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Textos Ilustrações Projeto gráfico e ilustrações Luda Lima Textos Juliana Cunha Editores Fernanda Carvalho e Renata Nascimento Revisão Semiramis Oliveira Gaveta de Bolso © 2011 Alguns direitos reservados LUDA LIMA, JULIANA CUNHA e PRÓLOGO SELO EDITORIAL Prólogo Selo Editorial www.prologoseloeditorial.com.br Esta obra está protegida sob licença CreativeCommons e pode ser usada por terceiros, desde que os créditos sejam citados e não haja fins lucrativos. L698g Lima, Luda. Gaveta de Bolso / Luda Lima, Juliana Cunha. -São Paulo: Prólogo Selo Editorial, 2011. 120 p. : il. ISBN 978-85-99349-52-6 1. Anotações. 2. Ilustrações. 3. Textos. I. Cunha, Juliana. II Carvalho, Fernanda Barros, Nascimento, Renata (Editor). III. Oliveira, Semiramis (Revisão). IV. Título. CDU - 806.90 Gaveta de Bolso é um livro interativo com alguns desenhos, atividades e textinhos para te distrair enquanto fala ao telefone, espera o amigo que não chega, economiza a bateria do celular, aguarda o chefe parar de surtar, o cachorro acabar de ser tosado ou a serenidade voltar a habitar o seu corpo. Quando as coisas ficam inadministráveis, eu me mudo. De relacionamentos, de apartamentos. Nada de reparos. Já mudei de apartamento duas vezes porque o anterior ficou inadministrável. Na verdade, também mudei de cidade por isso. O meu apartamento em Salvador, que eu amava muito, ficou cheio de cupins. Sério, ficou cheio de tal forma que um belo dia o armário despencou em cima da porta do banheiro e eu fiquei presa. Daí eu mudei de cidade. Acho que eu sou tipo o Jeca Tatu que muda de casa para não fazer reparos. “Remendo… Para quê? Se uma casa dura dez anos e faltam apenas nove para que ele abandone aquela?”, dizia o Jeca. Acho que estou inserida em toda uma tradição nacional. O fato de um personagem ser idiota não significa que o filme/livro/peça seja idiota e muito menos que o autor/ator/ diretor seja idiota. Colocar um personagem idiota, com ideias idiotas em uma tela e fazer você se identificar com ele, se importar com ele, me parece um exercício de ficção muito mais legal do que colocar um tipinho, assim, meio parecido com o que você quer ser, soltando meia dúzia de piadas que você gostaria de soltar e puf. Se eu fizesse qualquer tipo de ficção no Brasil, escolheria personagens marcianos. Eles seriam azuis e teriam olhos na sola do pé, para ninguém fazer uma conexão com o ET Bilu e dizer que eu estou criticando os rumos da ufologia no país. Eles falariam ático e só citariam autores marcianos. Essa seria minha tentativa, minha última tentativa, para ver se as pessoas deste país compreendem o que é ficção e o quanto esta não se interessa em ser fascista ou profunda ou em abarcar toda a realidade de mil nuances de uma sociedade. Ajude o amigão sem noção a compreender onde fica o fim da fila. Caminhos errados: a. procurar um conhecido no meio da fila; b. fingir que vai pedir uma informação e por lá ficar; c. mancar. Seinfeld disse que o casamento era sempre a festa de uma noiva com um cara qualquer. A noiva importava, o cara nunca. Todos os casamentos legais que conheço são fictícios. Acho que isso diz alguma coisa. Eu nunca fui a uma única festa de casamento legal, é sempre um ritual chato onde uma megalomaníaca com sonhos de princesa tardios se diverte enquanto as pessoas olham para ela. Alguém com todas as faculdades mentais intactas produziria uma festa inteira com o único objetivo de ser olhada? Essas pessoas conhecem o Fotolog? Facebook, talvez? O Tigre e a Neve (Roberto Benigni): Um casamento que só acontece nos sonhos com presença de Tom Waits cantando “You Can Never Hold Back Spring", um noivo de cueca e uma exmulher como noiva. Mais bonitinho impossível. Kill Bill (Quentin Tarantino): Piranhas coligadas do ex-namorado invadem o casório, matam noivo e convidados. Depois de um longo coma, noiva volta para se vingar. Quando for assim, convidem-me. Quando eu fazia análise, meu analista passou um exercício muito maldoso que, por pura falta de gosto, refaço periodicamente. O exercício em questão é uma lista de pessoas com as quais você se estranhou na vida. A pegadinha do Mallandro era a seguinte: ele te perguntava se, na sua opinião, você era uma pessoa fácil de conviver. Pode parecer brinks, mas eu me considero bem fácil de conviver. Meu namorado também me considera. Quando eu morava em república também me consideravam. Claro que depois que você respondia sim, ele vinha com esse lance da lista. E claro que a minha lista era longa. Mas o que eu venho formulando desde então é que o fato da sua lista ser longa não significa absolutamente nada. Perceba que existem pessoas que são tão caricatas, tão arquetípicas, que elas nem se constituem como indivíduos. São tipo uma massa amorfa que se configura ora como Maria, depois de uns meses surge das cinzas como Joaquina e todas elas me detestam, com todas elas eu tenho problemas, mas não acho que elas possam contar mais de uma vez na minha lista e baixar o meu score de legalzice, sabe. Acho que precisa ter tipo um contador de acessos únicos para essa questão, senão você fica contando os F5 que as mocreias deram. Seria legal se as pessoas parassem de se admirar loucamente e voltassem a ser amigas. Quando não tinha internet, quando passagem era cara, nêgo tinha que calar a boca e ser amigo do vizinho. E que se dane se o vizinho não tinha nada a ver com você. Daí, veio a Gol, veio o Netscape e o legal é admirar. Acho lindo, acho perfeito, mas não basta. Basta? Não tem como bastar. Observe que o princípio da amizade é que você será amado mesmo sendo uma toupeira enquanto o princípio da admiração é que você será amado por não ser uma toupeira. Tão óbvio que não vai prestar. Tão óbvio que você é uma toupeira. Tenho conseguido não comprar demais. O fato de praticamente não ter dinheiro ajuda, mas o mérito de não contrair empréstimos no caixa eletrônico nem usar o cartão de crédito é meu, todo meu. Meu cartão de crédito já foi congelado (literalmente), enterrado (também literalmente) e cancelado (ficcionalmente). Depois de tudo isso, ele sempre surge desenterrado da própria cova, tipo Kill Bill, pronto pra fazer sua cara mais irônica e berrar: “Não autorizado”. Você era original até a internet se popularizar. Desde 2004, quando o Orkut criou uma comunidade com vinte mil fulanos reivindicando para si cada aspecto da sua personalidade, está difícil inventar algo novo. Cada uma de nossas ideias de um milhão de dólares já foi pensada por um asiático, que inclusive postou fotos do protótipo no blog dele. Por volta de 2005, um amigo designer passou milhares de horas no computador, saiu de lá com uma foto de Paris parecendo uma maquete. Ele jurava que tinha inventado uma técnica de transformar fotos de cidades em brinquedinhos. Uma rápida busca no Google mostrou pra ele que a técnica tinha nome, tutorial e uma lista imensa de adeptos. Era o tilt shift. Eu vejo muita gente falando que tem problemas com sogras, mas reparem que não existem mais de quinze tipos de sogra, sendo que cinco tipos praticamente monopolizam o mercado sogreiro. Então, se você namorou cinco pessoas e teve problema com as cinco sogras, isso não necessariamente significa que o problema está em você: provavelmente elas eram todas a mesma. Um dia você terá a sorte de tirar um tipo diferente de sogra, vai se dar bem com ela e as pessoas dirão que você mudou. Não foi você que mudou, foi a primeira sogra que finalmente foi embora. No começo, os professores amam os alunos por sua originalidade, o que não dura muito porque, né, alunos não são originais, todo ano vem uma nova leva de pessoas bem parecidas. Depois, é na própria repetição dos tipos que se concentra o amor do professor. Porque, se a cada ano surgissem pessoas inteiramente novas, seria muito difícil se apegar a elas e mais difícil ainda vê-las ir embora no fim do ano. O fato de serem sempre os mesmos é que te deixa pronto para amar imediatamente aquele aluno barulhento do fundo da sala sob a luz do amor que sentimos por todos os outros barulhentos que vieram antes dele. Sabe aquela piada velha sobre o dicionário do lisboeta? Algo assim: o lisboeta vai procurar “narração” no dicionário. Vai lá e encontra: “Narração: ato ou ação de narrar”. Ele coça o queixinho sujo de empadinha e fala: “Mas ora pois, eu não sei o que é narrar”. Daí ele procura no dicionário o que é narrar: “ato ou ação de produzir uma narrativa”. E o português fica horas passando de um termo ao outro sem achar patavina da explicação. A pegadinha do Mallandro é que isso existe mesmo. Pelo menos quando se trata de palavrões em grego. Se você procurar um palavrão desses usados nas peças do Aristófanes no dicionário de grego, ele pega e, em vez de traduzir para o inglês, traduz para o latim. Daí você pega o dicionário de latim e, em vez dele traduzir para o inglês, traduz para o grego. Legal, né? O palavrão que originou a descoberta foi “euripróktos”. “Aquele de ânus vasto”, na tradução do meu professor de estudos clássicos. Cuzão, na minha adaptação livre. Um dos maiores dilemas da pessoa que escolhe ser freela é que, para sua mãe, família, sogros e grande parte da sociedade, você sempre será um loser desempregado. Se estiver ganhando bem, eles mudam de opinião, pensam que é traficante de drogas. - Como ele está? - Ah, não muito bem. Tenho sido uma vaca com ele, mas já o fiz achar que o fato de eu estar sendo uma vaca é coisa da cabeça dele e que na verdade ele é que está errado por mil motivos. - Então vai ficar tudo bem? - Sim, sim, claro. Acho que toda pessoa que pretende se definir como “repórter” deveria cobrir Cotidiano por pelo menos um mês na vida. Assim como toda pessoa que pretende se definir como “adulta” deveria lavar pelo menos uma calça jeans na mão. Claro que isso deixaria o mundo com bem poucos adultos na classe média e bem poucos repórteres cobrindo Moda, e essa seria apenas uma das maravilhas da aplicação da minha teoria. Nenhuma banda - a não ser, sei lá, o Radiohead -, faz um CD inteiro só com música de fossa. Até o Oasis, que acha tranks chutar fã na cara, importa-se com a nossa saúde o suficiente para pontuar a fossa com umas músicas mais para cima. Por isso, quando você está na fossa, quando você quer curtir uma posição fetal no chão da cozinha, tem que fazer sua própria playlist. A minha playlist de fossa costuma começar com “Bewitched, Bothered and Bewildered” e acabar comigo cantando “Karma Police” em tom ameaçador na parte do “This is what you get when you mess with us”. Ou cantando “I Will Survive” na versão do Cake, virando o cachorro e empurrando a bundinha dele em direção à porta na parte do “Just turn around now you're not welcome anymore”. “Bewitched, Bothered and Bewildered”, Ella Fitzgerald “A Kiss to Build a Dream On”, Louis Armstrong “I'll Never Fall in Love Again”, Dionne Warwick “Save Me”, Aimee Mann “Take the Box”, Amy Winehouse “Loser”, Beck “All by Myself”, Sheryl Crow “I Will Survive”, Cake “Hapiness is a Warm Gun”, The Beatles “Karma Police”, Radiohead Antes as pessoas me convidavam para as coisas, eu avaliava, emitia uma opinião interna, procurava o endereço no Google Maps, consultava o papel tosco preso na parede da minha mesinha - que podemos chamar aqui de agenda - e então não ia. De uns tempos para cá, notei que eu nunca ia mesmo, gostando ou não gostando, sendo perto ou sendo longe, estando folgada ou apertada, com dinheiro ou sem dinheiro. E, a partir de então, parei de avaliar. Nêgo convida. Eu não vou. Sem tantos passos para chegar ao mesmo lugar (cozinha, no caso), tenho mais tempo para me sentir mal por não atender aos convites, por não dar atenção aos meus amigos e por ser uma maleta sem alça presa dentro de casa. Aos poucos, vou aplicando a mesma lógica a outros campos da vida. Chocolate, por exemplo. Parei de olhar o preço, achar caro, olhar as calorias, achar gordo, levar para a casa, fingir que vou comer um quadradinho por dia porque isso é ser equilibrada e, só depois de todo esse lenga-lenga, comer a barra de uma sentada. Agora é assim: olhei, abri, comi na fila do caixa. Percebo que a falta de reflexão inútil prévia libera espaço para mais reflexão inútil no pós-ato. Não é isso que o Feng Shui ensina? Juliana Cunha, 23 anos, é repórter e estuda letras. Mora em São Paulo, mas é de Salvador. Gosta de ler, escrever, comer e dormir. Para todo o resto responde, assim como Bartleby, que “preferiria não fazer”. Luda Lima é ilustradora de Brasília, embora more em São Paulo. Faz trabalhos para veículos como a Folha de S.Paulo, Editora Abril e a Revista UMA. Ela sempre usa aquarela porque é uma tinta que exige uma mão bem levinha, que de dureza já basta a vida mesmo. Gaveta de Bolso 1ª edição tem uma tiragem de 300 exemplares. A impressão foi feita pela grafica RR Donnelley em papel pólen 90g, em São Paulo, no mês de setembro de 2011. www.prologoseloeditorial.com.br Caderno de anotações genéricas para quem tem pânico de página em branco. Diário de gravidez para não grávidas. Sonhário para não hippies. Uma forma moderna e eficiente de engavetar suas ideias logo que elas surgem, coletando da fonte. Com a frustração a gente trabalha depois. Lentamente.