Til José de Alencar

Transcrição

Til José de Alencar
Til
José de Alencar
Resumo de Obras Literárias
Til [1872]
José de Alencar [1829-1877]
1.Apresentação
Publicado inicialmente em forma de folhetim no ano de
1872, no jornal A República, o romance Til saiu em quatro
volumes no mesmo ano pela editora Garnier. O romance é
tradicionalmente classificado entre as obras “regionalistas”
ou “sertanistas” de José de Alencar, uma vez que a ação
se passa na região de Santa Bárbara d’Oeste, próximo a
Campinas (SP).
O romance tem como protagonista Berta, menina enjeitada
cujas origens familiares serão desvendadas no decorrer do
romance. Cenas folclóricas e bucólicas do interior do Brasil,
amor adolescente e aventuras espantosas, personagens
brutos e grotescos, intrigas envolvendo estupro, mortes
violentas, traição e vinganças se combinam nesta narrativa
cheia de movimento, emoção, sentimento, suspense e
surpresas. Tudo isso contado com maestria pelo nosso
mais talentoso escritor do estilo romântico.
2
2. Resumo do enredo
Primeiro Volume
I – CAPANGA
Berta e Miguel caminham lépidos pelo campo, de
manhã. Ele, que carrega uma clavina de caça, às
vezes a deixa ir à frente para admirar a companheira
com “possança d’alma”, como se quisesse “absorver
e entranhar em si o gracioso vulto” da menina.
De repente, cruzam o caminho de Jão Fera. Miguel,
travesso, finge apontar para o homem a espingarda.
O facínora oferece o peito ao moleque, desafiando:
“– Atire! [...] Fazia um bem a mim... e a outros.” Berta
indaga o porquê da amargura do homem, mas Miguel
o provoca com desprezo: “– Estás com saudade da
forca?”.
Jão Fera avança como onça sobre Miguel.
II – NA TRONQUEIRA
Berta se interpõe entre o amigo e o capanga e, com voz firme e olhar resoluto, ordena que ele vá embora.
O bugre hesita, mas a menina insiste com imponência. Jão Fera afasta-se vagarosamente. Miguel, aliviado,
desafia-o: “Ainda havemos de nos encontrar!”
Continuando a caminhada, conversam sobre a aparição. Miguel acha que Jão Fera está a tocaiar alguém.
Berta tem pena dele e diz que o tem encontrado. O rapaz não entende como a fera se submete tão docilmente
à amiga. Ela desconfia que é porque ela não lhe tem medo.
Chegam à vereda onde fica a tronqueira que barra o caminho. Berta empoleira-se nela e começa a se balançar.
O menino sente-se incomodado com as estripulias da menina, que a vê como uma fada gentil comportandose às vezes como um inquieto diabinho.
Miguel dirige-se à mata fechada, mesmo quando chamado de volta por Berta. À distância, a Inhá ouve um
agudo assobio e avista o vulto de Jão Fera.
III – ELA
Inhá seguiu o rapaz com o olhar faceiro. Sua estatura delgada e flexível e seu corpo de menina adolescente
se escondiam em trajes e trejeitos de menino caipirinha. Seus encantos mal eram disfarçados pela jaqueta e
botas grosseiras de menino que vestia. Esse contraste exprimia bem sua personalidade volúvel, que alternava
as graças de anjo florescente com as diabruras de menino petulante.
Mal dera Miguel vinte passos quando Berta o chamou aos gritos para convencê-lo a ir até a fazenda. Ele
confessa que não quer ir por não gostar de ver as brincadeiras entre a menina e Afonso. Ela quer que ele vá
3
para que Linda não fique triste, mas Miguel confessa não gostar dela. Berta se irrita porque o amigo não quer
que ela brinque com Afonso e dispara para a fazenda.
IV – MONJOLO
A fazenda das Palmas era um modelo de empreendimento agrícola erguido por Luís Galvão a partir de 1846.
A meia légua da entrada principal da fazenda, em um entroncamento, um cavaleiro embuçado atende a um
assovio que chama. Encontra-se com um negro escravo que vem trazer um recado: Faustino mandava dizer
que tudo se arranjara como o prometido. O escravo Monjolo passa informações de que o “diabo branco” iria
à vila acompanhado apenas de um capanga mofino e um pajem. O embuçado atira ao escravo um pataco
(moeda de prata) e se afasta, dirigindo-se para um desfiladeiro que desembocava em uma grota cavernosa,
conhecida do povo pelo nome de Ave Maria, seja por causa das exclamações que o horror do lugar despertava,
seja porque muitos ali haviam perecido, já que melhor lugar para uma emboscada não havia.
V – A TOCAIA
Jão Fera vigiara de longe Berta e Miguel. Fixava os olhos na menina e suas faces de fera afrouxavam-se
semelhantes à de um tigre com olhar sensual. Quando Monjolo assoviou, Inhá voltou-se e avistou de longe
o bruto escondido no mato. Ele se distanciou e penetrou na grota da Ave Maria. Pensava consigo: “Amanhã
quando souber, pensará que fui eu!...”. Por um instante, sentiu angústia e se fechou em um turbilhão de
pensamentos, mas logo voltou ao seu estado ríspido, murmurando com fanatismo: “É sina!”.
Logo ouviu o tropel de um cavalo e subiu para o alto do rochedo, de onde viu, dobrando uma volta do
caminho, o cavaleiro embuçado que a pouco falara com o escravo. Jão Fera embrenhou-se de modo a
cortar o caminho do embuçado. Mais adiante, apareceu então de chofre no caminho do cavaleiro, as pupilas
injetadas, com a mão já sacando a faca da bainha. O embuçado sofreara o cavalo, indeciso, sem saber para
onde ir, assustado, hesitante entre continuar e retroceder. Até que o cavalo empinou-se atirando o cavaleiro
sobre a escarpa da barranca, por onde rolou como um corpo inerte.
VI – O EMPENHO
O cavaleiro rolou até os pés do capanga que, então, já cravara sua faca na cabeça da urutu que fizera
empinar o cavalo, pregando-a em um tronco de jequitibá. Levantou-se o homem e tratou de acalmar o cavalo.
Então, Jão Fera indagou-lhe seu nome e por que lhe havia encomendado a morte de um homem; pois só
fazia negócio com quem já conhecesse. O cavaleiro identificou-se como Barroso, de Sorocaba; vivia há pouco
tempo em Santa Bárbara e queria a vingança por desavenças de política. O homem cuja morte encomendara
havia ameaçado prendê-lo ao tronco e surrá-lo se ele ousasse passar a tronqueira da fazenda.
Barroso exigiu, então, do capanga, que pagasse o que estava devendo: estava demorando em fazer o serviço.
Jão Fera esclareceu que recebera o adiantamento sem saber quem devia matar. Quando lhe foi revelado,
fez de tudo para reaver o dinheiro que gastara e devolvê-lo, mas não conseguira juntar os vinte patacões de
que precisava para desfazer-se do ajustado. Como Barroso não aceitava a devolução de parte do dinheiro, o
capanga prometia que naquele dia pagaria sua dívida, executando o assassinato.
Barroso queria ficar para ver a vingança, mas Jão Fera o dissuadiu; não tinha controle de seus atos quando
se enfurecia. Ficou combinado de se encontrarem mais tarde, na venda do Chico Tinguá, para acertarem
o restante do pagamento. Assim que Barroso se afastou, o capanga ouviu ao longe o estrupido de animais
atravessando uma ponte de madeira.
4
VII – O MARMANJO
No terreiro da fazenda das Palmas, um mulato vigia os animais prontos para a viagem e o caipira Mandu
chega para verificar as montarias. Em uma janela da fazenda, aparece a mucama Rosa para avisar que falta
pouco para terminar o almoço, enquanto se engraça com o mulato, até ser puxada bruscamente para dentro
da casa pelo pajem Faustino, que ralha com ela por vir se mostrar quando devia estar servindo os patrões.
Na mesa de jacarandá coberta por toalha de linho adamascado, sentavam-se cinco pessoas: D. Ermelinda,
a dona da casa, senhora de pouca beleza mas elegância e graça fidalgas; Luís Galvão, o senhor da casa
e proprietário da fazenda, homem jovial e altivo; Afonso, o filho homem mais velho; Linda, a filha mulher, e
Nhô Brás, o filho mais novo – este o único sobre quem a mãe não conseguira derramar sua influência: aos
15 anos, era feio, descomposto, de olhar aparvalhado, sem modos à mesa. Naquele momento, acabara de
derramar com o queixo, sobre a roupa limpa, a xícara de café que molhava sua broa de fubá.
Repreendido pela Rosa, o marmanjo não se fez de rogado: por baixo da mesa, enfiou-lhe o garfo nas coxas.
VIII – PRESSENTIMENTO
Ninguém pôs reparo na peraltice do menino, que logo encheu os bolsos com pedaços de pão e saiu da mesa.
D. Ermelinda trocava olhares com o marido, que logo sairia para uma viagem de 3 dias a Campinas. Ela
sofria com seus maus pressentimentos, agravados pelas notícias de esperas e tocaias pela região que eram
trazidas pelo Pereira, o administrador da fazenda. Mas o marido não era paulista à toa; quando tomava uma
decisão, era difícil arredá-lo.
Luís Galvão tenta acalmar a mulher: ninguém tinha motivos para atacá-lo. Ela comenta que Jão Fera também
fora visto atravessando partes da fazenda, mas o marido lembra que o bugre era conhecido antigo de sua
casa, afilhado de seu falecido pai e, apesar de facínora, era um homem honrado, que nunca tinha roubado
nada nem atacado alguém pelas costas. Se ainda não fora preso, é que sua fama de valentão assustava os
mais corajosos.
Linda tenta ajudar a mãe a convencer o pai a não viajar, mas ele sorri, prometendo trazer as encomendas de
vestidos e enfeites. O relógio bate oito horas, chamando para a partida.
IX – AS AMOSTRAS
Luís Galvão consultou o relógio: era hora de partir. Tal era o sinal de exaspero da mulher que ele falou em
ficar, em adiar a viagem, mas D. Ermelinda, percebendo a decepção de Linda, que sonhava com os presentes
que o pai traria, convenceu-o de que seus achaques eram coisas de mulher, apenas.
O fazendeiro partiu com o camarada Mandu e o pajem; sua mulher comentou com Afonso que era uma pena
o marido viajar com tão poucos acompanhantes, mas logo em seguida incentivou as crianças a saírem para
passear e brincar; queria ficar sozinha e descansar antes do almoço. Na verdade, não queria mostrar sua
inquietação e tristeza.
Subiu ao mirante para ver a comitiva se afastando, mas os homens pararam de repente e retrocederam
apressados. Ansiosa, ela desceu ao seu encontro. O marido apeou apressadamente e explicou-se: havia
esquecido a lista de encomendas de Linda! Penetrou na casa, seguido pela mulher, e começou a mexer em
suas coisas. Sem que a mulher percebesse, retirou do compartimento secreto da secretária um envelope e o
escondeu em um bolso – fora este o verdadeiro motivo de seu retorno.
5
Encontrou no outro bolso a lista de Linda e a mostrou a mulher, fingindo tê-la encontrado. Beijou-a rapidamente
e partiu, mas seu semblante era agora murcho e acanhado. Luís Galvão tinha um segredo que de todos
escondia. E ter de mentir para assegurá-lo era algo de que não gostava.
Daí a pouco, ele e seus companheiros de viagem atravessavam a ponte de madeira que dava para a última
tronqueira da fazenda. Ele virou-se para acenar um último adeus à mulher que o observava do mirante.
X – OS GÊMEOS
Pelo caminho, os dois irmãos trocam provocações. Linda insinua que o irmão não se aguentava de vontade
de ver Berta; Afonso chega a irritar a irmã ao falar de sua atração por Miguel. A irritação de Linda dura pouco;
o irmão sabia fazer a irmã sorrir, cobrindo-a de mimos e carinhos. Eram gêmeos, tão parecidos fisicamente
que um dia, ainda crianças, Afonso vestira roupas da irmã e fora esperar Berta, que ao vê-lo, pensando que
era Linda, cobriu-o de beijos, até que ele revelasse a personalidade. Berta riu muito, mas tornou-se mais
precavida. Agora, seria impensável uma cena como aquela: Afonso crescera e já se viam nele os traços viris
do homem que estava se tornando.
XI – NO TANQUINHO
Os irmãos apressaram o passo. Atravessaram o verde canavial, as roças de feijão em flor e milho espigados,
entraram pelo vasto cafezal onde os pretos almoçavam e descansavam até chegarem a uma colina coalhada
de palmeiras, de onde proviera o nome da fazenda. Defronte à colina, havia um trilho batido de passagem, por
onde enveredaram até atingir um pequeno e agradável gramado, cercado por plantas floridas e pela floresta.
Ali ficava o Tanquinho, bonito lago formado por um ribeirão, em cuja margem destacava-se frondosa figueira
para a qual se dirigiu logo o olhar decepcionado de Afonso: Berta e Miguel não estavam. Mas a irritação dos
irmãos logo arrefeceu: os amigos já se aproximavam.
Inhá caminhava com uma inflexão sedutora; Miguel a acompanhava sem perceber, fascinado. Enfim
encontraram-se, mas o companheiro de Berta vinha amuado pela discussão que tivera com a amiga, o que
logo foi percebido por Afonso. Berta contou aos irmãos que Miguel não queria vir, mas fora convencido. Em
meio às insinuações de Afonso e Berta sobre Linda e Miguel, ouviu-se no campo um grito bravio, seguido de
uma estanha voz, carregada de dor e sarcasmo, que lançava um clamor estridente e incompreensível: “– Til!...
Til!... Til!... Oh! Til!...”.
XII – IDÍLIOS
Os encontros entre os amigos no Tanquinho eram constantes, e os namoros que se armavam eram segredos
apenas para os pais dos irmãos. Afonso cortejava Berta explicitamente. Linda, apesar de saber a diferença
que o separava do humilde Miguel, nutria por ele amor cada vez maior. Já este não achava ser possível
este amor, e sentia pela moça apenas um respeitoso afeto, uma vez que seu coração encantava-se mesmo
nos momentos que passava a sós com Inhá, nos passeios pelos campos. Berta, por sua vez, distribuía
igualitariamente seu amor pelos amigos, sem escolher a quem premiar com seus carinhos.
D. Ermelinda ignorava os idílios dos filhos porque eles calavam-se dos encontros com Berta e Miguel no
Tanquinho. Quando saía a passear com o marido, os seus filhos procuravam afastar-se do descampado
aprazível, e os dois amigos, se percebiam a presença dos donos da fazenda, retiravam-se logo para não
serem vistos.
6
Mas em um lugar como o Tanquinho, onde a natureza parecia fazer penetrar nos corações as mais deliciosas
emoções, “himeneu eterno do vento com a floresta, do rio com a campina, do orvalho com a flor, do sol com
a sombra, do céu com a terra”, quem haveria de resistir às seduções do amor?
XIII – SUSTO
À exceção de Berta, que correra para o alto da colina, acudindo para ver quem a chamava, os meninos logos
se refizeram do espanto com o grito. Linda pôs-se a conversar com Miguel, inquiria ao moço se não desejava
estudar para formar-se. Ele responde que gostaria muito, mas faltava-lhe o dinheiro. Ela sugere que ele peça
emprestado ao seu pai, mas o amigo explica que não pode pedir emprestado o que não terá como pagar.
Enquanto isso, Afonso dirige-se ao alto da colina para pregar um susto em Berta, mas ela já voltava,
perguntado para onde ia o Sr. Galvão, que ela vira ao longe do alto da campina. Linda falou-lhe da viagem e
da preocupação sua e de sua mãe, inclusive do comentário sobre a presença de Jão Fera pelos matos. Berta
e Miguel ficaram apreensivos, mas o rapaz, para não assustar Linda, procurou acalmá-la.
Era chegada a hora de Afonso e a irmã voltarem para casa. Quando procuraram por Berta, ela já não estava.
Despediram-se de Miguel e tomaram o caminho de volta. Na campina, ressoou novamente o chamado
esganiçado por Til. Passando os manos pelos escravos, estes interromperam sua cantiga de trabalho para
saudar os filhos dos senhores.
XIV – A VESPA
Miguel não encontrava Berta, por mais que a procurasse. A menina disparara pelo mato. Sempre sentira, nos
encontros com Jão Fera, que ele tinha bondade no coração, mas naquela manhã pressentira no bugre suas
más intenções; sabia que ele estaria preparando uma emboscada ao Sr. Luís Galvão na Ave Maria. Por isso
corria, procurando um atalho que lhe permitiria chegar ao lugar antes da comitiva dos viajantes, para vigiar
sua travessia.
Mas, no desespero, desorientou-se e era fustigada pelo mato alto e pelos galhos que lhe atrasavam. Então
começou a ouvir o barulho do mato sendo amassado violentamente; alguma coisa, gente ou besta, se
aproximava, avançando com força. Forçou a corrida, mas se viu presa em uma armadilha natural de cipós.
Reunindo força e coragem, manteve-se o mais quieta e silenciosa possível, enquanto cortava com os dentes
as cordas que a seguravam. O barulho do tropel chegou até perto de onde estava, mas o barulho afastou-se
até sumir.
Livre, senhora de onde estava, dirigiu-se rapidamente à brenha, tentando localizar onde se escondia Jão
Fera. Então, ouviu o tropel da comitiva que vinha das Palmas. Desesperada, pensou em atalhar o caminho ao
fazendeiro, mas súbito avistou em um barranco a figura entocaiada do bugre. Quando este, feito tigre, retesou
o corpo para saltar em frente aos cavaleiros, sentiu que alguém lhe puxava os cabelos. Como se picado por
uma vespa, o tigre virou-se e viu Berta, que lhe dizia com cólera e desprezo: “– Malvado!...”
XV – O RELICÁRIO
O assassino reagiu, inicialmente, com ferocidade à intromissão de Berta, mas a menina conservou a coragem
e soube se impor ao coração do bugre. Depois, indagou-lhe se era verdade que matava gente. Ele assumiu
que sim, e que o fazia por dinheiro. Decepcionada, a menina diz que não queria acreditar nos que o acusavam
de ser uma besta, mas agora via que ele era um monstro: atacar por dinheiro o filho do benfeitor em cuja casa
fora criado?!
7
Jão Fera retrucou que não seria escravo de um homem que se mostrara bom com um miserável apenas por
vergonha ou para aparecer bem perante os outros. E que se poupasse Luís Galvão seria por outro motivo:
por Berta. Ela ordena, então, que ele não cometa o crime; mas o bugre retruca que empenhou sua palavra
e deve dinheiro. Berta ri, escarnecendo do fato de ele – um assassino – não querer roubar para quitar sua
dívida, o que o deixa transtornado de humilhação, mas ele não voltaria atrás na palavra empenhada. Então,
a menina coloca em sua mão um cordão de ouro com uma cruz, ordenando a ele que o vendesse para quitar
sua dívida: era o relicário que herdara de sua mãe.
Um grito horrível estrugiu do peito de Jão Fera, que se enfiou nas brenhas. No mesmo instante, despenhou
do barranco um corpo que caiu aos pés da menina estrebuchando e rangendo os dentes. Era Brás, o idiota.
Segundo Volume
I – A SURA
Na entrada do vale onde fica a freguesia de Santa Bárbara, às margens do rio Piracicaba, encontra-se um
casebre de taipa, em volta do qual cresciam algumas árvores frutíferas, um jardim rústico e uma horta antiga.
Ali perto, pastavam um cavalo, uma vaca magra e alguns bacorinhos.
Haviam se passado três dias do encontro entre Jão Fera e Berta. Era uma manhã fria de inverno brumoso,
uma forte cerração cobria o vale. Saiu de dentro do casebre Berta, com um saco de milho, e foi até uma
galinha sura, cujas pernas haviam sido comidas pelos ratos, que se locomovia com dificuldade. A menina
pegou o animal, deu-lhe de comer, limpou suas penas sujas e a colocou em um abrigo. Nos seus cuidados
para com a sura, via-se lhe desaparecer do semblante a faceirice brejeira e percebia-se o amor de uma alma
entregue à proteção dos entes miseráveis.
Cuidada a galinha, pegou Berta um trilho à margem do rio. Logo se ouviu abrir uma porta da casa. Era Miguel.
A menina escondeu-se. O rapaz, indeciso, tomou o caminho de uma vereda paralela ao rio até sumir-se em
uma capoeira. Berta então continuou em seu rumo, mas sempre atenta, parando sempre para certificar-se de
que não era seguida.
II – ZANA
Ao chegar à entrada de uma charneca, Berta bateu palmas. Apareceu então a figura de um burro magricela,
com apenas uma orelha. A outra, bem como seu olho e parte da cabeça, fora arrancada por uma foiçada,
quando o animal se metera a invadir a roça de um caipira. Fora encontrado na charneca por Berta, que se
apiedou dele, vencendo a repugnância, e tratara-lhe a ferida com fumo, mas ele ainda se recuperava dos
ferimentos. A menina ofereceu ao animal algumas espigas de milho e um punhado de farinha.
Depois, retomou seu caminho, que ia dar em um casebre já bastante arruinado. Na cozinha, ressonava
encolhida uma preta velha coberta de andrajos. Berta chamou: “– Zana!” Mas a preta mal acordou e voltou a
dormir. A menina entrou e colocou na prateleira farinha de milho e sobre a mesa feijões e torresmos envoltos
em folhas de couve. Depois, pôs-se a cantar em tom brando e suave um acalanto. A velha despertou aos
poucos, até que seus olhos se iluminaram, fixando-se em Berta. Então, acompanhou seu canto em um
linguajar bárbaro, talvez um dialeto africano. Fora com a própria velha louca, outra beneficiada pela sua
bondade, que Berta aprendera a cantiga de ninar. Pelo menos duas vezes por semana passava a menina por
ali, para trazer o sustento da velha, a quem alimentava com dificuldade. Para que a pobre mulher abrisse a
boca, era necessário que Berta lhe dissesse com meiguice: “– Zana, bebê!...”
8
III – A VISÃO
Berta sentou-se na soleira da porta da cozinha, observando uma réstia de sol que penetrava pelo telhado
decadente do cubículo. De repente, ouviu barulhos de passos no matagal e avistou um vulto. Entrou assustada
para dentro da casa, a espreitar pelos buracos se reconhecia alguém. Mas sua atenção foi desviada para
Zana: o raio de sol batera na cabeça de Zana, que se levantou e começou uma mímica já conhecida de Berta
e que a menina passou a observar com atenção para tentar descobrir-lhe o sentido.
A preta velha levantava-se; encaminhava-se para o fogão e parecia, como outrora, remexer em um antigo
fogo, já apagado, e nas panelas que só existiam em sua imaginação. Depois soltava um grito gutural de
“–Inhá!”, como se a chamassem, e corria até o quarto. Então, parava como se escutasse alguém, ia na
ponta dos pés até a janela e olhava horrorizada, tremente, para fora. Depois, desesperada, voltava, fazia
que tomava alguma coisa nos braços, saía correndo até o cubículo que era seu quarto, depunha o fardo no
chão, buscava no fogão alguma coisa que moía nas mãos e levava a esfregar no objeto de depusera. Então,
retomava o objeto, saía com ele ao terreiro, abraçando-o como se estivesse ninando uma criança e, enfim,
começava a cantarolar a antiga cantiga que Berta a custo decifrara. Depois voltava para a casa, parava
novamente na porta da alcova e entrava em um estado de estupor, seu corpo ficava hirto, ela soltava um grito
de terror e caía no chão dura como pedra.
IV – O DESCONHECIDO
Desde criança, as pessoas escondiam de Berta a história de Zana e tentavam afastá-la da louca. Mas
aos poucos, movida pela curiosidade, aproximara-se da velha solitária, até que aos quinze anos passou a
frequentar escondida a casa.
Berta sabia de alguma maneira que era uma enjeitada. Fora criada por nhá Tudinha, a mãe de Miguel.
Na casa onde vivia de favor, ela era a rainha: mãe e filha tudo faziam pela menina, que não abusava dos
cuidados, apenas fazia questão de conservar sua liberdade, o que lhe permitira cuidar da velha que vivia de
comer raízes cruas e terra.
Naquele dia, a pantomina de Zana tomara outro rumo. Ao aproximar-se da janela, seus olhos depararam com
os de Barroso. A negra estremeceu, arregalou os olhos e arregaçou os beiços, saiu correndo e, errando a
porta, bateu em cheio na parede de taipa várias vezes, até que conseguiu fugir para o terreiro, apavorada.
Também os olhos de Berta cruzaram com os de Barroso. Este a encarou com rancor, ela sentiu repugnância
e terror. Ele hesitou, encarou-a e se foi, murmurando: “– Eu hei de saber! Ah! se fosse!...”
Berta encontrou Zana caída no terreiro. Súbito, saltou do balseiro uma estranha criatura que caiu sobre
a louca e começou a agredi-la e esganá-la. Só parou quando Berta lhe gritou o nome. Então, afastou-se
agachado, como animal repreendido, e escondeu se atrás de uma parede do casebre de taipa.
Depois de acudir à velha e depô-la em uma esteira, aproximou-se encolerizada do rapaz, que esperava,
apavorado, pela repreensão irada da moça. Mas ela apenas lhe sorriu com desprezo e lhe deu as costas. Ele
então ajoelhou, juntou as mãos e soltou um rugido tentando soltar alguma palavra. Mas a menina atalhou-o
com um “– Não!”
Caiu então Brás no chão estorcendo-se em convulsões medonhas, a boca espumando, os dentes rangendo,
as faces deformadas. Berta, vencida pela compaixão, tomou-o no colo para acalmá-lo, enchendo-o de
carinhos como a uma criança.
9
V – A POUSADA
Na estrada de Campinas, meia légua antes de Santa Bárbara, ficavam dois casebres unidos por um telheiro.
Em um, funcionava uma taberna onde se vendia fumo, aguardente e rapaduras; em outro, uma pousada
improvisada. Na venda, cochilava um sujeito de bruços sobre o balcão. Era moço e robusto, mas de ar indolente,
com o semblante dos americanos boêmios. No lado oposto da habitação, enquanto o fogo cozinhava o feijão
do dia, uma rapariga de seus quinze anos sentava-se ao chão com os braços cruzados sobre os joelhos. De
vez em quando, lançava os olhos sobre a louça suja do dia anterior, media a distância até o córrego, fazia
tenção de levantar-se, mas a preguiça a pregava de novo ao chão.
Um estrupido de animal na estrada acordou o homem, que se levantou aborrecido. Chegava um viajante
de seus trinta anos, cabeça grande e guedelhuda, que logo bateu à porta provocando o manguaçado Chico
Tinguá, que resolveu se levantar para recepcionar nhô Gonçalo, que pediu uma xícara de café, pedido
rapidamente repassado a Nhanica, que enfim se mexeu para buscar água.
Gonçalo perguntou ao vendeiro pelo bugre e foi informado de que aumentavam os rumores de que ele estava
sendo cercado. Tinguá saiu e percebeu que um dos cravos de um dos cascos da mula do viajante estava
bambo. Enquanto o consertavam, no topo de uma colina do caminho, apareceu uma troça de caipiras, a pé,
espingardas ao ombro, dois cães de caça acompanhando.
VI – O BACORINHO
O rancho de caipiras talvez se dirigisse à região de Araraquara e Botucatu, onde ainda abundavam veados
e antas para caça. Aproximaram-se da venda, liderados por um tal sô Filipe, que pediu ao Tinguá rancho
para o almoço. Uma vez abancados, serviram-se de cachaça, queijo de minas, rapadura e farinha de milho
e pediram café.
Gonçalo tentou puxar conversa com os caipiras, perguntando se caçavam. Um deles afirmou que sim, mas
não buscavam veados, antas ou caititus; vinham em busca de caça brava, de desencovar um tigre. A esse
dito, os camaradas todos caíram na gargalhada, mas Gonçalo riu amarelo, e se apresentou como Suçuarana.
Os caçadores então assumiram que vinham caçar Jão Fera, para vingar um serviço que ele fizera em um tal
Aguiar, do Limoeiro, fazendeiro poderoso. O filho do assassinado fornecia dois contos para quem matasse o
Bugre. O Gonçalo achou um bom dinheiro, e foi convidado a se juntar à caça, mas recusou. Indagado sobre
o paradeiro de Jão Fera, disse que deviam perguntar ao vendeiro, que ali estava por perto, assuntando a
conversa. Mas Tinguá disse que não tinha notícia do bugre, que apenas às vezes pernoitava na pousada.
Nesse momento, um bacorinho começou a fossar nas pernas do vendeiro, que o afastou com um pontapé.
Gonçalo retomou a conversa, mas sempre de olho no Chico, que daí a pouco saiu para o terreiro, figurando
enxotar um burro que lhe arrebentava a cerca do pasto ao lado da casa, até se sumir no mato. A manobra
não escapou ao Gonçalo, que saiu ao terreiro e viu o Tinguá Gonçalo sumir no mato no rasto do bacorinho.
Rindo, Gonçalo chamou ao terreiro o Filipe.
VII – O TRATO
Gonçalo se fazia passar pelo mais feroz valentão da região, e para isso se dera o apelido de “Suçuarana”,
também de modo que valorizasse as pintas que trazia no rosto. Mas não lhe davam crédito, e pelas costas
era mesmo chamado de “Pinta”, alcunha que odiava, mas não mais que a Jão Fera, cuja fama invejava e a
quem não tinha coragem de enfrentar. Vagava pela região jactando-se da própria valentia, e rondava a venda
de Chico Tinguá porque pensava que o vendeiro era informante de Jão Fera.
10
Gonçalo se ofereceu para entregar a Filipe onde era a toca de Jão Fera, em troca de dinheiro. Combinaram de
se encontrar dali a pouco em um rancho próximo. O caipira pagou a conta e partiu com seus camaradas. No
momento em que Gonçalo se preparava para sair, apareceu Barroso, procurando por Chico Tinguá, irritado
por não encontrá-lo. Inquirido pelo Pinta, reclamou do vendeiro e de Jão Fera, com quem tratara negócio que
o bugre não cumpria.
Gonçalo Pinta desfez de Jão Fera, arrotou valentia e se ofereceu para fazer o serviço. Saíram cavalgando
juntos na mesma direção que o bando de caçadores. A toda a conversa de Pinta com Filipe e depois com
Barroso assistiu um negro que se encontrava escondido ali perto, atrás de um pedaço de tronco queimado.
VIII – NHÁ TUDINHA
Eram 8 horas da manhã e Nhá Tudinha, com seu corpo baixo e atarracado, dedicava-se com o prazer
costumeiro à faina. O trabalho era sua felicidade, e naqueles dias não parava quieta, correndo de lá para cá
a preparar bolos, biscoitos e doces a serem guardados para as próximas festas de São João ou enviados aos
amigos. E o primeiro a recebê-los era sempre o compadre Luís Galvão, padrinho de Miguel e grande amigo
de seu falecido marido Eugênio de Figueiredo, outrora rico fazendeiro, que desperdiçou a fortuna em maus
negócios e juros de bancos.
Berta chegou roubando um biscoito da mão da mãe de criação que, como sempre, riu a não mais poder com
a travessura da menina. Depois ralhou com a menina por ela ter ido visitar a Zana. Antes de sentar-se para
comer, Berta chamou Brás, que esperava por ela a curta distância da casa.
Depois de acalmar o doido, Berta tinha enveredado por um caminho tortuoso, seguida, sem ser percebida,
pelo menino que rastejava atrás dela. Nhá Tudinha sentiu asco ao ver Brás, mas por Berta tudo aturava,
e foi doce com ele, que fez tenção de ir embora. Subjugou-o Berta, que o fez sentar-se e beliscar, o mais
delicadamente que podia, imitando Berta, os biscoitos que ela lhe dera.
IX – A LIÇÃO
Berta acomodou-se em um banco para cerzir roupas rasgadas. Enquanto isso, ensinava ao Brás as orações.
Quando elogiou o menino ter conseguido terminar a Salve Rainha, abraçando-o com ternura, o semblante de
Brás transformou-se de tal meiguice que era como se fosse um rapaz normal. Depois, forçou-o a continuar as
orações, mas no momento em que devia terminá-las, invocando a proteção da Virgem a todos os conhecidos,
recusou-se: “– Virgem Puríssima, Rainha do Céu, Bem-aventurança nossa, Mãe de Jesus e dos aflitos,
intercedei... Intercedei por Til, só, só, só, só!... Til muito feliz! Til muito bonita, muito tudo!...”. A menina teve
de ameaçá-lo rudemente para que completasse a oração pedindo proteção aos tios, primos e todos os mais
que Berta queria bem. Feito isso, passou ao abecedário e aos rudimentos de sílabas e nomes que conseguia
decorar.
X – O IDIOTA
À custa de brincadeiras, mímicas, cantigas e muita repetição, Berta, aos poucos, conseguia enfiar no espírito
doente daquela expressão de lorpa as letras do alfabeto. Brás era filho de uma irmã de Luís Galvão, que
falecera três anos antes, sucumbida aos desgostos que lhe dera o marido já morto e aquele filho idiota.
Apesar de repugnância de D. Ermelinda, o tio recebeu-o e fez o possível para ajudá-lo a sair daquele estado,
enviando-o a um professor das redondezas, o Domingão, cuja didática resumia-se a enfiar os ensinamentos
na cabeça dos alunos à custa de gritos, coques, murros, safanões, reguadas e palmatória. Mas com Brás
11
nada adiantou, a única coisa do alfabeto que aprendeu na escola foi o sinal do til: bastava vê-lo que se
entregava a piruetas e trejeitos tentando imitá-lo. Os castigos constantes que recebia apenas faziam com que
ele fugisse constantemente para o mato, onde o pajem tinha de buscá-lo.
XI – O ABECÊ
Berta encontrou Brás pela primeira vez durante uma dessas fugas, quando ele tentava curar os bolos enquanto
vociferava contra o Domingão. Compadecida, tratou-o bem, ajudou-o e pôs-se a tentar ensinar ao parvo o
alfabeto, com o intuito de poupá-lo dos castigos do Domingão. Já desistia, tal era o mármore impenetrável do
cérebro do rapaz, quando teve a intuição de associar aquele símbolo, que tanta alegria e agitação causava
no imbecil, a ela mesma. Apontou para si e para o til, e imediatamente Brás entendeu. A partir daí, ela tornouse Til. Depois associou o B a Brás e, obtendo sucesso, tratou de aplicar o princípio a todo o abecedário,
unindo na cabeça embotada do pobre rapaz o desenho das letras às pessoas que o rodeavam. Ao cabo de
um mês, Brás sabia o alfabeto quase inteiro, proeza que só uma alma como a de Berta, de quem se dizia
nas redondezas que sofria influência do sobrenatural, poderia conseguir. Da mesma maneira, quando Brás
estertorava em suas crises de epilepsia, três homens não conseguiam segurá-lo, mas bastava a voz maviosa
de Berta e o toque suave de seus dedos para acalmar o louco.
XII – A COTIA
Percebendo o cansaço de Brás, Berta interrompeu a lição; o idiota ficou por ali a contemplá-la. Logo chegou
Miguel, amuado, pelo que foi caçoado pela menina. Ele, por sua vez, deixou claro que sabia de suas idas à
casa da Zana, o que a fez repreendê-lo por vigiá-la. Miguel queria agradar Berta, mas não sabia como. Ela,
por sua vez, apenas fingia estar magoada com o amigo. Enfim, ele mostrou a ela o presente que lhe trouxera:
uma cotia. Ela logo se apaixonou pelo animal, o que deixou Miguel mais animado e sorridente. Mas isso durou
somente até o momento em que ela cobrou dele que fizesse uma casinha para o bicho, porque queria dá-lo
de presente a Linda.
Nisso, Brás, que até então se encolhera rosnando para Miguel, apanhou a cotia das mãos de Til e a soltou no
campo. Miguel quis espancá-lo, mas foi repreendido por Berta, que apenas lhe atirou à cara o xingamento de
“lesma”. O caçador disse que a culpa era de Berta, que tão pouca atenção dera ao presente, tanto que queria
repassá-lo a Linda. Ela disse que faria isso porque a amiga ficaria feliz de receber algo vindo dele. Enfim,
Miguel, fazendo força, conseguiu dizer-lhe o que tanto queria que ela soubesse e percebesse: “– É tempo de
acabar com este gracejo, Inhá. Além de minha mãe, eu lhe juro, que só a você quero bem; mas você não se
importa comigo; portanto já sei o que devo fazer. Não hei de aborrecê-la mais.”
XIII – A BOLSA
Naquela manhã, Jão Fera saíra da brenha à mesma hora que Berta estivera na casa da Zana. Evitou a casa,
amedrontado com a possibilidade de encontrar a menina. No caminho para a venda do Tiguá, não percebeu
o trabalho de louco de Brás que, com uma pá, tirava o apoio a uma estiva escavada em um socavão sobre
o qual constantemente passava Jão Fera: a intenção do parvo era que um dia o caminho cedesse ao peso
do bugre e este rolasse pela ribanceira. Também, pelo caminho, cruzou com Luís Galvão, e não fosse a
lembrança intimidante de Berta, teria pagado sua dívida de morte ali mesmo.
Três dias antes, caminhara até a venda para dizer a Barroso que não realizara o prometido. Este o chamou de
tratante, o que lhe custou ser jogado ao chão pela fera, que só não lhe arrebentou os miolos por ainda dever-
12
lhe dinheiro, mas prometeu pagá-lo até o São João. Depois, entrou para a venda e, bebericando, pensou em
uma maneira de pagar sua dívida. Quando saiu, topou com a bolsa de couro cheia de moedas do Barroso e a
entregou ao Tiguá para que fosse devolvida. Pouco andara depois disso quando foi chamado pelo vendeiro,
para receber uma moeda que o dono da bolsa deixara como agradecimento, mas Jão Fera se recusou a
recebê-la.
Pouco além, vira encoberto pela folhagem um mascate que contava o bom dinheiro que arrecadara naquela
manhã vendendo pelas casas da região. O italiano verificava o lucro ao lado de uma maleta em que havia notas
empilhadas, quinquilharias para os clientes e um imenso porrete para sua defesa. Mas tão entretido estava
que não percebeu a aproximação de Jão Fera, que se encontrava a apenas dois passos dele, escondido atrás
de um tronco.
XIV – DESENCARGO
Mas Jão Fera não teve nenhum pensamento de abater o mascate e roubar-lhe o dinheiro. Primeiro, pensou
que o italiano podia emprestá-lo; mas antes de pedi-lo, imaginou que o vendedor se assustaria com sua
aparição e faria alguma besteira. Então decidiu ir embora. Pelos três dias seguintes, lutou para encontrar uma
maneira de arranjar dinheiro. Perdeu o pouco que tinha no jogo; não havia serviço de morte ou vingança na
região nem recompensa por onça para caçar.
A trabalhar, não se dispunha: a enxada era para ele, assim como para muitos paulistas brancos, uma
sujeição, o mesmo que a escravidão. Chegou a apalavrar uma roça para lavrar, mas desistiu assim que viu
seu instrumento de trabalho.
Na manhã em que estamos, desviou-se de Berta e foi ao encontro do Tinguá, a quem mandou recado pelo
bacorinho. O vendeiro apareceu e o alertou sobre os caçadores e o conluio do Pinta com eles. Jão Fera riu da
pretensão dos inimigos e deu uma tarefa a Chico: que fosse até a fazenda do tal Aguiar e lhe dissesse que,
se lhe fossem enviados cinquenta mil réis, ele dava sua palavra de que após o São João ele mesmo, o bugre,
apareceria no terreiro de sua fazenda na tarde que ele marcasse.
Assim que Chico Tinguá partiu, espantado com a proposta que devia fazer, Jão Fera pôs-se a caminho
da casa de nhá Tudinha. De longe, avistou Berta e lhe fez sinal. Anunciou que arranjaria o dinheiro para
desempenhar a palavra dada ao mandante do assassinato de Luís Galvão, e nada aconteceria ao fazendeiro.
Ela o agradeceu efusivamente, o que alegrou ao bugre a ponto de ele pedir a ela, com dificuldade, que lhe
deixasse beijar o relicário que ela anteriormente lhe oferecera para saldar sua dívida de morte. Ela lhe ofereceu
o bentinho, que ele beijou de cabeça baixa, afastando-se depois trôpego, como bêbado, sem coragem de
fitá-la. O coração de Berta se compadeceu.
Mal ele se afastara, apareceu o Brás deblaterando, com a roupa em frangalhos, a cara arranhada de espinhos.
Trazia uma lebre para compensar a que soltara, mas Til repeliu-o. O parvo então, percebendo o afastamento
de Jão Fera, apontou para ela soltando interjeições bestiais, como se esperando uma ordem de Berta para
atacar o bugre.
XV - TRAMA
Na véspera de São João, nhá Tudinha assumiu a organização da cozinha da fazenda das Palmas, que se
preparava para uma grande festa cheia de convidados, à noite. A azáfama era grande. Logo após o almoço,
Berta e Linda foram conversar sossegadas à sombra. A filha do fazendeiro confessava sua tristeza à amiga:
naquela noite, nenhum rapaz estaria reparando nela; Miguel gostava mesmo era de sua companheira de
13
criação. Berta, por sua vez, tentava desfazer as mágoas da amiga e ria-se de tudo que ela falava. De repente,
a Til ouviu piar o curiau: era o mesmo assovio que ouvira quando Luís Galvão partira para Campinas. Será
que, apesar da promessa de Jão Fera, o fazendeiro, que naquele dia voltava de Campinas, ainda corria
perigo? Preocupada, convenceu Linda a subir com ela ao mirante, para avistar a chegada do pai da amiga.
No caminho, ainda avistou o pajem Faustino evadindo-se para o meio do mato.
Faustino fora encontrar-se com o negro Monjolo e o Barroso. Juntos combinaram uma armadilha para a
noite: Faustino devia trancar os negros na senzala enquanto Barroso provocaria um fogo no canavial para
atrair Luís Galvão, então Faustino prenderia a mulher e os filhos na casa. Em troca da armação, Faustino
receberia sua liberdade e a mucama Rosa, além de poder surrar o mulato que a seduzia. Monjolo, por sua
vez, receberia boa quantia em dinheiro para gastar em fumo e pinga.
Então o pajem voltou à casa, o Monjolo à roça e o Barroso foi ao encontro do Gonçalo Pinta, que o esperava.
Mal partiram, saiu de seu esconderijo, um covão de tatu-canastra, o Brás. O menino tudo ouvira e, apesar
de sua parvoíce, entendera ou intuíra toda a trama. “Adivinhara a intenção dos cúmplices, como o animal
carniceiro conhece o desígnio do caçador e o acompanha para aproveitar dos despojos das vítimas. Um riso,
que ressumbrava brutal crueldade, arregaçou-lhe os beiços estúpidos.”
XVI – PAI QUICÉ
Sentado em um torrão de argila, Brás dedicava-se a fincar no chão, com espinhos, seis gafanhotos que
apanhara. Depois, começou a gesticular para eles, grunhindo e ganindo, até esmagá-los com uma pedra. Tal
demonstração estúpida de ódio figurava o espírito malévolo e vingativo do rapaz. Sua alma nunca conhecera
o bem antes de ser acarinhada por Til. E mesmo depois, o seu espírito atormentado e parvo nunca tinha
deixado de maquinar meios de matar os que odiava, representados na figuração pelos gafanhotos. A trama
do Barroso ameaçava sua vingança.
Afastou-se um pouco do socavão que usava de esconderijo e voltou com um sapo que jogou à entrada
de um cupinzeiro, de onde surgiu uma enorme cascavel, que o idiota tratou de prender em uma forquilha
até conseguir segurá-la com as mãos. Aproximou-se então da casa, subiu em uma jabuticabeira e jogou a
serpente sobre a cama do quarto de Linda: era o primeiro passo de sua obra de extermínio ruminada por
longos dias. Mas sua atenção foi desviada pela voz de Berta, que se dirigia ao quarto.
Luís Galvão havia chegado há pouco. Os familiares e escravos presentes foram todos cumprimentá-lo, entre
eles um velho encarquilhado, inválido, chamado pai Quicé. Era um dos preferidos de Berta, que sempre lhe
dava um trocado para o fumo. Em troca, o velho, que perambulava pelas redondezas, contava à menina tudo
o que via escondido pelas paradas e caminhos da região.
Fora ele quem escutara, às escondidas, a combinação entre Filipe e Gonçalo Pinta para apanhar Jão Fera.
Naquela tarde, o boquirroto valentão levaria o caçador até Jão Fera. Ao saber da história, Berta imediatamente
pediu ao velho escravo que a levasse até onde estivesse o bugre. Antes de sair, correu ao quarto de Linda
para apanhar seu chapéu, que estava sobre a cama. Ao sentir a vertigem do que estava para ocorrer, Brás
despencou do alto da jabuticabeira.
14
Terceiro Volume
I – O BUGREZINHO
Em 1826, Besita era a moça mais bonita das redondezas de Santa Bárbara. Morava com seu pai, o velho
Guedes, próximo à casa de nhá Tudinha. Todos os moços da região vinham admirar sua beleza, e um visitador
frequente era Luís Galvão, naquela época um moço de 20 anos dado a farras e valentias.
Nessa época, andava colado ao Luís um rapaz de nome Jão, que todos chamavam de Bugre, por causa da
pele acobreada de índio. Sua origem era incerta. Certa tarde, Afonso Galvão avistara à distância no pasto de
sua fazenda um molecote de pouco mais de um ano encarapitado em um macaco velho. O menino ainda não
falava. Mil lendas havia de sua origem. Algumas velhas rezadeiras juravam que ele era o próprio anticristo,
outros foram construindo a versão de que seus pais moravam rio acima e, durante a travessia de uma cheia,
foram levados pela corrente, escapando o menino encarapitado ao sendeiro que fora ter à casa dos Galvão.
Jão foi apadrinhado pelo velho Afonso e cresceu como companheiro inseparável de seu filho. Era valente e
corajoso, mas taciturno e sombrio. Ninguém mexia com ele; por diversas vezes arriscou a própria vida para
salvar de enrascadas ao Luís Galvão, de quem era companheiro de brincadeiras na infância e salvador das
encrencas em que se metia na juventude. Certa vez, teve de matar um homem por causa de uma rixa em que
se meteu o Luís. Pouco depois desse incidente, o filho do fazendeiro viu Besita na janela e ficou caído por ela.
II – O CASAMENTO
Jão alimentava por Besita uma paixão veemente, mas que subjugou em favor de uma admiração sem
tamanho. Sofreou seu desejo em brigas violentas e, por fim, em uma bebedeira que o prostrou por dois dias
na estrada. O que lhe impedia de fazer uma besteira e arrebatar a moça era apenas que seu patrão e amigo
a queria para si. Besita reconhecia a paixão de Jão e os ardores de Luís Galvão, mas, apesar de apaixonada
pelo filho do fazendeiro, sabia que era moça que não prestava para casar-se com alguém de tão alta posição,
e que ceder aos caprichos do sinhozinho seria perder-se.
Luís Galvão avançava em seus intentos de sedução, até que apareceu na cidade um jovem chamado Ribeiro,
para receber a herança de um tio. Encantou-se por Besita e pediu sua mão ao velho Guedes. O pai aconselhou
a filha que escolhesse o Galvão, que era melhor partido, mas a moça advertiu ao pai que Luís não se casaria
com ela. Guedes testou as intenções do filho do fazendeiro e achou que a filha tinha razão; aconselhou-a
então a se casar com o Ribeiro. A filha obediente aquiesceu.
Quando soube do arranjo, Jão Fera ficou possesso, demonstrando-o à moça, que lhe explicou os motivos de
não ficar com Luís Galvão. O Bugre foi procurar o amigo e instou-o a assumir compromisso com a moça, mas
ele se recusou a tal, afirmando que seu pai não permitiria o casamento. Imediatamente, Jão Fera juntou seus
cobres e foi-se embora, deixando de prestar à família Galvão seus serviços e de dar mostras de sua amizade.
Besita casou-se com Ribeiro dali a pouco tempo. O marido recebeu um chamado urgente e deixou-a sozinha,
até que voltasse, vivendo na fazendola que viera vender e que, agora, serviria de morada provisória ao casal.
III – BEBÊ
Dois meses depois do casamento, Besita foi deitar-se certa noite após pedir a bênção ao pai. Dormiu
lembrando-se das promessas de Luís Galvão e acordou com batidas na porta. Zana atendeu, anunciando
que era o sinhô que chegava. Antes que pudesse alcançar o marido, este a cingiu em um forte abraço e tapou
15
sua boca de carícias. Pouco depois, Zana atendeu aos choros da patroa: quem ela pusera para dentro de
casa não era o Ribeiro, mas Luís Galvão, cujo vulto a escrava via perder-se no mato.
O pai de Besita dormia pesado e nunca soube do ocorrido; meses depois, faleceu. Jão Bugre quis matar
Luís Galvão, mas foi proibido por ela. Passou-se um ano e não houve notícias de Ribeiro. Ninguém na
cidade soube do nascimento da criança, tal o isolamento em que Besita, Zana e o bebê viviam. Um dia, às
escondidas, Jão Fera levou a menina à igreja para batizar com o nome da mãe, Berta. Nesse mesmo dia, Luís
Galvão casava-se na mesma igreja com D. Ermelinda.
Pouco tempo depois, Jão Bugre, que servia a Besita como um escravo, foi, contra a vontade, mas a pedido
da mulher, encomendar emblemas de prata a um ourives em Itu. Era terça-feira. Na quinta, de manhã, Besita
brincava com Berta no colo dentro de casa quando entreviu, pela janela semiaberta, o vulto de Ribeiro. Virouse desesperada para Zana, que imediatamente agiu: tomou a bebê das mãos da patroa, carregou-a no colo
para a cozinha, espalhou carvão pelo seu rosto, ajeitou a touca e saiu com Berta para o terreiro, ninando-a
com aquela cantiga que anos depois a menina decifraria nos devaneios de louca da escrava.
Besita quis crer que o estratagema de Zana daria certo. Passou a manhã, veio a tarde e, ao cair do sol, a
cintilação da estrela vésper pareceu-lhe o sorriso de sua mãe chamando-a do céu. Então ouviu Zana um grito
de terror, ao qual acudiu prontamente. Encontrou, no meio da alcova, o Ribeiro, como fantasma, atirado sobre
a mulher que estrangulava com as próprias tranças.
IV – ÓRFÃ
Retumbou um grito espantoso que fez o assassino atirar-se para fora da casa, ainda mais quando avistou o
vulto pavoroso de Jão Fera atirando-se janela adentro em sua direção. Antes que o Bugre pudesse agarrá-lo,
foi chamado por um fiapo de voz de Besita clamando pela filha. Jão Fera teve de arrancar o bebê dos braços
de Zana, que, enlouquecida, sufocava a criança no peito.
Jão levou-a aos braços de Besita, que entrelaçou o jovem e a filhinha em um único abraço, e roçou pelos
rostos de ambos seu último beijo. Jão Fera tonteou, a vertigem o prostrou de joelhos, um estertor de dor
sufocou em seu peito e arrebentou em sua alma.
Ribeiro planejara bem sua fuga. Havia cerca de dois anos, deixara a mulher para receber uma dívida de
herança em Itu. O devedor fugira para Curitiba, mas lá foi alcançado e pagou o que devia. Rico, entregouse por um bom tempo aos prazeres, até que o remorso fez com que se lembrasse da moça que desposara
e abandonara. Às ocultas, presenciou a cena de Besita com Berta nos joelhos, seguida do teatro de Zana.
Surpreendeu a mulher na janela naquela tarde, e ela prostrou-se ao chão e confessou tudo. Mas o enciumado
jogou-lhe na cara que Luís Galvão já era seu amante antes do casamento, e atirou-se sobre Besita para
matá-la barbaramente. Quando se levantava para matar também a criança, foi surpreendido pelo vulto de
Jão e empreendeu sua fuga: subiu em uma canoa que o esperava e desceu celeremente o rio Piracicaba.
Adivinhando que Jão o perseguiria por toda terra que pudesse, embarcou para Portugal, colocando entre si
e o Bugre um oceano.
Voltando do povoado, nhá Tudinha ouviu choro de criança na casa e acudiu. Encontrou Jão Fera tentando
fazer a criança chupar um pedaço de pano embebido em café. O Bugre contou a ela por alto o ocorrido, mas
sem revelar quem era o pai de Berta. Nhá Tudinha imediatamente ofereceu a Berta o seio, que ainda trazia um
resto do leite que amamentara Miguel. A partir desse dia, a menina passou a ser como sua própria filha. Para a
gente do lugar, o assassinato da mãe e a origem da filha sempre ficariam sendo um mistério. A casa onde Berta
nasceu ficou abandonada, habitada apenas por Zana, sua loucura e suas alucinações daquele dia.
16
V – FERA
O fogo queimou a alma de Jão quando descobriu que não apanharia Ribeiro. A partir daí, gastava seu
sofrimento e seu furor em brigas terríveis, nas quais horrorizava todos que o viam atuar. Sabendo disso, um
poderoso fazendeiro que ao longo do tempo fizera inúmeros inimigos, tomou-o como capanga a seu serviço.
Deste, Jão passou ao serviço de outros, e quanto mais o tempo passava, mais a sua sede de sangue,
único alimento que refrigerava sua alma, aumentava, e mais aumentava sua fama. Foi assim que ganhou o
sobrenome de Fera.
De vez em quando, aparecia para ver Berta e trazer-lhe presentes. A princípio, a criança tinha medo dos
encontros com aquele homem triste e carrancudo, mas habituou-se e acabou por afeiçoar-se a ele. Quando
Berta fez doze anos, Jão passou a ver nela o corpo da mãe, a quem tanto amara, por quem tanto sofrera, e
a moça parecia destinada a compensar sua devoção e sofrimento. A paixão queimava-o. Mas quanto mais a
Berta crescia, mais ele sentia por trás de suas feições o vulto de Besita a protegê-la.
Há um ano, deixara Jão o ofício de empregado e passara a viver pelos matos, sempre rodeando Berta e
encontrando-se regularmente com ela. Sem a proteção dos poderosos, as caçadas a ele se tornaram mais
frequentes, mas zombava de todos. Além disso, sempre havia um poderoso a encomendar seus ofícios:
afinal, naquelas redondezas, não havia melhor mão que a sua para executar uma vingança ou morte.
VI – A RESTITUIÇÃO
Depois de quinze anos, voltara Ribeiro ao Brasil, mas mudado. Uma doença manchou-lhe o rosto e lhe valeu,
em Portugal, o apelido de Barroso, que por aqui conservou. Depois de meses na província, aventurou-se em
Santa Bárbara, e o desejo antigo de vingança reacendeu-se. Tendo ouvido falar de um capanga que podia ser
contatado pelo Chico Tinguá, acertou a vingança com o Jão Fera adiantando-lhe vinte patacas.
Nenhum dos dois reconheceu o outro. Pouco tinham-se visto no passado, o tempo mudara bastante as feições
de ambos. Mas naquele dia na Ave Maria, ao ver o vulto do cavaleiro entre o mato, uma visão do assassino de
Besita passou pelos olhos do Bugre, e não fosse a cascavel, talvez Jão tivesse matado seu contratante. De
imediato, Jão Fera não gostou de Barroso, e este de imediato sentiu-lhe um medo que lhe varava a espinha.
Depois do fracasso da tocaia na Ave Maria, Ribeiro, após avistar, certa tarde, Luís Galvão no sossego da
fazenda, rodeado pela bela mulher e lindos filhos, sentiu-lhe inveja: também gostaria de ter uma família assim.
Mas desperdiçara sua juventude em prazeres e vícios, e a única maneira de arranjar uma foi mudar seus
planos.
Tramou então um incêndio aparentemente acidental no canavial, para acontecer na noite de São João. Luís
Galvão acudiria para salvar a lavoura, mas seus escravos estariam trancados no quadrado, e os pajens na
casa. Ele seria, então, desacordado no caminho pelo Pinta, e atirado às chamas. O Ribeiro apareceria com
seus camaradas, como se estivesse viajando pela estrada, apagaria o fogo, levaria o corpo para a gentil
esposa e ofereceria seus préstimos.
Em menos de um ano, contava tomar o lugar do seu odiado rival à mesa da fazenda das Palmas.
Naquele dia, assim que se despediu de Faustino e Monjolo, voltava ele acompanhado pelo Pinta quando lhe
atravessou o caminho o Jão Fera. Barroso vacilou na sela, o Gonçalo Suçuarana empalideceu, mas o Bugre,
calmamente, estendeu-lhe um maço de notas: “– Seu dinheiro aqui está; não lhe devo mais nada”.
E, antes de desaparecer no mato, despediu-se: “– Agora passe bem. Havemos de encontrar-nos!”
17
VII – FASCINAÇÃO
Ao abrir a porta do quarto para pegar seu chapéu, Berta foi indagada por Linda sobre aonde iria. Ao não
responder, provocou ressentimento da amiga e, para tranquilizá-la, abraçou-a e sussurrou-lhe ao ouvido
que iria buscar Miguel. Intrometeu-se no abraço o Afonso, tentando roubar um beijo de Berta, mas a menina
tascou-lhe um beliscão e entrou no quarto. Afonso tentou forçar a porta, mas foi vencido por cócegas da irmã.
Assim que trancou a porta, Berta viu sobre a cama a cascavel atirada por Brás e soltou um grito.
Os irmãos, assustados, perguntavam o que havia, mas Berta mantinha-se em silêncio. Nervoso, tentando
aparentar calma para não assustar Linda, Afonso tentava enxergar pelo espelho da fechadura o que
acontecia dentro do quarto. Com algum esforço, avistou Berta como que desfalecendo o corpo para sentar-se
no pavimento, enquanto mantinha a cabeça rígida e o olhar estático, com as negras pupilas, fixo em algum
ponto. Quando percebeu que ela mirava a cobra, Afonso se soltou um grito de terror. Tentou arrombar a porta,
inutilmente. Linda praticamente desmaiou sobre uma cadeira, sem entender nada. O rapaz atirou-se para o
terreiro a fim de tentar entrar pela janela.
No canavial ao lado, ouviu-se outro grito, semelhante a uma gargalhada selvagem.
VIII – LETARGO
Na alcova, acontecia uma cena espantosa. Assim que fechou atrás de si a porta, Berta dirigiu-se à cama
para pegar seu chapéu. A cascavel, por sua vez, tinha já se arrastado para o soalho e preparado seu bote.
Quando ouviu o barulho do chocalho e sentiu o cheiro álacre que tomava conta do quarto, a menina virou-se e
avistou a cobra, foi quando soltou o grito que assustou Afonso e Linda. Incapaz de reagir, Berta fixou seu olhar
no da cascavel, como hipnotizada. Ocorre que o mesmo se deu da serpente para a menina. Entre ambas
estabeleceu-se, então, uma corrente de luz e força. Aos poucos, a serpente distendeu seu corpo, desarmando
o bote, recolhendo a língua bifurcada e as presas. A moça, por sua vez, também sentiu o corpo lasso; algo
parecia puxar toda sua estrutura física ao chão, dobrando-a, como se fosse transformando também em uma
cobra que coleasse pela terra.
Berta fez força para manter o controle. Enfim, conseguiu manter a cabeça erguida e estendeu a mão em
direção ao animal. A cascavel deslizou sua cabeça para dentro da mão de Berta, enroscou-se em suas
espáduas formando um colar, aconchegou-se em seu peito e caiu no letargo.
IX – TRANSE
Enquanto isso, Brás, após cair da árvore em que subira, pulava desesperado tentando alcançar a janela.
Quando conseguiu trepar nela, avistou a serpente enrodilhando-se no corpo de Berta. De um salto, atirouse para segurar a cabeça da cascavel em suas mãos e fugir espavorido pela mesma janela, açoitando a si
próprio com o animal que trazia preso, como a se castigar, até desaparecer no canavial. Assim que se deu
conta do que ocorrera, Berta voltou-se e abriu a porta para Linda e Afonso, que retornou ao ouvir o barulho da
fechadura destrancando-se. Ao indagarem Berta do que ocorrera, ela apontou para Brás, que sumia ao longe,
mas os irmãos não souberam detalhes, porque imediatamente a moça lembrara-se do motivo por que entrara
no quarto, agarrou o chapéu e correu em direção ao canavial, à procura do negro velho.
Encontrou Quicé a sua espera e o apressou a mostrar o caminho, pois se preocupava com o destino de Jão
Fera. Pegaram um trilho batido no canavial, passaram por um pasto e chegaram a um descampado largo.
Nesse momento, ouviu-se um surdo trovão. Impossível, pois o céu estava limpo. Mas o barulho continuava,
incessante, cada vez mais alto, até que a terra começou a tremer, para espanto de Berta. Ela olhou para Quicé
18
e viu-o apavorado; o velho adivinhou o que era: uma manada de queixadas, porcos selvagens terríveis, que
despedaçavam com suas presas tudo o que encontravam pelo caminho, disparava justo na direção deles.
Desesperada, enxergando restos de sangue, pedaços de bichos e talvez gente, nos focinhos dos animais,
Berta tentou arrastar o velho em direção a alguma árvore distante em que pudessem subir. Inútil esforço.
Quando os animais ficaram próximos demais, o velho ofereceu a ela que subisse em suas costas para
retardar, pelo menos, a morte da menina. Ela olhou-o agradecida e volveu os olhos para o céu esperando o
martírio.
X – A GARRUCHA
A arrancada dos queixadas não fora natural. Gonçalo Pinta marcara aquele dia para atacar o Bugre. Seu plano
era encurralar a fera em sua morada, que ficava entre uma escarpa impossível de escalar e um despenhadeiro.
Combinou com Filipe de ele e seus homens tomarem, pela madrugada, a única saída do desfiladeiro por onde
poderia fugir Jão Fera. Enquanto isso, o próprio Gonçalo atacaria de frente, com homens pagos pelo Ribeiro,
a choça que ficava no mais fundo da mata virgem.
Ocorre que, a caminho do cerco, os cachorros dos caçadores de Filipe encontraram o bando de caititus.
Acuados, os porcos selvagens investiram violentamente, despedaçando os cachorros e um dos homens
do grupo. Acossados pelos tiros dos caçadores, o bando de animais ferozes varou a mata até chegar ao
descampado.
Berta esperava o martírio quando ouviu um brado espantoso vindo da mesma direção dos porcos: era Jão
Fera que, numa corrida desabalada, atropelava os animais, cortando-os com sua faca, abrindo caminho à
força, até conseguir agarrar a menina e levá-la para fora do cerco do bando. Mas, ao ouvir os gritos de Quicé,
já atacado pelos bichos, Berta queria que ele salvasse também o velho. O Bugre se recusou, mas a menina
ameaçava atirar-se sozinha de volta ao cerco dos animais. Com Berta nos ombros, Jão entrou no torvelinho,
pegou o velho pela cabeça e atirou-o longe, permitindo que ele, mesmo ferido, conseguisse alcançar uma
árvore em que subiu.
Com isso, viu-se de novo cercado pelos queixadas, que avançavam furiosamente. Com Berta aos ombros,
despedaçava-os com a faca na mão direita, enquanto com a esquerda segurava a menina, mas já eles
conseguiam ferir-lhe as pernas. Ordenou a Berta que puxasse sua garrucha na cintura. Ela o fez e colocou-a
na altura da boca de Jão, que a armou e prontamente desferiu o tiro que assustou e paralisou os animais
por um segundo, dando tempo para que ele corresse em direção às árvores, mas já com o bando de porcos
selvagens novamente em seu encalço.
XI – A FURNA
O esconderijo de Jão ficava em uma furna medonha. Era uma caverna que se formara no meio do penhasco,
pela força de um jetaí que brotara entre as pedras e as estilhaçara, fazendo ruir uma lasca como se fosse laje
de telhado que a qualquer momento poderia ruir. O Bugre encontrou o lugar e escorou-o de modo que, caso
fosse ameaçado, pudesse fazer tombar sobre si e seus inimigos, matando a todos, a pedra. De lá avistava os
lugares possíveis onde se pudesse penetrar na furna.
Jão carregou Berta nos ombros até o sopé do rochedo. Quando ela desprendeu-se dos seus braços e avisou-o
dos inimigos que vinham capturá-lo, ele os desdenhou. Perguntado se tinha medo, ele respondeu: “– Medo!...
Eu tenho mesmo! E muito.” Berta ficou sem entender o olhar ardente e medonho que lhe lançava o Bugre. É
que naquele momento ele lutava com todas as forças para não sucumbir aos desejos lúbricos que o contato
19
recente, direto, com o corpo de Berta e a visão tão próxima da menina lhe causavam. Instado por ela a fugir,
desviou os olhos da menina para resistir à tentação, arfou o peito, abaixou a cabeça e avançou.
XII – O ASSALTO
Ao dar o primeiro passo, sentiu o bacorinho ruivo fossar-lhe os calcanhares, apontando o focinho para o lado
do campo e grunhindo. Jão não hesitou. Tomou Berta nos braços e entrou para a caverna. Nesse instante,
surgiram por entre as folhagens os canos de espingardas dos capangas do Gonçalo Pinta.
Passado um instante de estudo, Gonçalo Pinta começou a arrotar valentia e desafiar o Bugre para sair da
caverna e enfrentá-los. Não obteve nenhuma resposta, e bastou um pedregulho rolar pela brenha para que
fugisse apavorado para detrás do tronco em que se escondia. Tentando forçar a saída de Jão, os capangas
descarregaram suas armas contra a caverna, inutilmente. Continuou o impasse por cerca de uma hora,
até que se ouviu, vindo do outro lado dos penedos, onde estavam Filipe e seus homens, uma descarga de
espingardas e um urro medonho que, ecoando pelos rochedos, gelou o sangue de Gonçalo e seus homens.
XIII – LUTA
Penetrando na caverna, Jão colocou Berta no chão. Enquanto a menina, tensa, mas estouvada como sempre,
andava de cá para lá olhando pelas frestas as espingardas atocaiadas do outro lado. O Bugre lutava contra
seus instintos. Assombrado pela imagem de Besita, que invocava sempre para proteger a menina de seus
desejos, não conseguia conter a sede febril que a presença de Berta lhe provocava. Se ela tivesse morrido
no campo, pouco antes, ele ficaria só no mundo, sofrendo tanto como sofrera com a morte de sua mãe. Ela
precisava ser dele.
Por um instante, pensou que a saída seria tirar a pedra que sustentava a laje da caverna e esmagar a si e
à moça cuja vida salvara mais de uma vez. Esteve a ponto de fazê-lo, mas um apelo angustiado e o olhar
desesperado de Berta, frente às espingardas que se engatilhavam para atirar comoveram-no. Ciente de que
a menina tinha medo, agarrou-a em seus braços, afastou o calhau que guardava a saída para o outro lado do
desfiladeiro e atirou-se com ela. Nesse momento, os capangas de Filipe dispararam suas armas. Urrando de
furor, Jão conduziu Berta rapidamente por caminhos só dele conhecidos.
Quando chegou com ela até as plantações da fazenda, advertiu-a para que nunca mais andasse sozinha
pelos matos.
XIV – O BEIJO
Berta voltava para casa brincando e cantando, feliz pelo desfecho da aventura, até que ouviu um farfalhar
próximo de si. Voltou-se assustada e imediatamente pôs-se a correr. Era Afonso, que a perseguiu entre risos
até envolvê-la em um forte abraço e ameaçar dar-lhe um beijo. Desistiu subitamente, querendo saber se ela
gostava dele. Ela afirmou que sim, mas como a um irmão, resposta que, se em um primeiro momento frustrou
o rapaz, logo fez com que ele se atirasse de novo sobre ela e exigisse um beijo. Ela prometeu-lho se ele
fechasse os olhos, mas assim que o fez, ela desvencilhou-se, deu-lhe um piparote nas orelhas e correu. De
longe, vendo Afonso magoado pelo logro, retornou para perto dele e, enfim, pousou sobre sua face um beijo.
Ele enlaçou o corpo da moça e acolheu-a em seu peito. Ela ria, entre brejeira e ruborizada. Súbito, repeliramse. Diante deles estava Miguel.
20
XV – CONFISSÃO
Miguel estava lívido e, percebia-se, furioso. Afonso, assim que pode, escapuliu-se de volta à fazenda. Miguel
mais uma vez tentou convencer Berta de que a amava. Ela insistia que ele não podia amar a ninguém que
não fosse Linda, a quem prometera que Miguel se declararia naquele dia. Ele tentou afastar-se, mas Berta
começou a gabar para o amigo as virtudes de Linda, imitando-lhe os trejeitos. O rapaz via Berta e Linda
confundidas, e deixou-se enfeitiçar e conduzir até próximo da fazenda. Lá já chegara Afonso, que após contar
efusivamente para a irmã o ocorrido no cafezal, deixou-a só, espreitando a chegada de Berta e Miguel.
Quando esta perguntou àquele se não era verdade se gostava de Linda, ele, enfeitiçado, enxergando Linda
em Berta, não teve o que fazer a não ser assentir. Linda apareceu então, e Berta conduziu-os até a fazenda
procurando entrelaçar suas mãos.
Quarto Volume
I – SÃO JOÃO
Noite de São João no terreiro das Palmas. A fazenda enfeitada recebe os convidados. Iguarias caipiras se
ofertam aos convidados, a grande fogueira arde e, ao seu lado, dois mastros se elevam. Em um deles, está
a boneca de coração de pólvora. Quem será o moço que a incendiará? Afonso inicia a salva de tiros, mas
apenas roça o centro da boneca. Uns e outros rapazes empunham a arma. Quando chega a vez de Miguel,
ele carrega prestes a clavina, aponta-a e, com um tiro certeiro, faz explodir a boneca, que esguicha para o céu
fogos de várias cores. Ao seu lado, Berta comemora; Linda está seria, mas olha-o com admiração.
II – CRAVO BRANCO
Os meninos brincavam agora de tentar subir ao pau-de-sebo para pegar a cabaça cheia de flores e prendas
que lá no alto estava dependurada. Enquanto isso, Miguel e Linda, tímidos um com o outro, estavam à parte.
Até aquela manhã, Miguel era todo de Berta. Mas Inhá sabia há tempos da paixão de Linda por ele, e dedicouse por meses a fio a convencê-lo de que era a outra menina que ele amava. Agora, embebido na beleza do
colo de Linda, atraído pela dedicação que ela demonstrava por ele no olhar e nos gestos, era só para ela que
ele tinha atenção. Um cravo branco enfeitava o colo de Linda, e ela mostrou-a a Miguel, perguntando-lhe se
ele sabia o que significava. Ele sabia, mas demorou-se em responder: “– Casamento?...” Linda ruborizou; a
flor caiu-se ao chão e quebrou a haste, pretexto para presenteá-la ao rapaz, que a envolveu na palma da mão
e, fechando os olhos, beijou-a com paixão. De longe, com uma ponta de melancolia e um coração opresso
que tratou logo de sojigar, Berta admirava a cena.
III – REVELAÇÃO
Berta procurou a sua volta algo com que entreter o coração e enganar a tristeza. Nenhum folguedo a animava.
Encontrou Brás roendo uma espiga de milho a um canto e foi acarinhar-lhe. Por uns instantes, distraiu-se,
mas logo seu olhar se voltou para os enleios amorosos entre Miguel e Linda e seu coração suspirava. Brás
esgueirou-se na noite e sumiu. O que acontecia com Berta? Durante meses trabalhou para aproximar os dois.
Percebendo em Linda certa rejeição aos modos de paulista caipira de Miguel, tratou de polir o irmão de leite
e fazê-lo um moço de educação e comportamento refinados. Orgulhava-se de ver o irmão de criação brilhar,
e pensava que isso era amor fraterno. Mas agora, que soubera transferir o amor que Miguel lhe devotava
21
para Linda, sentia que, na verdade, ela também amava Miguel. Ao mesmo tempo em que soou um alarido de
rapazes em volta do pau-de-sebo, Berta correu em direção a Linda. Alguma coisa de extraordinário sucedera.
IV- A LÁGRIMA
Em um canto da festa, os homens comentavam como Afonso saíra endiabrado como o pai. Luís Guedes
refutou que fosse farrista, mas os amigos lembraram-no de Besita e insinuaram que ele havia logrado o velho
Guedes e o marido. O fazendeiro mudou de conversa, mas D. Ermelinda, que se chegara à janela para espiar
lá fora, ouvira o final da conversa, e quedou melancólica. Berta, percebendo o olhar perscrutador da mãe de
Linda, correu até onde estava a amiga e Miguel para adverti-los. Nesse momento, os rapazes do pau-de-sebo
se exaltavam.
O Brás, percebendo a tristeza de Berta, imaginou em seu cérebro perturbado o que poderia fazer feliz aquela
que amava. Pensou então em arrematar para ela as flores e prendas do alto do mastro. Mas como, se com
suas pernas seria incapaz de subir até tão alto? Maquinou então que a ponta do mastro ficava não muito
distante das janelas do mirante. Subiu, então, até lá, amarrou uma corda à janela e balançou-se até se
encarapitar no mastro, que começou a tombar. Miguel, advertido pelo alarido, segurou-o com sua força até os
demais rapazes perceberem o que acontecia e fossem ajudá-lo.
Brás saltou célere para o chão e foi ofertar a Berta as flores que colhera no alto do pau-de-sebo. Ela tomou-as
comovida e derramou a primeira lágrima verdadeira de sua vida. Aquela demonstração de um amor superior
compensava sua tristeza, poucos minutos antes, ao contemplar o casal de amiguinhos. Pôs-se então, com a
ajuda de Linda, a enfeitar os cabelos e o vestido com as flores.
Apesar dos esforços de Berta, ela não conseguiu evitar que D. Ermelinda visse sua filha de namoricos com
Miguel. Em tom de tristeza e severidade, ordenou à filha que entrasse para a sala e de lá não mais saísse.
Nesse instante, um foguete riscou rente ao chão e iluminou, aos olhos de Berta, na distância, o vulto de Jão
Fera.
V- O SAMBA
À direita do terreiro da fazenda ficava o quadrado, um grande pátio cercado de senzalas. Nele, os escravos
sambavam a não mais poder em torno da fogueira, animados pela cachaça que circulava de vez em quando.
Entre eles, o mais animado na dança e na cantoria era o Monjolo. Junto aos portões, ficavam os feitores
e camaradas como o Mandu, que arranhava a viola, e o Pereira, que improvisava repentes, enquanto os
camaradas contavam façanhas.
De repente, avistaram a um canto, olhos fixos no portão, a Florência, uma Vênus negra, que esperava pelo
pajem Amâncio. Este chegou e foi arrastado pela mulher para o batuque, mas mal começava a se animar,
foi puxado para fora da roda com força pela Rosa, a mucama que vinha recuperar seu homem roubado pela
negra enxadeira. As duas mulheres se defrontaram e não tardaram a se engalfinhar. Amâncio procurava tirar
Rosa da briga, mas os escravos da roça defenderam a companheira; os camaradas, por sua vez, defenderam
o pajem e a mucama; enfim, tudo descambou numa briga geral, que só terminou com a intervenção de
Florêncio e outros pajens, que conseguiram arrancar a mucama do sarilho e levá-la para casa.
Enquanto isso, agachado no meio do terreiro, bebendo sua cachaça e assistindo à briga, Monjolo devorava
com seus olhos saltados de volúpia a figura de Rosa. À porta do administrador, batia a sineta o toque de
recolher.
22
VI – O INCÊNDIO
A festa terminara pouco depois da meia-noite, apenas ao longe se ouvia alguma algazarra ou rascas de viola
dos convidados que se retiravam. Esperava-se que a função perdurasse até a madrugada, mas os paulistas,
desconfiados, perceberam logo que alguma coisa afetara D. Ermelinda, e vendo-se que sua amabilidade
convertera-se em frieza, entenderam que era hora de retirar-se, mesmo com os protestos de Luís Galvão.
Recolhidos todos, D. Ermelinda meditava, derreada em um sofá, sobre as decepções daquela noite. Os atos
libertinos do passado de seu marido feriam a sua sensibilidade, e a possibilidade da filha entregar-se ao amor
por alguém inferior parecia-lhe uma fraqueza que a menina teria herdado do pai.
Luís Galvão veio tentar saber o que ocorria com a mulher, mas esta lhe disse que nada tinha. Então ouviu
algumas pancadas secas vindas do terreiro e abriu a janela para tentar descobrir o que havia, mas apenas
escutou um guincho de curiau e acalmou-se. Porém, algo havia de fato: Faustino, que trancara pajens e
camaradas em seus aposentos, lembrara-se de pregar com tábuas uma janela por onde podiam escapar. A
essa altura, Monjolo já furtara as chaves da senzala, trancara os escravos e fora ao encontro do comparsa.
Pensou ele em matar ali mesmo o Faustino e ganhar somente para si os prêmios da traição, mas a súbita
aparição da Luís Galvão à janela impediu-o de colocar em prática suas intenções. Soltou ele, então, o guincho
que era o sinal combinado para iniciar o incêndio. Mal Luís Galvão correu o trinco da janela, as labaredas se
arremessaram aos ares no canavial.
VII – A TRAIÇÃO
O incêndio alastrou-se, medonho, espantando os bichos entocados no canavial, fazendo crepitar como rajadas
de balas as canas. Luís Galvão ouviu os gritos de “fogo, fogo” e rapidamente saiu em disparada em direção
ao foco das labaredas, pensando já em apagá-lo fazendo romper o dique do tanquinho e contando que os
escravos e camaradas não tardariam a segui-lo. Mas muitos ainda dormiam, prostrados pelos folguedos e
pelos efeitos da cachaça, e os que se levantavam viam-se trancados. Apenas Faustino e Monjolo seguiamno, escondidos, para ver o desfecho da traição. Monjolo, por sua vez, aguardava para executar seus novos
planos, com requintes de crueldade.
D. Ermelinda subiu ao mirante para avistar os trabalhos do marido. Linda e Afonso acordaram, a menina
correu para fazer companhia à mãe. Afonso apressava-se para ir ajudar ao pai, mas teve de acudir a um
grito de socorro da irmã, que amparava o corpo desmaiado da mãe: D. Ermelinda desfalecera ao avistar, na
claridade produzida pelas chamas, um homem surgir das sombras do canavial e descer um cacete sobre a
cabeça de seu marido – era o Gonçalo Suçuarana.
VIII – VAMPIRO
Quando Gonçalo tomou o corpo do fazendeiro para jogá-lo às chamas, estava à sua frente o Jão Fera. Por
duas vezes o Pinta disparou sobre o Bugre sem acertá-lo. Depois sacou sua faca e tentou atingi-lo, em
vão. Enfim foi agarrado, estrangulado e atirado ao incêndio por Jão Fera. Luís Galvão, acordando do golpe,
percebeu que devia a vida ao antigo amigo e foi lhe agradecer, mas o capanga deixou bem claro a ele que,
se lhe poupara a vida, fora pela lembrança da falecida Besita e pela existência de Berta, no entanto, prometia
que Luís Galvão não escaparia de morrer por suas mãos.
Jão Fera, prevenido pelo Chico Tinguá, redobrara a vigilância sobre o Gonçalo e o Barroso. Naquela manhã,
assistira de longe à combinação do incêndio e exultou com a oportunidade de saciar sua sede de sangue
23
contra seus inimigos. Atrasara-se um pouco para salvar Luís Galvão (a quem deixaria morrer, não fosse o
perigo de Berta considerá-lo o assassino) porque, no caminho, dera cabo de Faustino e Monjolo.
Faltava-lhe agora o Barroso, que devia estar do outro lado do canavial. O inimigo, apenas avistou Jão Fera,
pôs-se a correr desesperado. Estaria morto, não fosse a aparição de Miguel que, no caminho para casa após
o fim da festa, avistara o fogo e voltara para ajudar a combatê-lo. O rapaz colocou-se entre o Bugre e Gonçalo
e se recusava a sair do caminho. Quando Jão Fera avançou para ele, salvou-o Berta com um grito que fez o
capanga disparar pelo campo afora e desaparecer.
IX – NA TAPERA
Três dias haviam decorrido da festa de São João. Berta encaminhava-se para a tapera de Zana quando foi
atalhada por Miguel, que lhe contou a prisão de Jão Fera em Campinas; provavelmente o assassino seria
enforcado. Apesar do horror que as ações do Bugre naquela noite do incêndio lhe inspiravam, sentia ela pena
do homem.
Próximo à tapera, Berta espantou-se de encontrar Zana de pé no meio do terreiro, pescoço curvo, espreitando
com olhos esbugalhados o mato. Quando se aproximou, a menina foi abraçada por Zana e arrastada para
dentro da tapera. É que a preta velha tinha avistado o vulto do Ribeiro entre as folhagens.
Em suas andanças peça região, o miserável tivera a lembrança de visitar a casa onde perpetrara o horrível
crime do passado. Foi quando avistou Berta pela primeira vez. Com o passar dos dias, adivinhou que aquela
moça tão parecida com Besita só podia ser filha do adultério da mulher que assassinara. A ideia de terminar
sua vingança de maneira bárbara passou a excitá-lo desde então. Depois que conseguira fugir de Jão Fera
graças à intervenção de Miguel e Berta, escondera-se no mato até saber, passando por Campinas, da prisão
do Bugre. Retornou então a Santa Bárbara para executar seus planos sádicos. Vendo, agora, que a presa
estava guardada, Ribeiro esperou que terminasse o transe da preta velha.
Berta, passado o primeiro susto, descuidou da vigilância e sentou-se ao chão, com o pensamento longe,
refletindo sobre aquilo que a amuava. Primeiro, preocupava-se com a oposição de D. Ermelinda à paixão de
Linda e Miguel e não atinava com um plano para vencê-la. Segundo, não conseguia de pensar no destino
do coitado do Jão Fera. Absorta em seus pensamentos, Berta não notou a aproximação do Ribeiro, mas
Zana estava atenta. De repente, Zana ficou estática e imóvel, tartamudeou sons roucos e, enfim, soltou uma
gargalhada que ressoou pela mata, violentamente agitada nesse momento. Berta, sobressaltada, ergueu a
cabeça.
X – A ENTREGA
Jão Fera, no prazo combinado, havia de se apresentar ao Aguiar, em Campinas, para cumprir o que havia
prometido. Antes, pensou em passar na casa de nhã Tudinha para ver pela última vez Berta. Mas, ao avistála de longe, pensou que a menina devia estar horrorizada pelos crimes que ele cometera durante o incêndio.
Para justificá-los, teria de revelar a ela a verdade sobre suas origens, crueldade que não cometeria. Além
disso, precisaria contar o motivo de se entregar daquela maneira, e seria melhor que Berta nunca soubesse
que a promessa que lhe fizera de não atentar contra a morte de Luís Galvão fora a causa de sua perdição.
Dirigiu-se então a Campinas. Aguiar, por precaução, botara os homens de Filipe de butuca em volta da casa
da fazenda. Jão Fera apresentou-se e deixou claro: entregava-se e iria aonde eles quisessem, mas que
não lhe tocassem, porque revidaria forte e, no caso de vencer, estaria desfeito o combinado. Acreditando na
24
palavra do Bugre, o fazendeiro aceitou o trato; na manhã seguinte, dirigir-se-iam a Campinas, onde ele seria
entregue às autoridades.
Mas, durante a noite, Filipe, querendo amarrar o Bugre para dormir em segurança, caiu sobre ele com uma
súcia de capangas. Bastou para que a fera despertasse em João e ele os surrasse com uma estaca de
madeira. A voz do Aguiar perguntou de longe o que estava ocorrendo e o Bugre informou-lhe que sua gente
havia rompido o trato, por isso ele se desobrigava também de cumpri-lo e se iria embora. No fundo, Jão Fera
entristecia-se com o ocorrido; a prisão parecia uma boa maneira de não ter de encarar Berta novamente.
XI – O CIPÓ
Aquela noite, passou-a Jão Fera, no caminho de volta para Santa Bárbara, entregue a delírios em que a
imagem de Besita morrendo em seus braços, o que lhe dilacerava ainda a alma. Arrependia-se de não ter
ainda vingado a sua amada. De manhã, passou à beira da casa de nhá Tudinha para certificar-se de que
tudo estava bem. No caminho, passando pelo fosso que o Brás cavava para surpreendê-lo, mas que Jão
descobrira há tempos, percebendo que o moleque esfalfava-se em seu intento no fundo do barranco, abateu
com o pé a estiva, e a terra rolou sobre o idiota.
Ao aproximar-se da tapera de Zana, percebeu o vulto do Ribeiro e quedou paralisado. O ódio travou seus
músculos, seus dentes batiam, a língua se enrolava. Viu Zana representar o mesmo teatro de tantos anos
passados, e no momento em que Ribeiro aproximava-se de Berta, enfim o fogo que o queimava por dentro,
como a lava expelida pelo vulcão, fez que seu corpo voasse em direção ao assassino e o arrebatasse,
carregando-o para o meio do mato. Jão fora tão rápido que Berta, absorta, nada viu; apenas ouviu a gargalhada
de Zana ao perceber que o vingador de Besita salvara a filha do mesmo destino da mãe.
O Bugre atirou Ribeiro ao chão. Primeiro sacou a faca, mas sua sanha era tanta que a jogou de lado e, de
maneira feroz e terrível, estraçalhou-o com as próprias mãos. Interrompeu-o um grito de Berta, trazida até ali
pelo Brás, que assim se vingava de Jão e dele escarnecia. A menina correu, trêmula de medo, e encostouse em uma árvore, à distância. Irritado com Brás, Jão Fera quis descarregar sua raiva no parvo, mas Berta,
percebendo o perigo, reuniu suas forças e voltou para perto deles e ordenou ao Bugre: “– Vai embora! Não
te quero mais ver! Tu és pior do que fera: és um demônio. Não há sangue que te farte!...” A princípio, Jão
tentou pedir perdão, mas, resoluto, negou-se a ir. Berta, rapidamente, arrancou um pedaço de cipó da árvore
próxima e chicoteou-lhe o rosto. Duas lágrimas rolaram junto com o sangue pelas faces do bandido.
XII – DESPEDIDA
Linda abriu a janela com cuidado. Era a hora que a mãe dava ordens pela casa. Podia, por um instante, ver
Miguel, que se escondia na hora a contemplá-la, precisava falar-lhe.
Desde a festa, a alegria reinante naquela casa evaporou-se. D. Ermelinda, angustiada pelo que descobrira
do passado do marido e precisando dele para ajudá-la a afastar a filha de Miguel, não achava forças para ter
com ele uma conversa que julgava necessária, mas que podia acabar com a tranquilidade de anos de seu
casamento. Luís Galvão, por sua vez, adivinhava o que machucava o coração da mulher. Naquela noite vira-a
aproximando-se no momento em que era alvo da brincadeira de seus amigos. Ao longo dos anos, sofrera
na consciência pelos seus pecados de moço. A figura de Berta tão próxima, se por um lado avivava nele o
carinho que sentira por Besita, por outro não o deixava esquecer o crime que perpetrara. De alguma maneira,
queria livrar-se da culpa. Pensou que a tornando sua herdeira legítima conseguiria um alívio no remorso, por
isso, quando fora a Campinas, o papel que esquecera em casa e voltara para buscar era seu o testamento
25
em que reconhecia a paternidade da menina. Agora, os acontecimentos da noite de São João, a desconfiança
da mulher e a aparição de Jão Fera, a quem todos culpavam pelas mortes e desgraças acontecidas, mas que
fora, só ele sabia, o salvador de sua vida confrangiam-no.
Para diminuir a distância interposta e minorar o sofrimento da mulher, propôs uma ida à Corte. Ela o aceitou,
pois era, ademais, uma maneira de afastar a filha de Miguel. Por isso Linda queria tão afoitamente falar ao
rapaz, para lhe comunicar a partida. Quando ela o viu entre a horta, correu ao seu encontro, mas antes que
lhe pudesse falar, D. Ermelinda apareceu, acolheu a filha para si e dirigiu-se ao estupefato moço: “Diga adeus
a Linda, Miguel; mas para sempre! Ela não pode pertencer-lhe!...”
Miguel abraçou Linda e saiu soluçando. Linda afogava o choro no seio da mãe, que a furto enxugava também
uma lágrima.
XIII – O CONGO
As ruas da cidade da Constituição, outrora vila da Piracicaba, ferviam de gente alegre e agitada.
Lá chegaram Berta, Miguel e nhá Tudinha. Os irmãos de leite andavam arredios. Miguel, por um lado, sentia
ter traído seu primeiro amor, por outro tinha medo que ele ressurgisse. Berta queria consolar o amigo, mas
tinha medo que seus sentimentos por ele aflorassem a ela traísse a amizade de Linda.
Em meio à multidão, por um momento Berta entreviu, ao longe, o vulto de Jão Fera, que não via desde a cena
da chicotada e por quem, passado o horror da cena que presenciara, sentia apenas pena. Por um momento
chamou-o, até perceber que o rosto de Jão Fera aparecia atrás das grades da janela da prisão. Acabrunhado
pelo castigo da menina, sentindo que ela tinha asco por ele, o Bugre fora se entregar às autoridades de
Piracicaba.
Ao cair da tarde, houve o desfile do Congo, a festa em que escravos de toda a região brilhavam como
membros da antiga corte africana. Florência brilhava naquele dia, vestida ricamente e cavalgando o melhor
cavalo de D. Florinda. Rosa, da janela da casa onde estava a família Galvão, avistava a rival com inveja. Para
mais abrilhantar a festa, muitos vinham fantasiados de índios caiapós, enfeitando a festa negra, brilhosa de
vestimentas europeias e orientais, com adornos americanos.
Da mesma casa, Linda sobressaltou-se ao avistar, na calçada defronte, o vulto de Miguel. Mas logo viu Berta
perto dele e os ciúmes impediram-na de responder ao aceno da amiga. Percebendo o que ocorria, Berta
afastou-se do irmão de criação.
XIV – CONFISSÃO
Assim que Afonso avistou Berta na multidão, foi falar com ela. A moça desdenhou dele, que se escondia para
não ser visto pela mãe. Então o rapaz aproximou-se dela, de modo que fosse facilmente visto pelos pais.
Berta pedia notícias de Linda, mas um dos figurantes caiapós do cortejo, vestindo uma fantasia que encobria
seu rosto com tufos de mato, postou-se diante deles e disse a Afonso: “Teu pai matou a mãe dela; tu queres
matar a filha; é duas vezes!”.
De uma janela próxima, Luís Galvão assistia ao encontro de Miguel e Berta com saudades de seus tempos
de moço, quando corria atrás de Besita pelas ruas da cidade para furtar-lhe um olhar, um aperto de mão ou
um beijo. O olhar terno do marido não escapou a D. Ermelinda, que afundava na tristeza.
Mas mal lançara o dito misterioso à cara de Afonso, o caiapó arrastou-o até debaixo da janela onde estava
a família Galvão e disse ao pai do menino: “Teu sangue mau quer matar teu sangue bom! Toma cautela!...”
26
A cena passara-se rapidamente, e as atenções de todos se voltaram para gritos saídos da multidão que
anunciavam fuga da cadeia e assalto na vila. Dispersou-se a festa com o medo do povo. O subdelegado
constatou depois que, de fato, durante o cortejo do Congo, um prisioneiro arrebentara as grades da cadeia,
roubara uma fantasia de caiapó e sumira-se na multidão.
Meia hora depois, a família voltava para Santa Bárbara. D. Ermelinda, furiosa, vencia seus medos e queria
logo uma satisfação do marido pela vergonha que passara, mesmo que isso significasse sacrificar para
sempre suas ilusões de felicidade.
Ao se aproximarem da fazenda, apressava ela seu cavalo, seguida por Afonso. Luís Galvão vinha atrás, a trote
regular, acompanhado por Linda. De repente, no meio da estrada, saltou a figura de Zana, que se ajoelhou
perante os cavalos e, confundindo em sua loucura a figura de Afonso com a de Luís Galvão, implorou: “Pelo
amor de Deus, nhô Luís!... Não faça mal a Nhazinha!... Da outra vez ela chorou tanto! E depois veio o marido
e matou Nhazinha!... Por vida de seu pai, nhô Luís!... Eu lhe peço de joelhos!”
Era o bastante. O fazendeiro ordenou aos filhos que se dirigissem à fazenda. Fez um gesto à mulher, transida
de emoção, para segui-lo até as ruínas da casa onde vivera Besita. “Foi aqui!...” – disse sua voz trêmula,
iniciando a confissão.
XV – A ENJEITADA
Dois dias depois da festa do Congo, Jão aguardava Berta perto da tapera de Zana. Quando chegou à casa, a
menina abraçou Zana e suplicou a ela que lhe falasse da sua mãe. Mas a preta velha, perdida em sua loucura,
tartamudeava com a fisionomia pasma. Sabia Berta de suas verdadeiras origens?
Luís Galvão contara ali, à beira da tapera, todo o crime do seu passado, sem nada ocultar, mesmo que
sofrendo um vexame que lhe estrangulava a voz. D. Ermelinda ouviu tudo horrorizada, segurou sua decepção,
seu pranto, sua fúria, indo trancar-se no quarto da fazenda. O fazendeiro passou a noite fumando. Na manhã
seguinte, como dois fantasmas, se encontraram. Ela dirigiu um terno e sofrido olhar ao marido e lhe disse:
“– Meu amigo, é preciso reconhecer a sua... a nossa filha!...” Luís Galvão derramou-se em lágrimas.
D. Ermelinda armou um plano para poupar Berta do sofrimento pela verdade de suas origens. Procurou nhá
Tudinha e, com sua ajuda, fez a menina crer em uma história inventada: Luís Galvão e Besita haviam se
casado às escondidas do velho Guedes, mas a mãe de Berta morrera logo após o parto. Então, o fazendeiro
conhecera D. Ermelinda e, temendo que ela não aceitasse a criança, entregou-a para que nhá Tudinha
cuidasse. Quando indagada sobre Besita por Berta, nhá Tudinha apenas disse que ela vivera com Zana na
casa que se transformara em tapera. Uma voz íntima dizia a Berta que lhe mentiam, por isso procurou a
escrava.
Desesperada com a mudez da velha, lançou um olhar em volta e enxergou Jão Fera. Correu de encontro a
ele, que se lançou de joelhos e, para ser perdoado, jurou nunca mais matar ninguém, jogando longe suas
armas e beijando a cruz do bentinho que Berta lhe ofertava. Mas Zana correu, pegou a faca do Bugre e
forçava por enfiá-la em sua mão. O homem procurava acalmá-la: “Não careço mais, Zana!... Ela está vingada.
Posso morrer!”
Súbito, Berta lembrou-se das palavras do caiapó na vila e exigiu de Jão que lhe contasse toda a verdade
acerca de sua mãe. Hesitando, Jão Fera revelou-lhe tudo, ocultando apenas o que Berta adivinhou: seu amor
devotado a Besita. Berta alçou os olhos cheios de lágrimas para os céus. De repente, atirou-se nos braços do
Bugre e lhe disse: “– Não! Não!... exclamou ela. Meu pai és tu, que me recebeste dos braços de minha pobre
mãe, com seu último suspiro. És tu, que a adoravas, como a uma santa; e quando ela deixou este mundo,
27
não tiveste no coração outro sentimento mais, senão ódio a todos, menos a mim, que te lembrava ela. Oh! Eu
compreendo agora, Jão, o que te fez mau!... Mas fiquei eu neste mundo, em lugar dela, para fazer-te bom!...”
XVI – ALMA SÓROR
Cai o sol.
Berta está sentada, cosendo à sombra da casa de nhá Tudinha, observada com esgares de felicidade por
Zana e contemplada por Brás. Perto, Jão prepara a roça para o feijoal. Miguel aparece à porta da casa,
desvencilhando-se do abraço em que o tem a mãe chorosa.
Berta havia se recusado a aceitar a paternidade de Luís Galvão. Como ele e D. Ermelinda insistissem, pediu
a ele que em seu lugar tomasse seu irmão de leite e concordasse com o amor de Linda e Miguel, o que o
fazendeiro e sua esposa não souberam recusar. Combinou-se que Miguel iria para São Paulo, continuar os
estudos, e dois anos depois se casaria com Linda, quando então toda a família devia mudar-se para a capital
da província. Luís Galvão pediu ao rapaz que, ao se despedir da mãe, tentasse convencer Berta mais uma
vez a acompanhá-los. Essa possibilidade angustiava a todos que viviam em roda dela.
Miguel e Berta saíram para conversar, a caminho das Palmas, onde Miguel pernoitaria. Ela sofria com a
partida daquele irmão que, ao fim, descobrira que amava mais que como irmão. Ele relembrou suas peraltices
de crianças e seus sonhos de conservar-se para sempre ali, junto da mãe e casado com Berta; sonhos que
ela tratara de desfazer entregando-o a Linda. Quanto mais se afastavam da casa e se aproximavam da
fazenda, mais o desespero se abatia sobre Jão Fera, que se segurava para não atirar-se aos pés da menina.
Zana gesticulava e produzia sons desesperados, atirando-se sobre a grama.
Miguel atraiu Berta para si. Ela se deixou enlaçar e pousou a cabeça no ombro do amigo, fechando os olhos,
embalada por um sonho fagueiro. Nesse momento, Brás caiu ao chão em violenta convulsão, soltando gritos
estridentes. Berta separou-se de Miguel e correu para ampará-lo, despedindo-se do amigo: “Não, Miguel. Lá
todos são felizes! Meu lugar é aqui, onde todos sofrem.”
Voltou para casa, tomou o parvo em seus braços para ajudá-lo e lhe disse: “Eu sou Til!... Til só!...”.
Compreendendo a significação profunda dessas palavras, o idiota acalmou-se. Jão Fera secava as lágrimas
que não conseguia prender em seu peito. Berta entrou em casa para consolar nhá Tudinha e logo a placidez
restabeleceu-se na casa.
“Quando o sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepúsculo, e com
os olhos engolfados na primeira estrela, rezou a ave-maria, que repetiam, ajoelhados a seus pés, o idiota, a
louca e o facínora remido.
Como as flores que nascem nos despenhadeiros e algares, onde não penetram os esplendores da natureza,
a alma de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas, subvertidas pela
desgraça.
Era a flor da caridade, alma sóror.”
28
3. Foco narrativo
O romance tem foco narrativo em terceira pessoa. O narrador é onisciente, apresentando frequentemente
ao leitor os pensamentos e sentimentos dos personagens. Outras vezes, analisa esses pensamentos,
sentimentos e os atos dos personagens, mas José de Alencar manipula habilmente o foco narrativo de modo
que mantenham o leitor em constante suspense quanto ao que acontecerá na história.
Como é comum nos romances de folhetim, em que o narrador procurar estabelecer uma empatia com o(a)
leitor(a), em algumas passagens curtas, a narração em primeira pessoa substitui a de terceira, imiscuindo-se
o narrador na história ao mesmo tempo em que se aproxima do(a) leitor(a). Por exemplo, no capítulo XI do
Primeiro Volume, o narrador dirige-se assim ao leitor: “De Berta, que direi?”.
A habilidade de Alencar para manipular o foco narrativo aparece principalmente na aplicação de dois recursos.
O primeiro deles é a narração da mesma cena de mais de uma perspectiva, escondendo na primeira
narração detalhes importantes para desvendar os acontecimentos, mas que só serão revelados ao leitor na
segunda narração.
Apresentamos aqui dois exemplos disso. A narração das cenas do estupro e assassinato de Besita (o
grande segredo que une vários personagens) é feita, inicialmente, na descrição da mímica de Zana na
tapera abandonada (capítulo III, “A visão”, Segundo Volume), mas sem revelar o sentido dos gestos da velha
escrava, aguçando assim a curiosidade do leitor. Depois, mais tarde, o próprio narrador desvelará o segredo
da origem de Berta, nos capítulos III (“Bebê”) e IV (“Órfã”) do Terceiro Volume. Mesmo com a dupla narração,
a origem de Berta será desconhecida pela protagonista até os capítulos finais da narrativa, quando, então,
Jão Fera revelará a ela toda a verdade. Esse episódio original ecoará por toda a narrativa na vida de todos os
envolvidos, assim como Zana o ecoa em sua mímica, até que Besita seja vingada e Berta cumpra seu destino.
Outro exemplo é a cena do transe envolvendo Berta e a cascavel, narrada pela primeira vez, brilhantemente,
como vista por um personagem (Afonso) pelo buraco da fechadura nocapítulo VII, “Fascinação”, da Terceira
Parte, de uma perspectiva limitada e angustiante. Logo em seguida, no capítulo VIII, “Letargo”, da Terceira
Parte, a mesma cena é narrada do ponto de vista do narrador onisciente, que tudo revela e esclarece ao leitor.
O outro recurso é o que se chama de simultaneísmo, processo que consiste em narrar, sem transição,
acontecimentos que se desenrolam ao mesmo tempo, mas em lugares diferentes. Isso é feito por meio do
que o crítico Ivan Teixeira chamou de “intersecção de cenas”. Por exemplo: durante a narração de uma cena,
algum acontecimento estranho (barulhos como gritos, assovios, trovões etc.; movimentos de vultos, animais,
29
folhagens etc.) desvia a atenção dos personagens, inquietando, intrigando ou assustando-os. Mais tarde,
a causa ou origem desses acontecimentos é explicada ao leitor, iniciando uma nova cena. José de Alencar
consegue entrelaçar, assim, magistralmente, por meio da simultaneidade, a ação de vários personagens.
Assim o definiu e analisou o mesmo Ivan Teixeira:
“Tal processo é conhecido como simultaneísmo, porque apresenta eventos que acontecem no mesmo
instante, mas em locais diferentes. Além da ilusão de realismo, esse procedimento artístico estimula o mistério
e acentua o suspense da ação. Associa-se à mobilidade cronológica e à agilidade espacial, propriedades
singulares dos romances alencarianos.”
Tanto a narração da mesma cena de mais de uma perspectiva quanto o simultaneísmo técnicas literárias
tem por finalidade seduzir o leitor e mantê-lo preso à narrativa, objetivos fundamentais da narrativa romântica
de folhetim, como analisaremos mais adiante no item 7 – Técnica de Folhetim.
4. Personagens
Em Til, como você deve ter percebido na leitura do resumo acima, temos uma grande quantidade de
personagens, muitos deles com papel de relevo na narrativa. Essa vasta galeria de personalidades pode ser
vista de duas maneiras complementares.
Em primeiro lugar, enxergamos aqui uma variedade de tipos humanos comuns na literatura romântica: a
mulher idealizada (física, espiritual ou moralmente), os indivíduos parvos, embrutecidos ou animalizados
por motivos de nascimento ou como reação à violência do destino, os vilões sem traço de bondade, os
adolescentes apaixonados etc.
Em segundo lugar, compõe-se um painel dos tipos “regionais” do interior brasileiro: o fazendeiro bem sucedido,
o bugre de origem incerta, os caipiras paulistas, os valentões, os escravos da roça, as crianças pobres e ricas
criadas misturadas etc.
A seguir, apresentaremos os personagens, analisando com atenção aqueles mais relevantes.
Til, Berta [Inhá]
Contar a transformação de “Berta” em “Til” pode ser considerado o objetivo principal dos fatos narrados no
romance.
Nas primeiras páginas, a menina aparece nomeada apenas como “Inhá”1. O nome “Berta” é usado pela
primeira vez apenas no capítulo XI do Primeiro Volume. Ela tem cerca de 15 anos no início da narrativa; está,
portanto, naquela fase da vida que hoje chamamos de adolescência, na transição da infância para a idade
adulta. Esse estado de transição é sintetizado brilhantemente na sua descrição como uma “ninfa celeste a
romper a argila de sua formosa crisálida”, entendendo-se “ninfa” como estado intermediário entre a larva
(a criança) e o inseto adulto (a mulher) e como entidade que habita rios, bosques e montes, geralmente
representada por uma mulher jovem e bonita, que é como ela será predominantemente caracterizada nesse
momento: a criança de olhar “brejeiro” com “trejeito garoto de uma caipirinha” mal consegue disfarçar as
formas de uma bela mulher a desabrochar no campo. Vejamos:
1
Os moços tratavam-se por “Nhô” e “Inhá”, daí o espanto de Berta com a maneira como Afonso a trata na discussão do capítulo III
do Primeiro Volume.
30
“Era ela de pequena estatura e tão delgada e flexível no talhe, que se dobrava como o junco da várzea. As formas
da graciosa pubescência, que um corpinho justo debuxaria em doce e palpitante relevo, as dissimulava o frouxo
corte de uma jaqueta de flanela escarlate com mangas compridas, e desabotoada sobre um camisote liso, cujos
largos colarinhos se rebatiam sobre os ombros, à feição dos que usavam então os meninos de escola.
Servia-lhe de toucado um chapéu de palha de coco trançada, sob o qual escondia os lindos cabelos negros
cacheados, que às vezes, com os saltos, escapavam da prisão e vinham folgar sobre as espáduas. Calçava grossos
coturnos de couro de veado, mas tão altos que mais pareciam botas [...]; onde aliás afogava-se o pezinho buliçoso.
[...] Se a estreita saia de chita dava a esse vestuário um traço feminino, acusando um contorno harmonioso, por
isso mesmo ela em seus momentos de luta com a natureza parecia caprichar em destruir aquele vestígio de seu
sexo. Os pulos que soltava, a firmeza de seu passo gentil que ela de propósito fazia rijo, imprimiam com efeito certa
aspereza e nervura a seus movimentos sempre encantadores, apesar de tudo.
Os grandes olhos, negros, claros e serenos, como um lago cristalino imerso na sombra, não podiam negar que
fossem de mulher: tinham a diáfana profundidade do céu, cheia de enlevos e mistérios.
A boca mimosa e breve, conhecia-se que fora vazada no molde do beijo e do sorriso. Mas quando o brinco
iluminava essa fisionomia, e o capricho quebrava-lhe a harmonia das linhas do suave perfil, era cobrir-se com a
máscara do rapazinho estouvado, que ela teria sido sem dúvida, se a natureza não lhe trocasse o destino.
Nesse prisma da lindeza de Inhá reflete-se a sua índole. Aquela alma tem facetas como o diamante; iria-se e acende
uma cor ou outra, conforme o raio de luz que a fere.
Contradição viva, seu gênio é o ser e o não ser. Busquem nela a graça da moça e encontrarão o estouvamento
do menino; porém mal se apercebam da ilusão, que já a imagem da mulher despontará em toda sua esplêndida
fascinação. A antítese banal do anjo-demônio torna-se realidade nela, em quem se cambiam no sorriso ou no
olhar a serenidade celeste com os fulvos lampejos da paixão, à semelhança do firmamento onde ao radiante matiz
da aurora sucedem os fulgores sinistros da procela.
[...]
E assim é tudo nela; de contraste em contraste, mudando a cada instante, sua existência tem a constância da
volubilidade. Na vaga flutuação dessa alma, como no seio da onda, se desenha o mundo que a cerca; a sombra
apaga a luz; uma forma devanece a outra; ela é a imagem de tudo, menos de si própria.” (Capítulo 3)
Repare-se também o quanto a caracterização inicial mostra Berta harmoniosamente inserida no ambiente de
natureza esplendorosa que a cerca. Tal como ocorrera em Iracema, aqui as comparações e metáforas usadas
para descrevê-la recorrem predominantemente, às imagens de flores, resumidas principalmente no epíteto
“flor da mocidade”.
Mas no desenrolar da narrativa será menos a caracterização física e mais a moral, espiritual e psicológica
de Berta que importará. Principalmente a partir do Segundo Volume, seu amor e dedicação, atração mesmo,
pelos seres sofredores (a galinha sura, o burrico ferido, o Brás, a Zana, o Jão Fera) ganhará cada vez mais
atenção por parte do narrador. Berta será cada vez mais a Til, ou seja, aquela personalidade que nasceu com
a finalidade de levar a luz do entendimento e da felicidade às trevas da ignorância e da bestialidade em que
vivia Brás, o idiota.
A personalidade incomum de Berta/Til, dotada de dons apresentados como paranormais (como o encantamento
da serpente2, a capacidade de acalmar Brás e uma intuição poderosa), é misteriosamente pressentida por
2
Nesta cena, confundem-se Berta-mulher bonita e sedutora e a Berta-virgem destinada à redenção. A descrição da cena por
Alencar mistura elementos que remetem a pecado, milagre, erotismo e medo, fascinação e desprendimento do mundo material.
31
Zana (a quem está ligada pelos acontecimentos trágicos do seu passado) e pelas pretas velhas da fazenda.
O destino dessa personalidade terá de ser incomum como ela.
A menina-moça – que a princípio parecia destinada a se envolver em uma história de amor complicada na qual
teria de se decidir entre Miguel e Afonso – escolherá não o caminho do amor-paixão, mas o do amor piedoso
pelos que sofrem e dela precisam, tornando-se ao final uma alma sóror (“alma fraterna”, “alma caridosa”).
A resistência de Berta a sua atração por Miguel, descoberta ou assumida após praticamente forçá-lo a apaixonarse por Linda (contra a vontade do rapaz, que amava a irmã de criação), é um sinal de sua predestinação a
uma forma superior de amor. Sua devoção à felicidade alheia e seu sentimento de responsabilidade não para
com a sua felicidade, mas para com a de muitos, encaminham-na para a beatificação.
De “flor da mocidade”, no capítulo I, Primeiro Volume, primeiro da narrativa, para “flor da caridade”, no capítulo
XVI, Quarto Volume, último da narrativa, ela cumprirá seu destino de descer à escuridão do inferno da violência
e da loucura para resgatar de lá seres como Jão Fera, Brás e Zana.
“Como as flores que nascem nos despenhadeiros e algares, onde não penetram os esplendores da natureza,
a alma de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas, subvertidas pela
desgraça.”
Esse destino será selado com a mudança de nome (prática comum entre os que assumem a vida mística) de
Berta para Til.
Na caracterização física e psicológica de alguns personagens de Til, percebe-se a adoção de um
procedimento que certamente é influência de autores como o francês Victor Hugo e o português
Alexandre Herculano (este, aliás, é influência de segunda mão, uma vez que também foi influenciado
por aquele): a criação de tipos incomuns, estranhos pelo que tem de grotescos e loucos, gerando certa
repulsa e medo nos leitores. São exemplos desses tipos personagens como Quasímodo (de O corcunda
de Notre Dame, de Victor Hugo) ou Dom Bias (de O bobo, de Alexandre Herculano).
Geralmente, esses personagens têm origem obscura, são pobres e miseráveis, movidos por sentimentos
violentos, e agem agressivamente em suas relações. Mas a eles está reservado um papel importante
na trama e certa grandeza moral nos seus comportamentos hesitantes – essa hesitação, causada pelo
embate entre uma natureza “grotesca” e uma “alma” que tem um quê de “sublime”, aliás, é que, em
muitos casos, os torna convincentes para o leitor. Em Til, pertencem a essa categoria personagens
fundamentais: Jão Fera, Brás e Zana, dos quais trataremos a seguir.
Jão Fera
Jão Fera aparece na narrativa, no primeiro capítulo, logo após Berta e Miguel. Com o talento para descrever
tipos humanos e vestimentas que é sua característica, José de Alencar apresenta-o admiravelmente:
“A orla do mato assomara o vulto de um homem de grande estatura e vigorosa compleição, vestido com uma
camisola de baeta preta, que lhe caía sobre as calças de algodão riscado. Apertava-lhe a cintura rija e larga faixa do
Berta sente-se ora ela mesma, ora a cascavel, mas é preciso que a mulher domine a serpente, como a moça o desejo, o ser
humano o demônio, para que tudo termine bem.
32
couro mosqueado do cascavel, onde se via atravessada a longa faca de ponta com bainha de sola e cabo de osso
grosseiramente lavrado.
Em uma das bandoleiras trazia o polvarinho e munição; na outra suspendia um bacamarte, cuja boca negra e
sinistra aparecia-lhe na altura do joelho esquerdo, como a face de um dragão que lhe servisse de rafeiro.
As mangas da camisa, tinha-as enroladas até o cotovelo, bem como a parte inferior das calças que arregaçava cerca
de um palmo. Usava de alpargatas de couro cru e chapéu mineiro afunilado, cuja aba larga e abatida ocultava-lhe
grande parte da fisionomia.”
Logo em seguida, o Bugre é chamado de “facínora” e comparado a animais como “onça” e “abutre”. Durante
boa parte da narrativa, é por meio de comparações e metáforas que remetem a animais que ele será
caracterizado:
“As fulvas papilas que se encovavam pelas têmporas, como tigres nas furnas, saltaram das órbitas, dilatadas por um
fluido espesso que tinha a fosforescência felina. De ordinário avincava-lhe a fronte uma ruga saliente, que depois
de fender-lhe o sobrolho, partia-se em duas plicas profundas como gilvazes, a lhe cortarem o rosto. A temulência
da paixão injetando os músculos e insuflando as narinas, apagou todos aqueles sulcos rasgados pela sanha; e até
os lábios sempre cosidos à feição de uma cicatriz, agora túrgidos arregaçavam, mostrando pela estreita comissura
os dentes agudos.”
“Tudo nesse homem, a dor como a alegria, a raiva como o amor, a gula como a embriaguez, revestia a natureza da
fera; tinha fauce para devorar, e garras que lhe dilaceravam o chão da alma, como a pata da suçuarana escarva a
terra no arremessar do pulo.”
“A fauce hiante do tigre, sedento de sangue, ou a língua bífida da cascavel, a silvar, não respirava a sanha e
ferocidade que desprendia-se daquela fisionomia intumescida pela fúria.”
Mas Jão Fera, apesar de sua violência e, em muitos casos, crueldade e irracionalidade, possui atributos
positivos dos heróis de aventura: é corajoso, valente, habilidoso, possui força, agilidade e sangue frio incomuns
etc. Talvez seja, psicologicamente, o mais bem trabalhado personagem na narrativa, pois sua personalidade
está sempre conflitada entre o comportamento impulsivo, instintivo, animalesco e os valores de pureza de
sentimento e idealização e fidelidade às pessoas amadas.
É um assassino profissional, mas um homem de palavra inquebrantável. Mesmo contra a vontade, uma
vez que já recebera pelo trabalho, promete a Ribeiro/Barroso que cumprirá o trato de matar Luís Galvão ou
lhe devolverá a quantia recebida. Para isso, uma vez que promete a Berta não fazer mal ao fazendeiro das
Palmas, é capaz de entregar-se ao Aguiar, fazendeiro de Campinas que queria vingar-se de um crime que
cometera.
Até o fim, permanece fiel ao seu amor de juventude por Besita, guardando a imagem da mulher como a de
uma santa que, do outro mundo, protege a filha (Berta) de seus impulsos sensuais. No final, após resistir
a esses impulsos animalescos para se apoderar de Berta, abandona a profissão de matador e dedica-se a
trabalhar na roça (coisa a que nunca antes se submetera...) para gozar a felicidade do reconhecimento de Til
pelos seus esforços:
“– Não! Não!... exclamou ela. Meu pai és tu, que me recebeste dos braços de minha pobre mãe, com seu último
suspiro. És tu, que a adoravas, como a uma santa; e quando ela deixou este mundo, não tiveste no coração outro
sentimento mais, senão ódio a todos, menos a mim, que te lembrava ela. Oh! Eu compreendo agora, Jão, o que te
fez mau!... Mas fiquei eu neste mundo, em lugar dela, para fazer-te bom!...”
33
Flávio Aguiar define a relação entre Jão Fera e Berta como uma “versão caipira” do mito da Bela e a Fera. É
claro: o desfecho do romance não é o mesmo do mito, uma vez que a história aqui se desenrola em direção a
ressaltar o amor místico, não a paixão. Mas, assim como a Fera do conto transforma-se fisicamente, ao final
da história, em um belo príncipe, o caráter de Jão irá se transformar, fazendo-o superar o ódio e abandonar
a violência. Também Berta, como a Bela, perderá o medo e a desconfiança da Fera para, progressivamente,
descobrir sua íntima bondade e abandonar o mundo para ficar ao seu lado para sempre.
Brás
Sobrinho de Luís Galvão, criado por ele e pela esposa desde criança, sofre de problemas mentais.
“Era feio, e não só isso, porém mal amanhado e descomposto em seus gestos. Tinha um ar pasmo que embotavalhe a fisionomia; e da pupila baça coava-se um olhar morno, a divagar pelo espaço com expressão indiferente e
parva.” [...] Expressava-se com “uma rouca explosão da voz, despedida em ásperas e bruscas articulações, como o
rugido de um animal, ou a blateração de um surdo-mudo”.
Assim como ocorre com Jão Fera, Brás é descrito frequentemente por meio da similaridade com animais: anda
curvado, de maneira desengonçada, rastejando (os répteis são a comparação mais empregada), aos saltos
ou pulos, vive se escondendo em tocas, buracos ou em cima de árvores. Possui tal intimidade com animais,
seja no sentido de fazer-lhes maldade (como os grilos que gosta de espetar), seja no sentido de dominá-los
facilmente (como no caso da serpente que captura para atirar ao quarto de Linda) que a identificação é quase
completa.
Berta fará o “milagre” de “plasmar do mostrengo um ser humano”, ação definida pelo narrador como “obra
sublime”3. Til tem por Berta um sentimento de adoração; não é à toa que a primeira oração que aprende de
cor é a “Salve Rainha”4: ela mostra o quanto o rapaz vê a moça como uma divindade.
O título do romance vem do estratagema utilizado por Berta para incentivar o rapaz a aprender as primeiras
letras: ciente da admiração e amor que desperta no rapaz e da fascinação do alienado pelo símbolo do
alfabeto, ela adota-o como nome que estabelece uma intimidade única entre os dois. Inicialmente, ela é Til
apenas para Brás.
Uma fala dela ao tentar acalmar Brás em um ataque de epilepsia que o acomete ao final (causado pelo
desespero de vê-la se afastando com Miguel em direção à sede da Fazenda das Palmas), concretiza a
definitiva transformação de Berta em Til, ou seja de moça faceira em alma sóror:
“Correu então para o mísero idiota e sentando-se na grama para deitá-lo ao colo, ocupou-se em afagá-lo.
Quando moderou o acesso e que ele pode ouvi-la, falou-lhe com profunda comoção:
– Eu sou Til!... Til só!...
Compreendeu Brás a significação destas palavras, e adivinhou quanta sublime abnegação exprimiam elas?”
3
4
A transformação de Brás de ser bestial (no limite entre réptil e ser humano) em capaz de entender código abstrato (a linguagem)
alegoriza a leitura como elemento de civilização, que ilumina as Trevas com as Luzes.
A “Salve Rainha” é uma das mais tradicionais orações do Catolicismo: “Salve, Rainha, mãe de misericórdia,/ vida, doçura,
esperança nossa, salve! / A vós bradamos os degredados filhos de Eva. / A vós suspiramos, gemendo e chorando / neste vale de
lágrimas. / Eia, pois, advogada nossa, / esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei, / e depois deste desterro mostrai-nos
Jesus, / bendito fruto do vosso ventre, / Ó clemente, ó piedosa, / ó doce sempre Virgem Maria”.
34
Zana
A escrava velha e louca que vive sozinha em um casebre em ruínas (antiga morada de Besita, onde ocorreram
o estupro e o assassinato da mãe de Berta e onde ela nasceu), é personagem importantíssima, profundamente
ligada a Berta porque foi testemunha dos horrores do passado. Traumatizada pelo crime que presenciou,
ecoa na sua loucura e em seus gestos os fatos terríveis. Seu espírito será pacificado pela vingança de Jão
Fera, ao assassinar o Ribeiro, e ela poderá abandonar então as ruínas que a prendem ao passado.
Luís Galvão
O proprietário da fazenda das Palmas é um cavalheiro cheio de méritos: homem bonito de aspecto, inteligente,
franco e jovial, empreendedor de sucesso. Mas atormenta-o a ignomínia que praticou em seu passado, da
qual tenta se livrar “comprando” a tranquilidade de sua consciência ao “assumir”, em seu íntimo, Berta como
sua herdeira. Repare-se que Luís é incapaz de manchar sua imagem pública, o que equivale a dizer que
sua posição social é mais importante que sua consciência moral. Afinal, o “segredo” vergonhoso do passado
não era assim tão bem guardado: os homens da região comentam-no abertamente na noite da Festa de
São João e D. Ermelinda é tomada pela desconfiança. Mesmo assim, ele assiste impassível ao desmanche
das relações dentro da família burguesa perfeita; sua única atitude é propor à esposa uma viagem ao Rio
de Janeiro, ou seja, uma fuga do espaço da vergonha e dos que dela sabem. Talvez isso, pelo menos, alivie
o desconforto familiar e social. Será necessária a intervenção de Jão Fera durante a Festa do Congo em
Piracicaba e a ação tresloucada de Zana atirando-se à frente de seu cavalo durante o retorno à fazenda para
que ele decida, enfim, confessar seu crime à mulher.
Miguel
Miguel é forte e impetuoso como homem (é um caçador, não teme enfrentar Jão Fera), mas no amor porta-se
como alguém submisso, que deixa sua vontade se dobrar e se arrastar facilmente por Berta, a ponto de ela
convencê-lo de que ama não a ela, mas a Linda. Ao final, quando parte para São Paulo com o intuito de se
“civilizar”, admite para Berta, na derradeira conversa que mantêm, que cumpre o destino que nunca sonhou
ou imaginou: o que gostaria mesmo era de levar uma vida simples, ao lado de sua mãe e de sua paixão de
infância.
Afonso
Irmão gêmeo de Linda; muito parecido com a irmã, mas herdou do pai a “a índole jovial” e o “riso cordial e
folgazão”. Como o pai em sua juventude, é impetuoso no amor: não se avexa de provocar Berta e mesmo de
tentar forçá-la a dar-lhe um beijo. Em sua atração incestuosa (inconsciente) pela irmã (Berta) repete a atração
do pai por Besita. A possibilidade do incesto será escancarada por Jão Fera, disfarçado, na cena da Festa do
Congo em Piracicaba:
“Nesse instante um caiapó de alto porte e compleição robusta, separado do bando que já ia longe de envolta com
a cavalgata, atravessando a rua, parou defronte dos dois moços e afincou-se a observá-los.
De repente saltou em frente de Afonso e ouviram-se estas palavras, que rompiam da croça espessa, como da
brenha escapa o rugido da fera:
– Teu pai matou a mãe dela; tu queres matar a filha; é duas vezes!
35
Desde alguns momentos o olhar de Luís Galvão descobrira da janela fronteira o filho a falar com Berta, e não se
arredara mais do grupo. Aquele quadro brilhante da juventude, borrifado com os sorrisos de alegria e perfumado
com as fagueiras primícias do coração, despertavam nele reminiscências tão suaves, dormidas no fundo da lama!
Lembrava-se das festas de outrora, quando era moço como o filho, e ali, na mesma vila de Piracicaba, tantas vezes
escapulia da família para seguir o rancho de moças onde ia Besita, e à surrelfa apertar-lhe a mão, ou trocar uma
palavra balbuciada a medo.
Para mais avivar as cores a essa tela da mocidade, que os anos tinham desbotado, ressurgiam aí diante de seus olhos as
próprias figuras do gracioso painel; ele retratado na pessoa de Afonso; ela, revivendo na gentileza de Berta.
[...]
Mal lançara a Afonso o dito misterioso que lhe prorrompeu dos lábios, o caiapó travando com irresistível impulso
do braço do moço, arrancou-o do lugar onde estava e trouxe-o até junto da janela de D. Ermelinda.
Aí, afrontando-se com Luís Galvão, apontou para o filho, e proferiu estas palavras, obscuras como as outras:
– Teu sangue mau quer matar teu sangue bom! Toma cautela!...”
Linda
A irmã gêmea de Afonso é uma das personagens mais inexpressivas da narrativa.
“Tinha a beleza de Linda um doce alumbre de melancolia, que não era tristeza, pois coavam-se através dos inefáveis
contentamentos de sua alma; era sim matiz, que lhe aveludava a graça e influía-lhe um mavioso enlevo. Irmã das
flores que vivem nos recessos da floresta, onde se coalham em sombra luminosa os raios filtrados pelo crivo das
folhas, respira essa beleza o perfume casto da violeta e da baunilha.”
Apesar da beleza (“grandes olhos pardos cheios de uma ternura ebriante”, “cabelos castanhos”, “mimosa
cútis da face”, lábios que são um “botão de rosa”, “sorriso encantador, que derramava sobre o formoso
semblante da menina uma luz de leite”), suas ações limitam-se a lamentar que Miguel não corresponda aos
seus sentimentos. É necessária a ação de Berta para aproximá-los. Ao final, quando consegue atrair Miguel,
todo seu amor não será capaz de opor qualquer resistência aos planos da mãe de enviá-la para a Corte para
afastá-la do amado.
D. Ermelinda
A mulher de Luís Galvão é uma “[...] senhora de 38 anos, e não formosa; porém tão prendada de inata
elegância, que seus traços e toda sua pessoa tomava um particular realce. Se não tinha bonitos olhos,
ninguém sabia olhar como ela; a boca sem primores de forma, enflorava-se com o sorriso inteligente e a
palavra brilhante”.
Filha de um capitalista de Campinas, D. Ermelinda recebera, em um colégio inglês da corte, “educação
esmerada, que desenvolveu a natural distinção de seu espírito.” O bom gosto aprendido na capital carioca
aliava-se, nela, à educação de “apuro escocês” e “graça francesa”.
Em resumo, o dote e a fineza compensavam a falta de beleza. D. Ermelinda é um exemplo de senhora distinta
que tudo faz para manter as aparências e a harmonia do lar burguês: aceita o grotesco Brás à mesa porque
é sua obrigação familiar de boa esposa; sequer indaga da fama de sedutor do marido na juventude até que
tropeça no crime vergonhoso do marido em uma conversa fortuita durante um encontro social; procura refrear
36
seus ímpetos de pedir satisfações e dedica-se a cortar imediatamente a possibilidade da filha rebaixar a
família com um casamento indigno de sua posição social; quando lhe é revelado o crime do passado, aceita-o,
perdoa-o e tenta inventar uma mentira que, sob a desculpa de poupar a enjeitada de se envergonhar, na
verdade protege o marido; enjeitada pela enjeitada (Berta recusa o pai e a família), é obrigada a atender a um
pedido desta: aceitar o casamento da filha com Miguel.
Como diria Mário Lago, D. Ermelinda é que era mulher de verdade...
Ribeiro / Barroso
O homem que se casa com Besita atraído pela sua beleza, depois a abandona à própria sorte para voltar
anos depois e assassiná-la, retorna 15 anos depois para terminar de cumprir sua vingança. É um homem “vil
no sentido mesquinho e infame da vileza” (como diria Fernando Pessoa/Álvaro de Campos), ou seja, um vilão
feito sob encomenda para os exageros de um romance romântico. Ele assim é descrito ao início da narrativa:
“Orçava pelos cinquenta anos; barroso da cara que lhe cobria uma barba ruiva e áspera como as cerdas da
capivara; de mediana estatura e excessivamente magro; vinha trajado ao uso da terra: chapéu mineiro de
feltro pardo, sob o qual via-se o lenço de Alcobaça que lhe servia de rebuço; poncho de pano azul forrado de
baetilha, com a gola de belbute levantada; botas de bezerro armadas de chilenas de prata.”.
Gonçalo Pinta
Na verdade, gostava de ser chamado (e a si chamava) de Gonçalo Suçuarana, na tentativa de aproximar
sua imagem à das onças ferozes. É o típico valentão falastrão; o seu ódio a Jão Fera vem de sua inveja:
o Bugre é o homem valente, impávido e feroz que ele finge ser. A covardia como age sempre, raramente
assumindo a frente das ações de violência que arma, define sua pessoa.
Monjolo
Outro personagem descrito com feições animalescas: “Os lanhos das faces indicavam a casta monjola do
africano, em cujo rosto se desenhava a astúcia do gambá e alguma coisa do focinho deste animal.” Participa
da trama armada por Ribeiro/Barroso para assassinar Luís Galvão; a princípio, pretendendo “senão gimbo
(dinheiro) muito para comprar fumo e cachaça”. Mas, durante a execução do plano, pensa em se livrar de
Faustino para se apoderar da escrava Rosa.
Faustino
Escravo da Fazenda das Palmas, trai seu senhor e se alia a Ribeiro/Barroso e Gonçalo Pinta no plano
para assassiná-lo. Em troca pede sua liberdade, a posse de sua amada Rosa (mucama na casa grande da
fazenda) e a morte de Amâncio - pajem por quem sua amada Rosa se derrete de amores.
Rosa
Mucama (escrava para os serviços de casa, geralmente mais próxima das sinhás e de maior confiança dos
senhores) da casa grande da Fazenda das Palmas, é apaixonada pelo Amâncio e, por causa dele, envolve-se
em uma violenta briga com a escrava Florência.
37
Florência
Escrava da roça (ou seja, que trabalhava no campo), apaixonada por Faustino, é descrita como uma “estátua
de Juno” (na mitologia romana, esposa de Júpiter, rainha dos deuses do Olimpo, bela e ciumenta). Tem seu
momento de glória ao desfilar como Rainha do Congo nos festejos de rua em Piracicaba.
Amâncio
Amâncio é um pajem da Fazenda das Palmas. Como usado no romance, o termo designa um escravo de
confiança, usado em serviços da casa grande, que geralmente acompanhava o senhor em suas andanças.
Chico Tinguá
Dono da precária venda e pousada que fica na estrada entre Santa Bárbara e Campinas. Em seu
estabelecimento, se armam e desarmam os negócios de vingança e morte na região. É um homem de
confiança de Jão Fera, seu informante e mensageiro. Ele e sua companheira, nhá Nica, personificam no
romance a proverbial preguiça caipira (a esse respeito, leia o capítulo II, “A pousada”, do Segundo Volume).
Nhá Tudinha
A mãe de criação de Berta tem, como todos à volta da menina, um amor especial pela filha que amamentou
após os bárbaros acontecimentos que vitimaram Besita. Seu falecido marido fora um homem rico, levado à
falência por maus negócios e juros de bancos. Como era amigo da família Galvão, a mulher e o filho Miguel
passaram a viver na Fazenda das Palmas como agregados. É uma mulher agitada e sempre de bom humor:
“Tinha essa mulherzinha baixa e rolha tal prurido da pele que não podia estar um momento sossegada. Por força
que se havia de ocupar alguma coisa; e para que lhe rendesse a tarefa, muitas vezes desfazia o que já estava
pronto, a fim de ter o gosto de arranjar de novo.
Nunca se sentia tão feliz e contente como nos dias em que a apoquentavam de trabalho. Correr daqui para ali,
revolver os cantos da casa, abrir e fechar portas, acudir da varanda à cozinha, e dar vazão a tudo; nisso consistia o
seu maior prazer nesse mundo.
Quem a visse naquela dobadoura da manhã à noite, ficaria admirado de seu ar lépido e agudo; pois decerto não
se podia esperar semelhante volubilidade naquele corpo rechonchudo, com suas perninhas curtas e socadas.”
Quicé
O escravo inválido, curvado e desdentado; revela a Berta o estratagema de Pinta e Filipe para apanhar Jão
Fera. Seu apelido é o nome por que se chamava uma faca velha, sem cabo e sem corte. Ele é vítima de uma
das cenas mais cômicas, pelo exagero, da narrativa, que acontece quando, junto com Berta, são perseguidos
por um bando de caitutus. Confira você mesmo:
“Devorando a distância na corrida veloz, saltando por cima dos magotes que encontrava em seu caminho, e às
vezes fazendo do próprio lombo das feras chão onde pisar, Jão precipitou-se enfim no lugar onde Berta e o negro
velho aguardavam a morte contritos.
38
Suspendendo a menina com o braço esquerdo, enquanto brandia o direito a longa faca apunhada, o vigoroso
capanga, aproveitando-se do espanto das feras ante sua audácia, arrojou-se para a árvore mais próxima, onde
poderia colocar a menina a salvo de perigo.
Já ele transpunha a distância, quando ouviu-se um grito dilacerante: o negro velho agitando convulsivamente os
braços debateu-se no meio dos queixadas, como um náufrago no torvelinho das ondas, e estrebuchou.
– Jão! exclamou Berta angustiada, mostrando o corpo do africano que tombava.
– Não!
Perseguido pelas feras, bem via o capanga que não tinha tempo a perder; a menor demora podia ser fatal. Os
queixadas eram sanhudos e em numeroso bando. Se o envolvessem, tolhido como estava de um braço, corria
grande risco Berta, a quem a morte dele Jão, longe de salvar, roubaria a última esperança.
Por isso recusou-se ao pedido da menina.
– Pois eu não o abandono!
Retorquindo-lhe por esse modo, Berta soltou-se do braço do Bugre, para correr ao negro, como se ela, frágil
menina, pudesse valer-lhe naquele transe.
Preveniu-lhe Jão o impulso, e estreitando-a ao peito com força, atirou-se em um arranco de desespero para o
lugar, onde o mísero Quicé acabava de cair às focinhadas dos porcos. Abarcando-lhe o crânio com a mão robusta,
o capanga arremessou-o longe, de um boléu, como faria com uma pedra.
– Foge, bruto! disse ele à ossada que varava pelos ares e que estalou entre os seus dedos.
E com a faca de ponta que um instante segurava nos dentes para dispor da destra, começou a degolar e estripar
os queixadas que o atacavam mais de perto e com sanha terrível. Era muitos, porém; e toda sua pasmosa agilidade
não bastava para resistir ao aluvião de feras que sobre ele crescia, assaltando-o por qualquer lado com redobrado
furor.
Entretanto, pai Quicé, caindo a vinte passos, onde o pinchara Jão, embora meio desconjuntado com o tombo,
tinha-se arrastado para a árvore, e pode a muito custo içar-se pela rama a um galho mais rateiro, onde contudo
estava a abrigo dos temíveis queixadas, que lhe tinham retalhado o couro relho das canelas.
Aí refocilando na refocilando na egoística satisfação de se ver a salvo do perigo, que ameaçava a outros, o paizinho
contemplava o combate de Jão Fera com os queixadas, como se fosse uma divertida caçada.”
Há uma profusão de outros personagens que aparecem na narrativa: Pereira (administrador da Fazenda das
Palmas), Mandu (caipira que trabalha na fazenda), Filipe (comandava um bando de caçadores que queriam
dar cabo de Jão Fera para receber uma recompensa, é contratado por Ribeiro/Barroso para, em conluio com
Gonçalo Pinta, tocaiar o Bugre em seu esconderijo). Estendendo o conceito de “personagens” a animais,
pode-se citar a sura (galinha sem pés que é cuidada por Berta), o burrinho (também socorrido pela bondade
da protagonista, depois de ter um olho, uma orelha e parte da cabeça arrancados por uma foiçada pela
ousadia de invadir propriedade privada alheia) e o bacorinho, porquinho que aparece e reaparece ao longo
da narrativa como um “mensageiro” entre Chico Tinguá e Jão Fera; porcos amestrados não eram tão comuns
pelo interior do Brasil, mas também não se pode dizer que eram algo fantasticamente excepcional.
39
5. Tempo
Os acontecimentos do presente da narrativa se concentram em alguns dias do ano de 1826, entre os meses
de junho e julho, uma vez que uma data importante é o dia 24 de junho, em que se comemora o dia de São
João, cuja festa é narrada entre os capítulos I e VIII do Quarto Volume.5
Durante esses poucos dias, precipitam-se os acontecimentos que levam à transformação de “Berta” em “Til”.
O tempo dessa transformação, como bem observou Flávio Aguiar, está figurado em um único dia. O primeiro
capítulo começa em uma manhã:
“Sete horas da manhã haviam de ser. A luz de um sol esplêndido fluía no éter, que a trovoada da véspera tinha
acendrado.”
E o romance termina ao crepúsculo:
“Quando o sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepúsculo, e com os
olhos engolfados na primeira estrela, rezou a ave-maria, que repetiam, ajoelhados a seus pés, o idiota, a louca e o
facínora remido.”
Mas há uma “segunda parte” da narrativa, concentrada no Terceiro Volume, que se inicia em 1926, vinte anos
antes da “primeira parte”. Esse recuo no tempo servirá para narrar vários eventos importantes: num passado
mais distante, a origem misteriosa de Jão Fera; a partir de 1946, os esforços de Luís Galvão (aos vinte anos)
para seduzir Besita, enquanto Jão sufoca seu amor ; cerca de cinco anos depois de o filho do fazendeiro e
a bela filha do velho Guedes terem se envolvido amorosamente, Jão rompe com Luís Guedes e ocorre o
casamento de Besita com Ribeiro e a partida repentina do marido; em seguida, o estupro de Besita por Luís
Galvão e o nascimento de Berta, que é entregue por Jão a nhá Tudinha para ser criada.6
5
6
A Festa de São João (24 de junho) tem origem histórica nos festejos pagãos do solstício de verão realizados no hemisfério norte.
Ela se insere no calendário do que hoje conhecemos como “festas juninas”, assim como as celebrações de Santo Antônio (13 de
junho) e São Pedro e São Paulo (ambos comemorados em 29 de junho).
A essa altura da narrativa, já sabemos que, poucos anos depois, Luís Galvão receberá a Fazenda das Palmas de herança. Após
casar-se com a filha de um capitalista de Campinas e conseguir crédito, seu espírito empreendedor transformará a propriedade
em modelo de atividade agrícola. Em 1846, a cultura de cana-de-açúcar era ainda dominante na região em que se passa a história. O café, entretanto, ganhava terreno e gerava grandes fortunas, o que aumentaria o prestígio e a importância econômica dos
fazendeiros de São Paulo, colocando-os também no mapa político brasileiro como figuras fundamentais nas relações de poder.
40
Há um recuo no tempo do foco narrativo, portanto, de modo a esclarecer uma série de questões deixadas na
penumbra na primeira parte. Trata-se de uma brilhante estratégia para deixar a narrativa em suspense em um
momento crítico – quando Berta se dirige para o quarto onde se encontra a cascavel atirada pelo parvo Brás.
Além desse recuo temporal marcante, há alguns desvios narrativos em que se recuperam, por meio de
flashbacks, alguns elementos do passado para explicar ações ou personagens que estão sendo tratados no
presente: que envelope era aquele que Luís Galvão esquecera em casa quando partia para Campinas? O
que aconteceu ao Ribeiro depois de abandonar a esposa? Esses artifícios narrativos são comuns em José de
Alencar e ajudam a suspender a narrativa em momentos de tensão para manter preso o leitor.
6. Espaço
A caracterização do espaço é importante elemento no projeto literário de José de Alencar, particularmente no
que concerne a livros como Til, denominados por ele e pela crítica literária como Regionalistas (ou Sertanistas),
que tinham, entre outros objetivos, a apresentação do Brasil interiorano, afastado da Corte do Rio de Janeiro,
ao público leitor da época.
Os acontecimentos importantes da narrativa se desenrolam próximo ao vale onde se localiza Santa Bárbara
(atualmente, Santa Bárbara D’Oeste), no interior do estado de São Paulo, na região que tem Campinas
como capital regional. Logo no início do romance, há uma referência ao rio Piracicaba, cujas margens são
frequentemente citadas e descritas no romance7. Ali ficava a Fazenda das Palmas, descrita com a costumeira
precisão de retratista por José de Alencar, atento aos acidentes da natureza, às florestas virgens, aos campos
e edificações.
“Cerca de uma légua abaixo da confluência do Atibaia com o Piracicaba, e à margem deste último rio, estava
situada a fazenda das Palmas.
Ficava no seio de uma bela floresta virgem, porventura a mais vasta e frondosa, das que então contava a província de
São Paulo, e foram convertidas a ferro e fogo em campos de cultura. Daquela que borda as margens do Piracicaba,
e vai morrer nos campos de Ipu, ainda restam grandes matas, cortadas de roças e cafezais. Mas dificilmente se
encontram já aqueles gigantes da selva brasileira, cujos troncos enormes deram as grandes canoas, que serviram
à exploração de Mato Grosso. Daí partiam pelo caminho d’água as expedições que os arrojados paulistas levavam
às regiões desconhecidas do Cuiabá, descortinando o deserto, e rasgando as entranhas da terra virgem, para
arrancar-lhe as fezes, que o mundo chama ouro e comunga como a verdadeira hóstia.
[...]
Ao passo que ia se adiantando a lavra das terras, erguia-se na chapada fronteira ao rio uma bela casa de morada
em dois lances abarracados, com um pequeno mirante no centro, sobreposto à larga portada; esta abria para o
patamar, ladrilhado, de uma pequena escada de seis degraus, que descia ao terreiro.
Formava o edifício uma face da vasta quadra, onde se fora levantado sucessivamente casas para o administrador
e feitores, senzalas para os escravos, o engenho de cana, a fábrica do café, tulhas de feijão e milho, além de outros
acessórios do grande estabelecimento rural, que veio a tornar-se depois a fazenda das Palmas.
7
A cidade de Piracicaba (que então se chamava Vila da Constituição) também aparece no romance, como cenário dos acontecimentos sucedidos durante a Festa do Congo (capítulos XII, “O Congo”, e XIV, “Confissão”, da Quarta Parte).
41
Do terreiro da casa partia o caminho principal da fazenda, que se estendia pelo espigão da colina, e bifurcava-se de
espaço a espaço para serventia das várias jeiras de lavoura. O ramo principal, fugindo os alagados e descrevendo
uma grande curva, ia entroncar-se, a meia légua de Santa Bárbara, na estrada geral da Constituição a Campinas.”
Em todos os lugares - na casa grande da fazenda, nos ambientes de trabalho, na solidão dos bosques idílicos,
nos recantos e construções pitorescos – parece reinar a mais perfeita harmonia.
Mas o “realismo” das descrições da paisagem agrária, dos campos, do trabalho dos escravos, da culinária etc.
é desmentido justamente pelo excesso de harmonia: as divisões entre as roças (de feijão, milho, cana, café),
as construções que servem para tratar e armazenar a produção ou de morada para proprietários, camaradas
e escravos, as relações entre senhores, empregados e escravos – tudo parece caminhar sempre na mais
perfeita ordem e felicidade para todos. Os escravos se revoltam por desejos amorosos ou pura maldade, a
escravidão é apresentada como algo “normal”; os possíveis conflitos pela imposição do trabalho por meio da
violência são escamoteados (analisaremos melhor essa questão mais adiante).
Na verdade, desde o início o ambiente bucólico e idílico da fazenda é interrompido por ruídos, vultos
vislumbrados na paisagem, movimentos bruscos de animais ou pessoas, encontros secretos – como se
as tramas de vinganças que se armam ou a inquietação de Berta quanto a suas origens perturbassem a
serenidade da paisagem.
Uma característica bastante comum da narrativa romântica (e de quase todos os estilos literários) quanto
à caracterização dos espaços é facilmente perceptível no decorrer da narrativa: a identificação entre os
personagens e o ambiente que as rodeia.
Inicialmente, é a paisagem campestre e suas belezas que fornecem elementos para caracterizar Berta:
“Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do prazer de pular e correr;
saciando-se na delícia inefável de se difundir pela criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante.”
“[...] (Ela) folgava pelo campo, a volutear e fazendo-lhe mil negaças, como a borboleta que zomba dos esforços
inúteis da criança para a colher.”
“Como a onda cristalina, que turva um instante a asa negra da borrasca e logo após reflete a bonança do céu, era
seu olhar sereno e meigo.”
Mas não só para a idealização romântica se presta o espaço. Não será difícil para o leitor interpretar que a
casa em ruínas de Zana espelha sua mente devastada pela loucura; se quisermos ousar um pouco, diríamos
que a decadência desse espaço prenuncia a decadência moral que toma conta da Fazenda das Palmas e dos
moradores da casa principal, destruindo sua aparente harmonia, nesses dias fatídicos de junho de 1846, em
que se revelaria a origem de Berta e ela seria elevada à condição de quase santa.
A morada de Jão Fera, por sua vez, retoma uma tópica comum em narrativas de aventura: a do espaço
subterrâneo (buraco, covil, caverna) em que vive o facínora; lugar de difícil penetração, solitário e soturno,
assustador. O lugar que o Bugre habita figura os abismos de sua alma.
42
7. Técnicas de folhetim
Enquanto gênero literário, o romance apareceu no Brasil durante o Romantismo e sua difusão está ligada
diretamente ao fato de ter sido formado aqui um público leitor. Divulgado, sobretudo, por meio do folhetim, isto
é, seções nos jornais que traziam um capítulo por vez, os romances, inicialmente traduções dos escritores
europeus, foram aos poucos conquistando seu espaço no universo literário brasileiro. Não demorou muito e
logo os escritores brasileiros começaram a se aventurar na construção de seus próprios textos.
Com o advento do romance dentro do Romantismo, temos a complementação do programa nacionalista
levado a toque de caixa pelos artistas brasileiros. Aqui, em função da necessidade imperiosa de se exprimir,
o nosso romance, com sua fome de espaço e uma ânsia de apalpar o país, nos deixa como sendo talvez
o seu maior legado um universo que consiste, segundo Antonio Candido, “menos de tipos, personagens e
peripécias do que certas regiões tornadas literárias, e sequência narrativa inserindo-se no ambiente, quase
escravizado a ele. Assim, o que vai se formando e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido
e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social”. Na realidade, o romance
processa uma radiografia do país e, ciente de suas próprias limitações, produz a expressão de uma realidade
“brasileira”.
O que hoje denominamos “romance regionalista” do Romantismo brasileiro (alguns prefeririam “sertanista”,
outros, “fazendário”) é um esforço no sentido de registrar a variedade de costumes e a riqueza de paisagens
do interior do Brasil, das regiões rurais afastadas da Corte do Rio de Janeiro, cenário mais comum dos
folhetins.
Entretanto, apesar dessa preocupação com o pano de fundo, os romances brasileiros procuraram também
corresponder às expectativas estéticas do sentimentalismo romântico e do público leitor, em sua maioria,
formado por leitoras. E o que esse público buscava era, geralmente, entretenimento e sonho. José de Alencar
era mestre em entregar o que o seu público lhe pedia.
Se há algo que salta aos olhos na técnica narrativa de Til é a habilidade de Alencar de manejar técnicas
literárias que objetivam prender o leitor à narrativa, criando interesse pelo que está por vir, fazendo que ele se
surpreenda, sobressalte ou emocione, envolva-se com os personagens - enfim, não consiga entediar-se com
a história nem queira se desligar dela.
Na análise do “Foco Narrativo”, analisamos as técnicas de narração da mesma cena de mais de uma
perspectiva e simultaneísmo. A seguir, apresentamos outros procedimentos narrativos constantes na
técnica literária empregada por José de Alencar em seu folhetim.
Criação de suspense entre e intracapítulos
Isso é realizado de diversas maneiras ao longo da narrativa. Ocorre de maneira exemplar, por exemplo,
no recuo temporal de vinte anos efetuado na passagem do Segundo para o Terceiro volume: a narrativa é
interrompida no exato momento em que Berta dirige-se ao quarto de Linda para pegar seu chapéu, o mesmo
quarto no qual Brás acabou de atirar a cascavel.
Outro recurso é apresentar ações cujas origens, motivos ou causas só serão revelados e explicados
em momento posterior da narrativa. Um exemplo ocorre no capítulo V, “A Tocaia”, do Primeiro Volume: Jão
Fera, ao entrever o vulto do Barroso por entre as árvores, saca a faca como se estivesse para atacá-lo, mas
aparece uma cobra que faz o cavalo empinar e ele desiste. Só muito adiante na narrativa entenderemos que
ele, por um breve instante, reconheceu instintivamente no vulto o assassino de Besita, o que o empurra para
43
a ação violenta. O aparecimento da cobra faz com que ele volte a si e só muito mais tarde ele descobrirá que
Barroso era, de fato, Ribeiro.
Também é comum inserir na trama situações (muitas vezes inusitadas) de perigo sucedendo-se umas
às outras, de modo que corte o fôlego do leitor, a ponto de ele quase não perceber o quanto é absurdo e
quase inacreditável o que se narrou na sequência. Um bom exemplo se dá entre os capítulos XII e XIII do
Terceiro Volume: neles, narram-se os seguintes acontecimentos, ocorridos todos em curto espaço de tempo:
Berta seduz a serpente atirada por Brás ao quarto de Linda e o próprio parvo retira a cascavel de lá; toma o
seu chapéu e sai com Quicé para ser atacada por um bando de queixadas e salva por Jão Fera; levada por
Jão Fera para seu esconderijo, quase se torna, sem saber, vítima do desejo abrasador do Bugre; enfim, livrase com a ajuda dele, milagrosamente, da emboscada dos homens de Gonçalo Pinta.
Em muitos momentos da narrativa, mas principalmente ao final dos capítulos, Alencar faz suceder a períodos
longos uma frase curta que impacta e surpreende o leitor. Veja alguns exemplos de finais de capítulos, todos
do Quarto Volume:
“Nesse instante um foguete que rasou a terra, listrando na escuridão da noite uma faixa de luz, destacou ao longe
na fímbria da mata um vulto de homem.
Berta reconheceu Jão Fera.”
“Desmaiara D. Ermelinda ao ver, no canavial, surgir da sobra um homem, que, brandindo um cacete sobre a cabeça
de Luís Galvão, o prostrou ao chão como um corpo morto.
Era o Gonçalo Suçuarana.”
“De repente, Zana ficou estática e imóvel; depois começou de tartamudear sons roucos e afinal soltou uma
gargalhada estridente que ressoou pela mata, violentamente agitada neste momento.
Berta, sobressaltada, ergueu a cabeça.”
Este artifício é usado repetidas vezes na narrativa e potencializado pelo fato de ela ser composta de um grande
número de capítulos regularmente curtos (62 no total). Muitas vezes a sequência de acontecimentos é
interrompida, fragmentada de um capítulo para outro com o objetivo, claro, de manter em suspenso o leitor.
Por fim, alternam-se momentos em que o mais importante é a narração dos acontecimentos que se sucedem
com momentos em que o essencial é caracterizar os personagens. A questão central da narrativa de todo
o Primeiro Volume é a emboscada armada por Jão Fera para matar Luís Galvão. Quando ultrapassamos o
clímax e o desfecho se dá com a promessa do Bugre a Berta de que não matará o fazendeiro, as ações são
interrompidas. Então boa parte dos capítulos iniciais do Segundo Volume é dedicada a cenas cujo objetivo
principal é basicamente caracterizar a alma bondosa de Berta, dedicada aos animais solitários feridos de
alma e aos miseráveis solitários feridos do espírito.
O descritivismo exuberante
Bem ao gosto dos autores e leitores das obras românticas, há em José de Alencar um descritivismo
exuberante, isto é, suas descrições se fazem com uma abundância de adjetivos e locuções adjetivas, nas
quais ressaltam a imponência e beleza da natureza, com um acúmulo de imagens que revelam cor, brilho e
movimento. Apesar da idealização decorrente desta opção estilística, Alencar tenta, até pelas referências a
elementos característicos da natureza da região retratada, captar a “cor local” brasileira, tão cara aos nossos
românticos.
44
Mas essa exuberância descritiva não se limita à natureza. Alencar estende seu olhar aguçado e sua capacidade
de desenhar e pintar com palavras (o que chamamos de plasticidade da linguagem) aos edifícios da fazenda,
aos caminhos (estradas, picadas, trilhos etc.), aos detalhes pitorescos da vida na fazenda (os animais de
criação, a horta, a culinária regional etc.), às vestimentas dos personagens dos diversos grupos (senhores,
camaradas, escravos etc.).
Mas não só a aspectos da realidade física se prende a atenção do narrador. Ela também se volta para as
características psicológicas e morais dos personagens. Quanto a isso, ressalta, principalmente, o talento
de Alencar para delinear o que ele mesmo chamava de “perfil de mulher”, isto é, para criar, caracterizar e
desenvolver as personagens femininas. Esse talento é visível principalmente no tratamento dado aos perfis
de Berta/Til e D. Ermelinda e, em segundo plano, nhá Tudinha e mesmo as escravas que brigam para ver
qual tem maior “poder feminino”.
Também os ambientes e movimentos das cenas são detalhadamente captados e descritos. Veja-se, como
exemplo, a cena do transe envolvendo Berta e a serpente, em que há uma captação primorosa das sutilezas
de som e movimento da cena8. Outra cena exemplar, esta mais agitada, é a do incêndio que toma conta do
canavial, na qual a devastação produzida pelo fogo e, logo em seguida, toda a ação em que estão envolvidos
vários personagens são descritas com pinceladas rápidas, dramáticas e envolventes, particularmente o
embate de Jão Fera com os vilões da história.
Registro da língua popular
O registro de formas linguísticas populares pode ser enquadrado no que pareceria, aos leitores dos centros
urbanos, “exótico”, “pitoresco” ou “divertido”, ou seja, as variantes linguísticas do interior. Também serve ao
retrato da diversidade cultural brasileira, um dos objetivos do regionalismo romântico.
O registro da língua popular aparece em diversos momentos, como nas cantigas dos escravos durante o
trabalho:
“Na roça estavam os pretos no eito, estendidos em duas filas, e no manejo da enxada batiam a cadência de um
canto monótono, com que amenizavam o trabalho:
Do pique daquele morro
Vem descendo um cavaleiro
Oh! Gentes, pois não verão
Este sapo num sendeiro?
Adubavam o mote com uma descomposta risada e logo após soltavam um riso gutural:
– Pxu! Pxu!
Tem os pretos o costume de entressacharem nas toadas habituais, seus improvisos, que muitas vezes encerram
epigramas e alusões. Bem desconfiava, pois, o feitor de que a tal cantiga bolia com ele, e o sapo não era outro
senão um certo sujeito bojudo e roliço, de seu íntimo conhecimento; mas fingia-se despercebido da coisa.”
8
Esta cena é cheia de conotações religiosas. Nela, aproxima-se a figura de Berta (como anteriormente já fora feito em sua relação
com a galinha sura e o burrico ferido) da figura de São Francisco de Assis, que era íntimo dos animais a ponto de conversar com
eles e dominar sua ferocidade. Também incorpora o tradicional tema religioso do entrelaçamento de mulher e serpente (desde o
episódio em que Eva é convencida pela serpente a seduzir Adão para cometer o pecado original...), numa relação em que não
raras vezes o poder da mulher se sobrepõe ao da cobra, como nesse caso.
45
Na cantiga de Zana que mistura a língua portuguesa a dialetos africanos e que Berta, a custo, “decifra” (como
narrado no capítulo XII da Segunda Parte):
“Cala a boca, anda, nhazinha,
Ai-huê, lê-lê!
Senão olha, canhambola,
Ai-huê, lê-lê!
Vem cá mesmo, Pai Zumbi,
Toma, papanha Bebê!”
No registro da oralidade dessa linguagem popular do interior, como no capítulo 8 do Segundo Volume, no qual
aparece pela primeira vez nhá Tudinha:
“Voltou-se a rechonchuda mulherzinha debulhando-se em uma risada gostosa, porque adivinhava o autor da
travessura, que não era outra senão a ardilosa da Berta, em quem ela achava uma graça imensa, Não fazia a menina
um trejeito, nem dizia uma facécia, que a viúva não se desfizesse em gargalhadas. Era a efusão de sua ternura pela
pequena. O coração de nhá Tudinha só tinha para exprimir o amor dois vocábulos, o riso, ou então o choro nos
dias de tristeza e luto.
– Ai, menina!... Quiá!... quiá!... quiá!... Já se viu, que ladroninha?
– Uh! pumbu!... dizia entretanto a Berta, beijando o biquinho da rola de biscoito; e acrescentou voltando-se para
a viúva. Quer ver como voa?
Começou então a traquinas a fazer voar o biscoito, no meio das cachinadas de nhá Tudinha, que de tanto se
estorcer, afinal arrebentou o cós da saia.
Cansada Berta, ou antes aborrecida daquele brinco infantil, e curado o frouxo riso da viúva, levantou-se esta para
o almoço, que já estava posto à mesa, e frio de esperar.
– Que mãezinha má! tornou Berta com faceirice. Fez tantos biscoitos e não me guardou um só!
– Pois então! Não me deixaram sozinha? Cuidei que não voltavam mais hoje. E o almoço esfriando!
– Bem bom! Não queima a gente!
– E o outro?... perguntou a rir a viúva. Por onde anda?
– Quem sabe se perdeu-se?... Coitadinho do Miguel!...
– Ai, que já não posso! Quiá, quiá, quiá!... Mas você, aposto que foi ver a Zana!
– Que tem?
– Eu fico mesmo tão assustada quando Inhá vai para aquelas bandas! Não é graça, não!
– Por que?... Tem medo que o tutu me pape? Ele que se meta em bulir comigo e verá! Olhe, mãezinha, eu agarro-o
pelas orelhas, assim; e meto-lhe um cipozinho, zás, zás, zás, que ele vai por aí gritando, ui, ui, ui!...”
Ou na conversa entre Gonçalo Pinta e os caçadores na venda do Chico Tinguá, transcrita no capítulo VI,
“O bacorinho”, do Segundo Volume, que não transcrevemos aqui porque ele todo deve ser lido para maior
instrução e divertimento dos leitores quanto à linguagem popular daquele tempo.
46
8. Múltiplas leituras
Há diversas possibilidades de ler e interpretar o Til de Alencar. Ivan Teixeira afirma que o livro “[...] por um
lado, será uma estória de aventura e ódio, cuja origem se concentra num caso de violência sexual; por outro,
será a fábula da conversão da filha do estupro (Berta) em agente de forças positivas da natureza (Til)”. Flávio
Aguiar afirma que há no romance “ao nível da construção”, uma duplicidade: “Ao mesmo tempo em que
contava uma história, de ação e peripécia, Alencar forjava – no caso através do projeto regionalista – os mitos
da nacionalidade”.
A seguir, apontaremos algumas possíveis leituras para o Til.
A narrativa de vingança
O grande modelo romântico de narrativa de aventura e vingança é O Conde de Monte Cristo, de Alexandre
Dumas pai (1844-1845), que condensa os elementos de composição desse gênero literário: o mistério, o
suspense, as reviravoltas e as surpresas, os fatos assombrosos.
Nesse tipo de narrativa, os protagonistas são geralmente pessoas atormentadas por traições e violências do
passado que buscam se vingar no presente. Obstinadas e mórbidas, gastam seu tempo em maquinações e
estão dispostas a qualquer ato brutal, condenável, criminoso enfim, para atingir seus objetivos. Em muitos
casos, são personagens que apresentam deformação física que espelha sua deformidade moral.
Todos esses elementos estão presentes em Til.
A “alegoria sertaneja da luta entre o Bem e o Mal”
Essa definição é do professor Ivan Teixeira. Em Til, Berta é a encarnação de um Bem capaz de superar e
transformar todo Mal, mesmo que à custa de sacrifício pessoal. Ela existe para promover o Bem: para resgatar
seres bestializados pelo destino e pela natureza (como Jão Fera, Brás e até mesmo Zana), para promover
o amor entre aqueles que devem se amar (Miguel e Berta), para resistir ao assédio de Afonso - repetição
daquele mesmo assédio que, no passado, levou ao crime que a gerou, para trazer vida a todos os seres da
criação (até mesmo animais como a sura ou o burrico).
Ao final, ela irá abandonar a possibilidade de felicidade ao lado de Miguel e assumir seu destino de ser
“somente Til”, o que equivale a sacrificar-se pela felicidade dos demais ou, em outras palavras, tornar-se
quase santa, quase anjo, alma soror, algo a que ela parecia predestinada, como insinuado no capítulo XI
do Segundo Volume: “Ninguém sabe o que passou então no íntimo de Berta, que tinha suas venetas, e de
quem se referiam casos que a gente velha do lugar, e especialmente as pretas da fazenda, atribuíam a uma
influência misteriosa e sobrenatural”.
O romance regionalista e o ideal versus o real
O romantismo brasileiro, apesar da nítida orientação estética da matriz europeia, adquiriu, como vimos,
algumas feições próprias no sentido de construir uma identidade cultural nacional via literatura. José de
Alencar foi o mais consciente pregador e realizador do que chamava de uma “literatura nacional brasileira”,
independente da portuguesa.
47
Em Til, esse propósito leva-o a reduzir a importância do realismo nas ações da narrativa, investindo no seu
caráter épico (lendário) e lírico.
Como vimos, o regionalismo aparece nas descrições do espaço (as roças, os campos, os matos, a senzala
etc.), dos costumes (o caipira preguiçoso, a violência da jagunçagem, a hospitalidade desconfiada etc.) e da
cultura (as comidas, as festas do interior, as canções, o linguajar etc.) de uma região específica - o interior de
São Paulo – sempre ressaltando o que há de pitoresco nesses elementos todos9.
Mas todo esse “conteúdo” regional é apresentado dentro de uma “forma” universal: o romance de folhetim,
cujos elementos eram, em geral, europeus (a exaltação da força da natureza, o apelo ao pitoresco, as
peripécias amorosas, a idealização da mulher, o sentimentalismo, as aventuras mirabolantes, o suspense, os
personagens grotescos, a vingança tardia, a violência, a exaltação do misticismo e do mistério, o misticismo
moralista), cujo objetivo era entreter os leitores.
Assim, o regionalismo que há aqui está na superfície do espaço e das personagens. O objetivo de Alencar é
mesmo seduzir o público, em sua maioria, provavelmente, formado por leitoras. Para isso, emprega tantas
técnicas do romance de folhetim (disso já falamos no item 7 – Técnica de Folhetim, capaz de seduzir o leitor
com tal habilidade que, geralmente, é bem sucedido em realizar seu objetivo. Principalmente se o leitor
suspende a descrença e está disposto a crer ou viver na vertiginosa sucessão de situações de mistério,
perigo, indecisão, violência e absurdos no decorrer da história).
A vertigem e as forças em conflito
Mas a vertigem pode iludir, desorientar e cegar. Sob a agitação excitante da vertigem folhetinesca, há forças
agressivas da Natureza e da Sociedade em conflito. Das forças da Natureza que movem os personagens em
seu íntimo (a loucura, a violência, a sensualidade etc.) já falamos bastante. Cuidemos agora das forças da
Sociedade.
No romance de Alencar estão representados todos os grupos sociais: o proprietário de terras e de escravos (e
a família que gravita em torno dele), os brancos pobres que vivem de favor ou de ocupações instáveis do ponto
de vista da segurança econômica e social (donos de venda, roceiros, caçadores, capangas, empregados da
fazenda etc.), os agregados que dependem dos favores do proprietário (como é o caso de nhá Tudinha e seus
filhos ou de Zana) e os escravos.
A princípio, como vimos, certa harmonia parece presidir as relações. Mesmo quando alguma revolta possível
de ter nascido de tensões resultantes de diferenças sociais aparece na trama, ela é movida, na verdade, por
questões muito mais de ordem puramente pessoal: Monjolo e Faustino se revoltam não pensando em sua
condição, mas mais por desejos insatisfeitos: Faustino quer Rosa, Monjolo quer pito e cachaça.
Esse apagamento dos conflitos é o que seria de esperar de um autor que defendeu com aplicação e veemência
a escravidão no Brasil perante o próprio imperador D. Pedro II, vendo nela uma necessidade econômica e um
“elemento civilizador” tanto do branco quanto do negro.
Mas os preconceitos comuns da elite brasileira daquela época quanto aos escravos são facilmente perceptíveis
no romance de Alencar. Se o mundo e os sentimentos de que participam os brancos em suas disputas
amorosas são descritos, por meio de adjetivos que ressaltam a beleza da natureza, dos rostos, dos corpos e
9
São elementos da cultura e dos costumes caipiras presentes na narrativa: as referências ao Calhambola (bicho-papão ou Tutu), a
alimentação (aguardente, farinha de milho, rapadura, comidas da festa de São João etc.), a proverbial preguiça, cantigas de ninar
e de eito (que os escravos entoavam durante o trabalho na roça), ditados populares etc.
48
dos gestos, a doce força do amor, a suavidade, a pureza ou a intensidade calorosa dos sentimentos (mesmo
quando eles conduzem a crimes horrendos como o estupro ou o assassinato), quando se trata dos negros
escravos, as disputas amorosas redundam em confrontos em que os personagens e suas ações são descritos
como bichos, em termos nem um pouco, digamos, edificantes ou atraentes. Veja, como exemplo, a briga entre
Florência e Rosa narrada no trecho a seguir (grifos nossos):
“As duas rivais se afrontaram com o olhar, por diante da cara desfaçada do mulato. Os alvos dentes de Rosa
brilharam engastados em um riso de escárnio, que lhe arregaçava os lábios carnudos, e dentre as fendas dos
incisores partiu um rápido esguicho, que bateu em cheio na cara da outra.
Foi pronta a réplica de Florência. Vibrando no ar o braço habituado a manejar a enxada espalmou a mão na
bochecha da mucama, que titubeou e decerto iria ao chão a não ampara-la o mulato.
Amâncio à vista do bofetão decidiu-se pela Rosa, e atirou à Florência uma cabeçada. Mas a preta agarrou-o pelos
cabelos; e ele apertou-lhe as goelas a fim de livrar-se das garras daquela fúria. Entretanto a Rosa ferrava os
dentes no ombro da rival, que defendia-se aos pontapés.
Os pretos da roça acudiram à sua parceira, insultada pela cambada de pajens e mucamas. Os capangas tomaram
o partido de Amâncio por uma espécie de coleguismo; e assim tornou-se geral o banzé.
Agachado no meio do terreiro, bebendo seu pito, Monjolo que se retirara do batuque, observava com viva agitação
aquela cena. Seus olhos saltados das órbitas, como dois lagartos negros quando pulam da toca, devoravam com
uma volúpia feroz a figura de Rosa.”
Outro exemplo de apagamento de conflitos aparece no drama envolvendo a impossibilidade do amor entre
Linda e Miguel. Em nenhum momento o narrador questiona a decisão de D. Ermelinda de separar sua filha do
roceiro porque “ela não pode pertencer-lhe” por uma diferença de classe social. Aliás, D. Ermelinda julga ver
na atração da filha por Miguel uma herança má que ela recebeu do pai:
“Depois, por uma natural associação, recordando-se da intimidade de Linda com Miguel, no coração da mãe caíam
as gotas acerbas que vazavam do coração da esposa. Pensava D. Ermelinda, que a filha criada por ela com tanto
esmero, sucumbia à fatalidade e ia arrastada por um pendor irresistível, que o pai lhe transmitira de herança.”
(Ou seja: o desejo “libertino” que arrastara Miguel, na juventude, a uma aventura com uma moça socialmente
“inferior” transmitira-se para sua filha, que agora também se sente atraída por alguém “inferior”.)
Afinal, Miguel é aceito na família, a pedido de Til, porque é uma maneira de “apagar” e “pagar” o pecado
de estupro cometido por Luís Galvão em sua juventude. O problema da diferença social existente entre o
agregado e a filha do proprietário é folhetinescamente resolvido (ou, melhor dizendo, escamoteado) com uma
solução moral.10
Mas, como notou Flávio Aguiar, toda essa aparente harmonia social é sacudida por uma violência cujas
causas estão em conflitos reprimidos no passado. E a causa desses conflitos, por sua vez, é o abuso de um
10
Para sermos justos, em alguns momentos raros nota-se uma visão simpática aos marginais e marginalizados, como ocorre no capítulo V do Terceiro Volume, em que o narrador explica o destino de Jão Fera e outros capangas recorrendo à condição de pobreza
e inferioridade social a que estavam submetidos:
“Chamado, pago e protegido por homens poderosos para escoltá-los em aventuras e servir às suas paixões, o Bugre recebeu
a iniciativa e a animação que iam acostumando seu braço a ferir e a repousar depois do crime, como se tivesse praticado uma
honrosa façanha, uma valentia digna de louvor.
Esta é com pouca diferença a história de todos os assassinos incorrigíveis, que infestam o interior do país. Eles foram educados
pelos poderosos como os dogues que se adestravam antigamente para a caça humana, dando-lhes a comer, desde pequenos,
carne de índio.”
49
poder exercido por privilégio de classe social: Luís Galvão estupra Besita porque, filho de proprietário criado
como alguém que tudo pode desejar e afrontar, não pensa na consequência dos seus atos para os que estão
em posição social inferior a sua. O resultado é a vingança de Ribeiro que recai, imediatamente, sobre a parte
mais fraca, Besita, a mulher. Mas, no futuro, Ribeiro, mudado em Barroso, não deixará de querer lavar sua
honra tramando e trabalhando para o assassinato de Luís Galvão, com o intuito de roubar o que lhe havia sido
roubado: uma mulher e a possibilidade de uma família burguesa bem estabelecida.
Berta sufoca seus desejos e sacrifica seus sonhos para elevar-se espiritualmente. Alencar sufoca a realidade
brasileira/regional e sacrifica uma visão crítica do homem e da sociedade para produzir uma literatura de teor
apaziguador e universal, da qual os “demônios” da desarmonia são expulsos.
9. Trechos selecionados
I – Capanga [(Primeiro Volume)]
Eram dois, ele e ela, ambos na flor da beleza e da mocidade.
O viço da saúde rebentava-lhes no encarnado das faces, mais aveludadas que a açucena escarlate recém aberta ali
com os orvalhos da noite. No fresco sorriso dos lábios, como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-lhes a seiva
d’alma.
Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do prazer de pular e correr;
saciando-se na delícia inefável de se difundir pela criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante.
Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem conformado, calcando o chão sob o grosseiro soco da bota com a bizarria de
um príncipe que pisa as ricas alfombras, seguia de perto a gentil companheira, que folgava pelo campo, a volutear
e fazendo-lhe mil negaças, como a borboleta que zomba dos esforços inúteis da criança para a colher.
Caminhavam por uma recha, bordada de ilhas de mato, que emergiam aqui e ali do verde gramado. Pela ramagem
frondente das árvores e renovos que abrolhavam, percebia-se a proximidade de uma grande manancial, e entre
as crepitações da brisa nas folhas, como um tom opaco desse arpejo da solidão, ouvia-se o murmúre soturno do
Piracicaba, que leva ao Tietê o tributo caudal de suas águas.
50
Sete horas da manhã haviam de ser. A luz de um sol esplêndido fluía no éter, que a trovoada da véspera tinha
acendrado. O céu arreava-se do azul diáfano onde a fantasia se embebe com a voluptuosidade casta da criança a
aconchegar-se dentro, tão dentro do grêmio materno.
Bem longe do céu, porém, e bem presos à terra andavam os olhos dos nossos dois amiguinhos, que nem haviam
reparado sequer na limpidez da atmosfera. Ainda estavam na sazão feliz, em que respira o céu, como o ar da vida,
e o aroma do campo, quase sem sentir.
As flores, que a noite desabrochara; aos frutos silvestres que enfeitavam a copa das árvores; aos passarinhos que
trinavam embalando-se nas franças dos coqueiros; ao que era da terra e bem da terra, iam os impulsos desses
jovens corações, quando não se volviam um para o outro, a reverem-se entre si.
O céu, essa imensa tela azul, que foi cúpula de um berço, o da luz, e será mais tarde véu de um leito, o da vida; a
alma só o procura, só o contempla, quando a dor a prostra. Mas para aquela que sorri e folga, o firmamento é uma
terra por descobrir e debuxa-se vagamente na imaginação, como a montanha azul desse vale de lágrimas.
Algumas vez deixava o rapaz de seguir com o passo a menina, para acompanhá-la com a vista. De braços cruzados
sobre a coronha da clavina de caça, fitava os grandes olhos pardos com tal possança d’alma, que mais parecia
absorver e entranhar em si o gracioso vulto, do que enlevar-se em sua contemplação.
Acaso, em uma dessas ocasiões, voltou-se de chofre a menina para ver onde ficara o companheiro e deu com ele
a fitá-la daquele modo estranho.
– Que me está olhando aí? Nunca em viu? exclamou com surpresa, mas travada sempre da petulância que animavalhe todos os movimentos.
Não era para você! respondeu rápido o moço, baixando a cabeça de modo a ocultar o rubor que lhe afogueava o
rosto.
Para confirmar o disfarce, armou a clavina e fez pontaria a um cardeal que se embalava no topo de uma palmeira.
– Miguel!...
Esta súbita exclamação rompeu dos lábios da menina, trêmula de susto, espanejando-se com a mesma alegria,
que não se estancava nunca, e alguma vez represa, borbulhava depois com força maior.
De repente parou; imóvel, quase estática, uma lividez mortal jaspeou-lhe as feições, enquanto os olhos se
pasmavam em um ponto além.
A orla do mato assomara o vulto de um homem de grande estatura e vigorosa compleição, vestido com uma
camisola de baeta preta, que lhe caía sobre as calças de algodão riscado. Apertava-lhe a cintura rija e larga faixa do
couro mosqueado do cascavel, onde via-se atravessada a longa faca de ponta com bainha de sola e cabo de osso
grosseiramente lavrado.
Em uma das bandoleiras trazia o polvarinho e munição; na outra suspendia um bacamarte, cuja boca negra e
sinistra aparecia-lhe na altura do joelho esquerdo, como a face de um dragão que lhe servisse de rafeiro.
As mangas da camisa, tinha-as enroladas até o cotovelo, bem como a parte inferior das calças que arregaçava cerca
de um palmo. Usava de alpargatas de couro cru e chapéu mineiro afunilado, cuja aba larga e abatida ocultava-lhe
grande parte da fisionomia.
Vinha ele em direção oblíqua ao caminho dos dois jovens, e mal avistou a menina, logo desviou-se do rumo que
levava no intuito de evitá-la; mas achando-se por isso fronteiro com Miguel, escapou-lhe o gesto de contrariedade
e tomou o partido de parar à espera que os outros se fossem, deixando-lhe passagem livre.
51
De seu lado estremecera o rapaz ao dar com os olhos no homem da camisola, e tal foi a comoção produzida
pelo encontro, que derramou-lhe no semblante a expressão de um asco misto de horror, arrancando-lhe
involuntariamente dos lábios esta exclamação:
– Jão Fera!...
Não se abalou o mal encarado sujeito; e Miguel, corrido do primeiro assomo de terror, que lhe embotava os brios
de valente e galhardo, reagia com uma travessura de rapaz.
Levou ao rosto a espingarda fingindo armá-la, e apontou para o outro.
– Atire! disse aquele com a voz arrastada e indolente.
E promovendo um passo, apresentou com desgarro o peito à mira da espingarda de Miguel, que já arrependido
do gracejo, abaixava a arma.
– Pois olhe! tornou o homem da camisola com a mesma voz de arrasto: fazia um bem a mim... e a outros!
– Por que, Jão?
Fora da menina esta pergunta. Colocada além de Miguel não vira a menção do tiro, feita de brinquedo por este, e
só voltou-se e compreendeu o que passara, ao ouvir as últimas palavras.
– Esta vida me cansa! respondeu Jão com arquejo.
– Estás com saudade da forca? retorquiu Miguel com chasco de desprezo.
Ouviu-se um fungar, como o das narinas da onça quando bufa, e arrepia ao mais bravo caçador, que sente lhe
estar ela tomando faro ao sangue tépido. De um pulo achou-se o facínora a rosto com o rapaz, que armara
intrepidamente a espingarda, preparado a morrer com dênodo.
II – Zana [(Segundo Volume)]
Ao passar pela garganta de dois outeiros pedregosos, que formavam abraçando-se uma estreita e úmida charneca,
Berta bateu com força as palmas das mãos breves e delicadas.
Ouvia-se de perto um ornejo soturno, que mais parecia gemido; e logo depois surdiu dentre o maciço da folhagem
a enorme orelha de um burro, que a muito custo movia o passo trôpego. De magreza extrema, ressaltavam os
ossos a modo que pareciam prestes a furar-lhe o couro. Era propriamente uma carcaça, coberta com espessa
crosta de lama, onde o animal estivera deitado e lhe secara no pelo.
A outra orelha, que aparecia, a perdera ele na mesma ocasião em que de uma foiçada lhe vazaram o olho esquerdo,
levando-lhe boa parte da cabeça. Parece que o arteiro do burro conseguira furar a cerca da roça de um caipira, e
regalava-se de milho verde e tenra fava. Mas saiu-lhe cara a gulodice.
No mísero estado em que o pusera o caipira, pode, arrastando-se, chegar àquela charneca, onde se deitou, quase
moribundo, em um brejal. Com pouco os urubus vieram pousar nas ramas da imbaúba.
Acaso passou Berta pelo caminho e ouvindo gemidos, foi guiada pelos abutres, dar com o animal agonizante no
meio de uma touça de junça. Movida de compaixão, venceu a natural repugnância que lhe devia causar o aspecto
da ferida para lavá-la e cobrir com folhas de fumo atadas por embira.
Do fumo sempre ouvira falar como remédio para todos os achaques. Se não servisse para ferimentos, em todo o
caso guardava o talho contra as moscas e tavões.
52
Repetiram-se estes cuidados, até que afinal começou a ferida a cicatrizar; mas deixara o burro em tal lazeira,
que ainda era duvidoso se escaparia. Não desanimou Berta, em cuja alma se produziam na maior efervescência
os transportes dessas abnegações veementes, que são para certas naturezas uma necessidade irresistível de
expansão.
– Coitado do cotó! Ainda está muito magricela?... disse a menina com um carinho compassivo.
E tirou do saco meia dúzia de espigas de milho, que o animal devorou com uma gana de convalescência.
Debulhado o último sabugo, farejou o burro o saco, donde se escapavam umas exalações que lhe pruiam
agradavelmente o olfato.
Rindo, outra vez meteu Berta a mão no seu inesgotável saco e trouxe um punhado de farinha que o burro lambeulhe das palmas. Dando então um ligeiro tapa na belfa do animal, deitou a correr pelo campo fora seguindo a
mesma vereda.
Atrás de um fraguedo, cuja fralda atravessava o leito do rio, abrolhando-lhe a corrente, existia naquele tempo uma
casa em ruína. Já tinha desabado metade da parede do sótão e o telhado abatia aos poucos, rompendo os caibros
podres.
Da cozinha, que ainda se conservava em bom estado, com exceção da porta já tombada ao chão pela ferrugem
das dobradiças, saía um som roufenho e soturno, como o grunhido de um porco. Acocorada a um canto, com o
queixo sobre os cotovelos fincados ao peito cerrando a cara, descobria-se uma criatura humana, dobrada sobre si
a modo de trouxa.
Era uma preta velha, coberta apenas de uma tanga de andrajos, e que resmoneava, batendo a cabeça com um
movimento oscilatório semelhante ao do calangro. De tempo em tempo desdobrava um dos braços descarnados,
insinuava ligeiramente a mão pela espádua, e fazia menção de matar uma pulga que imaginava ter presa entre o
polegar e o indicador.
Havia algum tempo já que Berta parara à porta da cozinha, sem que a estranha criatura desse o menor sinal de a
ter percebido.
– Zana! disse afinal a menina.
Estremeceu a negra, e pôs-se a escuta daquela voz, como se viesse de longe, de bem longe, e só mui de leve lhe
ferisse as ouças. Não se repetindo o chamado, voltou à primeira posição e continuou a resmonear, abanar a cabeça
coberta de uma carapinha grisalha da cor de lã churra do carneiro.
Entretanto Berta aproximou-se de uma prateleira que havia na parede, junto ao fogão, para esvaziar ali o resto do
saco. No velho alguidar esborcinado, deitou a farinha de milho; e sobre a tábua algum feijão e torresmos de carne
de porco, embrulhados em folhas de couves.
Recostando-se então à aba da prateleira, a menina com os olhos fitos na preta começou em um tom brando e
suavíssimo a repetir este acalanto:
Cala a boca, anda, nhazinha,
Ai-huê, lê-lê!
Senão olha, canhambola,
Ai-huê, lê-lê!
Vem cá mesmo, Pai Zumbi,
Toma, papanha Bebê!
53
À proporção que a menina cantava, à preta desrugava-se o rosto contraído por um espasmo, que lhe deixara
impressa no semblante alguma profunda angústia. Uma vaga expressão de sorriso chegou a iluminar aquela
fisionomia bruta e repulsiva. Os olhos pouco antes baços e quase extintos desferiram um lampejo, e vagando um
instante pelo aposento, se fixaram enfim no vulto de Berta.
– Bebê!... regougaram os grossos beiços da negra com uma voz que não parecia humana, embora repassada de
extrema doçura.
Depois arrancou do peito cavernoso a mesma toada do acalanto, cujas palavras truncava por forma que somente
se percebia delas a sonância confusa e estranha. Dir-se-ia que ela cantava em algum dialeto africano, tão bárbara
era a pronúncia com que se exprimia.
Entretanto fora dela mesma que Berta aprendera a cantilena por tê-la ouvido repetir muitas vezes. Imagine-se
que esforço de paciência e atenção não fora necessário à menina para decifrar entre os sons ignotos e quase
inarticulados, as palavras da cantiga, que ela dantes nunca ouvira.
Mas a pobre louca era uma das misérias sobre que se derramava como bálsamo a alma de Berta. Desde criança
se habituara a passar aí algumas horas, de quando em vez; tornando-se moça vinha regularmente duas vezes por
semana visitar a sua protegida e trazer-lhe o sustento.
Esperou Berta com a maior paciência que Zana acabasse de cantar; e então mostrando-lhe as provisões conseguiu
que ela comesse alguns bocados dados por sua mão. Para que a doida abrisse a boca, porém, era necessário que
a menina estivesse a repetir de momento a momento duas palavras que pronunciadas por sua voz carinhosa
produziam sobre esse espírito enfermo um efeito mágico.
– Zana, bebê!...
VIII – Letargo [(Terceiro Volume)]
Uma cena espantosa acabava de passar na alcova.
Com o rumor que fizera Berta ao bater a porta, na ocasião de entrar, a cascavel alçou a cabeça, e descobrindo o
vulto da menina, desdobrou-se para escorregar ao chão.
Apenas tocou o soalho, enroscou-se rapidamente sobre si, na sombra que embaixo do leito projetava o cortinado,
e enristou o colo como um dardo inserido na seteira de uma torre e pronto para o arremesso. Ao mesmo tempo a
cauda romba e curta, vibrada por uma crispação nervosa, batia no pavimento a primeira das três pancadas fatais
que precedem o bote, chocalhando os cascavéis com a sinistra crepitação, que gela a medula ao mais destemido.
Assim com o bote armado, esperou o insidioso réptil se aproximasse o inimigo, para de um jacto cravar-lhe os dois
croques terríveis que manam o sutil e mortífero veneno.
Quando Berta, aproveitando-se do descuido de Afonso, conseguira fechar a porta, imediatamente correu à cama
a fim de tomar o chapéu que vira sobre as almofadas, e fugir pela janela, travessura que ela tinha em criança feito
muitas vezes, e que se propunha a realizar agora antes de dar tempo ao moço para atalhar-lhe o caminho.
No meio do aposento, parou a menina de repente com um involuntário estremecimento. Ouvira o som áspero de
um guizo estrídulo, tangido rapidamente; e sentiu logo um enjoo produzido por acre exalação que se derramara
no ar.
Atraídos por um impulso misterioso, volveram-se os olhos de Berta, e caíram sobre a boicininga, cujas pupilas
fulvas, fulguravam na sombra, jorrando em ondas uma luz fosforescente, como as chamas sulfúreas, que se
levantam do seio da terra vulcânica e retalham o negrume da noite.
54
A fauce hiante, sanguínea, se eriçava com duas serrilhas de dentes aduncos e retorcidos como garras, e no meio
dela agitava-se a língua negra, híspida, dardejante, cuja ponta bífida ressaltava como impulsa por oculta mola de
dentro de si mesma; pois servia-lhe de estojo a parte inferior.
Foi nesse momento, ao avista a cobra que o grito de terror escapou-se da boca de Berta. Mas às perguntas de Linda
e de Afonso, se ainda as ouviu confusamente, não teve ela mais voz para responder-lhes que seus lábios estavam
gelados.
Encontrando-se o olhar da serpente e o seu, cravaram-se de modo, ou antes se imbuíram e penetraram tanto um
no outro, que não pode mais a vontade separa-los e romper o vínculo poderoso. Parecia que entre a brilhante
pupila negra da menina e a lívida retina da cascavel se estabelecera uma corrente de luz na qual fazia-se o fluxo e
refluxo das centelhas elétricas.
A mesma cambraia que retraiu o dorso flexuoso da boicininga espasmou o talhe grácil de Berta, como se uma força
única regera a vida nessas duas organizações. Aí estava produzida ao vivo a misteriosa identificação da mulher e
da serpente, que deu tema ao poético mito da tentação.
Lentamente a cascavel afrouxava os anéis em que enroscara o toro, até que se espreguiçou ao longo pelo
pavimento, pousando lânguida sobre a tábua a cabeça chanfrada. Recolheu-se a língua dentro da bainha, e esta
desapareceu por baixo do focinho, que se abatera flacidamente sobre a mandíbula.
Toda a força vital da boicininga se concentrava no olhar, donde coava-se uma flama trepida, por entre as titilações
da membrana sutil, que reveste a retina da serpente. Encadeada por esse fio luminoso ao olhar cintilante de Berta,
o medonho réptil parecia como deslumbrado por súbito lampejo.
Também a menina sofria a repercussão dessa influência.
As pernas trêmulas vacilavam; invadida por súbito desfalecimento, vergou ao peso do próprio corpo, e convolveuse como a campânula que frange as pétalas para cerrar o cálice e pender murcha sobre a haste.
Assim deixou-se Berta cair de joelhos e derreando sobre os calcanhares, foi preciso apoiar-se com a mão esquerda
no soalho, a fim de suster o busto, que uma força misteriosa impelia avante, como para prostra-la de bruços e
colear-lhe o talhe.
Ainda assim não resistia de todo àquela poderosa atração. Com o pescoço distendido, a cabeça lançada à frente,
mostrava a ânsia de arrastar-se para vencer a distância que a separava da cascavel.
O desmaio da moça fora a princípio cheio de indizível angústia; apoderou-se dela um incompreensível pavor;
queria fugir, e sentia-se elada a si mesma como a um poste de dor. Dir-se-ia que duas forças divergentes, duas
naturezas em reação, lutavam dentro de sua alma e a dilaceravam, disputando-lhe o ser, como aves de rapina que
brigam pelo cibo.
Uma dessas naturezas abatia-lhe a fronte, que a outra porfiava em manter excelsa; e estorcia-lhe o corpo feito para
a estatura nobre e senhoril. Umas vezes, presa da estranha vertigem, via-se em pé, diante de si mesma, imperiosa
e cheia de desdém, a esmagar sua própria cabeça. Outras vezes transformada em vípera, eleva-se pelo colo da
menina gentil, que ela era, e conchegava-se ao tépido calor de um seio virgem.
Afinal, com um movimento hirto estendeu Berta o braço direito para a cascavel, aberta a mão e crispados os
dedos, no ímpeto de tocar o rosto do réptil, ao qual tornou-se mais viva a trepidação do olhar.
Confrangendo-se, a boicininga propulsou de leve a cabeça, como se arrastara um fio invisível, e foi lentamente
rojando para Berta. Nesse instante havia Afonso enxergado o réptil; e se precipitara horrorizado para despedaçar
a porta.
55
Entretanto Berta, à proporção que avançava para ela a boicininga, ia-se retraindo; erigia-se o busto, e ressurgialhe n’alma essa elação que a desfere ao céu e que imprime na criatura humana a majestade do porte. Assumia a
menina outra vez a fina têmpera de seu caráter altivo e inflexível.
Quando a cabeça da cascavel roçou-lhe a ponta dos dedos, um choque íntimo percutiu-lhe o corpo, e estorceu o
toro da serpente. Mas passou instantaneamente; o réptil elando-se pelo braço mimoso, veio cingir-lhe as espáduas,
formando colar.
Com o toque desse brando serpear sentiu Berta a doçura de uma carícia; a boicininga titilava de volúpia ao tépido
calor da cútis acetinada; e escondendo a monstruosa cabeça na conchinha da mão que a menina recolhera ao seio,
caiu no letargo.
XVI – Alma Sóror [(Quarto Volume)
Descamba o sol.
Berta sentada à sombra do oitão da casa de nhá Tudinha, deitou sobre os joelhos a camisa que estava cosendo
para Jão, e embebeu no azul diáfano do horizonte um olhar profundo, coalhado de lágrimas.
A seus pés, Zana agachada na esteira, contempla extática o rosto da menina; e de vez em quando o prazer íntimo
que ela sente, derrama-se em sua fisionomia, e banha-lhe o rosto de um riso baço.
Ao lado, o Brás contempla Til com surda inquietação, que se trai a espaço pela contração dos músculos faciais e
pela extrema mobilidade da pupila espantada.
Algumas braças distante, Jão curvado sobre a enxada, carpa a terra preparando as leiras para a plantação do
feijoal. De vez em quando para um instante, enxuga com a manga da camisa o suor abundante que lhe escorria da
testa, e sopra os calos de que o trabalho já lhe encruou as mãos. Nessa ocasião crava com desassossego um olhar
em Berta.
Miguel assomou à porta da casa, e desprendendo-se do estreito abraço em que o cingia a mãe lacrimosa, dirige-se
para o lugar onde estava a menina.
Importantes acontecimentos tinham passado na última semana decorrida depois da confissão que Luís Galvão
fizera à sua mulher.
Berta recusou obstinadamente reconhecer Luís Galvão como seu pai. A todos os rogos e instâncias respondia com
um meigo sorriso:
– Não acredito, estão me enganando; meu pai é Jão. Foi ele quem teve dó de minha mãe, e quem me criou!... Não
tenho outro senão ele!
Assim em compensação de tantas míseras crianças abandonadas por aqueles que lhes deram o ser, houve então
um pai enjeitado.
Muitas vezes Luís Galvão insistia em reconhecer a filha e leva-la para a sua casa, onde acharia em D. Ermelinda uma
terna e boa mãe:
– Mãe, dizia Berta, não quero outra senão aquela que me está esperando no céu. Mas há uma coisa que me faria
muito feliz. Esse lugar que não pode ser meu, eu dou a Miguel. Ele quer tanto bem à Linda!...
Não teve Luís Galvão coragem para resistir ao pedido de Berta. Parecia-lhe que assim cumpria um voto de Besita.
D. Ermelinda condescendeu prontamente com o desejo do marido, ansiosa por vê-lo restituído à sua tranquilidade
e arrependida da confissão que provocara.
56
Combinou-se que Miguel iria estudar a São Paulo; e dois anos depois se efetuaria o casamento naquela cidade
para onde a família devia partir logo.
E quem sabe se voltaria mais às Palmas?
Chegara a véspera da partida. Miguel fora despedir-se da mãe para seguir lá pela madrugada com a família
caminho da capital. Luís Galvão lhe pedira ainda uma vez empregasse todos os esforços para resolver Berta a
acompanha-los.
O moço ao chegar anunciara sua intenção de levar Berta, e daí o desassossego que transparecia no semblante do
Bugre, e no olhar do idiota, confiado à guarda de nhá Tudinha durante ausência do tio.
Dirigiu-se Miguel a Berta e apertou-lhe ambas as mãos.
– Então, Inhá?...
E seu olhar exprimia uma súplice interrogação. A menina moveu lentamente a gentil cabeça.
– Fica?
– É preciso, Miguel. Quem há de consolar sua mãe?
– Coitada! murmurou o moço.
E afastou-se da casa para não ouvir os soluços de nhá Tudinha. Berta o seguiu.
Por algum tempo caminharam os dois em silêncio, par a par escutando as emoções que falavam dentro d’alma
opressa. Uma lágrima tremia-lhe nas pálpebras prestes a estalar.
– Se você tivesse querido, Inhá, disse timidamente Miguel, poderíamos ser tão felizes!...
– E você não é, Miguel? perguntou Berta fitando nele um olhar melancólico.
– Sou! respondeu o moço com um suspiro.
Houve um novo e longo silêncio. Foi Miguel quem outra vez rompeu:
– Meu sonho era viver aqui nesta casa onde nasci, com minha mãe e você, Inhá. Por muito tempo sorriu-me esta
doce esperança; mas você não quis!
– Não diga isto, Miguel! exclamou Berta com a voz afogada em lágrimas.
– Quem me separa destes lugares e talvez para sempre?
Curvou Berta a cabeça e balbuciou:
– Lembre-se de Linda!
– Lembro-me daquela que foi companheira de minha infância, com quem folguei os primeiros anos da vida, e
cuidei que havia de repartir minha pobreza e humildade. Quantas vezes supliquei a Deus que nos conservasse
unidos sempre, e esquecidos aqui neste canto do mundo. Mas ela tomou para si unicamente a existência tranquila
e feliz que eu pedia para ambas, e aparta-me de si para longe!
– Miguel!...
Olhares ansiosos seguiam Berta, que afastava-se lentamente de Miguel na direção das Palmas.
Jão, vergado sobre o cabo da enxada e agitado por veemente comoção, parecia despedir-se de si, para se precipitar
aos pés da menina. Brás, cavado o semblante por violentas contorções, arrancava os cabelos da grenha ruiva, e
57
mordia o beiço para não gritar. Zana estendia os braços hirtos, e no afã de alcançar Berta e aperta-la ao seio, rojavase pela grama.
Miguel falava com fervor, e a fronte gentil da menina pendia com lânguida e meiga inflexão, como nenúfar que se
debruça à beira do regato e não tarda a ser levada pela corrente que o enamora.
Afinal o moço enlaçou com o braço a cintura da menina, e a atraiu sem que ela lhe opusesse a mínima resistência.
Pousando a cabeça trêmula no ombro de seu companheiro de infância, deixou-se Berta levar, embalada por um
sonho fagueiro.
Cortou os ares um grito de angústia. Brás caíra ao chão como fulminado, e estrebuchava em uma violenta
convulsão, soltando uivos estridentes.
Berta desprendeu-se dos braços do moço:
– Não, Miguel. Lá todos são felizes! Meu lugar é aqui, onde todos sofrem.
E rompendo o doce enlevo que a prendia um momento antes, soluçou:
– Adeus!...
Correu então para o mísero idiota e sentando-se na grama para deita-lo ao colo, ocupou-se em afaga-lo.
Quando moderou o acesso e que ele pode ouvi-la, falou-lhe com profunda comoção:
– Eu sou Til!... Til só!...
Compreendeu Brás a significação destas palavras, e adivinhou quanta sublime abnegação exprimiam elas?
Nesse instante Miguel voltou-se além, na extrema do caminho onde ia sumir-se, e a brisa trouxe um eco de sua voz:
– Adeus, Inhá!...
Os lábios de Berta murmuraram frouxamente:
– Para sempre!
Jão de pé em face dela esmagava com os punhos as bagas que lhe saltavam dos olhos; enquanto o peito lhe
estertorava com o pranto que tentava sufocar.
Berta pousou nele o seu brando olhar e disse-lhe com um sorriso:
– Vai trabalhar, Jão!...
Entrou em casa para consolar nhá Tudinha; e instantes depois se restabeleceu a cena plácida e melancólica do
começo da tarde.
Quando o sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepúsculo, e com os
olhos engolfados na primeira estrela, rezou a ave-maria, que repetiam, ajoelhados a seus pés, o idiota, a louca e o
facínora remido.
Como as flores que nascem nos despenhadeiros e algares, onde não penetram os esplendores da natureza, a alma
de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas, subvertidas pela desgraça.
Era a flor da caridade, alma sóror.
58
10. Biografia do autor
José Martiniano de Alencar (1829/1877) nasceu em Mecejana, no Ceará. Em
1844, matriculou-se nos cursos preparatórios à faculdade de Direito de São
Paulo, começando os estudos em 1846. Fundou, nesta época, a revista Ensaios
literários, em que publicou o artigo “Questões de estilo”. Em 1854, estreou como
folhetinista no Correio Mercantil. Em 1856, sob o pseudônimo de Ig, criticou o
poema “A confederação dos tamoios”, de Gonçalves de Magalhães. Em 1859,
ano em que se formou em Direito, tornou-se Chefe da Secretaria do Ministério
da Justiça, sendo consultor dessa instituição. Casou-se em 1864, com Ana
Cochrane. Em 1868, tornou-se Ministro da Justiça e, em 1869, candidatou-se
ao Senado. Deixou o Ministério em 1870, voltando à Câmara dos Deputados,
em oposição ao imperador Pedro II. Faleceu no Rio de janeiro, vítima de
tuberculose.
Considerado um dos principais autores do Romantismo brasileiro, o escritor
cearense José de Alencar é quase sempre reverenciado nos manuais de
literatura brasileira pelo seu importante papel de romancista no século XIX. A principal marca do Romantismo
brasileiro foi seu nacionalismo, que se manifestou, por exemplo, na intenção de alguns autores de delinear
um projeto de literatura nacional a partir de um “herói legítimo”, que seria o habitante original destas terras, o
índio. José de Alencar incorporou mais do que ninguém este projeto, com sua “trilogia indianista”: O guarani
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).
Além disso, também escreveu as seguintes obras:
Romance: Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva (1864); As minas de prata (18621866); O gaúcho (1870); A pata da gazela (1870); A guerra dos mascastes (1871); O tronco do ipê (18711873); Sonhos d´ouros (1872); Til (1872); Alfarrábios (contendo O garatuja, O ermitão da glória e A alma de
Lázaro) (1873); Senhora (1875); O sertanejo (1875); Encarnação (1877).
Teatro: A noite de São João (1857); O Rio de Janeiro (Verso e Reverso) (1857); O demônio familiar (1857); O
crédito (1857); As asas de um anjo (1858); Mãe (1860); A Expiação (1867); O jesuíta (1875).
Crônica: Ao correr da pena (1854).
Autobiografia: Como e porque sou romancista (1893).
59
11. Bibliografia
§ ALENCAR, José de. Til – Romance Brasileiro. (Apresentação e Notas: Ivan Teixeira). São Paulo: Ateliê
Editorial, 2012.
§ ALENCAR, José de. Til. (Apresentação: Flávio Aguiar). 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2004.
§ ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas, Pontes, 1990.
§ BERALDO, José Luiz (Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico). José de Alencar –
Coleção Literatura Comentada. 2ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988.
§ BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 2ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1975,
§ CANDIDO, Antonio, e CASTELO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira – Das Origens ao
Romantismo. 7ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Difel, 1979,
§ CANDIDO, Antonio. A formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 2º Vol. (1836-1880). Belo
Horizonte: Ed. Itatiaia Limitada, 1981.
§ COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 7ª ed., Rio de Janeiro: Editora Distribuidora de
Livros Escolares Ltda., 1972.
§ PAES, José Paulo & MOISÉS, Massaud (Orgs.). Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. 2ª ed. rev. e
ampl. São Paulo: Cultrix, 1987 (1ª ed: 1967).
§ PROENÇA, Mário Cavalcante Proença (org.). José de Alencar. Obra completa. Vol. I. Rio de Janeiro:
Companhia Aguilar Editora, 1965.
§ VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969.
12. Exercícios
1- (Unicamp-SP)
— [...] Quando o Bugre sai da furna, é mau sinal: vem ao faro do sangue como a onça. Não foi debalde que lhe
deram o nome que tem. E faz garbo disso!
— Então você cuida que ele anda atrás de alguém?
— Sou capaz de apostar. É uma coisa que toda a gente sabe. Onde se encontra Jão Fera, ou houve morte ou não
tarda.
Estremeceu Inhá com um ligeiro arrepio, e volvendo em torno a vista inquieta, aproximou-se do companheiro para
falar-lhe em voz submissa:
— Mas eu tenho-o encontrado tantas vezes, aqui perto, quando vou à casa de Zana, e não apareceu nenhuma
desgraça.
— É que anda farejando, ou senão deram-lhe no rasto e estão-lhe na cola.
— Coitado! Se o prendem!
60
— Ora qual. Dançará um bocadinho na corda!
— Você não tem pena?
— De um malvado, Inhá!
— Pois eu tenho!
(ALENCAR, José de. Til. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar: 1958. p. 825.)
O trecho do romance Til transcrito acima evidencia a ambivalência que caracteriza a personagem Jão Fera
ao longo de toda a narrativa.
a) Explicite quais são as duas faces dessa ambivalência.
b) Exemplifique cada face dessa ambivalência com um episódio do romance.
(Fuvest-SP) Texto para as questões de 2 a 4.
V – O samba
À direita do terreiro, adumbra-se* na escuridão um maciço de construções, ao qual às vezes recortam no azul do
céu os trêmulos vislumbres das labaredas fustigadas pelo vento.
[...]
É aí o quartel ou quadrado da fazenda, nome que tem um grande pátio cercado de senzalas, às vezes com
alpendrada corrida em volta, e um ou dois portões que o fecham como praça d’armas.
Em torno da fogueira, já esbarrondada pelo chão, que ela cobriu de brasido e cinzas, dançam os pretos o samba
com um frenesi que toca o delírio. Não se descreve, nem se imagina esse desesperado saracoteio, no qual todo o
corpo estremece, pula, sacode, gira, bamboleia, como se quisesse desgrudar-se.
Tudo salta, até os crioulinhos que esperneiam no cangote das mães, ou se enrolam nas saias das
raparigas. Os mais taludos viram cambalhotas e pincham à guisa de sapos em roda do terreiro. Um
desses corta jaca no espinhaço do pai, negro fornido, que não sabendo mais como desconjuntar-se,
atirou consigo ao chão e começou de rabanar como um peixe em seco. [...]
(José de Alencar, Til.)
(*) adumbra-se = delineia-se, esboça-se.
2- Para adequar a linguagem ao assunto, o autor lança mão também de um léxico popular, como atestam
todas as palavras listadas na alternativa:
a) saracoteio, brasido, rabanar, senzalas.
b) esperneiam, senzalas, pincham, delírio.
c) saracoteio, rabanar, cangote, pincham.
61
d) fazenda, rabanar, cinzas, esperneiam.
e) delírio, cambalhotas, cangote, fazenda.
3- Ao comentar o romance Til e, inclusive, a cena do capítulo “O samba”, aqui reproduzida, Araripe Jr., parente
do autor e estudioso de sua obra, observou que esses são provavelmente os textos em que Alencar “mais
se quis aproximar dos padrões” de uma “nova escola”, deixando, neles, reconhecível que, “no momento” em
que os escreveu, “algum livro novo o impressionara, levando-o pelo estímulo até superfetar* a sua verdadeira
índole de poeta”. Alguns dos procedimentos estilísticos empregados na cena aqui reproduzida indicam que a
“nova escola” e o “livro novo” a que se refere o crítico pertencem ao que historiadores da literatura chamaram
de:
(*) superfetar = exceder, sobrecarregar, acrescentar-se (uma coisa a outra).
a) Romantismo-Condoreirismo.
b) Idealismo-Determinismo.
c) Realismo-Naturalismo.
d) Parnasianismo-Simbolismo.
e) Positivismo-Impressionismo.
4- Considerada no contexto histórico a que se refere Til, a desenvoltura com que os escravos, no excerto, se
entregam à dança é representativa do fato de que:
a) a escravidão, no Brasil, tal como ocorreu na América do Norte e no Caribe, foi branda.
b) se permitia a eles, em ocasiões especiais e sob vigilância, que festejassem a seu modo.
c) teve início nas fazendas de café o sincretismo das culturas negra e branca, que viria a caracterizar a
cultura brasileira.
d) o narrador entendia que o samba de terreiro era, em realidade, um ritual umbandista disfarçado.
e) foi a generalização, entre eles, do alcoolismo, que tornou antieconômica a exploração da mão de obra
escrava nos cafezais paulistas.
5- (Fuvest-SP) Leia com atenção o trecho de Til, de José de Alencar, para responder ao que se pede.
[Berta] - Agora creio em tudo no que me disseram, e no que se pode imaginar de mais horrível. Que assassines
por paga a quem não te fez mal, que por vingança pratiques crueldades que espantam, eu concebo; és como a
suçuarana, que às vezes mata para estancar a sede, e outras por desfastio entra na mangueira e estraçalha tudo.
Mas que te vendas para assassinar o filho de teu benfeitor, daquele em cuja casa foste criado, o homem de quem
recebeste o sustento; eis o que não se compreende; porque até as feras lembram-se do benefício que se lhes fez,
e têm um faro para conhecerem o amigo que as salvou.
62
[Jão] - Também eu tenho, pois aprendi com elas; respondeu o bugre; e sei me sacrificar por aqueles que me querem.
Não me torno, porém, escravo de um homem, que nasceu rico, por causa das sobras que me atirava, como atiraria
a qualquer outro, ou a seu negro. Não foi por mim que ele fez isso; mas para se mostrar ou por vergonha de enxotar
de sua casa a um pobre-diabo. A terra nos dá de comer a todos e ninguém se morre por ela.
[Berta] - Para ti, portanto, não há gratidão?
[Jão] - Não sei o que é; demais, Galvão já pôs-me quites dessa dívida da farinha que lhe comi. Estamos de contas
justas! acrescentou Jão Fera com um suspiro profundo.
a) Nesse trecho, Jão Fera refere-se de modo acerbo a uma determinada relação social (aquela que o
vinculara, anteriormente, ao seu “benfeitor”, conforme diz Berta), revelando o mal-estar que tal relação lhe
provoca. Que relação social é essa e em que consiste o mal-estar que lhe está associado?
b) A fala de Jão Fera revela que, no contexto sócio-histórico em que estava inserido, sua posição social o fazia
sentir-se ameaçado de ser identificado com um outro tipo social, identificação, essa, que ele considera
intolerável. De que identificação se trata e por que Jão a abomina? Explique sucintamente.
6- Para resolver as questões, leia o trecho a seguir, de Til, de José de Alencar.
Atrás de um fraguedo, cuja fralda atravessava o leito do rio, abrolhando-lhe a corrente, existia naquele tempo uma
casa em ruína. Já tinha desabado metade da parede do sótão e o telhado abatia aos poucos, rompendo os caibros
podres.
Da cozinha, que ainda se conservava em bom estado, com exceção da porta já tombada ao chão pela ferrugem
das dobradiças, saía um som roufenho e soturno, como o grunhido de um porco. Acocorada a um canto, com o
queixo sobre os cotovelos fincados ao peito cerrando a cara, descobria-se uma criatura humana, dobrada sobre si
a modo de trouxa.
[...]
Havia algum tempo já que Berta parara à porta da cozinha, sem que a estranha criatura desse o menor sinal de a
ter percebido.
— Zana! disse afinal a menina.
Desde algum tempo, em uma de suas visitas, reparou Berta na singular mímica da doida, e de princípio não viu
nisso mais do que um efeito natural da loucura. Mais tarde, porém, notando a insistência com que a negra repetia
os mesmos movimentos, e ordem em que eles se sucediam, suspeitou a menina um mistério.
Não seria essa pantomima a representação muda de uma cena que ali, naquela casa em ruínas, passara outrora, e
abalara a alma da negra a ponto de a subverter e alucinar?
a) A “pantomima” de Zana representa um acontecimento fundamental da narrativa. Aponte esse acontecimento.
b) A “casa em ruína” de Zana tem um valor simbólico. Explique esse simbolismo.
c) Zana será fundamental para a revelação, ao final, da verdade sobre Berta. Explique por quê.
63
7- (PUC-SP) Leia o texto a seguir:
No terreiro das Palmas arde a grande fogueira.
É noite de São João.
Noite das sortes consoladoras, dos folguedos ao relento, dos brincados misteriosos.
Noite das ceias opíparas, dos roletes de cana, dos milhos assados e tantos outros regalos.
Noite, enfim, dos mastros enramados, dos fogos de artifício, dos logros e estripulias.
Outrora, na infância deste século, já caquético, tu eras festa de amor e da gulodice, o enlevo dos
namorados, dos comilões e dos meninos, que arremedavam uns e outros.
As alas da labareda voluteando pelos ares como um mastro de fitas vermelhas que farfalham ao vento
na riçada cabeça de linda caipira, derramam pelo terreiro o prazer e o contentamento.
No trecho acima, do romance Til, de José de Alencar, é possível identificar:
a) linguagem fortemente poética, evidenciada pelo uso de figuras de estilo, entre as quais se destacam
metáfora, comparação e onomatopeia.
b) linguagem puramente referencial, visto que descreve uma cena envolvendo uma festa religiosa e folclórica.
c) linguagem dominantemente emotiva, identificada pelas marcas do eu lírico que se mostra especialmente
emocionado diante da cena.
d) linguagem exclusivamente apelativa, visto que todo o trecho gira em torno da interpelação do eu lírico à
noite.
e) linguagem com força metalinguística, apoiada na repetição intencional de palavras caracterizadoras de
uma comemoração junina.
64
13. Gabarito
1a) Por um lado, Jão Fera é um jagunço que presta serviços como valentão e assassino, aterrorizando toda a
região; por outro, é um protetor de Til, um homem de honra e palavra.
b) A face de jagunço violento está explícita, por exemplo, no fato de quase ter assassinado o fazendeiro Luís
Galvão (no que foi impedido por Berta) ou quando, com as próprias mãos, destroça Barroso ao final da
narrativa. A face de protetor de Berta fica clara em diversos episódios, por exemplo, quando a salva de um
ataque de queixadas ou ao final da narrativa, ao impedir que seja violentada e morta por Barroso.
2- Alternativa C.
3- Alternativa C.
4- Alternativa B.
5a) A relação é a de “favor”. Durante muito tempo, Jão Fera, que apareceu criança abandonada na Fazenda das
Palmas, dependeu da bondade do pai de Luís Galvão para sobreviver. A consciência de sua inferioridade
social perante o fazendeiro por esses favores devidos é que lhe causa mal-estar.
b) Jão Fera recusa ser associado a um escravo, cuja condição social é, evidentemente, inferior a de homem
pobre que vive como agregado ou de favores, como era o caso do jagunço. Ao recusar a associação aos
escravos, Jão Fera mantém sua dignidade de homem livre e dono de sua vontade.
6a) Esse acontecimento é o assassinato de Besita por Ribeiro (que ressurgirá como Barroso). A pantomima
de Zana reproduz seu esforço para tentar esconder ou disfarçar a menina a fim de evitar que a tragédia
ocorresse como ocorreu.
b) Por um lado, a casa em ruínas representa a própria mente de Zana, arruinada pelo episódio do passado,
que a arrastou à loucura. Por outro lado, a casa em ruínas representa a ruína moral do passado de Luís
Galvão, em contraste com a prosperidade da Fazenda das Palmas (em cujas imediações a casa de Zana
se situa) e sua vida perfeita de proprietário e chefe de família e pairando como uma ameaça sobre essa
situação social e familiar aparentemente impecável.
c) Será Zana quem, em um surto, sairá de sua casa e se colocará em frente ao cavalo de Luís Galvão,
quando este retorna para casa, com a esposa, da festa do Congo em Piracicaba. Diante da alucinação
de Zana, que (contra a cronologia dos fatos) pede ao fazendeiro para não cometer o crime (o estupro
de Besita) que já cometeu e que levaria sua patroa à morte, Dona Ermelinda exige explicações. Então o
marido conta toda a verdade e a origem de Berta é revelada.
7- Alternativa A.
65