A Flecha Perdida

Transcrição

A Flecha Perdida
A Flecha
Perdida
por
Pedro Pereira
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I
Anna baixou-se e examinou os ramos partidos no solo da floresta. Num dos
arbustos havia um pequeno tufo de pêlo acastanhado. O rasto era recente. Levantou a
mão e fez sinal a Nadieh.
Sorrateiramente, a irmã mais velha aproximou-se.
– Então?
– Está próximo – respondeu Anna enquanto desviava os cabelos loiros do rosto.
– Pelas marcas é um macho adulto.
– Fazes ideia de que direcção tomou?
Anna estudou as redondezas em busca de mais pistas. Uns ramos um pouco
mais à frente deram-lhe a informação de que precisava.
– Esta.
Nadieh esticou a cabeça para ver o rasto que a irmã encontrara.
– A sério, piolho, um dia tens de me ensinar a ler pistas tão bem como tu.
– Também o conseguias fazer se tivesses prestado mais atenção às lições do
pai.
– Que engraçadinha… – comentou Nadieh com um sorriso amarelo.
– Vamos, ele não está longe.
Avançaram pelo estreito trilho aberto por entre a vegetação da floresta. Anna
seguia à frente, agachada por entre os arbustos, movendo-se silenciosamente. Atrás
de si, a irmã mais velha seguia-a como uma sombra ao mesmo tempo que tentava
prender os longos cabelos com um elástico.
Um pouco mais à frente, Anna estancou. Nadieh preparou-se para questionar a
irmã, mas esta fez-lhe sinal com a mão para que permanecesse em silêncio. De
seguida, apontou para o chão, a poucos passos do local onde se encontravam. Havia
dejectos do animal.
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Estavam perto do lago, era possível ouvir as águas calmas embaterem nas
margens.
Anna levou a mão às costas e pegou no arco e numa flecha. Fez sinal a Nadieh
com a cabeça para que a seguisse.
Aproximaram-se da orla da floresta até conseguirem ver as águas translúcidas
do lago. Mantiveram-se escondidas pela vegetação.
Anna escrutinou o local vagarosamente. Nas mãos segurava o arco e a flecha,
pronta a disparar a qualquer momento. Um abanão no ombro fê-la interromper a
busca. Atrás de si, Nadieh apontava para a sua direita.
Lá estava ele. A beber água do lago, um grande e bonito cervo. Tratava-se de
um macho adulto e saudável.
Anna apontou o arco e preparou a flecha. O animal continuava a beber,
completamente inconsciente do perigo que o rodeava. A jovem não hesitou, respirou
fundo e largou a flecha.
As águas do lago tingiram-se de vermelho.
II
As duas irmãs avançaram pelas ruas desertas de Drunen, transportando o
resultado da caçada nas mochilas. O sol estava quase a pôr-se e não seria seguro
ficar no exterior por muito mais tempo.
Caminharam até à velha casa abandonada ao fundo da rua. Junto ao que
restava da habitação, estava a carcaça de um velho automóvel carbonizado. O
matagal crescia em redor deste, começando a cobrir o capô do veículo.
Nadieh aproximou-se da parede pintada de negro pela fuligem. Desviou os
arbustos que cresciam entre a casa e o que restava do automóvel, colocando a
descoberto a porta do alçapão para a cave. Bateu quatro vezes na porta de metal.
A escotilha abriu-se e revelou dois olhos azuis, fechando-se de imediato.
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Anna e Nadieh aguardaram enquanto o pai lhes abria a porta. Com um sorriso no
rosto, Thijs Geerlings recebeu as filhas de braços abertos.
– Estava a ficar preocupado. O dia está a acabar e vocês não voltavam.
– Acho que a Nadieh conseguiu afugentar tudo o que era caça num raio de
quilómetros. A bicharada deve sentir a presença dela…
– És mesmo parva!
– Estou só a brincar – respondeu Anna. – Mas hoje valeu a pena a espera.
Temos aqui uma surpresa para ti.
A jovem tirou a mochila das costas e abriu-a, revelando o seu conteúdo.
– Cervo? – questionou o pai.
– Um macho adulto – confirmou Anna. – Não conseguimos trazer tudo, era
demasiado grande. Deixámos o resto para os lobos e para as raposas.
– Trazemos mais do que suficiente para a semana e ainda deve sobrar para
trocar com os Spronk por farinha ou pão.
– Óptimo! Isso são óptimas notícias. Agora entrem, quero fechar a porta antes
que o Sol se ponha – declarou Thijs, fazendo sinal às filhas para que descessem.
Já no interior da cave que servia de casa à família Geerlings, Nadieh juntou-se à
mãe na cozinha, ajudando-a a preparar o jantar, enquanto Anna e o pai arrumavam o
equipamento de caça. Apesar de viverem na cave de uma antiga moradia, Thijs
conseguira ampliar a mesma ao longo dos anos com ajuda da mulher e das filhas. O
facto de haver poucos demónios na zona facilitara o trabalho, permitindo à família
expandir a casa e conseguir algum conforto. Travava-se de um luxo quando
comparado ao que muitas famílias passavam.
Reunidos sob a luz das velas, a família sentava-se em largas almofadas,
enquanto comiam o jantar.
– Amanhã vou com a Nadieh apanhar algumas bagas e frutos à floresta. Tenho
uma ideia que vai ficar óptima com o cervo que as tuas filhas apanharam – comentou
Laura. – Achas que consegues trocar alguma daquela carne por farinha e ovos? E
leite, já agora…
– A farinha e os ovos não devem ser problema, quanto ao leite...
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– Houve algum problema? – perguntou Anna.
– Falei com o Erik Meer esta tarde. O gado dele foi atacado ontem à noite por
demónios. Não sei se terá o suficiente para dispensar, mas eu tento falar com ele.
– Já é a segunda vez este mês – comentou Nadieh.
– Parece que…
Ouviu-se um estrondo e as paredes da cave abanaram, seguindo-se o som de
gritos vindos do exterior.
Thijs levantou-se e apanhou a katana que estava encostada à parede.
– Fiquem aqui – ordenou enquanto corria para a porta da cave e espreitava pela
escotilha.
– Pai, o que se passa? – questionou Nadieh.
– Demónios…
Outra explosão e a cave voltou a tremer.
– Os cristais… Fiquem aqui. Aconteça o que acontecer, não abram a porta.
Sem esperar pela resposta da mulher e das filhas, Thijs saiu da segurança da
cave para o caos da batalha que se travava no exterior.
– Pai, não! – chamou Nadieh.
Aguardaram junto à porta por um sinal. As explosões e os gritos sucediam-se,
fazendo com que os minutos de espera parecessem horas.
Anna andava de um lado para o outro da cave, tentando libertar o stress, mas a
preocupação não a deixava. Era o seu pai que estava lá fora. Outra sucessão de gritos
fê-la tomar a decisão. Sem dar tempo para que a mãe ou a irmã a impedissem, pegou
no arco e nas flechas e correu para o exterior.
– Anna! Onde é que pensas que vais?
– Anna, volta! – ouviu a mãe chamar.
– Vou buscar o pai – declarou, mesmo antes de fechar a porta da cave.
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III
Vários fogos iluminavam as ruínas da pequena cidade, conferindo um tom
alaranjado aos edifícios.
Ainda com a mãe e com a irmã a chamarem por si do interior da cave, Anna
correu na direcção dos gritos, rumo ao centro da cidade. À medida que avançava, o
fumo dos incêndios tornava-se cada vez mais espesso. Tossiu enquanto procurava
abrir caminho por entre a vegetação que tomara conta das estradas.
A pequena fortaleza construída pelos habitantes na praça da cidade estava sob
ataque. Vários demónios alados, que faziam lembrar uma mistura bizarra entre um
réptil e um morcego, lançavam-se sobre os humanos em voos de rapina. No solo, os
homens da cidade tentavam fazer frente às criaturas com espadas, bastões, pás e
outras armas improvisadas. Porém, não eram guerreiros, apenas gente normal que
tentava sobreviver naquele mundo cruel e proteger o seu tesouro mais precioso.
Anna preparou o arco e as flechas e avançou. Conforme corria para a fortaleza
atirou sobre um demónio que voou na sua direcção. Atingiu-o entre os olhos com a
flecha. A criatura caiu sobre a carcaça de um velho automóvel, mas foi rapidamente
substituída por outra. A jovem voltou a disparar, atingido o segundo demónio na
membrana que formava a asa.
Alcançou a parede da fortaleza com quase metade das flechas com que tinha
iniciado a corrida. Abatera quatro demónios e ferira outros seis. Contudo, os seus
esforços pareciam não ter resultados práticos naquela luta desigual.
Seguiu em direcção ao portão. O chão estava coberto de cadáveres humanos,
muitos deles desfigurados pelas garras dos demónios. De vez em quando, surgiam
membros ou outras partes anatómicas arrancadas do corpo do proprietário. Anna
sentia um medo terrível de encontrar o pai entre os combatentes caídos.
A pesada porta blindada que formava o portão da fortaleza fora arrancada da
parede. As marcas das garras dos demónios cobriam o metal da porta. O tesouro que
a população tanto se esforçava por proteger estava agora à mercê das criaturas.
Avançou pelo corredor de betão até à câmara central. As paredes estavam
cobertas de sangue e o chão de corpos. As portas de segurança entre as várias
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secções tinham sido arrancadas ou simplesmente destruídas. Parecia que nada
conseguia fazer frente à força selvagem daquele exército.
Estacou ao chegar à câmara central. Ao fundo, o pai e mais alguns homens
faziam frente a um grupo de demónios, tentando proteger o pequeno baú de metal e
os preciosos cristais. Preparou o arco e abateu uma das criaturas com um tiro certeiro
no crânio. Disparou uma segunda flecha, mas esta parou em pleno ar, como que por
magia.
A figura de uma mulher saiu de entre o grupo de demónios e avançou na sua
direcção. Tinha a mão levantada em direcção à flecha e um olhar que não enganou
Anna. Sobre o corpo esguio, trazia uma peça única de cabedal negro que lhe
assentava na perfeição, contrastando com a tonalidade clara da pele. Os longos e
lisos cabelos roxos caíam-lhe pelas costas até à cintura, mas eram os olhos negros,
sem íris, que a denunciam como sendo aquilo que ela realmente era: um demónio.
A mulher caminhou calmamente na sua direcção. Consciente do perigo em que
se encontrava, Anna pegou em mais uma flecha e preparou-se para disparar. Colocou
a extremidade da flecha na corda do arco e puxou. Foi surpreendida por um demónio
que lhe saltou em cima, atirando-a contra a parede, fazendo-a perder o disparo.
Debateu-se contra a criatura, colocando o arco entre o seu corpo e as garras da besta.
O demónio avançou, empurrando-a para trás. Tentou resistir, mas a besta era
demasiado forte. Com um puxão rápido, a criatura arrancou-lhe o arco das mãos,
fazendo-a desequilibrar-se. Atingiu-a de seguida com a longa cauda no peito, atirandoa contra a parede.
Anna bateu com a cabeça na parede de betão. O mundo ficou turvo perante os
seus olhos e foi assaltada por tonturas. Esforçou-se por se manter em pé, mas os
joelhos cederam. Caiu ao chão e tudo ficou escuro e silencioso.
IV
Anna sentia-se zonza e com o corpo dorido. Os membros pareciam-lhe
estranhamente pesados, quase como se lhe tivessem colocado um peso em cima.
Abriu os olhos e deparou-se com o rosto da irmã. As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto
e tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Tentou sentar-se, mas foi de imediato
atingida por uma tontura.
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– Piolho, tu estás bem? Estás ferida? Por favor, fala comigo…
Com algum esforço, Anna sentou-se.
– Devagar. Bateste com a cabeça.
Anna levou a mão à nuca. Ainda tinha a cabeça dorida. Sentiu o couro cabeludo
húmido e uma dor aguda. Tirou a mão. Estava ensanguentada. Tentou colocar as
ideias em ordem. Estava uma enorme confusão na sua cabeça, não se conseguia
recordar ao certo do que tinha acontecido. Olhou em redor e tentou perceber onde se
encontrava.
O corredor de betão da fortaleza encontrava-se carregado de corpos, quer de
humanos quer de demónios. Aos poucos, as memórias começaram a voltar.
– O pai… – murmurou enquanto se tentava levantar.
– Anna, tem calma.
– O pai estava a lutar com os demónios, temos de o ajudar.
– Anna, já acabou. O combate terminou.
Tentou assimilar aquela informação. Se o combate tinha terminado, então onde
estavam os pais? Porque é que estava sozinha com a irmã? Porque é que ainda
estava caída no interior da fortaleza no meio de cadáveres? Quando formulou a
resposta na sua mente não quis acreditar.
– Não…
Apoiando-se na parede, levantou-se e caminhou para a câmara. Ao seu lado,
Nadieh ajudava-a a manter o equilíbrio.
– Por favor, Anna, vamos para casa.
– Não, eu tenho de ver.
O cenário no interior da câmara central não podia ser mais desolador e macabro.
As paredes estavam cobertas de sangue, pelo chão, havia um sem número de corpos
espalhados, alguns deles desmembrados e quase irreconhecíveis.
Anna avançou por entre aquele mar de cadáveres. O cheiro era nauseabundo.
Caminhou até ao centro da câmara, onde se encontrava o suporte para o pequeno
baú de metal. Este tinha desaparecido. Procurou por entre os rostos sem vida caídos
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no chão, ainda alimentada pela esperança de estar errada. Encontrou aquilo que mais
temia, o corpo do pai, caído no chão e trespassado pela própria katana. Estava pálido,
mais pálido do que Anna se recordava. Os seus olhos estavam baços e escorria-lhe
um fio de sangue pela boca.
Nadieh abraçou a irmã e obrigou-a a desviar o olhar. Ficaram assim, abraçadas,
a chorar a morte do pai.
– A mãe?
A irmã abanou a cabeça e escondeu o rosto.
Anna perdeu a noção do tempo. Chorou até ficar sem lágrimas e lhe doer o peito.
Tudo o que amava fora-lhe retirado; sobrava-lhe apenas a irmã.
***
Sentada no chão, Anna observou o nascer do Sol. Fora uma noite longa. Com
ajuda da irmã sepultara os pais. Queria fazer o mesmo pelas restantes pessoas, mas
não lhe era possível. Os demónios tinham morto todos os habitantes da colónia, as
únicas sobreviventes eram ela e a irmã. Quando os demónios forçaram a entrada na
cave, Nadieh escapara por uma segunda saída construída pelo pai. Infelizmente, a
mãe não conseguira fugir a tempo. Escondera-se na floresta e aguardou até os
demónios partirem para procurar a irmã e o pai.
Ao ver o Sol erguer-se no horizonte, Anna tomou uma decisão. Não
descansaria até que encontrasse a mulher de cabelos roxos e vingasse a morte da
família e dos habitantes da colónia de Drunen. Talvez, com alguma sorte, conseguisse
recuperar o pequeno baú de metal e os cristais. Afinal, com toda a colónia morta, ela e
a irmã eram agora as últimas guardiãs do tesouro mais precioso da Humanidade.
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