Trabalho da REA - iv rea | xiii abanne
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Trabalho da REA - iv rea | xiii abanne
Realizada entre os dias 04 e 07 de agosto de 2013, em Fortaleza, Ceará Grupo de Trabalho 43: Saberes locais, regionais e transnacionais na interface entre alimentação e cultura Os "galegos da Bahia" e os "brasileiros na Galiza": a comida dos galegos na Bahia e na Galícia Fabiana Paixão Viana [email protected] Universidade Federal da Bahia Os "galegos da Bahia" e os "brasileiros na Galiza": a comida dos galegos na Bahia e na Galícia1 Fabiana Paixão Viana [email protected] Universidade Federal da Bahia Resumo: Salvador está repleta de instituições e estabelecimentos comerciais galegos, tanto nos setores de comércio quanto em serviços. Alguns destes, de tão enraizados no cenário e no imaginário soteropolitano, escondem os percalços vividos por seus fundadores e ascendentes, quando saíram de sua terra natal fugindo da fome e da guerra, cheios de sonhos e anseios, e aqui encontraram uma realidade dura e um tratamento hostil, de muito trabalho e poucos benefícios oferecidos por seus conterrâneos. É inegável que estes imigrantes trouxeram (e levaram em visitas, ou retorno, para a sua região de origem) muito mais do que bens materiais em suas bagagens. Entre outras coisas, estavam presentes comportamentos, receitas e gostos, isto é, preferências e repulsas alimentares que não são fixas, nem imutáveis, uma vez que elas se adaptam aos grupos e as regiões em que estão inseridos. O processo de adaptação em um novo país possibilitou o surgimento de uma cozinha particular, composta por ingredientes, técnicas de preparo, maneiras de servir e comer distintos daqueles existentes em seu lócus de origem, porém mantendo, na medida do possível, os hábitos e os gostos alimentares de outrora, a exemplo da ingestão de peixes e mariscos, porco e a condimentação básica, que colore e aromatiza as mais variadas comidas galegas. Assim, neste trabalho, abordarei as primeiras levas de imigrantes galegos em Salvador, analisando, sempre que possível, os impactos – positivos e negativos - dos recém-chegados em relação a culinária brasileira, principalmente a baiana. Buscarei, ainda, entender o lugar da culinária na preservação do ethos do imigrante, sobretudo com a instituição de pratos-totens. O outro lado do Atlântico Diversos são os motivos que levam uma pessoa a substituir a familiaridade do seu local de origem e o convívio com seus pares para se lançar por caminhos desconhecidos, muitas vezes, sozinha e sem qualquer contato prévio com o lugar de destino. Situações de guerra, perseguições políticas, variações meteorológicas intensas (períodos de grandes secas ou enchentes) e fome são algumas explicações possíveis; porém, todas elas, convergem para a preservação da vida e o eminente medo de perdê-la. Apesar destas variáveis, 1 Trabalho apresentado nas IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, realizadas entre os dias 04 a 07 de agosto de 2013, em Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho 43: Saberes locais, regionais e transnacionais na interface entre alimentação e cultura. as condições econômicas constituem o fator de expulsão mais importante, é essencial saber por que mudam as condições e quais são os fatores responsáveis pelo agravamento da situação crítica que afeta a capacidade potencial dos emigrantes de enfrentá-la. Nessa fórmula, três fatores são dominantes: o primeiro é o acesso à terra e, portanto, ao alimento; o segundo, a variação da produtividade da terra; e o terceiro, o número de membros da família que precisam ser mantidos. Na primeira categoria estão as questões que envolvem a mudança dos direitos sobre a terra, suscitada via de regra pela variação da produtividade das colheitas, causada por sua vez, pela modernização agrícola em resposta ao crescimento populacional. Nas grandes migrações dos séculos XIX e XX – época em que chegaram à América mais de dois terços dos migrantes – o que de fato contava era uma combinação desses três fatores (KLEIN, 2000: 14). Essas motivações, em linhas gerais, dialogam com o fantasma da grande fome que assolou a Europa nos séculos anteriores a massiva leva de migrações para a América. O cultivo da terra, a variação da produtividade e a quantidade de co-residentes no grupo doméstico estão intimamente relacionados a relatos de escassez e inanição que, ainda hoje, perturbam a memória dos europeus. Essa lembrança pode ser percebida desde a fartura de alimentos dispostos nos banquetes festivos até comparações populares que associam o estômago de um trabalhador com um acordeão que estira ou encolhe de acordo com as notas da música que é tocada. Neste trabalho, abordarei, em linhas gerais, a trajetória das primeiras levas de imigrantes galegos em Salvador, analisando os impactos – positivos e negativos - dos recém-chegados em relação a culinária brasileira, principalmente a baiana. Buscarei, ainda, entender o lugar da culinária tradicional de origem na preservação do ethos do imigrante, sobretudo com a instituição de pratos-totens e na transmissão dos ensinamentos para as gerações seguintes. Inicialmente, temos que atentar que, apesar de ter recebido significativo número de imigrantes espanhóis, o Brasil não foi a principal opção dos viajantes no período compreendido entre 1882 e 1930 – décadas das primeiras grandes imigrações espanholas -; este ranking foi liderado pela Argentina e por Cuba, que, juntos, recepcionaram 82% destes imigrantes. No Brasil, os imigrantes espanhóis se estabeleceram, principalmente, no Pará, em Pernambuco, na Bahia, em Mato Grosso, no Amazonas, no Rio de Janeiro, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, em Goiás e em São Paulo. Entre estes destinos, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia foram os estados mais procurados pelos imigrantes espanhóis no início do século XX. Neste período, a Bahia recebeu cerca de 3500 espanhóis, sendo 98% provenientes da Galícia. A Galícia está situada a noroeste da Espanha e tem toda sua costa banhada pelo Oceano Atlântico. É limitada, ao norte, pelo golfo de Biscaia; ao sul, por Portugal; ao leste, pelo próprio território espanhol, através de suas províncias de Castilla-León e Astúrias. Tem uma superfície de 29.156 km² e é dividida em quatro províncias [...]. A maior delas é a de Lugo, com 9.881 km², seguida de La Coruña, com 7.903 km², Orense, com 6.979 km² e, finalmente, Pontevedra, com 4.393 km² (BRAGA, 1995: 57) A história da Galícia é repleta de momentos de conquista e resistência, tanto aqueles de luta pelo território, quanto a perda e reconquista de sua língua, perpassando por períodos de grande fome e oscilações populacionais. Inicialmente, deu-se o trânsito interno, das áreas rurais para os centros urbanos, em seguida, observou-se imigrações para Portugal e outras regiões da Espanha e, por fim, para alguns países da América. É importante salientar que as grandes levas de imigrações de galegos para outras regiões foram preponderantes para a constituição e para o desenvolvimento da Galícia, principalmente no setor econômico, isso porque de 1900 a 1930 houve uma progressiva transferência da população do setor primário para os setores secundário e terciário, sendo que na década de 20 para a de 30 este fenômeno se fez notar com muita evidência. Da década de 30 para a de 40, no entanto, houve uma retratação nos setores da indústria e dos serviços, enquanto a população voltou a crescer no setor da agricultura [...] De 20 para 30 a Galícia passou por um momento de desenvolvimento, com ênfase em mudanças qualitativas. A Galícia recebeu o retorno da emigração, pois os que haviam emigrado, sobretudo os que saíram para a América, enviavam regularmente, importâncias significativas para a realização de obras importantes nas suas aldeias, além de alguns deles fazerem investimentos em diferentes cidades e vilas (BRAGA, 1995: 53). A literatura sobre a migração espanhola nos aponta três períodos de significativo fluxo imigratório dos galegos para o Brasil, são eles: 1) 1880-1930; 2) 1950-1980 e 3) de 1990 até os dias atuais. O primeiro deles foi marcado por uma situação de pobreza e pelo rareamento de terras cultiváveis. O seguinte foi impulsionado pelo crescimento do setor industrial brasileiro, sobretudo com a recepção de pessoas escolarizadas e especializadas em determinadas funções. Com a Europa em geral e a Espanha, em particular, ainda sofrendo os efeitos da guerra, os governos europeus e vários países recentemente industrializados começaram a treinar e subsidiar a migração de operários industriais especializados. Com o Brasil estabelecendo suas próprias indústrias automobilísticas e siderúrgicas nesse período, havia uma grande demanda por ferramenteiros e outros operários especializados e o CIME, organização com base na Europa, ajudou a patrocinar essa migração (KLEIN, 1994: 62). Nos dias atuais, o fluxo imigratório galego ainda é intenso, sobretudo com a crise econômica que assola a Espanha; no entanto, ao invés dos países da América, observa-se o êxodo das regiões rurais para os centros urbanos galegos e outras áreas industriais espanholas, como Barcelona, Madri e Bilbao. Também é frequente o trânsito entre a Galícia e outros países europeus - como a Alemanha, Suíça e França – e a Austrália, principalmente por jovens graduados. A migração galega na Bahia A bibliografia sobre os galegos na Bahia está concentrada, majoritariamente, na primeira metade do século XX, quando aqui chegou a maioria dos imigrantes, avançando, em linhas gerais, até, no máximo, a década de sessenta. Este foi um período em que eles, apesar das dificuldades e discriminações, se estruturaram economicamente e consolidaram suas principais associações. Também foi o momento de estagnação de Salvador, no qual a cidade não sofreu grandes transformações sociais e urbanas; retratando, entre outras coisas, o conservadorismo, o tradicionalismo e uma estrutura de poder pautada na classe e no status. A migração galega para Salvador, de uma forma geral, acontecia a partir de um primeiro imigrado que conseguia se estabelecer no novo continente e chamava outros parentes, amigos e vizinhos para ajudá-lo no empreendimento, que tanto podia ser de propriedade própria, ou de outro patrício em melhor situação financeira. É importante salientar que as primeiras levas de viajantes foram, majoritariamente, constituídas por homens jovens, muitas vezes, ainda na adolescência, que deixavam seus pais e irmãos em busca de novas oportunidades na América. As condições de trabalho destes imigrantes eram, na maioria das vezes, árduas, desde a extensa jornada diária de atividades, que se iniciava nas primeiras horas do dia se estendendo às altas horas da noite, até as situações precárias de moradia nos cortiços espalhados pela cidade ou no próprio estabelecimento comercial. Aliado as péssimas condições de trabalho e moradia, os galegos não eram bem-vistos pelos soteropolitanos que os consideravam pouco higiênicos, brutos e desonestos, principalmente nas relações comerciais de gêneros alimentícios, como alto preço dos produtos nos armazéns de secos e molhados e redução no peso dos pães comercializados em suas padarias.2 Não obstante a isso, não podemos esquecer a presença dos espaços construídos e mantidos pela comunidade espanhola em Salvador, a exemplo do Centro Espanhol3 e do Hospital Espanhol4. Estes locais são característicos por serem espaços de sociabilidade, manutenção de cultura e pontos de encontro para o estabelecimento, e estreitamento, de relações, tanto fraternas, quanto matrimoniais, posto que, entre os imigrantes galegos nas primeiras gerações predominava o casamento endogâmico5. A partir da década de 70, Salvador sofreu importantes avanços industriais e tecnológicos e, os galegos que nela se instalaram, acompanharam suas mudanças, tanto as positivas quanto as negativas; adaptaram-se à 2 Devemos salientar que os galegos menosprezavam os negros que aqui viviam. Fundado em 1911, o Centro Espanhol, assim como outros clubes recreativos soteropolitanos, sofreu graves problemas econômicos, e foi, recentemente, comprado por um conjunto de construtoras que planeja construir um condomínio de luxo – o Costa España - preservando os espaços e as atividades lúdicas e recreativas do clube. 4 O Hospital Espanhol (Real Sociedade Espanhola de Beneficência) foi fundado em 1885 e ainda hoje atende a população espanhola, além de abrigar em suas dependências um espaço destinado aos espanhóis anciãos que não têm onde morar. 5 “No grupo galego em Salvador, uma sociedade de homens, o casamento galego com a mulher galega é um dos indicadores de prestígio. Presente supremo, a mulher, afigura-se, pela união, como denotadora da condição de imigrante bem sucedido na nova sociedade. Mas não só. Com ela é mantida a coesão do grupo, através da renovação pragmática e simbólica dos vínculos com a Galícia” (BACELAR, 1994: 117). 3 concorrência dos supermercados6, modernizando seus empreendimentos de secos e molhados ou migrando para outros setores da economia menos explorados, como a construção civil e os estabelecimentos de comida pronta: restaurantes, lanchonetes e padarias, desde as mais simples até as denominadas delicassens. Em suma, pelo o que foi até agora exposto, podemos imaginar as dificuldades dos imigrantes galegos em Salvador ao chegarem a uma cidade com outro idioma, hábitos alimentares diferentes, sendo evitados pelos nativos, discriminando os negros e os mestiços de Salvador, começando a trabalhar nos estabelecimentos nas primeiras horas do dia, se estendendo até altas horas da noite, com poucas condições de saúde e bem-estar, além de serem considerados culpados pela carestia e oscilação econômica que a capital baiana foi vítima. A distância entre o que se quer e o que se pode comer Na maioria das vezes (exceto em fugas ou situações limites), os migrantes levam consigo pertences materiais (documentos, roupas, fotografias...) acumulados em malas, mas eles também carregam muitos outros “bens” invisíveis aos olhos como religião, idioma, ideologias e hábitos alimentares, compostos por repulsas e preferências a determinados alimentos e certas regras e comportamentos à mesa. No entanto, entre todos os empecilhos para a adaptação em uma nova terra, a alimentação ocupa local de destaque, isto porque o ato de comer é inerente a todos os seres vivos, além de ser indispensável, uma vez que garante a sobrevivência do corpo. Porém, na espécie humana, além de uma exigência biológica, a alimentação é também uma necessidade social, repleta de aspectos simbólicos. Muitas relações são estabelecidas ao redor da mesa. E, nestes momentos de socialização, é comum que memórias venham à tona, tanto aquelas de um tempo que merece ser lembrado, quanto aquelas que, de 6 A implantação do Supermercado Paes Mendonça foi significativa para a população soteropolitana, atingindo diretamente os estabelecimentos comerciais galegos, levando, inclusive, muitos armazéns de secos e molhados à falência. acordo com o sofrimento e a dor, merece ser esquecido - apesar de ainda permanecerem presentes, sobretudo para enfatizar o momento atual. Desta forma, não podemos desconsiderar as dificuldades e barreiras alimentares encontradas pelos imigrantes na sociedade acolhedora, por mais próximas que elas sejam. Os empecilhos pode ir desde a ausência de alimentos cruciais para o preparo de pratos denominados tradicionais, até a dificuldade em encontrá-los. Estes percalços entre os imigrantes galegos em Salvador obrigaram a construção de certos arranjos comerciais e redes de solidariedade entre conterrâneos7 a fim de saciar esta lacuna, além, é claro, da substituição, sempre que possível, de um alimento em detrimento de outro, como podemos averiguar na citação a seguir: por falar aínda do que comían os galegos en Bahia, o peixe sempre foi abundante ó redor da Bahia de Todos os Santos, e as portas dos galegos eran as metas dos peixeiros que percorrían as rúas de Salvador, levando á cabeza unha grande variedade de peixes. Non había “merluza”, pero si algunhas variedades moi apreciadas, como a pescada, semellante á “merluza” galega, pero de tamaño máis pequeno. Tamén había o vermelho, parente brasileiro do ollomol, e tantos outros que terminaban sendo preparados “á galega” polos inmigrantes. Xa o polbo, capturado nas rochas costeiras do litoral baiano, só era apreciado polos baianos que vivían ó pé do mar. Para a poboación urbana de Bahia e para os procedentes de zonas do interior, o polbo era tan estraño que lles causaba repulsa, e moitas empregadas domésticas non o cociñaban de boa gana cando lles era encargado porque lle tiñan medo. Pero os galegos, como sabemos, o apreciaban e seguen apreciando moitísimo8 (SUÁREZ ALBÁN; 2007: 451) Em grande medida, os primeiros grupos de imigrantes galegos tiveram particular resistência às frutas brasileiras: 7 O trânsito de alimentos entre amigos e conhecidos que retornavam a Galícia temporariamente era bastante comum, sobretudo daqueles enviados pelas mães. 8 “Por falar ainda do que comiam os galegos na Bahia, o peixe sempre foi abundante ao redor da Bahia de Todos os Santos, e as portas dos galegos eram as metas dos peixeiros que percorriam as ruas de Salvador, levando à frente uma grande variedade de peixes . Não havia "merluza", mas algumas variedades muito apreciadas, como a pescada, semelhante à "merluza" portuguesa, mas de tamanho menor. Também havia o Vermelho, parente brasileiro do besugo, e tantos outros que terminavam sendo preparado ‘à galega’ pelos imigrantes. Já o polvo, capturado nas rochas costeiras do litoral baiano, só era apreciado pelos baianos que viviam ao pé do mar. Para a população urbana na Bahia e para os provenientes de regiões do interior, o polvo era tão estranho que causava repulsa, e muitas empregadas domésticas não cozinhava de bom grado quando lhes davam esta tarefa porque tinham medo. Mas os galegos, como sabemos, o apreciavam e ainda apreciam muito” (tradução livre) en canto ás froitas, cómpre dicir que os inmigrantes tiñan medo de levar á boca aquilo que non coñecían e é por iso que a principio as froitas tropicais non triunfaron nas súas mesas. Buscaban — iso si — ter peras e mazás na casa, normalmente importadas de Arxentina e Uruguai. Eran froitas que coñecían mellor e por iso lles gustaban máis. Algúns tamén conseguían cultivar uvas no terreo ó redor da súa casa, o que era un privilexio de poucos. Os galegos tardaron moito en comer o abacaxi, a jaca, o caju, a carambola e tantas outras froitas tropicais que soamente a partir da segunda xeración de inmigrantes tiveron plena aceptación entre eles” (SUÁREZ ALBÁN, 2007: 452)9 No entanto, eles se adaptaram muito bem a outros produtos americanos como o milho e a batata, considerando-os, inclusive, ingredientes fundamentais no preparo de diversos pratos tradicionais, como o caldo galego e o cocido. É válido ressaltar que a batata, devido a sua relevância cultural, possui um selo que certifica a região geográfica do cultivo e, consequentemente, sua qualidade10, a fim de garantir a qualidade no preparo da maioria dos pratostotens galegos. A denominação prato-totem, neste caso, surge tendo em vista que algumas dessas práticas só fazem persistir: elas adquirem um lugar até mais importante na sociedade de acolhimento. Elas foram conferidas por aqueles que dão-nas uma significação considerável, que ultrapassa aquela que poderiam ter na cultura e no país de origem. Alguns pratos, por exemplo, se tornam “pratos-totem” (Calvo, 1982): a partir de agora nós atribuiremos a eles um papel simbólico bastante particular no qual se soma uma característica da identidade e não mais somente os “marcadores” de algumas ocasiões festivas, rituais ou religiosas, 9 Quanto às frutas, é preciso dizer que os imigrantes tinham medo de levar à boca aquilo que não conheciam e é por isso que a princípio as frutas tropicais não triunfaram em suas mesas. Procurava - isso sim - ter pêras e maçãs em casa, normalmente importadas da Argentina e Uruguai. Eram frutas que conheciam melhor e por isso gostavam mais. Alguns também conseguiam cultivar uvas no terreno em volta da casa, o que era um privilégio de poucos. Os galegos levaram muito tempo para comer o abacaxi, a jaca, o caju, a carambola e tantas outras frutas tropicais que somente a partir da segunda geração de imigrantes tiveram plena aceitação entre eles (tradução livre). 10 “El Reglamento de la indicación geográfica protegida ‘Patata de Galicia’ y de su Consejo Regulador se ratifica en la ORDEN APA/1046/2002, de 24 de abril, por el MINISTERIO DE AGRICULTURA, PESCA Y ALIMENTACIÓN, publicado en el Boe nº: 113/2002, de fecha 11/5/2002. La Indicación Geográfica Protegida ‘Patata de Galicia’ es, a su vez, ratificada por la Comisión Europea en Reglamento nº 148/2007, de 15 de Febrero de 2007” (disponível em: http://www.todopatatas.com/patata-de-galicia.php). Regulamento da indicação geográfica protegida "batata da Galiza" e seu Conselho Regulador afirmado em APA/1046/2002 despacho de 24 de Abril, Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação, publicado no BOE n º: 113 / 2002, datada de 2002/11/05. A Indicação Geográfica Protegida "batata da Galiza" é, por sua vez, aprovado pelo Regulamento da Comissão Européia n º 148/2007, de 15 de fevereiro de 2007 (tradução livre). como na sociedade de origem. Os “pratos-totem”, que são motivos da recordação e da emoção, se tornam “marcadores” da especificidade e da diferença. Eles também servem para a transmissão de um mesmo patrimônio de pertencimento que servirá mais tarde, por sua vez, à recordação emotiva pela geração seguinte11 (Fischler, 2005, 148-149) (tradução livre). Os galegos, como grupo étnico ou nacional, possuem uma cultura alimentar formada a partir de crenças e conhecimentos, tanto aqueles herdados, quantos os aprendidos através do contato com outras regiões. Esta múltipla comunicação impulsionou a criação uma cozinha particular, composta por ingredientes idiossincráticos, técnicas de preparo distintas e maneiras de servir próprias que se aproxima e/ou se distancia de regiões em que o contato se deu de forma mais intensa, seja por ocasião da conquista, seja pelas imigrações. Na Bahia, podemos encontrar alguns pratos em que este diálogo entre as práticas originárias galegas se harmonizaram ao jeito e aos ingredientes baianos, que não há mais qualquer tipo de estranhamento entre os comensais, pelo menos nos dias de hoje. Um bom exemplo desta comunicação é o cozido que, apesar de ter como base a receita espanhola, na qual ao contrário do cozido baiano, dispensa condimentos especiais e é do chourizo e das carnes defumadas e salgadas que retira seu sabor característico. Tem no sal que se adiciona ao das carnes previamente dessalgadas seu único complemento de tempero. Dispensa também maior elaboração no seu preparo. É o cozimento em água abundante que faz dele um cozido especial. Mas é um outro cozido que vai, na maioria das vezes, para a mesa dos galegos baianos. Um cozido eclético, digamos assim – ao preparo e às carnes da Galícia somam-se os legumes e hortaliças da Bahia. Abóbora, chuchu, maxixe, jiló, quiabo e a insubstituível banana-da-terra já se incorporaram ao cocido galego (ALBAN CORUJEIRA; S. ALBÁN, 1990: 5). 11 “Certaines de ces pratiques ne font pas que persister: elles acquièrent une place encore plus importante dans La société d’accueil. Elles se voient conférer par ceux qui lês portent une signification considerérable, qui dépasse celle qu’elles pouvaient avoir dans la culture et le pays d’origine. Certains plats, par exemple, deviennent des ‘plats-totem’ (Calvo, 1982): on leur attribue désormais un rôle symbolique tout à fait particulier, qui en somme une clé de l’identité et non plus seulement les ‘marqueurs’ de certaines occasions, festives, rituelles ou religieuses, comme dans la société d’origine. Les ‘plats-totem’, qui sont l’occasions de la remémoration et de l’émotion , deviennent aussi des ‘marqueurs’ de la spécificité et de la différence. Ils servent aussi à la transmission d’un même patrimoine d’appartenance qui servira plus tarde à son tour à la remémoration émue pour la génération suivante” (Fischler, 2005, 148-149). Além do cozido, também devemos considerar a adaptação brasileira para as famosas filloas espanholas, que aqui receberam o nome de panquecas e perderam o sangue de porco como ingrediente característico. Apesar da visão romantizada da cozinha galega em que os principais produtos são oriundos do mar, devido a sua localização geográfica, encontramos, facilmente, a carne de porco no prato dos galegos, tanto em sua forma in natura quanto em embutidos como o chouriço galego – ingrediente importante para o preparo de diversos pratos-totem. E, aqui em Salvador, o costume de comer peixes e frutos do mar se manteve, assim como a criação e a matança de porcos, nos quintais de suas casas. Os imigrantes galegos, em linhas gerais, não tiveram significativa resistência ou estranhamento alimentar na capital baiana, isso se deu em parte pela proximidade de alimentos oferecidos em Salvador, em parte, por sua atuação em estabelecimentos comerciais destinados a alimentação, como padarias, pastelarias, armazéns e secos e molhados. No entanto, não podemos esquecer o constante trânsito de viajantes entre a Bahia e a Galícia, que possibilitou a remessa de ingredientes tradicionais através de parentes, vizinhos e amigos conterrâneos. Os "galegos da Bahia" e os "brasileiros na Galiza"12 Como já vimos anteriormente, o imigrante quando parte para uma nova terra leva consigo muito mais do que bens materiais, afinal não é fácil despir-se de seus costumes. Se, nas últimas décadas do século XIX esta afirmação era verdadeira, hoje, em pleno século XXI ela ainda se encontra atual, apesar da frouxidão das barreiras geográficas que afastavam os países, ou pelo menos os tornavam mais isolados, tanto em relação a comunicação quanto a troca cultural, que se dava de maneira mais lenta do que hoje. Mapear os hábitos alimentares de um povo não é tarefa fácil, isso porque, nenhuma sociedade é uniforme e o consumo de determinados alimentos, em muitos casos, pode indicar pertencimento a uma determinada “[...] os que não voltam passam a ser ‘os galegos da Bahia’, e os que retornam para a Espanha são os ‘brasileiros na Galiza’” (OLIVEIRA, 2002: 50). 12 classe social, religião, grupo etário e grupo étnico; isso porque o sistema alimentar não é estanque, ao contrário, ele se renova constantemente, mesmo que não percebamos tais alterações. A inserção de um novo ingrediente na comida – ou a substituição por outro que tenha disponível na cozinha -, uma mistura inédita de pratos, ou a inserção de novos produtos disponíveis no mercado, são apenas alguns exemplos de como essa transformação pode acontecer no cotidiano. Enquanto na Galícia a ingestão de carne de porco13, de peixes e frutos do mar é corriqueira, em Salvador, assim como o resto do Brasil, predomina a “dupla” feijão com arroz (nem um pouco aceita pelos galegos) acompanhada por algum tipo de carne, principalmente carne de gado e frango em forma de bife ou cozida. Apesar de ser banhada pela Baía de Todos os Santos, o consumo de peixes e frutos do mar em Salvador, está associado com a comida a base do azeite de dendê, que ao contrário daquilo que as agência de turismo fazem parecer14, não é consumida cotidianamente pelos baianos, mas sim, considerada comida comemorativa, principalmente nas datas que têm vínculo com a tradição religiosa, tal como na Sexta-Feira da Paixão e no dia de São Cosme e São Damião (27 de setembro), data em que é servido o caruru, segundo a crença nos santos. Em suma, “a ‘comida de azeite’ não é para o baiano a cozinha de todo dia. É uma comida requintada, de ingredientes nem sempre fáceis de encontrar, demorada de fazer e, portanto, uma comida dispendiosa” (COSTA LIMA, 2010: 36), além da crença popular que diz que o peixe é caro, não rende, nem dá sustança15. Salvador tem locais destinados a socialização de migrantes galegos e seus descendentes, como o Clube Espanhol e o Centro Recreativo União do rio Tea, nos quais a comunidade galega se encontra com relativa frequência 13 A carne de porco era consumida em datas comemorativas, ou comercializada devido a seu alto valor econômico. 14 Tal como o nome sugere, a “comida baiana” à base de azeite de dendê é tida como a comida típica da Bahia, entretanto é necessário distinguir a comida típica da comida tradicional: “enquanto a primeira oculta uma perspectiva marcada pela exotização, portanto uma percepção de fora para dentro, a segunda constitui expressões de padrões e valores tradicionais em seus próprios termos” (WOORTMANN, 2007: 180) 15 É válido ressaltar que, ainda hoje, a escassez de peixes “de boa qualidade” a preços acessíveis nos mercados e feiras soteropolitanas é queixa recorrente entre os imigrantes ou descendentes galegos. para comemorar datas significativas, ou, simplesmente, encontrar seus pares. Nestes locais, sempre estão presentes a tortilla, a sardinha assada e o vinho. Essas associações, como já vimos, são importantes tanto para a preservação do ethos do imigrante quanto para a transmissão da cultura galega para as gerações de descendentes que se encontram no trânsito entre duas realidades distintas: a sua própria e a de seus ascendentes, que lhes chegam através de histórias de chegada e hábitos domésticos, comumente transferidos ao redor da mesa. Nestes momentos de socialização, a comida é um importante aliado, tanto em relação a lembrança da terra natal, quanto na dificuldade adaptativa de ingestão de certas “combinações” consideradas típicas brasileiras, como por exemplo, o feijão com arroz (já comumente aceito nas novas gerações, que aqui nasceram). Enfim, através dos alimentos nos aproximamos ou nos distanciamos de um local; pertencemos ou rejeitamos um grupo e podemos nos sentir pertencentes ou estrangeiros a um povo. Uma longa história de resistência, adaptações, sofrimento e esperança une baianos e galegos desde as primeiras décadas do século XIX. Os imigrantes galegos (assim como outros tantos retirantes) saíram de suas terras em busca do sonho de conquistar a América. Alguns conseguiram realizá-lo, enquanto outros fracassaram em tal propósito. Mas, tanto aqueles como estes, saíram de suas terras deixando para trás suas famílias, seus amigos, seus amores, sua língua e todas as suas referências culturais e simbólicas em busca do desconhecido. É certo que neste processo, eles foram vítimas e algozes, pois, ao mesmo tempo em que foram evitados e associados com características pejorativas pela elite soteropolitana, também discriminaram os negros e mestiços pobres, com quem dividiam a situação de exploração e pobreza nos bairros em que residiam. Referências bibliográficas: ALBÁN CORUJEIRA, Lindaura; S. ALBÁN, Maria Del Rosario. Cozinha Galega. Salvador: Centro de Estudos Galegos, 1990. 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