luca pacioli
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APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE LUCA PACIOLI CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE HOMEM DO RENASCIMENTO Prof. Dr. Antônio Lopes de Sá Presidente Honorário do CEHC (continuação) Boletim N.º 36 do Centro de Estudos de História da Contabilidade Abril de 2007 Edição: APOTEC - Associação Portuguesa de Técnicos de Contabilidade Conselho Editorial: – Prof. Doutor Rogério F. Ferreira – Prof. Doutora Leonor F. Ferreira – Manuel J. Benavente Rodrigues Coordenação: – Isabel Cipriano Tal a amizade que Da Vinci tinha a Paciolo que em 1499, após a fuga de Ludovico, com este se afasta de Milão, viajando juntos. Rapidamente passam por Mantua e Veneza para, depois, residirem juntos em Florença. A admiração de Paciolo era tamanha, por Leonardo, que a este faz muitas referências calorosas e elogiosas, em outra obra que começou a escrever quando estivera em Milão: “De Viribus Quantitatis” (que se acha, em seu original, na Biblioteca da Universidade de Bolonha). O “De Viribus” foi um livro que visou estimular o gosto pelos números e por isto está plena de “jogos” e “curiosidades” matemáticas, sendo de cunho popular e incluindo formas de estabelecer sofismas através de cálculos, mas, não foi editado. Tudo faz crer, todavia, que Leonardo e Paciolo separam-se e só se reencontraram em Roma, em 1514, quando Leão X convidou o frei para leccionar (e quando esse já havia passado por Veneza, Perugia, Florença e Borgo di San Sepolcro). Escreve Marinoni que o encontro deu-se em época em que “Leonardo já estava envelhecido e descrente” (Augusto Marinoni – “De Divina Proportione”, pag. 6, ed. Pizzi, Milão, 1982), ou seja, pouco antes que fosse para Amboise, no Vale do Loire, aonde veio a falecer, em 1519, em “Clos Lucée” e onde está enterrado (comoveu-me, profundamente, quando vi, pessoalmente, a singeleza do túmulo de tão grande homem, com uma lápide não menos singela, em uma modesta capelinha do Castelo de Amboise). Paciolo, igualmente, vizinho já estava de sua morte que hoje já se admite, com margem de segurança, ocorreu em 1517 (vários autores entendiam que o falecimento do frei tivesse sucedido em 1515). A morte de Paciolo, foi, entretanto, em 1517, conforme estudos idóneos do reverendo Ivano Ricci, bibliotecário, em Sansepolcro, do Museu Cívico e o sepultamento deu-se naquele local na igreja de San Giovanni D’Afra. O encontro dos dois expoentes, em Roma, foi, assim, uma despedida sem retorno, mas, inequívoca ficou, para a história, a identidade intelectual que estabeleceram. Em memória de seu ilustre filho, nos fins do século passado, a comunidade ergueu uma estátua de bronze a Luca e essa hoje adorna um destacado recanto de seu vilarejo natal. Os dois grandes amigos que o destino juntou, deveria, este mesmo, entretanto, separar geograficamente em seus leitos de morte; o túmulo de Leonardo está em Amboise, França e o de Paciolo em Sansepolcro, Itália. OS ÚLTIMOS ANOS DE PACIOLO A vocação do Frei, segundo Aloe e Valle, não parece ter sido monástica, pois, viajou frequentemente. Após a estada em Florença, com Da Vinci, Paciolo ensinou nas Universidades de Pisa e de Bolonha (entre 1500 e 1507). Em 1501, em Florença, o frei contou com a proteção do prestigioso cardeal Soderini. Existem provas documentais de tais passagens, inclusive recibos de salários de magistério assinados por Luca. 1 APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE Em 1508, em Veneza, Paciolo proferiu uma aula magna em abertura de um curso da igreja de São Bartolomeu do Rialto, tratando da geometria euclidiana (livro V de Euclides) e das Proporções; na mesma época revisou, para seu editor, as “Divinas Proporções” (que sairia em 1509) e a edição latina dos “Elementos”. Em 1510 foi nomeado “Comissário” do Convento franciscano de Sansepolcro e ali ficou até que Leão X o chamasse a Roma (quando se reencontrou com Da Vinci), em Agosto de 1514. Tudo nos prova que as actividades finais de Paciolo foram tão intensas quanto as de sua existência, esta que cumpriu dividindo-se entre as suas missões prediletas, como Professor e Escritor, ou seja, a de um génio da difusão cultural. A cultura que conseguiu acumular, quer pelo acesso aos livros mais preciosos que leu (como os da biblioteca do Duque de Urbino) quer pela influência de Piero, Alberti, Da Vinci, principalmente, ele procurou retratar em suas obras (10 livros) e em suas lições. Sabendo conquistar amizades, como revela o famoso historiógrafo Prof. Esteban Hernández Esteve (em sua introdução ao livro De lãs cuentas y escrituras), relacionou-se com nobres e todos os papas de seu tempo, sempre no sentido de valorizar-se culturalmente e de transferir cultura. NO MEIO MILÉNIO DA SUMA UMA CONSAGRAÇÃO MUNDIAL Quando ocorreu o meio milénio da edição da “Summa”, o mundo inteiro reverenciou o génio italiano em uma Convenção Internacional. O local do encontro foi em um palácio, o Centro Zitelle, na ilha onde viveu Antônio Rompiasi e na casa do qual Paciolo leccionou para os descendentes daquele comerciante – a ilha Judaica, em Veneza. Várias entidades patrocinaram o monumental encontro, dentre elas: a Sociedade Italiana de História da Contabilidade (a qual tenho a honra de pertencer, como membro honorário), o Conselho Nacional dos Doutores em Comércio e o Conselho dos Contadores e Peritos Comerciais da Itália. Ocorreu dos dias 9 a 12 de abril de 1994, com uma série de palestras, festividades e comemorações. Foram apresentados muitos trabalhos, provenientes da Alemanha, Japão, Espanha, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Índia, Inglaterra, Bélgica e foram seleccionados 44 deles para publicação. A edição se deu sob a coordenação de uma comissão científica, composta dos mais eminentes professores doutores e historiógrafos, das Universidades mais famosas da Itália, dentre os quais os eméritos intelectuais Carlo Antinori, Giuseppe Catturi, Giuseppe Bruni, Umberto Bertini, Antônio Amaduzzi, Maurizio Fanni, Rosella Ferraris, W. Santorelli e Giuseppe Bernoni. A edição foi feita pela IPSOA, em 1995 e possui 484 páginas. A Itália, em homenagem a seu filho ilustre, na ocasião cunhou uma moeda com a esfinge de Luca e estampou um selo postal (ambos os possuo), assim como facilitou aos participantes uma peregrinação a Sansepolcro (terra natal do frei). Tive a honra de representar o Brasil no conclave, inclusive levando trabalho de pesquisa sobre a vida do ilustre personagem homenageado. Achavam-se, no evento, representantes do Brasil, Japão, Rússia, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Alemanha, Portugal, Espanha, França, Canadá, em suma de todos os continentes. O frei italiano Luca Pacioli é um ícone de nossa história, não só porque teve a primeira obra impressa onde inseriu um Tratado sobre Escrituração por Partidas Duplas, mas, especialmente por ter rompido uma inércia e por fazer conhecido um dos mais importantes critérios de registro que toda a história da humanidade conheceu. BIBLIOGRAFIA 2 ALOE, Armando e VALLE Francisco – Frá Luca Pacioli e seu tratado de escrituração de contas, editora Atlas, São Paulo, 1966 ANTINORI, Carlo – Luca Pacioli e la Summa de Arithmetica, edição Instituto Poligráfico e Zecca dello Stato, Roma, 1994 ANTONI, Tito – Luca Pacioli e lo Studio generale di Pisa, em Frá Luca Pacioli, edição IPSOA, Corsico, 1995 BUSIGNANI, A. – Piero Della Francesca, Ediciones Toray, Barcelona, 1968 CARVALHO, Carlos de – Luca Paciolo, edição Fundação Alvares Penteado, São Paulo, 1994 ESTEVE, Esteban Hernández – El tratado contable De Computis et Scripturis de Luca Pacioli: Dudas sobre la concepción unitaria , em Luca Pacioli, edição da Revista de Contabilidade e Comercio, Porto, 1994 APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE ESTEVE, Esteban Hernández – Estudio introdutorio al libro de Luca Pacioli de las Cuentas y las escrituras, edição AECA, Madrid, 1994 ESTEVE, Esteban Hernández – Vida y obra de Luca Pacioli, Reflexiones en el Quinto Centenario de la publicación de la Summa (1494-1994) em Quinto Centenario de la obra de Luca Pacioli, De las cuentas y escrituras, 1494-1994, edição AECA e Ilustre Colegio Oficial de Titulados Mercantiles y Empresariales de Madrid, Madrid, 1994 GERVASO Roberto – L’Italia dei Secoli D’oro, edição Rizzoli, Milão, 1967 GUIDO, Ângelo – Símbolos e Mitos na Pintura de Leonardo Da Vinci, edição Sulina, colaboração com a Universidade do Rio dos Sinos, Porto Alegre, 1969 HIBBERT, Christopher – Ascenção e queda da casa dos Medici – Renascimento em Florença, edição Companhia das Letras, São Paulo, 1993 JOUANIQUE, Pierre – El processo de cierre de cuentas en la Summa de Arithmetica, em Quinto Centenario de la obra de Luca Pacioli, De las cuentas y escrituras, 1494-1994, edição AECA e Ilustre Colegio Oficial de Titulados, Madrid 1994 JOUANIQUE, Pierre – La vie et l’ouvre de Luca Pacioli, Introdução à obra “Traité dês Comptes et des écritures”, Editions Comptables Malesherbes, patrocínio da Ordem dos Contadores da França, Paris, 1995 JOUKOV, E. – Méthodologie en histoire, edição da Académie des Sciences de l’URSS, Moscou, 1982 KATAOKA, Yasuhiko – Padre della Ragioneria, em SUMMA n.º 137, edição CNRC, Roma, Janeiro de 1999 LAMOUROUX, La influencia de Pacioli durante el siglo XVI, em Luca Pacioli, edição da Revista de Contabilidade e Comercio, Porto, 1994 MALDONADO, José – Vigencia de Luca Pacioli en el siglo XXI, Centro editorial Javeriano, Bogotá, 1995 MARI, Libero Mario – Alcune considerazioni in merito all’opera perugina di Luca Pacioli, em Frá Luca Pacioli, edição IPSOA, Corsico, 1995 MARINONI, Augusto – “De Divina Proportione”, edição Pizzi, Milão, 1982 MASI, Vincenzo – La Ragioneria nell’etá medievale, editor Tamari, Bolonha, 1975 MATTESSICH, Richard – Kautilya’s Arthasastra, a sanskrit treatise, formulating modern accounting issues some 2.300 years ago, trabalho encaminhado pelo Centro de Estudos de Historia da Contabilidade , da APOTEC, Lisboa, 1997 MELIS, Federigo – Storia della Ragioneria, edição Zuffi, Bolonha, 1950 PACIOLI, Luca – Summa de Arithmetica Geometria Proportioni i Proportionalitá, reprodução exata da edição de 1494, estampada por Galli Thierry & C. – Milão, s.m.d. PEREDA, Jorge Tua – Alguna reflexiones personales en torno de la historia de la Contabilidad, em Quinto Centenario de la obra de Luca Pacioli, De las cuentas y escrituras, 1494-1994, edição AECA e Ilustre Colegio Oficial de Titulados Mercantiles y Empresariales de Madrid, Madri, 1994 ROSCI, Marco – Leonardo, edição Arnoldo Mondadori, Milão, 1976 SÁ, Antônio Lopes de – A hypothesys on Paciolo’s learning of double entries, trabalho apresentado na Convenção Internacional de Celebração do Meio Milênio da obra de Luca Pacioli, edição IPSOA, Veneza, 1995 SÁ, Antônio Lopes – Historia Geral e das Doutrinas da Contabilidade, Editora Atlas, São Paulo, 1997, editora VISLIS, Lisboa, 1999 SÁ, Antônio Lopes – El origen: partidas dobles, em Enciclopédia de Contabilidad, edição Panamericana, Bogotá, Colômbia, Janeiro de 2002 SILVA, F.V. Gonçalves da – Luca Pacioli, o homem e a obra, em Luca Pacioli, edição da Revista de Contabilidade e Comercio, Porto, 1994 SOUSA, José Fernandes de – Luca Pacioli (1447-1517): Alguns aspectos da vida e da obra no quinto centenário da publicação do 1.o Tratado impresso de Contabilidade, trabalho apresentado nas V Jornadas de Contabilidade, edição em Actas do ISCAP, Porto, 1995 STRUIK, Dirk J. – História concisa das matemáticas, edição Gradiva, Lisboa, 1989 VLAEMMINCK, Joseph H. – Historia y Doctrinas de la Contabilidad, versão espanhola de José Maria Gonzalez Ferrando, edição EJES, Madrid, 1961 ZERBI, Tommaso – Le origini della Partita Doppia, editor Marzorati, Milão, 1952 COMPOSIÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE PARA O TRIÉNIO 2004-2006 Presidente Honorário: ANTÓNIO LOPES DE SÁ, PROF. DOUTOR | Conselho Científico: ANTÓNIO CAMPOS PIRES CAIADO, PROF. DOUTOR • Professor no ISEG – ANTÓNIO LOPES DE SÁ, PROF. DOUTOR • Professor Catedrático – ARMINDO FERNANDES COSTA, DR. • Revisor Oficial de Contas e Professor na Universidade do Minho – HERNÂNI OLÍMPIO CARQUEJA, DR. • Director da Revista de Contabilidade e Comércio – JOAQUIM ANTÓNIO CALADO COCHICHO, DR. • Responsável pela Biblioteca dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo – JOSÉ MANUEL MATOS CARVALHO, DR. • Professor Coordenador do ISCAC – JUDITE CAVALEIRO PAIXÃO, DR.ª • Directora do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas – LEONOR FERNANDES FERREIRA, PROF. DOUTORA • Docente da Universidade Nova e da Universidade Lusíada – ROGÉRIO FERNANDES FERREIRA, PROF. DOUTOR • Professor Catedrático | Conselho Executivo: ABÍLIO MARTINS • Associado da APOTEC – ANA RITA SILVA DE SERRA FARIA, DR.ª • Docente na Universidade do Algarve – JOÃO FILIPE GONÇALVES PINTO, DR. • Presidente da Assembleia Geral da APOTEC – JOSÉ FERNANDES SOUSA, DR. • Professor no ISCAA – JOSÉ JOAQUIM DA SILVA MOREIRA, DR. • Professor na Escola Secundária de Lagos – JOSÉ MANUEL MARQUES • Tesoureiro da Direcção Central da APOTEC – JOSÉ MARTINS LAMPREIA, DR. • ROC – MANUEL JOSÉ BENAVENTE RODRIGUES • Membro da Direcção Central da APOTEC – MANUEL VIRIATO CARDOSO PATULEIA • Presidente da Direcção Central da APOTEC – MARIA TERESA DE OLIVEIRA DIAS NETO, DR.ª • Vice-Presidente da Direcção Central da APOTEC – MATILDE CONCEIÇÃO ESTEVENS, DR.ª • Docente no ISCAL – SEVERO PRAXEDES SOARES, DR. • Director do Jornal de Contabilidade 3 APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE FORMAÇÃO HISTÓRICA, CORRENTES DOUTRINAIS E PLANOS DE INVESTIGAÇÃO DA CONTABILIDADE Vicente Montesinos Julve Catedrático da Faculdade de Ciências Económica e Empresariais da Universidade de Saragoça (continuação) 6.6. A Teoria matemática e o empenho formalizador No referente às relações entre a contabilidade e as ciências formais, interessa-nos distinguir bem claramente, e desde o princípio, duas orientações básicas: a) Por um lado, existe em contabilidade uma corrente de pensamento, que considera esta disciplina dentro da categoria das ciências formais como parte da matemática; e b) Por outro, e com significado e alcance inteiramente diferentes, surge uma tendência, cada vez mais acentuada, para expor as teorias contabilísticas em termos formais utilizando o rico instrumental proporcionado pela linguagem matemática. Seguidamente falaremos de “teoria matemática” para nos referir à primeira corrente, reservando a expressão “empenho formalizador” para a segunda. 6.6.1. A Contabilidade como Disciplina de Tipo Formal: a Teoria Matemática 4 É certo que entre os primeiros tratadistas de contabilidade existiram eminentes matemáticos (o próprio Luca Pacioli). Esta circunstância, combinada com a preocupação desses homens – predominante e, por vezes, exclusiva – pelos problemas de registo em partidas dobradas, poderia justificar a sua inclusão entre os partidários iniciais da teoria matemática. E o mesmo se poderia dizer de outros mais recentes, como Stevin, Barréme e Harroy(222). Contudo, para podermos falar, propriamente, da existência de tal concepção, entendida, como teoria científica, temos que nos situar em fins do século passado, em pleno período científico. Em essência, a teoria matemática considera que a contabilidade é um método de observação elaborado de harmonia com os princípios do raciocínio matemático e independente das características particulares do objecto e do campo a que se aplique(223). E. Léautey e A. Guilbaut, autores de finais do século XIX e princípios do XX, começam por considerar a contabilidade um ramo da matemática, se bem que os seus desenvolvimentos posteriores não pareçam muito conforme com aquele princípio metodológico. Definem-na como “a ciência da coordenação racional das contas relativas ao produto do trabalho e às transformações do capital, isto é, às contas da produção, da distribuição e do consumo das riquezas privadas e públicas”. Como se vê através desta definição, a sua noção de contabilidade parece mais próxima da economia do que da matemática(224). Entre os principais expoentes do conceito de contabilidade de que nos ocupamos conta-se Eugène de Fages de Latour. Este autor publica em Paris, em 1924, “Les Concepts Fondamentaux de la Comptabilité”, obra na qual lança a sua ideia de “contabilidade pura”, entendida como um método universal, independente do campo de observação a que se aplique. Para De Fages, a contabilidade é a “numération des unités en mouvement”, que ele aplica, como exemplo da sua universalidade, à observação de infusórios: divide o espaço no qual têm lugar os movimentos em certo número de figuras geométricas (por exemplo, rectângulos) e considera as unidades contidas em cada figura como um grupo, sendo a tarefa da contabilidade a de registar as entradas e as saídas das diversas unidades entre os grupos(225). Nesta posição se reafirma Pierre Garnier ao comentar: “Definindo a contabilidade pura como um método de observação de fenómenos de qualquer natureza, deixa, necessariamente, de existir entre ela e a noção de valor mais relação do que a existente entre essa mesma noção e a estatística ou a aritmética”(226). “O método tem as suas regras, que nada devem ao sujeito observado. Não há, APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE não pode haver, teoria económica da contabilidade, como não há teoria jurídica”. E ainda sublinha com maior ênfase, ao referir-se à teoria económica da contabilidade: “Ainda aqui, mais do que nunca, recordamos que o método contabilístico apenas é um método de observação, e nada mais”(227). Reconhece Garnier que a contabilidade teve, como primeira tarefa (e única até ao momento, poder-se-ia acrescentar), ocupar-se dos fenómenos: “La comptabilité, science qui a pour object la numération des unités en mouvement (cita De Fages), s’est donné pour premiére tâche, combien ambitieuse, d’enregistrer et de mesurer les phenomènes que décrit la science économique, pour en permettre l’étude”(228). Define o campo de observação no terreno económico, referindo-se para tanto, a(229): a) O espaço pode tratar-se de: 1) Uma empresa (contabilidade comercial ou industrial); 2) Um grupo de empresas (consolidação); 3) Um sector (soma e comparações interempresas); 4) Uma nação (contabilidade económica nacional); e 5) As nações (comparações internações). b) O tempo, que pode referir-se a qualquer período: ano civil, ano económico, ciclo económico, ou a duração de um plano quinquenal ou decanal. c) Unidades: valores expressos em termos monetários. Os fenómenos observados são os económicos, que se transformam em factos contabilísticos desde o momento em que são captados pela contabilidade. Garnier relaciona o campo de observação da contabilidade com duas disciplinas fundamentais: o direito e a economia, das quais a contabilidade constitui “a álgebra”(230). Francisco D’Auria publica em 1949, em São Paulo, o seu livro “Primeiros Princípios da Contabilidade Pura”, no qual apresenta a sua concepção da contabilidade pura como um processo aplicável ao conhecimento de “qualquer coisa que tenha existência física ou metafísica”. Define a contabilidade pura do seguinte modo: “A contabilidade, precipuamente, define o objecto submetido a observação e elaboração, para o fim do conhecimento pormenorizado do estado inicial, das variações no tempo, e do estado actual, em qualquer momento”. E, mais adiante, continua: “Tudo pode ser objecto de aplicação da contabilidade. Qualquer organismo material ou moral, ou qualquer de suas partes, é susceptível de contabilização”(231). Para D’Auria, a contabilidade aplica-se ao conhecimento dos estados e da evolução dos sistemas, entendidos como conjuntos harmónicos, dos mais simples aos mais complexos. Tais sistemas podem ser de muito variada natureza. Nessas circunstâncias estão, por exemplo, o sistema “económico-administrativo”, único objecto actual da contabilidade, que pertence ao mundo social e cujo fim é a utilidade; o sistema “moral”, também do mundo social e cujo fim é o bem; o sistema “biológico”, do mundo físico, destinado a conseguir uma função biológica eficiente; etc.(232). A principal limitação de que enferma a concepção do estudioso brasileiro reside na dificuldade de quantificar as diversas propriedades que D’Auria inclui no campo de observação da contabilidade. Ele próprio reconhece a existência dessa dificuldade; mas, frente a ela, adopta uma atitude de excessivo optimismo, que poucos estariam dispostos a compartilhar. Diz o seguinte: “Os conceitos expostos neste parágrafo são apenas preliminares de um estudo profundo da matéria, não se esquecendo que em cada sistema existem particularidades relativas ao valor, que somente as técnicas especializadas pode apreciar convenientemente. A presunção é que tudo pode ser representado pelo número. Baste ter-se conhecimento suficiente da matéria considerada para se estabelecerem, convencionalmente, tabelas valorimétricas”(233). Mencionámos, até aqui, posições doutrinais. Segundo elas, a contabilidade deve aparecer desvinculada de qualquer objecto particular, e, consequentemente, dentro do terreno próprio das ciências formais, e fora do das empíricas. Desejaríamos registar duas observações a tal respeito: a) Temo-nos referido à sua conceptualização, e não à linguagem empregada. Do mesmo modo que a lógica, ciência formal, não emprega uma simbologia matemática senão a partir de tempos recentes, os autores citados que seguem esta corrente consideram a contabilidade uma metodologia geral que, ao mesmo tempo, goza de grande simplicidade nos seus princípios. Assim, e por muito paradoxal que possa parecer, os seguidores da corrente que temos vindo a denominar “teoria matemática” utilizam um instrumental analítico pouco formalizado e construções matemáticas muito mais simplificadas do que aquelas de que se servem os partidários da expressão formalizada das teorias contabilísticas incluídos na corrente que aqui designamos por “empenho formalizador”. b) Dizemos que esta corrente considera a contabilidade como disciplina formal, sem que isto signifique que, apesar disso, os autores citados lhe concedam a categoria de ciência. Assim, enquanto De Fages fala da nossa disciplina como “a ciência da numeração das unidades em movimento”, Pierre Garnier diz-nos que ela é “um instrumento, um método perfeito de observação científica... mais do que uma ciência em si mesma”. Trata-se, pois, para estes autores, de uma disciplina científica, incluída na categoria das ciências formais, seja como 5 APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE ciência autónoma, seja como método derivado do raciocínio lógico e matemático. Podemos, pois, dizer, utilizando uma expressão de Garnier que a contabilidade é “filha da Lógica e da Matemática...”(234). CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE Em qualquer caso, a possibilidade de se ampliar o método contabilístico de observação para além do campo dos fenómenos económicos e, se se quiser, da problemática jurídica, é algo que, na prática, ainda não foi desenvolvido, não passando de uma aspiração vagamente formulada no domínio teórico. Autores recentes da categoria de Ijiri e Mattessich reconhecem a possibilidade de tal ampliação. Para já, porém, a contabilidade limita-se à realidade económica, e o resto são lucubrações. Por outro lado, as tentativas de formalização, em termos gerais, do sistema contabilístico aplicado à realidade económica, entre as quais se destaca, sem dúvida nenhuma, a do professor Mattessich, não conseguiram resolver o problema que o valor representa em contabilidade(235). Além disso, o próprio princípio de dualidade classificativa aparenta sintomas de crise enquanto se quiser manter a sua aplicação generalizada em todos os casos(236). Parece difícil estender um método de observação como o proporcionado pela contabilidade a fenómenos de qualquer espécie sem antes submetê-lo, em cada caso, a profundas remodelações. 6.6.2. O Empenho Formalizador Cita-se Giuseppe Forni, autor do “Trattato Teorico-Practico di Scrittura Doppia” (1790) e do “Corso d’Istruzione de Ragioneria” (1814), como o primeiro tratadista a utilizar fórmulas algébricas para demonstrar relações entre certas contas. Pode, contudo, considerar-se H. Stephens (1736) um verdadeiro iniciador desta tendência com a sua exposição simplificada do método italiano(237). F. W. Cronhelm, no seu livro “Double Entry by Single” (Londres, 1818), tenta uma aproximação abstracta ao método contabilístico pondo em destaque as derivações necessárias da estrutura da contabilidade por partidas dobradas, numa época em que a personificação das contas era a doutrina predominante(238). Na sua obra “Nuveau Système de Tenue de Lives”, A. Maitre expõe em 1847, uma teoria algébrica de contabilidade. O russo H. Y. Popov publica, em 1888, um livro no qual desenvolve matematicamente os princípios de contabilidade. Em 1898, Pierre Jocet(239) escreve a sua “Théorie Algèbrique et Idéologique de la Tenue des Livres”, desenvolvendo, a partir da sua “expressão fundamental” – que não é outra senão a do equilíbrio entre Activo, Passivo Exigível e Situação Líquida – uma superstrutura de equações. Giovanni Rossi publica em 1895 o ‘Trattado del l’Unità Teoretica dei Metodi di Scrittura in Partita Doppia”, que contém a expressão matemática do funcionamento das contas, baseado no princípio da personificação. Em 1901, Masetti apresenta uma formulação matemática das contas, mostrando-se partidário de uma teoria de contas única para todos os métodos contabilísticos(240). in Jornal de Contabilidade, Abril 1981 (continua) (222) (223) (224) (225) (226) (227) (228) (229) (230) (231) (232) (233) (234) (235) (236) (237) (238) (239) (240) 6 Veja-se, de J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 261-262. Neste sentido, veja-se, de P. Garnier, “La Technique...”, obra citada, págs. 457-458. J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 259-268. Comentários à “Contabilidade Pura”, de De Fages, em D. Amodeo, “Ragioneria Generale...”, obra citada, págs. 962-963; J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, págs. 457-458. P. Garnier: “La Comptabilité: Algèbre du Droit et Méthode d’Observation des Sciences Économiques”, Paris, Dunod, 1947, pág. 83. P. Garnier: “La Technique...”, obra citada, pág. 481. Ibid., págs. 483-484. Ibid., pág. 455. “A Contabilidade é, por excelência, o método científico de observação dos fenómenos jurídicos e económicos” (P. Garnier: “Manual...”, Obra citada, pág. 43). F. D.’Auria: “Primeiros Princípios de Contabilidade Pura”, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1949, pág. 375 (referências colhidas de D. Amodeo: “Ragioneria Generale...”, obra citada, págs. 967-971. Ibid., pág. 393. Ibid., pág. 455. P. Garnier: “La Technique...”, obra citada, pág. 484. Veja-se, de D. Amodeo, “Ragioneria Generale...”, obra citada, pág. 976. Veja-se o nosso trabalho “Contabilidade e Decisão Empresarial: Uma Aproximação Conceptual” (tese doutoral), Valência, Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais, 1974, págs. 136-182. Segundo F. Boter Mauri: “As Doutrinas Contabilisticas”, obra citada, pág. 249. Veja-se, de Ch. H. Griffin e Th. H. Williams, “A Compatative Analysis of Accounting and Mathematics”, em “The Accounting Review”, Julho de 1962, pág. 412. Citado por J. G. C. Jackson em “The History...”, obra citada pág. 311. Pode ver-se, para além da referência apontada na chamada 237, de J. H. Vlaemminck, “História...”, obra citada, pág. 264. Traduzido por Jacinto Medina Camacho da revista “Técnica Contable” n.º 356, de Agosto de 1978. APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE NOVAS DA HISTÓRIA CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE PRÉMIO ENRIQUE FERNANDEZ PEÑA DE HISTORIA DA CONTABILIDADE 2007 A Comissão de História da Contabilidade da AECA, presidida pelo Professor Esteban Hernandez Esteve, premeia todos os anos trabalhos sobre história da contabilidade, em qualquer das línguas ibéricas, publicados ou apresentados oficialmente em Congressos, Encontros e similares, assim como em Universidades, entre 1 de Julho de 2006 e 30 de Junho de 2007. BUSINESS HISTORY CONFERENCE INTERNATIONAL MEETING Cleveland-Ohio • June 1-2, 2007 Theme: “Entrepreneurial Comunities” O Encontro Anual 2007 da BHC, realiza-se na Wheatherhead School of Management of Case Western Reserve University. O “entrepreneur” sendo muitas vezes visto com um negociante, raramente no entanto funciona isolado. As comunicações devem explorar os aspectos geográficos, étnicos, religiosos, políticos, presentes neste tipo de actividade. Email: [email protected] THE FIFTH ACCOUNTING HISTORY INTERNATIONAL CONFERENCE “Accounting in other places, Accounting by other peoples” The Banff Centre, Banff, Alberta, Canadá 9 a 11 de Agosto de 2007 Esta conferência sujeita ao tema: “Contabilidade em outros lugares e por outras gentes”, aceita comunicações numa gama muito ampla de tópicos. De qualquer das formas a organização sugere alguns tópicos, como a profissionalização da contabilidade no mundo desenvolvido, o papel da contabilidade e dos contabilistas na arte e na música, etc, etc. Mais informações em http://www.commerce.usask.ca/5AHIC 12.º CONGRESSO MUNDIAL DE HISTORIADORES DE CONTABILIDADE Istambul – 20 a 24 de Julho de 2008 Realizado que foi, em Julho do ano passado, o 11.º Congresso na Universidade de Nantes, perfila-se já o 12.º Congresso. Será responsável directo pelo evento, o professor Oktay Guvemli da Universidade de Mármara, uma das mais prestigiadas universidades turcas, a qual organiza o Congresso em colaboração com a Associação de Professores de Contabilidade e Finanças da Turquia. O Congresso terá lugar no edifício Harbiye, que actualmente acolhe um Centro Cultural e o Museu Militar mais completo do Médio Oriente e onde se conservam documentos e livros de contabilidade, que pela primeira vez serão expostos ao público. Para mais notícias sobre o Congresso: www.12wcah2008ist.org/index.php ACADEMY OF ACCOUNTING HISTORIANS “Vangermeersch Manuscript Award” Em 1988 a Academia dos Historiadores de Contabilidade instituiu um Prémio para encorajar jovens professores universitários a fazer investigação histórica em contabilidade. Assim têm condições de elegibilidade para este prémio, todos os professores universitários de contabilidade com o grau de mestre ou doutor obtido nos últimos sete anos. Para mais informações pode contactar “The Academy of Accounting Historians”, The University of Alabama, Box 870220, Tuscaloosa, AL, USA 35487 ou em www.accounting.rutgers.edu/raw/aah ALGUNS ENDEREÇOS ÚTEIS EM HISTÓRIA DA CONTABILIDADE: Revista electrónica “De Computis” – AECA – Espanha: www.decomputis.org Società Italiana di Storia della Ragioneria: www.sisronline.it The Academy of Accounting Historians: www.accounting.rutgers.edu/raw/aah Comissão de História de Contabilidade da AECA: www.aecal.org/comisiones/comisionhc.htm Accuonting History Special Group of the Accounting and Finance Association of Australia and New Zealand: www.muprivate.edu.au/index.php?id=156 7 APOTEC – ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE TÉCNICOS DE CONTABILIDADE CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CONTABILIDADE ARTE E CONTABILIDADE Gravura sobre madeira (a partir da ilustração do capítulo Aritmética do livro “Margarita Philosophica” de Gregor Reisch, Fribourg-en-Brisgau, 1503). Ao centro a Aritmética; à direita Pitágoras, em frente a um ábaco em linha, em que os contos representam os números 1241 e 82; à esquerda Boécio efectuando um cálculo à mão. M.B. 8