luca pacioli

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luca pacioli
APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE
LUCA PACIOLI
CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
HOMEM DO
RENASCIMENTO
Prof. Dr. Antônio Lopes de Sá
Presidente Honorário do CEHC
(continuação)
Boletim N.º 36 do Centro
de Estudos de História
da Contabilidade
Abril de 2007
Edição: APOTEC - Associação Portuguesa de
Técnicos de Contabilidade
Conselho Editorial:
– Prof. Doutor
Rogério
F. Ferreira
– Prof. Doutora Leonor F.
Ferreira
– Manuel J. Benavente
Rodrigues
Coordenação:
– Isabel Cipriano
Tal a amizade que Da Vinci tinha a Paciolo que em 1499, após a fuga de
Ludovico, com este se afasta de Milão, viajando juntos.
Rapidamente passam por Mantua e Veneza para, depois, residirem juntos
em Florença.
A admiração de Paciolo era tamanha, por Leonardo, que a este faz muitas
referências calorosas e elogiosas, em outra obra que começou a escrever
quando estivera em Milão: “De Viribus Quantitatis” (que se acha, em seu
original, na Biblioteca da Universidade de Bolonha).
O “De Viribus” foi um livro que visou estimular o gosto pelos números e
por isto está plena de “jogos” e “curiosidades” matemáticas, sendo de cunho
popular e incluindo formas de estabelecer sofismas através de cálculos, mas,
não foi editado.
Tudo faz crer, todavia, que Leonardo e Paciolo separam-se e só se
reencontraram em Roma, em 1514, quando Leão X convidou o frei para
leccionar (e quando esse já havia passado por Veneza, Perugia, Florença e
Borgo di San Sepolcro).
Escreve Marinoni que o encontro deu-se em época em que “Leonardo já
estava envelhecido e descrente” (Augusto Marinoni – “De Divina Proportione”,
pag. 6, ed. Pizzi, Milão, 1982), ou seja, pouco antes que fosse para Amboise,
no Vale do Loire, aonde veio a falecer, em 1519, em “Clos Lucée” e onde está
enterrado (comoveu-me, profundamente, quando vi, pessoalmente, a singeleza
do túmulo de tão grande homem, com uma lápide não menos singela, em uma
modesta capelinha do Castelo de Amboise).
Paciolo, igualmente, vizinho já estava de sua morte que hoje já se admite,
com margem de segurança, ocorreu em 1517 (vários autores entendiam que
o falecimento do frei tivesse sucedido em 1515).
A morte de Paciolo, foi, entretanto, em 1517, conforme estudos idóneos do
reverendo Ivano Ricci, bibliotecário, em Sansepolcro, do Museu Cívico e o
sepultamento deu-se naquele local na igreja de San Giovanni D’Afra.
O encontro dos dois expoentes, em Roma, foi, assim, uma despedida sem
retorno, mas, inequívoca ficou, para a história, a identidade intelectual que
estabeleceram.
Em memória de seu ilustre filho, nos fins do século passado, a comunidade
ergueu uma estátua de bronze a Luca e essa hoje adorna um destacado
recanto de seu vilarejo natal.
Os dois grandes amigos que o destino juntou, deveria, este mesmo,
entretanto, separar geograficamente em seus leitos de morte; o túmulo de
Leonardo está em Amboise, França e o de Paciolo em Sansepolcro, Itália.
OS ÚLTIMOS ANOS DE PACIOLO
A vocação do Frei, segundo Aloe e Valle, não parece ter sido monástica,
pois, viajou frequentemente.
Após a estada em Florença, com Da Vinci, Paciolo ensinou nas
Universidades de Pisa e de Bolonha (entre 1500 e 1507).
Em 1501, em Florença, o frei contou com a proteção do prestigioso cardeal
Soderini.
Existem provas documentais de tais passagens, inclusive recibos de
salários de magistério assinados por Luca.
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CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
Em 1508, em Veneza, Paciolo proferiu uma aula magna em abertura de um
curso da igreja de São Bartolomeu do Rialto, tratando da geometria euclidiana
(livro V de Euclides) e das Proporções; na mesma época revisou, para seu editor,
as “Divinas Proporções” (que sairia em 1509) e a edição latina dos “Elementos”.
Em 1510 foi nomeado “Comissário” do Convento franciscano de Sansepolcro
e ali ficou até que Leão X o chamasse a Roma (quando se reencontrou com Da
Vinci), em Agosto de 1514.
Tudo nos prova que as actividades finais de Paciolo foram tão intensas quanto
as de sua existência, esta que cumpriu dividindo-se entre as suas missões
prediletas, como Professor e Escritor, ou seja, a de um génio da difusão cultural.
A cultura que conseguiu acumular, quer pelo acesso aos livros mais preciosos
que leu (como os da biblioteca do Duque de Urbino) quer pela influência de Piero,
Alberti, Da Vinci, principalmente, ele procurou retratar em suas obras (10 livros)
e em suas lições.
Sabendo conquistar amizades, como revela o famoso historiógrafo Prof.
Esteban Hernández Esteve (em sua introdução ao livro De lãs cuentas y escrituras),
relacionou-se com nobres e todos os papas de seu tempo, sempre no sentido de
valorizar-se culturalmente e de transferir cultura.
NO MEIO MILÉNIO DA SUMA UMA CONSAGRAÇÃO MUNDIAL
Quando ocorreu o meio milénio da edição da “Summa”, o mundo inteiro
reverenciou o génio italiano em uma Convenção Internacional.
O local do encontro foi em um palácio, o Centro Zitelle, na ilha onde viveu
Antônio Rompiasi e na casa do qual Paciolo leccionou para os descendentes
daquele comerciante – a ilha Judaica, em Veneza.
Várias entidades patrocinaram o monumental encontro, dentre elas: a Sociedade
Italiana de História da Contabilidade (a qual tenho a honra de pertencer, como
membro honorário), o Conselho Nacional dos Doutores em Comércio e o Conselho
dos Contadores e Peritos Comerciais da Itália.
Ocorreu dos dias 9 a 12 de abril de 1994, com uma série de palestras,
festividades e comemorações.
Foram apresentados muitos trabalhos, provenientes da Alemanha, Japão,
Espanha, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Índia, Inglaterra, Bélgica
e foram seleccionados 44 deles para publicação.
A edição se deu sob a coordenação de uma comissão científica, composta dos
mais eminentes professores doutores e historiógrafos, das Universidades mais
famosas da Itália, dentre os quais os eméritos intelectuais Carlo Antinori,
Giuseppe Catturi, Giuseppe Bruni, Umberto Bertini, Antônio Amaduzzi, Maurizio
Fanni, Rosella Ferraris, W. Santorelli e Giuseppe Bernoni.
A edição foi feita pela IPSOA, em 1995 e possui 484 páginas.
A Itália, em homenagem a seu filho ilustre, na ocasião cunhou uma moeda
com a esfinge de Luca e estampou um selo postal (ambos os possuo), assim como
facilitou aos participantes uma peregrinação a Sansepolcro (terra natal do frei).
Tive a honra de representar o Brasil no conclave, inclusive levando trabalho
de pesquisa sobre a vida do ilustre personagem homenageado.
Achavam-se, no evento, representantes do Brasil, Japão, Rússia, Estados
Unidos, Inglaterra, Austrália, Alemanha, Portugal, Espanha, França, Canadá,
em suma de todos os continentes.
O frei italiano Luca Pacioli é um ícone de nossa história, não só porque teve
a primeira obra impressa onde inseriu um Tratado sobre Escrituração por
Partidas Duplas, mas, especialmente por ter rompido uma inércia e por fazer
conhecido um dos mais importantes critérios de registro que toda a história da
humanidade conheceu.
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2
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CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
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COMPOSIÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA
DA CONTABILIDADE PARA O TRIÉNIO 2004-2006
Presidente Honorário: ANTÓNIO LOPES DE SÁ, PROF. DOUTOR | Conselho Científico: ANTÓNIO CAMPOS PIRES CAIADO, PROF.
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CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
FORMAÇÃO HISTÓRICA,
CORRENTES DOUTRINAIS
E PLANOS DE
INVESTIGAÇÃO DA
CONTABILIDADE
Vicente Montesinos Julve
Catedrático da Faculdade de Ciências Económica e Empresariais da Universidade de Saragoça
(continuação)
6.6. A Teoria matemática e o empenho formalizador
No referente às relações entre a contabilidade e as ciências formais, interessa-nos distinguir bem
claramente, e desde o princípio, duas orientações básicas:
a) Por um lado, existe em contabilidade uma corrente de pensamento, que considera esta
disciplina dentro da categoria das ciências formais como parte da matemática; e
b) Por outro, e com significado e alcance inteiramente diferentes, surge uma tendência, cada vez
mais acentuada, para expor as teorias contabilísticas em termos formais utilizando o rico
instrumental proporcionado pela linguagem matemática.
Seguidamente falaremos de “teoria matemática” para nos referir à primeira corrente, reservando a expressão “empenho formalizador” para a segunda.
6.6.1. A Contabilidade como Disciplina de Tipo Formal: a Teoria Matemática
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É certo que entre os primeiros tratadistas de contabilidade existiram eminentes matemáticos (o
próprio Luca Pacioli). Esta circunstância, combinada com a preocupação desses homens – predominante e, por vezes, exclusiva – pelos problemas de registo em partidas dobradas, poderia justificar
a sua inclusão entre os partidários iniciais da teoria matemática. E o mesmo se poderia dizer de
outros mais recentes, como Stevin, Barréme e Harroy(222).
Contudo, para podermos falar, propriamente, da existência de tal concepção, entendida, como
teoria científica, temos que nos situar em fins do século passado, em pleno período científico.
Em essência, a teoria matemática considera que a contabilidade é um método de observação
elaborado de harmonia com os princípios do raciocínio matemático e independente das características particulares do objecto e do campo a que se aplique(223).
E. Léautey e A. Guilbaut, autores de finais do século XIX e princípios do XX, começam por
considerar a contabilidade um ramo da matemática, se bem que os seus desenvolvimentos posteriores
não pareçam muito conforme com aquele princípio metodológico. Definem-na como “a ciência da
coordenação racional das contas relativas ao produto do trabalho e às transformações do capital, isto
é, às contas da produção, da distribuição e do consumo das riquezas privadas e públicas”.
Como se vê através desta definição, a sua noção de contabilidade parece mais próxima da
economia do que da matemática(224).
Entre os principais expoentes do conceito de contabilidade de que nos ocupamos conta-se Eugène
de Fages de Latour.
Este autor publica em Paris, em 1924, “Les Concepts Fondamentaux de la Comptabilité”, obra
na qual lança a sua ideia de “contabilidade pura”, entendida como um método universal,
independente do campo de observação a que se aplique. Para De Fages, a contabilidade é a
“numération des unités en mouvement”, que ele aplica, como exemplo da sua universalidade, à
observação de infusórios: divide o espaço no qual têm lugar os movimentos em certo número de
figuras geométricas (por exemplo, rectângulos) e considera as unidades contidas em cada figura
como um grupo, sendo a tarefa da contabilidade a de registar as entradas e as saídas das diversas
unidades entre os grupos(225).
Nesta posição se reafirma Pierre Garnier ao comentar: “Definindo a contabilidade pura como
um método de observação de fenómenos de qualquer natureza, deixa, necessariamente, de existir
entre ela e a noção de valor mais relação do que a existente entre essa mesma noção e a estatística
ou a aritmética”(226). “O método tem as suas regras, que nada devem ao sujeito observado. Não há,
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não pode haver, teoria económica da contabilidade, como não há teoria jurídica”. E ainda sublinha
com maior ênfase, ao referir-se à teoria económica da contabilidade: “Ainda aqui, mais do que
nunca, recordamos que o método contabilístico apenas é um método de observação, e nada mais”(227).
Reconhece Garnier que a contabilidade teve, como primeira tarefa (e única até ao momento,
poder-se-ia acrescentar), ocupar-se dos fenómenos: “La comptabilité, science qui a pour object la
numération des unités en mouvement (cita De Fages), s’est donné pour premiére tâche, combien
ambitieuse, d’enregistrer et de mesurer les phenomènes que décrit la science économique, pour en
permettre l’étude”(228).
Define o campo de observação no terreno económico, referindo-se para tanto, a(229):
a) O espaço pode tratar-se de:
1) Uma empresa (contabilidade comercial ou industrial);
2) Um grupo de empresas (consolidação);
3) Um sector (soma e comparações interempresas);
4) Uma nação (contabilidade económica nacional); e
5) As nações (comparações internações).
b) O tempo, que pode referir-se a qualquer período: ano civil, ano económico, ciclo económico,
ou a duração de um plano quinquenal ou decanal.
c) Unidades: valores expressos em termos monetários.
Os fenómenos observados são os económicos, que se transformam em factos contabilísticos desde
o momento em que são captados pela contabilidade.
Garnier relaciona o campo de observação da contabilidade com duas disciplinas fundamentais:
o direito e a economia, das quais a contabilidade constitui “a álgebra”(230).
Francisco D’Auria publica em 1949, em São Paulo, o seu livro “Primeiros Princípios da
Contabilidade Pura”, no qual apresenta a sua concepção da contabilidade pura como um processo
aplicável ao conhecimento de “qualquer coisa que tenha existência física ou metafísica”. Define a
contabilidade pura do seguinte modo:
“A contabilidade, precipuamente, define o objecto submetido a observação e elaboração, para o
fim do conhecimento pormenorizado do estado inicial, das variações no tempo, e do estado actual,
em qualquer momento”. E, mais adiante, continua: “Tudo pode ser objecto de aplicação da
contabilidade. Qualquer organismo material ou moral, ou qualquer de suas partes, é susceptível de
contabilização”(231).
Para D’Auria, a contabilidade aplica-se ao conhecimento dos estados e da evolução dos
sistemas, entendidos como conjuntos harmónicos, dos mais simples aos mais complexos. Tais
sistemas podem ser de muito variada natureza. Nessas circunstâncias estão, por exemplo, o sistema
“económico-administrativo”, único objecto actual da contabilidade, que pertence ao mundo social
e cujo fim é a utilidade; o sistema “moral”, também do mundo social e cujo fim é o bem; o sistema
“biológico”, do mundo físico, destinado a conseguir uma função biológica eficiente; etc.(232).
A principal limitação de que enferma a concepção do estudioso brasileiro reside na dificuldade
de quantificar as diversas propriedades que D’Auria inclui no campo de observação da contabilidade. Ele próprio reconhece a existência dessa dificuldade; mas, frente a ela, adopta uma atitude
de excessivo optimismo, que poucos estariam dispostos a compartilhar. Diz o seguinte:
“Os conceitos expostos neste parágrafo são apenas preliminares de um estudo profundo da
matéria, não se esquecendo que em cada sistema existem particularidades relativas ao valor, que
somente as técnicas especializadas pode apreciar convenientemente. A presunção é que tudo pode ser
representado pelo número. Baste ter-se conhecimento suficiente da matéria considerada para se
estabelecerem, convencionalmente, tabelas valorimétricas”(233).
Mencionámos, até aqui, posições doutrinais. Segundo elas, a contabilidade deve aparecer
desvinculada de qualquer objecto particular, e, consequentemente, dentro do terreno próprio das
ciências formais, e fora do das empíricas. Desejaríamos registar duas observações a tal respeito:
a) Temo-nos referido à sua conceptualização, e não à linguagem empregada. Do mesmo modo
que a lógica, ciência formal, não emprega uma simbologia matemática senão a partir de
tempos recentes, os autores citados que seguem esta corrente consideram a contabilidade uma
metodologia geral que, ao mesmo tempo, goza de grande simplicidade nos seus princípios.
Assim, e por muito paradoxal que possa parecer, os seguidores da corrente que temos vindo
a denominar “teoria matemática” utilizam um instrumental analítico pouco formalizado e
construções matemáticas muito mais simplificadas do que aquelas de que se servem os
partidários da expressão formalizada das teorias contabilísticas incluídos na corrente que
aqui designamos por “empenho formalizador”.
b) Dizemos que esta corrente considera a contabilidade como disciplina formal, sem que isto
signifique que, apesar disso, os autores citados lhe concedam a categoria de ciência. Assim,
enquanto De Fages fala da nossa disciplina como “a ciência da numeração das unidades em
movimento”, Pierre Garnier diz-nos que ela é “um instrumento, um método perfeito de
observação científica... mais do que uma ciência em si mesma”. Trata-se, pois, para estes
autores, de uma disciplina científica, incluída na categoria das ciências formais, seja como
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ciência autónoma, seja como método derivado do raciocínio lógico e matemático. Podemos,
pois, dizer, utilizando uma expressão de Garnier que a contabilidade é “filha da Lógica e da
Matemática...”(234).
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DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
Em qualquer caso, a possibilidade de se ampliar o método contabilístico de observação para
além do campo dos fenómenos económicos e, se se quiser, da problemática jurídica, é algo que, na
prática, ainda não foi desenvolvido, não passando de uma aspiração vagamente formulada no
domínio teórico. Autores recentes da categoria de Ijiri e Mattessich reconhecem a possibilidade de
tal ampliação. Para já, porém, a contabilidade limita-se à realidade económica, e o resto são
lucubrações.
Por outro lado, as tentativas de formalização, em termos gerais, do sistema contabilístico
aplicado à realidade económica, entre as quais se destaca, sem dúvida nenhuma, a do professor
Mattessich, não conseguiram resolver o problema que o valor representa em contabilidade(235). Além
disso, o próprio princípio de dualidade classificativa aparenta sintomas de crise enquanto se quiser
manter a sua aplicação generalizada em todos os casos(236).
Parece difícil estender um método de observação como o proporcionado pela contabilidade a
fenómenos de qualquer espécie sem antes submetê-lo, em cada caso, a profundas remodelações.
6.6.2. O Empenho Formalizador
Cita-se Giuseppe Forni, autor do “Trattato Teorico-Practico di Scrittura Doppia” (1790) e do
“Corso d’Istruzione de Ragioneria” (1814), como o primeiro tratadista a utilizar fórmulas algébricas para demonstrar relações entre certas contas. Pode, contudo, considerar-se H. Stephens (1736)
um verdadeiro iniciador desta tendência com a sua exposição simplificada do método italiano(237).
F. W. Cronhelm, no seu livro “Double Entry by Single” (Londres, 1818), tenta uma aproximação
abstracta ao método contabilístico pondo em destaque as derivações necessárias da estrutura da
contabilidade por partidas dobradas, numa época em que a personificação das contas era a doutrina
predominante(238).
Na sua obra “Nuveau Système de Tenue de Lives”, A. Maitre expõe em 1847, uma teoria
algébrica de contabilidade.
O russo H. Y. Popov publica, em 1888, um livro no qual desenvolve matematicamente os
princípios de contabilidade.
Em 1898, Pierre Jocet(239) escreve a sua “Théorie Algèbrique et Idéologique de la Tenue des
Livres”, desenvolvendo, a partir da sua “expressão fundamental” – que não é outra senão a do
equilíbrio entre Activo, Passivo Exigível e Situação Líquida – uma superstrutura de equações.
Giovanni Rossi publica em 1895 o ‘Trattado del l’Unità Teoretica dei Metodi di Scrittura in
Partita Doppia”, que contém a expressão matemática do funcionamento das contas, baseado no
princípio da personificação.
Em 1901, Masetti apresenta uma formulação matemática das contas, mostrando-se partidário
de uma teoria de contas única para todos os métodos contabilísticos(240).
in Jornal de Contabilidade, Abril 1981
(continua)
(222)
(223)
(224)
(225)
(226)
(227)
(228)
(229)
(230)
(231)
(232)
(233)
(234)
(235)
(236)
(237)
(238)
(239)
(240)
6
Veja-se, de J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 261-262.
Neste sentido, veja-se, de P. Garnier, “La Technique...”, obra citada, págs. 457-458.
J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 259-268.
Comentários à “Contabilidade Pura”, de De Fages, em D. Amodeo, “Ragioneria Generale...”, obra citada, págs. 962-963; J. H.
Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 457-458.
P. Garnier: “La Comptabilité: Algèbre du Droit et Méthode d’Observation des Sciences Économiques”, Paris, Dunod, 1947,
pág. 83.
P. Garnier: “La Technique...”, obra citada, pág. 481.
Ibid., págs. 483-484.
Ibid., pág. 455.
“A Contabilidade é, por excelência, o método científico de observação dos fenómenos jurídicos e económicos” (P. Garnier:
“Manual...”, Obra citada, pág. 43).
F. D.’Auria: “Primeiros Princípios de Contabilidade Pura”, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1949, pág. 375 (referências
colhidas de D. Amodeo: “Ragioneria Generale...”, obra citada, págs. 967-971.
Ibid., pág. 393.
Ibid., pág. 455.
P. Garnier: “La Technique...”, obra citada, pág. 484.
Veja-se, de D. Amodeo, “Ragioneria Generale...”, obra citada, pág. 976.
Veja-se o nosso trabalho “Contabilidade e Decisão Empresarial: Uma Aproximação Conceptual” (tese doutoral), Valência,
Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, 1974, págs. 136-182.
Segundo F. Boter Mauri: “As Doutrinas Contabilisticas”, obra citada, pág. 249.
Veja-se, de Ch. H. Griffin e Th. H. Williams, “A Compatative Analysis of Accounting and Mathematics”, em “The Accounting
Review”, Julho de 1962, pág. 412.
Citado por J. G. C. Jackson em “The History...”, obra citada pág. 311.
Pode ver-se, para além da referência apontada na chamada 237, de J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, pág. 264.
Traduzido por Jacinto Medina Camacho da revista “Técnica Contable” n.º 356, de Agosto de 1978.
APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE
NOVAS DA HISTÓRIA
CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
PRÉMIO ENRIQUE FERNANDEZ PEÑA DE HISTORIA DA
CONTABILIDADE 2007
A Comissão de História da Contabilidade da AECA, presidida pelo Professor Esteban
Hernandez Esteve, premeia todos os anos trabalhos sobre história da contabilidade, em
qualquer das línguas ibéricas, publicados ou apresentados oficialmente em Congressos,
Encontros e similares, assim como em Universidades, entre 1 de Julho de 2006 e 30 de Junho
de 2007.
BUSINESS HISTORY CONFERENCE INTERNATIONAL MEETING
Cleveland-Ohio • June 1-2, 2007
Theme: “Entrepreneurial Comunities”
O Encontro Anual 2007 da BHC, realiza-se na Wheatherhead School of Management of
Case Western Reserve University.
O “entrepreneur” sendo muitas vezes visto com um negociante, raramente no entanto
funciona isolado. As comunicações devem explorar os aspectos geográficos, étnicos, religiosos, políticos, presentes neste tipo de actividade. Email: [email protected]
THE FIFTH ACCOUNTING HISTORY INTERNATIONAL CONFERENCE
“Accounting in other places, Accounting by other peoples”
The Banff Centre, Banff, Alberta, Canadá
9 a 11 de Agosto de 2007
Esta conferência sujeita ao tema: “Contabilidade em outros lugares e por outras gentes”,
aceita comunicações numa gama muito ampla de tópicos. De qualquer das formas a
organização sugere alguns tópicos, como a profissionalização da contabilidade no mundo
desenvolvido, o papel da contabilidade e dos contabilistas na arte e na música, etc, etc.
Mais informações em http://www.commerce.usask.ca/5AHIC
12.º CONGRESSO MUNDIAL DE HISTORIADORES DE CONTABILIDADE
Istambul – 20 a 24 de Julho de 2008
Realizado que foi, em Julho do ano passado, o 11.º Congresso na Universidade de
Nantes, perfila-se já o 12.º Congresso. Será responsável directo pelo evento, o professor Oktay
Guvemli da Universidade de Mármara, uma das mais prestigiadas universidades turcas, a
qual organiza o Congresso em colaboração com a Associação de Professores de Contabilidade
e Finanças da Turquia.
O Congresso terá lugar no edifício Harbiye, que actualmente acolhe um Centro Cultural
e o Museu Militar mais completo do Médio Oriente e onde se conservam documentos e livros
de contabilidade, que pela primeira vez serão expostos ao público.
Para mais notícias sobre o Congresso: www.12wcah2008ist.org/index.php
ACADEMY OF ACCOUNTING HISTORIANS
“Vangermeersch Manuscript Award”
Em 1988 a Academia dos Historiadores de Contabilidade instituiu um Prémio para
encorajar jovens professores universitários a fazer investigação histórica em contabilidade.
Assim têm condições de elegibilidade para este prémio, todos os professores universitários
de contabilidade com o grau de mestre ou doutor obtido nos últimos sete anos.
Para mais informações pode contactar “The Academy of Accounting Historians”,
The University of Alabama, Box 870220, Tuscaloosa, AL, USA 35487
ou em www.accounting.rutgers.edu/raw/aah
ALGUNS ENDEREÇOS ÚTEIS EM HISTÓRIA DA CONTABILIDADE:
Revista electrónica “De Computis” – AECA – Espanha: www.decomputis.org
Società Italiana di Storia della Ragioneria: www.sisronline.it
The Academy of Accounting Historians: www.accounting.rutgers.edu/raw/aah
Comissão de História de Contabilidade da AECA: www.aecal.org/comisiones/comisionhc.htm
Accuonting History Special Group of the Accounting and Finance Association of Australia
and New Zealand: www.muprivate.edu.au/index.php?id=156
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APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE
CENTRO DE ESTUDOS
DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE
ARTE E CONTABILIDADE
Gravura sobre madeira (a partir da ilustração do capítulo Aritmética
do livro “Margarita Philosophica” de Gregor Reisch, Fribourg-en-Brisgau,
1503).
Ao centro a Aritmética; à direita Pitágoras, em frente a um ábaco em
linha, em que os contos representam os números 1241 e 82; à esquerda
Boécio efectuando um cálculo à mão.
M.B.
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