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8 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE Favianni da Silva A Eva do século XX: Analice Caldas e outras educadoras – 1891/1945 João pessoa - PB 2007 9 Favianni da Silva A Eva do século XX: Analice Caldas e outras educadoras – 1891/1945 Dissertação apresentada à Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de Mestre em Educação, na Linha de Pesquisa: Fundamentos e Processos Históricos em Educação Popular. Orientador: Charliton José dos Santos Machado JOÃO PESSOA – PB 2007 10 S586e UFPB /BC Silva, Favianni da. A Eva do século XX: Analice Caldas e outras educadoras 1891/1945 / Favianni da Silva. – João Pesoa,2007. ...p. Orientador: Charliton José dos Santos Machado. Dissertação (Mestrado) – UFPB/CE 1. Educação. 2. Biografia – Analice Caldas de Barros. 3. Historiografia - Paraíba CDU 37 (043) 11 Favianni da Silva A Eva do século XX: Analice Caldas e outras educadoras – 1891/1945 Dissertação defendida em ____/____/ 2007 Examinadores _____________________________________ Charliton José do Santos Machado (Orientador) _____________________________________ José Gerardo Vasconcelos (Examinador externo) _____________________________________ Antônio Carlos Ferreira Pinheiro (Examinador interno) 12 Agradecimentos Este trabalho só foi realizado devido às inúmeras contribuições pessoais e institucionais. Portanto, devo sinceros agradecimentos: - À minha família, especialmente, minha mãe, Serafina Maria da Silva e minha irmã, Fátima Maria da Silva, pelo que me ensinaram com seu exemplo de amor; - À professora Martha Falcão, pelos primeiros passos da pesquisa; - Ao professor Charliton, pela orientação deste trabalho; - Aos do PPGE, Severino Bezerra da Silva, Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, Wilson Aragão e Edneide Jezine; Aos colegas da turma 25 do mestrado, em especial, Ernandes, Oscar, Sergio, Júnior Targino; À Coordenação do PPGE; - E aos demais amigos: Fernanda Jorge, Aurora, Nino, Bob, Ana Lídia, Aline, Mia, Juliana, Walesca, Pablo, Geraldo, Berg, Aninha, Cláudia, Priscila, Alcemyr, Adriana Pimenta, Rosa, Whisque, Zilda, Padre Paulo, Fifi, Marcio Cajá, Eduardo Barata, Alfonso La Boca, Boca, Bozó, Rosana, Bodô, Marina, Leo, Kris, Emir, Jorge Negão, Ernandes, Plínio, Clédia, Targino, Edneide, Emilia, Carla, Junior (tio), Caroé, Tatiana, Carol, Carla Solano, Lucio Flavio, galera do Sabá Jampa, Genaro, Fatima, Erones, Ivoneide, Fabrício, Lucas, Aline, Elane, Pablo Sagüi, Bola, Rhodrico, Joelma, Nancy, Soraia, Alice, Ricardo, Tina, Mel, Niaranjan Aninha, Matias, Karina, Chico, Diego, Alison, Viana de Carvalho, Carmem, Adalberto, Ana Paula, Itacy, Augusto, Rodrigo Biserra, Adauto Ramos, Ernandes, Tatiana Medeiros, Francymara, Mariani, Gerardo, Arisnete, Francinalde, Sara, e muitos outros que não caberia numa única página. A todos, muito obrigado! 13 Resumo O presente estudo analisa a trajetória de vida da professora Analice Caldas de Barros e outras educadoras no âmbito da historiografia da educação da Paraíba e do Brasil, no contexto de 1891 - 1945, enfocando, particularmente, suas práticas educacionais, políticas literárias. A escolha se justifica pela luta histórica de educadoras em prol dos direitos políticos e educacionais das mulheres de sua época. Como principal protagonista deste estudo, Analice Caldas de Barros, uma paraibana comum, viveu nas primeiras décadas do século XX, conhecida e citada por alguns estudiosos como sendo uma escritora autodidata que acabaria por se transformar numa grande educadora de seu tempo. Inscrito na abordagem teórico-metodológica da Nova História Cultural, por isso, afirma Chartier (1990, p.16), tem como objeto primordial “identificar como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Nesse sentido, este estudo, através da pesquisa de método biográfico, permite não apenas compreender uma época, através da configuração da atmosfera da respectiva sociedade analisada, mas também resgatar, historicamente, os movimentos de lutas de mulheres na sociedade paraibana e brasileira no decorrer das primeiras décadas do século XX. Para tanto, utilizou-se como fonte de análise o jornal “A União” (órgão de imprensa oficial do Estado da Paraíba), A Revista Era Nova (1921-1926), demais documentos arquivados no Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDIHR e do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, em João Pessoa, além de dissertações e teses. Portanto, considerando o período analisado, momento que se avizinhava uma transformação nos valores ruralistas e oligárquicos das primeiras décadas do século XX, pode-se dizer que, apesar de obliteradas dos discursos históricos oficiais, a professora Analice Caldas de Barros e outras educadoras, abraçaram a bandeira da participação política e educacional da mulher, afirmando outras perspectivas para aquela época, num contexto em que os espaços que lhes eram reservados se limitavam ao cuidado com o marido, os filhos e a administração do lar. Palavras chave: Mulher; Educação; Biografia. 14 Résumé Le présent étude analyse la trajectoire de vie du professeur Analice Caldas de Barros et d’autres éducatrices dans le contexte historiographe de l’éducation du Paraíba et du Brésil, dans le contexte de 1891 – 1945, en focalisant, particulièrement, leurs pratiques scolaires, littéraires et politiques. Le choix se justifie par la lutte historique d'éducatrices dans le profit des droits politiques et scolaires des femmes de son époque. Comme principal protagoniste de cette étude, Analice Caldas de Barros, une paraibana commune, a vécu dans les premières décennies du siècle XX, connue et citée par quelques étudieux comme en étant un auteur autodidacte qui finirait par se transformer en une grande éducatrice de son temps. Inscrit dans l'abordage téorique-metodologique de la Nouvelle Histoire Culturelle, dont, affirme Chartier (1990, p.16), a comme objet primordial « identifier comme dans de différentes places et moments une certaine réalité sociale est construite, pensée, donnée à lire ». Dans ce sens, cette étude, à travers de la recherche de méthode biographique, qui permet non seulement comprendre un temps, à travers de la configuration de l'atmosphère de respective société analysée, mais aussi de sauver, historiquement, les mouvements de luttes de femmes dans la société paraibana et Brésilienne pendant les premières décennies du siècle XX. Pourtant, s'utilise comme source d'analyse le journal « l'Union » (agence de presse officielle de l'État du Paraíba), La Revue Èra Nova (1921-1926), de documents classés dans le Noyau de Documentation et Informations Historiques Régionales - NDIHR et de l'Institut Historique et Géographique Paraibano, dans João Pessoa, outres dissertations et thèses. Donc, en considérant la période analysée, le moment qui s'avoisinait une transformation dans les valeurs ruralistes et oligarchiques des premières décennies du siècle XX, se peut dire que, malgré effacées des discours historiques officiels, l'enseignante Analice Caldas de Barros et d’autres éducatrices, ont étreint le drapeau de la participation politique et educationelle de la femme, en affirmant d’autres perspectives pour ce temps, dans un contexte où les espaces qui leur étaient réservés limitaient aux soins au mari, les fils et l'administration du foyer. Mot- clef: Femme; Éducation; Biographie. 15 Sumário Introdução: Puxando o fio da história---------------------------------------8 Capitulo II: O escrito da vida do outro--------------------------------------17 Considerações teórico-metodológicas sobre história e educação --------------------------------------------------------17 O fazer biográfico-----------------------------------------------26 Capitulo III: Traços de uma educadora -------------------------------------35 Tempos de transição--------------------------------------------38 A escola Normal------------------------------------------------ 43 O ensino profissional-------------------------------------------48 Capitulo IV: A Eva do século XX -------------------------------------------62 A política de saias-----------------------------------------------54 Impasses da APPF com a igreja-------------------------------57 Impasses da APPF com a igreja-------------------------------69 O feminismo brasileiro -----------------------------------------72 Conteúdo educativo da APPF----------------------------------77 Considerações sobre a APPF-----------------------------------79 Capitulo V: Notáveis belletristas--------- ------------------------------------82 Outras educadoras -----------------------------------------------85 Uma vida entre papeis-------------------------------------------94 Considerações finais -----------------------------------------------------------99 Bibliografia: ------------------------------------------------------------------108 Anexos:- --------------------------------------------------------------------------121 16 INTRODUÇÃO Puxando o fio da história “Os historiadores narram fatos reais que têm o homem como ator: a história é um romance real”. (Paul Veyne, 1978) A condição de historiador, fascinado pela riqueza das trajetórias de vidas, me motivou a produzir este estudo. Fruto da contribuição de muitas pessoas, em especial, da professora Martha Falcão1 e do professor Charliton Machado2, na difício tarefa de escrever sobre a vida da professora Analice Caldas de Barros. As inquietações que deram origem a este trabalho surgiram ainda na graduação, quando cursava o terceiro período do curso de Licenciatura em História na Universidade Federal da Paraíba – UFPB entre 2000 e 2004. Contudo, o primeiro contato com o oficio de pesquisador aconteceu logo no primeiro ano, quando colaborava como auxiliar de pesquisa na organização e conservação do acervo de periódicos do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDIHR. Essa experiência, posteriormente, me conduziu a condição de bolsista do programa de iniciação científica PIBIc/CNPq, nos projetos Mulher e Fronteira na Historiografia paraibana – 1945/1964 (2001) e, no ano seguinte, com o projeto José Joffily: parlamentar e historiador combatente (2002), ambos vinculados a linha de pesquisa Estrutura de Poder e sob a orientação da professora Martha Falcão. Vale ressaltar, que entre os anos de 1993 a 1997, a linha de pesquisa Estrutura de Poder, permaneceu desativada e sem encaminhar nenhum projeto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, nem ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIc. Somente a partir de 1997, a professora Martha Falcão elaborou o projeto Resgate histórico da participação política da mulher na 1 Prof. Drª Martha Maria Falcão de Morais e Carvalho Santana, historiadora, feminista,desde 1997 vem desenvolvendo trabalhos de pesquisa nas áreas gênero e estrutura de poder. 2 ProF. Drª Charliton José dos santos Machado, Sociólogo e Educador, desenvolve pesquisa nas áreas de gênero, educação, história e literatura e atualmente coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa “História, Sociedade e Educação no Brasil” – HISTEDBR GT Paraíba – PB. 17 Paraíba: Estado e sociedade – 1928/1940, trazendo à tona informações inéditas sobre a participação das mulheres na vida política e suas ações em âmbito coletivo. Em 2001 o projeto foi novamente elaborado com o nome Mulher e fronteira na historiografia paraibana - 1940-1964 – (do qual fiz parte). Com o término desse projeto em 20023 e, a aposentadoria da professora Martha Falcão em 2004, cessam-se as pesquisas em andamento. No entanto, seus frutos deixaram importantes contribuições para o acervo do NDIHR, entre as quais, o Dicionário da participação política da mulher na Paraíba4, contendo mais de noventa perfis biográficos de importantes personagens femininas da Paraíba, entre o fim do século XIX a meados do século XX (ainda não publicado), além de relatórios de projetos de pesquisa, artigos em congressos e estudos monográficos de final de curso, tais como: A construção do feminino na Paraíba - Revista ERA NOVA 1921/1926 de Ferreira (2000); Movimento de Mulheres: um estudo do núcleo das Noelista da Paraíba na década de 1940 de Costa (2001); A trajetória da emancipação feminina na visão do jornal “A UNIÃO” Paraíba: 1030-1945 de Rocha e Farias (2000), e Vidas e lutas: movimento feminista, de Silva (2004), sobre o movimento feminista na Paraíba nas primeiras décadas do século XX, enfocando particularmente o discurso de emancipação feminina e as suas frentes de luta. Ainda em 2004, certo continuar avançando nas pesquisas anteriores, dou inicio a um novo projeto, cujo resultado se constitui nesta investigação sobre a figura da alagoanovense Analice Caldas de Barros, uma paraibana tida como cidadã comum que viveu nas primeiras décadas do século XX, conhecida e citada por alguns estudiosos como um jornalista autodidata que se constituiu numa grande educadora de seu tempo. A decisão de estudá-la como tema de um estudo de mestrado emergiu em virtude de conversas com a professora Martha Falcão, quando foi sugerido aprofundar as pesquisas acerca de alguma educadora paraibana até então não estudada. A idéia foi reforçada com bases nas pesquisas realizadas nos vários jornais paraibanos do inicio do século XX, existentes no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, em João Pessoa, acenando assim, para sua viabilidade. 3 Posterior a esse projeto, ainda houve um outro do qual fiz parte até 2003, na mesma linha, voltado para a biografia do deputado e historiador José Joffily Bezerra. 4 Neste último ano do projeto encerramos a coleta de dados biográficos que compõem o vol. 02 do Dicionário da Participação Política da Mulher na Paraíba 1940/1964., ainda não publicado. 18 Sobre a respectiva educadora, havia muito pouco registro de outros pesquisadores, se limitando a um artigo publicado no Jornal A UNIÃO, na coluna Brasil 500 anos, pelo exaluno e bolsista Denis Andrade, da referida linha de pesquisa Sexo e Gênero, também orientado da Professora Martha Falcão; nas comemorações trinta anos da morte de Analice Caldas, seu primo, o Cônego Eurivaldo Tavares Caldas, lança seu livro Duas vidas a serviço da Paraíba, Diógenes e Analice Caldas (1975) e, por ultimo, encontramos algumas pesquisas de Laurita Caldas, publicado pelo Instituto de Genealogia e Heráldica da Paraíba (1995). Nas paginas do jornal A UNIÃO, encontro outras informações sobre Analice Caldas, chegando à conclusão que teria pela frente o desafio de escrever a história de uma mulher (in) comum: culta, dedicada às letras, um misto de educadora, de política e de precursora das idéias feministas na Paraíba, mas, cujas realizações pouco estão inscritas na memória social da sua terra. A oportunidade de desenvolver essa pesquisa se tornou real a partir do meu ingresso no Programa de Pós-graduação em Educação - PPGE/UFPB, em 2005, na linha pesquisa de Fundamentos e Processos Históricos em Educação Popular, recentemente reestruturados para História da Educação. Desde então venho “refinando” tanto as perguntas quanto às metodologias e as técnicas de pesquisa, convergindo assim, para o processo de elaboração teórica e, finalmente, as análises das fontes coletadas. No citado movimento de pesquisa histórica, propus refazer os caminhos da vida de Analice Caldas, após 62 anos da sua morte. Ela, arrancada tragicamente do “plano material” quando voltava de viajem do Rio Janeiro, a bordo do avião, um L-18 Lodestar da companhia aérea NAB, do qual despencou dos ares, em Alagoa Santa (MG), precisamente em 15 de fevereiro de 1945. Três décadas após sua morte, Analice é evocada por seu primo e biógrafo, o Cônego Eurivaldo Tavares Caldas5, na perspectiva de uma mulher notável, evidenciando sua dedicação ao magistério, a vida intelectual, a fidelidade à terra natal, a bravura com que se integrou a causa feminista e às campanhas cívicas da década de 1930. Assim, o objeto da pesquisa desse trabalho é a história da vida da professora Analice Caldas de Barros, uma ainda desconhecida mulher da Paraíba do inicio do século XX, que viveu entre 1891 e 1945, nascida na pequena vila de Alagoa Nova e que morou na cidade 5 Major e Cônego reformado da Policia militar da Paraíba, Eurivaldo Tavares Caldas é autor de vários livros sobre personalidades do nosso estado, entre eles, sua própria auto-biografia, é também um dos sócio do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e do Instituto de Genealogia e Heráldica. 19 de Parahyba, capital do Estado da Parahyba do Norte, posteriormente denominada de João Pessoa, em 1930, um dos mais importantes centros urbanos do Estado. Com base nas palavras de Hobsbawn (2002), na introdução de sua autobiografia, em que confessa não pertencer à categoria de gente que parece estar classificada como uma subespécie própria na seção de biografias de pelo menos uma cadeia de livrarias de Londres sob o título “Personalidades" ou, como se diz hoje em dia, “Celebridades”. Este também é o caso de Analice Caldas de Barros, que, a exemplo do grande historiador britânico, não teve o desenrolar de sua vida nos palcos públicos mais amplos, a ponto de nem ser lembrada entre os nomes que compõem a galeria das grandes “personalidades” da Paraíba e muito menos do Brasil. Do ponto de vista teórico e prático, a pesquisa situa em apreender as discussões em torno do debate a respeito da problemática dos novos sujeitos históricos e da ampliação do campo de estudo do historiador. Portanto, as leituras realizadas no campo da Nova História Cultural foram fundamentais para a caracterização do referencial teórico-metodologico. De certo, busco analisar a trajetória de vida dessa educadora e sua contribuição acerca do papel das mulheres nos processos de transformação histórica da sociedade paraibana, tematizando três diferentes perspectivas de sua vida: como educadora, na esfera política da militância feminista e no universo literário e jornalístico paraibano. Definida nossa proposta de análise, estabeleci como recorte histórico da pesquisa as primeiras quatro décadas do século XX na Paraíba, período que corresponde a maior parte da vida atuante de Analice Caldas. Nesse contexto, cabe ressaltar que as primeiras décadas do século XX foram de profundas transformações na fisionomia social, política institucional e cultural do país. Segundo Machado (2006), a defesa das mulheres pelo sufrágio universal, advinda de mobilizações desde o final do século XIX, é um exemplo emblemático, uma vez que a República de 1889 restringia a participação política das mulheres, assim como a maior parte da população brasileira, pobre e negra. O direito a cidadania foi a elas negado, em favor da manutenção dos padrões consagrados à mulher na ordem familiar, ou seja, na dependência ao marido e às atividades de ocupação domesticas. Esse período é marcado, também, por intensa participação feminina no âmbito público, em sua maioria educadora da classe média, que só recentemente passaram a ser 20 mais visualizada, a exemplo dos comitês femininos, criados em prol da aliança liberal6 nas eleições de 1930 na Paraíba, com destaque para a Cruzada Liberal Clara Camarão em Campina Grande e a Liga pelo Progresso Feminino em João Pessoa, bem como, outras associações que souberam ocupar os espaços do âmbito público como, a Associação Paraibana pelo Progresso Feminino Paraibano (A.P.P.F.), fundada em fevereiro de 1933 por um grupo mulheres da elite paraibana, entre várias outras associações de maior ou menor relevância. Sendo assim, busco percorrer as seguintes categorias: gênero, práticas culturais e memória, indo ao encontro da nova historiografia francesa e da reivindicação por um sistema teórico voltado para a história cultural da sociedade, dando ênfase às histórias dos homens comuns, das mulheres comuns, e de suas experiências na construção de mudança social. (MACHADO, 2006). No que tange ao estudo biográfico, vale a pena refletir as palavras que abrem o “dossier” Biografia, Biografias, editado pela Revista Brasileira de História (1997). Naquela ocasião, chamavam a atenção para o sucesso editorial de algumas biografias recentes “escritas por não-historiadores, atendendo a encomendas de editoras com financiamento de pesquisas e tempo de elaboração”, colocando em questão, “mais uma vez, a oposição entre as exigências do mercado e as preocupações científicas com a necessidade de renovação desse gênero de produção histórica”. O sensacionalismo na maioria das vezes barato, enfocando “personagens históricas”, pelo ângulo do pitoresco, do picante e da fofoca, reduzira ao nível da vulgaridade aquelas que poderiam gerar estudos muito mais densos; com certeza, fadados ao encalhe e ao esquecimento do público leitor. Como bem lembrou Hobsbawn, “os historiadores não são colunistas de fofocas”, ao referir-se a sua própria biografia, afirma: “suspeito que os leitores atraídos por biografias de alcova acharão minha própria vida muito sem graça” (HOBSBAWM, 2002 p.10). Como são tidos como sem graça e restritos a um público especializado, as biografias escritas por François Dosse sobre Michel de Certeau e Paul Ricoeur, além dos seus ensaios, em que a autobiografia se propõe assumir uma roupagem diferente, sob a denominação de ego-história. Este é o risco que corro ao levar à frente o estudo biográfico de Analice Caldas, uma personagem cuja vida simples e, aparentemente monótona, passada, em sua maior parte na 6 A Aliança LiberaL: aliança política efetuada em 1929 no Brasil, entre grande parte dos opositores a candidatura de Júlio Prestes à presidência. 21 capital de Parahyba do Norte, no inicio do século XX, impossível de ser transformada num frenético “reallity show”, tão em voga nos dias de hoje. Haja vista que, quando iniciei a pesquisa, conhecia pouco ou quase nada, sobre seus registros escritos, bem como, do que se havia escrito sobre ela, muito embora sejam várias as obras em que seu nome aparece citado e quase sempre como a “emérita educadora”, a “grande literata”, “defensora das causas da mulher” ou pelos menos, como uma das principais notoriedades paroquiais, lutando pela cultura, pela educação e pela modernização de sua cidade e até de seu Estado. De algumas obras escritas por autores que estudaram a história regional da Paraíba, nada mais têm do que registros episódicos de sua vida, em que são exaltados, ou apenas mencionadas muito brevemente, sua trajetória e contribuições literárias e educacionais. Nesse sentido, o que proponho, neste estudo, é conhecer um pouco mais da personagem Analice Caldas de Barros, e, nessa medida, transcender as tópicas citações “da emérita educadora”. Ou seja, me aproximar do ambiente histórico-cultural de sua época. Por fim, saber dos limites e possibilidades que norteavam a vida de uma mulher de vida (in) comum nos primórdios século XX, os caminhos e os recursos que pudessem projetá-la social e politicamente, frente às adversidades de um país que vivenciava grandes transformações em nível político, social e cultural. Por outro lado, muito me animou saber que na Paraíba, da mesma maneira que me propus desde o início, vários outros estudos que tem por tema, as obras de figuras de destaque na cultura, na política e na sociedade no geral, sobretudo, aquelas que tratam da contribuição de importantes expressões da nossa História Regional, a exemplo da tese de Gaudêncio (2003), recentemente transformado em livro, sobre o intelectual Joaquim da Silva, cidadão nascido em Areia, Província da Parahyba do Norte7. Neste estudo, o autor configura, inicialmente, a renovação recente nas perspectivas de abordagem da Biografia. Sua análise se detém na trajetória do biografado e suas múltiplas facetas como indivíduo: educador autodidata, político atuante, advogado provisionado, agente cultural, empresário precursor, estudioso dos problemas de sua terra, para cuja solução apresentava e programava medidas concretas. O percurso do personagem é retraçado na relação com a sua cidade, situada no Brejo paraibano, uma região singular que adquiriu projeção político- 7 Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de doutor em História, junto ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica. 22 cultural, mesmo no contexto da secular crise econômica e social da província. As intervenções de Joaquim da Silva no espaço local apontam-no como uma pessoa dinâmica e dotada de uma visão abrangente da sociedade, para além do seu meio de vivência e convivência, podendo-se caracterizá-lo como um ilustrado do Império. Outro estudo de igual relevância é a tese de Machado (2005): A dimensão da palavra: práticas de escritas de mulheres, um estudo sobre as práticas artísticas e literárias de educadoras de vida comum do sertão paraibano, representado pelas novapalmeirenses: Zila da Costa Mamede e as irmãs Bezerra de Medeiros: Maria da Paz, Maria da Guia e Maria da Luz8. O estudo traz à tona figuras públicas que alcançaram notáveis posições e visibilidade no campo da arte, da política e da educação, entre as décadas de 1960 a 1980. O autor ressalta suas práticas culturais nas diferentes esferas da vida social, práticas que remete as maneiras de pensar, sentir e agir no interior dos conflitos e tensões da vida cotidiana, ou seja, interpretações das experiências de homens e mulheres que particularizam aquela sociedade. Focalizando as mulheres da classe trabalhadora, temos o trabalho de Ferreira (2006), sobre a líder camponesa, Margarida Maria Alves -1933/1986, retratando sua trajetória política e educativa no movimento sindical de mulheres9. Nesse estudo, centrada na memória coletiva, a autora busca focalizar o sentido histórico-cultural das suas práticas e representações, construídas a partir de interesses específicos e de conflitos das suas próprias lutas reivindicatórias, frente às políticas emanadas pela cultura oligárquica dirigente na Paraíba. Estes e outros estudos em andamento se constituem em importantes fontes de informação e compreensão do nosso objeto pesquisado. No conjunto, esses estudos têm contribuído para o desvelamento de novos sujeitos nordestinos, em sua maioria mulheres, que em condições históricas desfavoráveis, deslocaram-se para a vida pública, isto é, para fora dos territórios sociais que lhes foram reservados como naturais na sociedade. Nessa perspectiva, esse trabalho, é antes de tudo, um desafio. Posto que o registro biográfico aqui realizado é umas das formas de se fazer ouvir, escrevendo a necessidade de 8 Tese de doutoramento (2001), defendida pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), hoje transformada em livro (2005). 9 Dissertação de mestrado (2005), defendida pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), transformada em livro em 20o6. 23 se investigar as razões históricas da omissão da participação das mulheres na história e na historiografia brasileira, especialmente, a paraibana. Assim, através da abordagem biográfica, busco vê-la como uma mulher detentora de uma consciência especifica do mundo, que muito pode dizer sobre o ambiente histórico e cultural vivenciado, pois segundo Febvre (1956, p.46), “o individuo é apenas o que sua época e seu meio permitem que ele seja”. Por fim, os rumos que as leituras realizadas tomaram e o contato com o material coletado, me levou por três diferentes perspectivas: Em uma, analiso o papel histórico e social dos (as) profissionais envolvidas na constituição da educação elementar na Paraíba, a partir da trajetória individual dessa educadora. Em outra, foco nosso objeto de estudo com relação a um movimento mais amplo, de abrangência das relações de gênero e educação, no processo de transformação das relações sociais, caracterizada pela crescente inserção da mulher na vida pública como um todo, pela explosão do feminismo10; Bem como, a respeito do florescimento na Paraíba de uma produção liberatória de autoria de mulheres, em que, certamente, não por acaso, são as primeiras escritoras paraibanas também as primeiras educadoras, a grande maioria esquecidas pelos escritos da história oficial. Dessa forma, o trabalho é dividido em cinco capítulos, nesse primeiro (introdução) – puxando o fio da história, destaco a delimitação do objeto de estudo, buscando descrever as motivações e inquietações que originaram o tema. No segundo apresento a condução da opção metodológica adotada, enfocando os pressupostos teórico-metodológicos da Nova História Cultural e o desenvolvimento da abordagem biográfica nos estudos históricos educacionais. No terceiro capitulo, enfoco a educadora, Analice de Caldas Barros, sua origem, formação e atuação ao longo das décadas de 1910 a 1940. No quarto, a pesquisa percorre a configuração do contexto político paraibano na década de 1930, na qual Analice Caldas de Barros atuou efetivamente as suas práticas educativas e as adversidades vividas por ela e por outras educadoras, em outros espaços, como a Igreja e a associação feminina. Nesse capítulo, apresento, ainda, algumas informações sobre a dimensão da vida pública e privada da educadora e as suas posições assumidas frente à contextualização do cenário em que estava envolvida entre os anos de 1930 a 1945. No quinto e último capítulo, destaco como contribuições as novas recordações, algumas memórias, sobre outras expressões 10 Surgido no final do século XIX na Europa e que se espalhou nas décadas seguintes em grande parte do mundo ocidental, inclusive no Brasil 24 femininas na educação, nas artes e na literatura, enfocando a trajetória intelectual de Analice Caldas. 25 CAPITULO II O escrito da vida do outro “É difícil traçar a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida do homem é um capitulo instantâneo de sua sociedade”. (Euclides da Cunha) Considerações teórico-metodológicas sobre História e Educação. Para os cultores do que seria a “verdadeira história”, segundo os paradigmas ditados pela academia e que privilegia apenas os grandes cortes, seria perda de tempo, ou coisa parecida, um trabalho acadêmico centrado em uma biografia, ainda mais, quando desenvolvido num programa de “Pós-Graduação em Educação Popular”, com pouca ou quase nenhuma produção sobre “histórias de vidas”. Na verdade, o mergulho na vida de um só personagem, quanto mais de uma desconhecida das grandes correntes historiográficas e que nelas se inseria, era realizado somente quando se tornava necessária uma eventual ligação com seu espaço e seu acanhado meio – a capital paraibana do inicio do século XX. Aí sim, podia-se então encontrar uma ou outra tímida tentativa de perscrutar sua importância em nível local ou, no seu limite, regional. Porém, nas últimas décadas do século XX, essa concepção de história vem refletindo mudanças. Para tanto, foi necessário que a historiografia brasileira desse um salto significativo, no tocante a abordagens mais específicas e sofisticadas, com destaque para a microhistórica e os enfoques sócio-culturais, incorporando instrumentos analíticos da antropologia e da análise literária. É, portanto nesse cenário, segundo Dosse11, da história em migalhas, que a biografia retorna com força total, mas diferente da tradicional. Porém, é no território das pesquisas educacionais, que os estudos biográficos vem adentrando, 11 26 atraindo o interesse de muitos pesquisadores, principalmente, daqueles que se inserem chamada Nova História da Educação. Segundo Souza (2006 p.136): A crescente utilização da abordagem biográfica em educação busca evidenciar e aprofundar representações sobre as experiências educativas e educacionais dos sujeitos, bem como potencializa entender diferentes mecanismos e processos históricos relativos à educação em seus diferentes tempos. Essa utilização da biografia revela um aspecto muito interessante, segundo Carino (1999), trata-se do que se pode denominar sua instrumentalidade educativa, ou seja, as construções biográficas contêm uma instrumentalidade educativa, podendo ser apreciada no contexto de uma pedagogia do exemplo. (1999, p. 154). Não se biografa em vão, biografa-se com finalidade precisas: exaltar, criticar, demolir, descobrir, renegar, apologizar, reabilitar, santificar, dessacratizar. Tais finalidades e intenções fazem com que retratar vidas, experiências singulares, trajetórias individuais transforme-se, intencionalmente ou não, numa pedagogia do exemplo. A força educativa de um relato biográfico é inegável. Nesse sentido, trata-se de utilizar o individual em beneficio do coletivo, de fazer com que as experiências, vivencias e realizações de um individuo sejam apropriados pela educação, tanto em seu âmbito formal e sistemático – a escola – quanto especialmente, no sentido educativo mais amplo – a leitura direta da biografia influenciando com os exemplos que contem. Essa nova leitura da biografia só foi possível a partir do final dos anos de 1970, graças a abertura dos estudos históricos sobre a subjetividade, a prática da história oral e as experiências do cotidiano. No entanto, essa expressão é resultado de um movimento mais amplo, que diz respeito às mudanças paradigmáticas e às rupturas que se operaram no âmbito das ciências humanas e sociais, sentidas por volta dos anos 1970 ou mesmo na década anterior, quando então, se deu os primeiros sinais da crise dos paradigmas explicativos da realidade, ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os grandes quadros conceituais em praticamente todos os campos do conhecimento humano. 27 O arcabouço intelectual que vai impulsionar e aglutinar todo esse debate na História, está intimamente ligado ao que se convencionou designar de História Nova 12. Surgida sob a forte influência da Escola dos Annales, no final da década de 1929 na França, com a fundação da revista Annales d´histoire économique et sociale, em 1929, por Bloch e Febvre. Todo esse movimento se constituiu numa nova forma de se pensar as questões historiográficas, em oposição aos métodos tradicionais de investigação e a concepção corrente da história, ou seja, a história factual e dos grandes feitos. Seu desenvolvimento favoreceu um rompimento com as tradicionais barreiras disciplinares, mas não com as fronteiras, como observa Le Goff (1988), abrindo espaço para a pesquisa interdisciplinar. Segundo Burke (1991, p.11-12), as diretrizes dadas pelos Annales propunham: em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma históriaproblema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas da história política. E em terceiro, visando completar os dois primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas. Mais tarde, um segundo movimento, chamada de segunda geração dos Annales, com os trabalhos desenvolvidos por Braudel, recebendo também outra denominação, a de Annales Économies Societés Civilizations 1947/1969, e, posteriormente, uma terceira geração com Jacques Le Goff na presidência da 6º seção da École13 ao passo que a revista Annales passou a ser dirigida por Jacques Revel e André Burguiere, pesquisadores que, como Le Goff, se dedicavam às mentalidades. Para muitos historiadores, a historia das mentalidades, produzida pela terceira geração, foi a principal corrente da chamada nova história até fins de 1970, pois as preocupações com os modos de sentir e pensar sempre ocupou a atenção dos annalistas desde os primórdios da revista Annales. Mesmo nos anos de 1960, os estudiosos das mentalidades sempre se reconheceram como herdeiros contemporâneos de Bloch e de Febvre, por muitos chamados de pais fundadores da chamada nova história produzida na França. Porém, as tentativas de delimitar o campo teórico e metodológico da história das mentalidades, acabaram desgastando seu conceito. Segundo Vainfas é nessa época que se 12 Na verdade, o termo “nova história”, não é novo, as formulações de Le goff (1988) é que assinalaram essa manifestação sobre as novas pesquisas; os novos problemas; as novas abordagens e as novas fontes que a nova história passa a ecoar na França, evidenciando um novo campo de saber, portanto uma “nova história”. 13 28 verifica a ruptura paradigmática marcada pela mudança de preocupação da base socioeconômica ou da vida material para os processos mentais, para vida cotidiana e suas representações. A partir daí, acontece uma proliferação de uma série de novos campos, herdando os temas e as problemáticas das gerações anteriores da nova história, apresentando caminhos alternativos para a investigação de novos atores histórico-sociais, portadores de novos questionamentos, a exemplo da história das mulheres, história da vida privada, história do cotidiano, história dos excluídos, história vista por baixo e a microhistória. Contudo, o grande refúgio da história das mentalidades vem a ser a nova história cultural. Surgida entre as décadas de 1970/80 na França, fruto de uma série de novos olhares sobre os acontecimentos, sobre a própria ciência, sobre as estruturas e as transformações da época. Segundo Vainfas (1989) a história cultural, ao mesmo tempo em que procurou defender a legitimidade do mental, não abriu mão da própria História como disciplina ou ciência, buscando corrigir as imperfeições teóricas que marcaram a corrente das mentalidades, valorizando as múltiplas atividades culturais constitutivas da vida humana. A história cultural rejeitou o termo mentalidade, por ser muito vago, contudo, não negou a relevância do mental, não recusou, pelo contrario, a aproximação com a antropologia, nem a longa duração, e longe de rejeitar os temas das mentalidades e a valorização do cotidiano. Além disso, ainda segundo Vainfas, ela se apresenta como uma nova história cultural, para distinguir da antiga “história da cultura”, não recusa as expressões culturas das elites ou classes “letradas” e revela um apreço especial as manifestações das massas anônimas, pelo informal, pelo popular. Busca uma preocupação em resgatar o papel das classes sociais, de estratificação e mesmo de conflitos sócias (diferentes das mentalidades). Em fim, é uma história plural. Dessa forma, segundo esse autor, é possível selecionar três maneiras distintas de tratar a história cultural que, sem prejuízo de outras, permitem distingui-la da “antiga” história das mentalidades: A história cultural segundo Carlo Ginzburg; notadamente sua noção de cultura popular e de circularidade cultural; a história cultural produzida pelo E. Thompson, especialmente na sua obra sobre movimentos sociais e cotidianos das classes populares e, a história cultural de Roger Chartier, particularmente; os conceitos de representação e de apropriação. Com base neste ultimo autor, busquei 29 direcionar teoricamente este estudo, onde, segundo Chartier, propõe-se compreender: (1990, p. 102). A partir de uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem. Sendo assim, o objeto da história, portanto, não são ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, os indivíduos. Essa orientação da história cultural, como advoga Chartier, vem interferir na concepção estruturalista da história, que tinha como pressuposto a totalização das múltiplas atividades dos acontecimentos humanos. A presença da história no campo da cultura desloca sua atenção para a história dos homens comuns, das mulheres comuns, preocupando-se com as investigações acerca das suas práticas e representações sociais, das suas experiências na construção da mudança social. Segundo Chartier, representações pensadas como algo que permita “ver uma coisa ausente”, quer como “exibição de uma presença”, decorrente da apreensão e da apropriação do real pelo indivíduo em suas práticas culturais, como pela sua co-participação na sociedade enquanto sujeito agente situado no tempo e no espaço, historicamente determinados. Em outras palavras, o objetivo central do conceito de representação é trazer para o presente o ausente vivido e, dessa forma, poder interpretá-lo. Enquanto que, o de apropriação, segundo mesmo autor (1990, p. 26), é "construir uma história social das interpretações remetida para suas determinações fundamentais” que é, social, o institucional e, sobretudo, cultural. Para o historiador da cultura, é muito importante ressaltar, que o passado só chega aos dias atuais por meio das representações. Para Pesavento (2003 p. 42): "a rigor, o historiador - da cultura - lida com uma temporalidade escoada, com o não-visto, o não-vivido, que só se torna possível acessar através de registros e sinais do passado que chegam até ele". Nesse sentido, o objetivo da história, portando, não é mais ou não são, mas as estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo das relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, o individuo. (MACHADO, 2006). 30 Essa compreensão permite, portanto, fazer uma leitura das práticas culturais cotidianas, entendendo que à sua maneira, elas dão uma versão diferente, distinta, particular do que se convencionou chamar de abordagem histórica vista de cima. Desvendar um objeto a partir de um acontecimento pequeno pode contribuir, sobretudo, para verificar intensamente as nuanças históricas enraizadas na vida cotidiana. Seguindo essa tendência, a historiografia educacional, enquanto campo de estudo, também se ampliou consideravelmente nas ultimas décadas, com especial interesse pelos estudos da formação das mentalidades individuais e coletivas e das estruturas sociais. Nesse sentido, a história da educação também foi afetada por essas mudanças conceituais e de perspectivas, resultado de suas inter-relações com a história e das suas posições especificas. A história fragmentou-se em varias outras direções e a história da educação foi uma delas. Curiosamente a História da Educação, enquanto disciplina, é associada não propriamente a História, mas, a Pedagogia14, notadamente, no final do século XIX na Alemanha, com a finalidade de formar profissionais docentes. No Brasil, esteve permanentemente ligada à formação docente nas Escolas Normais e nos cursos de Pedagogias. Somente nas ultimas décadas, vimos surgir nos cursos de Pós-Graduação. (ZEQUERA, 2002). Embora se noticiem estudos históricos sobre a educação a partir do século XVII e na passagem do XVIII para o XIX, é na transição do século XIX/XX que há uma significativa produção historiográfica da educação (SCOCUGLIA, 2003). Esse modelo de historiografia pedagógica conviveu no inicio com os modelos “positivistas”, que entendiam o trabalho do historiador como simples coletor de dados, que por si só, servia para construir a imagem do passado. Como conseqüência dessa interação de modelos, a historiografia educativa dos séculos XIX e começo do XX caracterizou-se pela ênfase à história das idéias, dos grandes pedagogos, das instituições educativas, servindo aos propósitos pragmáticos e moralizantes. O avanço da historiografia da educação, engendrada nos múltiplos entrecruzamentos da história com a pedagogia, demonstra a aceitação da história da educação como campo importante de um conhecimento ainda pouco explorado. Segundo Scocuglia, (2003, p.142). 14 A história da educação, enquanto disciplina, faz parte dos currículos escolares nas escolas normais e universidades da Europa, já no final do século XIX, provavelmente tenha sido em 1891 o ano da nomeação do seu primeiro professor, em Harvard (Lopes, 1989: Nunes et alii, 1994). 31 Como é possível conhecer a história de um indivíduo, de um grupo, de um país, sem compreender suas educações, suas escolas, suas pedagogias? Como subsistiria uma história das “representações”, ou história das “praticas culturais”, sem o entendimento do educativo-pedagógico, seja ele escolar ou não? Para Saviani (2003), as relações entre História, História da Educação e a Formação do Educador são estreitas, por conseguinte, intimas, pois que é a educação senão a construção sócio-histórica e cotidiana das narrativas depessoal e social? Nesse sentido, para formar homens e mulheres é necessário um profundo conhecimento da realidade humana, que é essencialmente histórica. O educador necessita então, se familiarizar com a história, a história da educação ou em outros campos educacionais, da legislação, das reformas educativas, da história do currículo, da escola, da pedagogia, dos (as) educadores, das práticas e culturas escolares, da feminização da profissão, do processo de profissionalização e das práticas docentes, do cotidiano escolar, etc. Com ênfase nessas observações é que tentamos adentrar na história da educação, especificamente, focando as mulheres, enquanto profissionais do ensino, que, em muitos aspectos, ainda são relegadas ao esquecimento. Segundo Santos (2005), são múltiplas as faces da dominação e da opressão e muitas delas foram negligenciadas pela teoria critica moderna, a dominação patriarcal é um exemplo, não por acaso, que a sociologia feminista nas ultimas décadas produziu a melhor teoria critica ao introduzir as relações de gêneros como elementos constituintes nos processos de transformações sociais. A tarefa de escrever essa história exigiu novos modos de pensar as diferenças, como foram construídas. Nesse sentido, o conceito de gênero, passou a ser categoria teórica dessa questão, inicialmente utilizado pelas feministas americanas que a escolheram para enfatizar o caráter, fundamentalmente, sócio-cultural das distinções baseadas no sexo. Nesse campo de abordagem teórica, a relação entre gênero e história constitui-se numa categoria de analise que se impõe na revisão da história da humanidade, habitado e construído por homens e mulheres. O mesmo recai sobre a educação que não pode mais ser analisado sob a ótica de um sujeito universal. Segundo Scott (1992), a critica trazida pelo desenvolvimento da história da mulher colocou em xeque os historiadores tradicionais que escreviam o sujeito da história como uma figura universal, acabando com “mito” de que as 32 mulheres não estiveram presentes, como agente e sujeito no processo histórico da sociedade. Atualmente, esse campo de estudo revela-se bastante promissor, desde que incorporemos algumas lições ao nosso fazer a história da mulher no Brasil, isto é, devemos fugir da história que fez da mulher uma vitima, ou o seu inverso. Os campos de analises mais produtivos para a história das mulheres, são aqueles “aparentemente” desprovidos de interesses, onde encontramos as mulheres anônimas, ou com diria Duby “os murmúrios femininos que se perdem num coro tonitruante de homens que os sufocam”. (Apud, DEL PRIORE, 1988 p. 12). Ainda segundo essa autora, melhor do que tentar responder se as mulheres tinham poder, é tentar decodificar que poderes informais e estratégias elas detinham por trás da ficção do poder masculino, e como se articulavam sua subordinação e resistências. Recuperar a história feminina na educação tem sido o objetivo de muitas pesquisas Brasil, das quais destaco o trabalho de Almeida (1998): Mulher e educação: a paixão pelo possível, onde a autora nos esclarece sobre a condição das primeiras professoras do curso de magistério; o trabalho de Louro (1997), Mulheres na sala de aula, retratando a história privada dessas pioneiras da educação, nos relevando as sutilezas da mentalidade republicana brasileira; e por fim, o estudo de Chamon (2005), Trajetória de feminização do magistério: ambigüidades e conflitos, onde procura mostra através do levantamento factual do processo de surgimento do professorado em Minas gerais, a evolução do magistério como profissão feminina. Para citar apenas alguns trabalhos relevantes nessa pesquisa. Além desses, destacamos outros trabalhos preocupados em resgatar a contribuição feminina, como exemplo: Balhana (1988), História da Mulher: um novo território do historiador; Alves e Pitanguy (1983), O Que é feminismo; Barroso e Costa (1983), Mulheres, mulheres; Bosi (1983), Memória e sociedade: lembranças de velhos; Rago (1995), Do cabaré ao lar: a utopia da idade disciplinar: Brasil – 1890/1930. A produção sobre a história das mulheres na Paraíba - mesmo considerada tímida, como observa Ferreira (2006), é tida na educação como tema emergente, fértil em pesquisas e produções acadêmicas, principalmente, nas duas últimas décadas do século XX, mostrando que já é uma prática estabelecida no mundo acadêmico. Santana (1996), em sua brochura Mulheres em marcha: balanço e perspectiva e nos projetos de iniciação cientifica, 33 citados anteriormente, deu uma enorme contribuição, avançando, significativamente, na problemática das histórias das mulheres na Paraíba, inaugurando uma temática pouco trabalhada na nossa historiografia e comprometida com a análise da participação política e social das mulheres do século XX. Mais recentemente, também a nível local, temos o livro de Machado (2006), Mulher e educação: história, práticas e representações, trazendo vários estudos acerca da história e atuação de educadoras. Outro que merece ser referendado, organizado por Scocuglia e Pinheiro (2003), é o livro Educação e história: no Brasil contemporâneo, contendo vários textos que abordam alguns aspectos da história da educação no Brasil contemporâneo. Assim como diversas outras pesquisas em andamentos, circulando em publicações especializadas, sob forma de livros e artigos em mídia impressa ou digital através da internet, em apresentações de trabalhos em congressos e simpósios de História e Educação15, nas dissertações e teses, defendidas e em andamento nos diversos programas de Pós-Graduação em Educação do país16, formando pesquisadores e professores na área de história da educação. Enfim, todos estes estudos vêm ganhando interesse dentro e fora do mundo acadêmico, principalmente, depois da publicação do excelente trabalho, Histórias das mulheres do Brasil (1997), ao meu ver, um divisor de águas na historiografia brasileira. Revistando nossa historiografia, desde os clássicos que escreveram pioneiramente a história da Paraíba, como Machado (1912), História da Província da Parahyba; Irineu Joffily (1892), com Notas para a história da Paraíba; Almeida (1966), com História da Paraíba e, ate mesmo em obras de autores contemporâneos, a exemplo de Mello (1994), História da Paraíba: lutas e resistências; Sylvestre (1993), Da revolução de 30 à queda do Estado Novo: fatos e personagens da história de Campina Grande e da Paraíba (19301945), sem falar da maioria dos livros didáticos usados nas escolas de ensino fundamental e médio, constatamos a ausência da mulher como sujeito e agente da história. A exceção de Joffily, em sua obra, Anayde Beiriz: paixão e morte na revolução de 30 (1980), livro que originou o não menos e discutido filme Paraíba mulher macho, de Tizuka Yamasaki, no inicio dos anos de 1980. Ambos referências vitais para esta pesquisa, pelo fato de que tanto 15 Publicações SBHE, EPENN, e outros. 16 A exemplo das bases de pesquisa Gênero e Práticas Culturais, vinculada ao Departamento de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN, criada em 1998 e o GT/PB: História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR), ambos com o objetivo de formar pesquisadores na área de história da educação, 34 Anayde Beiriz, como Analice Caldas viveram na Paraíba na mesma época, constituindo assim, uma importante fonte de informação e compreensão das primeiras décadas do século XX. O fazer biográfico Para os menos avisados, Analice Caldas é apenas o nome de uma Escola Municipal no Bairro do Jaguaribe ou da Biblioteca Municipal de Alagoa Nova, para outros, é lembrada como uma mulher dedicada a nobre tarefa de “educar e instruir”. Trata-se, portanto, de uma mulher aparentemente comum, uma professora como tantas outras de sua época. Em face dessa complexidade me coube indagar: por que escrever uma biografia dessa educadora? A história de Analice Caldas me chamou atenção por ter sido ao seu tempo, uma pessoa bastante influente no universo intelectual paraibano. Porém, quem de fato teria sido essa mulher? O interesse por sua história aumentou na medida em vou descubrindo que além de professora, também havia sido, uma árdua defensora das idéias feministas ao seu tempo, no papel de sócia fundadora da Associação Parahybana pelo Progresso Feminino (A.P.P.F.), em 1933, ao lado de outras mulheres. Esse mesmo grupo, ao que parece, desempenhou importante papel nos bastidores da política do nosso Estado, além de ser uma emblemática expressão de atuação políticas feminina em plena década de 1930. Foi, também, uma das primeiras mulheres a fazer parte do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano – IHGP, em 5 de julho de 1936, juntamente com outra colega de igual singularidade, Alice de Azevedo Monteiro. A resposta à indagação: “quem de fato teria sido está mulher?”, não poderia ser imediatamente respondida, senão por referências aos vínculos que vão se conectando a sua história, no momento em que adentramos em seu mundo político e cultural, lendo seus textos, vendo suas fotos, seus registros por onde passou, ouvindo seus parentes e amigos ainda vivos. Com certeza, são inúmeras as histórias ao longo do seu tempo e espaço, seus fazeres práticos, seus sonhos não realizados, suas lutas por causas perdidas e vitoriosas, 35 seus momentos de alegrias e tristezas, suas horas de sofrimento silencioso, suas vitórias e seus fracassos. Assim, mergulho no labor da pesquisa documental questionando as possíveis pistas que possa me conduzir na escrita de sua história. No primeiro contato com o material coletado (artigos de jornais, citações do seu nome em livros e revistas) me indago acerca das contribuições que a pesquisa traria para a história da educação? E mais: qual a sua contribuição à educação? No campo político da A.P.P.F. qual sua inserção no histórico debate sufragista? Havia sido uma coadjuvante, ou teria sido uma personagem importante nos movimentos de sua época? Qual a sua contribuição no universo intelectual paraibano? E, onde localizar outros documentos que dessem conta de preencher estas indagações? Em síntese, a pesquisa baseou-se, inicialmente, no levantamento bibliográfico de estudos sobre a temática, a exemplo de monografias, dissertações, teses, publicações de eventos – artigos de congressos e seminários - além de jornais e revistas publicadas nas décadas de 1930-1945. A partir dessa primeira investigação foi possível organizar as fontes mais “visíveis”, proporcionando assim localizar as fontes primárias, constituídas de escritos seus publicados nos meios de comunicação oficial da época, buscando estabelecer relações que permitissem levantar questões acerca do perfil e da atuação dessa mulher, cuja vida foi atravessada por momentos significativos, não somente relacionados ao cotidiano escolar, mas, as práticas políticas e literárias do seu tempo. Essa primeira etapa demandou uma procura constante por informações históricas da personagem Analice Caldas, impulsionou a buscar por depoimentos de familiares, a exemplo de seu primo o Cônego e Major Eurivaldo Caldas Tavares, único parente contemporâneo ainda vivo, hoje com 86 anos e autor de várias biografias, entre elas o livro Duas vidas a serviço da Paraíba, Diógenes e Analice Caldas (1975), trabalho de extrema relevância para nossa pesquisa, haja vista que me possibilitou localizar informações pertinentes a biografada. Muito desejei localizar outros familiares, ex-alunos e até amigos e colegas de trabalho ainda vivos, para, quem sabe, poder utilizar os recursos da história oral e da memória, porém, por motivos de tempo e recurso não foi possível concretizar tais recursos metodológicos. Após essa primeira etapa, realizei uma outra, mais profunda, buscando informações das instituições escolares nas quais lecionou, dos clubes e associações nas quais militou e 36 fez parte, além de pesquisa em arquivos públicos e privados, a exemplo: do arquivo do NDIHR, IHGP e da Fundação Casa de José Américo de Almeida, entre outros. Em síntese, o desafio consistiu literalmente em juntar pedaços de histórias, como um imenso quebra cabeça, para assim, construir o universo da personagem pesquisada. Assim, fui estruturando um caminho que permitisse recolher detalhes, garimpar vestígios, ou, até mesmo, desvelar traços de uma vida entrelaçada em outras tantas vidas de sua época. Por esta orientação de pesquisa, me aproximo da perspectiva micro-história a qual a biografia se enquadra, entrecruzando dados, decompondo tramas, buscando construir enredos possíveis, descrevendo dinâmicas de um tempo não tão distante, no qual, a partir de uma situação particular, possamos compreender a maneira como os indivíduos produzem o mundo social de uma determinada época. Nesse sentido, a micro-história, entendida como uma importante vertente da história cultural, onde pode conter em si mesma um forte caráter pluridisciplinar, na medida em que incorpora o concurso da sociologia, da antropologia, da literatura e da própria educação, desde que a compreendamos não como uma alternativa à macro-história, mas, como campo de pesquisa capaz de rearticular a indagação histórica em torno de uma maior flexibilidade das escalas de pesquisa da macro à micro-história. (REVEL 1977). Diante da intenção de construir uma biografia, eis que surge um problema: como construir essa narrativa? Inicialmente, imaginei escrever sua biografia nos moldes tradicionais, ou seja, perseguindo um formato linear, iniciando por um começo, meio e fim, centrando nos feitos cronologicamente ordenados da biografada. Em sua maioria, as biografias tradicionais são constituídas por discursos enaltecedores do personagem focalizado, tendo a intenção de destacar o herói, o político, às idéias como verdades absolutas, privilegiando, assim, a dimensão publica dos personagens. É Rodrigues (1966) que fala, em seu estudo sobre Teoria da história do Brasil: introdução a metodologia, que a biografia é tida como a história de uma única vida, tendo como tarefa a personalidade, ou seja, a individualidade tornada objetiva, a individualidade própria - desse ou daquele homem - e no máximo de suas ligações sociais, econômicas e morais. Contudo, é Bourdieu (2006) que fala acertadamente da “ilusão biográfica”, isto é, de quanto um relato coerente, com uma seqüência lógica de acontecimentos, pode, inclusive, nos ludibriar, passando uma idéia de utópica completude, considerando indispensável 37 reconstruir o contexto, isto é, a “superfície social” em que age o indivíduo, numa pluralidade de campos a cada instante. Segundo esse autor: (2006 p. 189/190). Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquele de um nome próprio é quase tão absurdo quando tentar explicar a razão de um trajeto no metro sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. O mesmo defende Levi (2006). Em muitos casos, as distorções mais gritantes se devem ao fato de que nós como historiadores, imaginamos que os atores históricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrônica e limitada. Seguindo uma tradição biográfica estabelecida e apropria retórica de nossa disciplina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões. (2006 p.169). De fato, esta racionalidade que caracteriza as autobiografias e as biografias é problemática para o historiador, em razão de mascarar as ambigüidades, as contradições e as descontinuidades. Dessa forma, tanto Levi como Bourdieu aponta-nos uma alternativa para romper com a linearidade, qual seja: a busca das técnicas da literatura, um terreno muitas vezes pouco conhecido para os historiadores. Evidentemente, não quer dizer que o historiador deva trabalhar como romancista, pois cada um tem sua prática especifica; um lida com as múltiplas representações, com a história e, o outro, com a poesia e ficção, livre das correntes que o possam prender à realidade. O romancista moderno está consciente que o real é descontinuo e que nem por isso deixar de ser real. Além disso, sabe lidar com desenvoltura com o fragmentário, o fugaz e o ocidental. O historiador então se valendo dos recursos oferecidos pela literatura, poderá recuperar ou recompor os fragmentos perdidos da história. Assim, ciente de que o resultado da apreensão do real seja sempre uma verdade aproximada, haja vista que a própria realidade vivida e dinâmica não se deixa ser apreendida facilmente, maior era a certeza de que nunca daria conta da totalidade de sua vida, me afastando da possibilidade de querer organizar um sentido único para sua história, 38 ou perseguir uma linearidade, sem incorrer em inverdades, pois, tratava-se de construir um enredo da vida de uma pessoa comum, que já partiu dessa materialidade há muito tempo e que muito pouco restou de sua história. Portanto, ao analisar a documentação disponível, senti a necessidade de buscar outros caminhos para a produção biográfica de Analice Caldas. Sendo assim, é possível escrever sobre a vida de um individuo? Segundo Levi (2006), essa indagação levanta questões importantes para a historiografia, onde geralmente se esvazia em meio a certas simplificações que tomam como pretexto a falta de fontes. Segundo esse autor, a falta de fonte não é a única e nem mesmo a principal dificuldade de se fazer esse tipo de trabalho. Então, será esse um método adequado à análise da referida realidade social? Atentos aos perigos do campo em que me movo e das dificuldades que se apresentam na construção de uma biografia, principalmente quando cercada de elogios e louvores, pode torna-se um forte apelo para que deslizes sejam cometidos. Pois, tenho em mente que a lógica da história é a própria lógica do agir humano, em que cada ação individual somente assume significado se inserido numa perspectiva de longa duração, na trama das ações recíprocas produzidas ao longo de gerações e pela vida em comum dos indivíduos que mostre os tecidos conectivos entre a história pessoal de um personagem, familiar ou de grupos e entidades de mais largo alcance e de mais longa duração, como o Estado, a Igreja e os códigos jurídicos, que se imbrica na construção das relações de poder, da mesma forma que, as estruturas de articulação do saber e sua transmissão. Pensando a biografia, como uma das maneiras, talvez mais antigas de se fazer história17 e seu retorno nos novos moldes que indicam o caminho para a interdisciplinaridade, geralmente tendemos aproximá-la da sociologia como campo de conhecimento. Afinal, é vivo o interesse geral, não apenas pela memória histórica, no sentido restrito, mas pelas memórias sociais em geral, uma vez que a memória histórica pode ajudar a estruturar a memória individual e até as coletivas, penetrando, assim, os espaços sociais em que se produz e se vivifica a cultura. Não a cultura no seu velho sentido, restrita quase sempre apenas à produção intelectual e artística, mas enquanto conceito que 17 O gênero biográfico sempre existiu na história desde a antiguidade, com diferentes objetivos, por exemplo: na Grécia, era um gênero popular para enaltecer os heróis, na Idade Média servia para legitimar e escrever a história dos santos e homens ilustres, tornando-se um instrumento de grande importância para a reconstrução histórica de períodos remotos. As crônicas biográficas de reis, senhores feudais e santos são, em muitos casos, os únicos documentos disponíveis sobre fatos ocorridos em suas épocas 39 se desdobra em seu caráter polissêmico, revisto e criticado pelas Ciências humanas e Sociais18. Nesse caso, a história, enquanto um dos domínios mais antigos do saber deve corresponder a necessidades profundas de gestação da memória social, exigindo o desdobramento da atividade do historiador, que passa a incorporar o arqueólogo, o sociólogo e o antropólogo, entre outros, gerando um fecundo diálogo interdisciplinar. Dessa forma, entendendo que qualquer modelo teórico, com base em alguns fatores, não possa dar conta da complexidade do mundo, abarcando a totalidade das experiências humanas, como deixaram transparecer os investigadores dos macro-processos sociais, haja vista que, também, é uma ilusão querer abarcar a história de uma vida a partir de um punhado de fragmentos. No caso específico desse trabalho, em que tento escrever a biografia de uma personagem até agora praticamente desconhecida, a professora Analice Caldas de Barros, torna-se necessária a construção de uma ponte que leve ao passado e que permita o estudo do indivíduo em sua imersão social, no plano da curta e da longa duração, realizando, assim, uma travessia entre o singular, específico, individual e o plural geral, coletivo, cuja interação produz a singularidade. Esta viagem pressupõe uma tarefa árdua e inexaurível. Nessa tarefa, é necessário segundo Arruda (1999 p.35) cabe: Não descuidar dos detalhes, da filigrana, do aparentemente desprezível, mas também não deixar de inscrevê-los na teia ampla da macro-história, na sua cadeia relacional e, daí, inverter a trajetória retornando ao pontual, ao contingente tornado emblemático. A esta primeira aproximação impõese uma segunda viagem que transcorre da descrição à análise, da narrativa à reflexão teórica. Deixo de lado as terminologias e mergulho no ato de biografar em si, dando a ele os contornos que a emoção dos depoimentos e a frieza dos papeis permitem construir. Deixo de lado também, a ilusão da unidade biográfica ou a busca por uma identidade educadora Analice Caldas, parafraseando Fischer (2006 p.266): (...) Tal busca se institui como um ato contínuo, sempre inacabado, uma vez que a cada novo dado coletado, cada nova informação colhida, permite esboçar uma outra configuração para o que pretendemos, tentar biografar está mulher. Uma biografia – assim como a identidade – será 18 Ver a respeito, entre outros: CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, SP: EDUSC, 1999; BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1998; HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 40 sempre similar a um jogo de quebra cabeça, ao qual faltam algumas peças e, por mais que se queira dar um formato, nunca se chegará a completá-la integralmente. Assim, convictos que o ato de biografar carrega em si uma rarefação, passo a imaginar outras formas de contar sua história, sem, necessariamente, assumir a dimensão de totalidade, nem sequer de seguir uma ordem cronológico-linear, uma vez que as informações colhidas me permitem várias maneiras de adentrar nas histórias de Analice Caldas. Assim, tomo como referência o estudo de Fischer19 As caixas de papéis de Nilce Lea: memórias e escritas de uma simples professora, onde a autora também se deparou com a escassez de fontes e os problemas peculiares da abordagem biográfica. Para resolver esse problema, ela imaginou a possibilidade de contar alguns pormenores da vida dessa professora por meio de tópicos, não linearmente enlaçados uns aos outros, como link20 numa tela virtual”. (FISCHER, 2006). Nessa perspectiva, seu trabalho permitiu diferentes possibilidades de conectar o conjunto de informações entre si, estabelecendo ligações que favorecesse outros nexos possíveis. A autora toma por referência o trabalho de Pena (2004) na qual ele cria a idéia de “fractais biográficos”, tornando visíveis identidades múltiplas de um sujeito sobre o qual se pretende escrever, não impondo compromisso com cronologia e fechamentos. Segundo essa autora: (2006 p. 267). A possibilidade de narrar diferentes momentos ou circunstancias sem preocupação com andamentos cronológicos, dividindo fatos e achados quase como fractais, permitindo a quem ler a possibilidade de iniciar em qualquer das partes, abandonando totalmente a lógica de começo, meio e fim, e confirmando a fragmentação dos processos identitários imersos em redes infinitas. Assim, encontro na proposta dessa autora, a resposta a nossa pergunta de como dar forma ao texto, a partir da ênfase de acontecimentos isolados, porém marcantes, e a partir deles estruturar um formato, desdobrando a forma de escrever numa dimensão multifacetada, permeada pelo contexto histórico e social do período em destaque. Segundo Levi (2006, p.167), essa utilização da biografia repousa sobre uma hipótese implícita que pode ser assim formulada: qualquer que seja a sua originalidade aparente, uma vida não 19 Texto publicado no II Cipa Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica. 20 Os links são pontos de conexão entre diferentes partes de texto de um mesmo website ou entre diferentes websites 41 pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrario, mostrando-se que cada desvio aparente em relação às normas ocorre em um contexto histórico que o justifique. A ambiência e a época podem ser fatores preponderantes para caracterização de uma atmosfera histórico-cultural, que explique as singularidades das trajetórias, uma vez que a reconstituição do contexto histórico e social em que se desenrolam os acontecimentos permite compreender o que a primeira vista parece inexplicável e desconcertante. Nesse sentido, Febvre (1956) nos lembra que, não podemos chegar a nenhum saber histórico se não conhecermos o “universo mental” de uma sociedade, na qual o historiador encontra as aspirações, pois, o individuo é apenas o que a sua época e seu meio permite que ele seja. Portando, o procedimento de não separar o individuo de sua historicidade, me dar a possibilidade de preencher lacunas deixadas pela documentação por meio de comparações com outras pessoas cuja vida apresenta alguma analogia, por esse ou aquele motivo com a do personagem estudado, aflorando as relações do individuo com a sociedade em que está inserido. Reconstituindo, assim, um tecido social e cultural mais vasto, contextualizando o indivíduo, ao invés de prender-se a ele, acreditando na possibilidade de compreender uma vida deslocada do espaço social e de sua história sem, necessariamente, assumir uma dimensão de totalidade, nem de ordem cronológico-linear, como geralmente se faz nas biografias e histórias de vida tradicionais, as quais não se propõem quaisquer questionamentos. Enfim, a proposta não é mais as propriedades e sim as probabilidades que constituem o objeto da descrição. Dessa forma, o estudo da trajetória de vida de Analice Caldas de Barros e de outras educadoras, personagens da educação, da política e da cultura letrada da Paraíba do inicio do século XX, insere-se no contexto de retomada da biografia como objeto renovador da Nova História da Educação, da mesma forma, suas relações com a história sócio-cultural. Nele, o que se pretende é a realização de uma biografia social, reconstruindo história de vida de mulheres comuns – isso se comparada com “grandes” nomes da história política e cultural da Paraíba, como José Américo de Almeida, Pedro Américo e José Lins do Rego, nomes que se destacaram na política, na literatura e na arte paraibana. Portanto, o estudo biográfico que realizo, não teve o sentido da louvação, ou de uma mera exaltação dos feitos da biografada ou de descrição pormenorizada da vida de uma 42 determinada pessoa como, de maneira simplificada, se costuma definir a biografia. Pelo contrário, o que se pretende, é investigar o meio e a realidade de Analice Caldas dentro dos parâmetros espaciais em que ela atuou, na cidade de Parahyba, capital do Estado da Paraíba, bem como suas ações e seu envolvimento com a educação, a política e a cultura local. Mais do que isso, a ampliação dessas ações em âmbito local, imbricando-se com as principais ocorrências sócio-políticas e culturais que se verificavam na capital paraibana, um importante centro urbano e cultural do Estado e mesmo do Nordeste no inicio do século XX, naquilo que possa iluminar a compreensão do personagem. Assim, podemos pensar em uma micro-história ligando-a à macro-história ou, ainda, numa verdadeira “história vista de baixo”. (SHARPE, 1992). Nessa medida, esse estudo propõe-se como uma importante contribuição para o entendimento do século XX, sobretudo no que se refere a alguns pontos importantes: os caminhos da mobilidade social da mulher numa dada sociedade patriarcal. Entender sua vida, suas dificuldades, seu modo de ser, agir e pensar pode revelar as representações, os valores e a própria mentalidade do seu tempo. Afinal, todo o estudo biográfico deve se constituir em uma contribuição para o conhecimento de uma época ou de fases importantes da vida nacional e seus reflexos no âmbito regional, ou simplesmente, para conhecer a vida dos homens ou das mulheres comuns, espelhando as aspirações e as angústias da coletividade em que se estavam inseridos, fazendo-a como a sonhava e a sonhando-a como queria fazê-la. 43 CAPITULO III Traços de uma educadora No discurso proferido na seção especial de 16 de agosto de 1976 37, no então Instituto Histórico e Geográfico Paraibano – IHGP - a professora Tércia Bonavides Lins teceu o seguinte comentário (LINS, 1976 p. 5): “acompanhei-lhe os passos, exultando com suas conquistas e vitórias; ora lamentando as perdas materiais e humanas e sempre como membro integrante dos seus movimentos literários e cívicos”. A professora Lins se referia a “deleta amiga”, Analice Caldas de Barros, por muitos anos companheiras na árdua tarefa de educar e instruir no então Liceu Industrial, antiga Escola de Aprendizes Artífices e atual Cefet - Centro Federal de Educação Tecnológica. Nascida sob o signo de virgem, em 30 de outubro de 1891, na Antiga vila de Alagoa Nova, elevada a cidade em 1904. Analice era filha do Sr. Manoel Paulino Correia de Barros e de Ana Salvina de Caldas Barros, tradicional família de proprietários rurais da região do brejo paraibano e, neta por parte da mãe de Antônio Felix de Caldas Brandão (1834/), membro de tradicional família da qual se projetou na sociedade paraibana, através do “insigne varão e integérrimo magistrado”, tio de Analice, Trajano Américo de Caldas Brandão Junior ou simplesmente Dr. Caldas Brandão (1861/1933), bacharel em ciências sociais e jurídicas e desembargador do Supremo Tribunal de Justiça da Paraíba, Sua cidade natal, atual Alagoa Nova, situa-se numa região fértil e muito encantadora do estado da Paraíba, localizada na microrregião do brejo paraibano, planalto da Borborema, há 530 metros de altitude, como lembra o Cônego Francisco Lima: (...) “terra de altiplanos e de horizontes infinitos, terra de pequenas propriedades, das casas de farinhas das grotas verdes e das estradas de alvíssima areia”. (Apud. TAVARES, 1975). Os primeiros anos de sua infância, Analice Caldas cresceu ao lado dos irmãos38: Lauro, Anatólio e Cléa, no ambiente “bucólico” da propriedade de sua família, vendo e aprendendo o fabrico da rapadura e a destilação da aguardente, escreve Tavares. (1975). 37 Na ocasião do lançamento do livro do Cônego-Major Eurivaldo Tavares em 1976, na qual foi publicado em “plaqueta” pelo no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. 38 As referências sobre a genealogia de sua família, é fruto dos estudos de um dos familiares Laurita Caldas dos Santos, no inicio da década de 1990, pelo Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, localizado no IHGP. 44 Ainda segundo o autor, desde cedo, Analice se destacou no aprendizado das primeiras letras. Seus pendores pelo estudo eram tais que, almejando ir mais longe, não hesitou em por de lado os carinhos paternos e os encantos da vida despreocupada do campo, largandose em busca de melhores triunfos, lembra Tavares. (1975, p.41). Outros detalhes sobre a primeira fase da vida de Analice ainda me escapam a apreensão. Onde e como Analice Caldas estudou o ensino das primeiras letras? Estudou em escolas do município ou nas escolas providas pelo Estado Provincial, ou foi educada por tutores, haja vista que, naquela época, as moças “bem nascidas” tinham sua educação primária conduzida por professores do mesmo sexo que seus alunos? Bem, quem sabe como um pouco mais de calma e persistência, mais na frente encontre novos documentos que possam preencher essas lacunas. Visto dessa forma, cabe tratar então um pouco do contexto histórico educacional, pois se trata de inseri a biografada dentro do seu universo. Sobre o sistema educacional brasileiro, particularmente do Nordeste no final do século XIX, ainda era extremamente rudimentar e de difícil acesso, impossibilitando aos homens e mulheres livres e pobres – fossem eles do campo ou da cidade – a freqüência às escolas. Muitas vezes, nem mesmo os grandes proprietários rurais, moradores e mandatários de vastas regiões do interior, tinham condições de estudar. Em sua maioria, eram analfabetos, salvo aqueles que mandavam seus filhos “adquiria cultura” – estudando em Portugal, nas faculdades de Direito do Recife e de São Paulo, de Medicina e Farmácia, na Bahia, ou, simplesmente, ingressando na vida religiosa. Do final do século XIX, às primeiras décadas do século XX, essa situação começar a dar sinais de mudança, com o advento da Republica, recém instaurada em 1891. Diante da limitação documental sobre essa fase de sua vida, o contexto histórico local pode me dar algumas pistas sobre como era a escola nos pequenos municípios paraibanos da época, onde Analice Caldas possa ter estudado. No final do século XIX, o ensino das primeiras dava-se, através das varias cadeiras isoladas39 espalhadas pelas cidades, vilas e lugares mais populosos, regulamentadas desde os anos de 1827 e que nem de longe dava conta da carência da educação na Paraíba. Essa iniciativa já era um avanço importante na 39 As cadeiras isoladas refere-se a forma de organização da escola publica na política educacional imperial brasileira, mais tarde, já no século XX, substituído pelo modelo das escolas reunidas e grupos escolares. Esse tema é produto da tese de doutorado do professor Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, que versa sobre a constituição de um sistema público de educação escolar no estado da Paraíba, desde os seus primórdios até aproximadamente 1950. O autor buscou uma periodização que, em vez de se marcar por etapas históricas já consagradas pelo viés político, busca na forma de ser das escolas o apoio para sua descrição e análise. Daí o título do livro, que vai das cadeiras isoladas aos grupos escolares. 45 educação elementar brasileira que, desde a expulsão dos jesuítas do Brasil no século XIII, encontrava-se extremamente abandonada, resumindo-se a poucas instituições mantidas pela colônia e pela igreja católica, enquanto o povo continuava entregue ao completo descaso. Segundo Pinheiro (2002), em 1907, o município de Alagoa Nova tinha três dessas “cadeiras isoladas”, sendo uma para o sexo masculino, outra para o feminino e uma terceira cadeira para ambos os sexos, que funcionavam em casas alugadas, e mais tarde em construção, especificamente destinadas às escolas acima referidas. Contudo, não há como confirmar se ela estudou realmente nessas escolas, uma vez que não encontrei documentos que comprove tal foto. O que se sabe com certeza é que após concluir o curso primário, Analice foi morar com a família do tio, o magistrado Caldas Brandão, em antigo Solar40 à rua das trincheiras na capital da Parahyba, para poder continuar os estudos. (TAVARES, 1976). A convivência com a família do seu tio provavelmente foi marcada por uma educação diferenciada da que tivera ao lado dos pais, mas não menos cercada de cuidados. Segundo Tavares, sua educação era acompanhada pela família dos Caldas Brandão, “o verdadeiro aprendizado onde aprimoraria o caráter e aprenderia, ao vivo, duradouras lições de integridade, equilíbrio e bom senso” (TAVARES, 1976 p.41), juntamente com os filhos do casal, em especial com seu primo, Diógenes Caldas, filho do Dr. Caldas Brandão, a qual mantinha grande apreço. Ambos se emulavam na solução, não apenas de problemas domésticos, mas das causas comuns em que se empenharam pela elevação e grandezas da Paraíba que os dois idolatravam e porfiavam por melhor servir e dignificar. (TAVARES, 1976, p.41). Outro que foi biografado pelo cônego Eurivaldo Tavares, tendo dedicado um livro inteiro à vida “feitos” desse personagem, igualmente importante na história de Analice. Assim como o pai, Diógenes Caldas Brandão (1886 – 1972), também se formou Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais em Pernambuco, porém, atuou como Agrônomo e Botânico ate o fim da vida41. Dedicou-se, desde cedo, as letras, foi escritor, jornalistas, poeta. Sua 40 Não foi possível achar seu antigo endereço, porém ouvimos falar recentemente – já no final da pesquisa - de alguns livros pertencentes a ela, no qual consta sua assinatura e seu endereço, esses livros estariam amontoados num antigo deposito, pertencentes a Biblioteca Analice Caldas, em Alagoa Nova. 41 Diógenes Caldas Brandão , faleceu aos 86 anos, a 31 de dezembro de 1972. 46 primeira função pública foi o de diretor da Biblioteca do Estado, ainda acadêmico em 1907, então com 21 anos, recebendo até um poema de Augusto dos Anjos (Apud, TAVARES, 1975 p.38): Austero, superior, quase de beca. Escavaca, remexe as livrarias. E para aproveitar horas vadias Faz paródias na própria Biblioteca A convivência com a família do tio e, particularmente, com seu primo Diógenes, talvez possa ter incentivado-a a dedicasse às mesma atividades jornalísticas. Ambos escreviam para jornais e revistas chegando até a fundar um jornal em Alagoa Nova42. Os laços de amizades, estabelecidos ao lado do primo, perpetuaram até o fim de sua vida, mesmo tendo Diógenes se estabelecido no Rio de Janeiro, todos os anos, Analice impreterivelmente empreendia viagem, onde passava as férias ao lado da família do primo. Na ultima que fez, em fins de 1944, abordo do Navio Black-Out, correndo inclusive o risco de torpedeamento de submarinos alemães naqueles incertos dias de guerra, não conseguiu retornar a sua terra natal. O acidente que lhe tirou a vida também levou outras 11 pessoas, incluindo sua prima Suzette Caldas Tavares, então irmã do Cônego Major Eurivaldo Tavares Caldas. Tempos de transição A mudança para capital, por volta do ano de 1909, certamente marcou profundamente a vida da “menina do interior”, crescendo no cosmopolitismo da capital. Pois, ao contrário da pequena Vila de Alagoa Nova, a cidade de Parahyba (hoje João Pessoa) em 1910, já era uma cidade considerada de médio porte, começava a respirar os ares da modernidade, com suas praças comerciais, luz elétrica, escolas e prédios suntuosos. A cidade crescia, seguindo o ritmo de outras cidades do Nordeste e do resto da nação. Por volta da década de 1920, profundas transformações abalam os valores e as tradições da sociedade brasileira em geral e, do Nordeste em particular. Era a época de efervescência, 42 Fonte: Discurso proferido por Humberto Carneiro da Cunha Nóbrega em Alago Nova, em 30 de janeiro de 1966 e publicado na Revista do IHGP. Vol. 20 – 1974. 47 com a intensificação da urbanização, a industrialização crescente, provocando a transformação da economia, antes essencialmente agrária. O Brasil se modernizava, intensificaram-se as industrializações da economia impulsionada pelo pós-guerra, provocando um rápido crescimento das camadas urbanas médias e altas que se incorporaram à luta social e política. A legitimidade do sistema político, dominado pelo grupo agrário exportador é colocado em questão e uma mudança ideológica se opera entre as elites intelectuais. Segundo Trindade (1979, p.7), o ano “chave” desse período foi 1922. Nele eclodem quatro acontecimentos simbólicos que contém, em embrião, a mutação da sociedade brasileira entre as duas guerras mundiais. A Semana da Arte Moderna, em fevereiro, desencadeia a revolução estética; uma nova etapa da organização política da classe operária se delineia, em março, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro; a criação do Centro D. Vital, ligado à Revista A Ordem, de orientação católica, prenuncia a revolução espiritual; e, finalmente, a primeira etapa da revolução política tenentista irrompe, em julho, com a rebelião na Fortaleza de Copacabana. É também a época de uma imprensa diária, da abertura de cursos para moças, da migração das grandes famílias da aristocracia canavieira do campo para a cidade, onde a casa-grande e a senzala se tornam o sobrado e o mocambo, para lembrar Gilberto Freyre, bem como do aparecimento de uma classe média. Um período em que se fragiliza a dicotomia espaço público e espaço privado, com a possibilidade da interação entre um e outro, o que favorece atuação das mulheres fora do domínio do lar e onde, ainda se vivia sob a égide das tradições patriarcalista mais arraigadas e desfavorável à presença da mulher na vida pública. Vale lembra que a implantação da República proporcionou novas condições políticoinstitucionais que favoreceram o mandonismo local exercido pela elite proprietária rural desde a colonização. A república instalou-se de acordo com os princípios do federalismo, permitindo mais liberdade aos estados para procederem de forma autônoma, consolidando o poderio das oligarquias já existentes e, proporcionando o surgimento de novas facções oligárquicas ligadas à expansão do comércio, especulação e atividades industriais. No entanto, as bases da estrutura de poder permaneciam essencialmente rurais, fundamentadas na propriedade da terra, na dominação exercida pelos coronéis e na representação política 48 de suas respectivas oligarquias. (GURJÂO 1994). Analice Caldas43 era filha desses senhores de engenho, que, na Paraíba se constituíam uns dos fundamentos de sua estabilidade econômica e social, ela mesma era proprietária de terras na pequena Alagoa Nova. A nova paisagem urbana, embora ainda guardasse muito da tradição ruralista, era cada vez mais povoada por populações novas e heterogenias, composta de imigrantes, de egressos da escravidão e de representantes das elites que se mudavam do campo para as cidades. Eram estes últimos que exerciam as atividades e cargos de representação política, jurídica ou comercial, mais que tinha sua base de sua renda (dominação) nas fazendas ou nos engenhos, ascentado na estrutura coronelística. “Não havia grande diferença entre o rural e o urbano, neste período na Paraíba, isto é, a cidade tinha seu crescimento ligado às atividades complementares da zona rural, beneficiando e comercializando produtos agrícolas”. (Gurjão 1994, p.58). A crescente urbanização das cidades influenciava as mudanças dos costumes da sociedade brasileira. Multiplicavam-se os jornais, o comércio, as fábricas absorviam cada vez mais mão-de-obra, inclusive feminina. As filhas das classes médias saiam de casa para trabalhar como professoras, enfermeiras, telefonistas e secretárias. Ao longo das três primeiras décadas do século passado, essas mudanças no padrão de comportamento feminino incomodaram os mais conservadores, deixando perplexos os desavisados, estimularam-se os debates entre os mais progressistas, afinal de contas era muito recente a presença das moças de “boa família”, que se aventuravam sozinhas pelas ruas da cidade para trabalhar, ou fazer qualquer outra atividade. Era nas cidades, as quais trocavam sua aparência de “moças do interior” por uma atmosfera cosmopolita e metropolitana, que se desenrolavam as mudanças mais visíveis. A necessidade da força de trabalho, industrial levou muitas mulheres a saírem do âmbito doméstico, resultando em mudanças no modo de organização familiar. Essa saída ocasionou uma série de questionamentos por parte da sociedade, pois, consistia numa disputa de espaços profissionais indispensáveis para o progresso da sociedade. Analice Caldas foi contemporânea dessas transformações na sociedade, convivendo nesse cenário de inserção da mulher no espaço urbano, no mercado de trabalho e na vida pública. 43 Jornal “A UNIÃO”, de João Pessoa, 06 de abril de 1945. 49 Se as novas maneiras de se comportar tinham se tornado corriqueiro em menos de duas décadas, a “ousadia”, no entanto, cobrava seu preço. O ritmo das mudanças ocorridas, considerado por muitos como alarmante, veio acompanhado de certa ansiedade por parte dos segmentos mais conservadores da sociedade, já tomados pela vertigem das grandes transformações que o país vinha vivendo, sobretudo, a partir do último quartel do século XIX. Essa variedade de questionamentos, experiências e novas linguagens que as cidades passaram a sintetizar, agitavam intelectuais de ambos os sexos que elegiam como legítimos responsáveis pela suposta corrosão da ordem social e quebra de costumes, as inovações nas rotinas das mulheres e, principalmente, as modificações nas relações entre homens e mulheres, disciplinando toda e qualquer iniciativa que pudesse ser interpretada como ameaçadora à ordem familiar, tida como o mais importante e “suporte do Estado”: única instituição social capaz de represar as intimadoras vagas da modernidade. Prova disso, está estampado na revista Era Nova, impresso que circulou alguns anos no estado, deixou registradas as principais discursões dessa época. Em 1925 o articulista Gaspar, escrevia um artigo intitulado “Banalidades elegantes”. (Revista Era Nova, 1925, p. 10)44. Só mulheres, mulheres e mulheres... homens os há, mas tão poucos, tão occultos, que chega a se acreditar que só e somente ellas pesam na balança da sociedade”, motivo forte para que eu tema pelo nosso futuro e me receio seriamente, por não lhes incorrer na censura, nem cahir na imprudência de divergir da opinião pública. Mais na frente, o autor esclarece que tipo de mulher se refere. (Revista Era Nova, 1925, p.10). (...) é em regra, um tipo de pouca monta. Se não é uma criatura de quinze, dezoito e vinte e cinco anos, rorça pelos vinte e oito ou pelos trinta, cabelos curtos, faces e lábios que experimentaram o mais paciente processo de colaboração, pernas e braços esposto ao sol, à chuva, à poeira e aos nossos ávidos olhares vestidos de fazenda comum no último figurino, enfim, um arsenal de artifícios e coisas baratas, que nós os homens teimamos por admirar, certo de que somos possuidores do mais elevado sentimento esthetico. 44 Opitamos em, preservamos a grafia origina da época. 50 Também não faltaram vozes para entoar publicamente uma voz de inconformismo, tocado pela imagem depreciativa com que as mulheres eram vistas e se viam e, sobretudo, angustiados quanto as representação social que lhes impunha normas de comportamento. (Revista Era Nova, 1925, p.12). Os senhores homens accusam-nos de exageradas, se o qualificativo não é mais áspero; porém, por Deus me digam, quase, senão os homens os culpados pelas extravagâncias da moda? Porventura as creações parisienses londrinas, americanas, etc., nascem de cerebros femininos? E se nascessem; os pais, os irmãos, os maridos, os tutores, os noivos, não têm olhos para verem o que fica bem ou mal, o que é decente ou grotesco, á filha, á mulher, á tutellada, á prometida? Homens e mulheres se acusavam reciprocamente como os primeiros causadores de uma intolerável corrosão dos costumes. As reclamações das mulheres estavam pontuadas de mágoa e revoltas, as dos homens, pareciam revelar desconfianças para com a “nova mulher”. Na verdade, desde meados do século XIX, esses conflitos já eram sentidos nos países mais desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos. Países onde a forte influência do pensamento positivista, incorporada pela elite intelectual, apoiadas no mito da inferioridade biológica adotada pelos evolucionistas, segundo as idéias Espencerianas, acabou, também, por contribuir em dotar as mulheres de representações carregadas de qualidades e defeitos morais, determinantes para sua desclassificação social, apenas valorizando-a como esposa, mãe e dona de casa. Como afirma Maluf & Mott (1998 p.373). A mulher foi o bordão que sintetizou o pensamento de uma época intranqüila e por isso ágil na construção e difusão das representações do comportamento feminino ideal, que limitaram seu horizonte ao “recôndito do lar” e reduziram ao máximo suas atividades e aspirações, até encaixála no papel de “rainha do lar”, sustentada pelo tripé mãe-esposa-dona de casa. Ou seja, o dever de ser das mulheres brasileiras nas três primeiras décadas do século foi, assim, traçado por um discurso ideológico que reunia conservadores e diferentes matizes de reformistas, ao mesmo tempo em que cristalizava determinados tipos de comportamento convertendo-os em rígidos papéis sociais. 51 A escola Normal Em 1909, então com 18 anos, Analice Caldas ingressa na Escola Normal da capital, concluindo dois anos depois, em 1911. Na época, a Escola Normal era o único lugar, onde as moças podiam prosseguir os estudos e ingressar no mercado de trabalho, principalmente, para aquelas das camadas médias da população as quais tinha condições de investir na educação dos filhos. Por outro lado, a demanda pela profissão de professores qualificados, aumentava, diante da preocupação da nação que se pretendia modernizar-se com taxas de analfabetos a perder de vista. O quadro da educação brasileira nesse momento era extremamente precário. Segundo dados oficiais, só na Paraíba, somente 7,53% da população em idade escolar freqüentaram as instituições oficiais de ensino primário carecendo também de professores qualificados para o magistério. (Parahyba do Norte, 1909, p. 27). Na verdade a nação inteira necessitava de um modelo de educação para ajustar e preparar os trabalhadores e a população para esse novo tipo de sociedade como forma de se adequar ao mundo moderno. As primeiras Escolas Normais públicas foram à solução para o problema da educação brasileira, inicialmente, acomodadas ao ensino secundário ministrado nos Liceus, essencialmente masculino e dedicada à preparação para o ingresso no ensino superior, que tinham como modelo o Colégio Pedro II no Rio de Janeiro. Os vários “Liceus” provinciais constituíram uma referência fundamental para o desenvolvimento do ensino normal. Segundo Kulesza (2003 p.198). (...) superação das escolas de ler, escrever e contar encontra sua forma institucional na nova concepção de Escola Normal presente na reforma Leôncio de Carvalho, de 1879, opondo-se à herança jesuítica, a nova maneira de formar professores era fruto direto da concepção de uma sociedade em constante mudança em direção ao progresso. A referida reforma, estimulava a criação de Escolas Normais em todas as províncias, inclusive, com auxílio econômico do governo central. Mesmo assim, as metas nem de longe eram cumpridas, ficando boa parte da população de fora das escolas, “o nosso sistema de ensino popular mostrava-se como sempre profundamente insatisfatório” 52 (PAIVA, 1973, p.91), praticamente todos os estados brasileiros, até mesmos os mais ricos não tinham condições de acabar com o analfabetismo. A aplicação dos recursos estaduais no ensino elementar, por exemplo, variava de estado para estado, poucos deles ultrapassava os 10%, sem falar que as aplicações federais eram irrisórias e que o problema educacional brasileiro tendia a piorar com o crescimento da população, além disso, a descentralização política provocava uma total falta de conhecimento da União a respeito das políticas educativas dos estados. A Escola Normal da Paraíba, onde Analice Caldas estudou, foi criada em 1874, como uma “cadeira de ensino normal”, objetivando preparar professores do sexo masculino. Mas, só em 1884 é que a província da Parahyba do Norte veio ter sua própria Escola Normal. Para isso, o Liceu foi transformado em Escola Normal de dois graus, cabendo ao primeiro grau, de acordo com o presidente da província, a função de: “preencher o elevado desígnio, o que naturalmente mais influiu no espírito da re-forma, de preparar professores mais capazes para o exercício do magistério, eliminando os moldes já gastos, condenados por uma longa experiência”. (MELLO, 1996 p. 63). Com a duração de dois anos e destinado a ambos os sexos, essa Escola foi logo transformada em Externato Normal apenas para mulheres, funcionando em prédio próprio separado do Liceu, que já no ano seguinte seria restabelecido. Só em 1905 funcionaria efetivamente uma seção masculina da Escola Normal, valendo-se ainda das instalações do Liceu. (KULESZA, 2003). Durantes anos na Paraíba, a criação da escola normal foi relegada ao segundo plano pelos administradores do poder público provincial, atribuindo a pouca arrecadação que impossibilitava o investimento na área da instrução pública, bem como, o flagelo das secas que freqüentemente assolam o território, justificando que os investimentos na educação estavam fora do alcance da influência exclusiva dos poderes constituídos. (PINHEIRO 2002). Desde sua criação, já se apontava para a necessidade de educação da mulher, associando a modernização da sociedade, a higienização da família, à construção da cidadania dos jovens, objetivando rapidamente formar um quadro de professores qualificados para difusão do ensino. (MELLO, 1996). Como resultado desse processo, na transição do Império para a República, emerge durante a primeira década de nosso século, em todo o território nacional, uma Escola 53 Normal essencialmente feminina, dotada de escolas-modelos anexas destinadas à prática pedagógica e que desencadearam o processo de profissionalização do magistério primário. Já as mulheres mais pobres, tinham poucas oportunidades de uma educação, tendo como opção os trabalhos árduos, conciliando uma intensa jornada de trabalho de 12 horas ao dia, sofrendo do preconceito social, das péssimas condições de trabalhos e toda sorte de dificuldades que os menos favorecidos viviam. O que já não ocorria com as moças de famílias mais abastadas, que lotavam ano após anos as escolas normais de todo país. Com o tempo, a escola normal foi consolidando seu papel de preparar um corpo de possíveis profissionais “vocacionados” para o trabalho de ensinar as primeiras letras, constituindo uma ponte entre os estreitos limites da vida doméstica e o mundo exterior, preferencialmente para as mulheres pertencentes às camadas mais abastadas da população. Segundo Kulesza (2003), o ensino primário e as Escolas Normais subsidiadas pelo poder público acabaram privilegiando a educação de setores das oligarquias decadente economicamente ou, em busca da escolarização necessaria para ocupar as novas oportunidades de trabalho. Por outro lado, no âmbito da esfera privada, a educação das mulheres continuava um prolongamento da educação familiar na qual estudavam e esperavam para o momento de consagração do matrimônio. A sua instrução deveria ser “aproveitada” pelo marido e pelos filhos, portanto, teria que está atrelada às atividades do lar, conforme assinala Almeida (1998 p. 73). (...) de forma que o lar e o bem-estar do marido e dos filhos fossem beneficiados por essa instrução (...) Assim as mulheres poderiam e deveriam ser educadas e instruídas, era importante que exercessem uma profissão — o magistério — e colaborassem na formação de diretrizes básicas da escolarização manter-se-iam sob a liderança masculina. O fato é que, as mulheres, inicialmente como alunas e depois como professoras, constituíram o quadro que mais interagiu com essa instituição, tornando um espaço essencialmente feminino destinado à prática pedagógica e desencadeando o processo de profissionalização do magistério primário. Ainda segundo essa autora, esse termo serve para se referir à expansão da mão-de-obra feminina nas escolas, nos sistemas educacionais, na freqüência à Escola Normal e nos traços culturais que favoreceram o exercício do magistério pelas mulheres. 54 A formação pedagógica feminina contribuiu enormemente para difusão da educação. Possibilitou, também, a oportunidade de muitas mulheres ingressarem no mercado de trabalho, muito embora, o preço pela iniciativa de trabalho consistia em abandono e condenação social por parte da sociedade, “Alias”, dizia o articulista Gaspar em 1921, “a mulher intelligente é inconcebivel, sem que eu saiba por que motivo”. (Revista Era Nova, 1925, nº 40 p.13). A historiadora das mulheres, Louro (1997), fala a esse respeito, isto é, sobre as principais representações sociais das mulheres que se dedicavam ao magistério, desde aquelas que se achavam “feias” e “retraídas”, para quem a maternidade física estaria vedada, cumpriam sua função feminina ao se tornarem professoras. A representação de professora “solteirona”, bastante adequada para representar a dedicação das mulheres à profissão, tidas como severas, sem atrativos físicos e de sexualidade duvidosa. A autora enfatiza muito bem quando diz que: (LOURO, 1997 p. 469). Provavelmente mulheres que tomassem iniciativas que contrariassem as normas, que tivessem um nível de instrução mais elevado ou que ganhassem seu próprio sustento eram percebidas como desviante como uma ameaça aos arranjos sociais e á hierarquia dos gêneros de sua época. A autora argumenta também que, por muito tempo a ignorância foi considerada como um indicador de pureza, colocando as mulheres não-ignorantes como não-puras. Contudo, com o passar do tempo, ocorreram transformações nos discursos sobre as professoras, fruto das mutações da visão de mundo e, por conseguinte, dos costumes da sociedade. De fato, o que se sabe sobre Analice Caldas é que, ela não chegou a se casar, embora tenha sido noiva do escritor e jornalista Raul Campelo Machado, compositor de inspirados versos, alguns dos quais a ela dedicados, e “de quem falava com profundo enternecimento e admiração, sem ressentimento ou mágoa, porém orgulhoso de haver sido na época desse romance que o foi moroso vate” (grifo nosso) escreveu os mais belos versos e considerava-se a sua musa inspiradora”. (LINS 1976, p.8). Entre os vários poemas que encontramos desse autor, um em especial, possa nos dar alguma pista sobre esse romance. Nesses trechos, Raul Campelo, escreve sobre o fim de um relacionamento (1965): 55 Entre as cartas de amor com que recordo o encanto Das antigas paixões extintas na memória Uma, de todas, há, que é uma tragédia! Tanto Que ainda hoje me constranje o espirito, se a leio! Foi, movendo-me, aliás, profundissimo espanto, Em dia de infortunio e dessabores cheio, Que ela, travando a fel e embebida de pranto, Com um grande remorso, ao coração me veio. “Raul” – dizia, assim, numa letra tremida, “É urgente que de ti, para sempre, me afaste, Tenho sacrificado, em vão, a minha vida! Perdôo-te, porém, todo o mal que fizeste, Não te perdôo nunca... é o bem que me negaste, E as palavras de amor que jamais me disseste!” Sob Raul Campelo Machado, sabe-se que nasceu em 07 de abril de 1891, em Batalhão, atual Taperoá, Estado da Paraíba e faleceu em 19 de julho de 1954, a bordo no navio Provence, quando regressava da Europa, aonde fora em busca de tratamento de saúde. Era filho de João Machado da Silva e D. Júlia Campêlo Machado. Sou biografia é contada previamente no memorial do IHGP do qual foi sócio. Iniciou os estudos em Taperoá, complementando-os no Lyceu Paraibano; a seguir, matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, onde cursou somente o 1º ano, indo concluir na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Aos 15 anos, já compunha versos que publicava no Jornal A UNIÃO, órgão oficial do governo do Estado da Paraíba. Aprovado em concurso público, foi nomeado Auditor de Guerra, indo servir nos Estados do Paraná, Mato Grosso e Rio Grande do Sul. Exerceu as funções: Promotor da Justiça Militar, em Pernambuco; Ministro do Tribunal de Segurança Nacional; Secretário Geral da Comissão Organizadora dos Estatutos dos Funcionários Públicos e Ministro Corregedor da Justiça Militar. Era Membro da Sociétè dês hommes de lettres e da Sociétè Academique d`histoire Internationale, da França. Era jurista, ensaísta, conferencista, escritor, poeta e poliglota, deixando uma vasta obra bibliográfica. Ambos conviviam no meio intelectual da sociedade paraibana da década de 1930. Segundo Tavares (1975), Analice era muito sentimental e muito afetuosa, tendo única 56 grande paixão, um sonho de amor que não se tornou concreto, “seu príncipe, tornou-se sempre encantado” (1975 p. 46). Contudo, quando ele diz: “Agora, sobretudo, em que ambos já desapareceram, posso citar-lhe o nome (...)”, deixou-nos no ar a seguinte duvida: é possível que tenha sido um romance proibido? Analice Caldas e o ensino profissional Ao diplomar-se professora em 1911, Analice Caldas dedicou-se de imediato ao magistério, com todo o idealismo dos seus vinte anos. Sua primeira função pública foi como professora de primeiras letras na fazenda experimental de Espírito Santo, onde seu primo Diógenes tinha sido recém nomeado ajudante de inspetor do 3º Distrito do Serviço de Inspeção e Defensor Agrícola45, em 14 de janeiro de 1910. Não sabemos por quanto tempo atuou nessa função ou em que outras escolas possa ter ensinado nesse meio tempo. Em 1923, ao 32 anos de idade, é aprovada em concurso de âmbito nacional, a nível federal, para a cadeira de Português, nível médio, no então Liceu Industrial, antiga Escola de Aprendizes Artífices. Lá, foi professora do curso primário, juntamente com sua colega Tércia Bonavides, citada no inicio deste trabalho, e mais sete outras professoras (ver foto nos anexos), entre elas: Glaura Vilar Guedes, Ana Ribeiro Mendelo, Castorina de Menezes Barros, Anália de Miranda Sá, Neide da Silva Nobre, Maria Eulina Leal de Alburqueque e Augusta Flores Falcão, as quais lecionavam as matérias básicas46. Por sua vez, os homens lecionavam os conteúdos técnicos dos cursos oferecidos no Liceu Industrial. A escola onde Analice ensinou por mais de vinte anos foi criada em 05 de janeiro de 1910, pelo então Presidente da República Nilo Peçanha, em decreto de lei nº 7.566 de 23/09/1909, a qual permitia a criação de Instituições voltadas para a educação profissional. Inicialmente a escola funcionou no Quartel da Polícia Militar, cedido pelo governo do estado, por dezenove anos. Em setembro de 1929, a escola transferiu-se para prédio próprio, situado à Rua João da Mata e, atualmente, sua sede encontra-se na Av. 1° de Maio, no bairro de Jaguaribe. (MEC/SEPS, 1979). 45 Cargo ao qual chegou a ser nomeado agrônomo do fomento federal, do Ministério de Agricultura em 1937. 46 Segundo informações do relatório dos 30 aos de fundação da instituição, ver nas referèncias. 57 No início, oferecia os cursos de alfaiataria, marcenaria, serralheria, encadernação e sapataria destinadas às camadas populares; com o passar do tempo a clientela e os cursos foram adaptando-se ao contexto sócio-político-econômico-cultural do país e da região, até chegar à estrutura atual. Quando começou a trabalhar em 1923, a escola ainda se chamava Escola de Aprendizes Artífices. Daí em diante, passou por várias modificações na sua denominação. Com a reforma ministerial de Gustavo Capanema de 193747, mudou para Liceu Industrial da Paraíba, na década de 1940, passou a se chamar Escola Industrial de João Pessoa, Escola da Paraíba, Escola Técnica Federal da Paraíba já na década de 1960, e atualmente Centro Federal de Educação Tecnológica - Cefet. Segundo Tavares (1975), o ensino profissional foi sua principal vocação como professora: “sua paixão maior fora mesmo o ensino profissional, cuja importância e utilidade sempre sublinhou, numa visão correta da alta destinação humana e social daquele aprendizado”. (1976, p.42). Tércia Bonavides também capta esse momento de sua carreira. “(...) ali teve inicio a sua brilhante trajetória no ato de educar e instruir os menos favorecidos da sorte, filhos de humildes operários”. E continua, “(...) por mais de vinte anos prestou inestimável serviço à causa da instrução, revelando grande vocação para o magistério e procurando elevar os seus alunos a nível social onde predominasse o amor, a Pátria, a Família e a Escola”. (1976, p.8). O contexto sócio-econômico da época justificava a criação dessas escolas, uma vez que o aumento populacional nas cidades provocava sérios problemas de urbanização. A expulsão dos escravos das fazendas após a abolição da escravatura e a migração do campo para cidade, eram as principais causas do crescimento populacional desordenado, enchendo as ruas das cidades com todo “tipo de gente”. A elite burguesa que residia na capital temia uma maior participação do povo nas decisões da nação. Assim, “era necessário educar o povo sem formar descontentes que pudessem constituir uma ameaça ao progresso e à harmonia social”. (PAIVA 1973, p.94). O que resultou na regionalização do ensino e, em seguida, de forma mais clara, com o ruralismo pedagógico. Assim, tais escolas, por atender as exigências sociais e econômicas de uma nova época, foram pouco a pouco se firmando no processo educacional brasileiro. E isto correspondia a uma 47 Dentre as modificações suscitadas por essa reforma, destaca-se a criação do Departamento Nacional de Educação, a que passou a pertencer a Divisão do Ensino Industrial, sucessora da extinta Superintendência do Ensino Industrial. 58 necessidade histórica inapelável: criação de forças de trabalho que assegurasse o desenvolvimento do país, na medida em que supria essa carência de mão de obra especializada. Segundo Pinheiro (2002), ao longo da era das cadeiras isoladas, principalmente na primeira metade do século XIX, intelectuais e gestores da instrução pública paraibana já defendiam a inclusão de aspectos relacionados às atividades agropastoris nos objetivos e conteúdos de ensino das escolas públicas, já que o setor primário, isto é, a agricultura e a pecuária, era a sua principal base de sustentação econômica. O decreto no. 8.319, de 20 de outubro de 1910 já previa alocação de recursos para o ensino agronômico, objetivando vulgarizar a instrução profissional no seio das classes rurais, criando “instituições práticas”, de cursos ambulantes que instruíssem os homens do campo no manejo dos instrumentos agrários, processos modernos de cultura e de beneficiamento de suas colheitas, na criação dos animais domésticos e no aproveitamento racional dos produtos da lavoura. (PINHEIRO 2002). A introdução das idéias da Escola Nova e sua transformação em “otimismo pedagógico” entusiasmaram os principais governos estaduais do Brasil, idealizando uma série de reformas no ensino. Há, nesse momento, um movimento nacional em favor da difusão quantitativa do ensino, muito forte até meados dos anos 1920 e 1930, o papel da nova concepção de escola veio exprimir institucionalmente os anseios de uma renovação educacional concomitantemente aos movimentos políticos e econômicos em busca de uma nova ordem social para a nação brasileira.Essas teorias entraram de maneira incisiva na sociedade brasileira, através de obras de estudiosos tais como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, que faziam parte dos reformadores estaduais. Essas idéias são visíveis no discurso no discurso de Analice. Em artigo transcrito do Jornal “Aprendiz” (1942 p. 2), sob o titulo de Ligeiras Apreciações em torno do ensino técnico profissional, dizia ela: Passou a era romântica dos clássicos anéis, vasou um pouco a mara magnum dos cursos literários, cujas emblemas dos doutorais eram conquistados às vezes, a custa de sacrifícios as mais penosos e nunca para atender ao chamado de uma vocação, ou de uma brilhante intelligencia 59 Mais adiante, acrescenta (Jornal Aprendiz, 1942 p. 2): A alfabetização por si só é um erro, a escola pública, a escola do povo tem de preparar o menino para a realidade ambiente, adaptando-o aos novos moldes do trabalho à disciplina e à compreensão da responsabilidade do operário de hoje, elemento técnico de que mais carece o Brasil”. E, conclui a autora, cheia de otimismo: “A escola de João Pessoa nunca lhe desmereceu a tradição, impôs – se sempre ao meio, fez do minguado orçamento que disponha guardando uma colocação honrosa dentre as vinte instituições desse gênero que mantem a federação. Muito diferente do ensino profissional de hoje, as Escolas de Aprendizes Artífices tinham como objetivo habilitar, do ponto de vista técnico-instrumental, os filhos das camadas populares - "desvalidos da sorte" - com o intuito de conter os problemas sociais. Posteriormente, para qualificá-los atendendo ao desenvolvimento industrial, intensificado na década de 1930. A dificuldade de formar esses profissionais esbarrava na precariedade das instalações e funcionamento das primeiras escolas, nos poucos recursos disponíveis e na carência de professores e mestres especializados, entre outros aspectos. Além do mais, os alunos que ingressavam na escola pertenciam às camadas mais humildes da população. No relatório apresentado ao diretor da divisão de ensino industrial, relativo ao período compreendido entre 05 de janeiro de 1910 e 05 de janeiro de 1940, Analice e outros professores, escreviam suas queixas das condições de funcionamento da escola. (Tipografia da Escola de Aprendizes Artífices na Paraíba, João Pessoa – 1940, p.59). Ex. Sr. Direto (...) Como sabes, está entregue aos meus cuidados a classe inicial ou de analfabetos, a classe D, como foi denominada. Tive no começo do ano uma matricula de 75 alunos, e vários dentre eles já abandonaram a escola. A indiferença dos pais é a primeira dificuldade com que topamos. Poucos destes nos vêm pedir noticias dos filhos, e, algumas vezes falha até o estratagema de que usamos com os meninos faltosos e vadios, para obrigar seus responsáveis a virem entender-se conosco, a retensão das cadernetas que servem de ingresso diário do aluno (...) Ainda segundo Analice, outro motivo pelo baixo aproveitamento dos alunos era o estado sanitário, pertencendo os alunos, em sua grande maioria, da classe mais pobre, pois 60 (Idem): “(...) facilmente adoecem, demorando mais a se restabeler por que também mais lentos são os meios de que dispõem para isso”. Além das moléstias, havia ainda a pobreza de quase todos e a miserabilidade de muitos, como bem lembra; “São bem conhecidos os alunos que se ausentam nas quartas e sábados (dias de feira na cidade) para ganhar algum frete ou vender na feira o produto dos trabalhos de seus pais”, e “(...) outros nos vêm dizer envergonhados que faltaram por que a única roupinha que possuíam tornou-se imprestável e tiveram de esperar que lhe pudessem comprar outra”. (Idem) A escola fornecia gratuitamente aos alunos apenas uma merenda, que ao contrário de motivar a freqüência na escola, acabava por afastar aqueles alunos que moravam longe e nada tinham para comer em casa. Sobre esse assunto, comenta Analice (Idem): “A propósito, seria ótimo que além de merenda eles tivessem um almoço, pois devendo permanecer nove horas na escola trabalhando e estudando, essa refeição apenas parece-me insuficiente para crianças que estão em crescimento”, reiterava. Enfim, ela julgava a falta de assiduidade e aproveitamento, seja pelo desleixo da família ou pelo estado de saúde ou pobreza, a causa primordial do pouco rendimento de grande parte dos alunos. O que percebo com isso, é que, numa sociedade em que havia tanto preconceito sobre a educação profissional, uma vez que a educação brasileira se constituía de caráter elitista e intelectualizante, o projeto educacional estava mais a serviço das classes dominantes do que do conjunto da nação. Nesse sentido, era natural que as Escolas Aprendizes Artífices enfrentassem dificuldades para se imporem como uma escola que atendessem à necessidade de formação e qualificação profissional, que ao invés de ser considerado como um fator de progresso, como instrumento de construção social e individual do homem e cidadão, era tido como algo vergonhoso, como um castigo, dado aos mais pobres e desfavorecidos economicamente. Analice Caldas também lecionou em outras escolas, deu aulas na Academia de Comercio Epitácio Pessoa entre os nos de 1930 e 1940, ensinando taquigrafia, entre outras disciplinas; fez parte da primeira diretoria da sociedade dos professores primários, além de publicar diversos textos em jornais e periódicos da época. Ao falecer em 1945, os 54 anos de idade, ainda fazia parte do quadro de professores dessa Escala Industrial, deixando um legado de mais trinta anos de experiência 61 como educadora, boa parte desse tempo dedicado ao ensino profissional, numa demonstração de que não se cansava em exercer a profissão que lhe elevou o espírito e a projetou no seio da sociedade letrada de sua época. Enfim, ao meu ver, nos encontro diante de uma mulher com inúmeras outras histórias a serem registradas, mas que, na ausência de mais fontes, me limito a pincelar momentos significativos de sua história como educadora. Histórias que remetem às suas práticas culturais que, por sua vez, são compreendidas como representações de uma determinada visão de mundo, marcada pelo conflito entre o tradicional e o moderno. Por fim, cabe indagar: qual o legado dessa trajetória? Certamente, uma vida dedicada ao magistério e as letras, isto é, traços de uma trajetória que me inspira a continuar seguindo seus passos, desafio este, que continuo perseguindo nos capítulos seguintes deste trabalho. 62 CAPITULO IV A Eva do século XX A militância feminista para Analice Caldas foi tão importante quanto qualquer outra atividade sua. A conquista da revolução de 1930, a adoção do voto feminino e a institucionalização da representação classista animavam suas expectativas, sendo uma ardorosa admiradora de Bertha Lutz, pioneira na luta pelo voto feminino e pelos diretos das mulheres no Brasil. Aos 42 anos, juntou-se a um grupo de “senhoras e senhoritas de posição e relevo” da sociedade e do magistério paraibano, criando, assim, em 1933, a Associação Paraibana pelo Progresso feminino (APPF), nos moldes da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), a qual preconizava um modelo de sociedade mais justa do ponto de vista político, jurídico e social às mulheres brasileiras. A referida associação feminina foi idealizada em sessão preparatória, a 06 de fevereiro de 1933, num dos salões do grupo Escola Thomaz Midello48 (localizado no antigo Centro Comercial e de Serviço da cidade da Parahyba, cedido pelo então diretor professor Joaquim Santiago. Em 11 de março era “aclamada” a primeira direção provisória tendo a profª Lylia Guedes, na presidência; Olivina Carneiro da Cunha, como vice-presidente; Alice de Azevedo Monteiro, secretaria; Albertina Correia Lima, oradora; Francisca de Ascenção Cunha, tesoureira; e Analice Caldas como bibliotecária. Todas professoras formadas na Escola Normal nas duas primeiras décadas do século XX. (A UNIÃO, quintafeira, 01 de junho de 1933. p. 03). A APPF teve vida relativamente longa, perpassou a década de 1930 e parte da década de 1940, atuando intensamente até 1937, época em que começava a perder gradativamente o espaço na imprensa oficial, a coluna quinzenal “Página Feminina”, publicadas no jornal A UNIÂO. O golpe dado por Getúlio Vargas e a instalação do “estado de exceção” impuseram forte censura na mídia impressa, diminuindo o espaço a conteúdos políticos alheios aos então estabelecidos pelo Estado Novo. 48 Primeiro grupo escolar a funcionar na Paraíba, no período de expansão dos grupos escolares, que se estendeu de 1916 a 1929, quando foram criados 14 grupos escolares no estado, cinco dos quais localizados na capital. 63 Após as conquistas políticas expressas na Constituição de 1934, as ações da APPF voltam-se quase que completamente a fins assistencialistas, ao mesmo em tempo que assumia também a tarefa educar as jovens para atuarem em projetos de igual cunho. Porém, é bom destacar que o deslocamento da luta política para as obras assistenciais, se tomado de forma bastante cuidadosa, percebe-se que a benemerência (ou filantropia) parecia ser para muitas mulheres do início do século XX uma das formas legítimas de intervenção e promoção do bem-estar social, bem como de salvação da pátria. Nesse sentido, a atuação política de Analice Caldas nessa associação, é tomada como algo que articulava política e atividade filantrópica, algo que denominado de responsabilidade social, uma vez que as sócias viam as tarefas de benemerência como um atributo social e político. Segundo pesquisas de Vieira49, na década de 1940, as únicas filiais da F.B.P.F. sobrevivente das regiões do Norte e Nordeste eram a Filial da Bahia. No entanto, a da Paraíba também sobreviveu metade dessa década. Foi mantida a sede no prédio da Associação Paraibana de Imprensa (API), onde os encontros mensais já não eram tão regulares, mas continuavam acontecendo e sendo registrados em ata. As eleições seguiam sua periodicidade – de dois em dois anos, elegia-se a diretoria – e o contato com o Rio de Janeiro e outros estados era feito através de constantes telegramas. Analice Caldas fez parte de todas as direções da entidade, mostrando-se uma ardorosa militante em prol da causa feminista brasileira, sendo eleita presidente para a gestão de 1943/45, quando faleceu ainda neste cargo, em (15) de fevereiro. Após sua morte, cessaram-se as atividades da associação, restando apenas a filial do Rio de Janeiro que perdurou até a década de 1970. No que se refere as práticas políticos e educativos propagados pela entidade, entendidas como expressão significativa do movimento feminista brasileiro, Analice Caldas e tantas outras mulheres de sua época se propuseram a defender ideais como: a elevação do nível de instrução feminina, proteção materna e da infância, obtenção de garantias para o trabalho feminino, estímulo ao interesse da mulher nas questões sociais, assegurar os direitos políticos paras as mulheres, e o preparo educacional para o exercício da inteligência. (A UNIÃO, terça-feira, 07 de fevereiro de 1933, p.08). 49 Do artigo: Os feminismos latino-americanos e suas múltiplas temporalidades no século XX ST. Claudia Andrade Vieira. UNEB/UFBA. Palavras-chave: feminismo; política; movimento feminista. 64 Para tanto, utilizo como fonte os textos publicados pelas sociais da APPF, entre os anos de 1933 a 1945, buscando um caminho que me leve a conhecer a trajetória da biografada no cenário no político feminino. Pois, recompor parte dessas memórias, configuradas a partir da singularidade de cada uma (de suas militantes) dessas mulheres que fizeram parte da APPF, consiste em conectar as histórias conhecidas às tramas e ao enredo de Analice Caldas, quebrando assim, o silêncio imposto pela narrativa oficial, tornando-as também personagens de nossa história. Os registros que essas mulheres deixaram acerca do significado que atribuíram às suas lutas e ao ser feminista, publicados no órgão oficial do Estado, são extremamente ricos. Indicam a maneira como se apropriaram e reelaboraram os discursos produzidos com o intuito de normatizar a sociedade e, especialmente, o comportamento feminino, e conseqüentemente definir o lugar que as mulheres deveriam ocupar no conjunto social, ao traçar a linha de separação entre as esferas pública e privada. Por sua vez, o uso da imprensa como meio de divulgação de suas idéias, era uma forma de despertar as paraibanas para se engajarem no processo de valorização da mulher e de suas conquistas políticas. Através da “Página Feminina” - editada quinzenalmente pelo jornal A UNIÃO - as sócias publicavam poesias, contos, artigos e divulgação de eventos, campanhas e cursos promovidos pela associação, colocando em discussão assuntos comuns às mulheres, trazendo noticias de personagens que se destacavam em outros Estados e outros países. Alias, já na década de 1920, a imprensa nacional e local, já publicava artigos e mais artigos sobre esse assunto. Nessa época, a revistas Era Nova uma das primeiras a publicar artigos (tanto a favor como contra), colocava nas suas paginas, a discursão do voto feminino, na pena de algumas personalidades intelectuais femininas, a exemplo das intelectuais Eudésia Vieira, Analice Caldas, Lylia Guedes, etc. A atuação na imprensa não só serviu para o despertar de consciência política, mas, principalmente, para despertar a opinião pública, com a qual conseguiam organizar, aliando-se ao povo, como, por exemplo, as campanhas em apoio ao presidente João Pessoa em 1930, com a arrecadação de fundos e de munição para as lutas de Princesa, uma vez que fora negado à Paraíba a autorização para 65 compra de material bélico que iria municiar a policia e propiciar a defesa da autonomia do estado19. Possibilitou, também, uma visibilidade no âmbito público, estabelecendo questionamentos de ordem ideológica, política educativa e filantrópica, na medida em que defendiam questões relativas à família e à elevação cultural da mulher. Nesse sentido, a história do movimento feminista paraibano, sua relação com a inserção das mulheres na sociedade e nesse espaço oficial chamado Escola e seus reflexos nos dias de hoje, pouco ou nada se tem. Portanto, trazendo tais analises à tona, propomos apontar algumas pistas para um aprofundamento dessas questões, que no âmbito de conflitos e contradições ideológicas, impregnaram os debates na educação brasileira, particularmente, a paraibana, no contexto do pós 1930. A política de saias Para compreender a participação política das mulheres na Paraíba, é importante compreender os anos de 1920/30, cenário de grande efervescência política de cultural. Movimentos como o Tenentismo51, o Modernismo52, a criação do Partido Comunista Brasileiro53 e, o crescimento do Feminismo, são marcos desse momento. A respeito dessa questão, ressalta Machado (2006 p.35). Na década de 1930, era visível a necessidade de organização de um novo Brasil, urbano, industrial, de classe média ascendente e proletariado em formação, como contraposição aos privilégios dos dirigentes estreitamente vinculados ou oriundos do mundo rural/agrário. Por isso, havia um nítido descompasso entre a realidade socioeconômica do país em expansão e a 19 A campanha da bala, que logo foi estendida para quinzena da bala (doação de munição à policia do estado) mobilizou muitos jovens, a maioria estudantes do Liceu e alunas do magistério da Escola Normal e do Colégio Nossa Senhoras das Neves, constituiu-se um exemplo emblemático desses fatos. 51 Tenentismo foi o nome dado ao movimento político-militar e à série de rebeliões de jovens oficiais (na maioria, tenentes) do Exército Brasileiro no início da década de 1920, descontentes com a situação política do Brasil. Embora não propugnassem nenhuma ideologia, os movimentos político-militares propunham reformas na estrutura de poder do país, entre as quais se destacam o fim do voto de cabresto, instituição do voto secreto e a reforma na educação pública. 52 Chama-se genericamente modernismo (ou movimento moderno) o conjunto de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes e o design da primeira metade do século XX. Apesar de ser possível encontrar pontos de convergência entre os vários movimentos, eles em geral se diferenciam e até mesmo se antagonizam. 53 O Partido Comunista Brasileiro foi fundado na cidade de Niterói a 25 de março de 1922 por nove delegados representando cerca de 73 militantes de diferentes regiões do Brasil. 66 máquina centralizadora, emperrada, herança de uma cultura política do Estado Imperial. Nessa década ascende uma nova elite urbana. Nesse contexto, o país vinha, há algum tempo, dando sinais de que já se estava exaurindo o poder político das lideranças oligárquicas que o dirigiam. Nos níveis municipal, estadual e federal, externava-se uma crise de insatisfação com a incapacidade do governo central em corrigir os males de uma economia agrícola, baseada em um único produto econômico – o café – e voltada exclusivamente para a exportação. Segundo Gurjão. (1994, p.32). Com a crise de 1929, “a Grande Depressão” (quebra da bolsa de valores de Nova York), a situação econômico-financeira do Brasil foi agravada. Tal fato, inter-relacionando à conjuntura interna, culminou com a eclosão da Chamada Revolução de 1930, apontada como responsável pelo fim da velha república oligárquica e emergência de uma nova, isenta dos “vícios” da política dos “coronéis”. Assim, em função dessa e de outras contingências históricas, a “Revolução” de 1930 fundamentou-se nas ações e no ideário de setores da nova elite urbana do país, no contexto de maior ênfase nacionalista. O pós 1930 liberou potencialidades econômicas em todo o território nacional, sem, no entanto, alterar a estrutura agrária baseada no latifúndio. Mesmo assim, seus desdobramentos sociais se constituíram num marco irreversível da história brasileira do século XX. O ano de 1930 marcou profundamente a sociedade brasileira e, em especial, a sociedade paraibana, conseqüência de uma série de tensões e conflitos de representações na estrutura institucional. O desfecho político do movimento revolucionário de 1930, desencadeado após o assassinato de João Pessoa, resultou na ascensão do grupo ligado ao intelectual e jurista José Américo de Almeida54, um dos remanescentes políticos do epitacismo, inaugurando assim, um período que na historiografia política paraibana tem sido denominado de americismo. A luta de 1930, na Paraíba, não foi um conflito entre ricos e pobres, e sim, uma luta entre dois grupos oligárquicos pelo poder. Após esse acontecimentos, a Paraíba passou a ser administrada pelos “tenentes civis”, deixados por José Américo. O primeiro, Antenor 54 Escritor já então consagrado nacionalmente, não só pelo romance “A Bagaceira” mas principalmente pela obra “A Paraíba e seus Problemas. 67 Navarro, morreu tragicamente num acidente de avião em abril de 1932, em seu lugar ficou Gratuliano Brito, que havia sido seu secretario de Interior, até 1935, quando, com a volta da Paraíba ao regime constitucional, Argemiro de Figueiredo é eleito e empossado governador pela Assembléia Legislativa do Estado. A união dos mais diversos grupos políticos em torno da bandeira da Aliança Liberal e, particularmente aqui na Paraíba, em torno da figura de João Pessoa até o desfecho de sua morte, estopim da revolução de 1930, fez reascender o debate sobre a predominância do centralismo oligárquico, uma vez que grande parcela excluída da população, entre as quais a mulher, reivindicando mudanças efetivas no sistema político e governamental do país. Nesse sentido, ressalta Machado (2005 p.27): (...) a configuração política inovadora propagada pela Aliança Liberal, em toda parte do país, através de empolgante campanha, conseguiu conquistar a adesão de segmentos urbanos significativos na sociedade, tais como os estudantes, professores, profissionais liberais e outros formadores de opinião descontentes com os núcleos oligárquicos hegemônicos da República Velha, ou seja, os mineiros e paulistas. A campanha da Aliança Liberal trazia em seu programa bandeiras inovadoras, entre os principais estavam o voto secreto, o voto feminino, a institucionalização da justiça do trabalho, a lei das oito horas e a Justiça Eleitoral, que até então não existia, pois, como não havia tribunal eleitoral, as eleições eram feitas numa sala qualquer – a princípio, nas sacristias das igrejas e repartições publicas. Segundo Santana (2000), o que as mulheres reivindicavam (os direitos políticos) era tão-somente um direito defendido, em tese, pelos idéias liberais, que ganhou força por ocasião da campanha presidencialista da Aliança Liberal e a campanha constitucionalista iniciada no país em meados de 1931, já contando com a participação de diversas personalidades feminina engajadas nos seus quadros políticos. Com a vitória da “revolução tenentista”, as mulheres passam a ocupar os escassos espaços da cena de poder da época, propagando idéias inovadoras e articuladas ao debate feminista em voga na época, demonstrando uma evidente tática de inclusão nos espaços que a sociedade, aos poucos, possibilitou-lhes ou acabou cedendo. O movimento que tomou corpo no Brasil no final da década de 1930, ou seja, os ideais propagados pelos liberais, de norte a sul do país, se revestiram de uma forte amplitude popular, formando um novo grupo 68 social organizado e constituído, portanto, de um efetivo sentimento de participação de representantes desses novos grupos sociais em todos os campos da evolução da vida do país, através dos mais diversos canais políticos que estavam se constituindo naquele contexto. (MACHADO, 2006). Na Paraíba, a união das mulheres, constituído em sua grande maioria por estudantes e professoras, em torno da “figura” de João Pessoa, seduzidas pelo discurso carismático e inovador, passaram a integrar os chamados comitês femininos pró-Aliança-Liberal, a exemplo da Cruzada Feminina Liberal Clara Camarão, em Campina Grande e o Comitê feminino Presidente João Pessoa, na Capital, assim como em outros municípios. Ao longo de todo o período da campanha, os comitês cumpriam atividades de acordo com o calendário eleitoral em curso, orientado exclusivamente para as mobilizações das mulheres junto às escolas, a igreja e diversos espaços urbanos. A intensificação dos comitês femininos era uma das metas da campanha e constituíram-se verdadeiros espaços de propaganda, ou seja, em um instrumento eficiente da divulgação das bandeiras liberais na Paraíba. Como ressaltava a professora Apolônia Amorim20 em discurso proferido por ocasião da fundação da Cruzada Clara Camarão em Campina Grande. (A UNIÃO, sextafeira 10 de janeiro de 1930). O actual momento político do Brasil não comporta o indifferentismo de ninguém; estamos diante de um movimento de renovação de costumes, em que patriotas obnegados se dispuzeram a mudar esse regime de compreensão em que vivemos desde a fundação da república. (...) Se não podemos concorrer como votantes, ao menos concorramos com a nossa assistência moral ao bravo Presidente João Pessoa. Ao reduzir a escala de observação para a atuação de Analice Caldas, tambem uma admiradora e incondicional seguidora de João Pessoa, sempre vista à frente das entusiásticas recepções preparadas às Caravanas de Aliança Liberal que, freqüentemente, percorria em alucinada vibração manifestações públicas por toda Paraíba. Sobre esta 20 Apolônia Amorim nasceu em Barra de Santana, Cabaceira, em 09 de fevereiro de 1904. Foi professora formada pela Escola Normal, Em 1930, fez parte do movimento da Aliança Liberal, a frente das Campanhas Cívicas em apoio a João Pessoa, através do Comitê Clara Camarão em Campina Grande e na Intentona de 1935, em repúdio à Lei da Segurança Nacional. Contribui com vários artigos de cunho político e social nos Jornal A UNIÃO e A IMPRENSA na Página Feminina, falecendo no Rio de Janeiro em 1949. 69 questão, Tavares (1975) afirma ter sido Analice Caldas uma das idealizadoras da Campanha dos Mil Reis Liberais, em que os paraibanos foram chamados a aderir a causa, concorrendo com tal quantia para ajudar o Governo do Estado a adquirir munição para a sua constante luta política de Princesa. Foi de Analice Caldas, após a tragédia que vitimou o Presidente da Paraíba, a iniciativa de criar o Centro Cívico “Presidente João Pessoa”, onde, juntamente com outras “senhoras e senhorinhas ilustres da sociedade”, promoveu varias campanhas e comemoração cívica em homenagem ao presidente assassinado. Foi dela, também, a idéia de erguer na cidade um “Arco do Triunfo”, monumento em homenagens ao presidente assassinado e a revolução de 1930, “idéia que, por motivos alheios a sua vontade, não chegou a se tornar realidade”, diz Tavares (1975, 43) destacando noticiários da época: “A primazia da ereção de um arco de Triunfo ao grande presidente João Pessoa coube à senhora Analice Caldas, que a lançou numa reunião da antiga commissão do nego, em outubro do anno findo”. (A UNIÃO 1931, p. 08). Desse modo, a presença das educadoras na década de 1930, em sua maioria de classe média e alta, nos comitês femininos em apoio a Aliança Liberal Getúlio Vargas/ João Pessoa, configuraram-se enquanto espaços de visibilidade política da mulher paraibana, à medida que passaram a registrar na história certa consciência tática de participação no território público e na cena política, o que, conseqüentemente, propiciou alavancar os debates sufragistas femininos, sugerindo alterações na legislação eleitoral brasileira em curso e na própria organização cultural da sociedade. Se esses dados podem sinalizar os limites do movimento, pode, também, apontar o nível de conscientização e comprometimento dessas mulheres com determinadas mudanças, considerando o nível de sua exposição pública e o tipo de crítica, censura e reprovação que sofreram e souberam enfrentar – situação que, certamente, vivenciaram com muita dificuldade por não terem sido educadas para tamanhos desafios, ainda que encontrassem algum apoio dos seus familiares no que tange às suas escolhas. Ao analisar o conteúdo dos textos e artigos da APPF publicados no Jornal “A UNIÃO”, é possível estabelecer uma nítida conexão político-ideologica do movimento com as iniciativas de poder que vigoraram nos primeiros anos do governo “revolucionário”, 70 como mostra o artigo - Especial da U.B.I. para a União - sobre As conquistas actuaes da mulher. (A UNIÃO, 15 de março de 1933. Número 60. p.8). As mulheres estão, aos poucos, conquistando as mesmas prerrogativas dos homens. Nós éramos um dos povos que teimávamos em lhes negar a equiparação que ellas reclamam exhibindo uma verdadeira multidão de argumentos. A Revolução de trinta, deu-lhes direitos quasse iguais aos dos homens. De sorte que hoje não é nenhuma estranheza surprehender uma mulher no desempenho de qualquer missão que há, alguns meses atrás, privativa dos homens. Chama atenção no referido texto (Especial da U.B.I. para a União), a excessiva apologia ao regime deflagrado em outubro de 1930. O Governo Provisório, liderado por Getulio Vargas, auto se definia como um poder passageiro na vida política do país, havendo de ser substituído pelos legítimos representantes da nação - segundo determinasse a Assembléia Nacional Constituinte. A revisão da legislação eleitoral e a elaboração de um novo código eleitoral, compromisso assumido por Getúlio Vargas, constituíram um dos atos políticos mais importantes do Governo Provisório. O Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, regulamentava o alistamento e o processo eleitoral no país, nos âmbitos federal, estadual e municipal, trazendo uma série de inovações, dentre as quais se destacava o estabelecimento do sufrágio universal e secreto. Mais ainda, o novo código ampliava o corpo político da nação, concedendo o direito de voto a todos os brasileiros maiores de vinte e um anos, alfabetizados e sem distinção de sexo. As mulheres brasileiras adquiriam assim, pela primeira vez e após árdua luta, a cidadania política, contribuindo para o aumento significativo do número de votantes no país. A partir daí, o movimento feminista começou a tomar corpo. Entretanto, o feminismo brasileiro não teve as mesmas características do movimento de massas nem a radicalidade a que chegou o movimento Inglês e dos Estados Unidos. Segundo Toscano & Goldenberg (1992), o feminismo no Brasil, não foi uma reprodução pura e simples de modelos estrangeiros e que suas especificidades só podem ser entendidas no contexto de nossa formação histórica e de nossa situação de dependência em relação aos centros hegemônicos a que estivemos atrelados, desde o inicio da colonização. (Idem p.25). A escravidão, a tardia emancipação do centro de dominação, o modelo fundiário imposto pelo colonizador português e a influencia da Igreja Católica como força 71 política e instrumento de controle social são, a nosso ver, elementos que permitem melhor entender as peculiaridades do feminismo em nosso país. Esses elementos são os fatores mais diretamente responsáveis pelo patriarcalismo, pelo paternalismo, pelo conservadorismo e pelo machismo Brasileiro. O feminismo brasileiro enquanto movimento organizado iniciou-se por volta de 1910, quando a professora Leolina Daltro e outras feministas, entre elas, a escritoras Gilka Machado, fundaram na então capital federal, o Partido Republicano Feminino, com o objetivo de ressuscitar no congresso Nacional o debate sobre o voto da mulher, negado pela Constituição de 1891. Esse grupo de feministas adotou uma linguagem política de exposição pessoal diante de críticas da sociedade, realizando manifestações públicas que não foram tratadas com indiferença pela imprensa e os leitores. O Partido Republicano Feminista teve o mérito inegável de lançar, no debate público, o pleito das mulheres pela ampla cidadania. As ações das feministas, voltadas para conquistas de direitos políticos para a mulher, intensificaram-se em torno de 1918, quando Berta Lutz e um grupo de colaboradoras criaram, no Rio de Janeiro, uma organização chamada Liga para Emancipação Intelectual da Mulher que, posteriormente, passou a denominar-se Liga pelo Progresso Feminino. Em 1922, devido a novas táticas de luta e adesão de mulheres de outros estados às idéias da entidade, a então Liga pelo Progresso Feminino passa a se chamar de Federação das Ligas pelo Progresso Feminino (em 19 de agosto de 1922). Neste mesmo ano, organizou-se o I Congresso Internacional Feminista, no Rio de Janeiro, motivado pela participação de Bertha Lutz, na Conferência Pan-Americana de Mulheres, realizada em Baltimore, Estados Unidos, passando novamente a muda de nome, tornandose a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e uma referência do movimento feminista brasileiro na primeira metade do século XX, organização que inspirou diversas outras a serem fundadas no Brasil, com o intuito de levar adiante a luta pelos direitos políticos. A partir daí, o feminismo, enquanto movimento, passou a conquistar adeptos e a se espalhar por outros centros urbanos além do Rio e São Paulo. Dessa iniciativa também tomou parte a pedagoga mineira de classe média Maria Lacerda de Moura -1887/1945 – (LEITE, 1984), que por divergências de idéias acabou se afastando do grupo, passando a se aproximar das feministas influenciadas pelo movimento operário anarquista e por uma ideologia de vida mais avançada para as mulheres. Foi 72 também presidente da Federação Internacional Feminina, fundada em Santos e São Paulo. Em 1921, esta federação inseriu em seus estatutos a proposta de modificação do currículo de todas as escolas femininas, incluindo a História da mulher, sua evolução e missão social. Tornou-se uma escritora polêmica, trabalhando na imprensa operária e questionando em seus livros os padrões de comportamento impostos às mulheres, pregando o amor livre e negando a maternidade como destino inevitável. Maria Lacerda de Moura foi uma mulher que desafiou todas as formas de poder tradicional que partiam da Igreja, do Estado, das leis, da escola e da família. Sua obra ficou conhecida em toda a América Latina. Entre as anarquistas, estão Tereza Fabri, Teresa Carini e Maria Lopes, que se destacaram em São Paulo, quando elaboraram um manifesto conclamando as costureiras a lutar pela redução da jornada de trabalho e acesso à educação. Em 1917, na greve geral de São Paulo, houve uma participação importante das operárias têxteis. Do lado dos comunistas, Laura Brandão e Maria Lopes integravam o Comitê das Mulheres Trabalhadoras, e foram lideranças importantes, que agitavam nas portas de fábrica atraindo operárias para seu movimento, tentando aproximar o operariado feminino e o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1919 aconteceu a histórica greve de costureiras, lideradas pela paulista Elvira Lacerda que foi sua fundadora - junto com outras lideranças como Carmem Ribeiro e Noêmia Lopes - da União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas, que em 1920 participou do Congresso Operário Brasileiro. (HAHNER, 1981). A sufragista gaúcha Natércia da Silveira, outra dissidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, fundou, em 1931, a Aliança Nacional de Mulheres, que prestava assistência jurídica à mulher. A Aliança chegou a ter três mil filiadas, mas foi fechada pelo golpe de 1937, que aboliu as liberdades democráticas e abortou as organizações políticas e sociais do país. (PINTO, 1992). Havia ainda a ala ligada a Igreja Católica, haja vista que para alguns segmentos da sociedade, a Revolução de 1930 acenara com a possibilidade de a Igreja Católica vir a recuperar espaços e poder sobre a vida política e sobre a sociedade civil, perdidos desde que a República liberal se instalou no Brasil. Nesse sentido, essa associação apresentava um viés mais do que conservador e reacionário. O mundo católico reagia, mobilizava esforços, arrebanhava suas ovelhas e conclamava-as à luta, organizando ou estimulando o surgimento de associações femininas, a exemplo da Liga Eleitoral Católica e da Cruzada de 73 Educadoras Católicas. Essas organizações são apenas alguns exemplos da atuação de muitas mulheres, infelizmente anônimas para a história oficial, embora tenham ousado em suas formas de organização. (COELHO, 2002). Contudo, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino teve um dos papéis mais importantes na conquista do sufrágio feminino e, por extensão, na luta pelos direitos políticos da mulher. Destacou-se, também, como a organização feminista com maior inserção nas esferas de poder da época. Durante sua existência, suas militantes escreveram na imprensa, organizaram congressos, se articularam com políticos, lançaram candidaturas, panfletaram em aviões, representaram o Brasil no exterior. Nesse cenário, a presença das mulheres cada vez mais no mercado de trabalho, sua entrada nas escolas publicas e sua participação nos círculos intelectuais já eram fatos irreversíveis. No entanto, a resistência de certos segmentos da sociedade quanto ao voto feminino encontrava apoio entre homens e mulheres mais conservadores, que elegiam a tese que a família estaria ameaçada de extinção caso tal direito fosse aprovado. Para muitos, inclusive mulheres, as recentes conquistas femininas na política, no direito, no trabalho, representavam uma ameaça. Mais que uma possível e indesejada concorrência com o elemento masculino nos domínios agora compartilhados, os quais temiam que as novas ocupações as fizessem desinteressar-se pelos assuntos domésticos. Temiam a desestruturação da família, célula mater da sociedade, a desintegração do lar, a desmoralização dos costumes, o abandono dos princípios éticos e religiosos católicos. Sobre essa questão posicionava-se o articulista Luiz Baptista. (A UNIÃO, 19 de outubro de 1932. p.5): (...) Isso não é certo. A verdadeira missão da mulher é o lar e está muito longe da que vem sendo pregada diariamente por ahi a fora. (...) O que seria de nós homens, se o feminismo retornasse uma realidade? Quem dirigiria a nossa casa? Quem tornaria contra nossa prole e dos nossos interesses particulares? Os nossos filhos seriam entregues as amas mercenárias e á fauta de visão arguta das mães. (...) A verdadeira missão da mulher é o lar e está muito longe da que vem sendo pregada diariamente por ahi a fora. Esse depoimento publicado no jornal local traz elementos que ajudam a recompor o quadro de referências e valores culturais em que se pautavam as discussões sobre as novas conquistas femininas. A situação da mulher na paisagem social brasileira era fruto de 74 preconceitos ainda predominantes no meio sociocultural, em que lhe era negado o direito de contribuir de qualquer modo para o bem da pátria comum. Procriar, educar os filhos para bem servir à pátria e encarregar-se da administração e economia domésticas, eis as atividades que a sociedade e os valores tradicionais haviam reservado às mulheres, confinando-as ao espaço da casa e da vida privada. Se tal situação apresentava sinais de mudanças, visíveis nas grandes capitais brasileiras, especialmente, nas da atual região Sudeste, o mesmo não acontecia nas cidades de menor porte e menos urbanizadas do país. Mesmo no Recife, a terceira cidade do Brasil da época, em termos de população e de economia, as mulheres diziam encontrar resistência para se impor profissionalmente, em ambientes para além do recôndito do lar. Dessa forma, cabia aos defensores da igualdade de direitos entre os sexos e favoráveis ao despertar de uma nova mulher, formular argumentos que rebatessem pontos de vistas que tinham por intento o contrário: provar e manter as desigualdades entre homens e mulheres. Argumentos que repercutiam nas demais esferas da vida sociocultural, alcançando as integrantes dos movimentos femininos e os que simpatizam com a causa das mulheres. Albertina Correia Lima, umas das primeiras paraibanas a se forma em direito e também sócia fundadora da APPF, falava em seus artigos da necessidade de uma ação intensa em prol do ideal que congregava sobre o mesmo lábaro de reivindicações femininas, que então se procedia nos outros Estados e em todos os países cultos, com “felizes resultados”. Falava também da dificuldade de desarraigar hábitos inveterados, através de séculos, e que não é fácil como pode parecer, pois, a mentalidade do povo envolve e se modifica com lentidão. (A UNIÃO, 04 de abril de 1936. p. 05). E as idéias novas, por mais elevadas que sejam, são como as sementes que, mesmo boas, precisam de terreno propício para a conveniente mudança (...) Por isso toda ação voltava-se em elevar o nível “mental feminino”, pois com o espírito esclarecido pela instrução, a mulher terá a nítida visão do seu valor e do papel a desempenhar na civilização atual. Tem sido essa a nossa tarefa. Assim procedia também, por exemplo, a paraibana e educadora Alice Alfredo Monteiro, quando dizia que a mulher adquiriu com o correr dos tempos à cultura letrada, que antes era propriedade exclusiva do homem (A UNIÃO, 15 de abril de 1936. p. 04). Do mesmo modo, Albertina Correia Lima expunha seu pensamento sobre a questão, com muita 75 clareza e objetividade, anos antes: "A mulher brasileira deve ali representar-se não só para defender seus direitos, tanto tempo esquecidos, como para afirmar mais vitoriosamente sua capacidade mental". (A UNIÃO, 18 junho de 1933. p. 4). De inicio, a luta pelo voto foi uma bandeira típica da classe média e da burguesia, levantada por mulheres mais cultas, que tinham acesso ao noticiário internacional e para quem essa luta era uma demonstração de modernidade e progresso. Segundo Nunes (2003) na linha de frente das articulações políticas, como poucas da época, a Associação Brasileira pelo Progresso Feminino (A.B.P.F.) e as várias associações de mesmo caráter que iam surgindo em todo país, utilizavam desde táticas de lobbying (pressão sobre os membros do Congresso), a divulgação de suas atividades pela Imprensa, para a mobilização da opinião publica. O momento político era de indefinições. Getúlio Vargas buscava manter o controle sobre o processo de constitucionalização em curso no país. Segmentos e grupos sociais mobilizavam-se, procuravam organizar-se politicamente e partidariamente, em função de interesses mais gerais ou específicos de classes, frações de classes, grupos ou categorias. Discutia-se o destino do país, projeção que, inevitavelmente, assentava-se sobre uma revisão crítica do passado representado pela República Velha. Dos debates políticos, participava agora, e por direito, a mulher. Porém, ainda que reconhecido o direito de ingressar na vida política do país, através do livre exercício do voto ou como candidata às eleições, sua participação ensejava inúmeras reações negativas, que iam da pura e simples contestação ao questionamento sobre sua capacidade intelectual para bem cumprir tal desiderato. As militantes da ABPF se articulavam para participar na elaboração da nova Constituição, promovendo assim, três congressos feministas nacionais. O primeiro foi no Rio de Janeiro, com o nome de I Congresso Internacional Feminino59 onde, segundo informações nos jornais (A UNIÃO – Domingo, 23 de maio de 1937. p. 01), compareceram representantes de 20 paises estrangeiros, inclusive um destaque para a “Miss Allen” – Chefe da Policia Feminina de Londres - da delegação Oficial da Inglaterra, que veio acompanhada de duas agentes. 59 Nove anos depois (1922), da realização no Rio, da 1ª Conferência pelo progresso feminino. 76 Em 1934, ainda por decisão da federação, realizou-se, na Bahia, o 2º Congresso Nacional Feminino, patrocinado pelo governador Juracy Magalhães. Desse congresso saiu um novo programa de reivindicações legislativas, administrativas e sociais destinadas às mulheres, servindo de paradigma à ação pública de todos aqueles que desejassem o apoio das associações femininas confederadas e do eleitorado que elas representavam. Também deliberaram: lançar candidaturas femininas à representação federal; apoiar e indicar nomes femininos para exercer cargos de administração e do setor jurídico e, por fim, recomendar apoio a outros candidatos que dessem apoio eficaz às reivindicações da “Mulher Brasileira”. O ultimo, foi novamente no Rio de Janeiro em 1936, denominado de 3º Congresso Nacional Feminino e se caracterizou pela discussão do Estatuto da Mulher e a regulamentação dos dispositivos constitucionais que se referem ao trabalho feminino, além das discussões sobre o papel da mulher no papel de assistência social. Esses congressos tinham como objeto aglutinar forças nos mais diferentes recantos do país, com base na forte negociação com o governo, na perspectiva de garantir o máximo de conquistas possíveis. Desde o inicio, a direção nacional da ABPF manteve boas relações com Getulio Vargas, tanto que Bertha Lutz foi nomeada para compor a comissão de elaboração do anteprojeto da Constituição de 1934. Numa coluna da “Pagina Feminina”, destaca-se uma entrevista da “poetisa, escritora e professora” pernambucana Edwirges de Sá Pereira, presidente da Federação Pernambucana pelo progresso Feminino, ao jornal do Recife70, ressaltando a “estrondosa vitória” que obtiveram as feministas, pela passagem de todas as emendas favoráveis às suas aspirações, no projeto da constituição. (A UNIÃO, 19 de abril de 1934. p. 09). (...) A mulher alcançou participação no governo e nos conselhos thecnicos, direitos aos cargos públicos; direito a três meses de licença com vencimentos integraes em caso de gravidez; igualdade plena quanto à nacionalidade, cidadania, aos direitos individuais; salário igual para trabalho igual além das garantias asseguradas pelo capitulo de ordem social onde expressamente se estabelece que o serviço de amparo à maternidade e à infância, bem como os referentes ao lar, ao trabalho feminino, assim com a fiscalização e orientação das leis a elles concernentes serão entregues à mulher habilitada. 70 Muitas reportagens eram reeditadas de outros jornais do país, estando sempre por dentro do que escrevia na época sobre o feminismo. 77 Conseguiram também frear a discussão sobre o serviço militar feminino, isentandoa, sem prejuizo dos direitos politicos, cabendo-lhe, de outra forma, a prestar serviço na Cruz Vermelha, nas oficinas, nos laboratórios e, sobretudo, na substituição dos encargos do chefe da familia, então mobilizado. A criação de uma Associação Paraibana pelo Progresso Feminino, em 1933, reuniu muita daquelas mulheres que participaram dos comitês femininos e que, desde então, continuavam de alguma forma organizadas em torno dos congressos e convenções feministas que se intensificaram no pós 1930, como deixa clara a coluna no jornal A UNIÃO (12 de junho de 1931). Hontem em Palácio, attendendo a convite da senhorita Analice Caldas para resolver-se sobre a representação da mulher parahybana no primeiro Congressso Feminino Mineiro que as realizará na cidade de Bello Horizonte, reunira-se as Sras. Corintha Rosas Monteiro, Amélia Rosas Rattacaso, Liliosa Paiva Leite, Dra. Catarina Moura Amstein, Alexandrina Pinto Cavalcanti, senhorinhas Analice Caldas, Maria Daluz Bonavidez, Maria Thercia Bonavidas, Geny Mesquita e Rita Miranda. Sua primeira instalação da APPF foi no edifício da Escola Normal, cedido pelo Interventor Gratuliano Brito e pelo diretor da escola, o cônego Matias freire. Anos depois, passou a funcionar no prédio da Associação Paraibana de imprensa (API), da qual Analice Caldas, também fazia parte. Impasses da APPF com a igreja Logo ao se espalhar a noticia da criação da referida associação, deu-se inicio o “falatório” de certos segmentos da sociedade mais conservadora. A esse respeito, Beatriz Ribeiro tece o seguinte comentário sobre os momentos que se seguiram à fundação de uma “Associação Feminina” na capital. (A UNIÃO, 19 de abril de 1934. p.9). Tal ocorrência provoca alaridos, o local como se diz comumente, ficou um pé de guerra. Organizaram-se partidos. Pouco faltou para que fossem vistos cavalos ajaezados, lanças em riste, numa plena demonstração de idade média. [...] Em meio à tormenta, porém, deu-se uma coordenação de elementos de ouvidos fechados a maus agouros. Em marcha estava a nova cruzada. 78 Ela se referia à indiferença de setores ligados à Igreja Católica, ao saber da fundação de um “núcleo feminista” na capital. Beatriz Ribeiro era também umas das sócias fundadoras da APPF. Essa autora foi escritora, com farta colaboração nos jornais de João Pessoa e em muitas cidades dos Estados Nordestinos, a sua produção literária foi publicada no jornal “A UNIÃO”, na década de 1930. Sua pena “prestimosa e amável”, seus escritos bem elaborados, escreveu para o “Brasil Feminino” a Revista de Iveta Ribeiro que lhe estampou o retrato. No dia 05 de agosto de 1936, assume o cargo de secretária da Associação Paraibana de Imprensa –API - na posse da nova diretoria. No mesmo mês, ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, em 23 de agosto de 1936, sendo recepcionada pelo Historiador José Batista de Mello. Em artigo publicado no Jornal A UNIÃO, (05 de abril de 1933), a bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, Lylia Guedes, na época então primeira presidente da associação feminina também escreve sobre essas “indiferenças” à APPF como oriundas de certos padres e de outras associações femininas ligadas diretamente à Igreja. Logo ao circular a noticia de nossa Installação, algumas associações catholicas eram advertidas pelos seus directores espirituais de que a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com sede no Rio de Janeiro, dirigida pela Dra. Bertha Lutz – sociedade por cuja iniciativa fora fundada a nossa, pregava idéias contrarias ao catholicismo. O motivo desse alarde era, a principio, o caráter leigo da Associação assumido publicamente, se bem que não hostil à igreja, fato comum a todas as outras associações de mesmo caráter no Brasil. Contudo, as representações presentes no imaginário da sociedade sobre as idéias oriundas do movimento sufragista Europeu e Norte-Americano, consideradas na época preocupantes, tornavam a APPF mal vista pelos seus adversários. Segundo Tavares (1975), as tensões foram aliviadas pela atuação do próprio Arcebispo D. Adauto. Segundo comenta o Cônego Francisco Lima no livro D. Adauto. (1959 p.199/200). Chegou a questão ao Arcebispo, e este, tendo em vista os fins elevados da Sociedade e o fato de não hostilizar ela a Igreja, exaltando-a pelo contrario e reconhecendo-lhe a grande benemerência – apoiou moralmente a Associação Paraibana para o Progresso Feminino, não aprovando a campanha que se lhe fazia. 79 Apesar do seu caráter leigo, a maiorias das freqüentadoras eram católicas, com um número reduzido de adotantes de outros credos religiosos, “(...) suficientemente sincero e coerente para tentar impor tagiversós de qualquer natureza”, dizia Beatriz Ribeiro. (A UNIÃO, 19 de abril de 1934. p.9). A resposta sobre as intenções da APPF veio em tom mais ameno pouco depois (artigo anônimo) no mesmo jornal. (A UNIÃO, Domingo, 25 de abril de 1934. p. 3). Confesso que recebi com certa reserva a noticia de que aqui se fundara uma sociedade com o nome bombástico de “Pelo Progresso Feminino”, supondo que a nova Associação erguer-se-ia sobre alicerces sufragistas... [...] A emancipação feminina, nos moldes que certos lideres proclamam, ainda não se casa aos novos costumes provincianos. [...] Vejo que fui precipitado no meu juízo. “Sociedade pelo Progresso Feminino” nem está destinada a essas cuminencias, nem paira na estagnação da superfície, absorvida no misticismo que caracteriza o tipo de outras associações de seu sexo. Fica no centro, fica naquele ponto onde se deve encontrar o equilíbrio estável. Mais à frente, fala-se das atividades beneficentes da associação. (Idem). Mais tarde, quando em sitio apropriado, na segregação que a defesa social impor, eles, os leprosos, estiveram na sua sociedade a pats, com asistência e consolo que amenizam sua desgraça física, vorbindirão, minhas patrícias, agradecidos pela compreensão que tiveste colaborando nessa cruzada que agora se inicia. Apesar da congruência aos princípios católicos, a APPF não contava com núcleo de religião, distinguindo-se, assim, da posição adotada pela direção nacional da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino, muito mais alinhada à Igreja Católica; fato que está por merecer análise mais aprofundada. Apesar do rotulo leigo, o caráter religioso era preponderante entre as sócias da APPF e uma inestimável vantagem tática para obter o apoio dos diversos segmentos da sociedade na luta pelos direitos políticos. Estas mulheres, de classe média baixa e alta, escolarizadas, inteligentes, exercendo profissão fora do lar, pareciam como que predestinadas a elaborar uma dupla missão: mostrar serem compatíveis às atividades do mundo privado com as do público e reconciliar a política com a religião católica, 80 reconduzindo esta última para o interior do Estado nacional, de onde havia sido vetadas desde 1891. O feminismo brasileiro Os movimentos que eclodiram na Europa e nos Estados Unidos, isto é, a primeira onda feminista como é conhecida, ainda causavam pesadelos nos homens e mulheres mais conservadores do Brasil, bem representado nas falas das dirigentes da associação. Os discursos das sócias demonstram uma grande preocupação em explicar o tipo de feminismo adotado para que não fossem mal interpretadas, ou mesmo, para acabar com o mal entendido em torno da palavra, a exemplo de Albertina Correia Lima. (A UNIÃO, 04 de abril de 1936. p. 05). Confundir feminismo com emancipação social da mulher e com fourierismo é erro tão crasso e inexplicável, como confundir socialismo com comunismo e anarquismo. O verdadeiro feminismo não pretende retirar a mulher do lar, [que ela tanto perfuma com a essência da virtude e exaltação pela beleza moral]. Em outro artigo, após um ano de sua fundação da APPF, Beatriz Ribeiro escrevia que: (A UNIÃO, 19 de abril de 1934. p. 9). [...] está exuberantemente provado não ser a A.P.P.F. comunista. Nem fascista. Nem hitlerista. Nem anti-clerical. Nada disso. Ainda não houve discurso nas praças públicas em os quais fossem pregados a emancipação social total das mulheres com a doação do vestuário masculino e outros quejados prognósticos. Pelo contrário. A “Associação” prova que não é ultrafeminista, ultimamente se bateu em prol do movimento tendente a não incorporar a mulher ao serviço militar, cumulo de ridículo concebido por obra e graça do General Góis Monteiro. O ponto de vista das feministas paraibanas nesse assunto está bem claro nas falas de suas principais lideranças e em consonância com o manifesto da “Federação Brasileira”, isto é, que as mudanças no comportamento das mulheres não significavam uma ruptura brusca e completa com o passado, com a forma de organização da vida social e com os valores tradicionais que nortearam suas existências até então. Não viam incompatibilidade entre ter uma casa, marido e filhos e exercer a cidadania política, materializada pelo 81 exercício do voto livre, ou atuar profissionalmente fora do lar, temas que assustavam, haja vista as perspectivas de mudanças que poderiam produzir. E concluía dizendo que: (A UNIÃO, 19 de abril de 1934. p. 9): A Associação Paraibana Pelo Progresso Feminino, tão falsamente malsinado pelos romancistas de ultima hora, não pretende formar as mulheres para as competições da vida exterior, nem tão pouco viva rebuscando em alfarrábios a mulher maneira de lhes dar direitos num país onde esta palavra é quase imaginaria.Tem em vista também contribuir para o encanto e adorno do lar. Uma outra articulista, Maria Falcone, falava a respeito da corrente especifica a qual defendiam. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p. 02). (...) Dist’ante, porém, duas correntes se forjaram neste sentido: a das que viam nesse despertar de mulher, não a superioridade das forças phisicas, nem o predomínio intellectual, apenas o termino de uma existência odiosa e subalterna e uma solução capaz de levar a humanidade a uma completo equilíbrio social; e outra a das que viam neste gesto de revolta um meio para sobrepujar a força brutal do homem despindo-se de seus naturais encantos de mulheres doces, cumpridora de seus deveres, amante do lar e das ternuras maternas, para se transformar em tyranas abusivas, materialistas, machistas, etc As idéias feministas que germinaram no Brasil refletiam os resultados da divisão do movimento sufragista inglês, em dois grupos, as pacifistas cuja ênfase era a luta pela participação maior da mulher na vida política e nos centros de decisão e as chamadas suffragettes que, para isso, radicalizava cada vez mais sua atuação, passando a efetuar atos de dano à propriedade e bens materiais como forma de chamar atenção para a causa. Ás lutas pelo sufrágio feminino foram se somando a novas causas e, nesse contexto, diversificam-se os segmentos de organização das mulheres. A “Federação Brasileira” e suas filiais mantiveram na luta pelo voto seu foco principal de ação. Eram, em sua maioria, mulheres bem formadas e com origem em famílias de elite. Suas fileiras foram engrossadas por mulheres de classe média que tiveram acesso à educação. Todo esse movimento dentro e fora da Paraíba causava um enorme “indiferentismo” no “seio” da sociedade paraibana. Maria Lourdes Moura, também fundadora da A.P.P.F., destaca no artigo intitulado “A Eva do século XX” a existência de “uma má vontade 82 inexplicável da sociedade em compreender as aspirações femininas”: (A UNIÃO. Domingo, 24 de dezembro de 1933 – pág.12). Presumem querer a mulher tomar os logares dos homens e usurpar-lhes os direitos políticos, quando ela deseja, apenas, tornar-se sua melhor companheira e mais preciosa auxiliar. (...) vai longe a época da nossa antepassada, a mulher antiga, que vivia sob a tutela e a custa exclusiva da atividade masculina. É uma, vaga lembrança a se perder no horizonte da civilização, a era das nossas bisavós, a quem era vedado ocupar-se da cultura das ciências e das letras, sendo condenadas a passar os seus momento disponíveis na monotonia de um trabalho de “meia” e de crochet, gastando os olhos numa renda de arabescos complicados, ou então adorando um gato e um papagaio. Ela se referia às mulheres do século XIX, época onde se distinguia claramente a esfera pública e privada. De um modo geral, o mundo público, sobretudo o econômico e político, destinado aos homens, cabendo às mulheres o âmbito privado do lar e do cuidado das crianças. A sociedade do século XIX é, sobretudo, uma sociedade sexuada. Nesse território, as mulheres, principalmente as burguesas, transitavam como ornamentos, estritamente disciplinadas pela moda, que codificava suas aparências, roupas e gestos, por que tinham a função de mostrar a fortuna e a condição do marido. Por outro lado, as mulheres das classes populares só entraram em cena quando reclamavam do preço do pão e precárias condições de consumo, provocando conflitos contra os comerciantes que aumentavam, de forma exacerbada, o preço dos alimentos. Já a “mulher moderna” ou a “nova mulher”, segundo ela Maria Lourdes Moura, apercebendo-se de seu valor, compreendeu que podia prestar à humanidade outros serviços, alem dos papéis de esposa e mãe; já não tinha que arcar com os sacrificantes misteres de que se incumbia a mulher antiga em seu lar: tecer, fiar o linho e a lã, cozer o pão. A Eva do século XX, já havia se inserido nos escritórios e repartições públicas, mostrando que não era mais as “letras paradas” que só podiam ser descontadas por meio do casamento. “São braços que trabalham e cérebros que pensam”, dizia ela: “não sendo mais a flor de estufa, encerrando como pérola frágil na languidez dos castelos, a Eva da atualidade saía para o campo, visitava exposições, freqüentava cinemas, circos e teatros”. (A UNIÃO. Domingo, 24 de dezembro de 1933. pág.12). 83 O movimento feminista, na opinião da maioria de suas porta-vozes paraibanas, possuía um papel moralizador, de colaboração para o engrandecimento da humanidade, a evangelização da paz universal, elevação da família e aperfeiçoamento do lar. A maternidade era tida por elas como a função primordial da qual a mulher não poderia se furtar. E caberia às feministas saber conciliar as funções próprias da natureza feminina com seus novos deveres públicos frutos da consciência adquirida na luta por reivindicações e conquistas. Dessa forma, defendiam uma liberdade, que, no entanto, não devia ser encarada sob o ponto de vista de independência ou emancipação social. A mulher continuaria como sempre fiel ao papel de colaborar junto ao homem. A liberdade era a autonomia para pensar, agir e possuir os mesmos direitos e deveres do homem. As discussões que tomavam conta do país, sobre o direito ao voto das mulheres, envolviam intelectuais de todos os lados. Numa palestra realizada no salão nobre do Liceu paraibano, em 27 de outubro de 1933, sobre os “auspícios” do “Grêmio estudantil” Afonso Campos, o historiador Horácio de Almeida questionava a vitória do feminismo. (A UNIÃO. Domingo, 27 de outubro de 1933 – pág.11). A decantada vitória do feminismo não passa de um sonho especulativo, uma vontade que não sabe mover-se, uma idéia que não tem precisão nas suas conquistas sociais, a mulher brasileira começou precisamente pelo fim. Sem direitos civis assegurados, aventurou-se na conquista de direitos políticos. De que lhe valem estes, se lhes faltam aqueles. E conclui acrescentando (Idem). Os direitos civis são fundamentos essenciais à independência da mulher. Sem eles continuará a companheira do homem no doce cativeiro da vida doméstica, a receber os madrigais de costume com que se vai pagando dos sacrifícios, renúncias e sofrimentos que lhe enchem a vida. De fato, a desigualdade judirica da mulher, expressa no Código Cível Brasileiro de 1917, colocava a mulher casada numa situação de visível contraste. Por outro lado dá-lhe o direito ao voto, enquanto, por outro, a equipara ao “selvicola” ao “pródigo” e ao “púbere”. Solteira ou viúva, a mulher maior de 21 anos goza plenitude dos seus direitos privados, o mesmo não ocorre com a mulher casada que, embora maior, estava presa ao marido pelo 84 jugo que provém do casamento, sofrendo por isso uma alteração para menos nos direitos, que exercia amplamente antes de casar-se. A mulher casada estava num plano de “lamentável inferioridade”. Não podia, sem autorização do marido, alienar, ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens; alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem; aceitar ou repudiar heranças ou legado; aceitar tutela, curatela ou outros múnus públicos; litigiar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos previsto na lei; exercer profissão; contrair enfim, obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal. (A UNIÃO, 7 de setembro de 1933 p.8). Esse contraste era motivo discursões entre os críticos da Associação Paraibana pelo Progresso Feminino, que lhes perguntavam se as mesmas aviam fixado sua atenção para o caso, segundo o artigo “o que há é uma ostensiva limitação ao direito da mulher na sociedade, uma profunda desigualdade entre ela e o seu companheiro de jornada terrena.” Pois ao “invés de reagir contra a tirania da lei e liberdade da tutela do homem, apressa-se a mulher em exercer o voto, ensaiando-se para expressar nas assembléias, onde sua voz não tem eco. (A UNIÃO, 7 de setembro de 1933 p.8). A Albertina Correia Lima, oradora da APPF, já havia atentado publicamente para esse ponto, e dado sua interpretação, numa conferência lida ao microfone do “Radio Clube da Parahyba”, a 20 do corrente mês, publicado no mesmo jornal. (A UNIÃO, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1933). Minhas Senhoras: - Meus senhores – A questão dos direitos civis e políticos da mulher é ponto controvertido nas legislações dos diferentes Estados. Essa controvérsia significa que a situação jurídica feminina é anômala em alguns países. Há, porém, uma tendência natural, uma impulsividade incoercível, para conseguir a anomalia, alias incompatível com a concepção actual da vida. (...) O direito nasce de necessidades sociais. Deve corresponder às aspirações colletivas. As leis e instituições são productos da intelligencia humana. Estão em continuo progresso, em continuas transformações, ou melhor. As instituições são resultados naturais da experiência social no curso da evolução humana, como conceito Inginiéros. Subtende-se que, a atuação política das organizações femininas representadas aqui na Paraíba pela APPF estava consciente da desigualdade jurídica, que historicamente caracterizou as relações entre homens e mulheres na sociedade brasileira. A superação 85 dessa “anomalia” nasceria naturalmente da necessidade da própria sociedade em superar tal desigualdade, mediante as conquistas a serem obtidas. Segundo Albertina Correria: “A nosso ver, estas restrinções, como as do direito civil estão revogadas com a extensão dos direitos políticos à mulher”. (A UNIÃO, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1933). Isto é, a extensão dos direitos políticos se coloca com uma bandeira de luta que abriria caminho aos direitos civis. Por outro lado, a ordem conjuntural estabelecida, exigia-lhes que prestassem ao papel de defender incondicional do Estado Novo e do Novo Código Eleitoral (1932), “bem mais liberal”, não estabelecendo condições para o sufrágio feminino, pois, como vimos essa não era a bandeira de luta das feministas brasileiras. (A UNIÃO, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1933). À Nova Republica coube a gloria de solucionar o problema. Sobre a assumpto, era nossa opinião já divulgada pela imprensa local: “o voto é a legitima impressão da consciencia nacional. Para não perder sua alta significação e finalidade, deve ser restricto às mulheres independentes intellectual e economicamente, isto é, àquelas que possam fazer uso e consciente desse direito”. (Grifo nosso) Não era uma seleção a fazer, mais uma medida preventiva contra possíveis conseqüências do sufrágio universal, se a mentalidade da mulher podesse corresponder ao apelo da lei. As questões em torno dos direitos políticos e civis, foram postas em discussão intensivamente ao logo do período que antecedeu a constituinte de 1934, e o resultado da luta só veio acontecer, em 1962, 28 anos depois do direito ao voto, com a lei 4121, e com a aprovação do Estatuto Civil da mulher, equiparando os direitos dos cônjuges. Conteúdo educativo da APPF A problemática educacional defendida pelas militantes da APPF, haja vista grande parcela das expoentes, serem educadoras, era compreendê-la como um direito fundamental e inalienável e de contribuições inestimável para a elevação do nível de “mentalidade”, principalmente das mulheres. No programa educativo adotado pela associação vislumbrava-se a mesma convergência de interesses no contexto da conjuntura político local e, que teve como conseqüência a introdução de novas idéias educacionais – a exemplo da presença do 86 escolanovismo, conjuntamente ao processo de expansão do ensino. Procurando desenvolver o programa educativo, para elevar o nível da instrução feminina, a associação contava com 12 núcleos de trabalhos destinados às sócias e demais mulheres. São eles: literatura e cultura da língua materna; brasilidade (geografia e história da pátria); francês; Inglês; alemão; italiano; economia doméstica; cultura física; prendas domésticas; pinturas; Jogos recreativos; músicas; beneficência e educação política – social (noção de direito usual). As sócias se inscreviam no núcleo cujo assunto lhe interessava. Foi fundada, também, uma biblioteca onde elas podiam encontrar leituras “sadias e instrutivas”, com grande cuidado dispensado à cultura “physica e aos jogos recreativos para distrair e descansar a mente das lidas intelectuais”, (A UNIÃO, 15 de março de 1933. p.8). Um sinal do empenho da citada associação era defender a instrução como umas das armas mais poderosas para as conquistas femininas. O papel educativo foi preponderante nas práticas culturais da associação paraibana. Logo que as condições permitiram, as sócias mantiveram uma escola para aqueles que, não estando em idade escolar ou que trabalhando para a própria manutenção, não dispunham de bastante tempo para estudar. (A UNIÃO, 15 de março de 1933. p. 8). Destacava-se também o núcleo de beneficência, que se responsabilizava por socorrer algum pobre com certa regularidade, auxiliando ainda, moças pobres e mendicantes. Cabe aqui destacar o núcleo de Brasilidade, este tinha como objetivo estudar mais cuidadosamente a geografia e a história do Brasil. As sócias faziam viagem pelo interior do estado para fotografar pontos pitorescos, pedras com inscrições que indicavam páginas da nossa história, numa época em que ainda não se tinha um mapa que indicasse a divisão geográfica dos municípios. Para facilitar os custos foi criada uma caixa de brasilidade como atestam as palavras de Lylia Guedes no artigo, Conheçamos Nossa Terra. (A UNIÃO, 14 de fevereiro de 1934 p.8). As contribuições da caixa de Brasilidade se destinarão ao fim patriótico de explorar os nossos recantos, estudando ao mesmo tempo a sua fauna e a sua flora. Trabalharemos e contemos com os governos. Eles nos ajudarão. Contaremos também com o apoio dos prefeitos. È apenas uma questão de iniciativa. A colaboração dos engenheiros das obras contra as secas nos será inestimável. Há já uma boa fonte de estudos. 87 No entanto, esse núcleo, juntamente ao de Educação, Política Social e Direito Usual deixou de funcionar a partir da gestão de Albertina Correia, no biênio de 1935/36. Por iniciativa da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, no terceiro congresso em 1936, organizou-se uma comissão de funcionárias públicas, composta por Olivina Carneiro da Cunha, Analice Caldas de Barros, Francisca de Ascensão Cunha, Davina de Queiroz e Beatriz Ribeiro, que planejava levantar as bases da “União das Funcionárias Públicas”, a criar-se em todo o país, já contando na época com mais de 120 sócias em todo o Estado. (ver onde eu posso explorar melhor esse aspecto). Considerações sobre a APPF A partir da segunda metade da década de 1930, começa um gradativo refluxo nas organizações e nos movimentos das mulheres, em comparação com a década anterior. Pois formalmente, as reivindicações das mulheres haviam sido atendidas, podiam votar e ser votadas, ingressar nas instituições escolares, participar do mercado de trabalho. O sistema social e político (tanto o capitalista quanto o socialista) absorveram, de alguma forma, estas conquistas, que implicaram no reconhecimento de sua cidadania, algo que exprimia o grau de influência das organizações de caráter conservador do País. Com a decretação do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas fecha o Congresso até 1945. Os movimentos sociais, entre eles o feminismo, foram sufocados. Encerram-se, momentaneamente, as carreiras das primeiras mulheres parlamentares, arrefecendo a capacidade de mobilização tanto da FBPF como de outras organizações de mesmas características políticas. De uma maneira mais ampla, podemos dizer que a partir da década de 1940, a Paraíba passava a ter um movimento feminista de configuração em torno das mobilizações de cunho assistencialista e beneficente, voltadas, especialmente, para arrecadação de verbas para obras de caridades, a exemplo da Associação das Donas de Casa – ADC; Noelistas; Sociedade de Professores da Paraíba – SPP; Legião Brasileira de Assistência – LBA; Federação das Bandeirantes da Paraíba – FBP; Damas da Ação Social – DAS, entre outras. 88 Na busca de uma justificativa para essa situação política social e cultural, salientamos que o período entre guerras representava uma nova estagnação do movimento feminista, uma vez que os regimes políticos totalitários se sobrepunham às possibilidades de transformações mais profundas na sociedade, fato que na Europa, um dos primeiros objetivos do fascismo foi doutrinar a juventude, tendo como alvo principal a socialização ideológica de aderência dos valores fascista. Para isso, o regime enalteceu necessariamente a família, elegendo-a como garantia da estabilidade social, política e como produtora de soldados. Nessa mesma condição, a dona de casa teria papel preponderante no território privado, como rainha e tutora do lar, excessivamente mãe e esposa, constantemente desestimulada à profissionalização no espaço público. Talvez estas reflexões possam explicar o silêncio de muitas dessas mulheres, após o golpe de 1937, o contexto vigente eram as causas dedicadas às “frentes drásticas” e ao assistencialismo ligado à família, tendo aqui na Paraíba, a primeira Dama Sra. Alice Carneiro, esposa do Interventor Rui Carneiro, a primeira Presidente da recém-fundada Legião Brasileira de Assistência (LBA) no Estado. Mediante a tal conjuntura política, cabe-nos indagar: como compreender, o feminismo dessas mulheres? É possível verificar em pesquisas e bibliografias existentes muitas críticas acerca do feminismo adotado pelas mulheres da APPF, principalmente por não questionarem as estruturas sociais e o papel “natural” das mulheres enquanto mães e donas de casa. Elas foram constantemente acusadas de serem pertencentes a um determinado grupo de mulheres burguesas “conservadoras” que lutaram exclusivamente pelo sufrágio feminino sem indagar a quem ou a que classe social serviria o voto; que o movimento estaria impregnado de limitações por ter sido dirigido por mulheres das elites e que, portanto, o debate ficou restrito às questões de ordem jurídica. No entanto, estamos propondo reler essas afirmativas a parir das nuances existentes no interior do próprio movimento, bem como de uma extensa gama de reivindicações não consumadas. Dessa forma, buscamos fatos e registros da trajetória de Analice Caldas e de outras militantes na tentativa de recompor historicamente o movimento, ao mesmo tempo em que, buscamos diferenciar a filial Paraibana das demais. A luta pelo direito do voto feminino no Brasil e na Paraíba, alçado à condição de principal bandeira do movimento feminista na época, teve, também, um leque de 89 reivindicações bastante amplo, que incluía desde os direitos sociais da mulher grávida até garantias legais para o trabalho feminino. Entre as lideranças da APPF, algumas questões aparecem como relevantes para a mudança de uma realidade opressora além do sufrágio, como, por exemplo, as preocupações de várias dessas mulheres criticaram as relações conjugais, exigindo uma mudança no comportamento moral dos homens, sobretudo, no que diz respeito à infidelidade no casamento, chegando até mesmo a defender o divórcio. Lendo e pesquisando essas histórias, pensamos que, embora a atuação dessas mulheres tenha sido aparentemente tímida, que tenham atribuído um valor político em determinadas mudanças, que pouco alteraria a estrutura mais profunda da sociedade e que suas estratégias de luta tenham sido a negociação com instâncias formais de poder, como não considerá-las feminista diante de suas declaradas posturas, de suas críticas, de suas visões de mundo e de suas atuações nos movimentos gestados entre os anos de 19301945? Portanto, compreendemos que essa modalidade de feminismo contribuiu significativamente para tirar algumas mulheres do anonimato patriarcal, desenvolvendo nelas a consciência do quanto eram importantes na sociedade. 90 CAPITULO V Notáveis belletristas 71 “Pode-se affirmar, sem medo de errar, que foi em 1920 em diante que a mulher parahybana pensou em si mesmo e no seu destino, fugindo de um parasitysmo humilhante que ás próprias plantas é funesto”. (Analice Caldas, 1937). Nas últimas décadas do século XIX, floresceu no Brasil uma fecundíssima literatura de autoria de mulheres. Mesmo com toda repressão a elas impostas pela sociedade da época, muitas conseguiram ultrapassar as fronteiras hegemônicas, contrárias à presença da mulher nos tradicionais espaços masculinos, particularmente, no universo das letras. Assim, nesse ultimo capitulo, buscamos reconstituir a trajetória de Analice Caldas no campo das letras e da cultura, num período histórico denominado por Sales (2005) de “a era das mulheres letradas na Paraíba”, no qual, Analice Caldas e tantas outras da mesma época “teceram outros rendados históricos”. (SALES, 2005). Essa é uma maneira de tentar revitalizar a memória de algumas dessas escritoras do passado, que, de forma audaciosa, resistiram ao silencio e deixaram suas marcas na história cultural da Paraíba, assim como tantas outras vozes de diferentes lugares do Brasil e do mundo. Isto implica uma mudança no jeito de olhar a história oficial: rever para valorizar a memória de escritoras, sobretudo, as do século XIX, quando esse papel, de escritor, deixou de ser exclusivo dos homens. Nessa ótica, passamos a ver a importância de compreender essas práticas de escritas como representações no cenário de uma comunidade em que as mulheres viveram e pensaram a sua relação com o mundo, rompendo os limites propostos para sua existência. 71 Belletrists: Pessoa que cultiva as belas-letras, que tem hábito de ler. 91 Figuras como Nísia Floresta Brasileira Augusta - 1810/1885, Maria Firmina dos Reis, Anna Alexandrina Cavalcanti de Albuquerque - 1860/1927, Isabel Gondim 1839/1944. Vozes isoladas no século XIX, que de algum modo, problematizaram nos seus textos a imagem da mulher representada na literatura, tocando em questões referentes à conveniência do matrimônio, à rígida moral católica, aos modos de etiqueta recomendados, etc. Já outras escritoras se identificaram com o tema da separação e da dignidade da mulher casada, da igualdade entre os sexos, produzindo romances representando com legitimidade o lugar da mulher na sociedade do século XIX. Na Paraíba, assim como em todo o Nordeste e no resto do país, a literatura feminina (de autoria de mulheres) começa a ser visível no início do século XX, tendo a imprensa, até então o único espaço de expressão possível, desempenhado um papel decisivo, ao declarar o aparecimento da mulher moderna. Essa visibilidade, especialmente a partir da década de 1920, foi marcada pela transitoriedade, pelo conflito entre o tradicional e o moderno 72, acompanhando as ressonâncias da cultura francesa na formação intelectual da sociedade: a Belle Époque73, considerada a era de beleza, das inovações, do predomínio da figura humana, sobretudo, a feminina. Essas idéias influenciavam a cultura local vigente, até mesmo a própria transformação das cidades, historicamente associada ao projeto de formação de uma sociedade moderna, civilizada, aos moldes das cidades européias, a exemplo de outras capitais do Brasil, entre elas, a cidade de Parahyba do Norte, atual João Pessoa. Como registrava uma dada coluna na ERA NOVA. Faz dez anos se iniciou o movimento transformador da nossa urbs (grifo nosso), acentuando destes últimos tempos de modo notável. A cidade está mudando sensivelmente de aspecto. Perde a sua feição colonial para vestir a mascara uniforme da civilização. (1921 nº4 p.12). 72 Combatida duramente pelo Arcebispo da Paraíba, o Bispo Dom Adauto que, em conjunto com paroquianos(as), se posicionaram contrários a nova moda, a emancipação da mulher e liberação dos novos costumes. 73 A “Belle Époque” foi um período na história da França que começou no fim do século XIX e durou até a Primeira Guerra Mundial. A Belle Époque foi considerada uma era de ouro da beleza, inovação e paz entre a França e seus vizinhos europeus. Novas invenções tornavam a vida mais fácil em todos os níveis sociais, e a cena cultural estava em efervescência: cabarés, o cancan, e o cinema haviam nascido, e a arte tomava novas formas com o Impressionismo e a Art Nouveau. A arte e a arquitetura inspiradas no estilo dessa era, em outras nações, são chamadas algumas vezes de estilo "Belle Époque". 92 A Belle Époque também designa os climas intelectuais, artísticos e culturais do período. A idade do ouro da profissão docente, em que, a leitura e a escrita eram valorizadas como um símbolo de instrução e como forma de socialização. Nesse sentido, a prática da cultura das “belas letras”, é, portanto, entendida como uma chave de acesso ao saber erudito, ao brilho que a cultura letrada propiciava. No entanto, ainda que singulares e produtivas essas escritoras, sobretudo, as do século XIX, foram sistematicamente excluídas do cânone literário, forjado é claro, pela crítica e pela historiografia masculina. Prova disso, é que ainda hoje não se menciona a presença e a participação de mulheres nos livros de História e de Literatura paraibana, no contexto do início do século XX. Quando muito, aparecem figuras como Anayde Beiriz, personagem de uma história real, tematizada no teatro, no cinema e na literatura, que nos instiga a pensar sobre a intersecção entre os fatos da vida privada e da vida pública, no contexto da história nacional. A trajetória da vida de Anayde Beiriz nos chama a atenção para as "dobras do lado de dentro" da história oficial, isto é, a dimensão do intimismo no contexto da experiência pública. Recentemente adaptado para os palcos do teatro 74, o espetáculo escrito por Paulo Teixeira conta a história dessa professora e poetisa paraibana que escandalizou a sociedade retrógrada da Paraíba com o seu vanguardismo: usava pintura, cabelos curtos, saía à rua sozinha, fumava, não queria casar e nem ter filhos, escrevia versos que causavam impacto na intelectualidade paraibana e escrevia para os jornais. Em 1927, ela conhece o advogado João Dantas. A paixão entre os dois provocou um escândalo na então provinciana capital paraibana, devido ao fato de serem solteiros e manterem um relacionamento mais íntimo que não era "permitido" pela sociedade da época. O romance, segundo a versão de alguns historiadores paraibanos, causou contratempos e foi considerado o pontapé inicial da Revolução de 1930. Naquele ano, João Dantas, como mencionamos anteriormente, tem o seu escritório invadido pela polícia do então presidente do Estado da Paraíba, João Pessoa, seu inimigo político. A correspondência íntima dos amantes é levada ao conhecimento público. Devido ao episódio, o advogado viaja até o Recife, produzindo o trágico desfecho do assassinato do referido presidente. Preso na Casa de Detenção, na capital pernambucana, 74 O espetáculo "Anayde Beiriz", uma montagem do grupo Movimento de Cultura Artística (Moca), com texto de Paulo Teixeira e direção de Roberto Cartaxo. O drama "Anayde Beiriz" fundamenta-se no amor sem limites, tendo como foco central os conflitos que viriam a deflagrar a Revolução de 1930. 93 João Dantas recebeu visitas de Anayde Beiriz, que passou a morar em Recife. Mas Dantas é encontrado morto com o cunhado na sela em que estava preso. As circunstâncias evidenciavam uma execução sumária, apesar da “versão oficial” apontar para uma situação de suicídio. Abalada, Anayde Beiriz se suicida, supostamente por envenenamento. Seu corpo foi sepultado no cemitério de Santo Amaro, em Recife. Nesse cenário, muitas outras mulheres também foram presenças constantes nos círculos intelectuais, políticos e literários, escrevendo nos jornais e revistas da época, publicando crônicas, poesias, contos e até livros. Saber de suas histórias necessitará fazer uma séria revisão da história literária ocidental, demandando uma releitura da história literária tradicional. Outras educadoras Além de educadora, e militante feministas, Analice Caldas de Barros foi também uma cultora das letras, e Colaboradora assídua na imprensa local. Freqüentemente convidada para proferir palestras em associações culturais e clubes de serviço, como o Rotary Clube da Paraíba. Numa delas, em sessão de 28 de novembro de 1937, falou sobre “O Progresso Feminino na Parahyba”, isto é, sobre os avanços da mulher e sua inserção no âmbito público até então, elencando algumas conterrâneas de destaque, entre meados do século XIX ao inicio do XX. Nesse texto publicado na “Pagina Feminina” do Jornal A UNIÂO, Analice chama a atenção para algumas mulheres pioneiras, quase desconhecidas aos olhos de hoje, mesmo entre algumas das mais recentes pesquisas, que na Paraíba, têm se dedicado à participação das mulheres na literatura, nas artes e na educação do final do século XIX e ao começo do século XX. Colaboradoras assíduas e atentas das manifestações pedagógicas, políticas e culturais do nosso Estado. No referido texto, Analice ressalta que: (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). A mulher do meu Estado tem ascendido em todas as atividades, muito suavemente! (grifo nosso). Tanto é assim que na literatura, nas artes, nas sciencias, na política não tivemos ainda um vulto feminino de maior projecção. 94 Segundo ela “O nome da mulher conterrânea mais evidente e mais citado tem sido o da jovem mártir Branca Dias. (...) E mesmo assim, já lhe tentaram controverter a veracidade de sua história e até de sua própria existência!”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Já no final do século XIX, Analice fala sobre Ambrosina de Magalhães Carneiro da Cunha, nascida em 1860, “naquelle tempo em que a mulher do Brasil, desse Brasil de mucamas, de pé de moleque e saias balão, vivia ainda uma da renúncia e degredo”, que surgia no cenário intelectual com inspirados poemas publicados na imprensa paraibana. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937 p.1). A atuação de Ambrosina M. Carneiro da Cunha na poesia paraibana do século passado está registrada a partir do poema “Nas Margens do Capibaribe”, publicado no Jornal liberal Paraybano em dezembro de 1880. Com apenas 20 anos, Ambrosina já denotava uma atitude salutar de feminismo, não só por assumir sua vocação poética, como por de ser uma das poucas mulheres a entrar, em 1881, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, segundo Analice, Ambrosina Magalhães foi a “primeira parahybana” a freqüentar uma escola superior, indo ate o 4º ano médico, quando se casou com o engenheiro Francisco Antonio da Cunha.” (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Seus poemas transitavam entre o romantismo e simbolismo. Desse último estilo é o soneto Noetívago. “Já vai bem alta à noite. E sobre o lago manso / Finíssimo lençol de gaze cor de poeta / Vão dois cisnes boiando um suave remanso / Enquanto vai passando a doce serenata”. Apesar de uma participação dinâmica na imprensa, Ambrosina não publicou livro. Assim como Ambrosina, outras notáveis belletristas paraibanas também brilharam no cenário letrado do século XIX. Cabe complementar essas histórias de vidas, com outras informações alcançadas em pesquisas anteriores75. Nelas, encontramos o nome da professora Francisca Rodrigues Chaves Moura, natural da Capital da Província da Paraíba, nasceu no dia 2 de agosto de 1860. Filha de Francisco José Rodrigues Chaves e Catarina de Almeida Rodrigues Chaves. Fez seus estudos primários nas escolas publicas desta Capital e nos cursos particulares dos professores Veloso e Francisco Gonçalves de Medeiros. Os estudos secundários lhe foram ministrados, particularmente, pelo professor Joaquim Antônio Marques, educador do Liceu 75 Projeto de pesquisa: Mulher e fronteira na historiografia paraibana – 1940-1964, dando continuidade de 2000 a 2002 na linha de pesquisa sobre Estrutura de Poder, pesquisas sobre as história das mulheres. 95 Paraibano, visto que naquele tempo, nesse estabelecimento, só eram admitidos alunos do sexo masculino. Só mais tarde, quando já era viúva, é que se abriu a Escola Normal Oficial do Estado, onde recebeu o diploma de professora, no ano de 1890. Em 1894, foi nomeada professora efetiva da Escola Normal. Durante mais de meio século exerceu o magistério particular. Fundou o curso gratuito Dom Ulrico, para adultos pobres de ambos os sexos, quando não havia ainda curso noturno nesta Capital. O colégio de Francisca Moura foi muito freqüentado. Escreveu as seguintes obras “Compêndio de Geografia” e “Pontos de Português”, contendo o programa completo do ensino da matéria na Escola Normal, programa que fora elaborado pelo Catedrático Dr. Maximiano José Inojosa Varejão. (FREIRE, 1987). Outro nome de destaque é o de Idalina Margarida da Assunção Meira Henriques. Idalina nasceu no dia 15 de agosto de 1838, na capital do Estado. Filha do Cirurgião-mor Brigadeiro José Henriques e de Ana de S. José Meira Henriques. Fora fundadora do 1º colégio particular da capital paraibana, o Colégio N. Senhora do Carmo, onde só se educava o sexo feminino, situado à Rua Duque de Caxias, onde funcionou o Museu Fotográfico Walfredo Rodrigues. (FREIRE, 1987). O Colégio N. Senhora do Carmo era um dos melhores colégios da capital, o único do gênero na sua época, com curso primário, secundário, com prendas domésticas e artes. Funcionou entre os períodos de 1865 a 1875, ano em que faleceu sua fundadora. Entre as suas alunas, destacaram-se: Luzia de Albuquerque Maranhão, Maria Francisca de Albuquerque Maranhão, filhas do Capitão-mor José Francisco de Albuquerque Maranhão, senhor do Engenho Santo Amaro, mãe e tia, respectivamente, da profª Maria Emerentina de Albuquerque Gouvêa Coelho; Maria das Neves de Araújo Pereira, filha de Manuel Araújo Pereira, senhor de Engenho, em Alagoa Nova e mãe do Dr. Manuel Tavares; Maria Rangelina Maroja, filha do fazendeiro Manuel Ferreira Maroja, de Mata Redonda, e tia do Dr. Flávio Ribeiro Coutinho; Aquilina Amélia de Oliveira de Bernadina de Oliveira, residente no Beco do Carmo, era mãe de Stela Caçador e que foi ganhadora do 1º Concurso de Beleza nacional, no Estado da Paraíba. Dessas alunas do Colégio N. Senhora do Carmo todas se destacaram na sociedade, sendo que Maria das Neves de Araújo Pereira, D. Yayá Tavares, foi chefe político em Alagoa Nova. 96 No campo da musica, temos Júlia Verônica dos Santos, natural de Areia – PB, nascida no ano de 1868, filha do professor José Bernardo dos Santos Leal. Professora, compositora, instrumentista. Iniciou e concluiu sua formação educacional na sua cidade Natal. Educadora de grande mérito, com vastos conhecimentos. Possuía um curso, onde formou gerações inteiras de ilustres paraibanos, que elevaram o nome da Paraíba no cenário nacional, entre os quais, destaca-se o escritor e ex-ministro José Américo de Almeida. (RIBEIRO, 1992). O curso funcionava em sua residência onde lecionava letras, músicas, piano, artes cênicas e religião, contribuição essa, que veio levar, cada vez mais, a projeção cultural que alcançou Areia no passado. Era admirada e respeitada pela comunidade areiense, pois, durante mais de quarenta anos, Júlia Verônica dedicou-se ao árduo mister de educadora. Era organista da Igreja Nossa Senhora da Conceição. Compôs uma ladainha, oferecida a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Areia, o que refletia a pujança e o espírito religião da destacada mestra. Organizava festas cívicas e escolares, dentre estas, destacava-se o drama denominado “As Quatro Estações”, tendo participado do espetáculo, Virgínia Pires Xavier, representando a primavera. Poetisa de reconhecido mérito escreveu os versos do hino: Salve 03 de Maio, executado durante as festas comemorativas à Abolição da Escravatura, em Areia. Júlia Leal, embora tenha dedicado toda sua existência à formação dos conterrâneos, morreu pobre, em sua cidade natal, aos 102 anos de idade. Júlia Leal regeu por muito tempo o coro de Igreja Matriz de Areia. Muito religiosa, tinha como livro de cabeceira o “Compêndio de Civilidade Cristã”, edição de 1856. Ainda sobre ela, disse o José Américo de Almeida: “Júlia foi mais útil a Areia do que todos os seus filhos ilustres”. É nome de uma Escola Estadual em Areia. Faleceu em 1970, na sua terra natal. Por fim, destacamos o nome da polêmica professora Rosalina Tertuliana de Almeida77. Rosalina nasceu no dia 18 de dezembro de 1824 em Campina Grande. Filha de José Francisco de Almeida e Anna de Almeida, dona Rosalina, em 1858, foi diretora de um Colégio na Capital da Província. O ginásio que teve sob a sua direção foi fundado no Governo do Sr. Beaurrepaire Rohan, depois que o Colégio foi dissolvido, dona Rosalina foi nomeada professora pública de Campina Grande, cargo que exerceu até 1879. Jubilada 77 Colhida da Revista ERA NOVA, nº 80, 01 de junho de 1925. 97 recebeu dos cofres da Província 38$500 mensais, que continuou recebendo da República pelo Sr. Marechal Deodoro da Fonseca. Ela preferiu ficar em Campina, onde morava sozinha, até que o Monsenhor Salles a internou na Casa de Caridade de Campina Grande. Rosalina nunca pensou em se casar, teve sempre um piedoso desprezo pelos homens, pois subestimavam a inteligência feminina. O fio comum que entrelaça essas histórias é marcado por muita opressão e desencantos de não poder ser livre, de não poder estudar ou ter opinião própria. Entretanto, se todas passaram por essa feição, nem por isto tiveram a mesma voz e as mesmas preocupações e os mesmos motivos. Na verdade, são vozes em polifonia, criando uma densa rede de sentidos e temáticos diversos. Cientes que cada memória seja única, existe um traço comum que as une: uma demonstração fora do comum em assumirem o compromisso com as letras, as artes, a leitura e a educação. Assim como Ambrosina, citada por Analice Caldas, Francisca Moura, Idalina Assunção, Júlia Verônica e Rosalina de Almeida e inúmeras outras mulheres de sua época, como bem lembrava Analice, viveram como fogo-fátuo78, ou se apagaram de vez. Já outras, segundo ela: (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). (...) não contendo expansão de seu êxito, vencidas pella atração do ruído e da fama, que lhe roçava os ouvidos como um sopro, rabiscavam, versejavam, embora somente para a allegria de sua inspiração, guardando cautelosamente no fundo da gaveta estes pedacinhos do seu assustado devaneio. Os farrapos dos velhos cadernos pertencentes a Francelina Correia das Neves. Adelina Bezerra Cavalcanti: são bem o exemplo do que vos affirmo. Essa fala reforça aquilo que Perrot (1998) já dizia: é nos arquivos particulares, o “sótão da história”, que podemos encontrar outras informações sobre as mulheres, pois estas eram as produtoras desses arquivos, preservando suas correspondências familiares e diários íntimos, pois, assim como a leitura, a escrita é frequentemente uma prática censurada para as mulheres. Dessa forma, fica claro, como era ameaçador, elas produzirem saber, pois, este também gera poder, como nos ensina Michel Foucault, uma vez que, a censura aos escritos, era uma forma de mantê-las “quietas”, ou seja, em silencio. Tudo isso sinaliza a nossa dificuldade de recuperar uma memória que quase não deixou rastros. 78 Significa brilho efêmero, prazer ou gloria de pouca duração. 98 Ainda no século XIX, segundo relata Analice Caldas, precisamente em 1885, mais ou menos na cidade de Areia, uma outra poetisa, Maria Góis publicou versos no jornal abolicionista A Verdade, órgão da sociedade areiense, sob a direção de Manoel da Silva e Rodolfo Pires. Outras pioneiras paraibanas foram as Sras. Maria Liliosa Onofre Marinho e Maria da Purificação Carneiro da Cunha, esposa do médico Dr. Flávio Maroja, que “forçaram também com certo ruído as portas venerandas do Lyceu Parahybano”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Nos campos das artes, Analice fala da figura de Amélia Thioga e Angelina Bathar, “ambas de comprovado pendor para o pincel”, as quais chegaram a realizar fora do ambiente colegial, algumas exposições de telas suas, aqui na Paraíba e no Rio de Janeiro. Uma outra artista, a senhora Cândida de Sá Andrade, em 1922, conquistou a medalha de ouro na Exposição Nacional com seu famoso trabalho de fibras. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Segundo Analice Caldas, tanto na música, na pintura e, em todas as manifestações de artes, o envolvimento da mulher teve sempre em nossa terra a mesma marcha sonolenta. Algumas se satisfaziam com o pequeno destaque de professoras, desprestigiadas com baixos salários, especialmente, as que se dedicavam a arte de Carlos Gomes79. “Nem conquistas, nem decepções, pela excelente razão, talvez de não fantasiar chimeras e ambições”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). A vida no interior, não dava condições de educação, era raríssimo uma moça aprender rudimentos da leitura. Uma ou outra filha de magistrados ou de comerciantes de melhores haveres chegava à capital ou a Recife para fins educativos, ela própria, conheceu na sua família as contradições que distanciavam homens e mulheres. Na função pública, porém, a causa foi bem diferente. Segundo Analice. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1).. (...) talvez por que o instinto de conservação não adormece. E um imperioso apêllo biológico de movimento, de expansão, de ar, de luz, fez despertar a rivalidade entorpecida que num esforço supremo de incrível consta, dilacerou as algemas de seda, mais dolorosas e mais duras do que o mais pesados dos grilhões. Quando vislumbraram a primeira 79 A arte de Carlos Gomes, musico e compositor brasileiro de inestimáveis trabalhos no período Imperial, nasceu em 11 de julho de 1836, e faleceu em 16 de setembro de 1896 já muito doente, ao chegar da Itália onde morava com o filho. 99 possibilidade de êxito, ao influxos dos ideaes correntes, de um programa de expansão cada vez mais tentador, se atiraram gostosamente sem que as usadas charges e ridículas, arma que mais fere a vaidade feminina as fizessem recuar. Foi eloqüente e enthusiasta este despertar, e mostra com ofuscante clareza, a expressão da tragédia intima, desse interior da chamada classe média que compõem quase o total da nossa sociedade. Sua fala nos confirma aquilo que Soihet (1987) - e outras historiadoras - já diziam, ou seja, a importância de se estudar as táticas utilizadas por essas mulheres do passado para adentrar no espaço público em diferentes contextos culturais. A força de vontade dessas mulheres em romper grilhões históricos de opressão, assinala a capacidade de grupos “aparentemente” destituídos de poder, em forjar autoridade dentro de brechas existentes nos habitus culturais de uma sociedade. Nesse tocante, a crítica feminista é de algum modo revisionista. Sobre esse assunto, concordamos com Perrot 82 : “(...) a história dos homens está ai, onipresente. Ela ocupa todo o espaço e há muito tempo. As mulheres sempre foram concebidas, representadas como parte do todo, como particulares e negadas, na maior parte do tempo”. Como ilustração, no ultimo ano da administração de Camilo de Holanda, em fins de 1920, Analice conta que Omezina Lins de Azevedo requereu inscrição para um concurso que se devia proceder no “Thesouro do Estado”, e isso foi negado sem mais formalidades. Nessa mesma época, algumas jovens paraibanas patinavam na Praça Venâncio Neiva e as Dra. Albertina Correia Lima, Catharina Moura haviam se formado em ciências jurídicas e sócias pela Faculdade do Recife. Segundo Analice: “Somente de uns 15 annos para cá é que se acceitou de facto este movimento das actividades da mulher fora do lar, com aprovação de uns e repulsa de outros, como ainda o sentimentos”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Além do magistério, a primeira função pública exercida por mulheres foi a de “agentes de correio” e algumas vezes “telefhonistas”. Na capital paraibana, porém, “no Correio Geral e Telegrapho só muito mais tarde, em 1922 e 1926 entraram as primeiras moças que se habilitaram por concurso, “as senhoras Isaura de Melo Luna e Noilda Botelho”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Nessa mesma época, Rosita de Almeida Brandão criou a Escola Remington 80, curso de preparação de “datilographas e tachigrafas”, 82 Michelle Perrot. Entrevista à Label France. Nº 37. 10/1999. P1 80 Nome das antigas maquinas de datilografia. 100 formando as primeiras profissionais com essas habilidades. A própria Analice foi uma de suas alunas, exercendo essa profissão na assembléia legislativa, como uma das primeiras ocupantes de tal cargo especializado, também lecionando taquigrafia na Academia de Comercio Epitácio Pessoa, além de outras matérias. Assim, a mulher “com o certificado de mais esta habilitação para a vida do trabalho, adeus preconceitos e razões”. (A UNIÃO, 17 de outubro de 1937. p.1). Dentre as boas surpresas que nos aguardavam nesta pesquisa, constatamos nos escritos de Analice Caldas, outros nomes que figuraram como professoras e escritoras ou mesmas simples mulheres, diferenciadas pelo pioneirismo em certo aspecto da vida prática. Nesse itinerário, podemos confirmar o que disse Perrot (1988), que no teatro da memória, as mulheres são sombras tênues e a narrativa histórica tradicional reservou-lhes pouco espaço, o que reforça o debate permanente sobre a história das mulheres um imperativo categórico. Na Paraíba, entre outros estudos, destacamos as pesquisas desenvolvidas no NDIHR81, o qual nos referimos anteriormente, destas, decorre o apanhado de uma série de dados biográficos, compondo um dicionário sobre a participação política da mulher na Paraíba, ainda não publicada pela professora Martha Falcão. Um outro trabalho muito importante em nossas pesquisas é a tese da professora Ana Maria Coutinho Sales (2003), intitulada: Tecendo fios de liberdade: escritoras e professoras do começo do século XX. Nesse estudo a autora buscou, num olhar interdisciplinar, analisar a produção literária de escritoras como, Eudésia Vieira, Ezilda Barreto e Maria Ignez Mariz, elaborando, também, biografias de professoras paraibanas do começo do século XX, a exemplo de Alcida Cartaxo, Anayde Beiriz, Juanita Machado, Olivina Carneiro, Petronilda Pordeus e Julia Leal. A forma escolhida por ela para fazer emergir o discurso das escritoras paraibanas foi a análise de suas produções, destacando o fenômeno literário/cultural do qual fizeram parte como autoras e sujeitos políticos, permitindo que seus textos fossem entrelaçados aos fios da complexa rede ideológica, histórica e cultural em que viveram. A conquista do cenário das letras significou para muitas delas uma ousada ruptura com a histórica condição de objeto de procriação, de boneca ou escrava cumpridora de um papel de coadjuvante na sujeição da vida domestica. As mulheres que tinham acesso ao 81 Através da pesquisas sobre a participação das mulheres na história da Paraíba, financiado pelo programa de iniciação cientifica Pibic/CNPq entre os anos de 1997 a 2002. 101 mundo letrado eram orientadas a ler e a escrever dentro dos limites recomendados a sua formação moral e religiosa, recusando-lhes os acessos aos conteúdos considerados obscenos ou de cunho político, por representarem ameaça à ordem hierárquica religiosa interligada à vida doméstica e familiar. (MORAIS 2002). Pesquisando sobre a formação cultural das mulheres paraibanas, não é difícil compreender por que a grande maioria das escritoras do final do século XIX eram moças, senhoras, muito provavelmente da classe média e alta. Pois, uma vez lhes vedado o direito à educação, eram apenas as mulheres de melhores haveres, isto é, que tendo condições financeiras de assumirem sua própria educação e instrução, como escritoras autodidatas. Através das práticas de leitura e de escrita, a mulher pôde expressar o talento, a criatividade intelectual consciente, a crença nas novas atitudes e valores sociais face ao mundo onde viviam reclusas às limitações domestica e religiosa. Dessa forma, inseridas em novas situações, envolvendo novos interesses, elas souberam, de certo modo, apoderar-se dos escassos espaços da vida letrada que lhes eram reservados ou confiados pela sociedade do século XIX, para gradativamente alargar a sua influência intelectual ás portas da educação, da arte, da ciência e do poder político do século XX. (MACHADO, 2005). Na investigação empreendida, descobrimos que algumas mulheres elencadas nesta investigação transformaram-se em sujeitos históricos produtores de uma cultura letrada que, através de suas práticas literárias, puderam nos revelar novos valores de participação feminina na sociedade, sejam na afirmação ou na negação de identidade sócio-cultural. No caso especifico das escritoras do começo do século XX, a palavra escrita foi utilizada como uma arma na luta pela conquista de um lugar no espaço público, especialmente, no território da literatura e, a imprensa, foi um dos espaços privilegiados dessa luta. A Imprensa local, no contexto dos anos de 1920, procurou abrigar a produção literária da velha e da nova geração, sobretudo o tradicional Jornal A União e a Revista Era Nova. Tanto um como o outro, funcionavam como um espaço de veiculação de idéias, publicação de textos, ou seja, uma trincheira de discussões intelectuais e, em certo sentido, uma espécie de “termômetro” das repercussões do modernismo. Segundo Sales (2005), falar da presença e da participação feminina na imprensa paraibana do começo do século XX é contar uma história desafiadora, eivada de preconceitos, de repressão e censura. Ao escreverem suas crônicas, as jornalistas tornaram- 102 se descortinadoras, nos deixando nas páginas publicadas, comentários sobre fatos inéditos ou fatos miúdos, acontecimentos aparentemente insignificantes, mas todos reveladores de comportamentos e representações de época. Daí a relevância da função social da voz feminina na imprensa paraibana. Uma vida entre papeis Assim como outras mulheres, que em diferentes pontos do país, escreviam, dirigiam e editavam seus próprios periódicos, as paraibanas também se envolveram com a atividade jornalística. Analice Caldas também não se deixou prender-se somente ao magistério, indo buscar na literatura outros “pendores para seu espírito”. Colaborou em revista e jornais de nossa cidade, numa linguagem sutil e interessante. No ano de 1921, iniciou a colaboração nas edições iniciais de “O Educador”, órgão de divulgação dos professores primários; em 1922, em “O Progresso”, de Alagoa Nova, ao lado de Eudes Barros e João Guimarães, editado por comemoração ao centenário da Independência e em “Paraíba Agrícola”, fundado por Diógenes Caldas, ano em que Analice Caldas foi a 1º secretária da Sociedade dos professores primários. (NÒBREGA, 1974). No ano de 1923, ela colaborou na revista quinzenal, “Era Nova”, onde publicou suas principais entrevistas numa coluna intitulada Álbum de Miller, na forma de questionário, tão em voga nos idos de 1922/1925, na Paraíba. Trazendo revelações inéditas da vida íntima de personagem como o ex-governador Castro Pinto82 (1912), com destaque também para Rodrigues de Carvalho83 e Carlos Dias Fernandes84. Outros entrevistados foram, Alice de Azevedo Monteiro, João Avelino da Trindade, Diógenes Caldas, João da 82 João Pereira de Castro Pinto (Mamanguape, 3 de dezembro de 1863 Rio de Janeiro, 11 de julho de 1944) foi um político, jornalista e escritor. 83 José Rodrigues de Carvalho: Nasceu em Alagoinha, Estado da Paraíba, em 18 de dezembro de 1867 e faleceu na capital pernambucana em20 de janeiro de 1935. Em 1890, juntamente com Castro Pinto, fundou em Mamanguape o semanário A Comarca e, em 1892, criou na capital do Estado o Grêmio Literário Cardoso Vieira, instituição que veio contribuir bastante na formação intelectual da juventude paraibana daquele tempo. Foi professor, jornalista, jurista e, acima de tudo, poeta, projetando-se nesse gênero a partir da publicação do poema Seios. Escreveu nos jornais A União, Gazeta do Comércio, O Comércio, Estado da Paraíba, República, Jornal Pequeno (Recife) e em A Província do Pará. 84 Carlos Augusto Furtado de Mendonça : Nasceu em 20 de setembro de 1874, na cidade de Mamanguape, Estado da Paraíba e faleceu em 09 de dezembro de 1942. Em 1912, Castro Pinto, seu amigo e conterrâneo, eleito presidente do Estado da Paraíba, convida-o para assumir a direção do Jornal A União, até 1928, quando foi demitido por João Pessoa, em seu primeiro ato ao assumir o governo. Carlos Dias Fernandes viveu intensamente a sua vida. Foi poeta, romancista, contista, biógrafo, pedagogo. 103 Matta Correia Lima, Manuel Tavares Cavalcanti, Paulo de Magalhães, José Gomes Coelho Eurípedes Tavares da Costa. (SANTOS, 1991). Analice Caldas entretinha-se com eles em verdadeira sabatina, onde após identificar nome, divisa, traço predominante do caráter, colhia verdadeiras confidências sobre temas sérios como: casamento, amor, religião, literatura, sociedade, a vida, a morte, indagando indiscretamente sobre qual a cor, paladar, o animal, o divertimento preferido, o que desejaria ser, as qualidades marcantes no homem e na mulher, concluindo com a pergunta sobre o juízo que fazia o entrevistado daquele próprio Álbum. A revista “Era Nova” foi uma das primeiras revistas do Estado, criada em 27 de março de 1921, circulou até 30 de dezembro de 1925, destinada ao público em geral, o objetivo central da revista era contribuir para o desenvolvimento literário do meio, caracterizando-se como um órgão de utilidade pública, comprometida tão somente com o incremento das letras. Embora, escrita em sua maioria por colunistas do sexo masculino, seu design e aspecto estrutural tinham características femininas, com fotos de belas modelos, a maioria filhas de “personalidades ilustres” da alta sociedade paraibana. Mesmo sendo uma revista de mentalidade elitista e conservadora, as colunistas contribuíam com inúmeros artigos que discorriam desde as mais avançadas idéias feministas à moda corrente da época. Nessa mesma época, Analice participou da “Folha”, publicada em Alagoa Nova, onde divulgou as idéias feministas ao lado de Marieta Bezerra, Flaviana Costa, Elisa Cunha, e Jane Ribeiro (NÓBREGA, 1974). Ainda como jornalista, colaborou em jornais e revistas da Paraíba e de outros Estados, a exemplo das revistas, “Ilustração”, “Flor de Liz”85, com artigos e poesias e nos jornais “A União” e “A Imprensa”, onde a Associação Paraibana pelo Progresso Feminino manteve a “Página Feminina” ate 1939, uma coluna quinzenal de divulgação das idéias da APPF. Além desses, colaborou nos jornais “O Jornal do Comercio” e no “Aprendiz”, órgão de publicação oficial da Escola Industrial de João Pessoa. A prática social de escrever na imprensa foi uma manifestação constante em sua vida, de significativa expressão pública na luta pela liberdade de informação, produzindo outros rendados históricos no tear de sua trajetória, marcada pelo contato com os papeis. 85 A Revista FLOR DE LIZ, surgiu em 1926, através do esforço de mulheres do alto sertão de Cajazeiras, na Paraíba, e circulou até julho de 1937. 104 Dessa forma, o mérito dessas pioneiras da imprensa, foi divulgar as necessidades de certos ideais na luta pela cidadania feminina, sendo uma das valiosas táticas adotadas por elas, ao clamar pelo acesso à educação e à cultura. Nesse sentido, a imprensa se constituiu em uma das melhores ilustrações de extraordinária diversidade, atravessando o campo educativo no Brasil, principalmente a partir da década de 1930, em virtude da regulamentação do profissional de imprensa em 1933. (A UNIÃO, 10 de outubro de 1933). A regulamentação da profissão de jornalista estabelecia critérios de trabalho aos profissionais que reunissem certos títulos de idoneidade, evitando-se que fizesse da função de intérpretes do pensamento coletivo um instrumento de campanhas políticas, sindicalizando a profissão. O discurso da época, dizia que, a regulamentação da profissão jornalística, devia ser encarado com um regime de censura simulado, pois o que cumpre fazer era evitar que o jornalismo manietado pelas exigências legais tornasse a responsabilidade profissional, um duplo critério de seleção moral e intelectual. Contudo, a censura total veio a partir de 1937, com a consolidação da ditadura militar do Estado Novo. Quando se fundou, em 1934, a Associação Paraibana de Imprensa (API), Analice Caldas foi convidada para figurar na lista dos sócios, juntamente com outras figuras femininas como Lylia Guedes que ocupou o cargo de bibliotecária e Albertina Correia. Segundo Olivina Carneiro da cunha, Analice aceitou o convite com muito prazer, tomando parte nas sessões em que foram discutidos os estatutos da mesma. (A UNIÃO, 18 de Abril de 1945. p.5). Em 05 de julho de 1936, ela foi admitida como sócia do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano, juntamente com Alice de Azevedo Monteiro. A primeira mulher a fazer parte foi Eudésia Vieira, em 03 de junho de 1922, exercendo o cargo de suplente de 1a Secretária, no período de 1925-26. A partir daí o quadro social tornou-se enriquecido com a presença das associadas, Beatriz Ribeiro, autora do romance A Barragem (1936), em 23 de agosto de 1936; Albetina Correia Lima, em 06 de abril de 1938 e Olivina Olívia Carneiro da Cunha e Lylia Guedes respectivamente em 06 de abril e 09 de julho de 1939. Nesta instituição, Analice Caldas foi umas das precursoras do Instituto de Genealogia da Paraíba, juntamente com o Cônego Florentino Barbosa e outros estudiosos. Lá também exerceu o cargo de tesoureira. Segundo o presidente do instituto á época, 105 Cônego Florentino Barbosa, em relatório apresentado, a 7 de setembro de 1944, refere-se que: “Há três anos que a Tesouraria pesa sob os ombros da Professora Analice Caldas, tão bons e apreciáveis serviços vem prestando que não sei se o Instituto concordaria algum dia com seu afastamento por qualquer imperiosa circunstância”. (TAVARES, 1976 p. 56). Em uma fase posterior, outras mulheres intelectuais entraram para o quadro de sócias. No mandato da Diretoria 1983-86, a historiadora Rosilda Cartaxo assumiu o cargo de Presidente do IHGP, quebrando mais uma vez o espírito machista da instituição. Rosilda foi a primeira mulher a dirigir uma instituição desse gênero no país, o que tem demonstrado que as mulheres começavam a quebrar tabus e formar novos valores sociais. Apesar de figurar no quadro das educadoras/escritoras, Analice Caldas não deixou nenhum livro publicado, boa parte de sua produção seus manuscritos, diários e objetos pessoais talvez tenham ficado nas mãos de parentes e amigos, ou simplesmente não foram preservados. Sabemos que ela deixou pelo menos um estudo inédito, impedida de publicar em virtude do trágico acidente que lhe tirou a vida, quando voltava do Rio de Janeiro. Segundo Tavares (1975), trazia consigo os originais desse livro que tencionava editar sobre a genealogia de sua família, cujas pesquisas haviam sido realizadas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Na verdade, ela buscava novos dados para ultimar uma pesquisa sobre a sua terra natal, intitulado Apontamentos para a História da antiga vila de Alagoa Nova. Trabalho esse, apresentado por duas horas em forma de conferência no instituto Histórico e Geográfico, em 9 de julho de 1939, na posse da advogada Lylia Guedes. Uma de nossas preocupações ao realizar esta pesquisa, foi, também, tentar reunir o conjunto de seus escritos, espalhados nos diversos jornais e revistas da época. Podemos dizer que ainda falta muita coisa, no entanto, estamos otimistas na perspectiva que um dia possamos publicar o apanhado de seus escritos. Principalmente, o ultimo trabalho mencionado. Seguindo o rastro desse documento, soubemos teria sido entregue ao IHGP Instituto Histórico e Geográfico Paraibano - pelo próprio Cônego Eurivaldo Tavares, a fim de ser editado por essa instituição, mas até o momento, não tivemos noticias de tal documento, possivelmente perdido, novamente, no meio de tanto papeis. Vale a pena destacar o trabalho de Laurita Caldas dos Santos (1991), parente de grau distante de Analice. Santos conseguiu recompor a memória jornalística de nossa 106 personagem, ao publicar o conjunto de entrevista do seu Álbum de Miller e de suas pesquisas sobre a genealogia de sua família, através do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, fundado a 19 de novembro de 196786. Sua memória também é lembrada, em projeto de lei que de 1948, apresentado pelo vereador Mário Antônio da Gama e Melo87, denominado Profa Analice Caldas, a uma das ruas da cidade de João Pessoa. Na homenagem de sua cidade natal, seu nome foi dado a Biblioteca Municipal, poucos depois de sua morte88. Na capital, é lembrada no frontispício de um grupo escolar, homenagem da Secretaria Educação, na época que seu primo, o Cônego Eurivaldo Tavares Caldas, era secretário de educação de João Pessoa. 86 Boletim de Noticias nº 6 e 8. 87 Deputado pela primeira Legislatura após o fim do Regime Vargas (1947/1951). 88 O livro de ata, datada de 1954, já com o carimbo com seu nome, mostra isso, mais não esclarece o ano exato, da mesma forma, também não encontramos no arquivo da prefeitura, alguma informação sobre a mudança do nome da Biblioteca. 107 Considerações finais Chegamos ao fim desta tarefa de pesquisa histórica, com ênfase na personagem de Analice Caldas, percorrendo o universo configurado de sua convivência cotidiana, na capital de Parahyba do Norte do inicio do século XX, fundada há 422 anos, as margens do rio Paraíba e espraiada pelas águas do oceano Atlântico. Muitos aspectos da vida de Analice Caldas de Barros jazem, ainda, nas sombras do tempo: o que fez quando moça até a época em que se registra sua atividade como professora? Da formação pedagógica até podemos ter uma noção de como aprendeu, mas fica ainda uma indagação de origem: como e onde estudou as primeiras letras? Como se configurava o universo cotidiano nas escolas que lecionava? Sobre a APPF, identificamos suas marcas nos escritos dos jornais e revistas da época e, ainda assim, muito pouco sobre sua participação, mesmo sabendo que foi uma das mais assíduas e atuantes sócias. Fica então mais uma indagação: onde estaria a documentação produzida nos mais de 12 anos de atividade dessa associação? E, finalmente, como ela conseguiu entrar num dos mais seletos grupos de intelectuais, o IHGP, sem nunca ter publicado estudo algum, pelo menos conhecido, a exemplo de outras mulheres aceitas antes e depois dela, como Eudésia Viera e Beatriz Ribeiro. Muitas outras indagações acerca do cotidiano de sua vida se escondem, também, nas raras imagens localizadas, como a foto tirada nas comemorações dos cem anos da Independência do Brasil, na praça Felizardo Leite, (Praça João Pessoa, a partir de 1930), à época, pródiga em acontecimentos e palco da maioria dos fatos políticos dessa cidade, que de uma maneira ou de outra repercutiram dentro dos seus limites, desde manifestações estudantis até a realização de concertos musicais que eram aconteciam constatemente89. Lugares comuns à época, onde Analice Caldas passava constantemente e que deixa na brisa quente da zona litorânea o mistério: como ali se constituíram mulheres tão cultas e de expressiva atuação no espaço político paraibano da década de 1930, numa sociedade herdeira dos valores tradicionais da Primeira República? Como, na provinciana Parahyba 89 A monografia de final de curso de Souza (1998), fala exatamente da praça João Pessoa, analisada historicamente, do final do século XIX aos anos de 1930, enfatizando-a como um espaço de socialização e de lazer na capital paraibana. 108 do Norte, Analice Caldas conseguiu edificar uma vida dedicada ao magistério, à cultura, as letras e as idéias feministas? Talvez algumas respostas às referidas indagações possam ser encontradas na singularidade da capital paraibana, enquanto pólo municipal mais desenvolvido, por conta disso, não só pela circulação e de comércio por onde transitavam, pelas estradas intermunicipais e pelo pequeno porto em Cabedelo, um grande número de comerciantes e seus produtos, mas também de notícias e idéias que contagiavam essa época. Não se pode deixar de refletir sobre a importância que os caminhos para a cidade do Recife tenham contribuído para o intercâmbio material e cultural, tornando a cidade de Parahyba, palco de acontecimentos relevantes nas primeiras décadas do século XX, a exemplo dos acontecimentos que deflagraram a Revolução de 1930. Também devem ser cogitadas respostas a partir da diversidade econômica da capital, comportando atividades agrícolas, comerciais e industriais (artesanato e pequenas fábricas), possibilitando a convivência de pessoas de todos os cantos da Paraíba, que vinham à procura de trabalho, mas também de relacionamento com a cultura local e com a educação. A história da personagem Analice Caldas e seu meio, isto é, sua cidade, se entrelaça no enigma do passado. Por isso, a complexidade que é penetrar numa realidade afastada pelo tempo, e perscrutar a vida de uma determinada pessoa, dentro desse canteiro da história que é a biografia, acabando por nos conduzir a uma verdadeira encruzilhada teórico-metodológica: um apanhado de biografias tendo como principal a professora Analice, a partir de uma modalidade de pesquisa historiográfica, no universo da Nova História Cultural, tendo como escopo a revalorização dos sujeitos em seu espaço, do universo micro ao macro da história, e vice-versa. É certo que, nas últimas décadas, a importância que a história social passou a desfrutar à custa da história política criou, por algum tempo, a impressão de que a biografia acabaria por se tornar um gênero superado, pelo menos no mundo acadêmico. O tempo cuidou de revelar que o interesse pela história social incentivou o aparecimento de novas formas de estudos biográficos, ganhando destaque, entre muitas outras, a preferência pelo relato da história de uma pessoa comum, tendo como foco central de abordagem a trajetória de um sujeito típico de sua época ou daquele que, embora seja tido como uma pessoa comum no seu meio emerge como um sujeito extraordinário. Isso sem falar, como afirma 109 Burke (2003 p.6.), de um tipo oposto de biografia como é “a biografia anti-heróica, na qual o autor demole as pretensões e expõe os pontos fracos da pessoa sobre a qual escreve”. Ou ainda, a biografia dos farsantes, pois de acordo com Burke: “Vistos no passado como virtualmente irrelevantes para a história, hoje os impostores são estudados com cuidado”, exemplificando com Martin Guerre ou George Psalmanazar. 90 No caso do nosso trabalho, temos uma pessoa comum, típica de sua época e, ao mesmo tempo, uma mulher que se diferenciou das demais do seu meio, tendo construído uma trajetória extraordinária – isso se pensarmos nos limites e nas possibilidades, existentes na sociedade patriarcal brasileira do século XX. Ao procurar esmiuçar sua trajetória, contudo, construímos um pouco a história de uma vida, às avessas, sem fazer disso uma biografia anti-heróica, mas, procurando desvelar o ser humano que o tempo cuidou de criar. Na construção deste estudo, fizemos uso de alguns procedimentos característicos da micro-história, incorporando ao corpo principal da narrativa os procedimentos da pesquisa em si, e as construções interpretativas exigidas pelas limitações documentais, o que, evidentemente, tende a externar o nosso ponto de vista. Nessa medida, nos afastamos de forma austera do discurso tradicional e à distância, adotada pelos historiadores que procuram apresentar a realidade como objetiva. Na micro-história, ao contrário, o ponto de vista do autor torna-se, naturalmente, uma parte intrínseca do relato (LEVI, 1992). Assim, procuramos entendê-la, em seu meio e seu tempo, com base também nas idéias de Ginzburg (1991), fazendo uma nova leitura que nos levasse à reinterpretação das informações e dos sinais que uma documentação, trabalhada anteriormente por outros estudiosos, pode deixar transparecer, e, da mesma forma, entender as lacunas nela existentes, uma vez que o silêncio enigmático pode revelar indícios que ajudam a decifrar uma figura e uma realidade possível. Há um consenso, ao que parece, entre todos aqueles que já estudaram ou escreveram sobre Analice Caldas de Barros: não era uma mulher pobre, vinha de uma família de posses, porém, foi por esforços próprios que acabou sendo uma importante mulher da 90 idem ibidem, p. 6. Burke refere-se ao personagem do livro de Natalie Davis, O retorno de Martin Guerre, um camponês francês do XVI que foge de casa para servir como soldado e, quando voltou para casa, descobriu que seu lugar, no campo de trabalho e na sua cama com sua mulher, tinha sido ocupados por outro. Já o personagem George Psalmanazar, o homem das mil faces, foi um aventureiro francês do século XVIII que, com suas fantasias, chegou a enganar os sérios cientistas da Royal Society. 110 cultura letrada de sua terra. O que podemos afirmar, com certeza, é que Analice Caldas, embora oriunda das famílias de senhores de engenho, não era membro de nenhum dos grupos oligárquicos paraibanos, elementos básicos para se identificar um membro da aristocracia rural provincial, apesar de ter herdado e administrado até seus últimos dias de vida, parte das propriedades de sua família. No entanto, as viagens de navio e avião que realizava constantemente ao Rio de Janeiro, numa época em que longas viagens era uma aventura perigosa e extremamente cara, exclusiva da elite, nos indica que não se tratava também de alguém de poucos recursos. Quanto à sua formação acadêmica, concluímos que freqüentava a principal escola de formação pedagógica da época, comungando dos mesmos direitos e privilégios dos filhos e das filhas da classe média da capital, único espaço onde as mulheres podiam continuar seus estudos e se profissionalizar, algo que em si já constituía numa grande conquista em sua época. É bem verdade que algumas de suas amigas chegaram a freqüentar as faculdades de Direito e Medicina em Pernambuco, a exemplo de Olivina Carneiro da Cunha e Eudésia Vieira. Ressaltamos que poucas famílias valorizavam a educação e o cultivo das letras das suas filhas. Por isso, fica a interrogação acerca dos interesses diferenciados da família de Analice Caldas com sua formação. No que diz respeito à sua dedicação ao magistério, contada e decantada por aqueles que criaram a figura da “emérita educadora”, se levado ao pé da letra, o que conseguimos depreender, é que ela abraçou o magistério como qualquer outro profissional educador de sua época. Sem os exageros de alusão à sua personagem, podemos dizer que Analice Caldas foi uma educadora comprometida, tendo a oportunidade e o mérito de ter lecionar logo após conclusão do pedagógico, até sua aprovação no concurso em âmbito federal para lecionar no Liceu Industrial, consolidando desde cedo sua independência financeira. É verdade também que, diferentemente das demais, além de ensinar, lia e escreva muito, o que lhe rendeu espaços em impressos, jornais e revistas. É relendo seus textos que percebemos que tinha o dom da palavra, da oratória e sabia se expressar de forma elegante através da palavra escrita. Porém, não foi somente nos ambientes das letras que Analice expressou seu interesse. Preocupada com o papel da mulher na sociedade do pós-guerra (da primeira guerra), não descansou na placidez e na meiguice de sua época, atirou-se na consolidação 111 da conquista de novos direitos a que correspondiam deveres severos e fortes para um melhor equilíbrio da sociedade moderna. Desde que apareceram os primeiros escritos sobre Analice Caldas, sempre se insistiu em reforçar algumas características que marcavam suas idéias, crenças e posições políticas: para alguns historiadores, uma mulher moderna dedicada às letras feminias, para outros, uma personagem estritamente ligada ao movimento feminista na Paraiba. Quanto à primeira não há duvida quanto à sua inserção intelectual, algo que não necessariamente, deveria ser comprovada com a condição de grande escritora, embora tenha sido personagem relevante entre o seleto grupo de intelectuais do IHGP. Na capital teve permanentes contatos com diversos intelectuais os quais possivelmente tenham motivado-a no desenvolvimento dos seus pendores pelas letras, pois, já como professora emérita pelo Liceu Industrial, escrevia constantemente contos e pequenos ensaios didáticos, publicado pela tipografia da escola, que nos leva a supor que essa atividade, possa ter sido uma constante ao longo de sua vida, o que lhe rendeu a oportunidade de entrar para aquele seleto grupo de intelectuais. Sua atuação como educadora, voltada, principalmente, para os menos favorecidos, a quem se dispunha ensinar gratuitamente em sua casa (LINS, 1976), sua ação em defesa dos mais humildes, isso, quando no exercício do magistério, deve ter sido também uma influência direta dos ideais em voga no seu momento histórico, pois, como todos as mulheres cultas da época e versada no magistério e na literatura, Analice Caldas também deve ter bebido na fonte do movimento da chamada Escola Nova, que esboçou-se na década de 1920, no Brasil. O mundo vivia, à época, um processo de crescimento industrial e de expansão urbana e, nesse contexto, um grupo de intelectuais brasileiros sentiu necessidade de preparar o país para acompanhar esse desenvolvimento. A educação era por eles percebida como o elemento-chave para promover a remodelação requerida. Inspirados nas idéias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação, esses intelectuais viam num sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de combate às desigualdades sociais da nação. Esse movimento,denominado de Escola Nova, ganhou impulso na década de 1930, após a divulgação do Manifesto da Escola Nova (1932). Nesse documento, defendia-se a universalização da escola pública, laica e gratuita. Entre os seus signatários, destacavam-se 112 os nomes de Anísio Teixeira - futuro mentor de duas universidades no país - a Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, desmembrada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas e a Universidade de Brasília, da qual era reitor, quando do Golpe Militar de 1964. Além dessas realizações, Anísio foi o fundador da Escola Parque, em Salvador (1950), instituição que posteriormente inspiraria o modelo dos Centros Integrados de Educação Pública CIEPs, no Rio de Janeiro, na década de 1980. Fernando de Azevedo (1894-1974) - que aplicou a Sociologia da Educação e reformou o ensino em São Paulo na década de 1930; Lourenço Filho (1897-1970) – professor; Cecília Meireles (1901-1964) - professora e escritora; A atuação destes pioneiros se estendeu pelas décadas seguintes sob fortes críticas dos defensores do ensino privado e religioso. As suas idéias e práticas influenciaram uma nova geração de educadores como Darcy Ribeiro (1922-1997) e Florestan Fernandes (1920-1995). De sua crença, nada podemos afirmar, uma vez que não existe – ou pelo menos não encontramos – nada que assegure sua vinculação a alguma religião, ou doutrina. Ao contrário de outras mulheres de sua época que não se cansavam de afirmar suas convicções católicas. Sobre isso, não localizamos nada escrito por ela e nenhuma referência daqueles que escreveram sobre ela. Falou-se sempre de Analice Caldas, como a fiel admiradora do presidente João Pessoa, tal o grau de admiração que se envolveu nas campanhas pró Aliança Liberal e nas campanhas cívicas após os acontecimentos de 1930. Todavia, praticamente todas as mulheres de sua época, também abraçaram aqueles idéias de modernidade, exceção das que tiveram seus interesses contrariados, ou seja, das famílias tradicionais ligadas às oligarquias do sertão. A classe média urbana que começava se inquietar com os padrões dominantes oligárquicos e da qual Analice Caldas fazia parte se identificava com a administração do presidente João Pessoa, que por sua vez, buscou nesse grupo, consolidar em seu governo o fortalecimento da economia e da administração pública da capital paraibana. Sobre a sua vinculação à A.P.P.F, era expectativa de pesquisa identificar a atuação de Analice Caldas, porém, uma curiosidade: por que não localizamos seus escritos revelando as idéias que tanto defendia? A resposta a qual podemos chegar, é que talvez ela atuasse nos bastidores do movimento, adotando uma outra tática para difundir suas idéias. Seus textos, por exemplo, falavam das mulheres que se destacavam como expoentes na 113 literatura, na musica e nas artes pelo Brasil e fora dele. Quando assumiu a direção da Associação em 1943, ela, seguramente, não tinha o mesmo caráter de sua fundação em 1933, haja vista que o regime Vargas silenciou todo e qualquer movimento social, tornando completamente obscura as atividades dessa associação. No caso específico, nos cabe também indagar: onde estão os documentos oficiais, textos, cartas e atas da APPF, que apesar da perda de sua importância política, continuou funcionando normalmente mesmo sem quase nenhuma visibilidade? Esse grupo de mulheres com o qual Analice Caldas conviveu, trabalharam primeiramente como professoras, popularizaram indiscutivelmente o saber, mesmo impregnado de concepções masculinas e dos grupos hegemônicos dominantes, desafiando as normas até então estabelecidas por uma sociedade patriarcal, onde se preconizava o papel da mulher apenas como mãe e esposa abnegada, para quem a casa era o altar no qual depositava sua esperança de felicidade, sendo o casamento sua principal aspiração. As pioneiras da A.P.P.F, à sua maneira “comportadas”, abriram as portas para uma tomada de consciência da sua submissão social reagindo ao pensamento opressor tradicional da sua época. Essas conquistas não se deram sem luta, tendo a participação de grupos especializados de intelectuais femininas, a exemplo de Analice Caldas e tantas outras, que atuaram nas organizações e nos movimentos de mulheres, principalmente, através dos meios de comunicações da época: revistas femininas e jornais, que se constituiram em um elemento transformador da sociedade e da a organização de uma nova cultura. Nesse contexto, coube ao feminismo no Brasil denunciar a desvalorização da mulher, manifestada pela sociedade patriarcalista, expressa através de nossa cultura tradicional e conservadora, e que se constituiu a partir das resistências, lutas e conquistas que compuseram a história das mulheres, colocando-se como movimento vivo, cujas lutas estão presentes no processo de construção da nossa história. Dos vários estudos que tratam das carreiras de homens e mulheres comuns, pobres ou ricas, mais inteligentes que, no século XX, conseguiram alguma projeção política, social ou cultural, acreditamos ser o presente estudo uma prova do quanto se pode dizer sobre a vida de uma personagem comum que se destacou em seu meio simples e demarcada ainda pelo atrasado urbano, fazendo-se com isso, uma personagem extraordinária, mesmo com as 114 ausências e as lacunas apresentadas pelas fontes e com as limitações bibliográficas existentes. Assim, não nos propusemos reconstruir uma figura da heroína, mas, de uma mulher de vida real, como foi Analice Caldas de Barros. Sobre a necessidade oficial da história em construir a figura do mito ou da heroína, parafraseamos Carvalho (1990 p. 55/56). Tem de responder a alguma necessidade de aspiração coletiva, refletir algum tipo de personalidade ou comportamento que corresponda a um modelo coletivamente valorizado. Na ausência de tal sintonia, o esforço de mitificação de figuras políticas resultará vão. Os pretendidos heróis serão, na melhor das hipóteses, ignorados pela maioria e, na pior, ridicularizados. A imagem que podemos recompor de Analice Caldas, olhando-o do presente em meio aos registros de suas ações, nos fazem pensá-la como uma figura feminina atuante do inicio do século XX, bastante peculiar. Foi educada em uma conjuntura de profundas desigualdades, em que se clamava pela democratização da educação para a maioria da sociedade. Mesmo assim, identificou-se com parcela dos excluídos da sociedade, envolvendo-se com a formação da juventude e com os estudantes pobres, mediante a atuação em escolas rurais, no ensino profissional e também, particular. Tornou-se uma jornalista operosa na Paraíba, escrevendo e participando da fundação de pequenos jornais. Não chegou a constituir sua própria família, fato ainda obscuro em nossa pesquisa. Morreu como pesquisadora, planejando publicar o seu primeiro livro sobre a origem histórica de sua terra natal e de sua família. Debruçando-nos sobre os documentos de que dispomos, concluímos que se tratava de uma alegre mulher, elegantemente vestida e sempre de cabeça erguida, falando numa posição onde poucas mulheres de sua época tiveram oportunidade de alcançar. Esses são alguns significados que vamos construindo na pesquisa, recolhendo pistas que nos edificam sentidos múltiplos. Dessa mesma forma, são assim as nossas vidas, constituídas de múltiplos significados, posto que, somos plurais. Percebemos nesses vários registros recolhidos acerca da vida da educadora Analice Caldas, traços e pistas de ontem que ajudam a reconstruir parte do enredo de sua vida, permitindo também levantar questões pertinentes à história da educação, à atuação de professoras daquela época, bem como as práticas políticas e culturais. 115 Nesse cenário, finalmente indagamo-nos: quantas “analices” ainda esperam sua vez de fazer parte da história que ajudou a construir? Assim, pretendemos não somente ser narradores dessa história, mas, sobretudo, um leitor e ouvinte atento às vozes que têm muito a contar, haja vista que por meio do estudo do passado buscamos a compreensão dos problemas peculiares ao nosso tempo, principalmente, em se tratando da história das mulheres, que tal como a entendemos, ainda é bastante recente e em construção. 116 Referenciam Bibliográficas 1.1 - livros, capítulos de livros, dissertações e teses. ALMEIDA, Horácio de (1966). História da Paraíba: Tomo I. 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