Clinicando - Editora Escuta
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46 Pulsional Revista de Psicanálise 46 Clinicando Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, no 135, 46-52 A cultura da des-subjetivação e a intervenção analítica* Ernesto Duvidovich O artigo parte da diferenciação estrutural da ontogênese humana em duas ordens: Corpo extensão/Corpo erógeno. Esta organização em duas dimensões é estruturante da subjetividade e, conseqüentemente, é irredutível. O homem é psicossomático. Essa diferenciação que se inaugura na repressão primária gera um desequilíbrio constitutivo do sujeito. A partir desse enfoque consideramos as tendências a eliminação deste desequilíbrio essencial como destrutivas e patologizantes. Propomos, assim, uma visão de saúde que admita e ampare este desequilíbrio e, conseqüentemente apontamos para a intervenção que zele pela manutenção do conflito e não pela sua eliminação. Palavras-chave: Corpo erogeno, estrutura psicossomática, desequilíbrio constitutivo, conflito This article starts from the structural diferenciation of the human existence in two ordens: Extension body/ Erogenous body. This organization in two dimensions is a structural condition of subjectivity of and therefore irreductible. Man is psychosomatic. This diferentiation that originates at the primary repression creates a constitutive desequilibrium in the subject. From this point of view we consider the tendencies to elimiate this essential desequilibrium as destructive. Thus we propose a vision of health that admits and holds this desequilibrium. We work towards na intervention that stands for the manteinance of the conflict and not for its elimination. Key words: Erogenous body, psychosomatic structure, constitutive desequlibrium, conflict * Texto apresentado originalmente no V Congresso Latino-Americano de Psiquiatria (de 15 a 18 de setembro de 1999). Clinicando 47 PREMISSAS QUE BALIZAM NOSSA PRÁTICA Quero brevemente delimitar a especificidade da nossa abordagem, discriminando a da confusão teórico-metodológico-técnica que impera no conjunto das práticas que chamamos de psicossomática. A psicologia médica produz sua investigação a partir da dicotomia cartesiana e com especial ênfase na relação causa/efeito. Define-se então como psicossomático, qualquer patologia ou disfunção fisiológica causadas pelo emocional, isto é, de origem psíquica. Segundo esta proposta, haveria doenças psicossomáticas (de origem psíquica) e as que não o são. Em geral acontece que aquelas afeições para as quais o saber médico ainda não conta com uma etiologia definida são consideradas doenças psicossomáticas e encaminhadas ao seu suposto especialista para tratamento: o setor de psiquiatria. Ocorre que a medicina lida com suas lacunas com enorme dificuldade, tamanha a expectativa e demanda que a cultura lhe propõe. Do ponto de vista da medicina moderna positivista, a psicossomática não passa de uma concessão da matéria ao espírito, e ainda de caráter temporário. À medida que a investigação avança ao ponto de encontrar explanações no âmbito anátomo-fisiológico, a tal patologia deixa de fazer parte do objeto da psicossomática e volta a ser uma questão da ciência médica e seu objeto essencial: o orgânico. A medicina tem como objeto o corpo extensão, corpo biológico, físico-quími- co, corpo observável, mensurável, calibrável, e tem como objetivo a redução última ao real. A partir desta abordagem cria-se um mal-entendido inicial, haveria doenças psicossomáticas e as que não o são, e os conseqüentes reducionismos biologicistas (biológicos) ou psicologistas (psicológicos) se opondo a estes: todas as doenças têm origem psíquica etc. Nossa investigação delimita seu campo a partir de uma abordagem da especificidade do fenômeno humano, integrando no seu território de operações não apenas os fenômenos da patologia mas também os fenômenos da ordem da normalidade. Delimitamos nosso campo justamente a partir desta dilemática (problemática) inicial; para nós o homem é psicossomático. Nosso objeto de estudo é a estrutura psicossomática humana. Todos os fenômenos da existência humana se dão numa complexa articulação entre estas duas ordens que configuram sua estrutura e definem sua especificidade em relação aos outros habitantes do nosso planeta. De um lado há sua dimensão biológica, o que costumamos chamar de corpo extensão. Ordem esta do corpo objetivo, existência na dimensão das coordenadas cartesianas, células, tecidos, dimensão do funcionamento automático, instintivo, dos objetos pré-fixados, imperativos categóricos que movimentam objetos em relação a outros objetos, ordem da natureza. Do outro lado definimos a ordem simbólica, dimensão do corpo erógeno, do 48 corpo das representações, dos desejos das imagens, dos sentidos, das palavras. A primeira é a ordem que partilhamos com os animais, cuja existência responde unicamente a esta organização, movidos absolutamente a imperativos categóricos geneticamente herdados. Na psicossomática psicanalítica partimos da constatação de que o homem é o único dentre todas as espécies da Terra que habita ambas dimensões simultaneamente. Esta é a nossa definição da ordem psicossomática. Bem, propomos I R, isto é, o imaginário tem supremacia sobre o real. A ordem simbólica subverte definitivamente a ordem natural. A subjetividade inicia justamente na quebra do mecanismo automático do arco reflexo. E a vivência da falta, da privação, inaugura no candidato a sujeito a possibilidade de construir os objetos internos, as representações, primeiro de aluciná-los (os objetos), fantasiá-los, nomeá-los e pensá-los. O bebê humano com sua precária condição embrionária prematura é violentamente jogado em direção ao símbolo, única condição de sobrevivência. A partir desta “falta estruturante” sua natureza está totalmente subvertida. O homem depende da constituição deste corpo erógeno, depende de uma representação de si, da construção de um eu no narcisismo e uma identidade no universo simbólico para sua própria sobrevivência orgânica. As funções senso-motoras são submetidas à organização representacional do eu. Significa isto que se faz necessário – exclusivamente no fenômeno Pulsional Revista de Psicanálise humano – a construção desta representação mesmo para o comportamento mais simples. Todas as funções da ordem biológica dependem da circulação de energia libidinal na dimensão erógeno-simbólica. Subjetividade é desequilíbrio. A perda do objeto real é condição inevitável de subjetivação. Chamamos isto de recalque original. Este exílio que a irrecuperabilidade do objeto real produz inicia esta nova dimensão do desejo ao qual, daí em diante, o Sujeito responde. A partir disto todo o destino deste corpo extensão está condenado a depender do sujeito desejante que o dirige. Este desequilíbrio essencial, a vivência da falta como estruturante do sujeito, define os fenômenos da angústia como constitutivos da estrutura subjetiva. Na nossa abordagem o sofrimento não é necessariamente patológico, muito pelo contrário, ele é estruturante. Muitas vezes o tratamento do somatizante consiste em “capacitá-lo ao sofrimento subjetivo”. A saúde se sustenta nesta dupla pertinência. Definimos o interdito (a lei que estrutura o desejo) como esta fronteira que separa e conecta as duas ordens nas quais o sujeito se constitui. Definimos a doença na falha desta fronteira que sustenta a estrutura. Consideremos que estas fronteiras, estes muros, são construídos de um material leve e instável: representações. Ao longo das diferentes fases da organização, mesmo antes do acesso propriamente à palavra, o filhote humano depende totalmente da função simbólica. O simbólico comanda a Clinicando construção ligando os diferentes níveis de estruturação identificatória, propiciando uma relativa estabilidade arquitetônica ao conjunto de representações. Assim, as relações mais primárias, as formações iniciais, a erogenização, o narcisismo, dependem desta presença que comanda e organiza. O corpo se erogeniza “à sombra” do símbolo. A partir deste desequilíbrio essencial, o conflito é inevitável. O sujeito, uma vez constituído, tem que necessariamente dar conta dos seus próprios dramas, conflitos e crises que sua vida subjetiva (a realidade humana) lhe impõe. Se ele se omitir, pagará caro. Freud define o aparelho psíquico como um sistema de pára-excitações. A eliminação do conflito na dimensão subjetiva propiciará sua manifestação na dimensão orgânica. Não se trata de uma simples escolha, uma série de vicissitudes que marcam (ou deixam de marcar) o sujeito pelas etapas iniciais da sua estruturação identificatória produzindo maior ou menor fragilidade na capacidade de sustentar a economia psicossomática enquanto lida com conflitos na esfera erógeno-simbólica. Quando esta economia energética transcende esta dimensão estamos diante do fenômeno somático. Isto não depende da intensidade dos conflitos em jogo, depende de uma estrutura identificatória relativamente firme, capaz de agüentar o conflito psíquico. Lembremos que esta estrutura não é definitiva, ela está em constante evolução e reformulação. Simplificando didaticamente direi que ante a inviabilidade das forças em con- 49 flito na vivência humana definimos duas vertentes do destino destas forças: a) o desfecho no cenário psíquico com suas modalidades neuróticas e psicóticas. b) o desfecho fora do cenário psíquico. Atuações, tragédias e somatizações. EFEITO DES-SUBJETIVANTE DAS PRÁTICAS PREDOMINANTES NA CULTURA A identidade subjetiva, a unidade narcísica, o corpo erógeno, são conquistados com esforço ao longo das primeiras fases da estruturação psíquica. No entanto não são conquistas definitivas. A manutenção da unidade narcísica é das representações identificatórias; é uma tarefa constante do sujeito ao longo de sua existência. Todo ato humano é também uma reafirmação desta sua posição identificatória sempre incerta, uma luta para sustentar seu bem mais valioso: a unidade construída no universo do sentido. Existem muitos momentos críticos na vida do sujeito, existem muitas questões delicadas que ameaçam o precário equilíbrio de forças em que a unidade subjetiva se sustenta. Toda vez que suas últimas trincheiras representacionais são postas em xeque o sujeito vive o risco (a tentação) de se omitir, de desfazer o desequilíbrio essencial que o constitui. Esta quebra o constitui, tanto ao sujeito como a própria cultura. Esta quebra é certamente irreparável. A tendência em todo sujeito a equilibrar este desequilíbrio é uma manifestação da pulsão de morte, componente presente em todos os sujeitos. 50 Numa cultura em constante e rápida mudança e evolução as referências identificatórias se desestabilizam. Estas representações simbólicas que sustentam os lugares identificatórios onde os corpos se constituem em sujeitos através das relações iniciais com os seus outros significativos, estas referências simbólicas culturais, ficam menos estáveis e garantidas intensificando a incerteza identificatória, esta “pouca realidade” que a própria natureza (subversiva) humana nos impõe. Os membros desta tal cultura demandam certezas. Quanto mais instabilidade nestas referências mais os indivíduos demandam objetos que reequilibrem imediatamente seu desequilíbrio essencial. Certamente os fenômenos culturais não podem ser reduzidos a uma explicação psicanalítica. O predomínio do consumismo, o culto aos objetos, a velocidade de troca, os produtos descartáveis, a medicalização e quimiotização dos fenômenos humanos etc. Há os interesses políticos-econômicos, o crescimento econômico-industrial, os interesses da indústria química etc. Todos estes elementos propiciam e são propiciados pelo surgimento de uma mentalidade “objetalizante”. Mentalidade esta que certamente não valoriza os fenômenos subjetivos; ao contrário, os abomina e teme, ameaça e apavora o mundo interno com seus conflitos, incertezas, a procura interminável que o desejo lhe impõe etc. Esta mentalidade aposta tudo no objeto externo, ignorando quanto possível o próprio mundo interno; procura deses- Pulsional Revista de Psicanálise peradamente uma “verdade última” que lhe dê uma resposta definitiva e lhe tire magicamente da sua incerteza identificatória, agora tão intensificada pelo estado de fragilização crescente das referências ideológicas, pela falta de sentido. Este cidadão pede garantias, luta pelo encontro de uma referência estável que lhe devolva a consistência perdida. “O objeto deve dar conta da minha demanda” é seu enunciado. Se isto não acontece algo está errado. Impera então um exercício de cidadania infantilizado, onde se repete a alternância de escolhas de governantes com discursos eleitoreiros mágicos e decepções definitivas ante os primeiros sinais da impossibilidade de realização das promessas, nova escolha, nova desilusão etc. A mídia enfatiza e glorifica um discurso científico objetivante e certeiro que reduza definitivamente este incômodo sujeito a suas reações físico-químicas. Até as paixões, produção mais elevada da condição humana, pretende reduzir aos fenômenos fisiológicos celulares. Não penso aqui em uma intenção nefasta da ciência, nem da mídia, não é também a ganância da indústria química, se bem ela se beneficia muitíssimo com este estado de coisas. O que tento aqui lhes levar a observar é, especificamente, esta demanda objetalizante que predomina na população, à qual estes exemplos que mencionei respondem. É curioso observar na clínica o paciente que ante o fenômeno da somatização procura nas diferentes especialidades até Clinicando encontrar “alívio” no seu diagnóstico definido e comprovado da sua doença “corporal”, materialização calmante e mortífera que compensa sua profunda angústia ante seus conflitos e sua incerteza identificatória. Matar o desequilíbrio, matar o conflito, matar o desejo é matar o sujeito. A robotização e banalização do comportamento humano é mortífera. O homem está condenado a desejar a partir deste exílio definitivo da ordem dos objetos que o constitui. A animalização do existir humano só pode ter conseqüências desestruturantes e destrutivas para o sujeito e para sua cultura. CONSEQÜÊNCIAS E SUGESTÕES Aprendemos na experiência clínica que a sustentação, muitas vezes a construção de um cenário psíquico que propicie uma dinâmica conflitual cuja economia se mantenha no universo das representações, é condição primeira para a diminuição da vertente somática e suas conseqüências mortíferas. De certa forma muitos destes tratamentos consistem em ajudar o paciente a aprender a sofrer, produzir uma vivência que lhe capacite a “agüentar” os conflitos do mundo interno. Predomina na cultura uma idealização dos modelos onde o sofrimento é desvalorizado e patologizado. A angústia é estruturante e necessária. A insensibilidade à dor tem efeitos nefastos tanto para a ordem biológica quanto para a ordem erógena. Sem a presença da dor qualquer pequena ferida poderia nos matar. 51 Esta prática aos poucos transita para além dos nossos consultórios. Vamos propondo uma série de intervenções em diferentes setores da comunidade. A presença de um analista com preparo metodológico e uma escuta sensível a manifestações além do seu divã produz demanda analítica na população. A demanda, que reconhecemos como necessária a qualquer projeto de escuta, não é previa à presença do analista; ao contrário, é o analista que a produz. Os dispositivos técnicos que construímos variam em função da população em questão e das instituições através das quais as intervenções se organizam. Estes dispositivos se organizam sob a premissa de subjetivação. Quero, com isto, definir um objetivo muito específico: contrapor-se às forças des-subjetivantes que predominam na dinâmica inconsciente dos sujeitos implicados numa situação. O foco da intervenção está na manutenção – às vezes criação – de um espaço possibilitador de conflito na dimensão subjetiva. A ênfase desta tarefa não está na resolução dos conflitos, está em garantir sua presença. O objetivo não é resolver o problema, o objetivo é protegê-lo, permitir sua existência. Parece esquisito. Poderiam dizer que a gente intervém numa situação para criar problemas. Bom, devo dizer que isto é verdade. Sustentar e produzir o espaço do conflito psíquico é produzir corpo erógeno; criar representações que enriqueçam as possibilidades internas do sujeito, que lhe permitam lidar com conflitos, possibilitando assim que ele prio- Pulsional Revista de Psicanálise 52 rize a via representacional, diminuindo assim o ato como único recurso no seu equilíbrio psicossomático. Quero terminar mencionando uma aplicação prática destas propostas teóricas. Constatamos que a maneira de lidar com ansiedades e angústias da equipe de UTI, no cuidado cotidiano de pacientes internados em unidade de terapia intensiva, produziam efeitos significativos na evolução clínica dos pacientes. A criação de grupos de discussão (grupos operativos) com a equipe permite observar uma série de práticas de efeito des-subjetivantes. Ex.: Uma tendência à sedação excessiva revela uma idéia do “bom paciente” como o paciente calmo. O paciente que não reclama, não se queixa, aceita os procedimentos sem questionar, não cho- O número de agosto da Pulsional Revista de Psicanálise está imperdível. Terá como tema O lugar do pai ra. Este bom paciente corre sérios riscos des-subjetivantes e mortíferos. O paciente “incômodo”, aquele que vivência as angústias que sua circunstância de doença e internação mobilizam, tem justamente na vivência dos conflitos melhor prognóstico do que o paciente calmo que entrega seu corpo (e seu mundo pulsional) totalmente nas mãos do outro. Propiciar um contexto onde isto se nomeia capacita a equipe a lidar com suas próprias angústias e fantasmas mobilizados potencializando um contato erógeno e subjetivante com os pacientes. A inclusão dos corpos erógenos em todas estas relações (incluímos aqui as famílias “incômodas”) produz uma sensível melhora nestes pacientes e seu destino clínico. A redação da Pulsional Revista de Psicanálise recebe até o dia 15 de cada mês, os eventos a serem divulgados no mês subseqüente. O cumprimento deste prazo é imprescindível para sua publicação.