Não t
Transcrição
Não t
Chocolate Acordou quando o sono se rendeu ao dedo de luz que furava por uma fresta da persiana mal fechada. - Vamos sair? Não tens nenhum voucher para um daqueles maravilhosos hotéis onde me queiras levar? - Não. Desta vez não pode ser. - Porquê?... Outra vez? - Sim. Prometi que o feriado era para eles… - E eu? Não posso ir contigo, ao menos? - Não vamos por ali… Dá tempo ao tempo. Havemos de estar todos juntos, mas espera que eles te aceitem melhor. Deixemos as coisas seguir com a sua naturalidade… Além disso, tu tens-me nos outros dias todos… fins de semana… Lá fora o trânsito gozava o feriado. As pessoas também. Só o sol parecia trabalhar, como sempre. - E não podes passar a noite comigo? - Posso, isso posso. - Na minha casa? - Sim, é melhor. Sou eu que tenho de me levantar cedo e, assim, tu podes ficar mais tempo na cama… - E a vizinhança e as linguarudas, não te perturbam? - É contigo que eu quero estar, que importa o resto… o que dizem ou deixam de dizer… os olhares inquisidores… as bocas atiradas de soslaio… os moralismos adesivos que ficam tão bem nos outros… - Beija-me daquele jeito… Estremunhada, lançou pelo quarto um olhar perdido, para voltar a enterrar a cabeça na almofada semidespida da fronha. Acordar sozinha, depois de uma noite ardente, era como encerrar uma história de amor com o protagonista só. - Não tens vergonha, filha, andares metida com um homem que tem idade para ser teu pai? - Ó mãe, estamos no século XXI. - O que é que o teu pai diz disso? - O que é que ele há-de dizer? Não foi viver com outra? - O que é que aquele velho tem que te prenda, diz-me! - Se tu te consideras também velha!? - Diz-me lá o que te levou a essa cegueira por ele? - Amor é fogo que arde sem ver… Ainda tentou dormir, mas acabou derrotada. Olhou para o relógio e não deixou de pensar “tão cedo” como se o feriado fosse para ser gozado num sono prolongado com a manhã a entrar pela tarde dentro. Ele nunca dormia muito. Deitasse-se tarde ou cedo, o seu relógio biológico parecia viciado num despertar rotineiro. Ele acordava com a genica de um repouso sucedido. Nela, o corpo resistia em render-se ao despertar matinal. Entretanto, ele preparava-lhe o pequeno-almoço. Ergueu-se, por fim, e encaminhou-se para a casa de banho. Lavou a cara frente ao espelho onde se contemplou, perscrutando no rosto um não sei quê de vestígios, uma nuvem esquecida dessa noite. - És jovem e bonita… muito bonita mesmo… tens um brilho no olhar como se o coração estivesse ali, na tua íris, espreitando… os teus lábios movem-se e em vez de palavras solta-se um silêncio que só quem te ama entende… e nesse teu silêncio há todo o ouro dos teus sentimentos puros. Por isso eu sei que me amas. O teu silêncio é incapaz de enganar… Encaminhou-se para a cozinha e logo entrou num dilema sobre o que havia de ser o pequenoalmoço. Acabou por não fugir aos cereais. Ligou a televisão. A banalidade que promovia destoava nesse despertar pleno de sentidos. Regressou ao silêncio. - Quando é que sais connosco e com o teu parceiro? - Um dia destes… Melhor, uma noite destas. - Aquilo é mesmo a sério? - O gajo tem massa? - Vocês… - Para mim, ou giro de morrer ou podre de rico. Porque, no primeiro caso, a beleza derrete qualquer esboço de razão e inebria o coração… No segundo, há uma razão de peso que esmaga qualquer tentativa de subversão. - Digam-me lá: o que é para vocês o amor? - Ora o amor… - Oh querida, não vi ainda nenhum pão apaixonar-se por uma qualquer feiosa ali da rua, amá-la e dedicar-lhe a sua vida. Os gajos bons gostam de gajas boas. Por isso, o amor é qualquer coisa que tem a ver com a vista ou com a razão. Eu só acredito no amor verdadeiramente cego quando vir uma feiosa, terrivelmente feiosa, mal feita e desajeitada, pobre e mal falante, prender o coração de um jeitoso. Sentou-se no sofá, de taça na mão, folheando uma revista que via pela enésima vez. Descobrem-se sempre pormenores que nunca se leram. Atirou-a depois para o chão, enquanto devolvia à cozinha a tigela vazia. Pegou de seguida no telemóvel e só então reparou que o tinha desligado. Bom dia, dizia uma mensagem. Foi como se ouvisse a sua voz, mas de uma forma distante. Enterneceu-se a responderlhe. Pensou no que dizer-lhe, mas o condicionalismo do meio levou-a a retribuir com bjs e a perguntarlhe se tudo corria bem. - E para ti o que é o amor? - Eu sei lá… Mas acredito que tem um não sei quê de visual que parece abrir um pequeno e sentido atalho para o coração. - Eras, então, incapaz de te apaixonar por um velho amigo, quer dizer, alguém que já conhecesses, que encarasses com a indiferença das amizades e dos contactos banais? Alguém que existisse para ti apenas como uma mero amigo e conhecido e que, de repente, porque ele te ama, porque se te declara, porque demonstra interesse por ti, se transforme num caso sério? - Talvez… - E amar alguém que conhecesses apenas de voz, um dos teus contactos do escritório, que tem uma voz doce e calma, que te lança galanteios e te faz a corte quando falam? Não pode essa voz de corpo desconhecido fazer palpitar o teu coração quando a ouves? - Não sei… Ia apanhando as peças de roupa espalhadas pelo chão, as almofadas caídas do sofá, um candeeiro tombado de uma mesinha. Sobre a mesa da refeição ligeira da noite anterior, a louça havia de permanecer dispersa e suja, que a vontade não as contemplava. - Filha, diz-me lá o que vês nesse homem que tem a minha idade… Com tantos rapazes novos por quem te podias apaixonar, vais-te logo interessar por um velho! - Lembras-te daquela viúva que vivia no prédio do fim da nossa rua? Lembras-te do que ela dizia? Pode uma pessoa esquecer-se do que é amar e ser amada, mas nunca se deve esquecer do que é o amor. - Bonita coisa para me atirares à cara. - Não, não era com essa intenção. Por mais estranho que te pareça o meu amor, ele é isso: amor. E sabes como ele escapa ao esforço racional do homem… pronto. E depois consola-te. Vê o caso da Sílvia que já está separada e cujo namorado me apontavas sempre como o par ideal… Os rapazes são tão infantis, tão imaturos, tão egoístas… tão eles e só eles… As tarefas da casa não a motivavam depois de uma noite tão bem passada. Ligou o computador e abriu o facebook, procurando uma mensagem que traduzisse o seu estado de espírito. Fez alguns likes, mas tudo lhe pareceu ligeiro, impessoal, incompleto. Pôs um cd de música romântica e embalou os sentimentos numa cadência brasileira. - Nunca te ofereceu nada? Um anel? Uma pulseira? - Umas flores. - Que romantismo saloio. Nunca lhe pediste nada? - Não! - Um anel, um casaco, uma coisa qualquer com requinte? - Não. Não me quero sentir comprada. - Olha vejam os princípios dela. Não me quero sentir comprada, mas se me desse uma anel com uma pedra preciosa… - Nem todas são como tu. - Nem todas são como eu, nem todas são como eu. O amor é, então, na conceção masculina, mas também feminina, uma relação particular marcada por uma concentração exacerbada de beijos, amo-te, carícias, sexo, e mais sei lá o quê de… de… - Já nem te lembras… - …de gestos amorosos e pouco mais. As notícias na net embalavam na cadência do dia. As capas dos jornais ostentavam o prolongamento da crise em que o país mergulhara. Nas revistas alguns famosos expunham a fresco os últimos episódios das suas vidas. Consultou o mail, mas também tudo se resumia a um conjunto de mensagens institucionais e sem valor. O feriado estava a tornar-se cansativo e descolorido. - Casa-te com ele. Uma mulher tem de agarrar um homem e não é por seres jovem que ele não te pode trocar por outra… Mas vê lá como é que o fazes! - Quem sabe se não anda contigo apenas para curtir a “chicha nova”… - Credo, não sejas ordinária. O Rui não é assim. - Eles nunca são assim. São todos diferentes, todos distintos dos restantes. - Se queres um conselho de amiga, pede-lhe para casar contigo para veres realmente até onde vai a seriedade da relação… - Ora, pois, logo vês se ele é diferente ou não. - Vocês não sabem o que é o amor, pois não? - Ah, sim, o amor, essa palavra tão polissémica… Queres um tema para mestrado ou até mesmo para doutoramento? Investiga a semântica diacrónica da palavra e dedica mais espaço à análise sincrónica do que é hoje, nos nossos dias, o amor. - Credo, que ela está terrível! Deambulando pelo departamento, Carla deu por um saco de papel junto à porta da entrada. Era em papel craft e tinha, a apertar-lhe a boca, entre as asas, uma ráfia crua de onde pendia uma etiqueta. “Licores Segredos da Tradição”, dizia, e por detrás, em letra que adivinhou do Rui, “O amor liga com chocolate”. Tentou perceber porque estava ali o embrulho, esquecido, e foi capaz de lembrar-se da noite anterior. A ansiedade da espera, o abrir a porta, não esperar sequer que entre para se lhe atirar ao pescoço e matar em beijos vorazes o sofrimento vão de quem o desejava tanto. Sim, na entrega ao amado lembra-se de ele trazer não sei o quê nas mãos que entretanto pousara para a segurar nos braços e se combinarem assim, os dois. Depois, ali terá ficado esquecido o embrulho, que ela mal o apanhou não o largou por um instante e não desprezava qualquer detalhe da sua atenção para com ele. Abriu-o e retirou uma garrafa esbelta e alta. Uma etiqueta identificava-a como licor de chocolate. Estranhou-lhe a limpidez dourada, em contraste com a pastosa consistência dos licores de chocolate que conhecia. “Obrigado pelo licor. Quero saboreá-lo contigo.” Daí a pouco uma mensagem justificava “no calor do teu acolhimento, o licor ficou esquecido. Prova-o” “Não, prefiro abri-lo contigo” “Eu gostava que o provasses sozinha” “Porquê?” “Queria que ele te levasse o meu amor nos momentos em que estás sem mim” “Que bom… Vou prová-lo depois do almoço” que haveria de tomar logo de seguida. Ia já avançada a tarde e estas não seriam horas habituais de dar ao corpo o repasto que estabelece a fronteira entre a manhã e a tarde, não se fosse dar-se o caso de este ser, como se disse, um dia feriado. Aqueceu uma sopa que guardava no frigorífico e aprontou uma salada rápida com os restos da carne do dia anterior. Acabou por ligar a televisão como companhia e prendeu-se a um filme que passava num dos canais. - Sinto, por vezes, que a minha relação com o Rui é um Romeu e Julieta dos nossos dias. Esbarra constantemente na oposição dos familiares, é acompanhada pela incompreensão dos amigos, é reprovada pelo senso comum que constantemente nos julga quando nos vê juntos… E, contudo, quando se pede às pessoas que deem uma definição do amor, todas dizem que o amor é cego, que o coração não escolhe quem amar, que o amor é que nos faz felizes. É assim que eu amo e só não percebo porque me condenam… - Nem tu sabes, nem ninguém sabe. “Já provaste?” Esquecera-se da bebida, com a atenção presa ao filme que passava. Sem saber que copo usar, pegou num cálice do porto e, depois de custosamente abrir a garrafa, despejou nele uma pequena porção. Doce, efusivamente suave, ela que detestava o álcool mas que, pouco a pouco, se vinha iniciando nos segredos dos elixires. Sim, caía bem e finda a experiência proporcionada pelo escasso líquido vertido no cálice, o palato sentia-se despedir-se de um sabor achocolatado que lhe deixava saudade. Verteu mais um pouco de licor e começou por admirar o seu maduro tom dourado. Depois, o aroma onde o álcool mal sobressaía. Desse aroma que demorava pela boca soltava-se uma sensação a chocolate de leite. Regalavam-se as papilas, enquanto acorria suavemente ao cérebro uma sensação agradável, reconfortante, feliz. “Sim, o licor és tu!” Manuel Filipe, 2012