão, querendo ainda
escutar a Defesa, só pôde escutar:
— Mendo, meu filho, ora me deixa fazer um papel na tua
revista deste ano, negro.
Já lá estavam na calçada o Porca Prenha e o Procurador Fiscal à
espera da vistosa. Coronel Braulino seguia mulher e filha, apetece
uma garapa no Batista, a mulher: não. O nosso Imperador ia apanhar
o bonde Jurunas, a filha o retém pelo braço:
— Que é isso, papai? O nosso é o Circular.
D. Jovita distanciou-se, carregada de suas afrontas, só,
sustentando o olhar contra os olhares do bonde que parou com um
jornaleiro gritando no estribo. Veio o Circular. Desceram na esquina
da Dois de Dezembro com a Gentil. Passava a carroça da Vacaria
Aurora e revoavam os passarinhos sobre o quintal das fruteiras
proibidas, defronte do Grupo Escolar, No portão do ex-Governador, a
empregada os acolheu:
— Ah a família? Em Peixe Boi. Cedinho, hoje, sim, senhora.
— Sabe se recebeu as coalhadas?
— Que fosse na mea mão, não, senhora. Pode que tenha sido
com a outra moa colega. Com licença, sim?
Entrou: Anésia! Anésia! Onde tu estás? Anésia? ó aquela
menina!
Sumiu-se pelos fundos, voltou correndo com um pinto pelado
na mão.
— Ah a outra empregada saiu. Até que nem me lembrava que
tinha saído. Ela foi no canto e já vem. Desculpe, sim?
— E do Peixe Boi, quando?
— Ah isso é só eles lá, a senhora sabe... Quando, não disseram.
Pode que a outra empregada de mais idade na família tenha
conhecimento. Ela foi ali já volta, sim?
Recolhido na sua Granja, no Peixe Boi, o ex-Governador. O
Coronel Braulino dirigiu a barba para os lados de São Brás [99] de
onde o trem saía rumo de Peixe Boi. Também em Peixe Boi tem
coalhada, o ar corre fama, as laranjas um mel, e o apito do trem soa,
na Granja, já tão antigo, Com as sete cartas na bolsa e as trevas do seu
rosto, D. Jovita olhava o trilho do trem. O Coronel descobria no
jardim do seu compadre um pé de jamaracaru. Já o pintinho pelado
beliscava as violetas. E o pavão? Também tinha o pavão. Ficava pela
manhã em cima do muro. Pavões de Portugal. Era o pavão no muro e
o bronze Amphytrite no meio da sala, recordando a visita do Virgínia
a Belém, o iate dos milionários americanos em passeio pela
Amazônia o dono do Virgínia, o Mr. Benedict, da E. C. Benedict —
N. Y., na hora do champanhe em Palácio, oferece o bronze ao
Governador e à esposa de S. Excia. um álbum de vistas de Nova
York, tão folheado pelas visitantes quando a família franqueia a sala,
abrindo as três janelas envidraçadas do palacete. E na coluna aquele
estojo, que o Lampreia me deu a custo, como dizia o ex-Governador,
íntimo do embaixador de Portugal, também visitante do Pará.
Tocaram os sinos da Basílica.
— Pois já-já num trem pra Peixe Boi, ah!
— Agora, mamãe?
— Quem me proíbe?
— Ah logo agora hoje... Não tem trem. Cadê trem? acudia a
empregada indo e vindo com o pé na folha do portão que rangia.
— Trem nem depois de amanhã. A máquina quebrou.
Os três ali em pé, em silêncio, na calçada do .ex-Governador.
— E o pavão? Também em Peixe Boi? indagou o Coronel com
a barba nos ferros do gradil, espiando o muro.
— Ah morreu. Fazendo mês, O que tem lá pelos fundos é só
um, um papa-mosca.
— E o dinamarquês? Na corrente?
— Então não? Deus o livre!
56
O Coronel olhava de soslaio a perna da cabocla que ia e vinha
com a folha do portão rangedor, o pinto sumia pelo canteiro, dos
fundos um cantar de picota. Chegava a Anésia trazendo o bicho que
deu. Trem? A máquina quebrou-se, E mão em concha no ouvido da
colega:
— Pois o burro, mea mana!
Chuviscou. O Coronel abriu o guarda-chuva para a Graziela
cobrir a mãe, esta a caminho do canto, os três se abrigaram na
mercearia.
Que chegou no largo de Nazaré, D. Jovita se emparelhou com o
marido num regougo:
— Mas que é já que tu daqui vai até lá comigo ah tu vai, seu
sem...
Afastou-se, a modo sufocada, balançou a bolsa, o marido virase, vai falar, ela lhe deu as costas.
— E é já. Seu sem, sem!
Numa tranqüila submissão, sem ar de vexame, o Coronel cobria
a barba com a mão direita, como para protegê-la, e escutando: Seu
Sem, Sem! Graziela fingia esperar o bonde, entregue àquela mão
cabeluda, ao beiço, grosso, no Arcebispado, corria-lhe pela espinha
aquele miado degraus abaixo e logo outra voz, que reconheceu na
Defesa, agora tão reboante, mas tão abafada às três da tarde na José
Pio, faz um ano, o doutor entrando, de jasmim lilás na lapela: tem
noticia do seu pai? Está só? Sozinha? Preciso juntar aos autos um
documento que só o tabelião de Cachoeira. Só o tabelião de
Cachoeira. Você está só? Só? A prima? O ginasiano? Só? Só? de
pasta, o cacho de jasmim lilás e uni bigode sobre ela, de repente
apanhada bem debaixo do lustre — só? — de repente debaixo do
cortinado. Mas doutor.. mas doutor.
— Mamãe, vamos de bonde?
D. Jovita não respondia ou não escutava, O velho, com o olhar
nas torres da Basílica, um pouco a crer, quem sabe, que a sua barba
lembrava aquele algodão das sumaumeiras avós de Nazaré, ali
devotadas ao largo e à Nossa Senhora. Da garapeira, que passava a
rodar, o cheiro de garapa azeda. Um caldo, o Coronel pediu, com uma
velha saudade, vendo lá no Itacuã uns tão antigos canaviais com os
escravos no meio, o engenho moendo à força d’água, foi um pouco
antes da Abolição. Hoje o canavial só é dentro da casa-grande:
aquelas moças amadurecendo nas janelas, à espera que o rio lhes
traga marido, a avó delas se embalando: espero em Deus que depois
de casadas, o rio carregue pro fundo este casarão comigo. Ouve o
resmungo: seu Sem. Sem. A descer das sumaumeiras, dos coretos,
bonde passando, garapeira moendo. Seu Sem. Sem. Roxa, obstinada,
solitária, O. Jovita mirava o tempo.
— Bem azedinho esse seu caldo. Ë de cana? Me tempere ele
com açúcar, o Coronel fez sua graça e olhou, precavido, para a
mulher de venta em cima. Respingou garapa pela barba. Seu Sem.
Sem. Muita banda ouviu nesses coretos, incluindo aquelazinha da
Vigia, a banda vigilenga. Só em [101] agos|to, no lugar de costume, o
circo dos cavalinhos. Agosto. Longe está. Mendo, na sua revista do
ano, vai dar um papel àquela? Quis aproximar-se da D. Jovita, dizerlhe: Jovita, mas Jovita. Desatreveu-se. A máquina não quebrou? Lá
está na porta da farmácia o seu Godinho fazendo sinais para defronte
onde entre bilhetes de loteria, pendem máscaras e rolos de serpentina.
O. Jovita distancia-se, deu com o velho lambe-lambe e sua máquina e
suas mortalhas. Uma fotografia? Uma fotografia? D. Jovita ferrou no
velho a sua raiva, foi passando. Graziela esperava com a mão do
padre no colo, o beiço do padre, inchando: as coalhadas? as
coalhadas? Contemplando a Basílica, o nosso Imperador tirou o
chapéu. Meu velho, à vontade, diziam as sumaumeiras.
— Mamãe, de bonde?
D. Jovita abriu a bolsa, tirou o lenço, enxugou o rosto, fez um
bico, restou imóvel entre a Basílica e o marido.
— Mamãe...
57
— Cala que é, a tua boca, rapariga. Chama.
— O bonde? O bonde, mamãe?
— Tu já viste então Se chamar bonde? Variaste?
Graziela chamou o carro. O pai abriu a portinhola para e. Jovita
que cuspiu antes de entrar.
— Marco, diz a Graziela.
D. Dudu apanha o Alfredo no alpendre, os dois no quintal,
sumiram pelo escuro.
— Sujeito mais espora! Pois meu dinheiro de costura, renda de
bilro e croché, uma economia pro conserto da casa do Curro!
Deu a volta pelo escuro, quebrou um talo de mamoeiro,
andando mal nas suas botas do comércio, botas que há um ano não
calçava e calçou a pedido da Felipa para as compras do enxoval.
— Pois a senhora dona Felipa, noutra viagem, me tira da mala o
meu pé de meia, emprestou ao lunfa a troco de uma nota disque
promissória. Eu vendo, vendo o meu dinheiro sair: este? Adeus.
Daquele escrivão de policia — que ele é escrivão de polícia — que se
podia esperar senão a velhacada? Desfechei hoje o gatilho nos
predicados dele.
Alfredo ouvia o cochichar dela no escuro, a proeza irradiando
do olhar dela.
— Com quem é traquejado, traquejo e meio. Nem suspeitou que
uma qualquer cose-manga de camisa e barguilha de homem ia lhe
abotoar o peito, ali na venta dos obedientes [102] dele. Juízo me
cutucou por dentro: é hoje, Dudu o teu dia, que vais abecar
semelhante autoridade, está de plantão e permanência, mandando
ladrão de galinha pra solitária. Fui.
Arregaçou as mangas:
— Já eu danada, danada com os termos — quem esperava? —
da Felipa no comércio, já com a canela da perna me doendo, falei:
Felipa, tu tem paciência, fizeste o teu papel, agora é o meu, quero
fazer aqui um interrogamento a meu jeito, agora fica aizinho na porta
da polícia e espera. Senão, vem, serve de testemunha. Não? Pois
espera. Entrei. Fui que fui entrando, no que o meu pé subia, me subia
a ira, me subia um asco, subi, me aparece um soldado. E eu: seu
soldado, olhe, o senhor dá licença para se for preciso dar na Cara
daquele seu superior? O superior tinha se levantado do seu plantão, já
com a minha primeira bala lhe queimando a orelha, a sala assim de
partes, culpados e queixosos, ele ainda de caneta na mão, deu um
passo mostrando o dente para o meu lado: mas muito bem aparecida,
O. Dudu. Continuou? Lhe tapando a boca, eu já desembainhei a
minha língua.
Arregaçou mais as mangas, puxou o cós.
— Cobrar não era, aquele-menino, que eu sabia nunca mais
reaver o que tanto poupei de minha costura, bilro e agulha e meu
dormir. Era só pra lhe dizer ali na bucha. Cuspi no chão e disse: esta é
tua mãe e aqui a minha, cospe e pisa. Ah que o sangue do escrivão
escoou foi tudo, a cara transpirou verde, teve um soldado que virou a
costa, os outros, mede o tamanho do espanto deles, e eu me finquei na
frente do etc e tal, com licença do nome, coberto de merda. Pois meu
cobrinho! Era pra consertar a barraca do Curro, se bem que aquele
infeliz telhado cubra duas que só são janela e rua. Comprar um
terreninho só meu onde finque um esteio de que se diga: esse é da
Dudu. E te dar os materiais do Ginásio, continuar o teu francês, o que
precisares.
— Ora, D. Dudu!
— Depois teu pai paga, aquele-menino! Ou depois quando te
formares, Só sei que foi na sala do escrivão o trinhinlin e eu
descascando. Adeus foi meu boró tão um a um juntado, quem encheu
o papo não foi esta galinha. Mas que o bicho ouviu, que ouviu, ouviu.
O que nunca esperava de ouvir, ouviu, Inchei a orelha dele, no que ele
podia ter de mais sagrado escarrei dentro. Foi que nem um estampido.
Ali na fuça dos soldados, das partes, o canalha, o fígado pela boca,
numa amarelidão! A língua metida no rabo, põe no juízo o que foi.
58
[103] Felipa lá na porta esperando, nariz torcido para o
comércio dos enxovais. Então que ela, pela demora, me imaginando
já no xilindró, entrou: chega, já chega, Dudu, ficando um tanto tarde,
disse. Sai mas de peito lavado.
— E o cobre, adeus, D. Dudu?
— Não sai de peito lavado? Não sal com o nome do sujeito
debaixo da sola do meu sapato? Não desfechei em cima dos
predicados dele o meu gatilho? Os praças e as partes não ficaram
sabendo quem era a vasilha? Com o que me devia, compre creolina
pros podres dele. Compre o urubu que vá acabar de lhe comer o resto
do fígado. Prefiro os amigos na praça. Já disse também que o meu
enxoval, 1á encomendei. O noivo casa comigo no rumo do Santa
Isabel. A lua-de-mel debaixo dos sete palmos.
— E D. Felipa? Que diz? Fica por isso?
— As primas? São finas. Já inteirou um ano.
D. Dudu puxou um fôlego no escuro. Olhou para o alpendre: a
cabeça da Graziela. Na escada, alto, poço do descanso, o seu
Floremundo pitava. Falando mais baixo, a costureira, como
apaziguada, foi para mais junto de Alfredo.
— Achas que te contei uma proeza. De mim uma tal ação se
espera. Mas tira uma linha da Felipa esta santa tarde no comércio,
tira.
D. Dudu fez um ar malino em roda de Alfredo, esmagando caco
de vidro e formiga com as suas botas de solteirona. Pois a Felipa? Os
termos da Felipa no comércio! o proceder dela numa loja! A surpresa,
o espanto, a impaciência, o vexame, a raiva então que Felipa foi lhe
dando, entra, sai, sai, entra, na modista, te desconheço, criatura donde
saiu essa? Era uma vez a Felipa do costuminho, a de juízo tão
sentado, a nem carne nem peixe, a sempre come-mosca, aquela abana
fogão, a fosse o que Deus quisesse, quem esperava a Felipa de
aliança, a de uma hora pra outra noiva, sem mais pra quê, casa este
mês, carregando o noivado por cima do comércio? Pois loja nem
uma!
— Loja nem uma?
— Nem! Nem uma!
— Não entrou em nem uma?
—
Entrou em todas, uma a uma e nem uma!
D. Dudu esperou de mão na ilharga, os dentes no escuro. Lá no
alpendre os passos de Graziela. De onde vinha aquela voz de
gramofone? Alfredo, quieto, meio desfeito no escurume; deu um
ventinho nos açaizeiros, tocou o sino de São [104] Rai|mundo. D.
Dudu veio de mão no nariz dele: conhecia a Felipa de Cor e salteado,
direito e avesso, correndo os anos. Felipa Boaventura? A mais sem
nem uma ilusão neste mundo. Das vaidades, dos luxos, da ambição,
Felipa a légua e meia. Foi enfiar a aliança, vamos comprar o enxoval,
entra na primeira loja... Eras, Felipa! Tu que nunca tiveste ou disseste
tua preferência. Tu que nunca escolheste, que nunca te coube
escolher, nada te cheirava nem fedia. De salão e passeio nunca foste,
figurino nem olhavas, fosse um sobejo a parte que te cabia pegavas, e
agora, rapariga? Durante o bonde, ias tão no que for será, sem
nenhuma exigência, ir por ir era o teu ar. E agora, rapariga? Pra quem
é, bacalhau já não basta? Loja por loja, modista a modista, esvazia
prateleira, atocha o balcão, saindo, entrando, do lado esquerdo, do
lado direito, que nem fiscal cobrando, que nem santo tirando esmola,
uai, que é que tu queres, descontente? Que é que te apetece, sua
fastiosa? Tudo, seja o fora de uso, seja a última novidade, nunca é o
que procuras? Nada nada que te cubra da prata e do ouro que só tens
nas minas? Nada que te faça ao menos dizer: vá lá, por já ser tão
tarde, a Dudu já cansou a canela, Só erazinho axi... que uso isso, axi,
que vou me cobrir com isso. Este semelhante linho? Este filó? Esta
cambraia? Este cetim? Mirava, remirava, apalpa, só transpira enjôo,
mas, Figura! Onde foi buscar tão depressa tão caprichado tamanho
fino conhecimento, só presta o que não tem? Veja o esmero em não se
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agradar de nada, veja a experiente, olhe a aborrecida, o desagrado em
pessoa, soprando o seu fastio em cima dos caixeiros, coitados.
Asneira, Dudu, que aqui, esta, eras! vê lá, nem de graça, com pouco
vomito. A insatisfeita que ficou de repente, aquele-menino! Ontem o
tiro na macaca e agora em Belém — em Belém! — onde o enxoval
para a princesa?
D. Dudu se agitava entre as folhagens. Alfredo seguia no escuro
aquela busca pelo comércio e casas de modas, João Alfredo, Santo
Antônio, subiram na Madame Suzy, foram até a Peruana (porta da
frente os manequins de corte e chapéus, pelos fundos o reposteiro do
randevu) e D. Felipa revirando o beiço e D. Felipa retorcendo o nariz,
e tudo — o mais na moda, o mais bem acabado, o mais no trinque —
aborrece, reprova, desdenha, refugo, detesta, condena, devolve, joga
de lado, só falta cuspir em cima, tão incontentada que com o tanto
escolher nunca escolhia. Pensa que alteava a voz? A mesminha voz
cansada, a mesma sossegada e parda feiúra, o [105] mesmo ombro
encolhido. Da outra, a inesperada, só era o franzir da testa, e o beiço,
e o nariz, e sem um ar de se lazer rogada e requestada. Aquela Felipa
metida no canto? Aquela de debaixo do soalho cerzindo as velhas
anáguas de pano-da-américa? Aquela que fazia saia de saco de trigo?
Aquela limpando tripa de porco no jirau? A que se agradava — qualquer uma servia — com as chitinhas de ramagem do Mercado de
Ferro ou do tequeteque. Toma este trancelim de 1$500 e aceitando
como se aceitasse um brilhante? A tão sem sal, a tão tia bimba! Vai
pensando! Saía dela uma, uma, tanto, tempo oculta, reservada para
esta ocasião, prendada em fazer desfeita, só ela e mais ninguém no
cobiçar o melhor. Que cravo branco vai preferir, que alecrim, pra
formar o seu buquê? Então, Felipa, criatura de Deus, agora só na
França. O teu enxoval só na França, filha do Rei. Manda teu pai pedir
no ex-Governador, que é casado com uma artista, que te encomende o
traje lá na França.
Alfredo agachou-se no escuro.
— Só na França, D. Dudu?
— Tu que aprendes francês, tu me entendes. A Felipa? Pegou o
bastão, viu-se a viloa. Quem te disse que é a mesma?
— Onde é esse gramofone tocando, D. Dudu? É um fox.
— É da casa das Ouro, lá atrás, aquele-menino. Um Ouro
navega para a América.
Alheia ao fox, D. Dudu espiava o alpendre, repetindo as
peripécias da prima. Casamento, não veio a tempo, adeus. Mas o teu,
Felipa, veio, já criando caraca, sim, mas veio, valendo os vinte paus
que o teu noivo precisa para não quebrar o balcão, porém veio. Pois te
agarra, mas te agarra antes que o forasteiro, te tomando os vinte, te
deixe esperando sentada. Faz da sarrapilheira o teu véu, da corda do
balde a tua grinalda, e o sim berra três vezes ao Juiz, depressa, e estás
casada, mulher. Não vai nada, não vai nada, era o que só escorria da
boca da Felipa no correr as lojas, no sair das modistas, cada seda! pois
nem pra limpar o pé servia, olhe esta, quem sabe aquela, desta a
senhora do Moreira Gomes levou um corte, nem esta luva, Felipa? No
atelier, então! Folheia o primeiro figurino, o segundo, faz desfilar os
moldes, mas olhe que este figurino chegou ontem, senhorinha! Senhorinha! Felipa? Quais... Apanha o outro, quem te disse? As modistas, a
mão na cabeça, o rosto entre as mãos, pasmas. Até que principiaram a
ser naquela feiúra impertinente a noiva Ideal que desejariam vestir e
assim, por brio, deboche e pena, [106] tudo faziam por agradar ou
vergar a D. Felipa, desespero delas, perdido o tempo e a freguesa.
Nem no Paris na América nem na Maison Blanche. Nem uma toalha
uma anágua uma liga. A noiva D. Felipa saia bocejando da João
Alfredo, os enxovais atrás dela pela sarjeta. D. Dudu não escondia
mais o espanto, a inexplicação; na Carrapatoso, um sapato que ela
dissesse: bem, este, vá lá. Meias? Onde? Nem uma fita. A tudo, via,
mede o tamanho do beiço, repara no nariz. De voz cansada, o olhar
miudinho, só dizendo: não. Não gosto, não gosto, já as portas se
fechavam, já as lojas, se telefonavam, Belém não tinha enxoval para a
60
D. Felipa. D. Felipa queria um que vingasse a longa espera? Um
enxoval que não tinha na praça. Nunca o comércio trabalhou tanto,
puxou pelos sortimentos, caprichando nas gentilezas, oferecendo os
últimos gritos e em vão para servir à noiva e a noiva nem um grampo.
Criatura, chega de romaria. O navio inglês está no porto. Te apressa e
embarca, parte e corre as Europas atrás de enxoval do teu agrado.
— Até me fio, por isso, que a Felipa desmanche.
— Perde os vinte pacotes?
— Enxoval tem que preste? Tem figurino? Costureira do gosto
dela?
— Então só a senhora, D. Dudu. Faça, então, a senhora.
— Meu filho, não acabei de te contar, não me atora a palavra.
— Agora só a senhora.
— Menino, costurar, costuro mas pra homem e algum enxoval
que tenho feito mal e porcamente fiz com pano da praça para noiva
sem titi de galinha. Noiva que vesti foi sem mimo. Fosse um saco, um
balão, um alinhavado, a sem mimo vestia.
— Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei te
contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá!
— D. Dudu, a caçula tinha mimo?
— D. Dudu ia falar, gaguejou, e Alfredo até adivinhava: quem
sabe a D. Felipa usando os dengos de Luciana? Aquela, sim. Fosse
com ela, dava gosto acompanhá-la, a ouvir da acompanhada: esta
gaze, não quero. Deste cretone não gosto. Nunca tem o que prefiro.
Chegava, mas em Felipa, a vez de Luciana? Não entrou pela noiva
incontentável um sopro da escorraçada? Escolhe, escolhe, mana
Felipa, o enxoval que era o meu, que só eu podia vestir.
— Mas, D. Dudu, minha prima da Rui Barbosa costura para as
de São Jerônimo. Ornamenta o Palace no carnaval. Quem sabe...
[107]
— D. Dudu
Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor?
entra na Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana
abrindo as arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta
me dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não
encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa,
tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de
marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada
bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé
dela e tudo ao pé dela virando lixo.
Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo:
Não estou eu com o meu noivado co4ll as humanidades imitando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela:
— Mas, mamãe, então quef fe a paciência, então quebre a
paciência. A máquina não quebrou? Lá no retiro o Bispo está rezando
por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia?
Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou:
Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espreguiçadeira, deitou-se, soltando um alívio. Lá dentro foi que foi um
barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no
alpendre a D. Graziela.
— Mamãe, já no quarto perdendo a cabeça.
— Deixa, deixa. Antes quebrar que...
— Mas também papai, o senhor que crie juízo.
— Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantandose. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal.
— Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um
pouco de carmelitana ao menos.
[107] — Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei de
te contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá! não entra na
Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana abrindo as
arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta me
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dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não
encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa,
tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de
marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada
bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé
dela e tudo ao pé dela virando lixo.
Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo:
Não estou eu com o meu noivado com as humanidades, imitando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela:
— Mas, mamãe, então quer e a paciência, então quebre a
paciência. A máquina não quebrou? Lã no retiro o Bispo está rezando
por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia?
Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou:
Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espreguiçadeira, deitou-se, soltando um alivio. Lá dentro foi que foi um
barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no
alpendre a D. Graziela.
— Mamãe, lá no quarto perdendo a cabeça.
— Deixa, deixa. Antes quebrar que...
— Mas também papai, o senhor que crie juízo.
— Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantandose. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal.
— Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um
pouco de carmelitana ao menos.
— Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor?
O velho espiou pela cerca, a barba acesa no escuro,
— Tudo fiz para que ela não viajasse, não saísse do sossego
dela. Já não basta? Já não basta? Já não basta o luto da família?
— Luto? indagou Alfredo, sem conter-se.
O velho não respondeu, subindo para o alpendre.
D. Dudu e Alfredo entraram. Mas as rosas? Alfredo procurava.
D. Dudu batia na porta do quarto onde a D. Felipa se fechava.
Alfredo: quem me atirou as rosas nesse lixo? D. Graziela, no quarto
da mãe, apanhava as coisas partidas. D. Dudu ia dormir no Curro.
Cochichou:
[108] — Nem os sonhos no sono vão contentar aquela insatisfeita. Nem no sono.
Nem no sono, repetia Alfredo, metendo as rosas no bolso.
D. Dudu voltou ao quarto:
— Felipa, já vou. Amanhã, de novo?
Entrou. D. Felipa embalava-se, com um emplasto na cabeça.
Embaixo da rede, recortes de jornais com leilões marcados a tinta.
Apaga e luz, é o fio de voz da noiva.
Chegava o noivo, recebido por D. Graziela que o levou à sala,
acendendo o lustre, abrindo as janelas. Chamou o Alfredo na varanda:
— Me faça um instantinho sala para o seu Severiano, sim? É só
o tempo de chamar a Felipa lá no quarto. Obrigadinho.
Alfredo foi à janela: lá embaixo, no vizinho, o jasmineiro
aparava o clarão da sala, Só via o pé da oculta, aquela, que logo
recolheu, bateu o portão, o jasmineiro borrifou. Três pirralhos, lá fora,
bem em frente, ficavam que ficavam olhando o lustre. Veio a D.
Graziela:
— Mas que estão fazendo aí? Nunca viram? Sumiço! Sumiço!
Alfredo cismou: pertenciam ao bando dos fundos? vá ver vem
pedra. D. Graziela:
— Seu Severiano, Felipa manda lhe dizer que está com um
principio de ezipla. Que hoje falar com o senhor ela não pode. Mas
espere o café, seu Severiano, que tanta pressa? Espere o café, é que é,
a ezipla não pega, seu Severiano, espere, sim?
Seu Severiano, pálido, cai-lhe o guarda-chuva, abate-se na
cadeira de embalo, logo se levanta, vai à janela, tossindo, volta-se,
senta-se, fica de pé, estalando os dedos, dirige-se ao corredor,
retrocede:
— Ezipla? Essa agora! Essa agora!
62
Alfredo apalpava as rosas no bolso; no silêncio, lá no quarto, a
ezipla da D. Felipa. D. Graziela se retira um momento e volta:
— Ela lhe mandou dizer pro senhor desculpar, que é a ezipla.
Se não fosse... Só mesmo amanhã.
— Mas amanhã? Amanhã?
D. Graziela sorria agradável, bem empoada, voz benevolente, O
Coronel acode, suspensórios arriados, barba acolhedora.
[109] — Mas o senhor se sente, se sente, está em casa. Chamaste a tua irmã, Graziela?
— Já, papai. Mas é que é a ezipla.
— Então, seu Severiano, se sente mais um bocadinho. Mas o
senhor... se sentindo mal?
Não, não... É. É. É isto, é isto!
— Um pingo de carmelitana pra ele, Graziela, que alivia.
Chegamos não faz pouco do comércio. Ah que o tempo, em Belém,
voa.
O noivo ofegava, bebeu a carmelitana, o lenço pelo rosto.
Arriou-se na cadeira de balanço. Alfredo foi até a porta da O. Felipa,
escutou o embalo, desceu para a porta da rua. Lá do meio do largo os
três pirralhos espiando.
Seu Severiano, então deixe, me deixe ver, concordou a
D. Graziela voltando ao quarto da irmã.
Veio com um envelope de ofício, timbre da Intendência
Municipal de Cachoeira.
Alfredo, na calçada, olhava para o jasmineiro, imaginou
Luciana doutro lado contemplando a casa, o lustre aceso em que ardia
a sua ausência. Grau! o sapo atirado na sala pelos pirralhos, seu
Severiano deu um pulo, o sapo saltando para a alcova — joga sal!
joga sal! — mandava a D. Graziela, caçado debaixo do leito. Rindo.
D. Dudu se despedia. Alfredo quer acompanhá-la, mudar-se de uma
vez, cochichando:
—Ficar aqui? D. Graziela só me pegar dormindo é já que me
joga sal,
— Mas aquele-menino! Eu sã te tiro uma linha. O jantar ai te
espera. Graziela matou o sapo com sal?
Alfredo olhava longe para o chalé cercado de água debaixo da
chuva, o silêncio da mãe em Cachoeira. Na saleta, sozinho, com o
velho candeeiro diminuído, o pai bem se embalando; pela porta da
frente, saltando da noite entra um cururu, se esconde atrás da
chapeleira. — Amélia, Amélia, faz café que tem visita, mulher.
— Que que te deu neste repente, menino, que te turvou a
cabeça? Te doendo o sal no sapo? Não digo? Não digo? lu que tens é
verme.
Curumim do chalé, o pé n’água, Alfredo não respondia.
— Te falta é um bom suco de mastruço, esmorecido.
— D. Dudu, então de novo na sua barraca, hein?
— Emenda a língua, rapaz. Barraca da minha mãe, é dela. Meu,
só é o lugar, e isso por uns anos, lá no Santa Isabel onde vai ser meu
casamento. E a barraca, lá no Curro, sem dono [110] está uma hora
dessa. Sozinha-sozinha que está, os ratos lavram a escritura de posse.
As duas Comas na rua espremendo a cana, e a avó atrás de recolher o
bagaço. Pensa que não sei que ela foi no hospital ver quem ali nunca
pôs o pé? Pensa? Onde a tua cabeça, quem anda te aluando?
Alfredo olhava a mãe se mudando para aquela barraquinha da
Bernal do Couto que tanto desejou; ali debaixo de suas palhas, o filho
chegando do Ginásio, a jogar os livros por cima de tudo, senhor do
seu palácio. D. Dudu deu um passo atrás, espichando o rosto:
— E de toda a romaria, porta do Bispo, porta do advogado,
porta de Sua Excia. o Ex, a coronel ultrajada, o que lhe sobra é
encastoar as sete cartas e botar no caixilho a imagem da rival. Ela, na
fazenda, o trono é dela. Aqui, na cidade, é do marido. Aquele barbasonsa!
— Nossa Senhora está pondo uma pedra em cima, D. Dudu.
63
A costureira fez um ar de ralho, engoliu o riso. Alguém bateu o
portão do jasmineiro, passou um carrinho de bucho, nisto a sala
apaga-se, fecham as janelas, escurece aqui embaixo o jasmineiro,
vinha o noivo entre o Coronel e a D. Graziela. D. Dudu fugia.
— Meu tio, na mesa. Meu tio, venha. Alfredo, comer. Tio
Floremundo.
Era a Nini no corredor, trouxa na mão, espevitada para seguir a
tia. Alfredo subiu, subiu o pai e a filha. D. Graziela — ia se
esquecendo — volta para pôr a tranca pesada na porta. Aqueles
sarapecas da Penitenciária? Receava, sim. Podiam reinar, uma noite.
Sonho dela era, depois das nove, eletrificar a casa.
— Eles só de lá, só de lá das janelas, um monte deles, sempre
espiando. Uma noite, uma noite! Não viu o sapo que atiraram?
— Ande, seu Alfredo, passarzinho mal neste de-comer, que já
está bem tarde, com este tempo voando, disse o Coronel Braulino
numa voz resignada, e chamou:
— Jovita, Jovita, jantar, criatura, que senão esfria.
— Papai, cale essa sua boca. Não chame, que é pior.
— Nini, me chama a Jovita, me faz este favor.
— Papai!
— Me passa então aquele arroz, moa filha. Se sirva, seu
Alfredo. O senhor e o Floremundo se distraíram?
— Andamos pela tarde, foi.
[111] — Floremundo visitou os lázaros? Visitou os fracos do
pulmão?
— Hora não tivemos, meu pai. Foi só o tempo de uma espiada
aqui, ali, não se foi longe. Quando se viu, noite era.
Olhe o seu passeio lá, meu amigo, lá na nossa fazenda.
Jovita faz questão.
— Muita coalhada?
— Enseiã, enseiã, Jovita é a mãe das coalhadas.
— Mas papai!
D. Graziela levantou-se, apagou a luz do corredor, a luz da
Varanda, a luz do alpendre.
— Tenho que espalhar caco de garrafa aí rente do gradil e
espetar as pontas contra os pés de veludo. É preciso. Este ano dando
ladrão que é safra. Dali, de lá, daquelas janelas, só estão de espia.
Alfredo olhava o monte de flagelados assaltando a casa, com a
Bina no meio, o colo atulhado de cartas de amor. Era preciso ver a
velha parteira, caçar as duas órfãs pelos quartos de defunto. Consultar
a prima da Rui Barbosa sobre o enxoval da D. Felipa. Seu
Floremundo veio se aproximando, cheirava a banho, tomou a bença
do pai. Delabençoe. Delabençoe.
— Vai primeiro chamar tua mãe, Floremundo Que está em
tempo dela suspender a tanta dieta.
Seu Floremundo foi ao quarto da mãe, foi ao quarto da D.
Felipa. O silêncio dos dois quartos cobriu o corredor, a cozinha, a
mesa em que jantavam, terrina de sopa fumegante, recendia no pires o
molho de pimenta de cheiro Seu Floremundo sentou-se, comia triste,
só, a escutar agora o gramofone vizinho que se coava pelos açaizeiros
adormecidos. A boca do fogão, D. Graziela assava a lingüiça. Das
brasas salta o beiço reverendo, aquela mão cabeluda. Vira a lingüiça e
da lingüiça tostando pula o doutor do Júri.
— Aquele envelope Graziela? pergunta o pai, a mão na barba.
— Felipa, respondeu a filha, a cara suando, a avermelhada pelas
brasas.
— Ia no envelope?
— Onde então mais?
— O ajustado?
— Ou o senhor queria que não fosse?
— E que ezipla é essa?
[112] — Ezipla de noivado, papai, ora, papai, o senhor com os
seus assados, cale que é essa sua boca.
64
O remédio é levantar-se, diz Alfredo a si mesmo, sentindo-se
demais na mesa. O. Graziela com a lingüiça no garfo. As pedras
atiradas no quintal se cobriam de formiga. Desfolhou as rosas no
bolso. D. Graziela com a lingüiça no garfo. Ou é o sapo salgado?
— Servido, Alfredo?
Alfredo olhou para a barba do Coronel Braulino, a barba
restituía-se, dona da mesa, do seu dono. Lá no quarto a D. Jovita
escarrava grosso.
— Seu Alfredo, amanhã um obséquio de sua parte eu queria lhe
pedir, não vá reparando, disse o seu Floremundo, a colher na mão.
Alfredo ia saindo, o Coronel chamou-o:
— Me faça, me faça o favor, me leve esta encomenda lá no
Curro, sim?
— Pra sua irmã?
— Sendo que esta cédula é pras ervas que ela sabe.
Abriu a porta do quarto; D. Jovita, cabelo solto, as iras na. boca
roxa, as cartas na mão e os pedaços do retrato pele soalho.
— As tuas ervas! As tuas ervas!
D. Graziela acudiu, a velha avançou para o alpendre.
Entrou na porta-e-janela do Curro. D. Dudu na velha máquina.
Subindo da cozinha, sabe Deus, gemendo nas juntas, a velha parteira
o abençoou, apoiada a um cabo de vassoura. A marrequinha cantava.
O Santo Antônio, o São Francisco, a Nossa Senhora do Rosário, na
mesa de jantar, junto dos pratos e do bule, se distraíam com as
formigas que cobriam o açúcar destampado.
— As ervas dele sim, vou ver. Dalila não vai por via do serviço
dela.
— A senhora viu, falou com ela no hospital, mamãe?
— Como não havera de falar com era? Se eu fui lá. No que
entrei, ela passava com a bandeja de um doente, o tempo só de me
pedir a bença e eu: vai, vai, mea netinha, não deixa esfriar a comida
do doente.
D. Dudu, bem na luz da lamparina, olhou para o Alfredo, rodou
a máquina ligeiro, cantarolou, parou, cortou a linha nos dentes, o
vento apaga a lamparina.
— Alfredo me acompanha até o fogão que vou acender o
candeeiro.
[113] Na Cozinha, Cochichou:
— Guardei esta ocasião pra te dizer que tempo inda tive de
saber lá no hospital se a bicha foi. Tu foste? Tu foste? Indaga da
Felipa. Tu foste?
D. Dudu vem dos fundos com o candeeiro aceso, espalhando a
sua sombra pelos santos, teto e paredes, e Alfredo dá com a velhinha
embrulhada a um canto, foi vê-la, virou o rosto, velha avô!
— Se deite, D. Santa, sim?
— Nem ouvi apitar as nove. Apitou?
— Quer? lhe levo pra rede.
— Me deixa morrerzinho aqui neste canto, meu filho, não dá
canseira.
Dalila chegava. Ou já que tempo, debaixo da janela, escutando?
— Vá, mas vã! Mas que hospital mais do diabo a senhora foi
me arranjar, vã! Queria que a Senhora visse, vó, nem pense em ver.
Arre! Bença, vã? Bença, tia Dudu?
Cabelo escorrido, o rosto arisco, piscou para o Alfredo que a via
saindo daquele banho, deste mundo lavada. Formiga da peste! ela
gritou ao meter o dedo no açucareiro — nem o santo já respeitam! —
Fazia mímica para Alfredo, estoriando o banho, a tina cheia, o se
despir, o entrar na tina, destampa a garrafa das ervas, os sumos pelo
corpo, a cuia na mão do pajé que abre a toalha e a enxuga, lhe dá um
copo. Um copo? Um púcaro? Bebeu. A coceira, adeus.
— E teu banho que te abra a cabeça? Quando queres, vais
Comigo? Só me falta é o tifo pro cabelo. Pra encrespar, o trio.
Dalila acende a vela pros santos, um papel na vela e fogo nas
formigas. Suspirou: ai que este foi um dia...
65
No mocho, a um canto escurinho da alcova rasgada para a sala
onde a filha costurava, D. Santa dobra a cabeça no peito. Alfredo
vem, vira-se para a janela: da rua ao clarão da sala um cabelo, Ana, o
olhar de Ana flechou nele e adeus; rente da janela Passa um tabuleiro,
a luz chamava para dentro os bichinhos da noite. No pé e na mão da
O. Dudu a costura correndo. Ouvia-se a Dalila lavando a vasilha no
alguidar do jirau, olha, que te torço o pescoço, marreca, não me
belisca meu pé, te arranco o bico, filha da mãe, ah, por que não nasci
de cu virado pra lua, meu Deus! Põe o atracador no cabelo, o pelosinal passando pelos santos, joga na boca um torrão de açúcar, vã, vou
ali cumprir uma [114] promessa, mas já venho, é já-já, sim? A avó
quis levantai-se, chamá-la. Dalila voava. D. Dudu virou que virou a
máquina, parou, riu, voltou a virar, saltou da roda a correia. Vou
salgar a boca. Vou salgar a boca. E ria, benzendo. a boca. Alfredo
tentava recolocar a correia. Então bateram na porta: depressa, D.
Santa.
No Una, Alfredo acompanha a velha parteira:
— Aqui neste alagado é melhor eu carregar a senhora.
— Mas, meu filho!
— Ah, que a senhora é até demais leve, D. Santa.
— Se velhice e padecimento pesasse, quando .que tu podia
assim me carregar, carregador!
— Chegam num cochicholo espremido entre duas barracas,
atrás de uma touceira de açaí. É um buraco, aqui no chão o cachorro
comendo o que a menina vomitava; junto, a bonequinha de pano,
degolada. No vizinho, o velhote sem camisa, violão no braço.
— Já dando nela as dores, moço?
— Não ouço.
— Nem nas dores?
O velho tirou uma nota, emborcou o violão, numa impaciência,
foi urinar atrás da touceira. Voltou, de violão no ombro:
— O senhor é parente?
— Sou, disse Alfredo que entrou. A menina se deixava lamber
pelo cachorro. Debaixo do banco a cabeça da boneca. Carregado de
embrulhos, fedendo a borracha, carão de carvoeiro, entra o dono da
casa. Ouve-se um ai rouco lá dentro, rosnou o cachorro. Alfredo saiu.
Por onde sumiu Ana, a some-some, já não importa. E estes dias
sem ir ao ginásio. De repente se esvazia este afã, aquelas viagens da
mie, O tudo o mais? Assim escorre no pátio, minando o Ginásio, o
banho de Dalila.
Caminhou. Parar, mas em que esquina?
Neste ponto de mingau, não. Debaixo dessa mesa aí na
quitanda, onde jogam dominó, impossível. Vamos espiar ai no
barbeiro de porta entreaberta. Bebiam mas sem ela.
pôs a cabeça no quarto-a-defunto, três mulheres na sala morna.
— Desculpe mas conhecem uma moça por nome Ana?
— Ana, por nome Ana? Ana? Ana, Ana, conheço três Anas.
Uma delas é essa a que aqui velamos.
[115] — Ah, a neta da parteira? A irmã da Dalila? Ah, costuma
vir por estas bandas, sim. Hoje que inda não veio. Mas que vem, vem.
A finada era xera dela. Pode que cheguezinho mais tarde, primeiro é
por aí puxando brincadeira nalgum quarto de anjo, que anjo nunca
escasseia. Mas vem. Olhe, a porta é franca, queira entrar, se sentar,
não molhe o sereno pra não dizer o contrário, faça a fineza, e espere
sim? Espere ao menos até que chegue outro homem neste quarto,
sim? Tudo aqui, defunto e vivente, é só fêmeo.
— Misericórdia, Filuca! Olha que é um estranho.
— Estranho que ele não é, que eu sei, abom!
D. Filuca, alta e seca, fez muxoxo, abanando por cima do
caixão. Muita mosca em tão pouca flor, em tão zinho defunto.
Alfredo esperava. Ouviu, de lá de dentro: dá é já um chá do ipeca.
Chega, espirrando, um rapaz bastante Constipado com um embrulho
de café. Alfredo fugiu.
66
Girou pelo prado, seguiu pelo Telégrafo, pára na estação do
Sem Fio que trabalhava. Quero falar com o mundo ou comigo, torre.
Liga aqui no meu peito, Sem Fio.
Dá com o Bahiano, o marinheiro do Arsenal, vizinho da Zuzu,
com seu xarão de prata debaixo do braço.
— Que fazer, meu filho, isto é já uma profissão. Em casa, já
nem apago a fornalha esperando desatracar. Toda semana é um
próximo atrás do xarão, Se não é pra aniversário, é batizado. Se não é
pra casamento, é posse de diretoria, é colação de grau, é ladainha, é
quarto, conforme os teres da família do finado. Já saiu até em dia de
rezes. E com ele infalivelmente vai o dono, que o xarão? só eu
carrego. Sim que de prata é, de lei, toque, experimente o timbre.
Vendo o metal no escuro? Prata das minhas viagens, dos meus mares,
das minhas escalas, meu menino. Daquela navegação toda, ficou este
quilate. É o que me deu a Marinha. Me requisitam o xarão? Pois não.
Retiro o penhor do baú. Venho que venho bordejando por este litoral,
lá vai o Bahiano com o xarão que já não é mais dele, é de todos. Por
Ser de prata? Pois não. Não me nego. E quanto mais serve, mais prata
soa. Vamos, meu xarão. Olhe, quando tiver uma data, não se acanhe,
bata no Bahiano, xarão às ordens. Agora é a data ali dum meu
compadre, um carpina. Quer vir conosco. Tome o navio. Mas venha!
Na volta, me traga a velha parteira no xarão de prata, seu
Bahiano.
[116] No sótão da moura a janelita acesa. Quis logo entrar em
casa, voltar a bater rua atrás de Ana, Dalila, do próprio sono, esperar a
avô, ou sacudir o jasmineiro chamando Esméia. Ninguém nos
portões. Dos rapazes do canto nem sombra. A Penitenciária no
escuro. Por certo, Bina no cubículo, de bruços na esteira — Apaga já
essa lamparina. O restinho do querosene, gasta não — Bina arranha
outra carta.
Melhor volver ao Prado, tirar do xarão do seu Bahiano a xicra
de chocolate, o dom que o xarão tem. Pega na minha mão, Dalila, me
leva onde é o teu banho.
Mas lá em cima, no sótão, a janelita acesa. É a luz do abajur,
sim, de cabeceira, luz de vigia na cerração, não apagava, não apaga?
Corre até a calçada da taberna, foi parando, descia da janela,
agora apagada, o cabo — ou xarão de prata? — a apanhá-lo. No que
ia subindo, caíam-lhe do bolso as rosas de Ana, a carta de Bina.
67
2
[117] Quantos aqui, daquele bando, cortaram o pé? indagava a
D. Graziela, rente da cerca.
De que valiam suas armas, aquela porção-porção de vidro
quebrado minando o quintal Contra o pé dos vadias que pulavam a
cerca. Pisa os Cacos, agacha-se a examiná-los debaixo desta folhagem
de onde escorre um luar de limo, lá fora lá em cima um dia.
Espiou por entre as estacas a rua que era só lama e luar
descendo para um cariazal danado. De moleque nem um só assobio.
Mas veja como estragaram as plantas, esta pimenteira pelada, a
laranjeira, mas veja! os botões comidos, levaram o mamão verde, aqui
obraram, ali tamanho sapo morto e toda a espichada linha de guerra
das formigas, formiga, formiga, formiga. Nem as formigas mordem o
pé deles.
Apanhou a garrafa, juntou folha de jornal, salpica querosene no
caminho das formigas, foi queimando as guerreiras. O fogo lhe
aquece o Colo entreaberto, os dedos crispam-se. Misantanha, lhe dizia
aquela demoniosa quando a via contando, na fazenda, um a um, os
alfinetes da almofada, os botões no balaio, até dum grampo dava
falta. Misantanha. E aqui nenhum dos diabos Cortou o pé. Ninguém
caiu da cerca, nem um de boca em cima deste caco pontudo, este, por
exemplo, afiado e ensinado para entrar fundo. Ia pedir no
Acampamento uns filhos de cascavel, criá-los nesta cerca, [118]
senão um dia o bando entra na despensa, roubam a bateria de
alumínio, arrombam a cristaleira, arrancam o cortinado, vão de janela
empinar seus papagaios, abrir o chafariz deles sobre o passeio. Tanto,
tanto que pediu à Dudu: olho no quintal, que moleque é o que só dá
nessa rua do fundo. Olhou? O menos que ela fez foi fechar o olho, o
quintal virou pasto de moleque, agora eu que torça a orelha, avaliando
o prejuízo. Agora a zeladora cisca de casa, arrastando consigo a
sobrinha do peito e o adotivo, aquele tamanho cairão, ai que este até
francês aprendeu aqui em casa, nesta casa. (Entra, D. Marta. Alfredo,
chegou a professora.) E o quintal no pé dos demônios. Serviu caco de
vidro? Preferível cobra. Dudu, de ferro e goma nos uniformes do
adotivo, ou atrás de saber Onde as duas sobrinhas perderam o de cada
uma delas, deu as costas ao quintal que virou latrina deles. Também
cismo que a vizinha da esquerda, a pretinha, essa esfogueteada do
portão, pule a cerca e limpe a laranjeira. Se assem, se assem aí na
labareda, formiga do cão, que se pudesse ser em mim mesma ia
queimando onde me corre este exaspero, esta espera. Que agora o
vapor ainda manobra e o outro homem, o que se diz tão bem casado,
está em Peixe Boi, ali rumina.
A nuvem comeu a lua. Escureceu aqui embaixo, escureceu o pé
da D. Graziela, o fogo apagou-se, só um resto de papel crepitava, D.
Graziela quebrou a garrafa, espalhou os cacos, pisou no papel
queimado, vou montar uma armadilha. Esperou que clareasse mas
ficou uma escurecência úmida e nem um ar no ar. As plantas
transpiravam. Melhor fechar Com um muro de pedra e pontas de
vidro em cima. A casa ali na sua mão, deserta, escura, atulhada de
móveis, louça, daquelas vozes que principiaram surdamente, agora
saindo de toda parte, vozes: cachorra! cachorra! E era só isto: cachorra! Deixou eco pelos tabocais, campos, igarapé, relincho e tropel
de éguas, aquela voz, quem não reconhece? Não era da casa fluo era
da rua nem da cova nem de Camamoro mas desta solidão por cima
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dos cacos de vidro, espiando a rua lamacenta. As plantas roçam-lhe as
nádegas: cachorra. Foi o que escutou, o raio derruba o taperebazeiro,
mata dezesseis porcos, escancara a porta: cachorra! que só ela ouviu,
desabava a trovoada.
Nesta sombra, neste quintal nem um caco de vidro faiscou para
lhe dizer que sangrou um pé de menino. Os cacos correm é aqui por
dentro, pelo peito, roem a garganta ah, [119] pudesse ah, pudesse com
o meu ferro de cova, com o punhal de cabo de ouro da mamãe, retirar
debaixo dos sete palmos aquela voz que lhe cuspiu, o sussurro:
cachorra, debaixo do raio, do trovão, com os porcos mortos, o
taperebazeiro abatido, a porta escancarada. Então que deu pelos
campos uma tal noite. Lá no Jandiá a ofensa de bubuia, a água bem
dormindo, amanheceu de bubuia, pendurou-se no arco-íris é um dos
pedaços do taperebazeiro, abre um dos porcos mortos é a ofensa
saindo da tripa, o pica-pau pregando o eco, e arriscou ver no quarto,
no selim, os salpicos do sangue, o feitio daquele corpo suado,
chicoteado, fêmea que só ela, que quanto mais a mãe batia mais o
corpo se ostentava, rosto, peito, barriga, bunda, o feitio bem gerado
— que é só meu, que tu igual não tens, cachorra. Era o que vinha do
selim, a danada já sem pele, cada uma roxidão escurecendo as costas,
a pisa do relho da mãe. Mas debaixo da surra saltava a mesma
menina, aquela, de repente sabendo ler, escrever e contar, respondia
tudo na bucha, desembaraço que só visto oh, memória! Num instante
fez colegas, mestra, gente grande, vissem nela a de mais cabeça. O
escurão que me deu por dentro, com a unha arranhando a parede, a
ouvir os gabas e ter de dizer: sou irmã dela. E a menina, ciente do seu
dom, então que tomou conta, se fez farsola, tome altura, tome altura,
juntando cada astúcia, a arteirice em tudo, na pontinha da língua o
recitativo e o Substantivo, pinta a saracura, quando se vê lá está a
demônia já tirando os nove na pedra. Em pêlo, nas férias, olha ela na
chuva, agarrada ao rabo da bezerra, os cavalos olhando. Vai e volta
pelo campo já eivém: o murucizeiro florou! o murucizeiro florou!
como se fosse dentro dela; pegava os uruás no chão, um no outro,
cochichando: quem que quer fazer uruá? Quem que quer fazer uruá?
Sempre muito espiosa das coisas, catando o avesso e o não
consentido, atravessa o rio num nadar de lontra, fazendo-se afogada
no meio da aninga ou num choramingo assustado: candiru me furou.
Candiru me furou. E logo: agora isso... vê lá! Este meu aqui Nosso
Senhor lacrou. Se cobria com o couro de Jacaré: jacaré me comendo.
Jacaré me comendo. Dessa comida gera um. Remava em seco na
canoa em Seco: adeus, pessoal, que vou que vou me embora pra lá
pras pedras do Moirim onde dorme a pororoca, com os três pretinhos
no colo, de repente estoura e ali dá peixe que só mina. E no assento
do balanço, lá em cima cá embaixo, toda escanchada, lá em cima
[120] cá embaixo, desfolhando as coxas. Noite pra o dia o pulo
daqueles peitos e a mãe: não sei onde estou que não esfrego nesses
teus bicos um caroço de tucumã em brasa que bem precisavas, tu? Tu
és do igapó, tu nasceu de bicho. Era a mãe que resmungava,
trombuda. Foi fervendo na mãe a quizília contra a caçula, um
rancume, e a caçula, esta, por pago, então que mais malcriada, mais
rabo de foguete, já na desasa, pixota, tira o certificado em Cachoeira,
eivém para o pé do pai: agora, o Ginásio.
Não! me saiu num pigarro, de mim que espiava a peça. Saiu
deste peito, desta goela, destas tripas. Escureci: não! que me tirava a
cabeça, me revolvia aquela secreta, amarga admiração e raiva que eu
tive sempre pela irmã caçula. Por outro lado era o meu pouco de
desprezo e vexame pela nossa mais velha, a Felipa, a mais fechada de
cor, muito pele de cavalo, a pixuna da família, cria de fogão, a cercar
a caçula de pipo, caribé, chá de apií, almofada e dengo, no seu andar
de cabra atrás da caçula, ali obediente dela. Luciana? Até mamote —
foi pegar da mão do irmão o malho — castrou.
Queria o Ginásio. A mim lograva? Mas deixa estar que eivém
Felipa, chuleando a fronha: que mal faz, Graziela, a outra ir e
saberzinho um pouco? A vez não foi minha nem tua, deixa ser da
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outra, Uai! Dobra a razão da mãe. Só o ginásio é capaz de arrancar da
mão de Luci o malho. E devagar, um a um, cada um na sua linha,
Felipa ia pontuando a relação:
o cabresto
a espingarda
o trapézio
a mão do pilão
o babar-se pela cidade
isso tudo o Liceu tira, sim. Desgruda o pé dela do Jandiá.
Felipa, a fusca, Felipa, aquela maria xen xen, hoje viúva
donzela. Comendo, comendo coco. Engolia o logro? Soprando o
caminho para a princesa, já arrumandinho a mala da viagem. Era só
olhar para a princesa: a proa dela em cima da Port Of, o enxoval de
interna, solta na cidade, o sete que ia pintar.
Não, papai, não atice. Soltar essa lá, Braulino? ralhou a mie, O
pai lá fora, no alpendre, embala-se, embala-se, vem a fina, lhe dá a
cuia de vinho de tucumã, que ela fez (socou, espremeu, peneirou),
trouxe na cuia para o pai, o [121] vinho até que vermelhudo, doce,
que em tudo carregava na doçura, também no sal, salgava ou
apimentava tudo. Uma voz — não foi? — me esfregou malagueta no
nariz só porque lhe mandei um nome. Fomos tirar a teima atrás do
curral. Do dente dela, até hoje, não me saiu a marca aqui do pé do
umbigo. Sim que ela mesma me fechou a ferida pingando leite de
pião.
Seca pela cidade, roxura por Belém, um fogo no juízo. Ardendo
por um luiz quinze pelas calçadas de Belém, dinheiro haja para a
contemplada, que a carne é dela e o osso pra Graziela. Até acabar
(Como acabou), tirando aquele diploma à sua feição, o saber que lhe
coube. Ginásio coisa nenhuma! Mira o rosto da encadeada sobre o
álbum de Belém, tira uma linha dela quando abre o jornal e vai direito
nos cinemas, moda e leilões. O pai, na alpendre, com a cuia do vinho.
Não beba, papai, que o que ela temperou no vinho vai amolecer o
senhor. Era o que me bulia na goela, digo não digo, o pai mundiado, o
vinho ali na cuja adoçado pela ambiciosa, as mãos dela ainda
amarelas de tucumã, os caroços joga pros porcos léco! léco! léco!
léco! como quem diz: olhem, seus capados, quando eu voltar do
Ginásio, quero comer um de vocês com três dedos de toucinho. Do
tucumã lá dentro do alguidar, só a Felipa provou um gole, submissa.
O resto azedou, que ninguém mais bebeu.
Pois com o não da mãe, o pai levantou da rede: o que tua mãe
disse é lei. Saiu ela fugindo para o curral, atrás o Floremundo, o asa
arriada, um selim na mão, o restinho de sol na barba do pai pendurado
na tranca, o Floremundo escuro, até mais alto, com o selim no ombro.
Tirar a caçula de dentro do tabocal naquela noite, ali acuada? Só
o Floremundo a peso de rogo, mas suplicou! A rede dela no quarto só
deixou de embalar tamanho dia quando a Contrariada saltou para o
curral, selou o cavalo, aquele retinto, coração na testa, lá se vai pelo
rastro do diabo, como se fosse desembestando no rumo de Belém,
pelo Ginásio adentro. Precisou de novo o Floremundo atrás, a que
horas!
Era ou não era o meu o pai dela? Igarapé? Bicho? O que a mãe
é, é Menezes, rio e campo conhecem a marca da família. Daquelas
coisas que escutei no alpendre me ficou o causo da D. Adélia no
tronco, nua na vista de todo o baile, amarrada pelo marido, um
Menezes, o Capitão Edgar. Mas essa, essa mãe, que é minha mãe,
Menezes é, é de amarrar [122] marido e ficar diante do marido
grudada no amante, os dois na rede, com o marido no tronco,
encamboado, castrado. A mãe: te geraste de bicho.
Mas que bicho, quando? Que desforra, ou culpa, fez nascer a
birra e desestima da mãe contra a mal concebida, que podrice é,
desate, mãe, abra a janela, isso já é aversão. Suspeita me arrepiou
sempre, ouvindo a mãe falar de bicho, do Jandiá onde a Luciana se
escondia, ali tardes, ali fincada, até chegarem as onças. Tu não és
filha de meu pai, que teu semblante diz. A mãe fechou-se, por isso te
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rejeita, não sei, nunca fui malfalante. Fosse o pai dela o vaqueiro
Talismã?
Me diz se espiaste, se me viste saindo e entrando, por demais
espiona, perversa no reparar tão miudinho, esmiuçar, quem sabe, teu
vício, tua ordinareza. Viste? Cada movimento meu, instante por
instante, vendo quem me fazia de égua debaixo do tabocal, aquelas
noites de Camamoro, a visagem de cabelo solto pelo curral? A espora
me entrava no rim. O garanhão levando para as Minas aquela mulher
dele, um poço de doença, estiveram na Serra de Guaramiranga,
chegam a Belém, virou, mexeu, e o passo dele e seu galope no rumo
de Camamoro, tão depressa, foi um mês — era um vento no tabocal!
A museu de cera, lá dele, passando em Belém o carmim na cara e que
não disfarça a defunta. Por sem vergonha e desespero, corri para a
cidade, à tarde puxando o cordão no sobrado. O primo com a semsangue em Soure. E foi então o Outro: Estás só? Estás só? O doutor
de jasmim lilás. Na mesma hora, de cima do cortinado: Cachorra! Foi
facilitar, lá debaixo do tabocal, a caçula espiou. Só podia ter sido.
Subiu o alpendre, a cabeça longe, olhando o tabocal: pegava
fogo, ateado pela mãe. Agora toda a crepitação, toda a cinza dentro
dela, o tabocal ardia no quarto, arde aqui no alpendre, o tabocal que
foi mais meu que da outra, ali ardeu meu cadeado. Lembrava aquela
noite, noite seca, a casa dormia, o velho presidia em Cachoeira,
Floremundo no retiro (Floremundo suspeitava?). O primo apeia de
baeta vermelha, apeia longe, vem vindo, entra no tabocal, trazia esporas. Aqui, aqui, que é mais agasalhado, mas vá-se embora,
mandado do cão, vá-se embora, um relincho me arrepiava, xô,
acuraua oh, praga de tanta coruja junta. Talismã, o invisível, nos arma
o laço?
[123] Culpa, culpa aquele dezembro em Muaná, o cão manda o
primo, que chega, par com ela numa volta pelo largo, os dois pegados
para padrinhos num batismo, era em companhia das moças do Itacuã,
atrás de casamento, fita faziam muito arraial e baile toda noite,
namoravam que enjoava, casavam? E toca, de novo, a cambada das
moças para o Itacuã, aquele mofo o ano inteiro nas vinte janelas de
semente convento, quiririm-quiririm, maré vaza, maré enche, ai!
sossega de gemer tanto, inhambu, que te dou um tiro, morcego caindo
na rede — te lembra da tia Artemis que morreu de uma mordida de
morcego no dedo minguinho? — a esgoelação dos cururus, arriou-se
o forro da capela, um sucuriju saindo de dentro do forno velho, com
tanta mutuca e maroim quem que pode? Gente, então só uma
dançada. Então inventaram uma dançada. Arma o gramofone, põe a
manivela, sopra os discos velhos, chama o violão, o seu Xavico do
Mutazinho que sempre dizia: não toco, alejo. Manda no Araquiçaua
atrás da requinta e aqui dando corda e dando corda no casa edison, rio
de janeiro, está com gogo, lixa a agulha, mas os pares? A muito custo,
três, e um desimpedido. Quede o bandolim, aquele teu, Graziela? Só
três cavalheiros? Vasqueiro de rapaz este nosso estirão. Que fazer
com tanta dama? E o Alderico Calandrini, do Ajuruteua, e o Lavico
Portal, e o Vitinho do Menino Jesus, sarado numa valsa, e os dois
Bulhosas do Porto Santo? Por carecer de aviso que não foi. Recado,
carta, empenho, tanto que prometeram, cadê? Não bastante, ainda
chamaram a Graziela. Bem que não veio a outra, a caçula, a come
com os olhos, peiada pela mãe. Bem que também não vieram Feias do
Cururu, sim que tocavam flauta, mas era então que ficava atulhado de
dama. Floremundo, esse, na sua beca de dia de eleição, se servindo de
café com beiju de tapioca, conversava com a avó das meninas, vez e
outra iam tirá-lo, quem disse? Uma delas, a Cota, a do beiço rachado,
muito séria: só se aqueles dali do nosso lugarzinho certo. Vamos?
Aqueles... Aqueles de lundum chorado quadrilha madrugada adentro
engenho monarquia escravos, o Barão do Arari subindo no trapiche, o
padre embuchado num prato de tartaruga, carne de peixe-boi
pendurada na vara ah, aquele tempo, que sim! Vamos no cemitério
convidar os cavalheiros? Dançavam umas com as outras, chegou a
requinta, cessa o gramofone, os três cavalheiros já não davam um
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caldo, e aquela avó, toda no tafetá e volta de ouro, na [124] cal|deira
de embalo, cabeceando deste e daquele sono. Dançada ou velório,
Graziela? Com efeito, a qualquer momentinho, se podia ouvir: acode,
tragam a cera, depressa, para a nossa vó. No cotoco da estearina
derretendo-se no castiçal, o Floremundo acendia o seu mata-rato e ia
tragar na janela ou ver no trapiche o amarradio da sua montaria. Floremundo, pede licença, tira a tua beca, é bom da gente ir. Era a
Graziela atrás dele, com um grude por dentro da boca, desatando a
fita do cabelo, tira o pé do sapato. Que foi? A velha bateu o pacau?
gracejou ele. Não, aquela avô só dá o café quando o mulheral de casa
se casar, uma a uma. Então que sim, te bota abaixo, casa grande,
comigo dentro, o rio que nos enguia. Então, Graziela, te despede. Lua
está sai não sai. la acabar, marcava 11,35 no relojão encardido da
varanda que levava horas batendo a hora, quando apitou a Guilherme.
Correm as damas para as janelas — faz sinal com o farol! Faz sinal
com o farol! — desembarcavam dois doutores da profilaxia que iam
catar cerâmica no lago Arari, um enfermeiro, o piloto, o maquinista,
todos papei queimado. O último a subir e a entrar de bota alta e a
garrafa de genebra na mão, indagando se podia dançar de gola
esporte, o primo, aquele bem-te-vi de igreja. Recomeça o cerco de
Muaná, o mesmo que, tamanho casado, ia esperar as moças saírem da
novena, aquele bem-te-vi de igreja. Floremundo, com toda a sua beca,
foi cochilar na montaria. A avô, pra se lazer de sentinela, se embalava
que se embalava, rezando.
Do baile para a tabocal foi só o tempo dele ir a Belém, volve no
Lobato, outra vez desce na Guilherme, pára, de baeta, espora, coça o
cavalo do Mutá a Camamoro, amarra longe, e vem a pé. Até que um
noite: já de volta do tabocal, Graziela viu aquela alma fugindo,
alvaçã, cabelo solto, trepa na porteira, prende o cabelo, Solta o
cabelo, vagueia, igual garça, pelo campo, já está ali no pé do
Jenipapeiro. Qual das duas, agora, entra primeiro em casa? Do primo
nem mais distância. Ficou vigiando. Esperou que a alvaçã entrasse. A
diaba espiou? De manhã, como não tivesse acontecido. Nem de
palavra, olhar, gesto, da Luciana, arisca, nem sinal.
Numa tarde, levando a cuia de vinho de taperebá para o pai, o
rosto tão maneiro ela fazia! Deu a cuia, recostou-se na janela: quer
que adoce mais? Mais doce? Assim carregada de açúcar. Mas, papai...
Refugou as outras palavras, abriu uma janela, rodou, estalou dedo,
abriu a outra janela, [125] vem para o pé do pai, volve para os fundos,
receosa da mie, tornou ao velho, então senta-se no soalho, descansa a
mio no joelho do pai, pensou um pouco, um pouco, então que se
explica sobre ter coes em Belém. Era ou não era tempo? Escutando no
quarto, Graziela sobressalta-se, quis cortar-lhe a palavra, da rede não
se mexeu. Lá fora a mãe mandava assinalar os porcos no cercado.
Felipa fazia filhós, a caçula aqui dentro só usando astúcia. O pai bem
que apreciava o vinho, cuidadoso de não manchar a barba, em
silêncio, inclinado, debaixo da mão dela o joelho e o juízo. A voz de
Luciana ponteando o seu assunto. Assim num meio segredo,
incutindo: onde o pai fica quando tem de ir a Belém? Tão que tão mal
acomodado pela casa alheia, é ou não é? Gastando em hotel rios. Ou
na barraquinha do Curro, é ou não é? Naquele ovo da tia, poder nem
esticar o braço para enfiar o paletó, me diga que não. Hora de fazer
casa, enquanto a Questã...
— A Questã se ganha, sim, Isso afianço. Dure anos.
— Impede a casa? Proíbe? Dificulta? O senhor precisa de
representação, Isso não carece? Já tão assim como se era, já hoje já
não somos? Prosperou-se, não?
Graziela desgrudou-se da rede, quis gritar: olha que estou te
escutando, cantadeira. Saiu. A mãe subia com a sua tromba, O pai,
mão na barba, arrisca a conversa. A trombuda só esticou o beiço,
respondeu atravessado, empertigou-se com a instante visão da casa
em Belém, como aquela, em Batista Campos, dos Taveiras, aquela,
em São Jerônimo, do Coutinho, a outra, em Nazaré, do Coronel
Cazuza. A caçula:
72
Papai, bisa o vinho? Mais? Por não ter, que não, que tem.
Disfarçava, ausentou-se, deu comigo, me pegou bebendo chá de
buchinha, me olhou certeira mas benfazeja. Sabendo que eu carregava
no chá de buchinha por crua cisma, aqui, por dentro, a cisma de estar,
por obra do primo, gerando um? Fechada estou na mão dela, O pai
repetiu o vinho, faceiro de poder fazer a casa, dizer: tua será, que
todos apreciem teu semblante na janela, Luciana, pois formosura não
te falta.
— Braulino, que vinho foi esse que te subiu? Haver temos tanto
para casa na cidade? Fazer casa lá não é como armar um jirau.
A caçula entrou, toda inocente. No seu avesso eu lia: a casa,
Principala, por meu silêncio, olha, olha! E que tu [126] vás passando
sempre por donzela, por mim... Vai tomando teu chá de buchinha.
Entrei e ouvi:
— E tu, que tu acha, Graziela?
— O senhor que sabe, papai, o senhor que sabe.
O que maldei de dizer, não disse, embuchada. Ela se
aproveitava, me amordaçava, e até que ela comigo se fazia mais
delicada e me doía mais que o bastante.
Já na barba do pai pendurava a casa.
Esta casa.
A planta, a caçula desenrolou no soalho, corrigia as divisões da
casa, tão que tão entendida, e isto e aquilo, dona-dona. Só estou que a
mãe fechasse tão os olhos, Só uma vez deu coice: chega! E enrolou a
planta. Toma, Braultino, faz já.
Por mim, foi deixando, fui limpar o meu bandolim.
Esta casa.
Por que o Alfredo fala que foi feita em cima dos bailes quando
o alicerce, agora, é aquela sepultura?
Mas sempre me dei respeito, O traquejo, nunca perdi. Vivendo
trivial, ninguém me acusa de uma inconveniência pública. Nem em
Muaná nem no baile deixei rabo de palha. Sem mais nem menos,
rente do tabocal, aquele guarda-noturno de saia. Ou não foi? Ou não
era? Era, que aquela palavra — cachorra — tinha um alvo.
A caçula? Preferiu o espalhafato? Cobiçou o desamparo, regalese. Era aquela queda pelo proibido, para ir embora, feita para o
desafio, ou fui eu que lhe aticei o mundo, n0 que me viu ali descobre o
caminho, quem sabe encontrada com um porco, um macho de onça,
um amansador de poldra? Parece que a todo momento a mãe esperava
o acontecido, se bem que a trouxesse debaixo da rédea, lhe rezando o
padre-nosso. A mãe? Juro que deu graças. A espúria carregava-lhe a
consciência, era de bicho, de igapó, do homem que um dia — Nossa
Senhora não me arranque a língua, que não sei ao certo — dentista ou
não, passa pela fazenda, pernoita, o pai na cidade, e gera-se assim de
supetão a caçula, noutro dia, bem cedo, o diabo nem adeus. Ai mundo
mundo quem não sabe nadar vai ao fundo.
Quando o raio arromba a porta, Luciana aparece nascida de
novo, assim alta, assim insolente, dizendo: cachorra, bem baixo. A
mãe rezava no oratório, os porcos fulminados. Do corpo de Luciana,
tão batido, saía um clareúme, sabe lá, da hora, daquele minuto,
daquela vertigem. E uma inocência [127] em toda ela transpirou, sim,
Acuei-me no quarto, embuçada no medo, tira de dentro da mala o
terço, o beiço tremia, como se a pique de correr e ajoelhar-me diante
da irmã ali com carne viva, no selim. Não lhe dei um gole d’água.
Passa a trovoada, o céu descansa, escorria a chuva, os bezerros se
escouceavam no atoleiro, Nem a casa abaixo nem a família reduzida a
cinza, Luciana, essa, pulou no mundo.
Sinal que Deus me aprovou, falou a mãe sobre o raio. O braço
do Satanás salvou-a do raio, Pensou Graziela. E nesse raio aquela voz
que a surrava: cachorra. A noite é um espelho em que os rostos
vêm e vão, o primo ao pé da pia, o doutor no Júri, o rabecão à porta
do necrotério, o comandante na casa, o padre no Arcebispado atrás da
gata pelos degraus desvairada.
73
Abriu as janelas do corredor Quem no tabocal com Luciana? Vá
ver que o primo? Não duvidar. Capaz. Ou cegueira da mãe, na
invenção do impossível; a calorenta, entre as tabocas, ai que está
quente, de supetão tira a roupa e nisto a mãe? A mãe não desengasga.
E a outra, riscada da família, nunca mais em nossas bocas, É assim
tão funda esta Cidade? Aqui estou na casa dela, incutindo respeito,
sobre os sete palmos de silêncio. Dudu, se gabando de ver que as duas
Sobrinhas cumprem a profecia, sai de casa, e com a Nini e com o
Alfredo — os olhos deste em cima de mim! ou eram os meus? E
assim sem ninguém fico, sozinha, os moleques pela cerca, ali pela
frente os flagelados. Vou contratar uma dúzia de cascavéis, eletrifico
o quintal. Recebo, sim, de lustre aceso, as visitas, e dos dois um: o
advogado da família comendo as boiadas, agora em Peixe Boi. Ou o
comandante, ainda no cais, primeiro vai adorar aquela santa, a sua
senhora, senhora de uma tal santidade que serve a um batalhão,
Depois apanha o Curro e vem, vem esta noite?
Não Sou desta casa, diz a Felipa. Desta casa não quero nem
uma perna manca, quero o meu retiro, falou o Floremundo, depois do
papel que fez no Foro. Felipa, pobre pixuna. Tanto virou, mexeu, pelo
comércio e sem nada a seu gosto; que entrou errado na loja dos anjos,
só roupa pra anjo, asa, túnica, sandália, enfeite, para os anjos de
pastorinha, missa e procissão, entrou, se deu conta? foi olhando, a
sobrancelha alta, atrás do seu enxoval.
— De anjo, Felipa? indagou a Dudu.
[128] Virou-se a noiva, trancando a Cara, compra um par de
asas e sai porta afora, guardou as asas na cômoda. Do enxoval só as
asas de anjo. Ou queria ser noiva pelas duas, ela e a caçula, atrás do
enxoval que era da outra? Chegava das lojas, depois do quarto dia,
Dudu com ela, quando recebe o aviso. O noivo, no hospital, por um
fio.
— D. Felipa chega de escolher enxoval, que agora o pano que
lhe peço que lhe cubra é preto, por mim. Me chame um padre, o
escrivão, o dr. Gurjel. Se case, já, comigo, lhe peço, quero ir
sossegado.
Felipa enviuvava, donzela-donzela, com aquela ferida na perna
que sempre escondia debaixo da folha do amor-crescido, a meia por
cima. Uns dias andou meia variada, abriu a cômoda, tirou as asas,
folheou figurino, duas alianças comprou e enfiou. A mais lhe deu um
dordolho. Bens do marido, agora dela, só umas roças no Japiim no
Arienga. Dela? Cadê escritura? Roçado no puro devoluto, feito. num
sertão. Uns sacos, a balança, pesos, o metro, um resto de calomelano,
um e outro rato, foi o que Felipa encontrou na Casa Comercial Divina
Providência com três cachorros ganindo de pulga e fome, o soalho da
cozinha arriando sobre a maré. E mais: seis contos e seiscentos e
oitenta que o
J. J. Pires, da 15 de Novembro, lhe cobrou no sétimo dia. Viúva.
Agora em Camamoro, está de viagem para o Japiim, ver o que faz das
roças.
O Comandante? Ainda manobra o navio, atracou, primeiro vai
na mulher, vem a que horas?
E aqui esta, ainda hoje, ou até hoje, e para sempre, é mais à
espera do cavalheiro do Itacuã; a esta hora, na São Jerônimo, a dele, a
casada, escorre as suas ceras diante do oratório, suplicando cor para a
cara, sangue para as veias. O marido cova-se noutra, que desta, deste
cocho no tabocal saiu farto, com outra acostelou-se.
Tudo fiz para não perder a bença, não perdi. Na bença, quem
cuspiu, eu? Cautelas valem um tesouro. Pois foi tua sorte, beldade,
agora Deus te salve, tudo não indicava? Assanhou-se, não se deu
cobro? Comeu galinha choca, fome canina te deu, pelo mundo, por
esta cidade. Entra no relho, ensangüenta o selim, roda no redemoinho,
a velha de tanto te surrar fartou-se. A surrada, sem fartar-se,
saboreando a esfolação. Tudo não indicava? O mundo te engoliu os
assanhos. Lá vai o rabecão, de quem a culpa? Aquilo me disseste,
baixo, a goela seca, em vez de água, me cochichas: [129] cachor|ra.
74
Esfolada no selim, mas rainha. Baixo, bem baixo, num escarro, aquela
palavra, ali comendo relho, gloriosa no selim. Provável, noites e
noites acompanhava aquele meu cinema no tabocal. Sentada na
tranca, de branco, tão no ar ao pé das vacas que os garrotes cobriam,
no que viu, foi, quem duvida? atalha no campo o cavalheiro e este
num estonteio e ela se cobrindo com a baeta, pelo coice do caim
derrubada, no mesmo arpão? Com certeza, com certeza... Não? Até
que combinaram no tabocal também, que Deus não me castigue.
Duvidam? Então, então, assim supondo, ou decerto, quem sabe? a
velha pega, e puxa a caça a relho pelo chão, vápote! vápote! sem sair
um ai, só o resfolego da velha, som um só gemido, só o resfolego da
velha, qual que doía na castigada! Se toda era daquele exato momento
em que usufruía, e muito mais que eu, o dito instante, juro, o fervor
nela quando arpoada era ou não era mais? Que descanse a sua alma.
Fecha as janelas, espia pela varanda, entra na alcova, abre o
cortinado, estira-se na cama. Jasmim, neste travesseiro? Porém é o
cochicho, o soprar das noites já antigo: só aqui, prima, debaixo destas
tabocas, em cima desta palha? Nisto em que um pio, um vaga-lume,
um maroim, tudo assusta mais? Te aguardo em Belém, parente, lá,
sim, num sobradinho da Doutor Assis, te digo qual, vais? Do Mutá a
este tabocal olha que é um cansa cavalo, não contando o risco, teu
nome de moça, minha responsabilidade, e tanta cobra. Lá em Belém é
mais cristão, não erra, só descer do Curro, atravessa o largo do
Palácio, é o 48, puxa o cordão da porta embaixo, abre. Fingi ali um
escritório de marchantaria, lá cima, atrás do escritório, com
reposteiro, pia, os paramentos, é a cama.
— Está muito enganado, agora isso... Por quem me toma?
Sempre a embaraçada, a envergonhada, guardando conveniência, ouvia desouvia, fazendo cerimônia, aquele escritório serve a
outra que só lhe sirva de costela a tanto a hora, estava muito do
enganado, agora isso... axi. Um instante suou para ofender-se ou
chorar, só suou, fez uns muxoxos, cumpra tudo com suada indolência,
ali chocha, morna, de joelho em cima, montada pelo cavalo, que
esperava? Um pouco dar-se por frouxidão ou desvalia, as mamas
pingando suor, ouvindo: Doutor Assis. No escritório o bronze Sonho
de Ícaro, a pia, a estampa da Esfinge, aquelas fotografias imorais na
[130] gaveta da cômoda. (Em menina, em Cachoeira, tocou recreio
eivém a Alzirinha Pantoja tirando de dentro do peito uns postais. Mas
ah! quem te deu? quem te trouxe ah! correm as duas para a sentina, e
via, revia, se regalava, a outra sobressaltada, anda anda, Graziela, que
eivém gente). Por onde andavam aqueles postais arrancados da mão
pelo Chico Ervelhosa? E postais de Paris, o primo andou na França,
frases sabia de cor: Paris... Paris a santa, Paris a pecadora, ah tes
sourires d’août, tes magasins, tes arbres... o primo cochichava,
carregado de viagens, esteve na Terra Santa. Na Doutor Assis te
mostro os meus postais, te dou Paris. Aqui neste tabocal por toda a
vida, não. Aqui neste bafo morno de estrume e cocho, em pleno pasto,
vá ver a jararaca pelos nós da vara, te apaga, vaga-lume, o tabocal
vergando maciço sobre as palhas, eivém os porcos, dá formiga, dá
caba, dá rastro de onça, Santa Bárbara, como relampeia. Olha aí fora
o longe, lá fora, vem pampeiro. As esporas batiam. Parece que
acenderam uma luz na cozinha?
Que café ele me deu que foi beber, caí? E contam, contavam
que ele, menino, batendo com o pé, quero ser padre, quero ser padre,
me mandem já-já pro seminário, era só o que dizia. Mandaram. Quis
ser padre, quis? E dele faltava sempre o que ela não sabia pedir ou
provocar, faltou que fosse assim um passarzinho a mão pela ponta do
queixo, a coceira, mas bem devagarinho, atrás da orelha, só o mal
passar, saindo de um sentimento miúdo miúdo que fosse, alisasse,
sossegasse, como quem diz: dormezinho um pouco. Não esse saltar
em cima da galinha, esse dente no beiço, o beliscão — seu malino! —
essa unha na espinha — mas seu bruto... — esse descer do cavalo —
eivém, meu Deus — já em pêlo. Não demora salta correndo, monta,
flecha o galope, amanhece na cidade, sai no jornal discutindo preços
75
da carne, dança com a amarelona dele, agora mais opada, um rosto
que é só sebo, no Pará Clube. Dele só o convite para a Doutor Assis,
o chatô. Dele o coice que a varava e nem se debatia, fofa, ronceira,
servida, era só chegar na sua rede rezava. Porém uma quarta-feira,
desce do bonde, primeiro se benzeu nas Mercês, ficou parada, parada
na rua e eis se voltou para o homem que carregava um espelho no
qual se via subitamente de corpo inteiro, ali descoberta, ali refletido o
mais íntimo dela, valei-me, entrou no largo do Palácio, faz um rodeio,
estanca; pendurada nos badalos velhos da igreja, a donzela seca da
Santa Alexandre soprava o pó dos santos, a Sé ainda na [131] sesta,
agora a barata passeia pelo reposteiro, vão cobrir-se os dois de muito
mofo. Sino, mosca, morcego, mormaço. Está muito enganado. Puxou
o cordão, puxou, puxou, não abre, e lá da janela a voz do marchante
apressada: vá-se embora, vê-se embora. Estava em conferência, em
reunião, embora, embora, e a varrida entrou na Sé, dobrou-se de
joelho, lho doía a barriga, quis vomitar, lá do altar-mor era o espelho,
aquele, que o homem carregava. Foi saltar, de lua, por cima da corda
que amarrava o cavalo, um mal peguei? Ou também com o meu
incômodo passei por cima do embuá. Será? Que mal peguei?
Vá embora? Eu, esta? Pois o primo há de vir correndo a meus
pés, raso e cego. Teu castigo, espera um pouco. Corre, apanha o cacau
maduro, bateu bateu os bagos, faz geléia, e espera que chegue de
Marajó o compadre Apolinário com a encomenda. Não custou,
chegou. Se fechou no quarto, finca a agulha no miolo do boto, e só o
que resta do miolo no ouvido da agulha é o bastante para o tempero
da geléia. Despacha o presente para o primo.
Comeu da geléia? Ou foi só a mulher dele?
Ou a dose foi de menos? Demais não foi que senão desvairava o
homem. Queria ele a seu pé mas não desvairado.
Ou o compadre Apolinário, em vez do miolo próprio, trouxe um
de boi? Arrancada do pente fino (cisma de lêndea) quede tempo de
enrolar o cabelo? a modo de um azeite pelo corpo, e entrou ele, por
um descuido a porta da rua estava só encostada, entrou ele, aquele
manga-de-arminho no Júri, o dedo no ar em nome do P.R.F. na
Câmara, grão-mestre da maçonaria, de opa nas procissões, orador no
banquete ao Bispo, manda chamar a Magá da Rui Barbosa para fazer
a tartaruga em honra do cônsul da França. Estás só?
O nosso advogado.
Solto na alcova, rola na língua: Yo soy como el pobre cysne que
canta quando se muere. Chegou ver no Teatro da Paz a Pavlova. E
tudo foi despencando e o viu levantar-se, içou a cabeça, conserta o
colarinho, a sua autoridade: já fio eras mais? como logrado. Não eras
mais? Encoberta? E num ar de Júri: quem? Um olhar de escândalo,
ferido o brio e a esperteza. Não eras? Desde quando? Disfarça o regozijo, enxugando o cachaço. Como foi? Gomo se fosse denunciar ao
pai dela. Quem? O riso dele, o sinal de cumplicidade, o espelho
gravava, os dentes cortavam o espelho. Apanhou a pasta, mal não é
que faça parte dos honorários, [132] uma e outra tarde, vale. Ocasião
que houvesse, voltava, galo rouco de jasmim lilás, charuto e pasta,
babando nos travesseiros da alcova.
Agora está no Peixe Boi jogando trinta-e-um com a consorte
que arma o busto da virtude, a cinta matrimonial com que ele sugiga a
gordura dela. Dali corre para o banho, troca de jasmim lilás e assim
de pasta e guarda-chuva, assalta esta alcova e cobra nos meus quartos
um dos seus honorários.
— E a Questão, doutor?
— Questão, não. Questã. Indo.
— Mas só indo, doutor? Não chega?
— Minha filha, isto é momento? Eu e teu pai nos entendemos.
— Mas quantos anos, doutor!
— Um cheirinho nesta cama, de jasmim... Quem sabe... Quem
sabe... Confessa?
— Quando decide a questão, doutor?
76
— Não me vá algum estudantinho deste subúrbio limpar o
boneco dele nesta colcha. Deixe de cerimônia. Que tal o ginasiano?
Não te tenta?
— Doutor, olhe lá, não tire graça.
— Aqui passou novilho, minha flor.
— Doutor, a nossa Questão. Pelo amor que o senhor tem na sua
senhora, me diga, quando?
Aqui o advogado se empina no propósito de dizer: não é lugar
nem vez de tocar no nome da minha senhora.
— Então é por isso... Por isso que o teu irmão... E eu comendo
milho. Até aquele teu irmão! Aquele Mané Xen Xen. A atrever-se, a
pedir explicação. Instigado pela irmã? Foste tu? Como se a Questã
não fosse do pai.
— Mas meu irmão é que sabe o gado que embarca, doutor.
— Que tenho eu com o gado que embarca? Não é teu pai que
sustenta a Questã no Foro de Belém? Não é teu pai que recorre a um
advogado para defender seus direitos, ou pelo menos, o que julga
como direitos? Ora essa! Instigou, não foi? E quem, quem que
instiga...
— Então, doutor, chega. Enterrou-se o assunto.
— Pois o teu irmão! Pois o seu Floremundo Mané Xen Xen!
Aquele caxingô de colarinho. Dei-lhe um grito. Ele avançou ou fez
que avançou de guarda-chuva, no que dei um passo ao encontro dele,
o escrivão me agarra pelas cosias — que é isso, doutor — e todo o
Foro acode... Esperem, digo [133] eu. Quero ver até onde chega a
fanfarra. Capabode, não toque no homem, leve o homem por bem...
Aquele Mané Xen Xen! Como se de tantos inventários grandes não
tenha sido ou o advogado!
— Mas o nosso não é inventário, o doutor sabe. Estamos ainda
vivos. Meu pai, graças a Deus...
— Vivo? Morrendo agarrado ao cós das raparigas? A barba do
imperador na entreperna delas?
— Doutor!
— Sabia que aquela zinha das cartas não escrevia as cartas? Era
outra que escrevia, fazia os pedidos por conta própria e cobrava da
amante dele, pedindo uma repartição dos regalos. Até as palhas da
barraca. Um milheiro para a escrivã.
— Não quero saber, doutor. O senhor está é falando muito.
Adivinhando chuva?
— Pois o Mané Xen Xen! Avançasse com o guarda-chuva. Era
com esta pedra, esta do anel que ele quis injuriar, este rubi, sim, que
lhe deixaria marca no nariz, um rombinho para lembrar-lhe a
imunidade de um deputado, a reputação de um advogado. O seu pai,
coitado, certo dos seus compromissos comigo, no que sabe, derrete-se
todo, corre a mandar aquele secretário lá de Cachoeira, o Major
Alberto, a me pedir desculpas num ofício em que se arrasta a meus
pés. Tem gramática aquele Major. Com este rubi!
Fazia correr o rubi pela anca da estatelada, ora o Floremundo
Mané Xen Xen! A Questã? O tempo que exigia, o tempo que exigia!
E de repente aquele de gogó mole lhe aparecendo de agravado,
tentando um escândalo em pleno Foro.
— Só estou é o meu desbrio, doutor, o meu...
O doutor esfregou o rubi num sinal dela:
— Chamei a polícia? Foi bem defronte do quarto oficio.
Mandei atuá-lo? Me prevaleci? Ó Capabode, leva esse homem pra
debaixo das mangueiras, leva. Capabode, depois, veio me contar que
o suposto agravado ficou lá em cima dum toldo de canoa no Ver-o-Peso, ali espichado, só, de guarda-chuva, gravata embalada na mão,
feito um Antônio Conselheiro, tirada a barba. Varia um pouco aquele
teu irmão? Varia? Costuma beber?
Graziela, enterrada no travesseiro, o rubi pelas cadeiras, bate o
pé contra as moscas, valei-me, Nossa Senhora da Cabeça.
— Sou de bom bofe. Não me prevaleci para desagravar-me do
desacato. Fiz foi chamar o Capabode: me faz este serviço, me carrega
77
o pomboca, tira uma guia pra ele entrar no Alienados, O Capabode
acomodou a sua nobre mercadoria na mão do seu secretário, um
barrigudinho, a verminose em pessoa, e foi levando a jeito o
malcriado, sempre por bem, até deixá-lo no Ver-o-Peso. Para isso o
Capabode é bem mandado. Não conhece? Um que anda por lá, pelo
pátio e corredores, vendendo revistas imorais, anedotas de Bocage e a
Bíblia. Pajeia a amante do juiz Alvim e é, tempo de São João, caçador
do Rouxinol. O nosso Capabode levou o rebelado e depositou a carga
no convés de uma canoa do Arari. Voltou me dizendo da figura dele,
o queixo por cima da doca num ar de quem rogava monstra praga a
esta cidade. O Capabode passou a contar pelo Foro, subiu na Câmara,
contando das cartas da rapariga do teu pai, da ida de vocês no
Arcebispado, a diligência do Laudelino mudando do Marco a toque
de caixa a costela do nosso Imperador, carregando com ela para a
barraca de um compadre dele lá nas baixas da Cremação. Ou da
Castelo Branco, não me lembrando bem. Teu pai! Teu pai! Cada fio
daquela barba está na conta do diabo. Chamei o Capabode: cala-te
que te casso o comércio. Cuida da tua mercadoria. Bons fregueses
dele são os juizes, os desembargadores, todo o Legislativo. Muitas
vezes, de dentro da Escritura Sagrada, tira postais obscenos,
explicando: postais do Rei Salomão. A Brasiliana comprou dele uma
Bíblia mas daquelas revistas nunca, nem daqueles cartões. Em minha
casa, porquera semelhante não entra, disse ela, levando um pacote de
contrabando para o Presidente da Câmara. Capabode é também
especialista em arranjar ovo choco quando queremos, por política,
jogar num juiz, num jornalista, num qualquer contrário. Ele é bem
digno de nosso Foro, aquele cano de esgoto, aquele pardieiro infecto.
O casarão dá idéia mesma da nossa justiça: todo aluído, todo
esburacado, o chão mosaicado coberto de pó e pira. Lá em cima é o
gabinete do Intendente repleto de pedintes de emprego e aduladores a
olharem o Maestro Carlos Gomes morrendo no quadro. Também lá a
Limpeza Pública onde só limpo é o Diretor, o lavares, que é aquela
estampa, empoado, estratado, sempre de branco. O resto do chiqueiro
é a Câmara e o Tribunal. Um dia lá todos nós desabamos.
Graziela, inerte, ouve o cochicho: cachorra.
[135] — E sobre aquilo... Também adverti o Capabode, Rá!
Não me digas, minha filha, que estás te ofendendo. Tua família?
Primeiro vocês deviam ser mais cristãos no caso da caçula. Foi
atirada às feras, às feras, A Questã vale mais. Que o que fizeram com
a pequena, que diabo, tem paciência!
— O senhor aprovou a nossa decisão.
— Como advogado da família, tinha eu outra conduta? Nada
mais fiz que pôr o carimbo, os fatos consumados, a velha rangia os
dentes... Mas que diabo!
O rir dele, o rubi, ela esquiva-se, revolve-se nos panos.
— Doutor, me faça uma caridade, por amor de sua senhora, se
vista e vá.
— Tanto que te dói?
Revira o travesseiro: no Júri, Maçonaria, Associação Comercial,
sessão do Tribunal, jantar na fragata inglesa, aula da Faculdade,
parada militar, é aquele mesmo de arminho, condecoração, fita de
irmandade, casaca e jasmim lilás. Mas aqui dentro vomitando Foro,
Política, Igreja, família, consideração pública. Esta hora bebe leite em
Peixe-Boi, joga o trinta e um com aquela, a dele, Deus me perdoe,
que foi nada mais do que a mais marafona da Cristal. Ao Júri vou
ainda, sim, pelos meus réus pobres mas também para prestigiar a
instituição. Já escasseiam oradores.
Fica o vômito no leito, por cima de mim, escorrendo pelos
móveis, Tem que chamar os portugueses para baldear o soalho,
desinfetar a latrina — saia, saia já daqui, doutor, saia já, me deixe o
quanto antes senão vai me abrir por todo o corpo uma bexiga, só de
me roçar no senhor, no seu rubi, que mais imunda do que estou já é
impossível.
78
De pé, chapéu na cabeça, guarda-chuva, pasta e pigarro que o
restitui à decência, um pouco ofegante. Fecha O jaquetão, assoa-se,
reassumindo austeridade, contempla esta vagabunda na cama, atolada
rios panos, pé de fora, o calo seco do calcanhar amarelo, o grampo
fugindo pela ponta do lençol, virada no chão a chinela ordinária.
— Não se incomoda que lhe traga uma sandália?
A de bruços não se mexia, suando nos lençóis.
— Uma sandália chic. Essa que usa, sua unha-de-fome, jogue
no valão da esquina, aquele abismo, de que fala a Madame Brasiliana.
Uma sandália. Me deixe tomar a medida do pé.
A de bruços nem se mexia.
— O Capabode será o portador.
[136] Cachorra, e vinha a confidência de baixo, debaixo do
soalho, o cochicho, e ouvia o baforar aqui em cima, o ofego do doutor
que dá agora uma volta pela alcova, tossindo sobre a janela da
varanda. Cachorra, O cochicho corre-lhe aqui debaixo dos panos,
pelas tripas, mosca por dentro zumbindo. Bateram.
Era o cobrador da farmácia, o filho do seu Josias, magriço,
espinhento, de bicicleta, cobrando duro a todo minuto pelo bairro.
— Me deixa soprar nas tuas costas a cinza deste meu charuto
pra te livrar da visagem. Ela veio na sola do meu sapato. A caçula te
espia cá debaixo da cama. Mas a sandália, que tal?
— O senhor aqui ainda? Não foi?
— Tive que te passar um telegrama.
E dos lençóis, do travesseiro o “saia”, “saia”, sufocado.
Enxugou-se, o corpo a modo fumegava, pareciam que andavam
no telhado? Menino atrás de papagaio? Cachorra, repetia-se. Até que
saltasse do forro, descesse pelo cortinado, espantando as moscas,
aquele rosto, o sol lambendo-lhe a nuca, como no trapézio, vai em
cima vai em baixo (pára com esse trapézio, varada!). A mesma do
selim atravessando o raio, cuspindo: cachorra.
— Doutor, se suma, mea cabeça roda.
Debaixo dos panos, de barriga, como afogado no fundo.
— É verdade, a barriga? Nunca? Ou aquela sua tia, ar de
santinha, que anda tombando pela rua atrás das notas, aquela é que
tece teus anjinhos? Te tece? Aquela sua tiat A tia? Tudo em família?
É?
Debaixo do travesseiro, o punhal de cabo de ouro da nossa mãe.
A mosca. O riso do primo na marchantaria. O fio de voz da parteira
no escuro atrás das netas.
— É?
— Sou castrada, me castraram.
Ouve o doutor acender o fósforo, o sopro, o assoar-se.
— Que o Diabo te encubra sempre, galharda. Bato a porta?
Galharda, a palavra dele, a invenção dele, galharda, quando se
impacientava, galharda. Que que então deu no Floremundo para
atrever-se, que tinha de cobrar a Questã, de meter o bico no Foro,
puxar escândalo? Mais por desespero, por não encontrar a irmã caçula
que ocultamente procurava, com quem queria se ligar escondido,
aposto, aquele [137] murcho enrabichado pela mana, era a Nossa
Senhora de Nazaré no Céu e a caçula na terra, então que o anzol te
fisgue, bicho besta.
No que rompe aquele carnaval, a mãe se tranca no quarto com
as cartas da outra, aparecem de capota aberta os três carros defronte
da taberna. Brasiliana, de Rainha de Sabá, debruça-se na janelinha do
sótão, sobre a calçada onde recitava inglês com uma garrafa na mão,
binóculo no bolso, o intérprete do Hildebrand. Os carros abertos. Os
carros daqueles senhores, pelo visto, só pessoas do Governo. Carros
com foliões para um assustado mas onde? Neste perímetro? Na
Brasiliana? Cantando numa boca de gramofone, um arlequim de
máscara roxa. Alfredo espiava na esquina: na Brasiliana? Eivém a
Esméia para ver os carros, estofada de crepom, o carmim queimandolhe o rosto, ventarola, a figa da avó. — Tás a miss da José Pio,
morena — Esméia espichou-se para o sótão: se diz morena, me ofen-
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de, D. Brasiliana, eu sei a minha cor, a sacudir-se, parecendo mais
negra no crepom canário. D. Brasiliana atira-lhe a serpentina, dá boatarde ao homem que vem tocando os zebus; parados defronte da
taberna, os três carros buzinavam. É a vala! É a vala! Nem um carro
passa! Cuidado com os zebus! Ninguém nem Deus entope a vala!
Esta aqui engole tudo, um dia se despencou goela adentro um zebu!
— Fingiam horror os mascarados em cima da capota, os zebus
passavam alvejados pelas lança-perfumes. O intérprete assesta o binóculo para o sótão. E daquele — um alto — cuidado com o cesto,
Capabode! — de quimono, cabeça de dragão, sai do carro, dá ordem,
logo todos a pé para aquele número da José Pio, assaltam a casa a
peso de rufo, confete, pistão, trombone e uns pratos. Olha só o Cesto
das bebidas, credo, cochichava a Esméia no portão debaixo do
jasmineiro, o Alfredo na calçada. Lá dentro o Coronel é apanhado de
pijama, tremia a cristaleira. — Jovita, o Dr. Gurjel, sai do quarto,
agrada os festejantes. Felipa escapou-se pela cerca onde, ao pé do
formigueiro, se refugiou o seu Floremundo bebendo seu chá de
solidônia. O assustado varou casa, as damas enfiam a Graziela na
cobrinha. Aqui está a sua sandália, calce. Entra, entra, menina! o
quimono, cabeça de dragão, atracou a cintura da embaraçada: posso
lhe atestar, Graziela, que o que trouxe aqui pra sua casa é só moça, só
moça, de três vinténs inteiros, cochichava-lhe, espirrando-lhe lançaperfume no pescoço e colo, calce a sandália, [138] tudo aqui é
família. Tudo aqui é do Governo. Graziela regougando: por que não
são suas filhas? Por que não é a sua senhora? E quem jurava que não
fosse, pela mão do doutor, aquela de mau viver, exato aqui entrando
de máscara? Afinal quem são, nem Uma vez tiram a máscara e
sempre nesses termos? Todos num vozerio trombone no meio, qual
delas ela? colombina? sultana? dragoa? Abre o conhaque, Capabode.
Lá fora o sereninho debaixo do chuvisco, os obrigados da
Penitenciária com as suas máscaras e fantasias de doença, fome e
flagelo, apanhavam bagana e miravam o lustre cheio de serpentina.
Alfredo entrou num instante: o Coronel Braulino num paletó sobre o
pijama, apreciava, bem menino nos olhos, muito homenageado, faceiro na barba salpicada de confete. Foi dar dez horas acaba a
pantomima. No que todos saíram ficou diante da casa aquele mefisto
bêbedo berrando contra o Dr. Gurjel: vai deixar o senhor, Coronel,
roendo penico ao pé da aninga! me deve um parecer! Nunca entendeu
de hermenêutica! Um bucéfalo’ Ratazana do Foro! Graziela fechava a
casa. Esméia, debaixo do jasmineiro, puxava as serpentinas que
ficavam na sacada. Alfredo corre a acudir o mefisto. Porca Prenha!
alguém gritou. Alfredo reconhece o gritador: era o Caralonge, da
Passagem dos Inocentes, instigando os meninos que traziam na ponta
da vara um sapo morto. Mefisto vomitava na porta dos Boaventura,
Porca Prenha! Porca Prenha! Alfredo levou o Porca Prenha até a
taberna, ali o deixa sobre uns sacos, mefisto enxovalhado, a Rainha
de Sabá passando por cima dele para vender no balcão um elixir
paregórico. Da taberna a Rainha não saía, se fantasiou por simples
fantasiar-se nem serenou o assustado, lança-perfume, o tubo intacto
nem abriu o saco de confete, o sótão com uns balõezinhos chineses e
os tajás guardando a janela, O português dela atirara-se com uma
tropa num caminhão chispando por entre as cobras do Acampamento
para um tudo-nu na Pedreira. De madrugada, descendo do sótão,
Alfredo encontra a D. Graziela assoando-se no alpendre, sandália no
pé, o cabelo cheio de confete.
— Sem sono, D. Graziela?
Ela se volveu, a ele abraçou-se, Alfredo debaixo daqueles
soluços, o avantajado Colo indo e vindo. Tirou-a do alpendre, foi
levando-a, a D. Graziela dava por falta de objetos na sala, sumiu a
estatueta e a salva, aqui vomitaram, também dentro da jarra de cristal
lavrado a ouro. Alfredo fugiu.
[139] Entrou na jaqueira. A mãe da Zuzu, por não ter café, fazia
chá de capim marinho.
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— Meu filho já vai zinho enxergando as letras, professor? O
senhor não estranha que eu estejazinho lhe pedindo uma daquelas
garrafas vazias da festa, do assustado? É para o meu fluido, professor.
Eivém do sono, nos seus trapos, que ganham agora, no
amanhecer, um luxo, a quase desnuda, um pouco ainda adormecida,
nascendo da jaqueira, veio, abriu uma jaca para ele. Ao menos as asas
de anjo da D. Felipa nesse ombro, cobrindo-lhe o colo. As asas de
anjo da O. Felipa. Ou quatro e quinhentos para os três metros de chita
no Tufi do Reduto, Quatro e quinhentos. Aqui no bolso só mil e
trezentos. E olhe que chitinha da bem ordinária. Dá na altura de Zuzu
o manto, aquele, da Nossa Senhora da Sé? A jaca sabe ao sono dela,
gomo a gomo. Lá fora no azul bem leve o verde da jaqueira
carregada. Alfredo corre e traz de casa duas garrafas para o fluido. A
quase desnuda, agora atrás do jirau tapado pelas palhas de inajá, toma
banho de cuia. Lá na corda de envira os trapos no sol pareciam um
bordado, Com pouco açúcar este chá, depois daquele Reino lá no
sótão guardado pelo tajazeiro.
Alfredo! Era a Nini, já de uniforme da Chapéu de Palha, bem ao
pé dele, Ana e Dalila tinham voltado de repente na barraca do Curro,
tão dia, atrás da avó que já não estava. Cochicharam para Nini, esta
passou a D. Dudu que ficou sem palavra, logo as duas saíram, Dalila
para o Almirante Wandenkolk, Ana para o Una, Nini atrás de
Alfredo,
Do seu banho, abrindo a fresta nas palhas, Zuzu vigiava, Chia
na mão, água do corpo escorrendo no paneirinho da japana. Mamãe,
repare aí que o professor a modo que soube uma triste notícia.
Ana, passando na jaqueira, deu com o Alfredo, no que foi vista
desembestou pelos buracos do Una, apitava o curtume, entrou no
curtume, pediu um lugar, não tinha, foi chupando camapu até ao
trapiche do estaleiro, Ali ficou no degrau rente d’água, o pé na maré
que subia, Viu levantarem o mastro, passou um gaiola, quem sabe no
leme não vai aquele que entra na casa dos Boaventuras, o lustre acen-
de, visita de cerimônia, vai ficando tarde, apitou as nove, o lustre
apaga, fecharam as janelas, saiu pelos fundos?
Por onde a vó anda? Tia Dudu ouviu ficou tão séria, Nini de
amarela passou a verde. Tia Graziela só vai saber noutro [140] ano,
vão saber lá na fazenda noutro ano, ninguém lê o registro fúnebre,
ninguém vai contar do rabecão, a avó vai ao Santa Isabel atrás do
número, aqui na casa alta a honrada tia acende o lustre para as visitas
de cerimônia. Ali agarrado, no meio das lacas, aquele outro, esvaído
de tanto subir naquele cabo e desta assim entre as jacas nua. Não sei
onde ‘que não espicho a canela também nesta maré, dou cabo do
canastro, salto desta cabeça de trapiche, era uma vez, o rio levou,
pronto. Noutro domingo, por uma comparação, batiam a quilha do
barco, e de mim nem sombra, a maré subindo muito satisfeita. De
afogada nem sombra a não ser se de fato vá sair de mim um espírito a
correr pelo rio, pelo trapiche, desembarcando, carregado de barro,
bem tipitinga e puf! na goela deles, na goela deles, e cá te espero
debaixo da jaqueira, seu agarrado nessa papa-jaca ou te apanhando
quando a sobejo do galego te iça para o poleiro. Ou de repente,
amanhã, Ana, esta que sou eu, bolou de cabeça roçando no esteio do
trapiche e aí, correndo da jaqueira ou descendo pela corda, chega o
compadecido, tão compadecido, morda pra tua compaixão.
A maré cobriu o degrau. Volto para espiar, de novo, na
jaqueira? De tia se bota luto?
D. Graziela se levanta da cama, vai no alpendre. Teria fechado
bem as janelas? Daquele casarão na mão dos sara-pecas, daquela
escuridão ali no largo, podem descer os ratos, aquela fome canina dos
flagelados. Já lá estão levantando também a hospedaria dos japoneses,
daqui a pouco, fugindo do vulcão e do terremoto, chegam ninhadas de
amarelos; aqui a nossa casa, debaixo do risco, precisava de bons
cachorros, boas cascavéis, fazer armadilha, pagar um guarda-noturno.
Foi no quarto, apanhou a espingarda, um dia pois não matou um
anu coroca? Desde aí nunca mais acertou num alvo, deu caninga ria
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arma, que se passou para a dona da espingarda. Anu coroca. Por que
que o comandante... Cera! Por que telefona para a Brasiliana? Esta,
sem demora, eivém, a figurona, apertando a campainha, nunca
mandada entrar:
D. Graziela, telefone pra senhora, às ordens. Ora, incomodando
a senhora, D. Brasiliana. Num embaraço, saia preta, blusa branca, não
emparelha com a taberneira, ou esta na frente, ou atrás, de Igual na
rua que não, a apressada, entrando na taberna, apanha o telefone: mas
é o senhor? Mas que cabeça a sua... D. Brasiliana, num ar de quem
nada [141] entende, olha enviesado, escuta a outra engolindo as palavras, o sim sim sem dizer mais nada, sim sim e de lá doutro lado, no
cais, debaixo do barulho do guincho (tinha um cargueiro alemão) o
rebocador apitando, aqui o carrinho de mão deu uma topada no
paralelepípedo solto, buzinou um carro. O comandante telefona
olhando o Guajará, a maré dobrava, desatraca a lancha na escadinha,
passou o Conqueror, lá fora o sol moqueava as velas, a mata, ferviam
as lonjuras.
D. Brasiliana revirava o pirarucu ardido, enxotando as moscas.
Quem que telefonava do cais? E o sim, sim sim deste lado, querendo
acabar a conversa, uma voz de velha, cerimoniosa, o colo, nem por
isso, até que um porte no peito, a perna — não lavou em criança com
cipó de tracuá — um tanto torta, os olhos nunca na gente e uma boca
bem ordinária.
Vai a pé pelo Bulevar, fura a Ocidental do Mercado, apanha o
Batista Campos. Em casa, tudo rigorosamente à sua espera e ao seu
dispor, objetos, roupa, bichos do quintal, caramanchão, suas
espingardas, a patroa. Josefina lhe trouxe os chinelos. Vai ao banho,
está gordo, cresce-lhe a papada, é um banho de choque, morno do sol,
ali na tina os cheiros da senhora. Josefina a toalha! gritou a arara na
beira do telhado. Erra um cheiro de sapotilha e abricó, um jabuti se
aproxima da porta do banheiro. De chinelo e com espuma no queixo,
o comandante olha o quintal. A espera, na mesa, sem ainda cortar o
cabelo na moda, a senhora recendendo a banho de São João. Pousa as
mãos no encosto da cadeira, as mãos tranqüilas, assim de pé parece
mirar-se num espelho, feliz de sua figura alta. O comandante ralha
com a arara, vem para a mesa. Olha a senhora: um pouco pálida
talvez, ou efeito do calor, da luz, das rosas na mesa, o anel de aliança,
como sempre. O que usa, o único, a ele fiel. Lá dentro outros anéis se
amontoam. E agora nesta ausência? Indagação sem sentido, um coçar
velha ferida, pedra que volta a carregar logo que chega ao cais, chega
em casa, e deixa a pedra na porta da rua ao sair para a viagem.
Andou pelo caramanchão. Na saleta abriu a escrivaninha,
mexeu à toa em papéis. Aqui o espelho grande a conhece tão bem
mas não tanto como a rua, os carros da praça, o vapor do Mosqueiro,
as areias do Ariramba. Josefina, a velha empregada, feição cada vez
mais de pajé velha, vem com a travessa dos caranguejos. A
extravagância dele: comer caranguejo com talher. De garfo e faca, vai
abrindo o bicho, [142] solenemente, numa lenta, cautelosa operação.
Não pega uma unha, partir o casco nem com o cabo do garfo,
trinchando, sem pressa, obstinado. Atrás das rosas, do saleiro alto, e
de todas as viagens, dos longos anos perdidos, o rosto da senhora
sobre o prato. Vinha a torta de camarão, o pirarucu desfiado, o doce
de bacuri. Aquele gesto dela de levar à boca o guardanapo, tanto ele
conhecia. O café na varandinha aberta sobre o quintal onde lia os
jornais, acolhia o gato, escutando o vento nos abieiros. A senhora
ficava um pouco diante da penteadeira na alcova. Vinha, sentava-se
em silêncio, ouvia-se ranger a cadeira de embalo.
— A viagem? Foste até lá em cima?
Ele desdobrou o jornal, foge-lhe do pé a chinela. Aquela voz,
aquela mesma, que o arrastara, e aqui o deixara nesta varanda, com o
quintal de bicho e fruteira. Também foi assim pela primeira vez:
— Que tal a viagem?
Agora, pesado da digestão e de um vago horror de sua vida, a
mesma pergunta. A senhora, que não estranhou o silêncio dele, foi à
82
varanda, riu a uma graça de Josefina, voltou trazendo no rosto o sabor
da risada. Ele não a encarava, sempre para se dizerem algo que nunca
diziam, O marido levantou-se, calçou-se, apanha os cigarros e o
paletó. A senhora na janela a vê-lo apanhar o bonde. Apagou a sala,
foi embalar-se na varanda, escutando o cantar de Josefina que lavava
a louça.
Subiu a Quinze de Agosto, espiou no Café da Paz, hesitou
diante do bilhar, volta pegando o Curro.
Sozinho no banco do meio, se via menino no Tocantins, a mãe
já viúva, Brincava na burrica, bebia vinho de caju, esperando na beira
da praia os lanceadores de camarão. Secavam no jirau os feixes de
gergelim e ao pé o velho Fileto de volta do rio, dizendo: gente, vai
encher feio este ano. O uruá botou ovo no pau multo em cima.
Encheu. Lá se vai a nossa moradia pelas águas, levanta mais atrás a
casa nova, o araçazeiro roçando o dormitório das galinhas, os ubuçus
em roda, aquela noite os gritos: trapiche arriando! trapiche arriando!
Peso de correnteza ou a mãe do rio? Já bem soturno, com as
inhambus gemendo, os foliões do São Francisco das Chagas do
Miritipucu saltavam na beiragem; lá dentro, no copiar, fazendo sabão
de cacau, as agregadas, tinha um sangue gavião. No mato, os poucos
homens tirando, uns a madeira, outros o sernambi. A família comia
[143] pare|dões de conserva, sardinhas de Portugal, e o dia em Alcobaça quando viu um caiapó debaixo do jupatizeiro, o caiapó. Veio o
cavalo e o índio se assustou. E que estrondo esse Pelos castanhais?
Foguete para espantar as araras que comem a flor das castanheiras.
Com arara solta no castanhal, não tinha safra. E o bloqueio do mapará
no rio, o encontro com o cardume, eivém pelo fundo, eivém pelo
fundo, joga as redes de pari, faz o cerco, o bem menino na montaria
do espiador que espia e escuta o peixe no fundo, avisa quando o peixe
vem, o instante em que Sondou o cardume, o menino na montaria,
Rio, cardume, peixe se debatendo, risada dos pescadores, o caiapó e o
cavalo, esse bem menino, tempo comeu. Na varanda a festinha das
agregadas, a mãe assistia de rede, com a coruja branca no punho,
vigiando na sombra, Batia-se no pilão o cacau torrado para o
chocolate. Cacau gordo, gordura esta aqui em volta do coração
grosso, com aquele sal da salga do mapará, a coruja alva na sombra.
O verde que fez pelo rio na manhã, chegando o motor das cachoeiras.
A arraia de Itaboca (mora debaixo da pedra com toda a cachoeira por
cima) andou esta vez mais braba contra os motores? Fez tremer mais
a terra? Sonhou que arpoava a arraia, trazida de bubuia até ao cais de
Cametá. Talvez por isso o cais adeus. A arraia de Itaboca, no
adivinhar o sonho, se vingou no cais, O cais arriou-se, com ele se foi
o adolescente. Aquela sumaumeira pajureba que serviu — bote tempo! — de encosto da tropa contra o ataque dos cabanos? O rio
também comeu, Aquele cacaual antigo? O rio também comeu. A
aranha caranguejeira, que lhe ferrou o pé, ferra agora muito mais aqui
por dentro, mais peluda, mais doendo. A flecha caiapó, que matou um
lá em cima, guarda sempre a bordo, embebida daquela morte.
Cunhatãs de pé no chão, vestidinho ralo esgarçado em cima da pele,
chega o vapor, lá estão no trapiche, principalmente aquela de
Ituquara, lisa-lisa de cabelo e corpo — ande mas ande, seu imediato,
ara me leve na sua bagagem, me leve com o senhor, um dia? Me bote
dentro da barrica de bolacha e tampe até chegar lá, sim?
Então senão me esconda atrás da lenha, me esconde? Um dia,
sim? A modo que melava os braços, a barriga da perna, com manteiga
de cacau. O seu Cabelo aqui nesta mão, lisinho, cheirando a andiroba,
agora nele chorar um pouco, só um pouco, meio esconder o rosto, só
um pouco mas Inês é morta, Chega o vapor da festa cívica, também
seu [144] navio apitando, também embandeirado, era imediato. Então
aquela alta aparece, a banda tocava, o Bispo abençoava, foguetes pelo
estirão, a alta se aproxima: que tal foi a viagem? Lá se vai à crisma na
Matriz, sai festa no gaiola, tira retrato dela junto ao leme, do chaminé,
sentada no escaler, a cuia de tacacá na D. Miguelina ali na beira, a
alta apanhava o jambu com os dentes no sol, a cuia na mão, os olhos
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no imediato. Segue o gaiola carregado de castanha e da visão daquela
alta, descarrega a castanha mas não a visão, vai subindo o Xingu,
desce do Xingu a sete milhas, chega a Breves. Imediato, um
telegrama para o senhor. Prancheia em Belém. No cais, de chapéu
com pluma, a alta de Tocantins: recebeu meu telegrama? Que tal foi a
viagem? Para encurtar: em maio, à noite, o carro os leva a Batista
Campos, descem de guarda-chuva, da grinalda sobrou um botão para
a tia Carlinda, está escuro, chovendo, a casa de Batista Campos é
grande, quintal molhado e escuro, aquela roseira monte-cristo abrindo
os botões ao pé da janela, os passos faziam um barulho por toda a
casa. Muito do tempo, era bem rapaz, passou pelo Furo do Pajé, no
Limoeiro, saindo para Oeiras, ali jogou presentes para o caruana do
fundo. Quem que por ali passa, não joga presente, vá ver o que lhe
acontece. Não lhe agradaram meus presentes, caruana? No cabo duns
meses, apressando a volta do Xingu, entra em casa, olhou para
Josefina e esta num sobressalto para a jovem senhora que colocava os
brincos, aquela fugindo para a cozinha, e esta: vamos hoje no Remo?
Um sábado, a dama diante do espelho, diante do espelho, a alta entra
no clube. Ele ficou no bar, por onde a senhora? Não danças? disse ela,
voltando do salão, logo apanhada para o salão. Ele continuou
bebendo, uma e outra vez entrevia o ombro, o braço, o giro, com
certeza dela, não sabia, já não estava no escaler e nem bebia o tacacá
nem no cais de chapéu e pluma. Dessa noite em diante, escolhe
aquele quarto pegado da despensa, ali guardou-se, sem que ela
indagasse, lhe pedisse a razão, tacitamente desentendidos, O certo é
que, voltando da viagem, encontrava a casa perfeita, aquela boa
ordem, a mulher a tudo acode com silenciosa exatidão e distante naturalidade, e o que ele preferia, caranguejo, pirarucu desfiado, o açaí no
gelo, na varanda, roupa marcada, chinelo no lugar, tudo a tempo e
hora. Encontrava a mesma mulher serena e serviçal, sabendo pelos
olhos de Josefina, pelos olhos da senhora, pelos olhos da rua, o que
que acontecia, Debaixo dessa, tão ciosa, e constante, de seus deveres
de casa, aquela sem [145] remédio. E sem nunca deixá-la, sem nunca
procurá-la, como se uma obscura compaixão o fizesse permanecer
naquele quarto de onde ouvia o vento nos abieiros. Em toda viagem
fugia dela, vinha chegando flagelado só para vê-la. E a encontrava
assim, como nesta noite, mas tão sossegada, dona de casa mais do que
ninguém. Então, aquele ano, vai a Muaná, dá o baile a bordo;
subindo, apressada ou assustada, ou corrida, pela prancha vem a filha
do Juiz, apanha-lhe o braço, lá se vão no giro da valsa, tranca a dama
no camarote.
O bonde parou no Reduto, Quis saltar, não saltou.
Retira a prancha, toca a sineta, a hélice puxa, apitou, tão de
repente. Aquela moça do baile a bordo, ali no camarote, o navio
fugindo, roubei a moça ou a moça roubou o navio? Ali estava, quem
sabia? o que não pudera alcançar no Amazonas, Peru, Bolívia,
contrabando, rio acima rio abaixo, a colcha de lhama para a noiva,
casamento, caucho, ah bolivianas! rio afora, rio adentro, que fazer
deste imprevisto? Que fazer desta filha alheia? A um canto do
camarote, aquela tão entregue, variando entre curiosa, aturdida,
sucumbida, fascinada, Voltava para a proa, embaraçado com a
tripulação, tentava explicar ao imediato, esperando que o dia
avançasse para devolvê-la, ou dar-se a ela, rumo do Madeira, Desde
aquele casamento, estava em busca do ser ativo, desembaraçado,
sólido, que fora antes. Custoso agora de estar só, de proa a popa, no
meio da guarnição, o passadiço cheio, à cabeceira da mesa, atraca, os
trapiches cheios, e mais só, sem salva-vida, sem socorro, de rio a rio,
navio carregado de inflamáveis e crianças, Belém-Manaus, ManausBelém, carrega castanha no Alenquer, quase levando o diabo no
Tapajós, encalha no Purus, num subir descer até que um dia chegue
àquele porto; agora nestes e a bordo não encontrava senão sua
sordidez, a flecha caiapó no camarote, o rosto da ausente lá da janela
de Batista Campos, queimada do Ariramba ou saindo de Nazaré, da
missa, véu no braço, hóstia engolida. Sobe, desce nos navios da lama,
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entre as taperas da borracha, marés de paludismo e trapiches de lenha
com banzeiro sobre os ralos seres humanos se movendo miudinho nos
estirões. Dentro do camarote a moça de Muaná. Atraca no Curralinho,
faz descer da prateleira o vestido mandado vir da França, que a dona
nunca vestiu, ali novo e antigo para sempre. A dama do camarote
precisa trocar o vestido do baile, e entra no Aturiá, vai pelo Vira-saia,
é a beiragem mal-assombrada das fluas dentro d’água, estão suplicando roupa, pois não é que a dama do camarote joga os dois [146]
vestidos para as suplicantes? Lá ficavam, o da França e o do baile.
Agora, quando passa pelo furo, se chega para a roda do leme olhando
aquela beiragem soturna a ponto de se ouvir o cantar das nuas, ali
ficou a dama da borracha e a dama do baile a bordo. Era um rumo?
Um porto? Rumo esse que só foi a brusca manobra pelos Estreitos, a
moça com quarenta graus, o delírio, o noivo no cais.
Agora neste bonde, gordo no rumo da José Pio, vai ali lançar o
cabo, já sem vapor, pensando em Batista Campos, na estranha que se
embala na varanda, tão íntima, aquela desconhecida de tantos anos, e
que tão bem conhecia. Vem de lá pelo escuro o sabor da risada.
3
[147] Soube? Zuzu no banho. A mãe: e eu que sei, mea filha?
Indaga dele.
A mãe saiu.
Aqui o indagado nem se mexe sem boca nem ouvido, a seu pé a
isca aberta, gomos no chão, o realejo deixado pela Nini: pois ontem
pela Santa Casa. Pois ontem pela Santa Casa... Pela Santa Casa de
Misericórdia. Vinha do banho o Soube? Soube? que lhe gelava o
espanto e a inércia. Pois ontem pela Santa Casa. Pela Santa Casa.
A cuia de banho atrás das palhas, o som do banho no silêncio, a
manhã banhava-se, a jaqueira, a rua. Menos este enfurnado espanto,
esta inércia aqui entre os gomos, pois ontem pela Santa Casa. Pela
Santa Casa. Capaz sair hoje na Folha nome idade doença. Só pedir ali
no balcão o jornal da Brasiliana, corre os olhos pelo registro, na lista
dos morridos... Pela Santa Casa.
O nome.
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A idade.
A doença.
— Mamãe! Mamãe! Chegue só um instantinho aqui ao pé das
palhas, um instantinho, só um instantinho!
Calou-se o banho, a mãe longe. Zuzu, com a vara, colhe da
corda o seu molambo que parecia um bordado. Ana [148] pas|sou.
Resta o nome, a idade, a doença ali no jornal, com a Brasiliana entre o
camarão no coto e a caixa registradora.
Alfredo vai sair e se vê com Zuzu na frente, o braço dela
vedando-lhe a passagem. A mal enxuta, tiras pendentes do ombro, o
arrepiado cabelo escorrendo, a intimação mansa:
— Primeiro primeiro me diga, vá me dizendo, sim? Soube? Foi
triste?
— O que que triste?
— A notícia que aquela outra lhe trouxe. Foi? Que que então se
deu, que só de ouvir, vergou-se, vergou-se, chega transparece.
Olhou para o calado, precipita-se:
— Sim, seu sentimento. Tão na vista!
— O banho lhe fez adivinha? Que que eu soube que não sei
nada?
— Até sua voz transparece. Tempere a goela. Puxe um ar.
Arriou a campainha?
Zuzu baixou o rosto, sem baixar o braço direito, com o
esquerdo espremia a ponta do cabelo. Alfredo sentou-se entre os
gomos no chão. Ela deu um vagar nas palavras:
— Então bem feito pra ti, sua intrometida. Saída franca, passa
por baixo deste meu braço, que não molha, passe, vá. Da sua aflição,
faça bom proveito. Corta tua volta, convencida... Quem que eu era, já,
pra querer saber, não é? Se abaixe, passe, ou não presta passar por
baixo de um braço? Lhe soprozinho primeiro no seu ouvido para um
seu alento, sopro? Mas ao menos mexa ai esse seu pé, professor, O
senhor transpira. Esse seu suor? É do que escutou, que eu sei, sim.
Tira uma prova, é fel.
Alfredo o pé não mexeu, a jaca era aquele pegajoso desperdício.
Zuzu, sacudindo o cabelo, respingava o chão, os gomos. Entra uma
borboleta, lá fora a jaqueira mexia-se, pesadona, resfolegante.
Dela o semblante só me diz: daqui só me sais quando eu te
soprar lá dentro o meu alento. Olhem o seu braço estirado, a
verruguinha, a penugem do sovaco, a gotinha do banho no pescoço, os
trapos entrefecham o peito, colantes. A borboleta vem e vai em torno
dela como se lhe fizesse um vestido, suas cores, sua renda, irisandolhe os trapos. Pela Santa Casa. E esse indagar molhado do banho,
adivinhoso, a súbita voz de intimidade, o braço de novo em cima, é só
tocar nele despenca, maduro, no meu? Ir, retirar a mala, finque o
bandolim e sua tarde de carnaval naquela sepultura, D. [149]
Graziela, ou a sua roupa-de-ver-a-Deus, D. Jovita, cuspir no batente, e
agarrar pela barba aquele coronel até onde é o nome, a doença, a
idade. Pela Santa Casa. Pela Santa Casa.
— O senhor que aqui chegando parecia tão demais satisfeito
embora um tanto mal dormido... e já-já que viro triste? Triste ou
maltratado. Foi só a boca, aquela, lhe encostar no ouvido? Que foi? o
senhor está que está perigoso. A menos puxe um fôlego.
Baixou o braço, exalando seu banho, sobressaída como nunca
era, o olhar perguntador, e seus trapos nesse minuto pareciam enxugála e guardá-la.
— E sua mãe?
— Buscar fluido. Não foi o senhor que trouxe as duas garrafas?
— Onde?
— Que onde?
— O fluido?
— Ah mamãe só volta já de tardinha? Daqui só que chegue lá...
as penas do senhor passam.
86
A erva são caetano se enroscava pelos esteios, caibros e vigas
podres da puxada em ruína.
— Tome esse mochinho que eu mesma armei, uma tarde, por
não ter o que fazer, feito pela mea mão. Não repare o feitio. Dou pra
carpinteira? Se abanque, primeiro sossegue. Quem sabe mais um
golinho de capim marinho, o chá, sim?
Eivém o chá, agora amargoso, um gole só, enquanto ela remove
a laca para o terreiro, os gomos fogem-lhe do braço, volveu depressa.
— Bebo o resto do seu chá só pra saber seu segredo, sim? ah
mas tão amargoso. Até que tem ainda um restinho de mel no fundo do
pote, nem me lembrava nem me lembrei senão temperava. Quer?
Quis mesmo assim amargoso? Ah professor, que ferroada foi, que nos
olhos dele só se enxerga é o seu por dentro doendo? Doendo? Se o
seu natural não é esse, pelo que sei, pelo que oiço... Se é um
desespero, escapula o motivo. Está que está perigoso. Deu que foi um
mistério por dentro do senhor! Mas olhe, olhe! Não se feche tanto que
lhe abro uma passagem por dentro do senhor, estou ou não
adivinhando? Estou? Quente ou frio? Pois lhe rogo uma atenção,
deste tamanhinho que seja, sim? Olhe, sem nenhuma mentira, eu
enchi a cuia d’água ia derramar na cabeça quando olhei na cuia, na
mea mão, cheia, cheinha, sem um [150] cisco. Aquela água na cuja?
Aquela água? Pois não era que nela aparecia o seu rosto escritoescrito me dizendo o que agora, o senhor em pessoa, teima de não me
dizer? Então peguei, derramei aquela água por cima de mim com o
rosto do senhor e tudo. Entrou no meu ouvido, ficou chocalhando,
sacudi, sacudi, e ainda não escorreu.
Sacudiu-se, fingindo água no ouvido, apanhou o pote de mel,
emborcou, um pingo no dedo oferece ao seu conviva. Este, não,
lembrando-se daquela viagem com a mãe, o ponto do rio, já desta
banda de Belém, onde afundou o veleiro com quarenta potes de mel,
quarenta potes de mel. Zuzu lambia o dedo, voltou ao pote, quebrou-
o, lambeu o fundo: que fim levou aquela nossa borboleta? O beiço
amarelou, veio:
— Ah pra que quebrei o pote da mamãe! Dê cá seu lenço.
— Raro eu usar lenço.
— Não é pra limpar meu mel da boca. Tire coisas da sua
cabeça. Pra enxugar, isto, sim, sua testa, o senhor, eu, não, o cantinho
de seu olho, abom!
Assim de cabeça baixa, Alfredo seguia os passos dela, o pé
descalço, a bolha na barriga da perna, o joelho que lego ela cobria
com a mão, puxando os farrapos, o molambo se delia. Aqui por
dentro deste espanto e desta inércia a morta da Santa Casa e aí fora a
viva deste terreiro, sem sossego no calcanhar. Parou de mexer-se a
jaqueira. Rodava pela Independência entre os carros alegóricos o
rabecão da Santa Casa e aqui o intimado numa paralisia, quantos
mortos que não sabemos nos atravessam ou se penduram em nós.
Do fundão, que é este silêncio, o indagar tranqüilo:
— Que sucedimento foi, aí nesse seu susto embutido... Um
assim que lhe diga é já que já se sente tanto? Mas, Deus o livre,
morreu seu pai? Sua mãe, Nossa Senhora! mal? Uma sua irmã? Um
peixinho lá do seu rio que o senhor tanto estimava? Por ser a Bina —
ah tão babada pelo senhor — tão escandalosa mas só pro senhor,
quanto mais enfeitada mais tão feia? Bonita cada vez, mais lhe
parece? Por não lhe ter escrito inda hoje? Se não responde, é porque
é. Febre? Me deixe apalpar seu pulso. Um padecimento de nascença
como coisa que lhe dá e o senhor não explica? Pegou mau olhado?
Mau olhado?
Tirava as talas do paneiro velho.
Alfredo quis sair, não se levantava. Ela se adiantou com um
surdo espanto na voz:
[151] — Mas fora de brincadeira, é? Disque os pombos daquele
telhado já estoriam... O senhor é um deles?
Alfredo nem se mexeu.
87
— Olhe que eu por mim não tinha nem um cuí de paciência que
o senhor vem tendo para abrir aquela cabeça, daquele rude-rude de
entendimento que é o bom do meu irmãozinho. Nem lhe conto o meu
vexame com a mamãe lhe chamando, os rogos dela, era só tirar um
fiapo rente de seus olhos o senhor caçoava. Não faltei vez (o senhor
a! bem puxando pelo cabeçudo) que espiei pela brechinha do quarto,
ver se o senhor malinava com ele, sim, corrigir, carece, razão não lhe
tiro, um professor pode e deve usar da sujeição, aprovar, aprovo. Pois
bem ali dentro esta espiona se metia, vamos ver se esse um do tal do
Ginásio zomba do coitado do meu irmão. Se é que não faz é pouco da
nossa família, sabe lá, se não está se rindo, sã se rindo de semelhante
cabeça dura que nem pau de taperebazeiro. Quem sabe lá no seu
estudo, porfiando na caçoagem com os outros, o senhor: ah pessoal, lá
num pé de jaqueira, faço que desasno um mas que um! Me morda
aqui se não é verdade. Pois o senhor, antes do senhor ser professor,
estudante é. Estudante sendo.
Alfredo escuta, escuta, seguindo a velha parteira, aqui na Santa
Casa, ali ao pé do rabecão, já no rumo do Santa Isabel o lugar o
número — é meu sangue, mea sobrinha, foi filha família, mando rezar
missa nos frades, levantar a cruz pago com meus partos e benzições.
— Ou a moça — sua parenta? — da Chapéus de Palha veio lhe
proibir, sopra no seu ouvido que etc, e tal não convém... que não vale
a pena, olhe o risco... espere, me deixe lhe explicar... excusa do
senhor freqüentar certos lugares... Este terreiro debaixo desta
jaqueira. Por via do abuso dos rapazes, aqueles vagabundos de toda
noite, corre a má fama. Se aqui o senhor vem, culpa é da mea mãe, ela
um dia lhe paga. O senhor prejudica o seu estudo sentando em nosso
banco. Aqui daquela nossa família só é mamãe, meus irmãos, o
terreno é dos Lobos. A jaqueira é deles. O resto é essa cumeeira um
dia caindo em cima da nossa costa visto que nada se tem a não ser um
retalho de vergonha, bem esta é o trivial da gente, como diz mamãe.
Tapou a boca, enxotou o pinto.
— O senhor é livre de ser professor do meu mano. Jaca deixa
nódoa? Xô, pinto, tu és alheio, depois vão dizer que te comi de
espeto.
[152] — Menina, não é nada. Estava é remoendo uma aula na
cabeça, O mais é sonolento desta noite.
— Outra é a sua tabuada, O senhor se riu agora mas eu bem sei
o que tem por detrás do seu rir. Se levantou?
Tocou-lhe com a tala do paneiro, entre ofendida e mangona,
apontou-lhe o mocho, intimou-o, com um espichar de beiço, a sentarse, cruzou os braços num ar sisudo.
— Estudante? Na frente da academia, na Santa Luzia, os
acadêmicos pintam! Uma tarde eu passava, um deles tocando à moda
de uma flauta, tocava numa canela de defunto se chegando pro meu
lado... De noite, olhe eu em casa rezando, tirando aquela porção de
tanta salve-rainha e ave-maria em tenção do dono ou dona daquela
canela que padecia na mão de semelhante flautista. Nisso que eu
rezava esgarçou-se, abriu-se o fundo de minha rede, de tão novinha
que ela era, tive de me ajeitar muito jeitosinha pra não varar pro chão.
Amanheci só numa banda da rede, a outra dependurada. Ou foi o peso
daquela alma? Está aí a rede, coitada, que não me deixa mentir..
Recompôs os farrapos, espantou com um xô zangado os
pássaros da jaqueira, dizendo agora quase em segredo, os olhos lá no
caibro; olhe, olhe, comadre aranha, mea bordadeira, só quero saber o
dia que me entrega tudo pronto os meus bordados, sua boa da
preguiçosa, e tornou, de surpresa:
— Agora me diga se o senhor não sopra flauta em canela de
defunto? Ou o senhor só sopra em canela viva? Deixa está que eu
morrendo, descubro por onde o senhor anda e lhe deixo bem embaixo
de sua rede Como herança a minha canela esquerda, é tudo por pago
da instrução que o senhor a peso de pua mete no coquinho do meu
irmão. Faça dela uma flauta. Fora de brincadeira, me deixa
88
espiarzinho o seu desgosto, sim? Que foi que lhe pingaram nos
ouvidos?
Avançou sobre ele, de olhos fechados, abrindo-os para
surpreender-lhe o segredo e indagou:
— O senhor já andou um dia no trem? Pois eu não. Entra muita
faísca? Ah, o senhor está aqui e não está, é o mesmo. Embarcou no
trem?
Rabecão da Santa Casa. Pela Santa Casa. Capela da Santa Casa.
Capela só dos falecidos pensionistas; o bonde dobra e dá subitamente
com o pano de luto na porta da capela, como se o defunto quisesse
saltar de lá para o banco ao nosso lado. Mas só os pensionistas. Os
outros fedem no gavetão [153] ou vão para a aula, ali retalhados ou
escapolem pelos fundos, envergonhados de sua morte.
— Pra a ferida desse feitio, só sei dum ungüento... Me deixe
lavar antes que feda.
Cravou os olhos nela. Ferida. Feridento, lhe dizia a mãe, no
chalé, quando as pernas sangravam. Feridento, rum! lhe dizia
Andreza, apertando o nariz.
— Que é que está tão me olhando? Sim, a sua mágoa. Quer, eu
vou buscar o espelhinho lá do quarto pra lhe mostrar os avessos do
senhor saindo na sua feição.
Correu — por onde tu te meteste, meu compadre espelho, lindo
espelho de nossa casa, anda, anda, te desencanta — limpou o espelho
na tira do peito, fez beiço, espichou a língua, espremeu a espinha, e se
chegou para Alfredo, o espelho na palma da mão, um espelhinho sem
forro, embaciado.
— Mire, se remire, estude sua figura. Não fuja com os olhos
que o senhor nem é tão feio. Da feiúra, aquela sua, a D. Bina, ficou
com todo o sortimento, se deu uma sobra foi pra mim, aquela
somítica. Tire no espelho só uma linha da sua feição, se veja não se
assuste.
Alfredo no que mal olhou, nem um instante, e ela correndo com
o espelho para o quarto e de lá:
— Sua feição? Seu segredo? Fechei no baú. Mesminho que tirar
uma fotografia. Eu com o medo que com o tanto sofrimento no seu
rosto o espelho se quebre. Quebrando, o senhor me emenda? O senhor
irou-se?
Agora, mãos nos quadris, examinava, à distância, o seu
paciente, cantarolando:
Sereno da madrugada
Sereno da madrugada
Eu caio eu caio eu caio
Sereno da madrugada.
— Ai ai eu bem menininha fazendo roda! Já se passou cem
anos.
Entre aquela visão que sempre foi Luciana e esta de carne e
água de cheiro que é Zuzu, Alfredo flutuava.
— O senhor já sabe que meu irmão, seu aprendiz, não só
aprende com o senhor e na oficina, já arranha na rabeca?
Aqui graceja, dali acena, franze a testa num súbito desdém.
volve atenciosa, adiante fingindo cautela, um faceiro temor, afasta-se,
por que desconfiada? e eivém confiante, [154] sor|rateira, ou
embaraçada ou distraída, pega a velha tesoura, corta a unha do pé,
passa goma nas folhas soltas da cartilha do irmão, “que aviso foi
aquela borboleta?” 56 saber que o meu mano já pode tocar numa
festa, vou de cara lisa na D. Brasiliana: olhe, dona, me encomende lá
do seu estrangeiro, dos seus navios, lá donde não se sabe, um bom
violino que meu irmão vai pagando conforme as festas que tocar. O
senhor que acha?
Vinha da jaqueira a necessária solidão em que os dois se
encerravam. A momentos, Alfredo sobressalta-se: esta recende banho
89
e jaca, a outra, lá onde? fedia. Mas a visão da outra não se rompe,
inteiriça, amortalhando a fazenda, o liceu, a casa, torna em pó o raio,
aquela barba imperial. Seca de vez o Jandiá de onde estoura sobre o
silêncio das derradeiras garças e derradeiro bando de marrecas. Pelo
extremo da culpa e perdição a que Luciana se entregara, ele agora lhe
queria o extremo da inocência e salvação que toda morte reclama.
Ou aqui enfeitiçado, como pensa Nini? Ana, por acaso, não
veleja por ai atrás, consumida de velório e raiva? E quebrava o seu
impulso, deixava-se levar no cativeiro mágico, deixava-se, não
resignado, acumulando repentes, inerme, Ali ficavam os dois, quase
estranhos, embora a qualquer instante ela sugerisse uma brincadeira
que os fazia tão irmãos e tão amantes. Empoou o rosto com tapioca:
— Espalhei bem? Quer passar a mão?
Ele ia atender, ela um salto atrás:
— Eras! Agora isso... Altona e chapeluda não sou, Nem tão
pretinha grudada no portão. Nem seguideira de rastro saindo do
orfanato. Nem tão assim de semblante que espante mosca, pra o
senhor... Ou misturou as quatro peças cismando que sou eu? Pra lá,
Santa Clara sopre nos olhos dele. Sopre, mea Santa Clara.
Veio espiar rente os olhos dele:
— Agora a modo que sim, que Santa Clara soprou. Limpou
seus olhos? Agora lhe dou licença, sim. Da minha parte...
Alfredo roça-lhe no rosto a costa da mão, ela saltou de banda,
soltou um pasmo, batendo o pó nas faces.
— Mas o senhor! Foi que nem uma bofetada. Se desforrando
em mim?
Bordejava em torno dele, prevenida, no provocar fugia, um
momento ao fogão destampou a panela, aquela fumaça no rosto,
tossiu e veio com um tição, rosto lustroso:
[155] — Me deixe então lhe queimar com esta brasa a sua
postema, num instante o senhor sai já daqui com ela seca-seca.
Soprava o tição, fez-se impaciente, foi tapou a panela. Alfredo
coçava a cicatriz da perna, o dedo em cima, por que culpado da culpa
alheia? Em que que sou responsável ou comprometido? E a
absolvição? Ou a absolvição é essa presença, tampa e destampa
panela, tição em punho, a filha da jaqueira? No preparo dos seus
encantos, Zuzu se fazia mais vagarosa, muito tranqüila por muito
dona de suas artes, Mas no chegar ao ponto, desfazia a teia e vai,
recomeça o labirinto, voltando ao giro, “o senhor acha que fico bem
de postinha?”, convida para furarem juntos os bilros da almofada,
Guardou-se no quarto, reaparece se espreguiçando:
— Aquela esteira velha ali na parede? Desenrole e se deite.
Desenrolou a esteira no chão.
— Descanse seus ossinhos desse banco de minha fabricação tão
duro.
E riu, riu porque ia dizendo: bem que sua bunda deve estar já
bem doída, limpou a goela, riu, tapou a boca, enfiou um papel de
jornal na cara, fez um olho no meio, a esteira estalou a seus pôs, agora
ajeitou os trapos, suava um pouco nos braços, foi ao pote d’água.
— Um gole? Nojo da nossa água?
Alfredo olhava-a como se escutasse: vês? Estou tão só contigo
que até nossos anjos da guarda bateram suas asas embora e nada me
dá medo, que a tua aflição me protege,
Pela Santa Casa. Pela Santa Casa. Como a gente ignora tudo,
Mas onde e como procurá-la? Deu tempo para meter-se entre aquelas
do assustado, ali de máscara entrando — a sua casa — encara a irmã,
a cristaleira, o lustre? Assim tão trançada é Belém, tão sem fundo, que
ele não pudesse acudi-la? Ao menos no hospital, nos porões da
indigência, era, pelo menos, uma graça, um perdão, se a visse
morrendo, fechava-lhe os olhos que nunca soube, a boca, não, que em
vida selou sempre. E seguiria, só, e a pé o tardo rabecão. Ou será que
o tempo... Agora nos olhos desta, da agreste maltrapilha, é a morta
90
que me espreita? O mito acaba? Zuzu destampa a panela e corre a
cercá-lo.
— Quem que lhe autorizou o senhor ir fugindo? la? Dando já as
onze no vizinho, Olhe até onde já chegou a sombra da jaqueira, onze.
Coma comigo. Tem um peixe, uma bucha com [156] água e sal, aí na
panela. Não come com pobre? Olhe: as onze, o curtume confirmando.
Coma comigo.
Retirou uns teréns da mesa, fez que pôs a toalha, que não tinha,
trouxe os dois pratos de barro, a cuia de farinha d’água, o Cozido de
piramutaba, gordo e fumegante.
— Não tem é garfo, aquele-menino. Peixe se come mesmo é
com a nossa mão. Como aqui da parte da cabeça. Não repare o mau
passar. É mulher ingrata, piramutaba salgada, se não dá sustento,
embucha, se dá secura, morra de beber água sendo o senhor magro, ao
menos o senhor incha. Olhe eu. Não sou opada? Pode comer sem
susto que quem tratou não fui eu, foi mamãe. Até adivinhando que ia
ter um convidado, coitada da mamãe. Uma pimetinha? Tenha, tenha
fome. Guarde o fastio pra quando debaixo da terra. Com fome a gente
come o mundo. Desentristeça a barriga. Faça um pirão. Ou prefere
caldo?
Desfiou uma banda de peixe no prato dele, derramou farinha,
abriu a palma da mão, no meio estava a pimenta de cheiro, amarela,
guardando o seu fogo. Saboreava o embaraço dele.
— Penando, não? Sobremesa é que é! Só jaca, já enjoa. Deixe
estar que quando o cacho daquele açaizeiro ali nos fundos pintar, lhe
amasso um açaí bem grossinho pro senhor, Deus queira um domingo.
Pra o que que quebrei o pote e lambi o fundo do mel? Mais?
Comendo tão desgostoso tão desenganado! Achando bom? Que
remédio... Acha, sim, do dente pra fora, a delicadeza obriga.
Achando?
Fingiu um desapontamento: café. Café é que não se tem. Aqui é
casa do não se tem. Tudo nunca-nunca tem. Chá? Mas vamos fazer de
conta.
Trouxe duas xicrinhas de folha num prato de barro.
— Tive agorinha me lembrando: pedir emprestado do seu
Bahiano aqui pra nossa festinha aquele xarão dele. Ando atrás de uma
desculpa para poder emprestar dele aquela jóia preciosa. Só falar, o
seu Bahiano é já de chapéu na cabeça e xarão debaixo do braço, rumo
da casa alheia. É festa, é ladainha, um luto. Mas aqui na nossa família
nada sucede nem o meu intera-ano. Hoje, com o nosso professor
fazendo sala, o xarão fazendo uma falta... Mas só estava esperando
que eu fosse no seu Bahiano, pro o senhor se escapulir de vez, não?
Pra, não demora, falando no Ginásio que está arrotando choco por via
da mulher Ingrata que comeu no cocho do seu aprendiz, hein? Deixo
pra só servir o senhor com o xarão do [157] seu Bahiano na tarde do
açaí amassado por mim. É o trato. Olhe que é trato.
Aconcheou a mão ao canto da boca: estás me ouvindo,
açaizeiro? Trato é trato. Me escutando? Capricha esse teu cacho, que
eu com ele tenho um compromisso. E chegou-se para Alfredo:
— Eu, o senhor e aquele açaizeiro, de palavra dada. O tempo
vai dizer quem não cumpre.
Estendeu-lhe o prato com as duas xicrinhas.
— Pegue a sua, não seja desfeiteiro. A do beiço roído, não, essa
outra, faça de conta que é seu café.
Ela, com a do beiço roído, fazia que derramava no pires,
soprava — quente de tirar pele do beiço! — bebia devagarinho, os
olhos nele, acenando que também bebesse.
— Carece de mais açúcar?
Terminado, recolheu as xicras e logo volveu, receando Os
movimentos dele, agora assustadiça, alisando os seus trapos, os olhos
deste tamanho em cima dele, muito enfermeira.
Trouxe água na cuja:
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— Estire a mão, apare que eu derramo, vire a mão, olhe! olhe!
um M escritinho na palma de sua mão. Sabão, queria? Faltando. Ah
que aqui tudo falta. Enxugar que são elas.
Com uma folha de bananeira enxugou as mãos dele, passou as
mãos dele na tira do que foi a barra do outrora vestido.
— Agora sestar. Não disse que está sonolento? Na sua noite em
claro não me meto. Use o sono. Tire um cochilo, um tantinho, um
tantão, se desassuste que não vou cobrir de tapioca o rosto do senhor,
o senhor dormindo. Durma a quantidade de sono conforme vós
queira, conforme o corpo peça, até que o alívio venha, bata palma,
diga: licença para entrar? Aqui neste tapete real, como se diz na
pastorinha, se abolete. Se estire, se espiche, está ouvindo o galo? É o
galo lá doutra banda lhe dizendo: professor, quebre a cabeça do sono.
Esta esteira malafubeca foi pertence de um canoeiro conhecido velho
da mea mãe. Ele tinha a esteira dentro da camarinha da canoa dele, ali
se esparralhava, ponteando violão. Violão foi esse, violão foi esse,
que acabaram lhe tomando a embarcação. O que ele pôde salvar —
nem o violão — só foi a esteira velha, já meio largando os pedaços.
— Me guarde, comadre, que quando a senhora me dê um
agasalho na sua casa, eu me deite nessa esteira de arumã e fique então
me lembrando daquela que foi mea canoa ah por Deus... Eu, Zuzu,
andei me esticando umas par de [158] vezes em cima dela, depois ah
me aborreci. Desenrolei hoje em sua homenagem, o senhor não é
Visita? Se arroje.
É tarde — será que ela escapou do rio em Breves, escapou do
fundo onde aquelas nuas, pela meia-noite, bolam suplicando roupa
aos viajantes e por muita roupa que ganhem, sempre é pouca? escorre
um azul quente pela jaqueira que cabeceia de sono. Zuzu agacha-se a
um canto, descansando os braços no colo. Alfredo deu com aquele sol
desvairado na rua e olhou para onde Zuzu, ajoelhada, se cobria de
repouso.
— Por que ajoelhada?
— Por gosto. Ralar um pouco meu joelho. O senhor não é o
meu santo?
Ele sorriu, ela pulou:
— Aliviou? Supurou a raiva?
Ela foi recuando, de novo de joelhos, apanha a agulha
— deixe lhe pregar esse seu botão da blusa que está cai não cai
— cortou a linha nos dentes.
— Arrotando choco, já?
Ameaçou espetar-lhe com a agulha:
— Se espiche ai na esteira do compadre da moa mãe, se pegar
sarna, do canoeiro não é, é minha. Olhe que depois de comer, o
senhor sair nesse sol, o senhor estupora.
Então ele se decidiu sair e veio para junto dela, pegou-lhe a
mão, ela fez: Deus lhe abençoe, e esquivou-se. Alfredo avançou, ela
recuava, sem fugir, até que esbarrou de costas na parede, frente um do
outro.
— Olhe, professor, que daqui não tem mais pra onde recuar.
Varar a parede não se pode, o meu espírito não pode carregar com o
meu corpo atravessando a parede, o senhor meça, assim também não
é vantagem.
Cruzou os braços, tapando o busto, séria, muito nos olhos dele,
parecendo mais curiosa que surpreendida. Virou o rosto, Os lábios
dele puderam roçar o lombinho da orelha, resvalaram, bastante um
puxão e era toda desnudez.
— Direitinho. Direitinho, professor. Terminho, Terminho.
Alfredo deu uma volta, deu um passo atrás dela que seguia
ensaiando uma valsa até o fogão, viu-a soprar as cinzas.
Rodeou a esteira, foi saindo devagar, lá está a caveira de boi
guardando a puxada. Esperava que Zuzu voltasse das cinzas, o
chamasse, viesse cercá-lo, iremos juntos em busca da sepultura ou no
trem abrir caranguejo em Boiuçucanga.
92
[159] Já aqui na rua escaldante, nesta topada reencontra a
vergonha, medo que apareça a Bina atirando-lhe mais uma carta. Ou
Ana. Entrou pelo portão de ferro dos Boaventuras, boa-tarde, D.
Graziela.
— Mas pra onde então vai levando essa sua mala, menino?
Dudu tem conhecimento disso?
Arrasta a mala e seus castigos, sua pressa, o rosto da mãe na
boca do toldo, o rabecão carrega a sua mudança, cuspir neste batente,
caminhar, salta da cova, a cavalo atravessa o Jandiá, vai aos três
pretinhos da pororoca no Moirim encantados; está na hora, rebenta a
maré, me dá um gole do teu banzeiro, o cavalo flecha o rastro do
Talismã, este agora e ela, o par, lavradão acima.
E aqui na rua ouvindo os galopes.
Pára neste portão:
ALUGA-SE TRATAR NA JOÃO BALBY 234
— É mesmo para o senhor? Sua família? Onde o senhor
trabalha? Tem fiador?
— Meu pai é um major. A senhora me entrega a chave que vou
saber se a casa satisfaz,
Abre a 86, José Pio, portão, cerrado de capim, porta e duas
janelas, rótulas, água encanada, pode-se ligar a luz? Agora dono,
dono, uma noite, desta casa, por mobília esta mala, por família esta
vergonha, Arma a rede, a luz cortada, o quintal meio encharcado,
abrir as janelas, anoiteceu: de lá de cima uma e outra estrela arrisca
um olho. Mexe nos trincos, pendura neste prego o quepe e o mundo,
Pisa forte no soalho, esta tábua me anda solta. Aqui é a senhora
caseando o vestido de cretone, D. Amélia. Ali a folha de lilás lembra
Maninha, Como pingentes do lustre os caroços de tucumã repletos
daquele menino. Nesta austríaca de embalo a visitante por nome
Andreza. E ai, é voz do telhado, façam boa vizinhança, colegas, me
cedam uma lamparina, em troca vos dou um daqueles queijos (e o
ganso?) do padrinho Barbosa. Zuzu bolava no caldo da piramutaba.
Uma vertigem de ir até a quase desnuda e beijar-lhe possível o pé
poeirento, trazê-la, sim, cobrir desta vez, sim, o seu. ombro com o
necessário manto. Ou arrebatar da D. Brasiliana os penhoares que ali
têm dúzias, aquela esgalga crioula de régio penteado, [160]
escancarando os seus roupões de Caiena e Iquitos e todo aquele
enxoval ilícito e secreto, corsária de sótão e moringa, o pente de
Paramaribo e o dela entre os acetinados, renda, pucarinha, frascos de
perfume, fantasia de Rainha de Sabá espalhada no soalho, violão na
penteadeira, defronte a Virgem Maria dá mama ao Menino, a cegonha
da folhinha, as caixas de baralho, a dama de paus, a súbita boneca de
cabelo cacheado adormecida ao pé do urinol de louça, o escudo do
Clube do Remo coberto de serpentinas, os suspensórios do taberneiro,
o irrigador, a pomada contra espinha, a folha de mucuracaá para dor
de cabeça. Sobre os peitos ver donzela o sinal da cruz e as contas
soltas do colar partido, a aragem tufa o lençol — gemeram os pombos
do vizinho? — as fronhas se despencam, atrás da cortina as arcas sob
o oleado, sinuosa e crespa pompadur suada deslizando dos
travesseiros, jibóia na escuma de onde avistava os proibidos
desembarques, o farol clandestino, o fugitivo litoral com o Porca
Prenha, lê embaixo, na taberna, a gritar que abrissem a porta. E a alta,
fechando-se no roupão, vai, abre. Não demora eivém. O Porca de
Belzebu.
— Posto fora do céu?
— Desse inferno aí embaixo, meu anjo. Inda pegou o Cristo, o
último bonde da noite.
Dono desta casa, esta noite, fecho a porta a chave? Ana espia?
Adivinha? Farejando? Ana? Nesta casa, tem o senhor toda licença,
senhor ladrão, que sou eu mesmo, toda licença. Aqui nem o bandolim
nem a roupa-de-ver-a-Deus. Agora, bem escuro, é o seu velório,
morta da Santa Casa, lhe descubro o rosto, morte, esquife e enterro à
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sua escolha. Velar de janela aberta, mais o peito que a janela,
arrotando choco e profundamente sobre a inteira Belém e a honra da
família.
O Utinga apitando. Está para passar, de volta do matadouro, o
velho magarefe. Desta janela quero-lhe dar boa-noite.