O Brasil Entra em Cena

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O Brasil Entra em Cena
o brasil entra em cena
parte 6
O Brasil Entra em Cena
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parte 6 – o brasil entra em cena
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o brasil entra em cena
O Brasil entra em cena
Eddy Stols
M
arcus van Vaernewyck, cronista de Gand, comparava as lutas entre Tupin Imbas oft Tupin Ikins com a briga violenta
e o maltrato dos presos entre católicos e protestantes nas ruas daquela cidade, em 22 de dezembro de 1566, no primeiro ano dos
distúrbios religiosos em Flandres. Esta conexão, à primeira vista
insólita, se devia, sem dúvida, à leitura de um dos dois livros seminais da primeira brasiliana, André Thevet, Les Singularitez de
la France Antarctique, e Hans Staden, Warachtige Historie ende
beschrijvinge eens lants in America ghelegen, wiens inwoonders wilt,
naeckt, seer godloos, ende wreede menschen eters zijn...
Tinham saído do prelo em Antuérpia, em 1558, ainda no apogeu desta florescente metrópole do comércio internacional. Em
edições baratas, língua vernácula, capítulos bem articulados e dezenas de gravuras, descreviam os modos de viver e o meio ambiente natural dos índios brasileiros e obtiveram maior êxito que
as obras mais doutas em latim. Sobretudo o livro de leitura fácil
do artilheiro alemão Staden, que, na volta de sua catividade entre
os canibais, passou por Antuérpia e lá contou suas aventuras na
casa dos Esquetes. Ganhou muitas reedições, uma primeira em
Antuérpia em 1563.
Com estes livros o Brasil irrompeu com um perfil mais nítido e
uma temática própria na representação da América. Antes, apenas
descoberto, o Brasil já havia entrado no imaginário de Flandres,
mas de maneira confusa e mesclada com outras terras do ultramar.
Em 1503 um pintor ou comerciante flamengo de Lisboa, João
Draba, ofereceu, segundo Valentim Fernandes, uma imagem de
índio e uma pele de jacaré à Capela do Santo Sangue em Bruges,
mas não se sabe se foram expostas lá como ex-votos.
Uma crônica de Bruxelas registrou, em 1506, a descoberta
de uma grande ilha, onde os homens andavam nus. Anos depois,
nas tabernas de Antuérpia, Thomas Morus ouviu do marinheiro
português Raphael Hythlodaeus histórias do ultramar que lhe inspiraram o cenário de sua De Utopia, 1515. Se índios mexicanos
talvez se apresentaram em espetáculos nos Países Baixos, inspirando as máscaras do palácio do príncipe-bispo de Liège, nada consta
de seus congêneres brasileiros. Nas famosas festas de Binche, em
1549, os nobres dançaram ainda vestidos de peles como os selva-
Gravura de Jacobus Sluperus no Livro dos Costumes, de Abraham de Bruyne,
impresso em Antuérpia por G. van Parijs por volta de 1570.
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gens dos balés medievais. Na segunda metade do século XVI, junto com os livros, o mapa do Brasil ganhou presença e volume na
cartografia de Mercator e Ortelius. Ao mesmo tempo, traziam-se
do Brasil, em abundância, saguis, macacos, papagaios e araras como animais de companhia, ao ponto de vendê-los na feira, como
registrou uma pintura de Joachim Beuckelaer em 1566.
Mercadorias brasileiras, do pau-brasil ao açúcar, agora mais
abundante e barato, entraram no consumo corrente, enquanto
se experimentavam em cachimbos as primeiras pitadas do tabaco
brasileiro. Formavam-se gabinetes de curiosidades como o Museo
instructissimo de Jacobo Plateau, em Tournai, com tatus e colibris,
ou a coleção do Duque de Arenberg, especializada em armas e
plumaria dos índios. Artistas como Hans Bol, Philippe Galle e Jan
van der Straeten imaginavam suas pescarias, enquanto o naturalista Carolus Clusius inseriu as novidades brasileiras numa síntese
enciclopédica, Exoticorum libri decem, 1605.
Se um aparente nivelamento entre uma sociedade cristã e
uma selvagem surpreende – como na supracitada referência de
Van Vaernewyck aos flamengos como índios –, este aflorou mais
explicitamente nas comparações feitas por Jean de Léry e Michel Montaigne sobre o canibalismo dos índios brasileiros e as
barbaridades entre cristãos.
Algum relativismo cultural, subjacente e mais pragmático, se
veiculou pela mesma época em Antuérpia na exaltação do comércio internacional pacífico e do intrépido mercador viajante pelo
mundo e em contato com civilizações diferentes. Textos como os
prólogos do Landjuweel, o grande festival de teatro popular em
1561, justificavam, perante as resistências da agricultura e artesa-
nato locais, seu papel indispensável no abastecimento de matérias-primas, ao passo que os artistas plásticos inventavam e desenvolviam a temática dos Quatro Continentes na pintura, gravura
e arte efêmera. No arco do triunfo dos portugueses na entrada de
Antuérpia, do Arquiduque Ernesto, em 1594, Brasília, antes ainda
representada sob o vulto da América, acedeu, num desenho de
Maarten de Vos, ao seu próprio status em pleno, ao lado da Índia,
Etiópia e Mauritânia.
Entretanto, a guerra religiosa e civil em Flandres e o crescente antagonismo entre católicos e protestantes que, além de tudo,
repercutiram no bloqueio ou na pirataria do comércio marítimo
regular com o Brasil, fizeram abortar esta equanimidade humanista, algo respeitosa da alteridade indígena.
Com a Contrarreforma triunfante nos Países Baixos meridionais, seus poderosos, sua nobreza e sua igreja esvaziaram o desafio
cultural do primeiro Brasil e reduziram as interrogações a meros
estereótipos alegóricos. Confinaram os índios numa ciranda de
plumas, ao passo que domesticaram as araras insolentes como
emblema da fidelidade conjugal.
Referências
Vaernewyck, Marcus Van. Van die beroerlicke tijden in de Nederlanden en voornamelijk in Ghendt, 1566-1568. Ed. E. Vanderhaeghen, Gand, 1872.
Stols, Eddy. ‘De triomf van de exotica of de bredere wereld in de Nederlanden’. Eds.
Werner Thomas e Luc Duerloo, Albert &Isabella, 1598-1621, Essays. Turnhout,
1998, p. 291-301.
Stols, Eddy. ‘Alegorias fossilizadas o redivivas? Las cuatro partes del mundo en las artes
visuales de los Países Bajos (siglos XVI-XVIII)’. Eds. Scalett O’Phelan Godoy e Carmen Salazar-Soler, Passeurs, mediadores culturales y agentes de la primera globalización en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Lima, 2005, p. 853-885.
Brasileiros barrocos
J o h a n Ve r b e r c k m o e s
E
m 5 de dezembro de 1634, no palácio Nassau, em Bruxelas,
alguns membros da alta nobreza abordaram o palco fantasiados de Topinanbour no Balet des princes indiens, apresentado em
homenagem ao novo governador-geral dos Países Baixos meridionais o cardeal-infante Ferdinando da Áustria. Infelizmente, não
se sabe como, andavam ataviados no meio de um elenco exótico
com escitas e mouros. Como o balé dos príncipes índios foi exibido quando Gastão de Orléans e Marie de Medici se encontravam
ainda em Bruxelas, devia ter um toque francês.
Nos meios da corte francesa e de seu balé, os tupinambás se
tornaram populares desde o final do século XVI, dentro da facção dos povos menos civilizados. Estes Topinanbours enfeitaram-se provavelmente com fantasias de plumas, a exemplo de uma
gravura sem data impressa em Antuérpia no início do século por
Jacob de Gheyn.
Numa mascarada carnavalesca aparece, entre um selvagem
com cabeça de coruja e uma velha mulher luxuosamente vesti-
da, uma índia trajada com uma tanga de plumas, uma couraça
com peitos, um manto de plumas, um chapéu de plumas e uma
ligadura em cada joelho. Além da força selvagem da amazona,
chama a atenção sobretudo seu adorno com plumas, doravante
característico do índio para todo o mundo.
Esse rico vestuário contrasta com as gravuras sobre os tupis
ou tupinambás, que nos supracitados livros populares de Thevet
e Staden eram sempre representados nus, com apenas enfeites
de plumas no corpo como única roupa. Semelhantes imagens de
índios nus e armados de bordunas, flechas e arcos foram reproduzidas também no livro do huguenote Jean de Léry, Histoire d’un
voyage fait en la terre du Brésil, publicado em 1578 e de larga difusão europeia com tradução para o neerlandês em 1597. Mesmo proibido pela censura, o livro entrou também em bibliotecas
privadas dos Países Baixos meridionais e foi até mencionado no
início do século XVII como livro escolar.
Num livro flamengo de trajes, impresso por volta de 1570 em
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o brasil entra em cena
Dançarinos brasileiros nas ruas de cidades flamengas durante cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores.
Antuérpia, tanto por Guilliam van Parijs como por Joannes Bellerus, o gravador Jacobus Sluperus apresenta o homem e a mulher brasileiros nus e qualificados como monstruosos. Somente o
homem leva um pequeno penacho na cabeça e um enduape ou
coroa de plumas no traseiro.
Num outro livro antuerpiense de trajes de 1581, de Abraham
de Bruyn, se vê um casal parecido de índios brasileiros. As variantes mais horríveis de índios emplumados surgem nas gravuras dos
livros sobre a América, de Théodore de Bry, de Liège. Esta foi a
primeira coleção pan-europeia de livros de viagem sobre outros
continentes e as suas gravuras mostravam com muita minúcia o
canibalismo, a idolatria e a crueldade dos índios. As gravuras de
Bry mostraram ainda por vários séculos os autóctones brasileiros
como canibais desnudos.
Mesmo assim, a outra representação dos índios brasileiros
muito bem vestidos se adequava melhor às festas em terras da
Contrarreforma católica. Em 1613 o senhor de Rasilly levou
alguns índios do Maranhão a Paris, onde foram batizados. Na
ocasião foram convidados a dançar. O desenhista Joachim Duviert (1580-1648) e o gravador Pierre Firens (1580-1638), ambos
antuerpienses trabalhando em Paris, registraram, num retrato ao
natural, os diferentes passos de sua dança. Pela roupa parecem
quase europeus: meias longas, calças curtas bufantes, camisa de
manga longa e gola alta. De índios, têm somente sua coifa curta
em quatro deles, e longa, com plumas cobrindo as costas, nos
outros dois. Primam nesta imagem o prazer de dançar e a humanidade desses índios.
Dançarinos brasileiros eram vistos também nas ruas das cidades flamengas durante os cortejos e desfiles, que atraíam milhares de espectadores. Na entrada triunfal do Arquiduque Ernesto
da Áustria em Antuérpia, em 14 de junho de 1594, um cortejo
de brasileiros emplumados chamou a atenção com suas danças
exuberantes. O livro de homenagem os menciona como Brazi-
lianen e a gravura mostra uns 14 andando na frente e ao lado de
etíopes, sobre camelos e precedendo seu rei em cadeirinha. Os
brasileiros somente trajam tangas e dançam gesticulando com
seus braços, tocando música ou levantando espelhinhos para o
rei etíope. Estes brasileiros, gingando alegremente, se tornaram,
por volta de 1600, em pleno período barroco, um supletivo constante nas festividades.
Em Bruxelas, em 31 de maio de 1615, participaram num carro
alegórico do Ommegang – um desfile tradicional nas principais cidades flamengas –, em homenagem à Arquiduquesa Isabela, com
o maior requinte indumentário. A pintura por Denijs van Alsloot
(antes de 1593-1626) mostra quatro índios porta-estandartes ataviados com uma túnica curta de plumas de diferentes cores e de uma
deslumbrante manta de plumas vermelhas, que desce da coifa e
cobre suas costas e pernas por inteiro. Seus estandartes com o monograma IHS, da ordem jesuítica, parecem simbolizar a expansão
da religião cristã entre os índios americanos. Na parte traseira do
carro senta um soberano branco com cetro, que se deixa abanar
por um menino africano com um para-sol de plumas vermelhaças. No meio, uma grande gaiola prende um jovem índio pagão
debaixo de um bando de papagaios e araras. Estes reaparecem em
abundância na decoração do pano, que cobre a carroçaria.
Aos jesuítas dos Países Baixos meridionais, que tinham frequentes relações com o Brasil, visto como terra de missão e de
índios a vestir, convinha uma imagem intermediária, nem escandalosamente nu, nem adornada demais. Ainda mais quando, festejando em 1640 o centenário da ordem, os jovens da retórica
em Bruges representaram, no seu teatro escolar, temas brasileiros
como a figura de José de Anchieta.
Na sua grande igreja de Francisco Xavério, construída em Malines nos anos de 1670, o arquiteto jesuíta integrou, com exuberância, índios no programa iconográfico do interior. O banco de
comunhão é decorado com emblemas de índios com cocares.
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O gigante índio no
cortejo Ros Beiaard de
Dendermonde.
Mostra ainda um missionário, que carrega nas costas um menino
índio. Como um dos representantes dos quatro continentes, um
índio, de forte bigode e braços musculosos com pulseiras emplumadas, sustenta o púlpito. Numa série de pinturas sobre a vida
de Francisco Xavério se encontram também índios com cocares
reconhecíveis entre a multidão extasiada pelo santo.
Esta propaganda em Malines para estimular as missões ao Brasil também é tributária do belo livro que o jesuíta antuerpiense
Cornelius Hazart tinha publicado, a Kerckelycke Historie van de
gheheele wereldt (A história eclesiástica do mundo inteiro). No
primeiro dos quatro volumes, publicado em 1668, um capítulo sobre o Brasil trata de José de Anchieta e de três martírios de alguns
jesuítas. Três gravuras ilustram o texto. Em duas se representam
índios perigosos com tangas de plumas, flechas e arco, e na terceira, Anchieta no meio de animais selvagens. Hazart tinha predicado
também sobre estes temas na igreja jesuítica de Antuérpia e não é
excluído que, por essa ocasião, se mostraram imagens desses índios
selvagens, por exemplo, em grandes telas de pano.
Desta maneira o Brasil era visualmente presente, até o final
do século XVII, como uma terra onde as fronteiras da civilização
podiam ainda avançar. Como tal, se confundia frequentemente
com a África. Assim o pintor Jan van Kessel justapõe no seu painel
América, da série Os quatro continentes (1666), índias mais claras
com homens negros de cocares índios. Filhos deste fascínio confuso são os dois gigantes tapuyas com cocares que se carregam ainda
nos cortejos de Dendermonde, os dançarinos índios representando a Ásia na toalha de damasco de Courtrai ou, ainda, o menino
índio com arco e flechas no lustre rococó dos Quatro continentes
de Frans Allaert (1770), do Museu de Arte Decorativa de Gand.
Johan Verberckmoes é professor de História Cultural da Época Moderna na Universidade Católica de Lovaina. Escreveu um doutorado
sobre o Riso, o Humor e os Livros de piadas nos Países Baixos espanhóis nos séculos XVI e XVII. Suas pesquisas tratam do humor e das
emoções na cultura da época moderna, dos intercâmbios culturais dos
Países Baixos meridionais com os impérios português e espanhol, das
correspondências privadas e da vida cotidiana das famílias nobres nos
Países Baixos meridionais.
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teatro, dança, circo
A da n ça na Bé l g i ca a pa r t i r d o s é c u l o X X
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
N
o intuito de traçar os intercâmbios ocorridos no domínio
da arte da dança entre o Brasil e a Bélgica, abordaremos
o assunto a partir deste período, no qual se observa grande fluxo de migração de artistas brasileiros, tanto nas áreas da dança
clássica, moderna e contemporânea como na área das danças
populares brasileiras.
Percorreremos as diferentes etapas da história da dança na Bélgica até os dias de hoje, através dos percursos artísticos individuais
e de alguns depoimentos de profissionais ligados a esta arte, que
participaram ou ainda participam ativamente da cena da dança
nos dois países. Inevitavelmente, evocaremos o papel importante
que teve a Bélgica especialmente na evolução da dança contemporânea a partir dos anos de 1980 e as eventuais repercussões na
dança brasileira.
foi convidado a se instalar em Bruxelas pelo diretor do Théâtre
Royal de la Monnaie, Maurice Huisman, e fundou o então Ballet
du XXe siècle, dando início a um período glorioso para a dança
belga. Logo no começo da formação deste balé já se encontrava
ao lado de Maurice Béjart uma brasileira, a grande bailarina Laura
Proença, que interpretou inúmeros balés ao lado do próprio Béjart e de bailarinos que marcaram a história da dança, como Jorge Don, Suzanne Farrell, Tania Bari, Paolo Bortoluzzi e Rosella
Hightower entre outros.
Outra figura importante da dança mundial que também interpretou as obras de Béjart é a brasileira Márcia Haydée, que foi
uma das grandes bailarinas atrizes de sua geração, aclamada como
a “Maria Callas da dança”.
Cristina Dias é formada em dança no Rio de Janeiro e em Nova York,
vive na Europa desde 1986. Foi assistente coreográfica de Frédéric Flamand durante 20 anos no centro coreográfico da comunidade francesa
Charleroi-Danses e no Ballet National de Marseille. Hoje em dia se
dedica à direção de filmes de dança.
A era Maurice Béjart
O intercâmbio entre os dois países na área da dança foi marcado pelo ano de 1960, quando o coreógrafo francês Maurice Béjart
Depoimento de Rachel da Costa Cunha
A
ssim como os pássaros deixando-se reger pelos ventos que os
conduzem longe das histórias às vezes contraditórias dos homens, os bailarinos se deixam levar pelos voos que determinarão
uma certa evolução que nos escapa; caminhos de sofrimentos, mas
que inspiram energias novas.
Assim vivi no Brasil esse mergulho numa arte extraordinária;
assim configurei quando, chegando à Bélgica, as impressões que
tento exprimir nesta pequena descrição comparativa com um
voo rasante, mergulhando uma segunda vez numa época diluí-
da na inovação perpetuada por Maurice Béjart, revolucionário
da dança moderna. Assim como os pássaros entre céu e terra, os
bailarinos integram esta disciplina, esta humildade, esta busca
final incontrolável num êxtase que ultrapassa o implante em tal
ou tal hemisfério.
Rachel da Costa Cunha é Pedagoga de dança, licenciada em Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina. Atualmente é diretora
do Centre de Ballet Mimésis, em Wavre, Bélgica.
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A Escola Mudra
Cristina Dias
B
éjart criou em 1970 a escola internacional Mudra, escola
superior pioneira na Europa, onde foram formados grandes
coreógrafos e bailarinos, tais como Maguy Marin, Ohad Naharin, Anne Teresa De Keersmaeker, Michèle Anne de Mey, Pierre
Droulers, Michèle Noiret e Nicole Mossoux.
Obviamente deveremos citar alguns dos muitos brasileiros que
fizeram parte desta aventura e que voltaram para o Brasil, como a
bailarina e atriz Juliana Carneiro; o primeiro bailarino do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, Francisco Timbó; a coreógrafa Célia
Gouvêa; o bailarino Linhares Junior que, após uma imensa carreira
na Bélgica e Holanda, voltou para o seu Ceará natal e continua a incentivar este intercâmbio artístico, colaborando com seu irmão David Linhares (diretor da Bienal de Dança do Ceará, festival no qual
a participação de companhias belgas é intensa). Outra figura que
se destaca é o coreógrafo e bailarino Claudio Bernardo, diretor da
Cia As Palavras, que completará 20 anos de existência na Bélgica.
Depoimento de Claudio Bernardo
E
m 1981, quando deixei Fortaleza para continuar meus estudos
de dança em São Paulo, já levava na mala o livro Um instante
na vida do outro, do coreógrafo francês radicado na Bélgica Maurice Béjart, e me dizia secretamente que a Bélgica seria meu Ceará
na Europa. Outros fatos e coincidências relevantes esclareceram
mais tarde este destino. Durante os anos vividos entre São Paulo
e Rio de Janeiro, trabalhando com o Ballet Stagium e Victor Navarro, pude encontrar com dois brilhantes intérpretes da dança no
Brasil, Robson Rosa e Francisco Timbó, ambos cearenses, que me
aconselharam a seguir seus passos e ir estudar na escola internacional Mudra, fundada por Béjart em Bruxelas.
Assim, em 1986 cheguei ao coração da Bélgica e, logo no
ano seguinte, minha primeira coreografia feita com os alunos da
escola, com apresentações na África e na Europa, me consagrou
coreógrafo e Béjart me levou para a Suíça, onde recebi o prêmio
“Philipe Maurice” pela minha segunda criação no concurso ali
realizado. Meu retorno a Bruxelas marca uma ruptura de estilo
importante na minha carreira artística, com a visão de trabalhos
dos novos coreógrafos belgas, tais como Anne Teresa De Keersmaeker, Jan Fabre e Nicole Mossoux, como também o trabalho
com Frédéric Flamand. Seu olhar inovador entre dança e novas
tecnologias foi precioso para minha formação.
Desde 1991, dedico-me inteiramente à formação do meu repertório como coreógrafo. Nesse mesmo ano tornei-me artista associado do teatro Atelier Sant’Anne, sob a direção de Serge Rangoni, o qual, além de termos uma sólida cumplicidade profissional,
veio a tornar-se meu companheiro. Em 1994, a adoção de nosso
filho, Benjamin, marcou um passo decisivo para uma construção
familiar neste país.
Fundando minha companhia As Palavras em 1995, meu trabalho se consolidou junto à comunidade francesa da Bélgica e, dois
anos depois, com a residência artística em Mons, veio um número
importante de criações premiadas e de sucesso internacional. As
O bailarino
Claudio
Bernardo,
que fundou a
Companhia
As Palavras em
1995.
colaborações com artistas belgas e de diferentes países alimentaram esse processo. Minha chegada à Bélgica, com 21 anos de
idade, foi decisiva para a minha formação profissional, para minha
família e minhas amizades. Penso que a distância das minhas raí­
zes foi fundamental para a minha formação como coreógrafo e
artista; isso me permitiu analisar minha cultura ao mesmo tempo
em que encontrei outra, buscando novos espaços de descobertas
e reflexões sobre meu enquadramento no mundo.
Os cearenses são considerados despretensiosos, humoristas e
trabalhadores, adoram desbravar fronteiras e estão sempre em êxodo pelo mundo. Na Bélgica, mesmo distante da minha geografia e
do meu clima, encontrei um povo parecido com o meu, generoso,
com grande senso de humor, chegando a desarmar o outro rindo
de si mesmo. Uma gente que concilia diferenças na tolerância e
no respeito, contornando os conflitos com constância dentro da
formação das suas comunidades e do seu acolhedor posicionamento como sede da comissão europeia. O cidadão belga que agora
sou, o cearense que continuo a ser e esse trajeto que continuo a
traçar, constituem uma grande parte do que define a minha obra
e a minha posição em relação ao humano. Estas duas culturas me
formaram e sou-lhes infinitamente grato.
200
teatro, dança, circo
A e vol ução da da n ça c o n t e mp o r â n e a na B élgi ca
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
E
m 1991, a dança contemporânea belga viveu um momento
decisivo. Este grande movimento artístico, que se manifestava
desde os anos 80 com o aparecimento da chamada vague flamande
obteve importante apoio político. Podemos dizer que assistimos a
uma verdadeira explosão de produções coreográficas de qualidade
inovadora e intensa, que sacudiram os códigos preestabelecidos,
com a formação de importantes companhias de dança representadas até hoje no contexto internacional. Esta riqueza de produções,
inevitavelmente, atraiu para este pequeno país um fluxo enorme
de artistas. A circulação de bailarinos e coreógrafos vindos dos
quatro cantos do mundo, inclusive do Brasil, no território era e
continua sendo evidente.
Como exemplo do interesse dos artistas belgas pelos artistas
brasileiros não podemos deixar de mencionar o coreógrafo Frédéric
Flamand que, desde quando dirigia sua Cia. Plan K, fundada em
1973 em Bruxelas, já colaborava com alguns artistas brasileiros, tais
como Elisabete Santos, o maravilhoso bailarino Ricardo de Carvalho (que nos deixou precocemente) e os bailarinos Linhares Junior
e Claudio Bernardo (já citados) que, após terminarem a escola
Mudra, fizeram parte da criação do espetáculo “La Chute d’Icare”.
Estas colaborações continuaram mais tarde, quando Frédéric
Flamand fundou o primeiro centro coreográfico da comunidade
francesa, Charleroi-Danses, com os bailarinos Gustavo Miranda,
Marcelo de Sá Martins, Anderson Santana – que também dançou no Royal Ballet de Flandres e hoje dirige a escola Brussels
International Ballet – e Milton Paulo, que chegou à Bélgica por
intermédio de Claudio Bernardo.
Outros artistas brasileiros, que participaram intensamente da
evolução desta arte no país, voltaram para o Brasil, como o coreógrafo e professor Airton Tenorio; outros continuam atualmente colaborando com o desenvolvimento da dança belga, como Juliana
das Neves, assistente e intérprete de Alain Platel; Ricardo Ambrosio,
que dança com Wim Vandekeybus; Carlos Alberto Paniz Garbin,
que cursou PARTS e é bailarino de Rosas há alguns anos, tendo participado da criação de The Song, En Atenden, Cesena e da remontagem de Drumming; e Flávia Ribeiro Wanderley, que criou várias
coreografias com bailarinos profissionais, mas também com pessoas
que não praticam a dança, incentivando-as a descobrir esta arte.
O espetáculo “La
Chute d’Icare”,
que contou com
os bailarinos
brasileiros
Linhares Junior e
Claudio Bernardo
em sua criação.
Cena do
espetáculo
“Cesena”, que
contou com a
participação de
Carlos Alberto
Paniz Garbin em
sua criação.
Ricardo Ambrosio,
que dança com
Wim Vandekeybus.
201
parte 6 – o brasil entra em cena
Depoimento de Milton Paulo
C
omecei a dançar em 1994 na cidade de Fortaleza, tendo uma
formação eclética. Fazia parte da primeira turma do Colégio
de Dança do Ceará, um projeto piloto para a dança nessa cidade,
quando resolvi participar da audição da companhia As Palavras,
de Claudio Bernardo. Fui aceito e trazido para a Bélgica. Fiz parte dessa companhia de 2000 a 2005 e, neste meio tempo, escolhi
Bruxelas como cidade adotiva. A cena belga se apresentava como
uma grande potência, as propostas estéticas me pareciam bem
interessantes: a proximidade das fronteiras europeias, o fluxo de
informação e o contato com as diferentes abordagens de dança
me pareciam vitais.
O bailarino Milton
Paulo, nomeado
“artista conselheiro”
em 2011 em matéria
de dança no projeto
“Danse à l’école”
para trabalhar
juntamente com o
Centre Dramatique de
Wallonie por l’Enfance
et la Jeunesse.
Milton Paulo é formado no Método das Cadeias Musculares e Articulares G.D.S. Colaborou com Claudio Bernardo (BR/BE), Fréderic
Flamand (BE), Kyung-a Ryu (KOR), Bud Blumenthal (USA), Ari
Numminen (FIN), Kristian Smeds (FIN), Elizabeth Czerczuk (POL)
e Marie Martinez (FR). Como coreógrafo, criou vários espetáculos
com a bailarina Raffaella Pollastrini. Em 2011 foi nomeado “artista
conselheiro” em matéria de dança no projeto “Danse à l’école” para
trabalhar juntamente com o CDWEJ (Centre Dramatique de Wallonie por l’Enfance et la Jeunesse).
Pa rts
Cristian Duarte
“E
m 1995 Anne Theresa de Keesmaeker fundou a escola internacional PARTS (Performing Arts, Research and Training Studios), escola que continua até hoje a contribuir com a
formação de grandes nomes da dança, como Sidi Larbi Sharkaui,
Akram Kram e brasileiros como Cristian Duarte, baseado hoje em
São Paulo, e a coreógrafa Maria Clara Villa Lobos, que continua
em Bruxelas” (Cristina Dias).
Penso que o que aprendi, no período em que estava estudando em PARTS, foi entender que podemos fazer muito com muito
pouco. Pensar nas propostas e rigorosamente elaborar a sua prática no estúdio, com empenho e disciplina. Aprendi também a me
desafiar, tanto como bailarino quanto como coreógrafo, e não
considerar as coisas como garantidas. O ambiente da escola me
incentivou a expandir minhas possibilidades técnicas e conceituais, não só através das informações que eram oferecidas aos alunos
durante o período escolar, mas também através da intensidade das
informações que experimentávamos na cidade de Bruxelas, pela
sua oferta em quantidade e diversidade de produções em dança,
teatro, artes visuais, exposições e música.
O bailarino
Cristian
Duarte, que
integrou
a escola
internacional
PARTS –
Performing
Arts, Research
and Training
Studios.
Cristian Duarte é reconhecido pelos principais prêmios de pesquisa
em dança no Brasil: APCA 1998/2003/2008/2011; Programa de Fomento à Dança para a Cidade de São Paulo 2008/2010/2011/2012;
Prêmio Funarte Klauss Vianna 2007/2011; Festival Cultura Inglesa
2011; Rumos Itaú Cultural 2012, entre outros. Coordena o projeto de
residência artística LOTE#, subsidiado pelo “Programa de Fomento
à Dança para a cidade de São Paulo”.
202
teatro, dança, circo
Depoimento de Maria Clara Villa Lobos
M
inha conexão com a Bélgica começou antes do meu nascimento, através da minha família. Meu pai, diplomata brasileiro, serviu em Bruxelas nos anos de 1960 e foi assim que meu
irmão, Dado Villa Lobos, músico, nasceu em Bruxelas.
Na época, meus pais haviam conhecido Laura Proença, uma
das solistas do Ballet du XX Siècle. Tornaram-se amigos e assistiram
a vários balés de Béjart, na ópera La Monnaie.
Em 1995, vim estudar em Bruxelas para cursar a escola PARTS.
Um dos motivos desta escolha foi a influência que as companhias
belgas, como Rosas e Última Vez, que viajavam pelo mundo com
suas criações, tiveram na minha formação como artista. Estar em
contato direto com essas companhias e com esses criadores foi
muito intimidante no princípio, pois não era fácil, sendo uma jovem bailarina com aspirações a coreografar, estar rodeada permanentemente por grandes nomes da dança contemporânea. Além
das muitas companhias e artistas de fama internacional na Bélgica,
Bruxelas ocupava um lugar central na Europa, muitas companhias
estrangeiras se apresentavam na cidade.
Isso tudo criou um contexto muito fértil para a descoberta de
novas formas e linguagens cênicas. Acho que todas essas influências se concretizaram na minha peça “XL, because size does matter”, criada em 2000. Nela, tentei falar da abundância de propostas
devido à comercialização da dança como um produto de consumo e também, de forma irônica e crítica, da angústia que essa
hegemonia dos grandes nomes representa para um jovem artista.
Eu tinha a impressão, na época, de que não era mais possível
criar um passo de dança sem que houvesse alguma referência conectada a ele. Foi a partir destas questões, e de outras mais, que
criei o espetáculo que lançou minha carreira como coreógrafa na
Bélgica. Acho bem provável que se não tivesse vivido em Bruxelas, nesse contexto tão específico da dança contemporânea, meu
trabalho não teria tomado esse caminho. Em todo caso fica claro
que o ponto de partida do meu trabalho como coreógrafa esteve
totalmente conectado ao contexto no qual ele foi criado, contexto de extrema liberdade no âmbito da criação, mas também de
grande exigência de nível artístico.
Tive, então, a possibilidade, graças ao apoio do governo belga,
de mostrar meu trabalho em vários festivais no Brasil, tais como o
Panorama de dança no Rio de Janeiro, a Bienal de Dança de Fortaleza, o festival Dança Brasil no Centro Cultural Banco do Brasil e
no Serviço Social do Comércio (Sesc), em São Paulo.
Maria Clara Villa Lobos, que fundou em 2000 a companhia “XL Productions”,
baseada em Bruxelas.
A bailarina Maria Clara Villa Lobos, em “M, Une pièce moyenne”.
Maria Clara Villa Lobos é atualmente artista em residência no teatro “Les Tanneurs”, em Bruxelas. Seu último trabalho, o espetáculo
infantil “Têtes à Têtes”, foi apresentado com êxito em três cidades brasileiras em novembro de 2012. A partir de 2000, ano da criação de sua
companhia “XL Productions”, baseada em Bruxelas, criou uma série
de espetáculos que foram apresentados por quase toda a Europa, além
de Coreia do Sul, Canadá, Estados Unidos e Brasil.
203
teatro, dança, circo
O pa p e l d os p r o du t o r e s , o s i n t e r câ mb io s
d e com pa n h i a s d e dan ça e o s f e s t i vai s
Te x t o s o r g a n i z a d o s p o r C r i s t i n a D i a s
Espetáculos brasileiros na Bélgica
Rodrigo Albea
Q
ual o impacto da dança brasileira nas plateias, imprensa e
instituições belgas? Traçar as relações entre os dois países no
campo da coreografia passa necessariamente por este âmbito. Portanto, qualquer abordagem exclusivamente estética seria inválida
sem uma visão econômica. A dança cênica, cujas origens no Ocidente podemos identificar com a criação da técnica clássica e do
ballet na França de Luís XIV, construiu sua identidade ao longo
dos séculos como uma arte sem fronteiras. No entanto, é óbvio que
o processo mundial de globalização das últimas décadas acentuou
a circulação de espetáculos entre continentes.
Na Europa, desde os anos 80 o Festival de Avignon, na França, contribuiu para esta abertura de horizontes e para o interesse
por outras estéticas mundiais, porém raramente brasileiras. A distância e a instabilidade econômica são duas hipóteses críveis para
justificar esse desinteresse, sobretudo quando comparado à música, produto cultural de escala industrial e comercial. A exceção à
regra seriam os trabalhos de cunho mais político e social, durante
o período da ditadura militar, quando, por exemplo, Maria Maria
(1976) do Grupo Corpo foi vista e bem recebida em várias capitais
europeias. Mas em Bruxelas, não... e isto por vários fatores que influenciaram desde então a relação dos teatros belgas com os artistas
estrangeiros: nos anos 70, o federalismo belga transferiu a política
cultural do Estado central para as comunidades linguísticas do
país; a dança na Bélgica foi dominada até o final dos anos 80 por
Maurice Béjart, com pouca abertura a outras escrituras cênicas;
com a verdadeira explosão criativa provocada pelos alunos de Béjart na escola Mudra, a paisagem começou a mudar, e os poucos
festivais estavam mais atentos ao movimento local e europeu.
A Bélgica tornou-se nessa época um dos principais países ex-
portadores de novas audácias coreográficas e Bruxelas, capital europeia da dança. Último elemento contextual, e importante por
vezes até hoje, é o fato de que a confecção das temporadas nos
teatros e festivais europeus exige um planejamento de produção
que vai de oito meses a dois anos em média: um sistema com o
qual podem dialogar somente artistas ou instituições com uma
rea­lidade organizacional e financeira raras no Brasil. Ou seja, salvo exceções é compreensível que tanto o norte flamengo quanto
o sul valão, ou na capital Bruxelas, não convidaram grupos brasileiros aos seus palcos.
O grande marco para a mudança de paradigmas nesse sistema
foi a programação da Bienal de Lyon de 1996, em homenagem ao
Brasil. Dois anos antes, o Grupo Corpo se apresentava em Lyon e
em Bruxelas, com grande êxito. A partir da Bienal, observou-se um
dinamismo até então desconhecido da cena brasileira. Ao mesmo
tempo em que as singularidades coreográficas se multiplicavam,
intercâmbios foram organizados, as trocas de informação tornaram-se menos intermitentes, políticas setoriais e de exportação
começaram a germinar.
É impossível elaborar uma lista de espetáculos brasileiros apresentados na Bélgica. Alguns marcaram o público e os profissionais.
Lia Rodrigues, por exemplo, gravou na memória de Liège sua passagem pelo festival da cidade com “Aquilo do que somos feitos”, em
2003, mais tarde apresentado em Bruxelas, numa capela mítica
para o meio da dança da cidade. A coreógrafa estabeleceu uma
boa relação com o país, voltando várias vezes, sobretudo durante
o Kunsten Festival, verdadeiro termômetro anual das tendências
mundiais. Durante esse festival, vivi um dos momentos mais eletrizantes com a recepção de uma obra. O meio da dança de Bruxelas
204
teatro, dança, circo
é bastante característico e Bruno Beltrão conseguiu surpreender
a todos e criar uma verdadeira explosão na plateia com seu H2
(2005). Havia ali uma síntese dos conceitos mais em voga na dança e, ao mesmo tempo, uma fronteira nova para a qual apontava,
longe de todo e qualquer exotismo dos quadris brasileiros.
O apogeu recente dessa nova relação, mais de igual para igual
– inclusive entre os festivais, com o interesse crescente suscitado
pelo Panorama, no Rio –, foi toda a programação durante a temporada Europalia (outono-inverno 2011-2012). Marcelo Evelin, Lia
Rodrigues, Membros, Quasar, Dani Lima, Marta Soares... apresentaram suas singularidades fortes, sobretudo durante a bienal de
Charleroi-Danses e num programa por mim elaborado no Théâtre
de la Place de Liège.
Nesse teatro, sob a direção de Serge Rangoni e com o apoio
de uma equipe de produção extremamente competente, brasileira e belga, conseguimos a verdadeira proeza de mostrar três
apresentações das “Bacantes”, de José Celso Martinez Corrêa,
e seu Uzina Uzona de mais de 50 pessoas. Um espetáculo teatral, operístico, carnavalesco, coreográfico. Total. As referências
à antropofagia cultural brasileira e à imensa influência de José
Celso no meio artístico brasileiro justificam ele aqui ser citado.
O evento encerrou as festividades do Europalia e marcou esse
novo modo de relação, de interesse e de produção da cultura
brasileira na Bélgica.
Rodrigo Albea é jornalista, produtor e curador de dança.
Danças populares brasileiras
Cristina Dias
A
Bélgica transformou-se ao longo dos anos em um centro incontestável da dança contemporânea na Europa. Como podemos notar, essa dinâmica de migração de bailarinos e coreógrafos brasileiros continua extremamente importante, fato explicado
pelo incentivo existente ao desenvolvimento da dança contemporânea e, como veremos mais adiante, pela receptividade e pelo
interesse pelas danças populares brasileiras.
Nesta área observamos um grande fluxo migratório de artistas
que vieram do Brasil em grupos já formados e que, pouco a pouco,
se dispersaram pelo país formando novos grupos.
O grupo Brasil Tropical, que chegou à Bélgica em 1973, e tinha 40 integrantes.
Brasil Tropical
No ano de 1973, chegou à Europa a companhia Brasil Tropical, formada por Edvaldo Carneiro e Silva, Camisa Roxa, Grão
Mestre da Abada capoeira, na intenção de trazer para o público
europeu a arte da capoeira, como também apresentar a enorme
paleta de danças populares brasileiras com seus diferentes ritmos,
como o samba, o maracatu, as danças dos orixás.
A primeira formação dessa companhia tinha 40 membros, entre músicos, cantores e bailarinos. A base principal da companhia
na Europa ficava na Bélgica, por seu ponto estratégico e também
pela imensa receptividade que teve por parte dos belgas.
A partir de então e até meados dos anos de 1990, essa companhia viajou pelo mundo e se renovou ao longo do tempo com
outros membros, artistas originários principalmente da cidade de
Salvador, Bahia. O próprio Edvaldo Carneiro não tem noção do
número exato de brasileiros que trouxe para a Europa durante esse
período, mas nos confirma que foram muitos.
Inúmeros destes artistas deixaram o Brasil Tropical, se instalando principalmente na Bélgica, como o bailarino e professor Ruy
Basílio – que agora dirige seu próprio grupo de danças brasileiras
Edivaldo Carneiro e Silva e o coreógrafo Domingos Campos.
205
parte 6 – o brasil entra em cena
O bailarino e professor Cleber Santos, que ensina o afrojazz, participou do
espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart (à esq.), de passagem por
Bruxelas, o apresentou no Forest National.
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, foi eleita em 2010 rainha
do CarnaBruxelas.
Oya Brasil –, e o bailarino e professor Cleber Santos – que ensina
o afrojazz –, e teve a grande oportunidade de participar do espetáculo “Bolero de Ravel” em 2000, quando Béjart, de passagem por
Bruxelas, o apresentou no Forest National.
A baiana Patrícia Argolo, conhecida como Bombom, também
começou a ensinar dança após ter viajado pelo mundo com o Bra-
sil Tropical; em 2010 foi eleita rainha do CarnaBruxelas e continua seus estudos superiores de Educação, com especialidade no
acompanhamento psicoeducativo, com o objetivo de utilizar a
dança e o esporte como terapia para pessoas com deficiência motora ou cognitiva.
Outras histórias como esta nos descreve Arlene Rocha a seguir.
Grupos e companhias de espetáculos
Arlene Rocha
E
m 1994, a companhia de teatro Marombar desembarcou em
Bruxelas, após ter estado um ano em cartaz em São Paulo,
com o espetáculo “Farsa para Guignol”, de Lorca, para participar
do Festival du Rire em Rochefort. A trupe era composta pelos artistas brasileiros Vanderlan Marques, Emilia Rocha, Simone Lima, Emiliano Benevides, Paulinho da Cuíca, Flavio de Sousa e
pelo belga Reynald Halloy. Era dirigida por Alexandre Amaral e
Arlene Rocha.
Para a maioria dos componentes da trupe Marombar, o ano
de 1994 marcou o início de uma nova fase: entre teatro, música e
dança, os artistas se instalaram em Bruxelas e desenvolveram cada
um o seu projeto artístico, marcando assim um intercâmbio entre
a Bélgica e a cultura popular brasileira.
ana Angélica e diversos outros ex-integrantes do Balé Brasil Tropical de Salvador. Também integraram Matalumbo o professor
de gafieira Anderson Bairros e sua companheira Aocione Ferreira; o bailarino e pesquisador musical gaúcho Mano Amaro e a
jovem dançarina Bruna Fernandes, que desenvolveram sua arte
na própria Bélgica.
A companhia Matalumbo existiu até o ano de 2007, criou vários espetáculos e trabalhou em colaboração com diferentes grupos de percussão, como a Batucada Terra Brasil e o grupo Batuqueria, ambos dirigidos por Paulinho da Cuíca.
O grupo Maracatu Mix!
Após uma viagem de um ano a Recife, Pernambuco, Arlene
Rocha e seu marido, o antropólogo belga Arnaud Halloy, trouxeram na bagagem o gosto e o amor pela cultura de Pernambuco e,
em especial, pelo maracatu de baque virado, seu ritmo, sua dança, sua história...
De volta a Bruxelas, em 2004 nasceu Maracatu Mix! (MMix!),
projeto formado por músicos de diferentes experiências percussi-
Companhia Matalumbo
Em 1995, em Bruxelas, Arlene Rocha criou a companhia
de dança popular brasileira Matalumbo, da qual fizeram parte diversos dançarinos, como Elionara Pessoa e Augusta Braga
(Balé Folclórico da Bahia), Livia Carvalho, Nêga Bombom, Jo-
206
teatro, dança, circo
Maracatu Mix! (MMix!), fundado em 2004 em Bruxelas e formado por músicos de diferentes experiências percussivas e bailarinos com experiência na dança afro-brasileira.
vas e bailarinos com vasta experiência na dança afro-brasileira, em
particular na dança sagrada dos Orixás.
No seu desfile, Maracatu Mix! traz um ambiente musical e
coreográfico particular, marcado pelo som grave das alfaias, pela
potência do ritmo do maracatu e por um visual inspirado na cultura tradicional pernambucana, redesenhado na dança por Arlene
Rocha e na percussão por Arnaud Halloy.
Hoje o projeto Maracatu Mix! se compõe de duas formações:
Maracatu Mix! France e Maracatu Mix! Bruxelas. Ambos apresentam o mesmo repertório musical e coreográfico.
jetos europeus e brasileiros. Atualmente, desenvolve três projetos
culturais: Maracatu Mix!, companhia de dança Alma Brasil (criada em 2009, em Bruxelas, e dirigida por Arlene Rocha e Bruna
Fernandes) e projeto Pedro Moura.
Companhia Alma Brasil
Companhia de dança brasileira criada em 2009, em Bruxelas, é dirigida por Arlene Rocha e Bruna Fernandes. Guarda o
mesmo objetivo artístico da companhia Matalumbo: valorizar a
diversidade e as raízes da cultura brasileira através da dança e da
música popular.
ASBL Alma Brasil
Maracatu Mix! é um projeto cultural produzido e divulgado
pela associação sem fins lucrativos Alma Brasil, instalada nas Ardenas belgas e criada em 2011. Tem como objetivo valorizar a
cultura brasileira na Europa e promover o intercâmbio entre pro-
Arlene Rocha é Coreógrafa, nascida em Goiânia, formada em Artes
Cênicas pela Universidade do Rio de Janeiro (UNI-Rio), residente
na Bélgica.
Depoimento de Mano Amaro
“U
m dos componentes da companhia de dança popular brasileira Matalumbo, Mano Amaro nos conta um pouco da
sua história de migração” (Cristina Dias)
Nasci no Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, a mais importante cidade no período do processo das charqueadas (carne
salgada). Lá os negros escravos trabalharam muito e enriqueceram
a cidade, era muito frio e tinham que trabalhar com o sal, o que
dava-lhes um tempo curto de vida.
Cresci em uma vila chamada Castilhos, filho de zeladora de
Mano Amaro durante evento
de dança em sua juventude
no Rio Grande do Sul.
207
parte 6 – o brasil entra em cena
religião afro-brasileira e de pai funcionário público. Ali aprendi
a ter respeito pelo próximo e conviver com as diferenças, que na
época eram grandes. Desde pequeno frequentava lugares restritos a negros, como clubes e discotecas. Assim foi minha infância,
pois em certos lugares nós, negros, não entrávamos e vice-versa.
Desde cedo convivendo com esta atmosfera, comecei a envolver-me com a dança dos guetos e com o carnaval da cidade. A partir dos seis anos desfilava em blocos infantis, escolas de samba, fui
passista, mestre-sala, ritmista: bons tempos! Na época, encontrei a
dança funk, que era muito forte; desde então não parei.
Tive contato com a dança contemporânea através de Beka Kanaan, pessoa que me ensinou a ver coisas que, no meu dia a dia,
eu não percebia, como o racismo que estava à minha volta, com
aquela carga pesada que subestimava a todos nós.
Passei a ser um cidadão da sociedade e não apenas aquele negrinho que dançava funk!
Daí para frente interessei-me mais pela nossa cultura e pela
dança; fiz parte de movimentos negros e fui o próprio movimento; viajei bastante: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador. Trabalhei
como professor educador em um projeto em Porto Alegre, com
crianças de rua. Aí conheci Môa do Catendê – baiano, grande
mestre –, encontro que me estimulou a perceber aos poucos as
diferenças da dança afro nas diversas regiões do Brasil.
Em 1996 recebi um convite para ministrar um workshop de
dança afro-brasileira na Bélgica, em Antuérpia, onde estou até
hoje, construí família... Aqui fiz muitos cursos de dança africana
com ótimos professores do Senegal, Benin, Nigéria, Togo, e meu
trabalho como pesquisador em dança afro avançou bastante.
Mantenho contato e troco informações com pessoas no Brasil, pois continuo, mesmo morando aqui, sempre atento à cultura
afro-gaúcha, pesquisando e bebendo desta fonte que é muito rica
e que o Brasil ainda não conhece.
A cultura negra propicia uma relação profunda entre o corpo
e a dança, com sentido de vida baseado na relação entre o ser hu-
Mano Amaro no espetáculo “Ori dança”, em Bruxelas, 2010.
mano e a natureza. Assim, a dança é a representação da existência de cada pessoa, se fazendo presente em todos os momentos
da vida. Em todos esses momentos dançantes se faz presente o
tambor, cujo som é utilizado de diferentes maneiras, em diversas
tonalidades e intensidades.
A dança afro no Brasil adquiriu várias formas, variando segundo as nações africanas que contribuíram para a formação do povo
negro, de acordo com o ritmo e as características dos Orixás (deuses), e segundo as recriações feitas no interior de uma sociedade
pluricultural e pluriétnica como a brasileira.
Por meio do desenvolvimento de um trabalho de conscientização através da dança, venho propondo a dança afro-brasileira a
toda a comunidade europeia.
Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou pelo carnaval do Rio de Janeiro.
O homem do carnaval do Rio
Régis Lemaire
“Como prova do grande interesse dos europeus por nossas danças
populares devemos citar o belga Alain Taillard, que se apaixonou
pelo carnaval do Rio de Janeiro”. – Cristina Dias
D
esde sua infância, o belga Alain Taillard se banhou com seus
pais no ambiente carnavalesco de algumas cidades belgas,
como na festa da Cavalgade de Herve, no Lundi des Roses, da cidade de La Calamine. Sua paixão pelo carnaval logo o levou a Nice,
Veneza, Santa Cruz de Tenerife e, sobretudo, ao Rio de Janeiro,
onde desembarcou em 1992, primeiro como simples espectador
no berço das escolas de samba.
Alain Taillard desfila no carnaval no Rio de Janeiro.
208
teatro, dança, circo
Em 2001, teve a sorte de conhecer o destaque Nabil Samir
Habib, personagem principal que desfilava no alto de um carro
alegórico: uma verdadeira estrela para os brasileiros. Este encontro permitiu que, desde o ano de 2004, Alain Taillard desfilasse
como figurante numa grande escola de samba. Em 2008, a grande surpresa! Nabil Samir Habib fez a proposta para que Alain o
substituísse, o que foi o ponto de partida de uma longa aventura,
rica em encontros e em emoções intensas.
Alain é um dos raros europeus a ter o privilégio de fazer parte
do círculo fechado dos destaques das escolas de samba do Rio,
principalmente numa das mais populares, a Mangueira. Atualmente, Alain Taillard trabalha na SNCB (Sociedade Nacional dos
Caminhos de Ferro Belga) e é reconhecido como especialista e
embaixador do carnaval do Rio na Bélgica. (Tradução e adaptação de Cristina Dias.)
Depoimento de Cristina Dias
M
e formei em dança no Rio de Janeiro, cidade onde nasci.
Depois de estudar alguns meses em Nova York, vim para a
Europa em busca de mais informações no aprendizado da dança
contemporânea. Bruxelas, em meados dos anos 1980, se encontrava em ebulição neste campo artístico.
Minha passagem pela Bélgica, prevista para ser de apenas alguns meses, já dura 26 anos. Vários encontros adiaram a minha
volta ao país natal e um dos mais importantes foi o encontro com
o coreógrafo belga Frédéric Flamand, com o qual colaborei artisticamente durante quase 20 anos. Esta aventura, composta de mais
de 15 criações cênicas, apresentadas nos quatro cantos do mundo,
me proporcionou a chance de ter um contato intenso com grandes
artistas belgas e internacionais.
O fato de trabalhar com outros criadores, além de bailarinos,
videastas, arquitetos, músicos, compositores e artistas plásticos,
com o intuito de compor um projeto artístico multidisciplinar,
integrando sistematicamente vídeos e filmes nas obras criadas, fez
aumentar cada vez mais meu interesse pela linguagem cinematográfica e me abriu novos horizontes de reflexão.
Assim, há oito anos me dedico inteiramente à direção de filmes
de dança, filmes experimentais, cenografia e vídeo, por meio dos
quais continuo a investigar o movimento, a composição, o ritmo,
a luz. Meus três últimos curtas-metragens, L’instant suspendu,
L’autre e Le rêve du roi, que penso serem os filmes mais representativos da minha linha de trabalho, abordam o tema do “Duplo”,
e formam assim uma trilogia, inspirada livremente em textos do
escritor argentino Jorge Luis Borges. Cada um deles é construído
Cena de filme de Cristina Dias.
como uma ficção dançada, na qual o personagem principal questiona a sua própria duplicidade, o que é real e o que é sonho, a
inconsistência do tempo.
Acredito que o motivo principal que me levou tão naturalmente ao encontro do suporte cinematográfico foi ter descoberto
que este último me abre novas portas e me ajuda a continuar a
desenvolver temáticas que me atraem e que tenho necessidade
de explorar.
209
teatro, dança, circo
A amizade entre o Brasil e a Bélgica no circo
Ve r ô n i c a Ta m a o k i
O
espetáculo!”, do Centro de Memória do Circo. Mas, sem dúvida,
as estrelas que mais brilharam no firmamento do circo brasileiro-belga foram Lison e Carola.
circo brasileiro foi constituído por famílias tradicionais vindas, em sua maioria, da Europa, e que aqui chegaram, a
partir do início do século XIX, como saltimbancos ou integrando
grandes companhias que percorriam o mundo. Quando essas famílias começaram a viajar, indo a lugares aonde só o circo chegava, foram incorporando artes, expressões e artistas dos lugares por
onde passavam, diluindo o caráter internacional do espetáculo
circense em criações locais.
Assim, o circo de origem europeia, que quando aqui chegou
recebeu o nome de “circo de cavalinhos”, foi se transformando,
abrasileirando-se. E entre as diversas contribuições brasileiras à linguagem internacional do circo, vale destacar o circo-teatro, gênero
de espetáculo que consiste na apresentação de números circenses
na primeira parte e de um ato teatral na segunda.
A partir do decênio de 1950, muitas famílias tradicionais se retiraram do picadeiro, interrompendo uma tradição que perdurava
por várias gerações e privando a população de vários circos itinerantes que percorriam todo o território nacional. As que resistiram
adaptaram-se aos novos tempos e, entre outras mudanças, eliminaram a segunda parte do seu espetáculo, o teatro, e passaram a
apresentar apenas o ato circense.
De lá para cá, o acontecimento mais significativo no que se
refere ao circo é sem dúvida o surgimento das escolas de circo, a
partir de 1978, que apontou novos caminhos para a arte circense
no Brasil.
No fluxo e refluxo do circo entre Brasil e Europa, precisamente entre Brasil e Bélgica, que afinal é o tema deste texto, é preciso
ressaltar que muitos dos nossos talentos têm, nos últimos tempos,
optado pela escola ESAC (Ecole Supérieure des Arts de Cirque,
Bruxelas) para sua formação.
É o caso de Maíra Benozatti Campos, uma das nossas melhores aramistas da atualidade. Por outro lado, começamos a nos
acostumar com as visitas de grupos belgas que têm nos encantado
com sua arte, como o ShakeThat! E Duo POLINDE. Assim como
temos nos acostumado com a parceria de belgas que vivem hoje
no nosso país, como Anne Loeckx que, entre outros trabalhos,
colaborou com a pesquisa e a montagem da exposição “Hoje tem
Madame Lison
Elisabeth Josephine Gallemaert Knockaert nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 20 de setembro de 1921. Filha do chefe de
cozinha do rei, desde pequena demonstrou talento musical, cantando inclusive numa banda de sua cidade. No início da década
de 50, casou-se com Nani Brasso que integrava o trio cômico “Les
Chabris” – considerado na época um dos melhores do mundo
Madame Lison em cena com palhaços.
210
teatro, dança, circo
Carola Boets tocando acordeon.
–, com quem Lison percorreu várias cidades da Europa, Ásia e
África, até chegar ao Brasil, em 1953, para integrar o elenco do
Circo Garcia.
No Brasil, La Lison se destacou como apresentadora, papel em
que foi pioneira e marcou época. Trocava de roupa a cada número,
anunciava o espetáculo em oito idiomas e tinha uma elegância
que até hoje é lembrada pelos colegas. Atuou nas maiores companhias circenses da época, com as quais viajou por todo o País e
parte da América do Sul.
Após quase 50 anos de ausência, Lison retornou à sua terra natal, onde reencontrou Carolus Leon Van Reet, seu namorado de
adolescência. Começaram a manter contato e em 1991 Carolus
fez uma visita surpresa a Lison no Brasil. No ano seguinte, casaram-se em uma cerimônia católica dentro do circo de Federico
Orfei, com quem sua neta Lissete era casada. Seis meses depois,
como num conto de fadas, casaram-se também no cívil, em um
Castelo de Antuérpia.
Daí em diante, Lison passou a viver uma nova rotina, residindo metade do ano no Brasil e a outra metade, na Bélgica. Fale-
ceu em Santo André, no dia 14 de fevereiro de 2008, ao lado de
sua filha Jeanine, suas netas Carmem e Lissete, muitos bisnetos
e tataranetos.
Dona Carola
Andréa Françoise Carola Boets nasceu em 1937, na Bélgica.
Filha de acordeonistas performáticos, Carolus Boets e Ernestine
Maria Ryckaert, que se apresentavam com o nome de Scandallis,
começou ainda menina sua carreira artística, fazendo imitações
de Maurice Chevalier e, seguindo a tradição familiar, tocando
acordeons dos mais variados tamanhos. Carola também tocava
saxofone, dançava, interpretava, adestrava animais (cobras, cabras,
elefantes, chimpanzés).
No Brasil, aonde chegou em 1953, casou-se com Antolin Garcia (1904-1987), proprietário fundador do Circo Garcia (1928-2002), na época considerado um dos maiores circos do mundo.
Indubitavelmente, dona Carola, como era chamada nos
bastidores, foi a primeira dama do circo brasileiro nas últimas
211
parte 6 – o brasil entra em cena
décadas do século XX. Seu amor incondicional pelos animais
rendeu a piada que circulava entre os empregados e artistas do
Garcia de que, na próxima encarnação, queriam nascer macacos da Carola.
Em 2002, com a morte de seu enteado, Rolando Garcia, que
sucedera o pai na direção da companhia, dívidas financeiras, ausência de terrenos adequados para circos nas grandes cidades e
leis proibindo a presença de animais no espetáculo circense fizeram com que Carola tomasse a mais difícil decisão de sua vida:
baixar de vez a lona do Garcia, após quase 75 anos de existência.
Seu desejo era construir um santuário para acolher os animais do
seu e de outros circos. Não teve tempo. Fora do picadeiro, viveu
pouco tempo, vindo a falecer em 2006, na cidade de São Paulo.
Verônica Tamaoki é jornalista, atriz e diretora circense, escreveu o
livro Circo Nerine ao lado de Roger Avanzi. É fundadora e coordenadora do Centro de Memória do Circo da cidade de São Paulo.
Carola Boets com chimpanzé.
Circo social belgo-brasileiro
Anne Loeckx
N
o dia 11 de maio de 2010, o Centro do Circo de Flandres
organizou em Antuérpia um intercâmbio entre organizações
flamengas e brasileiras que se dedicam ao circo social. A reflexão
examinava o êxito do circo como metodologia em muitos projetos
sociais. Zonas de risco, gangues, tolerância zero… Ainda que não
se comparem à “barra pesada” das favelas cariocas, cidades como
Bruxelas e Antuérpia têm bairros com muitos problemas sociais,
culturais e econômicos. Felizmente, tanto a região de Flandres
como o Brasil possuem a arma do Circo!
Alguns ateliês de circo nas cidades flamengas se estabelecem
justamente nesses bairros difíceis para organizar, em colaboração
com outros parceiros, projetos de circo com as crianças e os jovens da vizinhança. A expressão “circo social” surgiu nas comunidades carentes brasileiras, quando alguns entusiastas, poucas
décadas atrás, utilizaram o circo para oferecer mais chances às
crianças e aos jovens. Se bem que atualmente, no Brasil, acha-se
graça do termo, uma vez que, de certo modo, todos os circos são
sociais, já que interligam as pessoas. A pista é redonda, de maneira que todos os espectadores se confrontam olhos nos olhos.
Em seu livro O elogio da bobagem, Alice Viveiros de Castro relaciona o circo com o primeiro encontro entre os portugueses e
os indígenas de Pindorama:
“O Brasil começou – e não podia ser de outro modo – com uma
festa! Índios e portugueses dançando juntos, de mãos dadas, ao som
de uma gaita. E quem armou a grande roda foi um palhaço. Pois
é. Devíamos construir uma estátua, um monumento a Diogo Dias,
o cômico gracioso que viajava com Pedro Álvares Cabral e que, no
Domingo de Páscoa, no início da tarde, resolveu tomar a mão dos
índios e dançar com eles”. Pena não termos conseguido manter tal
convívio lúdico e pacífico...
No que me concerne, já trabalho há quatro anos como pedagoga em vários projetos com crianças e jovens em zonas carentes
brasileiras, tais como o projeto Crescer e Viver, no Rio de Janeiro,
o Movimento Bixigão, em São Paulo, o projeto Circo, Arte e Cidadania, em Ouro Preto. Organizações bem diferentes, mas que
acreditam no circo como meio de desenvolvimento pessoal, embora em geral recebam apoio e meios insuficientes para se manter. Penso que, nas mesmas condições, organizações belgas teriam
provavelmente desistido há muito tempo. Mas que esta luta no
dia a dia vale a pena se comprova pelo entusiasmo dos meninos
participantes desses projetos.
Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil
é a sensação de se ser apreciado, não apesar da diferença, mas
precisamente por se ser diferente. Desde sempre o circo é o lugar para os que são “diferentes”. Mas o circo tem também a ver
com liberdade. Em nenhuma parte se sente maior liberdade do
que quando o artista consegue, depois de muito suar, realizar o
salto almejado. Uma imensa liberdade, acompanhada da sensação de controle. O que falta tanto a crianças e jovens de bairros
desfavorecidos é ter o controle de uma situação em casa ou no
bairro, o que podem experimentar intensamente no circo. Mais
ainda porque, no picadeiro, os sentimentos de orgulho e liberdade são apreciados pela sociedade, que aplaude de pé. Lá onde
a sociedade determina o que pode e não pode, o circo insiste:
“Pode mais, e melhor”. O circo, por si só, não tem utilidade social,
mas oferece a qualquer um o direito ao desenvolvimento pessoal,
212
teatro, dança, circo
Uma possível explicação da popularidade do circo no Brasil é a sensação de se ser valorizado não “apesar da diferença”, mas precisamente por se ser diferente.
o direito de expressão e, sobretudo, o direito ao prazer. Esta é a
magia do circo social.
Anne Loeckx possui formação em Psicologia e em Pedagogia do Circo. Na Bélgica, em Flandres, esteve ativa em diferentes projetos de
circo com grupos sociais em situação delicada. Há quatro anos atravessou o oceano para ganhar experiência de vida no Brasil, onde trabalha como supervisora e coordenadora de projetos de circo social no
Rio de Janeiro, em São Paulo e em Ouro Preto. Links úteis: <www.
circuscentrum.be>; <http://crescereviver.org.br>; <http://circoarteeduca.wordpress.com>
Em nenhuma parte se sente maior liberdade do que quando o artista consegue,
depois de muito suar, realizar o salto almejado; uma imensa liberdade,
acompanhada da sensação de controle.
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parte 6 – o brasil entra em cena
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