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Línguas e instrumentos linguísticos 33 / Campinas: CNPq Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2014: Unicamp, 1997-2014 Semestral. ISSN 1519-4906 1. Linguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos 3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade Estadual de Campinas CDD - 410.05 - 412.05 - 900 Copyright © 2014 dos Autores para efeito desta edição e posteriores. Direitos cedidos com exclusividade para publicação em língua portuguesa para o Projeto História das Ideias Linguísticas e Editora RG. Todos os direitos reservados. O uso, reprodução, apropriação ou estoque em sistema de banco de dados, ou processo similar, mesmo a partir do site www.revistalinguas.com, seja por meio eletrônico, fotocópia, gravação de qualquer natureza está condicionado à expressa permissão do Projeto História das Ideias Linguísticas. Coordenação Editorial: Editora RG Editoração Eletrônica e Diagramação: Fábio Bastos Capa: Fábio Bastos sobre projeto gráfico original de Claudio Roberto Martini Revisão: Equipe de revisores sob supervisão do Projeto História das Ideias Linguísticas Editora RG Fone: 19 3289.1864 [email protected] Edição eletrônica: www.revistalinguas.com 2014 Impresso no Brasil LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil Editora RG Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi Comitê Editorial: Bethania Sampaio Mariani (UFF), Carolina Zucolillo Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp), Carlos Luis (Argentina), Charlote Galves (Unicamp), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo Guimarães (Unicamp) Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P. Orlandi (Unicamp), Francine Mazière (França), Francis Henry Aubert (USP), Freda Indursky (UFRGS), Jean-Claude Zancarini (França), José Horta Nunes (Unicamp), José Luiz Fiorin (USP), Lauro Baldini (Univás), Luiz Francisco Dias (UFMG), Maria Filomena Gonçalves (Portugal), Mónica Zoppi-Fontana (Unicamp), Norman Fairclough (Inglaterra), Rainer Henrique Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira (Unicamp), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França), Suzy Lagazzi (Unicamp), Sylvain Auroux (França) Comitê de Redação: Carolina Zucolillo Rodriguez, Claudia Pfeiffer, José Horta Nunes, Lauro Baldini, Mónica Zoppi-Fontana, Sheila Elias de Oliveira, Suzy Lagazzi Secretaria de Redação: Sheila Elias de Oliveira, Lauro Baldini e Vinícius Massad Castro Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica, qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia. Mês e ano dos fascículos: janeiro a junho 2014 Periodicidade de circulação: semestral ISSN: 1519-4906 Número sequencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página número cinco até o final. SUMÁRIO Apresentação 7 Del renacimiento a la ilustración española: la instrumentalización de la lengua nacional en los manuales de retórica María del Pilar Roca 9 A produção de sentidos através da eufemização no acontecimento enunciativo e seus efeitos na descrição da sociedade brasileira Carolina de Paula Machado 47 A palavra ‘poesia’ em Bakhtin Adilson Ventura da Silva 71 Paradigma indiciário, língua-concha, recorte e funcionamento: a metodologia em AD Lucília Maria Abrahão e Sousa , Dantielli Assumpção Garcia, Daiana de Oliveira Faria 93 CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS O problema do signo linguístico em Saussure e em Benveniste Cármen Agustini 109 DOSSIÊ: METÁFORA Percursos da metáfora Mariângela Peccioli Galli Joanilho 131 O direito de ser esquecido, o direito de ser lembrado: memória, esquecimento e o funcionamento da metáfora Andréia da Silva Daltoé 135 Da condensação freudiana ao forçage/chiffonage lacaniano: o transbordamento da metáfora na teoria psicanalítica Maurício Eugênio Maliska 163 Intoxicação pela Metáfora segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari: os desenhos do pequeno Richard (1941) Hélio Rebello Cardoso Jr. Renata P. Domingues 189 O historiador e a metáfora André Luiz Joanilho 231 Das relações de sentido na linguagem ou sobre como a metáfora produz o acontecimento Mariângela Peccioli Galli Joanilho 249 RESENHA VIRILIO, P. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94 pp. Anderson Braga do Carmo 269 APRESENTAÇÃO A revista Línguas e Instrumentos Linguísticos chega a seu 33° número e a seu 16° ano de funcionamento. Neste período, a revista publicou artigos na área da história das ideias, dos métodos e conceitos das ciências da linguagem, ao lado e análises linguísticas nas mais variadas áreas. A partir deste número, Línguas e Instrumentos Linguísticos passa a ter uma nova seção: Dossiê. Com esta seção, a revista passa a publicar um conjunto de artigos sobre um mesmo tema. Ao mesmo tempo, ficam mantidas a seção de artigos não temáticos, que passa a se chamar Seção Aberta; a seção Crônicas e Controvérsias, para publicar apresentações históricas importantes e debates tanto sobre questões da história das ideias linguísticas quanto atuais; a seção Resenhas, para refletir sobre a produção das Ciências da linguagem hoje. Esperamos que não só este novo formato da revista passe a contribuir mais para esta área de reflexão, quanto o tema do Dossiê deste número, a metáfora, contribua para o estudo desta antiga e sempre atual questão. Neste número 33, estão publicados na Seção Aberta quatro artigos. María del Pilar Roca analisa os movimentos realizados pela Coroa Espanhola para a legitimação da língua castelhana como língua nacional e como língua de exemplificação e teorização retórica, em um longo processo que vai do século XV ao XVIII. Carolina de Paula Machado faz uma análise enunciativa da palavra ‘preconceito’ e de outras que a determinam sob o modo enunciativo da eufemização em uma das obras fundamentais da História brasileira: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Em um movimento análogo, Adilson Ventura da Silva apresenta também uma análise enunciativa de uma palavra em obra acadêmica: a palavra ‘poesia’ em textos de Bakhtin, por meio da qual discute o lugar do poético na teorização sobre a linguagem realizada por este autor. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 7 APRESENTAÇÃO Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia e Daiana de Oliveira Faria propõem a noção de língua-concha para a compreensão, na metodologia da Análise do Discurso, da relação entre língua e discurso. Na Seção Crônicas e Controvérsias, Cármen Agustini problematiza a questão da constituição do signo linguístico a partir das perspectivas de Saussure, no Curso de Linguística Geral, e de Benveniste, nos Problemas de Linguística Geral. Partindo da hipótese de que a língua, enquanto sistema, resulta de um vazio radical, a autora sustenta que a noção de significado, assim como a de significante, apresenta, em relação ao sistema linguístico, um sentido puramente diferencial. A Seção Dossiê traz como tema, como anunciamos, a metáfora. Mariângela Peccioli Galli Joanilho convidou autores de domínios diversos da reflexão em Ciências Humanas, o que resultou em um conjunto de textos que nos permitem cotejar diferentes modos de apreensão e mobilização da metáfora na metodologia dessas ciências. Ela nos apresenta esses textos em Percursos da Metáfora. A Seção Resenha também nos permite refletir sobre a metáfora, pelas lentes do urbanista francês Paul Virilio em L’ administration de la peur, que nos são apresentadas por Anderson Braga do Carmo. Segundo o resenhista, ao pensar o medo como metáfora de processos sociais, Virilio nos leva a refletir sobre o medo não como sentimento, mas como um processo sócio-histórico de construção de sentidos. E, enquanto tal, acrescentaríamos, como um processo de intervenção no real da sociedade. Esperamos, com este número 33, contribuir mais uma vez para o enriquecimento dos debates sobre a língua e a linguagem. Os Editores 8 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA1 María del Pilar Roca UFPB Resumen: El artículo de Pilar Roca se centra en el estudio del proceso mediante el cual la lengua castellana se va abriendo paso como lengua nacional con el objetivo de habilitarse en la instrumentalización de los principios teóricos. A través de un periodo de cuatro siglos mostra el lento desarrollo de una estrategia preocupada en un primer momento por la legitimación como teóricos de autores españoles, haciéndolos convivir con los clásicas greco latinos, para una vez aceptados, ir introduciendo los ejemplos en lengua castellana de dichos autores patrimoniales ya previamente legitimados como teóricos de la retórica. Resumo: O artigo de Pilar Roca centra-se no estudo do processo pelo qual a língua castelhana está emergindo como língua nacional, a fim de ser habilitada na instrumentalização de princípios teóricos. Durante um período de quatro séculos, mostra o lento desenvolvimento de uma estratégia preocupada em um primeiro momento com a legitimação de autores espanhois como teóricos, fazendo-os conviver com os clássicos greco-latinos, para, uma vez aceitos, gradualmente introduzir exemplos em língua castelhana de tais autores vernaculares já previamente legitimados como teóricos da retórica. Abstract: This article by Pilar Roca focuses on the study of the process by which the Castilian language emerges as a national language in order to be enabled on the instrumentalization of theoretical principles. Over a period of four centuries it shows the slow development of a strategy concerned at first with the theoretical legitimation of Spanish authors, putting them side by side with the Greek and Latin classic ones in order to, once they had been accepted, introduce examples in Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 9 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Castilian language from such vernacular authors, previously legitimated as theorists of rhetoric. Introducción Durante las próximas páginas nos proponemos hacer un recorrido por las ideas sobre el lenguaje defendidas por los latinistas y retóricos hispánicos entre los siglos XV y el XVIII dirigidas a la construcción e instrumentalización de la lengua nacional, con el objetivo de evaluar su grado de presencia dentro de las instancias educativas española durante el siglo ilustrado. Para ello partiendo de una selección de artes de hablar y escribir, o también llamadas retóricas, analizaremos las estrategias que viabilizan la instrumentalización del castellano y su paulatina entrada en los ámbitos instituciones de enseñanza a partir de la segunda mitad del XVIII. Siguiendo los principios historiográficos de Koerner, de contextualización, inmanencia y adecuación (apud VARGAS NASCIMENTO, 2011, p.7), no pretendemos hacer aquí un estudio exhaustivo de las obras escogidas sino que, considerándolas como cristalizaciones sintomáticas del clima de opinión de una época, indagaremos en ellas los rasgos que revelen la mentalidad en la que sus autores se encontraban inmersos, centrándonos para ello en las afirmaciones sobre la lengua, entendidas como decisiones políticas, que les llevaron a defender o a adoptar el español en detrimento del latín para la composición del discurso. Al fin y al cabo, como indica Hobsbawm, “Los conceptos no forman parte del libre discurso filosófico, sino que están enraizados social, histórica y localmente y deben explicarse en términos de estas realidades” (1999, p.17). Nos centraremos en las afirmaciones directas o indirectas sobre la lengua incluidas en los prólogos o/y ejemplos de una selección de obras destinadas al arte de escribir y hablar de escritores señeros – ya sea por su representatividad, su grado de influencia política o de consideración por parte de los contemporáneos – que comienzan a plasmarse en el siglo XV, continuando en los siglos XVI y XVII para, ya adentrados en el siglo XVIII, evaluar el influjo de dichas ideas en el ámbito educativo. Durante este recorrido pretendemos identificar la función que se le da a la lengua romance desde el siglo XV así como la estrategia adoptada para introducir el castellano en la práctica de la argumentación dentro del ámbito escolar, teniendo presente que “Castilla – y estamos 10 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca hablando de la lengua castellana – era uno de los primeros reinos europeos a los que se le puede colocar la etiqueta de ‘estado-nación’ sin que ello indique una falta total de realismo” (HOBSBAWM, 1998, p.24). Cabe subrayar que en ese largo proceso hay dos aspectos diferentes aunque relacionados. Por un lado, se aborda la enseñanza y aprendizaje de la retórica como el conjunto de reglas que rigen la teoría de la argumentación y los géneros destinados a persuadir, cuyas autoridades son las clásicas greco latinas; y por otro se discute su práctica, con divergencias de opinión sobre si debe realizarse en latín o en castellano. Es en ese punto donde surge el largo debate sobre la lengua, a veces explícito, a veces implícito, pues si bien es verdad que durante la Edad Media y el Prerrenacimiento el castellano ocupa cada vez más espacio político en detrimento del latín, dicha tendencia avanza relativamente en el XVII, siglo en el que aún se escriben retóricas en latín pese a los avisos por parte de latinistas y retóricos de prestigio que defienden la idoneidad de la vernácula para su enseñanza. No obstante, el camino está definido pues El prestigio que adquiere le lengua castellana ya desde finales del siglo XVI se refleja en el incremento de retóricas escritas en español en la siguiente centuria. Si durante el siglo XVI sólo se escribieron tres en castellano, lo que supone un 10% de las treinta que recogimos en la catalogación mencionada, en el XVII, de las veinticuatro retóricas catalogadas, catorce fueron escritas en castellano, ocho en latín, y dos presentan la particularidad de estar escritas tanto en latín y como en castellano (…). Por tanto, unos dos tercios aproximadamente de las retóricas del siglo XVII fueron escritas en lengua vernácula (GALBARRO GARCÍA, 2010, p.74). Durante el análisis del período aquí acotado, observaremos una carrera en dos fases por la nacionalización de la lengua que alcanza su apoteosis durante el XVII. En la primera fase – situada entre los siglos XV y XVI – encontramos un número significativo de autores de origen judeoconverso que defienden la lengua vernácula como un espacio de integración política y social. Por su parte, en la segunda etapa – siglos XVII y XVIII – se desarrollan retóricas cuyo objetivo está dirigido Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 11 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA hacia la instrumentalización de la lengua para su empleo en medios institucionales altamente formalizados, aunque sus autores emplean sus energías en una carrera de competencias con el latín, buscando argumentos para demostrar que la lengua castellana posee por derecho los mismos valores de la lengua general, antes atribuidos a la lengua del Lacio. Para mejor entender y visibilizar los interlineados de ese gran tejido, enmarco esta reflexión en la perspectiva glotopolítica tal como fue definida en 1986 por Guespin e Marcellesi, es decir, como ciencia que se dedica al estudio del conjunto de acciones sociales sobre la lengua, el habla y el discurso, ya sean conscientes o inconscientes, permitiendo así considerar las diferentes dimensiones que recorren la ideología lingüística como sistema de ideas que articulan nociones del lenguaje, las lenguas, el habla y/o la comunicación con formaciones culturales, políticas y/o sociales específicas. Aunque pertenecen al ámbito de las ideas y se pueden concebir como marcos cognitivos que ligan coherentemente el lenguaje con un orden extralingüístico, naturalizándolo y normalizándolo, también hay que señalar que se producen y reproducen en el ámbito material de las prácticas lingüísticas y metalingüísticas, de entre las cuales presentan para nosotros interés especial las que exhiben un alto grado de institucionalización (ARNOUX & DEL VALLE, 2010, p.6, subrayado nuestro). Para comprender la aparente divergencia de tratamiento de la lengua entre lo político y lo instrumental en el largo periodo de cuatro siglos adoptaremos, a efectos de organización, una división provisoria de retóricas, provisoria porque no con poca frecuencia se entremezclan. Por un lado consideraremos las que tienen una intención más clara de servir como manual para una disciplina, es decir, aquellas movidas por el estudio de la teoría retórica que abastecía básicamente a los ámbitos formales de enseñanza jurídica y eclesiástica; y por otro las dedicadas a la formación de predicadores. Mientras que las primeras se preocupan por deprender los elementos formales del discurso, muestran un carácter universal, encuentran su cauce en el latín y se desarrollan en el campo del derecho y la teoría del discurso eclesiástico, las segundas se 12 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca dirigen a la práctica específica del predicador, llevando más en consideración al público, se preocupan por desarrollar estrategias que impacten en el ánimo y se abren camino desde el castellano. Por tanto, las primeras estarían más dedicadas al estudio de la técnica que estructura el discurso (logos) y las segundas estarían dirigidas a dar recursos para establecer vínculos eficaces entre el orador (ethos) y el público (pathos). Serán estas últimas las que trazarán entre los siglos XVI y XVII un recorrido diferente al de la retórica jurídica y eclesiástica, viabilizando el despegue de la lengua vernácula. En el caso de las retóricas en español veremos que se va poco a poco presentando el problema de que las autoridades están expresadas en latín, haciéndose necesaria cada vez más su traducción. Sin embargo, dentro del proceso de construcción de la lengua nacional es necesario disponer de autoridades, tanto en el campo teórico como práctico, que demuestren la capacitación de la lengua vernácula para los menesteres que define la retórica. En esa empresa veremos que se desarrolla una estrategia para darle prestigio a los autores patrimoniales mediante dos movimientos: primero se los elevarán a la altura de los teóricos clásicos para en un segundo movimiento, ya una vez legitimados, valerse de su producción literaria en castellano para ilustrar los conceptos retóricos. La serie de obras escogidas para ilustrar el proceso comienza con la primera traducción al castellano de De inventione Retorica de Cicerón, realizada por Alfonso de Cartagena hacia 1420-22, continuando en el siglo XVI con la primera retórica escrita no solo íntegra sino también originalmente en español, por el fraile jerónimo Miguel de Salinas publica en 1541, hasta llegar a las dos primeras retóricas destinadas a su enseñanza a niños y adolescentes que hemos localizado en la segunda mitad del siglo XVIII, como son los manuales del Bachiller Alonso Pabon Guerrero (Rhetorica castellana, 1764), elaborada para la Real casa de caballeros pajes, y el del padre Calixto Hornedo (Elementos de Retórica, 1777), utilizada en las Escuelas Pías. Antes dedicaremos un apartado a la Elocuencia Española en arte (1604), de Bartolomé Jiménez Patón, en el que se observa más claramente la vernacularización de la retórica a través de ejemplos tomados de una ya abastada literatura patrimonial. En cada una de ellas, sobre todo en las de los siglos XV al XVII trataremos aspectos que revelen consideraciones sobre la lengua más que sobre la estructura retórica en Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 13 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA sí, pues es el tratamiento dado a aquella lo que permitirá la evolución de la práctica argumentativa. 1. De Inventione Retorica de Cicerón traducida por Alonso de Cartagena, ca. 1420-22. Converso e hijo de converso y bien dotado del don de la palabra, Alonso de Cartagena (ca.1385-1455) se desempeñó como diplomático eficaz al servicio del rey de Castilla, Juan II, representándolo en diversas ocasiones frente a Portugal así como en el Concilio de Basilea (1339) a cuyo regreso “la producción vernácula del ya obispo de Burgos pasa a ser original y el mundo antiguo es sustituido por las preocupaciones inmediatas de la sociedad castellana del s. XV, aunque la ética permanece como centro de su obra” (ALVAR Y LUCIA MEGÍAS, 2002, p.94). Él es quien probablemente mejor encarna el contexto lingüístico cultural que da continuidad al proceso protagonizado por la lengua romance desde inicios del siglo XIII bajo los reinos de Fernando III, el Santo y Alfonso X, el Sabio, dirigido a habilitarla en los diversos espacios estatales, como el administrativo, el literario y jurídico, en medio de una intensa y densa labor de traducción en la que figuras de la intelectualidad judeoconversa tenían una presencia relevante, preocupados como estaban por la situación política turbulenta que provocaban entre las comunidades de Toledo discursos descalificadores contra los judíos y, sobre todo, los judeoconversos. Cartagena se revela, pues, como figura significativa en el campo social y político que da continuidad a las mentalidad del medievo peninsular en la que se considera la lengua castellana lo bastante preparada para actuar tan eficazmente como el latín en el foro sociopolítico para la resolución de problemas y para la integración de culturas. Estaba convencido de que “el castellano es tan apto como el latín para su tratamiento retórico y de que existían ya en su tiempo autores, como el mismo Santillana, que podían servir de modelos” (MORRÁS apud MORENO HERNÁNDEZ, 2008, p.73). Así, si durante el siglo XV, como recuerda Marguerita Morreale, en todo proceso de traducción había un intelectual judeoconverso que “servía de instrumento y guía”, y el prócer cristiano que “ponía su mecenazgo y su recién despertada curiosidad de saber” (1959, p.5), Cartagena viene a representar esa imagen dedicándose en la segunda mitad de su vida a trabajos intelectuales como asesor y traductor, vertiendo varios libros al castellano, entre la traducción que nos ocupa. 14 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca En el prólogo de la obra, aparecen tres aspectos que merecen especial atención, el primero es que menciona sin ambages el nombre de quien le solicita tal trabajo para mejor comprensión del texto, el rey don Duarte de Portugal, y la segunda es que explica, sin necesidad de justificarse, el porqué de verterla al castellano, aspectos que serán tratados de muy diferente manera en la segunda retórica que trataremos más adelante. En tercer lugar, Cartagena señala una divisora de aguas que no será bien entendida de nuevo hasta la segunda mitad del siglo XVIII. Nos referimos a la diferencia establecida entre dos instrumentos lingüísticos diferentes, la gramática y la retórica a partir de la distinción de sus propósitos y lo que no es menos importante, las consecuencias que es distinción trae a la práctica de la retórica. Si la primera se dedica a enseñar el dominio de la parte descriptiva de la lengua, su estructura, los ejercicios de traducción y sus diferentes géneros, la segunda tiene como objetivo persuadir para resolver conflictos, es decir, adquirir las estrategias de la argumentación eficaz: (…) algunos cuydan que la Rethorica toda consiste en dar doctrinas espeçiales para escrivjir o fablar o trasmudar o hordenar las palabras, mas non es asi. Ca commo quier que della sale la buena hordenança del fablar, pero no es este su total yntento. Ca grant parte della se ocupa en enseñar commo deven persuader e atraerá los juezes en los pleitos e otras contiendas e a las otras personas en otros fechos quando acaecen (…) Por ende, qujien lo presente leyere no cuyde que fallará escripto cómmo escriua las cartas njn commo trasporte las palabras, ca avnque dello otros mas modernos en tiempo e non de tan alta manera algo escriujeran, pero los prinçipes de la eloquençia preçipuos escriptores della en los prinçipales libros non se ocuparon del todo en esto, mas dieron sus generales doctrinas para arguyr e responder, para culpar e defender e para mouer los coraçones de los oyentes a saña o a mjsericordia o a las otras pasiones que en la voluntad humana cahen (1420-22, p.7-9). Conociendo y adoptado las técnicas de la argumentación en su lengua materna, que es la sede del conocimiento práctico, le será posible al orador echar mano de su natural talento o ingenio para elegir los argumentos a partir de su intención: “E dende cada una saque por su Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 15 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Yngenio aquello que entendiou para en lo que quiere fablar cumple” (1420-22:9). No obstante, es sintomático que Cartagena, a diferencia de Salinas, como veremos enseguida, no hace ninguna defensa explícita de la lengua vernácula pues el solo hecho de traducir la obra de Cicerón, así como el clima de la época, que permite circular llanamente por la lengua romance en los diferentes ámbitos institucionales, inclusive en el campo jurídico, como demuestran la dos obra de Alfonso X el Sabio, no le obliga a ello. Como veremos, no será esta la línea que va a imperar durante los siguientes siglos, en los cuales las retóricas jurídicas y eclesiásticas se desarrollarán en latín, no permitiéndose otra lengua para escribir y publicar los sermones y homilías aunque se enunciaran en vernáculo. 2. Rhetorica en lengua castellana, de Miguel de Salinas, 1541. Si bien no hemos verificado hasta ahora ningún dato sobre la procedencia confesional de Miguel de Salinas, los casos de judeoconversos entre los jerónimos alcanzaban tal peso que llegó a aplicarse por primera vez el estatuto de sangre, no ya a una persona, sino a toda una orden (RÁBADE OBRADÓ, 2004, p.283-284). Elegidos por Felipe III como Moradores del Monasterio del Escorial mantuvieron desde sus orígenes una estrecha relación con la Corona que debilitada por recibir poco apoyo de los nobles necesitaba hacerse fuerte desde un punto de vista político. Un proyecto que desde los RR CC se había revelado no solo político religioso sino glotopolítico. Su importancia radica en que por el hecho de ser un fenómeno exclusivamente peninsular le confería una peculiaridad que, inicialmente, podía atraer las simpatías de los monarcas ya que veían las ventajas de carecer de superiores extranjeros y decisiones capitulares adoptadas en territorios extraños a sus dominios y por religiosos que no todos serían súbitos suyos y con distinta formación, humana y espiritual, que no tenían las otras grandes familias religiosas, monásticas o mendicantes (CAMPOS Y FERNÁNDEZ DE SEVILLA, p.6). 16 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca El vínculo con la monarquía no era ya estrecho sino casi endogámico, pues fue de su mismo seno de donde salieron sus fundadores, Pedro Fernández Pecha y Fernando Yáñez de Figueroa, fueron antes que religiosos nobles de la cámara de don Alfonso el Onceno (1311-1350), y su hijo don Pedro, luego conocido como el Cruel (1334-1369), estableciéndose una corriente de simpatía, admiración y respeto, por parte de muchos miembros de la nobleza, hacía esa nueva familia religiosa establecida en San Bartolomé de Lupiana, en tierras alcarreñas, y su proyecto de renovación espiritual (CAMPOS Y FERNÁNDEZ DE SEVILLA, p.6). Las ideas de Salinas sobre el lenguaje presentan además, como veremos, puntos en común con Cartagena por lo que se refiere a la apreciación sociopolítica del empleo de la lengua vernácula en el estudio de la teoría retórica, aunque en el transcurso de más de un siglo desde la traducción de De inventione haya cambiado la actitud hacia ella. Prueba de ello es que, a diferencia de Cartagena, en la Rhetórica castellana (1541), primera escrita en vernáculo, el fraile jerónimo esconde la identidad de quien le solicita la redacción de la obra y tanto él como su editor, Juan de Brocar, deben justificarse por haber elegido la lengua vernácula, lo que muestra el tenor polémico que la lengua escogida puede acarrear y que no estaba presente un siglo y medio antes. A pesar de que Salinas siga a Aristóteles, Quintiliano, asuma afirmaciones de Erasmo y adopte la perspectiva teórica de Nebrija, la mera defensa de la lengua castellana, no ya como objeto de estudio sino como simple instrumento pedagógico, es polémica y por ello se debe argumentar sobre su elección. Solo así el fraile jerónimo se siente más legitimado para exponer sus ideas sobre el uso de la lengua castellana en un medio que se considera reservado al latín. Para ello se refiere en el prólogo a la necesidad no solo de poseer talento para el dominio del arte sino a la de tener una experiencia previa que les permita valerse con eficacia de la técnica. A pesar de tratarse de una retórica para la oralidad sagrada, dicha experiencia previa, curiosamente, no es Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 17 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA religiosa sino lingüística. Para el fraile jerónimo se debe estudiar retórica en la lengua que le es conocida al estudiante, Pues faltando la latinidad, como falta y como tengo por cierto que faltará adelante, a lo menos tal qual conviene para usar de la rhetórica, no paresce que ay esperança de remedio, si no es darse a la latinidad lo que baste, lo qual en España tengo yo por impossible. A algunos grammáticos o latinos les parescería lo contrario, pero a la experiencia les querría ver. A lo menos no me negarán que ellos, ni otros más que ellos, no dirán tan liberalmente en latín lo que sienten y por tan buenas palabras como en castellano, y no aviendo esto, háse de tener el pensamiento ocupado en las palabras y no puede estar libre para en lo demás, que es lo substancial. Y assí, estando coxos, falta el exercicio sin el qual no se puede alcançar cosa perfecta. Si no, véase por quántos se señalan en rhetórica entre los que hasta aquí la han oído y oyen en Castilla. (…). Y pues la rhetórica es arte de bien hablar y todos tienen dello necessidad y, según veemos, assí en sermones como en juizios, cartas mensajeras y hablas familiares, todos hablen en su común lengua y no en latín, sería bien que uviesse arte de rhetórica en la lengua vulgar (SALINAS [1541], p.14-15). A pesar de todo, en su retórica la ejemplificación está tomada de las retoricas greco-latinas, sobre todo de Quintiliano, tomando muchas partes de Nebrija, eso sí, adaptadas a la realidad española del momento (SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.40). Sintomático es que en ella se utilicen ejemplos que remiten a una reciente discusión para la época, como es el caso de Cosas acaecidas en Roma, de Alfonso de Valdés, haciendo con ello referencia a hechos conocidos por el lector debido a su actualidad (SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.32). Es así como esta retórica, siendo pensada para formar oradores consigue establecer lazos de proximidad con el lector. No obstante muestre gusto por los cultismos y aun cuando coincida con Nebrija en que los principios teóricos de la retórica son un campo de conocimiento independiente, su defensa de la lengua común o vernácula le lleva a que no le convenza la Gramática castellana del nebrijense (1492) ya que siguiendo la línea de los humanistas del 18 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca renacimiento la interpretación que hace de las fuentes goza de una independencia importante porque Salinas toma de Nebrija la definición y luego elabora por su cuenta el tema; en alguna ocasión toma también los ejemplos, en la mayoría integra con ejemplos propios, o tomados de otros textos. La Artis es sin duda un punto de referencia pero no el único, y, sobre todo, no hay pasividad en el uso de la fuente (SÁNCHEZ GARCÍA, 1999, p.51). La crítica de fraile jerónimo se refiere a que mediante la cita de ejemplos extraídos en su mayoría del Laberinto de Fortuna o las Trescientas, de Juan de Mena, Nebrija transfiere a la lengua castellana la morfología y la sintaxis de la latina. Su percepción se inscribe dentro del mismo pensamiento lingüístico expresado por el intelectual también de origen converso, Juan de Valdés en su Diálogo de la lengua (15351735). En él, el intelectual conquense piensa la lengua desde su carácter de flujo, tomando como ejemplos el refranero castellano no escrito, mientras que el latinista sevillano lo había hecho desde su condición de disciplina y tomaba los ejemplos de la literatura (ROCA, 2011). Ambas concepciones, la nebrijense y la valdesiana, son dos tipos de pensamiento comunes en la historiografía lingüística europea desde el Renacimiento, dando lugar por un lado a las gramáticas de estado, con un fuerte componente lógico y prescriptivo y, por otro, a las gramáticas particulares, que parten del caso para realizar reflexiones críticas, formuladas y reformuladas al compás histórico de las diversas situaciones por las que va pasando una lengua viva (ARNOUX, 2013). Este último es el que encontramos de un modo más o menos formulado en las retóricas que proponen el paso decisivo hacia lo vernáculo y que se hace palpable en Salinas quien parece imaginar una estructura formada por círculos concéntricos; el primero de ellos comprende la retórica aplicada al campo de lo judicial que, hincando sus raíces en el pasado clásico, ofrece modelos tomados de éste; el segundo carece de la especificidad del primero aunque mantiene aún lazos de filiación con la antigüedad clásica y contiene en su ámbito no solo lo que se refiere a la órbita de las letras sagradas sino también al Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 19 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA vastísimo espacio del escrever con estilo y orden; el tercero de esos círculos compensa su desarraigo respecto a la tradición grecorromana con la extensión infinita del propio territorio que coincide con el de la oralidad más íntima y cotidiana y su directo equivalente en el sistema de escritura (SÁNCHEZ GARCÍA, 1995, p.225). Es con este tercer círculo como el fraile jerónimo abre camino a una castellanización de las retóricas, en la misma línea de gran parte de los autores que servirán de ejemplos en el siglo XVIII. A diferencia de Mena, figuras relevantes del siglo XVI, nuevamente de origen judeoconverso, como San Juan de Ávila o Fray Luis de León, autores cuyas obras en castellano abastecen de ejemplos a las dos retóricas del siglo XVIII que comentaremos más adelante, se valen del uso del común hablar para fortalecer sus argumentos y caracterizar su fuerza de integración social. El primero no publicó ninguno de sus sermones en vida por estar compuestos en lengua castellana, pero se apoya en las expresiones de la lengua común en su Audi Filia, como analizamos profusamente en otro lugar (ROCA, 2014), bajo el argumento de que la considera razonable: Y si vale tomar licencia para decir que al amor llama fe, tomando el efecto por nombre de la causa, tomarla hemos nosotros para decir que en los lugares de la Escritura en que se dice que por la fe es el hombre justificado, se entiende al amor por nombre de fe, entendiendo en la causa el efecto; pues tan usado modo es de hablar y tan razonable llamar al efecto por nombre de causa como a la causa por nombre de efecto (ÁVILA, 2007, p.630, subrayado nuestro). Por su parte Fray Luis de Léon ya había hecho de la lengua vulgar ese lugar de común o esa razonabilidad de donde surge la comprensión Notoria cosa es que las Escripturas que llamamos Sagradas las inspiró Dios a los prophetas que las escrivieron para que nos fuessen en los trabajos desta vida consuelo, y en las tinieblas y errores della, clara y fiel luz; y para que las llagas que hacen en nuestras almas la passión y el peccado, allí, como en officina 20 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca general, tuviéssemos para cada una proprio y saludable remedio. Y porque las escrivió para este fin, que es universal, también es manifiesto que pretendió que el uso dellas fuesse común a todos, y assí, quanto es de su parte, lo hizo, porque las compuso con palabras llaníssimas y en lengua que era vulgar a aquellos a quien las dio primero (LEÓN, 1984, p.140). La ventaja de asumir la lengua vernácula es para Salinas sobre todo pedagógica, pues exponiendo ejemplos en castellano se hace posible que el lector extraiga por sí mismo la comprensión mediante la familiaridad que el uso de la propia lengua madre le trae, llevándole a entender el concepto. Apelando a esa experiencia es más eficaz explicar lo que es, por ejemplo, una digresión, “Estando yo en la plaça, vi a Pedro quitar unas puertas de una ventana de mi casa, y entró dentro y salió con mi jarro de plata que me llevava hurtado; fui corriendo a tenerle y ya era ido; llamé a Juan y, para que me ayudasse a buscarle díxele lo que passava y él me ayudó porque también a él le avía hurtado pocos días avía una capa; pero no le podimos tomar”. Que Pedro le uviesse hurtado el jarro y averle visto entrar por la ventana y salir con él, es la narración substancial. Ponerle en ruin opinión, dando a entender que lo tenía en costumbre y contar el otro hurto que avía hecho, no lo podía incontinentemente poner, aunque perteneciesse algo a la causa, porque paresciera cosa por sí y sintiérase aver passión clara; pero lo primero dio ocasión a dezir que llamó a Juan para que le ayudasse, y esto dio ocasión para dezir lo postrero que Juan le avía dicho de la capa, de manera que paresciesse sólo contar lo que a él le acaesció. (SALINAS, 1541, p.33). La transposición de la razón, vigente en latinistas como El Brocence, que la deposita en el centro de la retórica entendida como método, es para el Maestro de Ávila la lengua romance, porque su experiencia de uso la capacita para la persuasión y para la mediación en los conflictos sociales ya que transita, por un camino más dúctil, por el universo de lo razonable. A partir de la reforma, la oratoria sagrada necesitaba llegar a un público amplio, no necesariamente letrado, socialmente heterogéneo y, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 21 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA en su mayoría, desconocedor de la lengua latina. De allí que se vea obligada a evolucionar más rápidamente que la jurídica o civil, dirigida a un público técnico y vinculada a una institución con fuertes códigos de conducción y protocolos en su producción. Como bien puntualiza López-Muñoz: La Retórica eclesiástica se sitúa en la avanzadilla de la teoría y, al menos en el Quinientos europeo, se adapta constantemente a los cambios requeridos para el correcto desempeño de la predicación. Las Retóricas civiles son útiles para observar la evolución interna de la teoría retórica, con todo el proceso ramista de escisión de la Dialéctica y de la circunscripción de la Retórica a una Estilística taxonómica; pero las eclesiásticas entran en cuestiones más profundas, como la propia definición de su tarea, y más práctica, como la formación del predicador desde los primeros pasos del discurso hasta la pronunciación. Responden, en suma, a la diferenciación cristiana entre ciencia secular y ciencia divina que ya había formulado Tertuliano (2010, p.15). Por otro lado, los sentimientos nacionalistas proyectados en el castellano llevan ya en el siglo XVI, según Cea Galán, a que: El amor por la propia lengua, la convicción de no poder dominar otra mejor que la materna, el deseo de enriquecer a ésta tratando en ella los mismo temas elevados que se tratan en el latín eran razones poderosas que impelían a escribir en vulgar (…) Así invadió el romance no sólo el terreno de los textos religiosos sino también el literario y, más aun, el de la ciencia, síntoma este indiscutible de la derrota del latín a fines del XVI (2009, p.XLVIXLVII). Es, por tanto, la necesidad de atender a un público lego y heterogéneo lo que aleja las que aquí llamamos retóricas disciplinares, es decir, la jurídica y eclesiástica, de la oratoria sagrada, influyendo más esta última en el desarrollo de la lengua vernácula. A pesar de ello, no estará exenta de las viejas contradicciones que la obligada 22 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca incorporación de autoridades grecolatinas le infringía a la lengua castellana. Ese problema se irá poco a poco resolviendo a medida que gana adeptos el castellano como lengua nacional porque los autores de las retóricas y de los manuales se ocuparán en extender las autoridades, estrategia que consiste en ir incorporando en sus ejemplos autores patrimoniales que escriben ya en castellano, haciéndolos convivir con los dictados por el canon clásico. Durante el siglo XVII estos sentimientos llevarán cada vez más a hacer evidente la práctica de enseñanza mixta que habían defendido latinistas de la talla de Francisco Sánchez, el Brocense, y de Juan Lorenzo Palmireno. Pero también a evidenciar la transferencia de valores desde la lengua latina hacia la vernácula hasta consagrarla, lo que Sylvain Aroux define como una transferencia cultural masiva (2009, p.27), llegando a crearse una fuerte reivindicación nacionalista con la defensa de la elocuencia castellana. Es en ese período en el que la lengua vernácula deja de competir con el latín para situarse no ya a la misma altura sino en un lugar desde el cual declararse hegemónica. Es la época en la que las ideas nacionalistas lideradas por Gregorio López Madera al amparo gubernamental alientan a que la lengua castellana avance en nuevos espacios reservados hasta entonces al latín. 3. Elocuencia castellana en arte, de Bartolomé Jiménez Patón, 1604. Si Alfonso de Cartagena se vale como autoridad lingüística del Marqués de Santillana capacitando la lengua castellana para recoger el conocimiento clásico, y Salinas de una mezcla de ejemplos propios y bíblicos, Jiménez Patón lo hace de la literatura patrimonial del XVI y sobre todo del XVII. Entre el estudio disciplinar y la práctica literaria, Jiménez Patón, como hijo de su época, considera a la elocuencia sinónima de la teoría retórica, referente universal de corrección del bien hablar, “que es común en todas las lenguas” (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.5), cuya función es enseñar la propiedad de la lengua materna. Profesor de retórica en Villanueva de los Infantes, tuvo una enorme influencia durante el siglo XVII y su Eloquencia fue consultada por numerosos alumnos de La Mancha y de Andalucía. En su prólogo, da argumentos sobre el prestigio naciente de la lengua española porque se enseña por arte, es decir, por gramática tanto en las Indias como en el ámbito de la escuela pública en Francia y otros países europeos, equiparándose al latín en su calidad de lengua general. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 23 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Sin embargo, su marca más clara de pertenencia a una época está en suscribirse a las ideas defendidas por Gregorio López Madera, alineándose en sus ideas sobre el origen de la lengua castellana con otros autores de la época, como el latinista Gonzalo Correas (ARNOUX, 2013). En su obra Excelencias de la Monarquia y Reyno de España (VALLADOLID, 1597), López Madera lidera la nacionalización de la lengua española al hacerla una de las principales que ya existían en la época de Noé, de manera que tendría no ya una relación de dependencia con el latín sino de paridad por lo que se refiere a su génesis y a su historia. Confieso que dejándome llevar por el parecer de muchos avia errado en tener nuestra lengua por latín corrompido mas e visto estos días con más atención al agudo y doctísimo discurso que sobre esto haze el Doctor Gregorio López Madrea [sic], del Consejo de su Magestad, (…). Me e sugetado a su verdad y podre dezir lo que Horacio, que Dios a alumbrado mis sentidos. Dize pues que qualquier nación y provincia que se poblo en tiempo de Noe, tubo su lengua distincta. Y los Españoles antiguos tuvieron la suya propia distincta de la Latina, que nunca la latina fue la vulgar de España, que como todas las demás naciones procuran conservar su lengua (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.9). Dándole al castellano el estatus de lengua general, Jiménez Patón avanza dentro de esa lógica y lo presenta como una matriz formada por un conjunto de dialectos peninsulares o variedades lingüísticas que cohesiona y aúna la aparente divergencia o diversidad lingüística, considerándolas como giros idiomáticos que no comprometen la estructura de la lengua matriz o general, sino que la constituyen. La lengua general española es pues la suma de todas las variedades, centralizando las diferencias y contribuyendo con este razonamiento a la construcción de la lengua nacional La propiedad de una lengua no solo se conoce en que tiene vocablos propios sino que tiene Dialecto y phrases propias pues que la nuestra tenga lo uno y lo otro por su discurso se haze manifiesto por el de nuestra doctrina y por el que queramos hazer en algunos modos de hablar. Porque decir juras a Dios macho no 24 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca tiene, es vyzcaino, Yo arregar el lino es Morisco. Yo sirvo a Dios es Español dialecto y los vocablos todos son españoles (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.10). Equiparándola más adelante con la división de dialectos en la Antigua Grecia, identifica en España cinco derivados del español, que es la lengua general o común, generadora de todas ellas menos del vasco, “Y en España ay otros cinco, que son la valenciana, Asturiana, gallega Portuguesa. Las quales todas se an derivado de esta nuestra, quinta o principal y primera, Originaria Española diferente de la Cantabria” (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.10). Y aquellas diferencias que no las puede explicar como siendo derivadas del español ni quiere recurrir al latín, echa mano Jiménez Patón de los extranjerismo o helenismo, manteniendo siempre su tesis de que español y latín están en el mismo nivel de génesis histórica, no habiendo entre ellas relación de dependencia, Lo que es pegarie [sic] vocablos estrangeros a todas las lenguas a sido común por la vecindad y comunicaciones que entre las tales naciones a avido, y asi lo tuvieron los griegos y los latinos y aun algunas construcciones y modos de habar se an prestado unas naciones a otras como se ve en las locuciones que el Latino del griego toma que llaman Helenismos, que según esta nueva gramática enseña son muchos mas que hasta ahora. Y el mismo latín (…) tiene hebraísmos (…) Y no por eso decimos que la una lengua es otra, luego por la misma raçon no debemos decir que la Española es Latina corrompida pues tiene vocablos propios y Dialectos, vocablos que de otras nación son (JIMÉNEZ PATÓN, 1604, p.10). Es pues Jiménez Patón hijo de si tiempo en el proceso de construcción nacional de la lengua española, lo que dará la fuerza necesaria para poder introducirla en el ámbito educativo cuando este comienza a ser del interés del estado ya en el siglo ilustrado. El primer paso se da en el ámbito de las iniciativas educativas, tanto en las derivadas del Seminario de Nobles, en concreto una de sus creaciones alternativas o subsidiarias a ejemplo de la Casa de Caballeros Pajes, como de otras iniciativas de relativo éxito en la época, como es el caso Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 25 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA de las Escuelas Pías de los padres Escolapios, destinadas a la enseñanza de la gramática y la latinidad a niños humildes o sin recursos. 4. El siglo XVIII: el espacio dado a la lengua castellana en el instrumento lingüístico retórico A la hora de analizar el siglo XVIII debemos tener en consideración dos asuntos diferentes aunque relacionados. El primero es el cambio de lengua que se instrumentaliza en las retóricas por vía legal (ya que, como hemos visto, existían antecedentes textuales), y el segundo es la concepción lingüística que reside en las medidas pedagógicas adoptadas en el ámbito institucional de la enseñanza. 4.1 Las medidas legales Con las medidas reformadoras de Carlos III al expulsar a los jesuitas de España y América, el ámbito institucional se ve fuertemente afectado porque era en manos de ellos de quienes estaba la mayor parte del sistema educacional. En la cédula de 23 de junio de 1768 el Rey Carlos III dispone que se enseñe retórica en castellano en los cursos preuniversitarios y recomienda su uso en la enseñanza superior, VII. Finalmente mando, que la enseñanza de primeras letras, Latinidad, y Retórica se haga en lengua castellana generalmente, donde quiera que no se practique, cuidando de su cumplimiento las Audiencias y Justicias respectivas, recomendándose también por el mi Consejo a los diocesanos, Universidad, y Superiores para su exacta observancia, y diligencia en extender el idioma general de la Nación para su mayor armonía, y enlace recíproco. (Carlos III, [1768], p.4). Si durante el XVIII, en la universidad, la lengua seguirá siendo el latín (LÁZARO CARRETER, [1949], (1985), p.164) tanto en el territorio peninsular como en el americano, centrada, como lo estaba, en el estudio del derecho y la teología, en el proyecto educativo de los seminarios de nobles, de la que depende la Casa de Caballeros Pajes, la realidad se fue haciendo menos purista con el transcurso del siglo, ya que las necesidades pragmáticas que tocaban a la Corona exigían una progresiva profesionalización de los funcionarios que la atendían. Si dichas necesidades ya presidían las decisiones desde la Edad Media, los 26 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca movimientos reformistas del XVIII les hacen apretar el paso llegando poco a poco a afectar a la universidad tanto en la península como en las colonias. Benito Moya, siguiendo a Gutiérrez Cuadrado, afirma sobre la Universidad de Córdoba, Rio de la Plata, que en este periodo de la segunda mitad del XVIII “la Universidad llega al siglo XVIII con la pérdida de (…) espacios ganados por el latín” (2000, p.157), relegándose su uso a la diplomacia y a los manuales de ciencia. Aunque será precisamente la ciencia el ámbito del saber que irá alejando el latín poco a poco de los claustros y de las clases universitarias (LÁZARO CARRETER, 1985, p.164). Lo que también señala Benito Moya al puntualizar que dentro del aula “las explicaciones de puntos difíciles de la ciencia debían hacerse en lengua vulgar” (2000, p.159), implicando que durante este siglo empiezan a imponerse los valores que los nuevos intereses económicos despiertan en el gobierno del Estado, avalando los nuevos saberes y la lengua que los vehicula, es decir, al castellano. La continuidad dada al manual nebrijense para el estudio del latín, que tantas críticas había levantado en las universidades españolas, ya admite adaptaciones que pasan por la consideración de tomar en cuenta la lengua vernácula. Son las reformas llevadas a cabo por los jesuitas António Velez en Portugal, que en su Emanuelis Aluari (Évora, [1599]) traduce al portugués las autoridades elegidas por Nebrija (SÁNCHEZ, p.XII), y de Juan Luis de la Cerda, que hace la misma operación, esta vez al castellano, con las reglas o preceptos de la famosa gramática latina en su Arte Regia (1601) (DEL REY FAJARDO, 2012, p.33). Esas prácticas que durante los siglos XVI y XVII habían sido habituales, aunque no ostentosas, se hacen más visibles durante el XVIII. A pesar de la defensa jesuítica del latín, fueron ellos los que aceptaron y divulgaron el apoyo pedagógico del castellano, separando teoría y práctica, como ya hiciera Nebrija. Dada su enorme expansión en el sistema educativo tanto en la península como en América sería difícil explicar la aparición de retóricas en castellano sin ese trabajo previo. Es sintomático que tres años antes de la expulsión de la Compañía de Jesús y cuatro antes de la real orden de Carlos III, en el año 1764, se publique la Rhetórica Castellana, del Bachiller Alonso Pabon Guerrero, presbítero y maestro de los caballeros pajes. Como otrora en el siglo XIII, el XVIII viene a sancionar la tendencia que, de praxis, ya se estaba dando, aunque sin el reconocimiento formal y normativo del medio institucional. Si bien en 1725 el rey Felipe V crea el Seminario Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 27 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA de Nobles y entrega su administración a la Compañía de Jesús, disponiendo que la enseñanza sea realizada en latín, en 1768, el rey Carlos III, como vemos, cede al flujo de los tiempos y ordena que la retórica sea enseñada en castellano. En un arco de menos de cincuenta años se ha dado la vuelta a las prácticas educativas y su eje es el cambio abierto de la lengua del lacio a la vernácula, pero ¿lo es realmente? 4.2 El proyecto piloto de la Real Casa de Caballeros Pajes Si las Escuelas Pías eran las primeras escuelas gratuitas, destinadas a niños humildes o sin recursos sin un proyecto político pedagógico específico, la Real Casa de Caballeros Pajes es un buen ejemplo de cómo evolucionan las reformas pedagógicas de la centuria. Siendo, como dicho anteriormente, un subproducto del Real Seminario de nobles, se diseña como el destino de la educación de los hijos de la nobleza. Su proyecto reformista llamó la atención de algunos de los mejores intelectuales de la época, como Gregoria Mayans y Siscar, Francisco Pérez Bayer, Eugenio Laguno y Amirola o Gaspar Melchor de Jovellanos, así, De esta circunstancia se deriva que la Real Casa, objeto de sucesivos proyectos reformistas y pedagógicos, se convierta en cierto modo en reflejo de los avatares, éxitos y miserias de una España Ilustrada que sobre todo a partir de 1789, son frenados muchos de sus proyectos de cambio por temor al contagio revolucionario (DOMINGO MALVADI, 2013, p.13). Dando continuidad a la comprensión de castellano como lengua general, las retóricas disciplinares del siglo XVIII son una manifestación del pensamiento casticista que la promueve al lugar hasta entonces ocupado por el latín, como hemos visto sobre todo en el caso de Jiménez Patón. Ese aspecto se observa en la evaluación seguida de pautas dadas al Palacio Real por D. Francisco Pérez Bayer en 1773 sobre el método que debe ser utilizado en la instrucción de los alumnos y en la aptitud de los maestros de la Real Casa de Caballeros Pajes. En ella se recomienda la redistribución disciplinar de la retórica entre una parte práctica y otra teórica, dando por supuesto el carácter general del español, considerándolo como un conjunto de principios lógicos y universales presentes en todas las lenguas. En sus indicaciones se puede 28 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca observar cómo se va saliendo de la retórica crítica y deliberativa para realizar acciones concretas en el campo institucional educativo que se viene estructurando en torno a la concepción enciclopédica del conocimiento propia del hombre ilustrado. Pérez Bayer propone que el estudio del discurso se distribuya, por un lado, en el de las asignaturas dedicadas a la Primeras Letras, donde se estudiará la gramática, la prosodia y la ortografía, según las directrices de la reciente gramática llevada a cabo por la Real Academia de la Lengua, además de la composición textual basada en la imitación de uno de los géneros clásicos, como era la redacción de cartas o epístolas, y que se hiciera vinculada a la doctrina cristiana. Por otro lado, reserva la enseñanza de “lo restante de la retórica” al maestro de filosofía, que lo enseñará junto al “resumen de la metafísica del mismo autor [Antonio Genuense], y la ethica o filosofía Moral”. Vemos aquí concretarse la recomendación de Mayans y Siscar, ya indicada por los clásicos, de graduar los contenidos desde lo más fácil a lo más difícil, lo que implicaba una continuación de la vieja disciplina que buscaba nuevos espacios en el sistema educativo iluminista 5. Dos retóricas disciplinares del XVIII: la Rhetorica castellana de Alonso Pabon Guerrero, 1764, y los Elementos de Retórica, de Calixto Hornedo, 1777. Dos ejemplos de retoricas disciplinares en lengua castellana que hacen de la traducción espacio de encuentro de la lengua latina y la española los tenemos en la Rhetorica castellana (1764) de Alonso Pabon Guerrero, y en los Elementos de Retórica, de Calixto Hornedo (1777), manual de enseñanza para niños reimpreso y varias veces reeditada en la centuria siguiente, como muestra que intelectuales como Mariano José de Larra en él estudiara cuando cursó asignaturas en las Escolapios y por él marcará en cierta manera su estilo (ESCOBAR ARRONIS, 2002, p.24-25)2. En ambas retóricas se observan estrategias para legitimar autoridades patrimoniales junto a las ya refrendadas y van incorporando ejemplos en una mezcla de traducción ideológica e incorporación de elementos prácticos traídos de su producción ya en lengua castellana. Primero se incluyen como teóricos y más tarde se toman sus ejemplos ya no traducidos sino originales en castellano. 5.1. Rhetorica castellana (1764) de Alonso Pabon Guerrero Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 29 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Según reza en sus prolegómenos, la Rhetórica de Pabon nace destinado a la utilidad pública y se escribe con la intención de dotar de un manual para su estudio a la Real Casa de los Caballeros pajes. Solo hubo una edición (PALAU Y DULCET, 1959, p.137), aunque alcanzó cierta expansión en el territorio no solo peninsular sino también americano, como muestra el hecho de haber sido encontrada en el acervo de la biblioteca de la iglesia de San Francisco en Buenos Aires. Se publica con cuatro años de antelación a la referida cédula real del 23 de junio de 1768. Con ello el “bachiller, presbítero y maestro de los caballeros pajes” pretende servir a propósitos educativos de alcance imperial, como lo hiciera en su día la Gramática castellana de Antonio de Nebrija, propósitos que habían empezado a considerarse con cierta anterioridad a la cédula citada. Dedicada al rey, en su primera página aparece el escudo borbónico, si bien en la forma anterior a la que tendría tras introducirle Carlos III varios símbolos personales. El texto se presenta como un manual de preceptos dirigidos a todos aquellos que deseen aprender a hablar bien y aunque escrita en su totalidad en castellano, se encaja en los principios teóricos de la argumentación heredados de la antigüedad clásica a través del neoclasicismo. A pesar del antecedente de Jiménez Patón, cuyas autoridades están en su totalidad en castellano, el principal problema que tiene un autor del XVIII que escribe una retórica en castellano es el de las autoridades, pues si se eligen las clásicas no se entra en la lengua vernácula y si se citan los patrimoniales se dejan de lado las legitimadas y puede haber riesgo de desautorización. El tratamiento que se le dé a la cita y la manera como sean elegidos los ejemplos van a permitir hacer el tránsito desde las autoridades clásicas a las patrimoniales de manera no traumática en las dos retóricas que aquí comentamos. Las autoridades elegidas por el bachiller son esencialmente Cicerón y Quintiliano, seguidos de Aristóteles y San Agustín. Estos últimos, aunque menos evidentes en las citas, están en la base estructural de la obra. Los ejemplos están traducidos en su mayoría de los clásicos, incluyendo los literarios, como Ovidio, y frecuentemente los reproduce en las notas en la lengua original. Pero además de los clásicos, Pabon introduce autoridades del siglo XVI que escribieron en latín, como Julio Cesar Sacaligero (1484-1588) y Fray Luis de Granada, para definir conceptos, si bien seguidos de ejemplos tomados de los evangelios en castellano: 30 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca Los oradores humanos la suelen acompañar con otra figura llamada Elogio; de la qual dice Scaligero, (40) que es una sentencia, que nace del juicio del orador, alabado, ò vituperando alguna cosa, ò algún dicho discreto, ò hazaña grande; con advertencia, que quando usamos de ella para vituperar, se llama Antiologia; al modo que dixo Christo, hablando de Judas: Ay de aquel hombres, por el qual será entregado el Hijo del Hombre ¡mejor le huviera sido no haver nacido! (PABON, 1764, p.15). Cuando Pabon explica el Epifonema cita como teórico a Granada, pero tomando el cuidado, que también tendrá Hornedo en la retórica que después analizamos, de hacerlo legitimándolo mediante su introducción entre las autoridades clásicas, ya sea los padres de la Iglesia o los rétores grecolatinos, y las Escrituras. Así observamos que Granada aparece salvaguardado entre una definición de Quintiliano y un ejemplo sacado de los Evangelios: Epiphonema: Que Quintiliano llama aclamaciones, es una sentencia grave y eficaz, que se suele hacer después de probado, y referido algún discurso, sacando de las mismas razones de él: ò es, dice Fr. Luis de Granada, una conclusión, que saca de lo dicho el que ha contado algún sucesso, y con ella amplia, y con ella amplifica, y eleva su discurso. Tales son las aclamaciones, ò Epiforas, con que Christo nuestro Seños concluìa (sic) sus discursos parabólicos: v.g. por San Mathéo: “Muchos son los llamados, pocos los escogidos (sic); y por San Lucas: “Todo el que se ensalza, será humillado, y el que se humilla será ensalzado (sic). Por tanto, cuando Pabon escoge a los autores patrimoniales, como es de esperar un texto del XVIII que ya ha pasado por la evolución que la oratoria sagrada ha imprimido a la teoría argumentativa, convoca al autor de los Seis Libros de retorica eclesiástica en calidad de teórico, aunque sea con una mención que no añade nada nuevo a lo ya dicho por el canon de autores, con el objetivo de ponerlo a la altura de los clásicos: Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 31 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Sirve la synonimia para amplificar la oración, para tener copia de palabras, especialmente quando se han de mover afectos; y para declarar mejor lo que se ha dicho en una palabra, añadiendo otras, ora sean propias, metaforicas o equivalentes, por lo qual, y para que se use bien esta figura, conviene advertir lo primero que el Orador no la ha de usar ufanamente, y sin necesidad, para no ser tenido por demasiado verboso, lo qual es defecto, dice Fr. Luis de Granada (PABON, p.51). Esa legitimación de Granada entre las autoridades permite la entrada de algún ejemplo propio de su producción en castellano y así lo hace, o pretende hacerlo, cuando debe ilustrar el políptoton, para el cual extrae un trecho de su Guia de pecadores, siendo el único ejemplo que se introduce en el Manual escrito originariamente en castellano: Traducción (…) es la repetición de una misma palabra en diferentes casos con la misma significación (…) como se ve en este exemplo de Fr. Luis de Granada: Los siervos de Dios guardan en su corazón estas sus palabras: en ellas tienen su esperanza: con ellas se esfuerzan en sus trabajos: con ellas confian en sus peligros, con ellas se consuelan en sus angustias: à ellas recurren en sus necesidades: ellas les encienden en amor de tal Señor (PABON, p.51). Por tanto, Pabon trata Granada como un autor moderno que puede dialogar con los teóricos clásicos de la retórica, convocándolo para cuestionar que la clasificación de figuras pueda ser definitiva, ya que estas varían constantemente, una afirmación que ya había hecho el propio Quintiliano. Pero sobre todo, el pensamiento de Granada le sirve para cimentar “que son solo dos los géneros de las Figuras, que se debe usar en la Rhetorica, uno acerca de las sentencias, y sentido de las cosas, y otro acerca de las palabras solamente” (PABON, p.13) subrayando la importancia de tener una experiencia previa de orden lingüístico que permita primero esa reflexión sobre el sentido de las sentencias antes de llegar a la comprensión del significado de las palabras y, por tanto, su empleo eficaz. Es este aspecto lo que lo vincula al tercer círculo del lenguaje íntimo propio del renacimiento español y que Sánchez García identificara en su estudio de la Retórica de Salinas. 32 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca A pesar de todo, eso no le impide a Pabon seguir la línea marcada por la elocuencia del siglo XVII, en la línea de Jiménez Patón (1607), al dedicar extensas páginas a la enumeración y explicación de las figuras, de manera que más bien parece un recurso retórico, un captatio benevolentiae, adelantándose en su pedido de disculpas, caso de que la clasificación no satisfaga al lector. De hecho, como profesor de una técnica, el presbítero considera que la experiencia se adquiere con el ejercicio disciplinado mediante la imitación de las obras de excelencia recogidas en un canon de autores clásicos. Para Pabon, como no podía ser menos, el estilo se crea con la aplicación de reglas previamente memorizadas que permitan aprender a imitar, siempre en una escala que va de lo más simple a lo más complejo en coherencia con el propósito pedagógico que preside la obra. Así propone recurrir al parafraseo; a la reformulación de la idea con otras voces; a seguir las figuras; al resumen y a la ampliación; a la cita poética y, por fin, a la traducción. Todas ellas son presentadas como prácticas que llevan al dominio de la técnica, revelando un objetivo más dirigido al desarrollo de la escritura que a las habilidades de un orador. Se observa aquí ya el espíritu que irá a eclosionar en las retóricas del siglo XIX (ARNOUX, 2008, p.330) y también el que animará a un escritor que se irá a regir más por un anhelo de lenguaje ideal y literario antes que por uno de amplio uso y de fuerte consenso social, pues la lengua se va a alimentar de figuras que estructuran un discurso “apartado del común lenguaje y modo ordinario de hablar” (PABON, p.13). Esta última afirmación entraña un concepto de lengua sintomático pues indica que aunque la retórica estuviese en lengua vulgar no significaba que incorporase los valores propios del uso, que tiene por referente a la comunidad de hablantes, sino que tiene como referencia una lengua literaria, a la manera del latín culto y de la gramática nebrijana. Pabon usa otros recursos además de la cita de autoridades clásicas (los ya reconocidos) y las extendidas (aquellas que necesita activar como tales), aunque estas sean las más frecuentes. A veces introduce un ejemplo de su propia cosecha, como es lo común en las gramáticas de estado y generales, pero en otros casos aprovecha la coyuntura pedagógica para introducir conocimientos enciclopédicos, en consonancia con el objetivo del proyecto ilustrado de la Real Casa. Por ello cuando explica el tipo de Conocimiento que busca saber y entender lo aclara en el cuerpo del texto, poniendo en nota de pie de página el Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 33 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA ejemplo enciclopédico que se conjuga con ejemplos de naturaleza moral a partir de frases propuestas por el autor, intentando poner en práctica ese “vasto programa que mezclaba hábilmente la ´formación´ y el adoctrinamiento” (CHERVEL apud NARVAJA ARNOUX, 1998, p.32). Asi mismo la question, sea universal, ó particular, se divide lo primero en question de conocimiento y en question de acción. La de conocimiento mira por ultimo fin el saber, y entender: v.g. Desear actuarse si la tierra es de figura esférica, (a) [nota de pie de página:] esfera se llama un cuerpo sólido, y rotundo, contenido en una única superficie, en cuyo centro está el punto, del cual salen todas las líneas rectas guiadas à la circunferencia. También se llama Esfera la descripción del movimiento de las estrellas, y de ellas son varios los géneros; porque una se llama Grecanica, en la qual se explica el oriente, y ocaso de las estrellas, al modo en el que son vistas en el Emisferio (sic) de los griegos: otra es esfera barbárica, que es acomodada al ritmo de los Egypcios: otra Pérsica, acomodada al de los Persas; y otra índica, acomodada al de los Indios. [fin de nota] o si es mayor que la luna. La question de acción atiende, como fin ultimo, à las acciones humanas: v.g. Si es licito repeler la fuerza con la fuerza, ò si ese han de perdonar las injurias (PABON, [1764], p.4). De esta manera, más allá de pretender la enseñanza y aprendizaje de la composición textual, la obra se convierte en una mezcla de ejemplos, definiciones y directrices como pretexto para introducir un tipo de conocimiento y de conceptos sobre el saber que reflejan el anhelo del hombre ilustrado por alcanzar un dominio universal, como se observa en la información de tipo enciclopédico que introduce, pero además busca la legitimación de nuevas autoridades, que junto a las clásicas permitan el tránsito hacia un saber más específico de la lengua castellana. 5.2. Elementos de Retórica (1777), del P. Calixto Hornedo En el otro extremo de la casa de Caballeros pajes nos encontramos con las Escuelas Pías de Madrid, fundada un año después que el Seminário de Nobles, 1726 por los padres escolapios que acogía a niños 34 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca cuyas familias no tenían recursos económicos. En el prólogo de Elementos de Retórica (1777), segunda retórica que aquí traemos, su autor, el padre Calixto Hornedo, profesor de la asignatura en dichas escuelas, deja bien claras sus razones para escribir en lengua castellana que pretenden, además de “cumplir a voluntad del Monarca”, obedecer a su experiencia como maestro. Estas parecen calcadas de las de Salinas: (…) es bien cierto el atraso, que padecen los Niños con estudiar la Retorica en latín; i esto no porque no se pueda aprender assi, sino porque ordinariamente los Niños, que comienzan a aprenderla no están tan adelantados en la Latinidad como se requería: que si lo estuvieran, seria lo mismo estudiarla en latín, que en romance Castellano. De donde procede, que acabado su estudio, no solamente no han conseguido algún razonable conocimiento de la elocuencia latina, pero ni aun de la Castellana; puesto caso que si se les manda escrivir una Carta, o razonamiento en lengua vulgar, no atinan, ni aciertan a ponerlo por obra: lo cual cuan grande mengua sea, por si mismo se deja conocer. Pues todo esto se remedia, a mi corto entender, con una Retorica en romance, i aun dado que después de estudiada, i aprendidos los egemplos latinos, que en ella seria bien poner, aprovecharan poco en la elocuencia latina; a lo menos con egemplos Castellanos puestos al lado de los otros, i con la explicación de la Retorica en la misma lengua, tengo por cierto (i aun lo he tocado con la experiencia) que saldrían algún tanto amaestrados en la elocuencia Castellana (p.11-12). Sin embargo, estas cuestiones de aprender la composición textual a partir de los conceptos retóricos son tan importantes como la preocupación por enlazar la lengua castellana con el mundo clásico, ya que eso la legitimaría en los ámbitos institucionales, por lo que ya en el subtítulo de la obra indica que en ella se incluyen “egemplos latinos de Cicerón i castellanos de Frai Luis de Granada para uso de las escuelas”. Se trata, por tanto, de un manual en el que se prepara a la retórica para dar el salto al castellano en ámbito escolar de mano de autores patrimoniales. Si en Pabon había un apego simétrico a las autoridades clásicas, traduciendo sus citas al castellano pero dejando el original en Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 35 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA nota de pie de página, la propuesta de Hornedo es valerse de traducciones que van dejando de ser literales e incluir los autores castellanos en sus citas originales porque partiendo de ellos se puede construir el tránsito que lleve a los alumnos a entender la teoría de la argumentación. Ilustrando el contenido teórico de los largos ejemplos tomados en latín de Cicerón mientras mezcla la explicación con los ejemplos extraídos de los mencionados Fray Luis de Granada, al que considera el “Tulio español” (HORNEDO, 1777, p.12), y del Maestro de Ávila, la labor pedagógica se simplifica. En consonancia con esta estrategia, cuando debe explicar alguna figura o tropos, se sirve tanto de Quintiliano como de Horacio y Granada, creando esa secuencia de continuidad y disolviendo la posible impresión de desvío y consiguiente rechazo que la sola introducción de autoridades en castellano pudiera crear entre las instituciones de enseñanza. En Hornedo se pasa de traducir el texto, lo que llevaba al estudio del latín, a traducir el concepto, lo que lleva al estudio de la teoría argumentativa en sí. Por todo ello, desde las primeras páginas de su manual se observa cómo va progresivamente desde las autoridades clásicas, representados por Cicerón, a las patrimoniales, representado por Granada, mediante dos gestos. El primero es instituir a este último como nueva autoridad en una retórica ya plenamente castellana que no contesta la canonizada sino que la iguala. Al aplicar a Granada el epíteto de Tulio español porque ha realizado una traducción modélica del latín al romance (HORNEDO, 1777, p.49-50), lo equipara a Cicerón y lo legitima para citarlo en adelante tomando sus textos escritos directamente en castellano, que emplea tanto para ilustrar su dominio de la teoría de la argumentación como el de la lengua vernácula. A diferencia de Pabon, por tanto, no lo cita solo como teórico a partir de su obra en latín de Seis libros de retórica eclesiástica (1576) sino que lo hace también como autoridad en el dominio de la lengua castellana, valiéndose de ejemplos extraídos directamente en castellano del Símbolo de la fe (1556) o la Guía de pecadores (1567), ilustrando géneros, figuras o tropos, tales como la narración (HORNEDO,1777, p.60-61), la repetición por sustantivos y adjetivos, (HORNEDO,1777, p.65-66), la amplificación por metáforas y perífrasis (HORNEDO, 1777, p.66) o el uso correcto del léxico (HORNEDO, 1777, p.67), movimientos que le permiten distanciarse del ejercicio de la traducción literal y entrar en el terreno pleno del castellano, una vez alejado el temor del desvío ya que desde 36 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca el principio ha tomado el debido cuidado de demostrar la continuidad del fraile con la tradición. Escrito con estructura de catecismo en el cual se explicitan las preguntas, Hornedo sigue el género con orden y disciplina razonada, mostrando cómo sería de diferente si esta figura no existiese, una diferencia que los alumnos pueden entender mejor en la lengua propia, 12. Es neccessaria la Elipsis para la elegancia del lenguaje? Es tan necessaria la Elipsis para la elegancia del lenguage, que sin Elipsis seria este muy desagradable, grossero, e insufrible. En todos los Idiomas desde su principio se fueron poco a poco omitiendo algunas palabras que fácilmente se podían entender, ya por el repetido uso de las locuciones, ya por el mismo sentido i contexto de la oración. I de esta manera se vino a conseguir lo que naturalmente deseamos, que es la pronta explicación de nuestros pensamientos, i que nos entiendan prontamente las personas con quienes tratamos: este parecer siguió Horacio en materia de Elipsis, quando dijo (l i b. i.sat.10,) Est brevitate opus, ut currat sententia, neu se Impediat verbis lassas onerantibus aures. Del mismo parecer es Quintiliano tratando de las figuras retoricas, que consisten en la Elipsis (lib. 9. cap. 3. ) i Suetonio hablando de las proposiciones, i conjunciones, que alguna vez omitidas hermosean el discurso (in vita Aug.,86.) Dos egemplos uno latino, i otro Castellano aclararán lo que vamos diciendo: Digitonim mèdius est toñgior. En, esta oración ay Elipsis, pero para que no la huviesse se avia de explicar assi: Ex numero digitorum digitus medius est longior digitus prae ea mensura, ad quam mensuram caeteri digiti sunt digiti longi. Egemplo Castellano de Fr. Luis de Granada en el que ay Elipsis; Estos dos amores de Dios, i del mundo son como dos balanzas de un peso, las cuales se han de tal manera que necesariamente si la una sube la otra baja, i al revés. Esta clausula para no tener Elipsis avia de decir assi: Estos dos amores amor de Dios i amor del mundo son como son dos balanzas de un peso, las cuales balanzas se han de tal manera, que necessariamente si la una balanza sube, la otra balanza baja, i lo mismo sucede al revés, que si la una balanza baja, la otra balanza sube. Véase aora quan tosco, i grossero es el lenguage de dichos ejemplos latino, i Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 37 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Castellano por faltar en ambos la Elipsis, para que se entienda por aqui cuanto conduce su uso para hacer a un discurso elegante, i agradable (HORNEDO, 1777, p.33-34. Negritas e itálicas tomadas según el original). Junto a Granada, el maestro de Ávila, se erige como hábil estilista para ilustrar la definición que hace de la Interrogación o pregunta retórica: es cuando el Orador pregunta, no para que le respondan, sino para declarar con mas fuerza algun afecto, o passion. Egemplo de Cicerón: Quousque tándem abutere Catilina patientia nostrai mas fuego, i alma tiene esta pregunta, que si digera fria, i secamente: Iam dio. Catilina abtlteris patientia nostra. Egemplo del V, Juan de Avila: Quien ay que! no aya errado en lo que mas quisiera acertar ? Quién podra, presumir de saber, pues inumerables veces ha sido engañado? (Epistolario trat. 4. Carta 2.) (HORNEDO, 1777, p.140). y de la distribución: es cuando un todo se divide en sus partes, i a cada una se le dá lo que le corresponde, o cuando a varias cosas se les van en particular acomodando sus oficios i propriedades. Egemplo atablando Cicerón en la Oración, que dijo en defensa da Sexto Roscio Amerino del castigo, que prescrivian las leyes Romanas contra los parricidas, que era meterlos vivos en un pellejo, i cosido éste arrojarlos al Rio, dice, qué dé esta manera quedavan aquellos infelices privados de todo linaje de consuelo, aun el mas ordinario, i común , i prosigue diciendo: Etenim quid est tam commune, quam spiritusvivís, terra mortttis , mare flucluantibus, litus cic clis i Ita vivunt, dum possuntf, ut ducere animam-de Coelo non queant, ita moriuntur, ut eorum ossa térra non tangat, ita iactantur fluítibus , ut numquam abiiciantur , ita postremo eiiciuntur, ut ne ad saxa quidem mortui conquiescant. Por la agudeza de está distribución le dio el pueblo muchos aplausos a Ciceroni, como él mismo lo dice en su oracion. Egemplo Castellano de el V. Juan de Avila: O peligro de infierno tan para 38 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca temer! quién es aquel, que no mira con cien mil ojos no resvale en aquel hondo lago donde para siempre llore lo que temporalmente rio donde están los ojos de quien esto no vé i las orejas de quien esto no oye í el paladar de quien esto no gusta i verdaderamente señal es de muerte, no tener obras de vida. (Epistolario trat. 4, Carta 2.) (HORNEDO, 1777, p.165-167). En un paso más para legitimar los autores en lengua castellana, creando espacios en los cuales pueden ser considerados a la misma altura que los clásicos, Hornedo continúa haciendo puentes entre la tradición vigente y los pasos dirigidos a incluir lo nuevo. Para ello, a la muestra de traducción comparada que recorta al principio de su manual entre Cicerón y Granada, añade ahora la opinión del latinista y traductor Simón Abril (1530-1595), que si bien insiste en la preeminencia de Cicerón, el gran número de ejemplos aportados a lo largo de los Elementos de retórica así como el epíteto utilizado, Tulio español, han terminado por sensibilizar y construir el nombre de Granada como homólogo del rétor latino, abriendo camino a otros contemporáneos que ya se legitiman sin necesidad de recurrir a la traducción como Ávila, Santa Teresa de Jesús y Fray Luis de León, autores que fueron incluidos como modelos en los ejemplos de los libros didácticos hasta el siglo pasado. En suma solo Ciceron nos puede servir de librería general, segun dice el dicho Simon Abril i de modelo en todos los estilos. Por lo que hace a nuestra lengua vulgar, podemos decir lo mismo del Tulio Español Fr. Luis de Granada es sencillo en las vidas de Fr. Bartholomé de los Martires i del V. Juan de Avila, es templado, i florido en el Símbolo de la Frai muy sublime en el Guia de pecadores, el cual libro es uno de los tesoros mas ricos de sublimidad, i elocuencia que possee nuestra Lengua Castellana. Pero hablando también de algunos otros Escritores las Cartas de Pulgar, i los Diálogos de Pero Mexia son del estilo tenue i assimismo las Cartas de Santa Theresa pero con mucha mas ventaja, por ser de lenguage mas puro castizo, natural, i agraciado. (…) i al sublime Fr. Luis de León en algunos de los Nombres de Christo, como el de Principe de la paz, el de Rey, i el de Padre del Siglo futur (HORNEDO, 1777, p.197-198). Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 39 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA Las menciones al nuevo estilo diseñado de manos de Granada, Ávila, Teresa de Jesús, Fray Luis de León, y otros autores contemporáneos a ellos, son gestos que hablan del momento en que la retórica comienza a independizarse de los modelos latinos para ofrecer un nuevo espacio en el que culminan los largos trabajos de defensa de la lengua común, pues todos esos autores castellanos, atentos a las fuentes y buenos lectores tanto de los clásicos como de los textos bíblicos, no se habían dejado cegar por la preocupación de perpetuar la estructura formal del latín en la vernácula, prefiriendo adentrarse en un pensamiento de naturaleza vital en el que se guiaban, más que por la razón universal y abstracta, por aquellas directrices que su experiencia de vida les había dictado como razonable y que remitían a una situación particular y concreta. Recordemos que tanto San Juan de Ávila, como Fray Luis de León habían defendido la fuerza de la razón que habitaba en la lengua común (ROCA, 2014). Cerrando el círculo, es sorprendente que los autores que se van a legitimar de ahora en adelante, como anuncian ambas retóricas, sean en su mayoría o bien de origen converso o bien colaboraran con ellos en sus tareas sociales y teológicas, siguiéndolos como maestros. Esos autores ahora reunidos y consolidados como las nuevas autoridades patrimoniales venían a sentar las bases de un estilo que se expresaba por la razonabilidad que la vida imprimía en el intelecto y no desde el forzamiento que la noción de estructura lógica latina imprimían a la castellana y que condenaron tanto Salinas, Hornedo o Juan de Valdés, tendencia que se percibía en la expresión de quienes “no van acomodando, como dixe se debe hazer, las palabras a las cosas, sino las cosas a las palabras, y así no dicen lo que querrían, sino lo que quieren los vocablos que tienen” (VALDÉS, 2003, p.243). Palabras finales Como vemos, para dar entrada plena al español en la retórica, hubo que equiparar las autoridades patrimoniales a las clásicas, lo que se hizo a través de un proceso lento que se va desarrollando a través de diferentes grados de extensión por medio de los cuales primero se eleva a los autores castellanos a la calidad de teóricos de la argumentación, situándolas así junto a las ya legitimadas y acompañando su reflexión teórica con ejemplos sacados de los rétores clásicos o de las Escrituras 40 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 María del Pilar Roca para, más tarde, cuando ya hay un consenso sobre su validez, citarlos en sus ejemplos tomados de sus obras en castellano prescindiendo poco a poco de la traducción. Es el caso de Granada, que se cita como teórico en el manual de Pabon Guerrero a partir de sus Seis Libros de Retorica Eclesiástica, escritos en latín y sin traducción al castellano aun, y que sin embargo en el de Hornedo ya aparece como modelo de traductor, lo que muestra un mayor grado de independencia frente a las autoridades latinas, y se le eleva explícitamente como ejemplo de estilista castellano, incorporando extractos textuales tomados de sus obras en vernácula, Guía de pecadores y Símbolo de la fe. Legitimado como teórico y como traductor, Granada abre paso a otros autores ya en su producción plenamente vernácula. El desarrollo de las vernáculas y en concreto del castellano obliga, entonces por un lado a seleccionar y elegir nuevas autoridades y, por otro, a definir estrategias que la constituyan como disciplina pedagógica en lengua vernácula, cuya naturaleza, aun teniendo el origen en la lengua del Lacio, ya tiene consolidada una personalidad propia. Esa nueva literatura, tomada sobre todo de la producción espiritual del Renacimiento, va a servir de base para la estructuración de las retóricas escolares que aquí hemos tratado y que ponen de manifiesto las estrategias seguidas para posibilitar el tránsito desde la consideración de la lengua latina como lengua general hacia la comprensión de las lenguas vivas, entendidas como esa experiencia lingüística previa de la que hablaba Salinas y Valdés, que permitía la compresión y empleo de los principios de la teoría retórica y más tarde ocupar su lugar como lengua nacional, equiparable a la latina en su fuerza de construcción de espacios políticos y sociales nacionales. A pesar de las presiones formales sobre la vernácula, a partir del XVIII, ayudado por los ejemplos patrimoniales, los caminos entre la latinidad y la lengua castellana ocupan lugares claramente distintos en el ámbito disciplinar. Notas 1 El artículo es resultado de la investigación posdoctoral de la autora vinculada a la línea de investigación dirigida por la Prof. Drª Elvira Narvaja de Arnoux en la Universidad de Buenos Aires (UBA) titulada: “El derecho a la palabra: perspectivas gloto-políticas de las desigualdades/diferencias”. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 41 DEL RENACIMIENTO A LA ILUSTRACIÓN ESPAÑOLA: LA INSTRUMENTALIZACIÓN DE LA LENGUA NACIONAL EN LOS MANUALES DE RETÓRICA “Considerable importancia en la formación del estilo de Larra atribuye (Pierre L. Ullman) a la clase de retórica a que asistió en las Escuelas Pías; por ello reseña con cierto detalle el manual con que en dicha clase se enseñaba la asignatura, los Elementos de retórica de. P. Calixto Hornedo” 2 Fuentes CARLOS III, rey. [1768]. Real cédula de S.M. a consulta de los señores del Consejo reduciendo el arancel de los derechos procesales de los reales de vellón en toda la Corona de Aragón. 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Abstract: From an enunciative perspective, this paper proposes to investigate the meanings of the word 'prejudice' in Roots of Brazil (1936), by Sérgio Buarque de Holanda, seeking to understand euphemization as one of the ways in which Brazilian social relations are described in the first half of twentieth century. Carolina Machado shows the prejudice contradictorily included in its euphemization. Investigar os sentidos de uma palavra de nosso ponto de vista é também observar, do lugar específico da semântica, a maneira como uma parte do real é interpretada. Ao analisar a maneira como a palavra preconceito é significada na famosa obra Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, buscamos compreender uma das maneiras Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 47 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA como as relações sociais brasileiras são descritas na primeira metade do século XX. Nesse processo analítico constatamos que poucas vezes a palavra preconceito aparecia ao longo do texto, algo que nos chamou a atenção por se tratar de uma obra que analisa a formação social brasileira. A pouca ocorrência dessa palavra levou-nos a olhar para uma série de outras palavras e expressões que, num primeiro olhar analítico, considerando a história de enunciações da palavra preconceito em outros textos1, estavam relacionadas aos sentidos da palavra, levandonos a questionar se, na textualidade, elas poderiam estar substituindo a palavra preconceito. Analisamos a relação semântica da palavra preconceito com estas outras palavras e expressões no livro de Holanda, considerando que expressões como “orgulho de raça”, “sentimento de distância”, entre outras, funcionam no acontecimento enunciativo do texto como formas de redizer a palavra preconceito suspendendo a sua circulação e atribuindo-lhe outros sentidos. Consideramos que os sentidos, assim como os sujeitos, se constituem no acontecimento enunciativo e que a linguagem é posta em funcionamento pela história. É assim que chegamos àquilo que a palavra designa no acontecimento. Nesse caso, buscamos compreender como ocorre o processo de designação, perguntando-nos se a produção de sentidos se dá através de um mecanismo textual que eufemiza o preconceito. 1. Enunciação: acontecimento de linguagem A análise dos sentidos de uma palavra, a partir da Semântica do Acontecimento, leva em consideração o fato de que essa palavra integra um enunciado que por sua vez é enunciado de um texto. O sentido, ou 48 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado seja, o que a palavra designa, se dá na relação entre textualidade e enunciação. Definindo o que é enunciação, Guimarães (1995) estabelece a relação entre sujeito, sentido e história, pensando a história não como sucessão de fatos no tempo, sem considerar o sujeito como centro do dizer e considerando que o sentido, juntamente com os sujeitos, se constitui no acontecimento na relação entre textualidade e historicidade. Ele define a enunciação como um acontecimento de linguagem perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetada pelo interdiscurso. É, portanto, quando o indivíduo se encontra interpelado como sujeito e se vê como identidade que a língua se põe em funcionamento (1995, p.70). A relação com a história se dá através do conceito de interdiscurso, proveniente da Análise de Discurso francesa, fazendo intervir o já dito para a produção de sentidos na enunciação. É assim que o autor define “o sentido de um enunciado como os efeitos de sua enunciação” (p. 70). Quando passa a tratar mais especificamente do acontecimento na relação com a enunciação, Guimarães considera que a temporalidade é definida pelo acontecimento enunciativo, que estabelece um presente que recorta um passado e projeta um futuro. Para o autor, algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria ordem. E o que caracteriza a diferença é que o acontecimento não é um fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de qualquer outro ocorrido antes no tempo. O que o caracteriza Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 49 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA como diferença é que o acontecimento temporaliza. Ele não está num presente de um antes e um depois no tempo. O acontecimento instala sua própria temporalidade: essa a sua diferença (GUIMARÃES, 2002, p.11-12). Nesse caso, o presente do acontecimento recorta o passado, como memorável2, isto é, trata-se de uma “rememoração de enunciações” recortada pelo presente do acontecimento. Ao mesmo tempo, estabelece-se um futuro, uma projeção de interpretação e é nessa relação temporal no acontecimento de linguagem, observada a partir da textualidade, que os sentidos se constituem. Considerando a noção de enunciação como acontecimento de linguagem, passemos agora à textualidade. Os procedimentos de reescrituração e de articulação entre as palavras são os responsáveis pela textualidade. Segundo Guimarães, o procedimento de reescrituração (...) é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si. Este procedimento atribui (predica) algo ao reescriturado (2007, p.84). Ou seja, a reescrituração é o procedimento de redizer uma palavra pela sua repetição, por outras palavras que a substituem, expandem, condensam, a definem, ou pelo apagamento da palavra (elipse), produzindo-se, assim, sentidos. 50 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado Por outro lado, segundo o autor, a articulação “diz respeito às relações próprias das contigüidades locais. De como o funcionamento de certas formas afetam outras que elas não redizem” (GUIMARÃES, 2007, p.88). Nesse caso, trata-se da maneira como uma palavra se articula a outra, seja através de conjunções, de preposições, por exemplo. Outra questão que consideramos importante destacar é a relação integrativa3 dos enunciados no texto (GUIMARÃES, 2002), ou seja, o sentido de uma palavra e do enunciado depende do texto que integram, isto é, o sentido de uma palavra depende do sentido do texto do qual ela faz parte. A utilização desses conceitos permitiu que percebêssemos que, na medida em que o autor ia descrevendo as relações sociais entre brancos e negros, dominadores e escravos, na obra que analisamos – Raízes do Brasil –, havia uma série de expressões que descreviam como essas relações aconteciam e que essas expressões estavam relacionadas semanticamente com o domínio semântico de determinação da palavra preconceito se consideramos a história de enunciações dessa palavra. 2. Análise i) Reescrituração por repetição da palavra preconceito Primeiramente, vejamos as reescrituras da palavra preconceito por repetição que estão em negrito, que ocorrem nos seguintes recortes retirados da obra Raízes do Brasil: 1) Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 51 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA profissões liberais. É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição (HOLANDA, 1995, p.82). 2) Dos fidalgos portugueses que andavam então pelas partes do Oriente sabemos como, apesar de toda a sua prosápia (altivez, orgulho), não desdenhavam os bens da fortuna, mesmo nos casos em que, para alcançá-los precisassem desfazer-se até certo ponto de preconceitos associados à sua classe e condição (Ibidem, p.136). 3) A relativa inconsistência dos preconceitos de raça e de cor (Ibidem, p.184). 4) A tese das origens especificamente protestantes dos modernos preconceitos raciais, e, em última análise das teorias racistas, é atualmente defendida com ênfase pelo historiador inglês Arnold J. Toynbee (Ibidem, p.198). No primeiro recorte, o preconceito é atribuído à gente dos engenhos que o traz para a cidade. Engenho é oposto à cidade, oposição que remete ao memorável da oposição entre rural/urbano, então vamos 52 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado considerar que cidade está no domínio antonímia com engenho (meio rural) e que palavra preconceito determina4 o sentido de engenho. No segundo recorte temos a articulação de preconceito à expressão associados a sua classe e condição articulação que nos leva a considerar que se trata de um tipo de preconceito, o preconceito de classe. Mas é preciso atentar que o Locutor explica que os fidalgos portugueses desfaziam-se dos preconceitos quando precisavam. E temos mais dois tipos de preconceito elencados nos dois últimos recortes, o preconceito de raça/ preconceitos raciais e preconceito de cor. O que podemos então ver são especificações para a palavra preconceito que mostram tipos distintos de preconceitos mencionados pelo autor da obra a partir da sua descrição da formação da sociedade brasileira. Vejamos o Domínio Semântico de Determinação (DSD) 5 da palavra até agora: preconceitos raciais/de raça ┬ fidalguia ├ Preconceito ┤ preconceitos de cor ┴ Engenho (rural) ___________________________________________ Observando esse DSD especificações não dizem muito do sentido que a palavra preconceito tem na obra analisada. citadino Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 53 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Podemos perceber que na descrição do Locutor os preconceitos são da vida do engenho (meio rural) e quem os tem são os lavradores e os donos de engenho. Por outro lado, o Locutor afirma que os fidalgos portugueses desfazem-se deles quando precisam, e afirma uma “relativa inconsistência” dos preconceitos. Ora o Locutor fala de uma posição em que afirma a existência do preconceito entre fidalgos, entre trabalhadores e senhores de engenho, ora fala de uma posição em que considera relativamente inconsistente os preconceitos ou afirma que os fidalgos portugueses desfazem-se deles. ii) O apagamento da palavra ou reescrituração por substituição Buscando saber mais sobre a significação da palavra preconceito na obra Raízes do Brasil, observamos que ela era retomada no texto através de outras expressões que a substituem mesmo não estando diretamente articuladas a ela no funcionamento sintático. Essas expressões não foram tomadas aleatoriamente no texto. Chegamos a elas através de palavras que têm relações de sentidos com a palavra preconceito por sua história de enunciações, observadas em outras obras por nós analisadas6. Assim, selecionamos recortes nos quais encontramos certas expressões que estabelecem, no acontecimento enunciativo, relações de sentido com a palavra preconceito por estarem também especificadas por palavras ou expressões que remetem a de cor e de raça. Outro critério utilizado foi o do contexto imediato: o Locutor estava descrevendo como se dava as relações entre brancos/portugueses/dominadores/donos de engenho/homens de cor/ escravos/trabalhadores, quando justamente a palavra preconceito serve como categoria explicativa da sociedade, mas que nos recortes não 54 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado aparece. Além disso, há uma certa regularidade sintática, pois as expressões são complementos verbais. Vejamos, então, as expressões que estão sublinhadas nos recortes que seguem: (5a) A vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais. (5b) (...) Nossos colonizadores eram, antes de tudo, homens que sabiam repetir o que estava feito ou o que lhes ensinara a rotina. Bem assentes no solo, não tinham exigências mentais muito grandes e o Céu parecia-lhes uma realidade excessivamente espiritual, remota, póstuma, para interferir em seus negócios de cada dia. A isso cumpre acrescentar outra face bem típica de sua extraordinária plasticidade social: a ausência completa ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho de raça. (6a) Compreende-se, assim, que já fosse exíguo o sentimento de distância entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora constituída de homens de cor. (6b) O escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com freqüência as suas relações com os donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 55 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação. (6c) Era essa a regra geral: não impedia que tenham existido casos particulares de esforços tendentes a coibir a influência excessiva do homem de cor na vida da colônia (...). (6d) Mas resoluções como essa – decorrentes, ao que consta, da conjuração dos negros e mulatos, anos antes, naquela capitania – estavam condenadas a ficar no papel e não perturbavam seriamente a tendência da população para um abandono de todas as barreiras sociais, políticas e econômicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos. (7) (...) o exclusivismo racista, como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos. Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo teria sido o labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a que obriga a escravidão (...). (8) A essas inestimáveis vantagens acrescente-se ainda, em favor dos portugueses, a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho de raça. 56 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado Nestes recortes, além das palavras e expressões raciais ou de raça e de cor, também podemos observar outras expressões e palavras que geralmente podem aparecer determinando a palavra preconceito pela relação entre o passado de enunciações e o presente do acontecimento enunciativo. São elas: a) locução adjetiva e adjetivos: de castas, morais, sociais. b) os substantivos e expressões (sintagmas nominais): dissonâncias; orgulho; sentimento de distância; ideia de separação; esforços tendentes a coibir; barreiras; exclusivismo. Os substantivos e as expressões em (b) remetem à palavra preconceito. Podemos considerar que enunciadas no acontecimento enunciativo, reescrevem a palavra preconceito por substituição e, nessa medida, atribuem-lhe certos sentidos, constituindo-se então o que a palavra designa nos recortes analisados. Elaboramos então o seguinte DSD com os núcleos dos sitagmas e com dois sintagmas os quais: Orgulho ┴ dissonâncias ┤ ├ sentimento de distância Preconceito barreira ┤ ├ ideia de separação O preconceito é uma dissonância social, moral e racial; é o orgulho de raça; é o sentimento de ┬ distância; ┬ é uma barreira social, política e econômica; é um exclusivismo racista; é o esforço que tende a coibir. Exclusivismo coibição Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 57 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA O preconceito que é referido pelo Locutor nos recortes é sempre dos brancos contra os negros: dominadores (portugueses), brancos, colonizadores contra a massa trabalhadora; homens de cor, livres e escravos. É preciso atentar também para a articulação entre as expressões no texto. Nos recortes em questão, há negação das expressões destacadas de forma direta ou a amenização do preconceito. Vejamos as expressões em negrito que se articulam, através de preposições, de artigos, às expressões que consideramos serem reescrituras de preconceito: 5a’) a vida parece ter sido aqui incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais. 5b’) a ausência completa ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho de raça. 6a’) que já fosse exíguo o sentimento de distância entre os dominadores, aqui, e a massa trabalhadora constituída de homens de cor. 6b’) agindo como dissolvente de qualquer idéia de separação de castas ou raças, 58 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado 6c’) casos particulares de esforços tendentes a coibir a influência excessiva do homem de cor na vida da colônia (...). 6d’) para um abandono de todas as barreiras sociais, políticas e econômicas entre brancos e homens de cor, livres e escravos. 7’) exclusivismo racista, como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos (...) 8’) a já aludida ausência, neles, de qualquer orgulho de raça. Vejamos o desdobramento de enunciadores no enunciado (5a’), em que E significa enunciador: E1: a vida aqui tem dissonâncias sociais, raciais e morais; (pressuposto) E2: a vida parece ter sido incomparavelmente mais suave, mais acolhedora das dissonâncias sociais, raciais e morais. Podemos perceber nesses enunciados que há um enunciador (E1) que afirma, de forma genérica, a existência das dissonâncias sociais, raciais e ao mesmo tempo em que há um enunciador individual (E2), Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 59 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA que ameniza, atenua a afirmação da existência das dissonâncias através de expressões que minimizam a existência delas (incomparavelmente mais acolhedora; mais suave) por parte dos brancos puros / portugueses / colonizadores / dominadores / senhores / donos contra os homens de cor / trabalhadores / escravos. Nos demais recortes – 5b’, 6a’, 6b’, 6c’, e 7’ –, esse funcionamento se repete, sendo que apenas nos enunciados 6d’ e 8’ não há a atenuação, sendo negada a existência do orgulho de raça e das barreiras sociais. O locutor enuncia de uma posição de amenizar e de negar a existência dessas reescriturações de preconceito. O locutor minimiza, ameniza a existência, por parte dos portugueses / dominadores / brancos puros / donos, de dissonâncias sociais, morais, raciais; do orgulho de raça; do sentimento de distância; ideia de separação; da coibição da influência; das barreiras sociais, políticas e econômicas; e do exclusivismo racista contra os homens de cor; escravos; trabalhadores. Desse modo, consideramos as reescriturações, nesse acontecimento, como uma forma de eufemismos. 3. Eufemismo e Tabu A partir da análise acima realizada, em que ocorre um movimento semântico de amenizar o preconceito, faremos uma breve reflexão sobre o eufemismo. Benveniste (1974) em um artigo intitulado “La blasphémie et l’euphémie” discute a blasfêmia associando-a à eufemia7. O autor analisa especificamente expressões religiosas ao tratar da blasfêmia e afirma que a eufemia é simetricamente oposta à blasfêmia. 60 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado (...) o léxico da imprecação ou, se se preferir, o repertório das locuções blasfêmicas, tem sua origem e encontra sua unidade numa característica singular: ele procede da necessidade de violar a interdição bíblica de pronunciar o nome de Deus. A blasfemia é de ponta a ponta um processo de fala; ela consiste, de uma certa maneira, em substituir o nome de Deus por sua injúria (BENVENISTE,1974, p.259-260). A blasfêmia, no domínio discursivo da religião, é relacionada ao tabu, tal como é descrito por Freud e retomado por Benveniste: O tabu (...) é uma proibição muito antiga, imposta de fora (por uma autoridade) e dirigida contra os desejos mais intensos do homem. A tendência a transgredi-la persiste em seu inconsciente, os homens que obedecem ao tabu são ambivalentes em relação ao tabu. (FREUD apud BENVENISTE, 1974, p.260). A blasfêmia então é uma forma de profanar o nome de Deus, nome este proibido de ser dito fora do culto ou em situações que não sejam solenes. Segundo o autor, a expressão blasfêmica consiste em uma exclamação, como exemplo, ele cita a expressão em francês “Nom de Dieu!” (nome de Deus!). A censura da exclamação blasfêmica suscita, segundo ele, uma “eufemia”. Vejamos então aquilo que o autor chama de eufemia: Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 61 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA A eufemia não refreia a blasfemia, ela a corrige na sua expressão de fala e a desarma enquanto imprecação. Ela conserva o quadro locucional da blasfemia, mas introduz três espécies de modificações: 1. A substituição do nome de “Deus” por qualquer termo inocente: (“nom d’une pipe!” [nome de um cachimbo!],(“nom d’un petit bonhomme!”[nome de um homenzinho!] ou (bon sang! [“bom sangue!”]); 2. A mutilação do vocábulo “Dieu” [Deus] por aférese da final “par Dieu!”> pardi!” ou a substituição de uma mesma assonância: “parbleu!”; 3. A criação de uma forma de non-sense no lugar da expressão blasfêmica: “par le sang de Dieu!” transforma-se em “palsambleu!”, “je renie Dieu! Torna-se “jarnibleu!”. (p.262). Desse modo, segundo o autor, a eufemia retira o sentido da blasfêmia. “Assim anulada, a blasfêmia faz alusão a uma profanação de linguagem sem realizá-la e preenche sua função psíquica, mas desviando-a e disfarçando-a” (p.262). A noção de eufemia está intrinsecamente relacionada à blasfêmia, e, portanto, a uma substiuição de palavras religiosas, mais especificamente do nome de Deus. Silveira Bueno (1965) trata da questão do eufemismo relacionandoo, também, com o tabu, mas não especificamente com a blasfêmia. Para este autor, o tabu significa “uma palavra, um vocábulo que não pode ser dito em público, numa determinada comunidade social” (p.189). Já o eufemismo “é o sinônimo, a perífrase que se deve usar em lugar da palavra direta para amenizar, diminuir, velar o significado rebarbativo ou cru que a sociedade repele” (SILVEIRA BUENO, 1965, p.189). 62 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado Nesta definição, o eufemismo tem como contraparte um tabu simbolizado por uma palavra a qual é substituida por uma palavra sinônima com um sentido “ameno”. O tabu, segundo o autor, ocorre por causa da existência da malícia e do medo na humanidade. Ele dá como exemplo disso, dentre outros, a folha de parra de Adão que teria sido o primeiro objeto eufêmico conhecido. Ainda, segundo ele, os tabus e os eufemismos variam de acordo com a época e com a cultura de cada povo. A “tabuização” (sic) de uma palavra acontece porque é atribuida uma força que é intrínseca às palavras. Estas seriam capazes de produzir concretamente o que elas significam havendo palavras boas, que carregam a felicidade e palavras ruins, que carregam o azar e que são maléficas. Como causas das palavras-tabu ele aponta também o “temor supersticioso”, “o sentimento de polidez” e a “moralidade”. Do lado da retórica literária, Lausberg (2004) relaciona o eufemismo à noção de tropos. Ele explica que esta noção diz respeito à passagem de um conteúdo primitivo de um corpo de palavra para outro conteúdo e “a função principal do tropos é o estranhamento”. Ele dá como exemplo a seguinte frase: i. Aquiles é um leão. Nessa frase, o conteúdo frásico é “Aquiles é um guerreiro feroz” e desse modo, houve uma substituição do conteúdo primitivo do corpo da palavra leão. “Animal feroz” era o conteúdo primitivo de “leão” e é substituído por “guerreiro feroz”. A substituição, segundo ele, pode se tornar uma necessidade, como no caso em que seja necessário banir os “verba propria”, isto é, os tabus. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 63 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA Em nota de rodapé, Lausberg explica que o eufemismo é “a substituição de uma palavra proibida por tabu” (p.145), ou seja, tratase da substituição da palavra que não pode circular por causa da interdição provocada pelo tabu. Assim, a passagem de um conteúdo primitivo de um corpo de palavra para outro conteúdo é o que ele chama de tropos, e o eufemismo seria a substituição de uma palavra proibida de ser pronunciada por causa da existência do tabu, havendo assim a substituição de conteúdo. A partir do que os autores afirmaram, podemos compreender que o eufemismo é uma palavra que subistiui outra palavra impedindo a sua circulação por causa da proibição de uma palavra tabu, que pode ser moral, religiosa, etc, como uma forma de impedir o(s) sentido(s) da palavra inicialmente utilizada fazendo circular outro(s) sentido(s) com a palavra substituta. Os três autores acima citados colocam o tabu como o que produz a necessidade de substituir uma palavra tabu por um eufemismo. Lausberg e Silveira Bueno analisam o eufemismo sem considerar a circulação da palavra na enunciação, no texto, o que possibilita inclusive que Silveira Bueno considere haver uma força que é própria às palavras. Já Benveniste, para tratar da eufemia, analisa a enunciação de frases exclamativas, mas não no texto, e considera o locutor como centro, responsável pela enunciação, e assim pela produção do sentido8. Por outro lado, em outro artigo, intitulado “Eufemismos antigos e modernos”, Benveniste também discute a explicação do termo grego do qual eufemismo é proveniente. Segundo ele, os dicionários definem o termo grego de duas maneiras: “dizer palavras de bom augúrio” e “evitar as palavras de mau augúrio”. Benveniste afirma que é a primeira definição, a “positiva”, a mais adequada para o termo grego. Além 64 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado disso, analisando palavras que afirma serem eufemismos, o autor nos diz que É preciso, para apreciar um eufemismo, reconstituir tanto quanto possível as condições de emprego no discurso falado (...). Só a situação determina o eufemismo. E essa situação, conforme seja permanente ou ocasional, modifica o tipo da expressão eufemística segundo normas próprias de cada língua. (BENVENISTE, 1966, p. 342). Ele mostra assim que são as condições de emprego que vão definir se uma expressão ou palavra é ou não um eufemismo. Como no enunciado: “se me acontecer algo (=se eu morrer)” (p.342), em que algo pode ser um eufemismo de morrer se as condições de emprego assim o permitirem. A questão então é pensar o que faz com que uma palavra seja um eufemismo de outra, no emprego da língua. Buscamos então pensar a substituição de uma palavra por outra no funcionamento enunciativo no texto considerando a história, o social, o político e o sujeito, não como centro, na produção do sentido. A análise do funcionamento da palavra preconceito e das palavras e expressões que a substituem mostrou que a eufemização acontece com a reescrituração por substituição, com a amenização através de outras palavras articuladas, e, também, pelo memorável recortado no acontecimento, isto é, pelos sentidos que circulam no presente do acontecimento que determinam preconceito atribuindo-lhe sentidos. 4. Algumas considerações A relação entre as expressões grifadas nos recortes 5b’, 6a’, 6b’, 6c’, 6d’ , 7’, 8’ e a palavra preconceito se dá de forma indireta, ou seja, estão distantes no texto numa relação transversal que rompe a Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 65 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA segmentalidade, relacionadas, portanto, semanticamente no acontecimento enunciativo, sendo preciso levar em consideração a exterioridade, isto é, a história de sentidos da palavra em outras enunciações para que se compreenda que preconceito e as expressões grifadas pertencem ao mesmo domínio semântico de determinação. A análise enunciativa das expressões no funcionamento textual da obra Raízes do Brasil mostra o que a palavra preconceito designa pela sua substituição por expressões que expandem o seu sentido significando-a como dissonância social, moral e racial; como orgulho de raça; como sentimento de distância; como uma barreira social, política e econômica; como um exclusivismo racista; como o esforço que tende a coibir. O locutor-autor-sociólogo-historiador enuncia como enunciador individual, de uma posição sujeito que minimiza e até mesmo nega a existência desses sentidos que substituem a palavra preconceito no texto quando descreve as relações sociais entre brancos e negros (“homens de cor”). Com a reescrituração da palavra através de outras expressões de forma constante ao longo do texto, a circulação da palavra preconceito é suspensa e as expressões que a substituem são minimizadas e negadas. Assim, ao invés de considerarmos o eufemismo como a palavra que substitui a palavra tabu, entendemos que há um processo de eufemização em que há a substituição da palavra preconceito por outras palavras e expressões que são articuladas a palavras e/ou expressões que as minimizam, que as amenizam ou que as negam. O procedimento de reescrituração através do qual vai se dando a textualidade é feito através não apenas da substituição mas através das articulações à adjetivos e advérbios. Assim, a combinação da reescritura por substituição com a articulação produz a eufemização, configurando-se como procedimento de reescritura por substituição por eufemização. 66 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado Deste modo, ao significar o preconceito como separação, exclusivismo, distanciamento, orgulho, coibição e, negando a sua existência e amenizando-a, descreve-se uma sociedade brasileira em que as relações sociais, trabalhistas, etc, entre negros e brancos se dão como uma convivência quase que harmônica, com a ausência, ou quase ausência de preconceito contra os negros ou “homens de cor”. E é justamente com a eufemização que se dá a contradição: apesar do impedimento da circulação da palavra preconceito, ainda assim circulam os sentidos de preconceito através da história de enunciações. Notas Refiro-me aqui as análises realizadas em minha dissertação de mestrado intitulada “A designação da palavra preconceito em dicionários atuais” defendida em 2007, e às outras análises realizadas em minha tese de doutorado intitulada “Política e Sentidos da palavra preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX”, defendida em 2011. 2 Schreiber da Silva (2012) trata da especificidade da noção de memorável na relação com a noção de acontecimento, tal como este é definido por Guimarães (2002). Para a autora, o memorável “é o passado pensado de maneira enunciativa e de acordo como tempo no acontecimento” (2012, p.4). 3 Segundo Guimarães (2002), Benveniste propôs a integração considerando-a “como o movimento integrativo de uma unidade lingüística. Para ele, esta relação (integrativa) dá o sentido de unidade. Ou seja, o sentido de um elemento lingüístico tem a ver com o modo como este elemento faz parte de uma unidade maior ou mais ampla” (GUIMARÃES, 2002, p.7). A questão é que Benveniste considerava como unidade mais ampla o enunciado, enquanto que Guimarães propõe considerar o texto como limite. 4 Trata-se da determinação semântica entre palavras que pode se dar no interior de um sintagma nominal. Por outro lado, a predicação é a relação semântica entre sintagma verbal e sintagmas nominais, que é também considerada como uma relação de determinação. Para Guimarães, “uma expressão determina outra na medida em que esta se apresenta como por ela determinada pela enunciação. Isto, por outro lado, levaria a se pensar como o processo enunciativo constrói a língua” (2007, p.79). Oliveira (2006), tratando da determinação e da predicação, faz uma discussão interessante considerando a predicação como uma “relação enunciativa”. 5 O Domínio Semântico de Determinação (DSD) representa o sentido da palavra. Ele é construído “pela análise das relações de uma palavra com as outras que a determinam 1 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 67 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA em textos em que funciona” (GUIMARÃES, 2007, p.80). O sinal ˧ significa “determina”, tal como explicado na nota anterior. 6 Em nossa tese de doutorado intitulada “Política e sentidos da palavra preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX”, analisamos mais três obras que analisam a formação da sociedade brasileira: Casagrande e Senzala, de Gilberto Freyre; Evolução do povo Brasileiro, de Oliveira Vianna; Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior, todas da primeira metade do século XX.. Além disso, em nossa dissertação de mestrado, também analismos os sentidos da palavra preconceito nas definições lexicográficas de um conjunto de dicionários do século XX e início do século XXI. 7 A palavra eufemia é a tradução da palavra euphémie na edição em português do artigo, do original em francês. 8 O autor define enunciação como um “processo de apropriação”, “o locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices específicos (...)” (Benveniste, 1989, p. 84). Referências bibliográficas BENVENISTE, E. (1966). Problemas de Linguística Geral I. Campinas: Pontes, 1988. ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. BUENO, S. (1965). Tratado de Semântica Brasileira. São Paulo: Edição Saraiva, 4ª ed. GUIMARÃES, E. (2002). Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. ______. (2007). “Domínio Semântico de Determinação”. In: GUIMARÃES, E.; MOLLICA, M. (orgs.). A Palavra: Forma e Sentido. Campinas: RG/Pontes. ______. (1995). Os Limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 2002, 2ª ED. HOLANDA, S. B. (1936). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LAUSBERG, H. Elementos de Retórica Literária. (1967). Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2004. OLIVEIRA, S. E. (2006). Cidadania: história e política de uma palavra. Campinas: Pontes, RG Editores. 68 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Carolina de Paula Machado PAULA MACHADO, C. de. (2011). Política e sentidos da palavra preconceito: uma história no pensamento social brasileiro na primeira metade do século XX. Tese de doutorado. Campinas: IEL/Unicamp. SCHREIBER DA SILVA, S. (2012). “O memorável na relação entre línguas”. In: Web Revista discursividade. Edição em homenagem ao prof. Dr. Eduardo Guimarães. Edição número 9, Janeiro/2012 – Julho/2012. Disponível em: http://www.discursividade.cepad.net.br/EDICOES/09/09.htm Acesso em: 01/10/2014. Palavras-chave: preconceito, eufemização, enunciação Keywords: prejudice, euphemization, enunciation Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 69 A PRODUÇÃO DE SENTIDOS ATRAVÉS DA EUFEMIZAÇÃO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E SEUS EFEITOS NA DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA 70 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN1 Adilson Ventura da Silva UESB Resumo: Este artigo traz uma análise enunciativa da palavra poesia na teorização de Bakhtin sobre a linguagem. Ventura parte da discussão do lugar que a poesia ocupa na teorização de Bakhtin para então observar as determinações da palavra ao longo de textos do autor, o que lhe permite caracterizar o tratamento da poesia como gênero e refletir sobre os lugares da língua e do autor na sua produção. Abstract: This article brings an enunciative analysis of the word ‘poetry’ in Bakhtin's theorization on language. Ventura starts with the discussion of the place poetry occupies in Bakhtin’s theorization to go on to observe the determinations of the word throughout some texts of Bakhtin. This movement allows him to characterize the treatment of poetry as a genre and to reflect on the places of the language and the author in its production. Introdução O nosso interesse ao produzir este artigo é pesquisar e discutir a relação entre a poesia e as ciências da linguagem. Entendemos que a poesia é um fato importante de linguagem e, por isso, nos interessamos em estudá-la a partir de um lugar teórico diferente da literatura. Com isso pensamos poder contribuir muito para os estudos linguísticos e, além disso, contribuir também para os estudos literários. Assim, em nosso doutorado (SILVA, 2012), observamos o modo como alguns autores consideram a poesia, levando em conta o que discutem ou silenciam sobre a poesia e também os sentidos que esta palavra assume Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 71 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN nos textos, nos colocando no lugar teórico da Semântica do Acontecimento. 1. A teoria bakhtiniana Ao entrar em contato com a obra de Bakhtin, temos inicialmente uma questão: ele era um linguista? Seguramente não, no sentido mais usual desta expressão. Os interesses de Bakhtin giram muito especificamente sobre o texto literário e é a partir disso que ele acaba por se interessar por uma certa teorização sobre a linguagem e sobre o texto. Assim ele se interessa por aspectos que podemos colocar como do domínio das ciências da linguagem. E é nesta medida que ele vai nos interessar aqui neste estudo que procura discutir o lugar da poesia nas ciências da linguagem. Essa escolha se deu porque Bakhtin produziu muitas obras importantes relacionadas aos estudos da linguagem de uma forma geral, passando das relações entre a língua e os estudos marxistas, os quais podemos conferir na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006)2, em que o autor estabelece problemas e hipóteses em relação a questões da luta de classes presentes na linguagem, até a estudos da poética, os quais podemos ver em Estética da Criação Verbal (2000) e Problemas da Poética de Dostoiévski (1981). Sendo assim, esse pensador da linguagem é de grande importância para a linguística quanto para os estudos literários em geral, pois a obra deste autor se coloca como precursora dos estudos do discurso e do texto que se desenvolvem atualmente, já que ele coloca “o texto como fulcro, como lugar central de toda investigação sobre o homem” (BARROS, 2005, p.28). Ou seja, a partir de seus estudos sobre o texto, muitas linhas de pesquisa linguística se desenvolveram, retomando e redefinindo alguns de seus conceitos. Dentre esses linguistas, temos O. Ducrot, que se apropria livremente do conceito de polifonia para a elaboração de seus estudos sobre a Argumentação na Língua. Assim, para termos um pequeno panorama do pensamento deste autor, não iremos fazer um estudo exaustivo de sua teoria e sim discutiremos alguns de seus conceitos, para nos situarmos em sua teoria 72 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva para levantarmos algumas considerações do que seja a poesia em seu pensamento. Como lugar de entrada para as nossas reflexões sobre Bakhtin, temos a sua questão sobre o modo como se dá a criação ideológica na teoria marxista. Levando em conta essa questão, Bakhtin coloca a necessidade de se estabelecer um diálogo entre a filosofia da linguagem e a teoria marxista, já que, para ele, “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2006, p.31). Ou seja, para se estudar a ideologia é necessário estudar a linguagem, pois é nessa que, devido ao seu caráter simbólico, se encontra a ideologia, em contraste a qualquer corpo físico, que vale por si mesmo, a menos que ganhe um simbolismo, o que só acontece através da linguagem. E, nessa relação, aparece a questão de valoração do signo (e da ideologia), uma vez que Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (idem, pág.32-33). Com essa reflexão, Bakhtin procura retirar os estudos sobre a Ideologia de um aspecto puramente psicológico, atribuindo-lhe um aspecto material, que é a linguagem. Assim ele, de certo modo, inverte os estudos da Ideologia de sua época, pois era dada uma explicação psicologizante, ou seja, ao entrar em certas discussões teóricas, a consciência individual dos sujeitos ganhava o estatuto explicativo do que se referia ao meio ideológico e social. E é isso que Bakhtin contesta pois, para ele, o que ocorre é o contrário, é o meio ideológico e social Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 73 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN que deve explicar a consciência individual, algo que só é possível afirmar teoricamente ao se instituir um lugar material para a Ideologia. Porém, dentre os vários tipos de linguagem, Bakhtin elege a palavra como a principal, pois “a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.” (BAKHTIN, 2006, p.36). E, além disso, enquanto os signos e símbolos em geral possuem uma determinada Ideologia conforme o domínio em que foi criado, “a palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa.” (idem, p.37). Sendo assim a palavra possui esta possibilidade de assumir qualquer ideologia e, além disso, a palavra é o “material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior)” (ibidem, p.37). Por isso que podemos dizer que a palavra consegue, ao mesmo tempo, ser a materialidade da ideologia e também colocar-se como fundante da consciência e, talvez por essa dupla possibilidade, é que os marxistas da época desses estudos de Bakhtin não perceberam a importância teórica que essa perspectiva poderia trazer às suas reflexões. A partir dessas reflexões, também temos que os “os signos só podem aparecer no terreno interindividual” (BAKHTIN, 2006, p.35), ou seja, temos que os signos, em especial a palavra, possuem esse caráter de se colocar essencialmente no lugar de contato entre pessoas, sendo assim temos que ela não pode ser reduzida à consciência individual pois, como dissemos, ela possui um caráter social intrínseco. Assim, ao levantar essas questões a respeito da Ideologia e seu suporte material, que é a linguagem, Bakhtin elabora o conceito de dialogismo, pois, para ele, "Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala.” (idem, p.101). Ou, dito em outras palavras, por seu caráter interindividual, a linguagem é construída em forma de um diálogo, em que sempre uma enunciação está em relação com outros diálogos. Porém, para Bakhtin, os estudos linguísticos e os estudos da Ideologia não levam essa característica em conta, o que traz a essas reflexões “uma compreensão 74 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva totalmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta, como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão” (ibidem, p.101). E isso instaura, por sua vez, o discurso da classe dominante em que não há este aspecto dialógico da língua. Isso porque há uma modificação desse aspecto, passando de dialógico para monológico, o que atende a interesses da classe dominante, pois dessa forma disfarça ou mesmo oculta as diferenças de classe e, juntamente com isso, apaga as relações de valor que aí se estabelecem. O modo como isso ocorre é facilitado por esse aspecto dialógico da língua, o que podemos observar nas próprias palavras de Bakhtin: Na realidade, todo signo ideológico vivo tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (BAKHTIN, 2006, p.48). Por isso é que Bakhtin percebe a necessidade de se refletir a respeito da língua dentro de uma perspectiva marxista, para se entender melhor o processo em que se dá a Ideologia. Então, além de estabelecer o conceito de dialogismo, ele reflete mais aspectos da língua, em um diálogo com outras teorias, em que sua especificidade é esse caráter social da língua: Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 75 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN Vamos tentar formular nosso próprio ponto de vista com as seguintes proposições: 2. 3. 4. 5. 1. A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua. A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores. As leis da evolução linguística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis da evolução linguística são essencialmente leis sociológicas. A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode tornarse “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada. A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo “individual”) é uma contradictio in adjecto. (BAKHTIN, 2006, p.131 e 132) Com essas proposições a respeito da língua, podemos perceber uma grande preocupação de Bakhtin em refutar teorias que constroem o seu aparato teórico-metodológico abstraindo alguns aspectos da mesma e, principalmente, que não levam em conta a interação social dos locutores, ou seja, ele refuta toda a possibilidade de estudos linguísticos que não se interessam pelo caráter social da língua. Ele também traz que a língua está em constante evolução, que ocorre também por causa da interação entre os locutores. E, além disso, ele tece alguns 76 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva comentários a respeito da criatividade da língua não coincidir com nenhuma outra forma de criatividade, mas que só é possível compreender essa criatividade levando em conta os valores ideológicos que ela representa. Assim podemos dizer, em uma tentativa de definição de conceito, que a língua, para Bakhtin, é um processo social em constante evolução, sendo que é também a materialidade da Ideologia e possui um caráter essencialmente dialógico, pois é constituída na interação verbal dos locutores. A enunciação, por sua vez, também se constitui pelo social. Além de sua preocupação com questões relativas à filosofia da linguagem e o marxismo, Bakhtin desenvolveu vários estudos no campo da Literatura. Nesses estudos, queremos refletir um pouco a respeito do conceito de polifonia, já que esse conceito foi posteriormente retomado por Ducrot, de uma forma bem livre, para resolver algumas questões em sua teoria da Argumentação na Língua. Bakhtin, ao entrar em contato com a obra de Dostoiévski, afirma que ele é o criador de um novo tipo de romance, o romance polifônico. Para tanto, Bakhtin analisa alguns estudiosos da obra de Dostoiévski, observando que vários deles apresentam uma certa particularidade nesses estudos, mas que nenhum consegue apreender totalmente esta particularidade, conforme Bakhtin comenta: É por isto que todas as grandes monografias sobre Dostoiévski, baseadas na monologação filosófica de sua obra, propiciam tão pouco para a compreensão da peculiaridade estrutural do seu mundo artístico por nós formulada (BAKHTIN, 1981, p.5). Dessa forma, na tentativa de apreender a especificidade do romance de Dostoiévski, Bakhtin elabora o conceito de polifonia. Para tanto, ele faz um estudo da poética histórica, e observa especialmente um tipo de literatura, que ele chama de carnavalizada. Essa literatura dá um novo tratamento à realidade, ao incluir uma atualidade viva, em que aparece o dia a dia, sem situar a história em um tempo passado ou mítico e, além Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 77 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN disso, é baseada na experiência ou na fantasia livre. E a outra peculiaridade apontada por Bakhtin é: A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade estilística) da epopeia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica. Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc. (idem, p.93). Assim Bakhtin afirma que a literatura carnavalesca é o começo do desenvolvimento de uma poética que irá resultar no romance polifônico de Dostoiévski. Isso se dá pois, nessa literatura, aparece mais de uma voz em seus textos. Porém, para Bakhtin, a polifonia em Dostoiévski alcança uma especificidade totalmente nova, pois as diferentes vozes que aparecem são independentes. Conforme o próprio Bakhtin: A multiplicidade de vozes e consciências independentes e miscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade (BAKHTIN, 1981, p.2). Ou, dito de outro modo, no romance polifônico há várias vozes ou consciências que não se misturam e nenhuma delas possui uma predominância sobre as outras consciências, o que transforma a voz do 78 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva herói em uma voz plena, em que ele não se coloca no lugar de um simples porta-voz do autor. A partir desses dois conceitos centrais na teoria de Bakhtin, o dialogismo e a polifonia, podemos perceber que o conceito de língua, para este autor, está diretamente relacionado ao social, na medida em que na língua sempre há uma interligação entre dizeres diferentes. Então, dentro desse quadro teórico que apresentamos, a poesia não recebe uma atenção especial de Bakhtin. Ou seja, apesar de fazer análise da obra de alguns poetas, tais como Viatcheslav Ivánov, Balmont e Briússov, Bakhtin, não elaborou nenhuma teoria específica procurando explicar o que seja a poesia. Assim, para tentarmos compreender como ele pensa a poesia, vamos nos limitar a observar o modo como esta palavra (e suas possíveis reescrituras) aparece em sua obra. 2. Análise da palavra Poesia em Bakhtin Para produzirmos a análise da palavra poesia nos textos de Bakhtin, iremos nos situar no lugar teórico da Semântica do Acontecimento. Assim, como todo semanticista, nos interessamos pelo estudo do sentido, ou seja, o objetivo é observar o sentido, no caso específico que tratamos aqui, da palavra poesia. Neste lugar teórico, consideramos que o estudo do sentido localiza-se na enunciação, que é considerada como “um acontecimento no qual se dá a relação do sujeito com a língua” (GUIMARÃES, 2002, p.8). A partir do estudo da enunciação, observamos as operações enunciativas, que são operações nas quais, na enunciação, constitui-se o sentido de determinada forma. Para observar as operações enunciativas, consideraremos dois procedimentos: a reescritura e a articulação. Para Guimarães, a “reescrituração é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si. Este procedimento atribui (predica) algo ao reescriturado” (idem, p.17). E a articulação é o procedimento pelo qual podemos observar as Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 79 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN relações de determinada palavra com outras palavras em um enunciado, enquanto enunciado de um texto. A partir desses dois procedimentos, poderemos constituir o Domínio Semântico de Determinação (DSD) da palavra poesia nos textos de Bakhtin. O DSD, segundo Guimarães (2007, p.81) é uma análise de uma palavra. Ele representa uma interpretação do próprio processe de análise e deve ser capaz de explicar o funcionamento do sentido da palavra no corpus especificado (...) É preciso observar, no entanto, que embora não se considere de antemão nenhuma realidade a que as palavras reportam, há um real que a palavra significa. E as palavras têm sua história de enunciação. Elas não estão em nenhum texto como um princípio sem qualquer passado. Passamos agora à análise e constituição do DSD da palavra poesia em Bakhtin. Em diversos textos Bakhtin, ao comentar vários aspectos de seu pensamento, e ao fazer análises linguísticas e literárias, utiliza a palavra poesia. Para o nosso estudo, fizemos um recorte em seus textos e analisamos esta palavra no texto “Conferências sobre História da Literatura Russa”, presente no livro “Estética da Criação Verbal”, de 2003. Esse recorte deu-se por se tratar de um texto em que Bakhtin produz uma análise sobre a obra poética de Viatcheslav Ivánov, ou seja, é um texto em que ele analisa diretamente a obra de um poeta, comentando vários aspectos relacionados a sua produção. Além disso, este texto é uma boa amostra do modo como Bakhtin trata a poesia. Para analisar a obra de Ivánov, Bakhtin comenta a sua relação com a poesia da Antiguidade, da Idade Média e do Renascimento, em contrapartida a outros poetas da mesma geração de Ivánov: Balmont e Briússov. Também faz alguns comentários a respeito de três princípios estéticos, que são o ascenso, o descenso e o caos. Segundo Bakhtin: 80 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva Ascenso é altives, crueldade, e não só com os outros mas também consigo mesmo. E se é cruel é sofrido. Esse é o caminho trágico para as alturas, a ruptura com a terra, a morte. Se o ascenso não acarreta o descenso ele é estéril porque é supramundo. Descenso é símbolo do arco-íris, do sorriso, do amor à terra que conserva a lembrança do céu. Vistcheslav Ivánov aplica sua teoria do ascenso e do descenso ao processo criador em arte (...). (...) O terceiro princípio é o caótico ou dionisíaco. É a ruptura do indivíduo, o desdobramento, a perturbação, o esquartejamento, etc. Tanto no ascenso quanto no descenso destrói-se a personalidade, mas esta só sai reforçada dessa destruição. Como dizia Goethe, destrói tua personalidade se queres reforçá-la. Toda vivência de ordem estética expele o espírito dos limites do pessoal. (BAKHTIN, 2003, p.412 e 413) Observando este recorte, temos que Bakhtin utiliza-se do pensamento do próprio Vistcheslav Ivánov para comentar estes três princípios estéticos. Nesse comentário, ele aponta o dionisíaco como o que constitui o fundamento da arte. Ao colocar dessa forma, ele traz o papel central dado ao artista no que se refere à arte, em que temos uma importante relação entre a arte e o sujeito que “cria” esta arte, ou seja, entre a arte e o artista. Sendo assim, levando em conta que o poeta é o artista que trabalha com as palavras, temos que ele está nesse lugar de ruptura e destruição e, além disso, esse lugar acaba por levar o próprio poeta além dos limites do pessoal, por colocá-lo em contato com o estético. Apontando esta importância do sujeito na arte, temos que analisar o modo como o poeta aparece nesse texto é uma importante entrada para o estudo da palavra poesia na obra de Bakhtin. Assim, passamos, em um primeiro momento a observar a reescritura da palavra poetas, conforme os recortes que fizemos para análise: 1. Viatcheslav Ivánov vê dois caminhos no simbolismo: um idealista e um realista. O primeiro tem início na Antiguidade, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 81 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN quando se procurou imprimir marca individual em todos os fenômenos da vida. O segundo tem origem na Idade Média, quando os poetas3 se auto-eximiam, deixando que os próprios objetos falassem por si mesmos. Briússov e Balmont tomaram o primeiro caminho. Para eles o símbolo é apenas uma palavra: não lhes interessa se atrás da palavra se esconde alguma coisa. Para eles o símbolo não sai do plano da língua. E a novidade dos objetos do mundo exterior depende apenas do estado do artista (p.412). 2. (...) O artista descende, e esse descenso é, antes de tudo, para os seres que não ascenderam e se acham em fases inferiores de consciência. Quando o poeta procura a palavra, desta necessita para traduzir suas conquistas em palavras que todos compreendam. Esse é um descenso às fraquezas humanas dos outros, um descenso àqueles que nunca ascenderam. Por isso o descenso sempre é humano e democrático (p.413). Esses dois recortes apresentam o modo como Bakhtin comenta o pensamento de Viatcheslav Ivánov a respeito da poesia. Desse modo, pelo modo como Bakhtin constrói o texto, podemos observar que ele acaba por trazer uma reflexão sobre a poesia, e isso podemos dizer que é uma reflexão dele, já que ele escolhe V.Ivánov para basear as suas reflexões. Assim, nesses dois recortes, observamos que a palavra poeta é reescrita por eles, se, lhes e artista, além dos nomes próprios Briússov e Balmont. Esta reescrituração nos indica uma determinação entre poetas e artistas, o que indica uma determinação entre poesia e arte. Em contrapartida, também temos uma reescritura por uma relação de antonímia em “seres que não ascenderam” e poetas. Assim outros é “seres que não ascenderam” e se opõe a poeta, ou seja, temos uma relação de antonímia entre poeta e seres que não ascenderam. Além disso, a palavra humano traz uma condensação, ao reescrever tanto poeta quanto seres que não ascenderam. Mas, mesmo estando 82 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva condensadas em humano, temos uma diferenciação entre o poeta e seres que não ascenderam, na medida em que poeta está em uma relação com ascenso, e com descenso, sendo que descenso está articulada também a seres que não ascenderam, ou seja, enquanto o poeta se articula com as duas palavras, seres se relaciona somente com descenso. Isto abre a possibilidade de que, mesmo sendo ambos humanos, somente o poeta tem essa capacidade de transitar entre o ascenso e o descenso. Dessa forma, em um primeiro momento, podemos ver o DSD de poeta da seguinte forma: Humano ├ Descenso ┴ Ascenso ┤ Artista ┴ Poeta Descenso ┤ não poetas (outros) ├ Humano Obs.: ler ┤como determina e _________ como antônimo Com esse DSD podemos observar uma especificação muito particular para poeta, na medida em que poeta é determinado por artista. Isso traz uma relação de sujeitos em que são colocados em um mesmo paradigma o poeta e o artista, e, por extensão, excluindo os outros seres humanos. Além disso, esse paradigma em que poeta é Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 83 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN colocado aparece como mais amplo do que os outros seres, por ter um certo privilégio de transitar pelo ascenso e pelo descenso. Podemos dizer também que, a partir de nossa análise, esta articulação entre poeta e artista traz uma relação entre sujeitos que nos auxiliará a pensar na possibilidade da relação entre a poesia e a arte, no pensamento de Bakhtin. Além de comentar as relações de Ivánov com a poesia antiga e os princípios estéticos, Bakhtin faz alguns comentários analíticos sobre o som e o uso de metáforas em seus poemas. E, ao fazer estas análises, ele utiliza por várias vezes a palavra poesia. Apresentamos a seguir alguns recortes em que aparece esta palavra. 3. (...) As fontes de sua poesia são a Antiguidade, a Idade Média e o Renascimento, que ele efetivamente dominava e das quais recebeu uma influência imensa, que lhe determinou as raízes fundamentais da sua obra. Na poesia de Briússov, a Antiguidade também ocupa um grande espaço, mas aparece refratada através da poesia francesa e inglesa (p.411). 4. (...) Neste sentido sua poesia não é musical. Em seus poemas não há uma única palavra fortuita. Como em todo poeta importante, há nesses poemas uma extraordinária plenitude de forças semânticas e lógicas sumamente detalhadas. Ele pondera cada detalhe do sentido, por isso em seus poemas não há pinceladas de pensamento grandes e grosseiras como em Balmont (p. 415). 5. (...) (a alegoria é uma metáfora que perdeu sua seiva poética) (idem). 6. Uma peculiaridade da poesia de Ivánov é o fato de que todas as suas coletâneas se decompõem em capítulos e estes estão distribuídos em ordem sequencial, uns dando continuidade aos 84 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva outros. É claro que alguns poemas não são átomos mas existem como objetos independentes, no entanto saem ganhando consideravelmente no conjunto da coletânea. É característico que Viatcheslav Ivánov sempre editou seus poemas em ciclos acabados. Esse aspecto sintético o liga a George e Rilke, particularmente ao último. Também em Rilke as coletâneas de poemas são narrativas que parecem decompor-se em capítulos. Neste sentido, a poesia de Ivánov se aproxima também do Sagesse de Verlaine (p.416). Observamos que, nas ocorrências da palavra poesia neste texto, ela está sempre em uma expressão referencial, sendo determinada pelo artigo a, em alguns casos combinado com o pronome possessivo seu (sua), em outro pela preposição de (da) e um outro pela preposição em (na). E, além disso, a palavra poesia sempre recebe uma especificação, como sendo a poesia de Ivánov, de Briússov, francesa e inglesa, sua (de Ivánov). Quanto às reescrituras, a palavra poesia é reescrita por poemas e por poética. A palavra poemas aparece sempre no plural e também, como a palavra poesia, recebe características específicas, como sendo poemas de Ivánov. Poderíamos, dessa forma, ter poesia e poemas em uma simples relação sinonímica, em que ambas podem ter especificações, tais como poesia inglesa, francesa, etc. e também poemas de Ivánov. Dessa forma, o que vimos até agora mostra algumas importantes relações de especificação para poesia, porém não temos ainda uma explicação de forma direta do que seja a poesia em Bakhtin. Então, podemos aqui pensar na possibilidade de que ele não traz nenhuma formulação específica do que seja a poesia, e sim produz suas análises considerando a poesia em um sentido bem geral, sendo conhecido por todos, ou seja, Bakhtin trata a poesia como algo de todos conhecido, sem a necessidade de uma conceituação mais específica e, desse modo, sem deixar o que ele próprio entende por poesia de um modo direto. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 85 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN Também podemos observar que, pela diferença que há por conta de poesia estar sempre no singular e poemas sempre no plural, temos um funcionamento diferente no uso dessas palavras. Enquanto poesia, por estar no singular, aparece como única, variando somente conforme o que a caracteriza, sendo a poesia francesa, inglesa, de Briússov, de Ivánov, poemas aparece como unidades da poesia, na medida em que temos tipos variados de poemas dentro de um lugar específico, o que podemos observar quando Bakhtin traz “Uma peculiaridade da poesia de Ivánov”, e, logo após, traz “Ivánov sempre editou seus poemas”. E isso leva na direção de que poesia determina poemas, isso é, todo poema é poesia, o que, por sua vez, nos traz uma outra relação para poesia, mas também não traz uma especificação direta do que seja a poesia para Bakhtin. Uma outra possibilidade que podemos pensar a partir da não definição direta bakhtiniana do que é a poesia é que ela ocupa o lugar de um gênero específico, ao qual cada autor ou região (e podemos acrescentar a época) possui as suas particularidades. Ou seja, por uma análise do DSD dessa palavra, podemos dizer que poesia, para Bakhtin, é determinada por gênero, ou seja, gênero determina poesia e poemas, enquanto que poesia determina poemas: Poemas ├ Poesia ├ Gênero Obs.: ler ┤ como determina Sendo assim, podemos dizer que a palavra poemas, pelo fato de estar no plural e associada sempre a um autor, designa os textos escritos por um poeta, já que o autor possui mais de um texto, ou seja, o autor caracteriza cada um dos poemas, sendo que um poema pode ser diferente do outro, enquanto que a poesia é o que faz parte de um gênero 86 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva específico e que caracteriza um texto como poema. Dito de outro modo, os poemas são textos que possuem uma determinação da poesia. Isso nos leva a pensar que a poesia é um gênero textual como outros. Por sua vez, ao ser colocada como um gênero, temos uma caracterização normativa da questão, pois os estudos passam a ser tratados genericamente, tal como qualquer outro gênero textual. Porém ainda temos mais uma reescritura de poesia para analisarmos. Trata-se da que encontramos no recorte 5, que é poética. Esta palavra, nesse texto, aparece uma vez dentro de uma expressão referencial, “sua seiva poética”, em que a palavra poética especifica seiva. No caso, seiva é o “líquido que contém princípios nutritivos e que circula no interior do vegetal” e, por metáfora, “energia física ou mental, força, vigor”. Ou seja, a seiva é uma energia vital para que algo exista. Assim, ao se particularizar a seiva como poética, um vigor, uma força, caracteriza algo como sendo poesia. Dessa forma podemos pensar que é essa “seiva poética” que transforma um texto em poesia. Mas, além disso, temos que poético também traz uma separação entre alegoria e metáfora, colocando a primeira fora da poesia, na medida em que ela perde a seiva poética. Por outro lado, temos que a metáfora é algo que constitui a poesia, já que ela possui essa seiva poética. Então poética é o que caracteriza um texto como poesia e, além disso, é o que vamos encontrar em poemas. Temos também a palavra poética em um livro de Bakhtin, intitulado “Problemas da Poética de Dostoiévski”. Nesse título, temos a palavra poética sendo especificada por Dostoiévski, ou seja, existe uma poética específica de um autor e que, nesse caso, trata-se de um autor de romances e não especificamente um autor de poesias, o que traz certa estranheza. Contudo, em nossa análise, observamos que poético é o que traz a característica a um texto de ser uma poesia, ou seja, é uma característica encontrada em alguns textos. Ao se colocar a palavra poética relacionada a um autor de romances, esta palavra tem a sua designação estendida, passando à característica específica de um autor. Em certa medida, esta palavra aparece em um sentido aristotélico do Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 87 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN termo, ou seja, há uma relação no uso deste termo por Aristóteles e por Bakhtin. Sendo assim, podemos dizer que poética determina a característica de um texto ou do conjunto de textos de um autor, isto é, podemos dizer que poético está em uma relação de sinonímia com característica, trazendo dessa forma o DSD da palavra poético da seguinte forma: Texto ┬ Poético característica ┴ Autor Obs.: ler ┤como determina e __________ como sinônimo. De um certo modo, podemos dizer que em Bakhtin, por ele colocar o poético como uma característica, tanto de autor como de texto, e também por colocar o poema como um texto e poesia como um gênero textual, há uma falta de especificação para o conceito de poesia. Com isso, a partir de sua posição sobre gêneros textuais, a poesia é colocada simplesmente como se fosse um gênero entre outros. Dessa forma ele não estaria tomado pela distinção Austiniana entre linguagem ordinária e não-ordinária4. Porém, temos uma questão sobre o sujeito que faz a poesia, ou seja, sobre o poeta, que é relacionado com artista, o que traz uma assimilação de poesia pela arte, isto é, por conta da relação entre poeta e artista, temos como correlato poesia e arte. Se projetarmos o DSD de poeta aqui, substituindo poeta por poesia, temos: 88 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva Humano├ Descenso ┴ Ascenso ┤ Artista ┴ Poesia Descenso ┤ não poesias (outros) ├ Humano Obs.: ler ┤como determina e ____________ como antônimo Nesse caso, temos uma relação muito particular de artista com poesia, em que poesia aparece como determinada por artista. Além disso, a poesia, tal qual vimos em poetas, transita entre o ascenso e o descenso, enquanto que outros textos ficam somente no lugar do descenso, ou seja, temos que a poesia está relacionada à arte e se constitui como um texto que, de certo modo, pode ser considerado como de maior alcance, já que tem essa particularidade de transitar entre os dois paradigmas de ascenso e de descenso. Com essa projeção, trocando poeta por poesia, aparece uma especificação para poesia. Considerações Finais Dessa forma temos que a poesia, para ele, é um gênero textual, porém, que difere dos outros tipos de texto por ter esta relação com arte, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 89 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN enquanto que o poema é o texto que pode ser considerado dentro do gênero textual poesia. E poético trata da característica de um texto ou de um autor, ou, dito de outro modo, trata de um estilo específico de se escrever, o que traz para a nossa reflexão que o que faz a poesia para Bakhtin é o poeta/artista e não a língua. Isso dito dentro de um quadro teórico em que a língua aparece essencialmente interindividual, em que várias vozes se cruzam, ou como diz Bakhtin, ela é essencialmente dialógica. Temos então, como dissemos na discussão sobre a teoria de Bakhtin, que a inserção dele em nossos estudos se deu por ele ser um estudioso da linguagem que é, fundamentalmente, um crítico da literatura. E, por ocupar este lugar, suas preocupações com a linguagem ficam relacionadas com a arte, trazendo uma reflexão bem particular sobre a poesia para os estudos da linguagem. Notas 1 Este artigo é uma versão modificada de um capítulo de minha tese de doutorado, intitulada “O Sentido da Palavra Poesia nas Ciências da Linguagem, defendida no Programa de Pós-graduação em Linguística do IEL/UNICAMP. 2 Lembrando que alguns trabalhos, tais como os de Patrick Sériot, colocam em dúvida sobre a autoria de Bakhtin para este livro 3 Grifamos certas palavras nos recortes para melhor visualizar as reescrituras. 4 Nas palavras do próprio Austin: “O que quero dizer é o seguinte: um proferimento performativo será, digamos, sempre vazio ou nulo de uma maneira particular, se dito por um ator no palco, ou se introduzido em um poema ou falado em um solilóquio, etc. De modo similar, isto vale para todo e qualquer proferimento, pois trata-se de uma mudança de rumo em circunstâncias especiais. Compreensivamente a linguagem, em tais circunstâncias, não é levada ou usada a sério, mas de forma parasitária em relação a seu uso normal, forma esta que se inclui na doutrina do estiolamento da linguagem. Tudo isso fica excluído de nossas considerações. Nossos proferimentos performativos, felizes ou não, devem ser entendidos como ocorrendo em circunstâncias ordinárias. (Austin, 1990, p. 36) 90 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 Adilson Ventura da Silva Referências bibliográficas BAKHTIN, M. (1972). Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro. Ed. Forense-Universitária, 1981. _____. (1979). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes. 2003, 4ª ed. _____.; VOLOSHINOV, V.N. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006, 12ª ed. GUIMARÃES, E. (2002). Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes. _____. (2004). História da Semântica: Sujeito, Sentido e Gramática no Brasil. Campinas: Pontes. _____. (2004a) “Civilização na Lingüística Brasileira no Século XX”. In: Matraga, nº16, p. 89-104. Rio de janeiro: UERJ. _____. (2007). “Domínio Semântico de Determinação”. In: GUIMARÃES, E.; MOLLICA, M. (orgs.). A Palavra: Forma e Sentido. Campinas: RG/Pontes. _____. (2011) Análise de Texto: Procedimentos, Análises, Ensino. Campinas, RG Editores. SILVA, A.V. (2006). A Poesia em Ducrot. Dissertação de mestrado. IEL/Unicamp. SILVA, A.V. (2012). O sentido da palavra poesia nas ciências da linguagem. Tese de doutorado. IEL/Unicamp. Palavras-chave: poesia, teorias de linguagem, enunciação Key-words: poetry, language theories, enunciation Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 91 A PALAVRA ‘POESIA’ EM BAKHTIN 92 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 32 - jul-dez 2013 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD Lucília Maria Abrahão e Sousa1 USP Dantielli Assumpção Garcia ** Daiana de Oliveira Faria*** Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a metodologia da Análise de Discurso. Mobilizando as noções de paradigma indiciário (Ginzburg, 1989), escriturística (De Certeau, 1999), e recorte (Orlandi, 1984), as autoras propõem a noção de língua-concha, a qual remete aos indícios, aos furos, às contradições, às falhas, às dobras, às frestas do imenso mar do discurso. Abstract: This article presents a reflection on the methodology of Discourse Analysis. Mobilizing the notions of evidential paradigm (as in Ginzburg, 1989), scripturistics (as in De Certeau, 1999), and cut (as in Orlandi, 1984), the authors propose the notion of shell-language, which refers to the evidence, the holes, the contradictions, the failures, the folds, the cracks in the vast sea of discourse. “Enxuta, a concha guarda o mar/ No seu estojo” Chico Buarque A concha seca, alguns grãos de areias, os restos de um mergulho que já não há, o mar ausente no de-dentro dela, a concha, a língua: há quem diga ser possível até mesmo ouvir o gemido de mar dentro de uma Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 93 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD concha. Emprestamos a metáfora para tomar aqui a língua como concha que manifesta marcas de rolamentos, de navegação, de rachaduras e de trincados que o analista do discurso precisa escutar. Estamos no campo da metodologia de Michel, cujo cerne não é desenhado pela compreensão de uma mensagem ou conteúdo por meio de “modelos prontos, definidos anteriormente a seus objetos, que podem nos levar a uma análise conteudística, onde o que temos a dizer serve apenas para comprovar uma conclusão pré-estabelecida” (LAGAZZI, 1988, p.51), mas pela escuta dos modos de inscrição de posições discursivas na ossatura da língua-concha, nosso alicerce, nosso chão, sempre o mar. Materialidade linguística – de língua-concha – que o analista do discurso coloca na orelha, escuta, desdecifra (e devora); entre ruídos e silêncio se constituem pistas e indícios do discurso. Silêncio que ecoa, que é efeito e que não pode ser apreendido, se não por seus ecos. A língua-concha dá corpo a registros e marcas por onde escorrem efeitos de sentidos, rabiscando regularidades, repetições e desvios, sendo esses nossos objetos de interesse e estudo. Para pensar à moda de Pêcheux, faremos um percurso nos seguintes termos: i. definição de paradigma indiciário; ii. anotações sobre o modo discursivo de pensar a língua como concha; iii. noção de recorte e funcionamento discursivo. O paradigma indiciário começou a ser esboçado por Ginzburg (1989) ao observar os estudos do final do século XIX. A pergunta que se fazia então era a seguinte: como uma tela poderia ser identificada se a sua data e autor eram desconhecidos? E no caso de uma incerteza, como afirmar com precisão quem foi o pintor da obra, como reconhecer certa dose de pertença/pertencimento nesse caso? As características da escola artística não se mostravam suficientes para solucionar impasse desse tipo, tampouco respondiam à questão de situar pintor e obra. “É necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis” (op. cit., p.144) adverte Ginzburg, o qual sinaliza também como o considerado pequeno e desprezível pôde ser anotado nos trabalhos de 94 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria Morelli que, nas obras de arte, atentava para detalhes como o formato das unhas, o tamanho do lóbulo da orelha e a forma dos dedos das mãos e dos pés, inaugurando uma interpretação a partir de elementos tidos como marginais, simulando a postura de um detetive que, diante de uma obra de arte, precisa atiçar os olhos para perceber a grandiosidade de detalhes, o minúsculo em movimento, a erva daninha pouco reparada na imensidão de corpos. Esse exemplo ilustra uma postura indagadora (e por que não dizer científica?) que, segundo Ginzburg (op.cit., p.151-152), revisita alguns outros períodos históricos. Em vários momentos, o homem comportouse dessa forma para resolver questões cotidianas, muito embora esse saber nunca tenha chegado ao estatuto científico. O homem como caçador de pistas, como olheiro dos objetos do mundo incógnitos e tantas vezes hostis, como construtor de um meio para sistematizar seus desconhecidos diante do enigma de estar no mundo. Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira de ciladas (...) Decifrar ou ler as pistas dos animais são metáforas (GINZBURG, 1989, p.151-152). Ele ainda o completa apontando como as práticas divinatórias e a leitura dos astros encerram esse tracejado de invencionices e interpretações destinadas ao resto, à sobra de algo que não está presente, mas presentificado na marca deixada para trás, ao sinal que ficou... Uma pegada que iremos tomar para nós como analistas do discurso... Os Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 95 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD astros no céu de então, quando lidos nos detalhes de seus arranjos, apontavam previsões sobre mudanças no clima e no desenvolvimento da agricultura, por exemplo. A análise de vestígios dos rastros de animais também implica momentos de defesa humana, sobrevivência ou indiciava a proximidade com o horror da morte; ler sinais e pistas deixadas no oco ausente/presentificador para sobreviver... Perceber a fundura e a umidade da pata no barro, a grossura do pelo deixado na árvore, o tamanho da plumagem derramada no chão, o tamanho da mordida no corpo do animal estraçalhado: “por trás desse paradigma indiciário ou divinatório, entrevê-se o gesto talvez mais antigo da história intelectual do gênero humano: o do caçador agachado na lama, que escuta as pistas da presa” (GINZBURG, op.cit., p.154). Anota o autor italiano que a medicina também bebeu nessa fonte, ao observar fezes, suores e toda espécie de secreções de pacientes, passando do sintoma ao diagnóstico da doença e à cura num pulo indiciário. Ler os indícios no/do(r) corpo exige perscrutar o detalhe, o sinal, a minúcia que apenas o olhar refinado para o indício, a pista e o sinal pode perceber. Nesses termos todos nós, que trabalhamos com a metodologia da teoria discursiva francesa, encontramo-nos debruçados diante do texto como caçadores de pegadas do sujeito, de secreções de sentidos e de vestígios da estrutura e do acontecimento, tocando os suores do enunciado pelo que escorrega às margens. Não nos interessa a mensagem como bloco fechado, mas as fissuras que ela conserva, o minúsculo de um pêlo esquecido em um passo de equívoco, em uma troca de palavra e de som, em um caco de desarranjo que reclama acuidade de escuta. No que toca ainda um pouco mais o pensamento de Carlo Ginzburg, De Certeau (1999, p.247-248) fala do mesmo lugar ao refletir sobre a escriturística. Ao fazer um passeio pela obra de Daniel Defoe, relaciona as metáforas da ilha, do cachorro, do Sexta-feira e do protagonista Robison Crusoé com a escriturística, ou seja, com a prática do texto 96 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria escrito (e poderíamos ampliar aqui com a prática metodológica do analista do discurso). Robison Crusoé já indicava como é que uma falha se introduz em seu império escriturístico. Durante algum tempo, seu empreendimento é como efeito interrompido, e habitado, por um ausente que volta ao terreno da ilha. Trata-se da impressão (print) de um pé descalço de homem na areia da praia. Instabilidade da demarcação: a fronteira cede ao estrangeiro. Nas margens da página, o rastro de um invisível fantasma (na apparition) perturba a ordem construída por um trabalho capitalizador e metódico (...) Na página escrita aparece então uma mancha – como as garatujas de uma criança no livro que é a autoridade do lugar. Insinua-se na linguagem do lapso. O território da apropriação se vê alterado pelo rastro de alguma coisa que não está lá e não ocupa lugar (CERTEAU, 1999, p. 247-248). De Certeau (op. cit.) enuncia poeticamente o que nos parece uma contribuição ao conceito de indício: anota o que vai além da fronteira e demarcação das palavras do enunciado, o que é puro discurso, curso de sentidos em movimentos, o ausente que presentifica um modo de sustentar o dizer, a pegada que coloca sentidos em possibilidade de leitura. Investe atenção na linguagem do desvio, da falha e do vacilo, daquilo que re(in)siste, como coloca Pêcheux: As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 97 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p.17). Preocupa-se com o que não está “escrito e visível”, sai em busca do rastro (da pegada) “do estrangeiro”, melhor dizendo, do sujeito enquanto posição discursiva. Da mesma forma, Tfouni (1992, p.205224) sublinha esse mapeamento das pistas e indícios na materialidade linguística, colocando tal enfoque como decisivo para a compreensão da linguagem. Para Carlo Ginzburg, as ciências humanas sempre se debateram (e isso é histórico) entre a adoção de um método galileano, experimental, que considera o dado como fato objetivo, quantificável, de um lado, e um paradigma científico segundo o qual ‘o conhecimento é indireto, indiciário, conjetural’. (...) Para aqueles que pesquisam a linguagem, seguir o paradigma galileano significa, ainda segundo Ginzburg efetuar uma ‘progressiva desmaterialização do texto, continuamente depurado de todas as referências sensíveis’. Em contraparte, seguir o paradigma indiciário significa restituir ao texto suas qualidades individuais, restituir-lhe os contextos em que foi produzido, a(s) história(s) de suas condições de produção (TFOUNI, 1992, p.205-224). Anotando que quando falamos em condições de produção, temos imbricados sujeito e situação, em sentido estrito e em sentido lato, funcionando conjuntamente: contexto imediato e contexto sócio- 98 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria histórico ideológico mais amplo não podem ser dissociados (ORLANDI, 2006). Chartier (2001, p.167-168) também faz referência ao trabalho de Ginzburg e compreende o ganho científico de “tornar visível uma série de fatos ocultados no curso das investigações de história social clássica: vinculações, negociações, conflitos, elementos que geralmente não se vêem em uma escala mais ampla”. Comprometido com a acuidade do olhar do pensador italiano, ele faz a seguinte síntese: Para Ginzburg, o importante é a anomalia, o que se pode ver por meio de uma situação excepcional (...) utiliza referencialmente uma nova técnica de classificação, de identificação (...) que apesar dos traços visíveis das espécies reconstrói as famílias a partir de uma série de traços que podem ser completamente invisíveis e que pertencem à anomalia (...) Assim, os animais que pareciam próximos por suas formas ou sua aparência, são separados e colocados em outras famílias (...) Ginzburg é um desafio aos historiadores mais apegados às descontinuidades, variações, discrepâncias e defasagens, pois propõe uma espécie de retorno ao antropológico no sentido do universal e reformula assim uma questão clássica: como pode-se entender-se com o passado ou o outro, o estranho e o alheio, se não há algo comum que permita essa compreensão? Se temos alguma possibilidade de reconstruir estas diferenças é porque há algo compartilhado (CHARTIER, 2001, p.167-168). Nesse mapa de pistas e sinais à mostra, a língua-concha indicia. Nos seus relevos, irrompem rotas seguras e reviravoltas cheias de surpresas. Os indícios que nos interessam emergem na materialidade linguística, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 99 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD em (des)arranjos de língua, em marcas deixadas pelo sujeito após fal(h)ar e depositar na areia do dizer as pegadas de seus pés andarilhos. Quando falamos em materialidade linguística, apontamos para o que dá forma aos indícios e marcas discursivas. Vale ressaltar que não se trata, apenas, de um suporte ou de algo acabado. Pela via do materialismo histórico-dialético, de onde emerge essa noção na teoria do discurso, o mundo não pode ser considerado um complexo de coisas acabadas, mas um processo onde as coisas e os conceitos estão em incessante movimento (ORLANDI, 2012, p. 73). É nessa direção que falamos em materialidade, como processo em que estão imbricados sujeito e condições de produção, processo que se materializa na língua. Nesse sentido, a língua é concebida enquanto lugar material em que se realizam os efeitos de sentidos, dá as condições materiais de base do processo discursivo (ORLANDI, 2012). Com isso, materialidade discursiva é o nível de existência sócio-histórica que remete às condições verbais de existência dos objetos (PÊCHEUX, 2011). Indursky (1997, p.22-23) desenvolve um pouco mais esse pressuposto da língua nos seguintes termos: Examinar o mesmo pronome e seu funcionamento no discurso coloca o analista diante de um dado lingüístico e a seu funcionamento discursivo (...) A AD busca, pois, detectar um conjunto de elementos estruturados para verificar o modo de organização do discurso (INDURSKY, 1997, p.22-23). A língua como dado funciona de modo a fechar o cerco do sentido (a interpretação não pode ser qualquer uma nem toda), de um sentido marcado por certas condições de produção; assim, a língua é indício, primeiro e sempre passo de nossa metodologia discursiva. Vale aqui anotar que as palavras não estão congeladas em estado de dicionário, mas sempre em jogo tenso e deslocante; sobre isso, Orlandi (1988, p.54) anota que: “a relação entre as marcas e o que elas significam é (...) 100 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria indireta. No domínio discursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao modo positivista, como na linguística”. Segundo Marx (1988), toda ciência seria supérflua se as formas de manifestação, as marcas, os indícios e a essência das coisas coincidissem imediatamente. É, pois, nessa instância que o método discursivo (ORLANDI, 1991) se pauta, ou seja, nos movimentos que culminam em marcas, indícios. Essa tensa contradição da impossibilidade de coincidência e de relação direta entre as coisas do mundo e suas representações é o lugar teóricometodológico da Análise do Discurso. Num movimento de interpelação ideológica, o sujeito é fisgado pela ilusão de que pode haver uma relação direta e efetiva entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal maneira que torna evidente que o que foi dito só podia ser dito com aquelas palavras e não com outras. Esse processo cria o almejado efeito de clareza, completude e evidência tamponando as brechas do fal(h)ar, que se dá de uma maneira possível, apagando outras e, assim, deixando de dizer de outros modos tantos. Tal movimento é definido por Pêcheux como esquecimento nº 2 (...) “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “seleciona” no interior da formação discursiva que o domina, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou seqüência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCHEUX, 1988, p.173). As pistas da língua podem passar imperceptíveis à primeira vista, por isso mesmo cabe-nos olhar e retornar a olhar para elas com insistência, anotando como os efeitos são produzidos, de que forma se repetem, cristalizam-se e se rompem sentidos em uma dada posição-sujeito, e se há repetições ou deslocamentos em curso, e Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 101 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD como a língua funciona, como vale e como faz jogo disso tudo. Segundo Lagazzi (1988, p.61): A partir das marcas lingüísticas que se sobressaem, configurando as pistas para a análise, é que começarão a delinear o caminho que levará o analista ao processo discursivo, possibilitando-lhe explicar o funcionamento do discurso (LAGAZZI, 1988, p.61). Nessa perspectiva, o processo metodológico da AD, indiciário no exercício, está às voltas com essa relação tensa, isto é, de contradição na constituição do sujeito (...) A partir da consideração social dos interlocutores, podemos dizer que os conhecimentos podem ser ‘comuns’ mas não são ‘iguais’. Há desigualdade na distribuição de conhecimentos, não há partilha. Essa desigualdade é jogada na interlocução (ORLANDI, 1984, p.13). Desse modo, ao estudar o discurso, é necessário pensar a contradição e o sujeito, mantendo os ouvidos sempre colados na língua-concha, tratando-a não como unidade revestida de informação, como superfície precisa a ser decodificada, como transparência e completude, mas considerando que ela funda uma superfície furada e opaca, a qual chamamos texto, “o todo em que se organizam os recortes” (op. cit., p.14). A autora (op. cit, p.14) define que “recorte é um fragmento da situação discursiva”, “recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é segmento mensurável na linearidade” (op. cit., p.16). 102 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria Com o gesto de recortar, o analista visa analisar o funcionamento discursivo do texto, buscando compreender o estabelecimento de relações significativas entre os elementos significantes da línguaconcha. Como a teoria discursiva considera a incompletude e a opacidade constitutivas da linguagem, não se tem a ilusão de abarcar ou produzir uma análise de todo o texto, esgotando-o por completo, mas tomando recortes dele e estabelecendo aí “um começo, um lugar na incompletude” (op. cit., p.17). Tais recortes representam o envolvimento do analista que se posiciona diante dos dados, escolhendo-os (e sendo escolhido por eles...), já implicado pelo seu objeto, muitas vezes efeito dele, haja visto que “a defesa da análise do discurso como prática interpretativa não se dá sem que se coloque como condição indispensável a explicitação do lugar de onde o analista fala” (TEIXEIRA, 2005, p.196-197). Ao analisar os discursos, explicita Orlandi (2002, p.77-78), concebese um lugar para a descrição das sistematicidades linguísticas, isto é, busca-se descrever o modo como o linguístico aparece no discurso. Além disso, o que analisamos é o estado de um processo discursivo. Há, assim, a passagem da superfície linguística (o material de linguagem bruto, o texto) para o objeto discursivo, em que se faz funcionar o esquecimento número 2 (da instância da enunciação). Nesse momento, desfaz-se a ilusão de que “aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela maneira. Desnaturaliza-se a relação palavra-coisa”. Aponta-se, dessa forma, para um funcionamento da língua-concha, no qual a abertura para o múltiplo se instaura, o não-dito se faz presente, o confronto entre diferentes formações discursivas, constitutivamente frequentadas pelo seu outro, intervém, fazendo as palavras ecoarem sentidos no grande mar do discurso. A partir do objeto discursivo, o analista vai relacionar as distintas formações discursivas em confronto – que como ondas fazem os sentidos se moverem e circularem nas margens, nas marés, nas areias, nas ressacas da linguagem – com a formação ideológica que rege essas relações: “Aí é que ele atinge a constituição dos processos Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 103 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD discursivos responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele material simbólico, de cuja formulação o analista partiu” (ORLANDI, 2002, p.78). Ainda nos dizeres de Orlandi (2002, p.68): Fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o real da língua e o da história, entre o acaso e a necessidade, o jogo e a regra, produzindo gestos de interpretação. De seu lado, o analista encontra, no texto, as pistas dos gestos de interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho de análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos sujeitos e de produção dos sentidos. Passa da superfície linguística (corpus bruto, textos) para o objeto discursivo e deste para o processo discursivo. Isso resulta, para o analista, com seu dispositivo, em mostrar o trabalho da ideologia. Em outras palavras, é trabalhando essas etapas de análise que ele observa os efeitos da língua na ideologia e materialização desta na língua. Ou, o que, do ponto de vista do analista, é o mesmo: é assim que ele aprende a historicidade do texto. O importante é esgotar, tanto quanto possível o recorte, verificando como “entre os vários sentidos, um (ou mais) se tornou dominante” (ORLANDI, 1984, p.23). Do texto ao recorte, da polissemia a um sentido possível, da sequência discursiva ao processo discursivo sustentado pelas condições de produção, da (e na) língua-concha ao mar do discurso: nosso trabalho insistente e cheio de dobras e frestas, nossa peleja por estar (e teimar em continuar) nas margens, no sem-categoria que nos lança a navegar com uma cartografia que é construída a cada passo dado (e também a cada aborto de passo). Com um mapa tal como coloca Deleuze-Guatarri: 104 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria (...) o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política (...) (DELEUZE-GUATTARI, 1995, p.21). O que nos cabe escutar de novo (e com a polissemia dessa expressão, novamente e de novidade) na metodologia discursiva e nos nossos exercícios de análise(s), é a (nossa) condição da língua-concha, ou seja, escutar os espaços porosos, vazados, abertos que constituem uma ausência que é casco e borda, que emblematiza oco e palavra em torno. E só o fazemos na língua que nos falta, aquela da concha muito vazia e tão cheia de ar. O novo, nessa perspectiva, não é exclusividade do foco nem precisa ter lugar em um segmento de linguagem. É intervalar. É o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciados efetivamente realizados, essa margem, este intervalo, não é um vazio, é o espaço ocupado pelo social. Efeito de sentido. Multiplicidade (ORLANDI, 1984, p.13). A lida com algo sempre escapante que está dentro, e também fora, e se manifesta como puro intervalo entre mar e areia, onda e pedra; que pode receber preenchimentos imprevisíveis de terra e ar permanecendo vazia; que sempre nos remete a margens de mar, marés, ondas, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 105 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD movimentos de ondulações e ressacas em cascalhos, areias e pedras; que no seu de-dentro reserva espaço consagrado ao vazio, e por isso se faz busca e pôde ser cuspida do oceano, ressecar até a última gota, virar canção na voz de Buarque e mote para este texto. Margens que se estiram no dizer do sujeito – na tentativa, sempre vã – de preencher, (re)emendar, coser com os objetos de pesquisa e com as metodologias inventadas, algo que lhe falta, o ausente da (sua) concha. O furo que gesta e que coloca palavras e métodos em discurso, no concurso do faltoso que todo oceânico encerra, no que de falha é duração de continuidade, em nossa condição, também de concha. Notas 1 Docente com dedicação exclusiva da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Discurso e memória: movimentos do sujeito” (CNPQ) e do “EL@DIS, Laboratório Discursivo - sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos” (FAPESP). ** Pós-Doutoranda na Universidade de São Paulo. *** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão da Universidade de São Paulo. Referências bibliográficas CHARTIER, R. (2001). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2ª ed. DE CERTEAU, M. (1999). A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes. DELEUZE, G.; GUATARRI, F. (1995). “Introdução: Rizoma”. In: DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. p.10-36. Coleção Trans. Tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. GINZBURG, C. (1989). Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras. INDURSKY, F. (1997). A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: Editora da Unicamp. LAGAZZI, S. (1988). O desafio de dizer não. Campinas: Pontes Editores. 106 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Lucília Maria Abrahão e Sousa, Dantielli Assumpção Garcia r Daiana de Oliveira Faria MARX, K. (1988). O Capital: Crítica da Economia Política, Livro III, Volume V. São Paulo: Editora Nova Cultural. ORLANDI, E. P. (1984). “Segmentar ou recortar”. Série Estudos. Lingüística: Questões e Controvérsias. Nº 10. Faculdades Integradas de Uberaba. _____. (1988). Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, Editora Unicamp. _____. (1991). “O método em análise do discurso”. Discurso, México, v. 6. _____. (2002) Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes. _____. (2006). “Análise de Discurso: conversa com Eni Orlandi”. 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Palavras-chave: língua-concha; Análise de Discurso; metodologia Keywords: shell-language; Discourse Analysis; methodology Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 107 PARADIGMA INDICIÁRIO, LÍNGUA-CONCHA, RECORTE E FUNCIONAMENTO: A METODOLOGIA EM AD 108 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE Cármen Agustini ILEEL-UFU/GELS Mostrando que entre estas duas dimensões [a semiótica e a semântica] não existe passagem, Benveniste conduziu a ciência da linguagem diante de sua própria aporia suprema. […] A dupla articulação em língua e discurso parece, pois, constituir a estrutura específica da linguagem humana (AGAMBEN, 2005, p. 14). Palavras iniciais O presente artigo surge de minha inquietação, sempre viva e presente, sobre o Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure. Leitura tantas vezes (re)visitada e a (re)visitar. Saussure e seus muitos caminhos. Neste artigo, pretendo trazer do Curso de Linguística Geral, doravante CLG, aquilo que ele traz sobre a constituição do signo linguístico, a fim de problematizar, em particular, a noção de significado/conceito, uma vez que, em muitas ocasiões, ouvi que o significado/conceito seria um significado amplo, primário e imanente ao signo, cujo valor se igualaria ao sentido referencial ou denotativo do signo; nos termos de Benveniste ([1962]1995), sentido referendum. Assim sendo, o signo ‘árvore’ seria constituído, por exemplo, pela imagem acústica (representada pela transcrição fonológica do signo Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 109 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE árvore) e o conceito (representado pelo sinônimo 'arbusto' ou pela imagem de uma árvore). Embora essa explicação, assim posta, também apareça no CLG, não a considero trabalhada de modo a permitir uma compreensão adequada sobre a constituição do signo linguístico, se for considerada a definição, também saussuriana, da língua como um sistema de valores puros. Surge dessa colocação a ideia deste artigo: trabalhar sobre a condição paradoxal da língua, a fim de problematizar a constituição do signo linguístico. Cito abaixo o recorte de uma explicação similar a essa supracitada, presente em Walmirio Macedo, e que utilizarei, no decorrer do presente texto, na construção de minha argumentação: O signo, seja qual for a sua dimensão, tem sempre os mesmos constituintes: SIGNIFICANTE e SIGNIFICADO. Esses constituintes são fundamentais. Um significante sem significado, ou viceversa, não é signo linguístico: #napato não é um signo linguístico porque não tem significado, mas sapato é um signo porque tem um significante /sapatu/ e um significado que é a ideia ou a imagem que ele evoca. Ou seja: o seu conteúdo linguístico (MACEDO, 2012, p.46). Essa forma de explicação, que supunha algo estranha desde minhas primeiras incursões nos territórios da Linguística, já que contradiz afirmações recorrentes e contundentes de Saussure, como “esses signos atuam, pois, não por seu valor intrínseco, mas por sua posição relativa” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.137), em minhas (re)visitas ao CLG, revelou-se problemática e contraditória, a ponto de não aceitá-la, sem desenvolver um trabalho de compreensão mais acurado sobre ela. Trata-se, a meu ver, de uma explicação que acresce ao signo o sentido 110 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini referendum que a linguagem lhe habilita no e pelo discurso, que enforma a língua de significação. Trata-se, portanto, de uma explicação que, além de apregoar a imanência do sentido referendum, também nega seu caráter relacional, negativo e opositivo, se ela não for (re)dimensionada em função da dupla significância da linguagem. Diante dessa problemática contradição, busquei um caminho que pudesse, de alguma forma, trazer-me um norte que se constituísse, para mim, em um porto de compreensão. Essa compreensão veio a partir da definição de Saussure da língua como um sistema de pura diferença associada à leitura benvenistiana do plano semiótico, cuja tópica é o conceito saussuriano de língua. Meu encontro teórico com o pensamento de Émile Benveniste e com seu trabalho sobre o funcionamento da linguagem, assim como a paixão que me movimenta a perscrutar a linguagem e a experiência humana, são caminhos que se convergem nessa busca por compreender o sistema linguístico e a constituição do signo linguístico. Essa compreensão não significa ultrapassar Saussure; significa trilhar um caminho possível em sua teorização, a fim de compreender certas questões e caminhos abertos por Benveniste. Nesse sentido, então, essa compreensão significa, em certa medida, desenvolver o pensamento saussuriano a partir de um caminho por ele mesmo aberto. Desse autor, utilizarei o tomo I dos Problemas de Linguística Geral, doravante PLG I. A epígrafe, escolhida não por acaso, traz o cerne da discussão que pretendo apresentar neste artigo, a saber: a implicação língua-discurso produz o caráter paradoxal do signo linguístico. Há, no CLG, definições de língua que, em certo sentido, (d)enunciam uma articulação constitutiva entre língua e discurso. Em “A língua constitui um sistema de valores puros que nada determinam fora do estado momentâneo de seus termos” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.95) é retomada, em parte, a definição “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias” Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 111 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE (SAUSSURE, [1916] 1996, p.24). Essas duas definições, na discussão aqui apresentada, encontram-se em certa relação sinonímica. Se assim o for, “valores puros” está recobrindo “signos”, o que não deixa de ter implicação sobre “na língua só existem diferenças [sem termos positivos]” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.139) e, “que nada determinam fora do estado momentâneo de seus termos” está recobrindo “que exprimem ideias”. Se essa interpretação for possível, “valores puros” e “signos” estão na ordem da língua enquanto “que nada determinam fora do estado momentâneo de seus termos” e “que exprimem ideias” estão na ordem do discurso e, portanto, sob a égide da contingência e da estabilização social dos sentidos, sendo que a estabilização social da contingência converte esta em necessidade. Assim considerando, as duas dimensões benvenistianas nessas definições aparecem, portanto, imbricadas. A partir da consideração acima tecida, pergunto-me: quais as consequências dessa articulação constitutiva entre língua e discurso? Não seria essa articulação a responsável por certa confusão na explicação da constituição do signo linguístico? Não seria essa articulação a responsável por outras confusões ou incompreensões sobre o pensamento saussuriano, principalmente aquelas relativas à positivação do signo linguístico? Não seria essa articulação a responsável pela produção de um efeito de que haveria um sentido referendum sempre-já-lá para o signo? Em que a teorização benvenistiana pode contribuir para a discussão de tais questões? Nas páginas seguintes, debruçar-me-ei sobre essas questões a fim de pontuar caminhos possíveis para lidar com elas e os estranhamentos decorrentes da implicação língua-discurso. 112 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini 1. A constituição do signo linguístico no CLG e nos PLG I. Pontuando alguns sentidos Para melhor explicar a posição aqui assumida, irei, de início, trabalhar a noção de arbitrário. Para tanto, cito Saussure no CLG ([1916] 1996, p.81): chamamos signo a combinação do conceito [significado] e da imagem acústica [significante]. (…) O laço que une o significante ao significado é arbitrário. (…) Assim, a ideia de “mar” não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual. Se a língua é forma e não substância, porque o signo é uma entidade psíquica de dupla face, não seria cabível preconizar que uma parte tenha uma natureza distinta da outra; no processo de discretização das entidades linguísticas em unidades linguísticas, os signos, o sentido do significante é da ordem do diferencial, cujo valor é distintivo. Essa premissa, para não usurpar o valor teórico e explicativo da afirmação de que na língua só há diferença, precisa valer para o significado também. Por isso, o sentido do significado também é da ordem do diferencial, cujo valor é distintivo. Nesse sentido, o significado não pode subsumir o sentido referendum, que é constituinte do plano semântico1 e, portanto, do discurso. Sendo assim, é fundamental conceber que a arbitrariedade aludida por Saussure refere-se à não-motivação na constituição do signo linguístico. No entanto, trata-se de um laço necessário para que haja signo, uma vez que é o distintivo do significado que permite que a língua, no processo de sua conversão em discurso, signifique. Dito de Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 113 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE outro modo, é o valor distintivo do significado que permite que a língua seja enformada de significação, cujo aspecto fundante é a relatividade à instância de discurso que a produz e à estabilização que a sua circulação social promove. É oportuno dizer ainda que, para o falante, nada está na língua antes de seu aparecimento no discurso, de modo que é necessária a “colagem” ao signo linguístico de um sentido referendum para que o falante reconheça uma forma como signo linguístico de uma língua específica. Por conseguinte, uma forma latente como #napato, embora não deponha em nada contra o sistema linguístico da Língua Portuguesa, não é particularmente reconhecida como signo linguístico pelos falantes de Língua Portuguesa, porque lhe falta a “colagem” de um terceiro elemento, o referendum. Benveniste ([1964] 1995, p.137) nos PLG I afirma que o sentido é correlato à forma e esclarece que na língua organizada em signos, o sentido de uma unidade é o fato de que ela tem um sentido, de que é significante. (…) Um problema totalmente diferente consistiria em perguntar: qual é esse sentido? Aqui sentido se toma numa acepção completamente diferente. Quando se diz que determinado elemento da língua tem um sentido, entende-se uma propriedade que esse elemento possui, enquanto significante, de constituir uma unidade distintiva, opositiva, delimitada por outras unidades e identificável para os locutores (…) Esse “sentido” é implícito, inerente ao sistema linguístico e às suas partes. Ao mesmo tempo, porém, a linguagem refere-se ao mundo dos objetos (…) Cada enunciado, e cada termo do enunciado, terá assim um referendum, cujo conhecimento está implicado pelo uso. 114 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini Em suma, o signo linguístico é arbitrário em sua constituição. No entanto, como o signo não é fora do discurso que o produziu, há a produção de um efeito de que o sentido referendum está desde sempre já-lá, como parte integrante do signo. Esse é o sentido próprio ao plano semântico. É nesse ponto, parece-me, que o linguista precisa, a partir do conceito saussuriano de língua, produzir um corte entre signo e sentido referendum a fim de compreender que a língua é uma instituição social única, diferente de todas as outras, porque ela está fundada em um vazio radical, ou seja, antes dela não há nada; não há um a priori. Ela é na relação entre os signos e essa relação é marcada por duas propriedades inalienáveis: a negação e a oposição. A negação refere-se ao fato de que não há um a priori antes da constituição dos signos linguísticos e, por conseguinte, do sistema linguístico. Por isso, a língua se constitui na pura diferença. Ou seja, não há propriedades a partir das quais se construiria o sistema. O sistema é na relação negativa de seus constituintes solidários entre si. A oposição, por sua vez, refere-se ao fato de que um signo é o que os outros signos não são. Nos dizeres de Saussure ([1916] 1996, p.136), “sua característica mais exata é ser o que os outros não são”. Saussure ([1916] 1996, p.133) diz ainda que o conceito [de um lado] nos aparece como a contraparte da imagem acústica no interior do signo e, de outro, este mesmo signo, isto é, a relação que une seus dois elementos, é também, e de igual modo, a contraparte dos outros signos da língua. Visto ser a língua um sistema em que todos os termos são solidários e o valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de outros. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 115 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE Nesse sentido, o laço que une um significante e um significado, na constituição do signo linguístico, é contingente e, por isso, arbitrário. No entanto, esse mesmo laço mostra-se necessário para que haja língua, uma vez que não há língua fora do discurso. A língua se forma e se constitui no e pelo discurso. Eis o aspecto paradoxal da língua. Sem esse laço constituído entre um significante e um significado não há como a linguagem exercer sua função simbólica, cuja premissa básica é significar, de modo a organizar o mundo para o locutor via reprodução e para seus interlocutores via re-criação. A função simbólica da linguagem é o fundamento da possibilidade de o homem viver em sociedade. Essa contradição constitutiva do signo linguístico leva, inclusive, Saussure ([1916] 1996, p.137) a (d)enunciar que (…) não existe imagem vocal que responda melhor que outra àquilo que está incumbida de transmitir, é evidente, mesmo a priori, que jamais um fragmento de língua poderá basear-se, em última análise, noutra coisa que não seja sua não-coincidência com o resto. Arbitrário e diferencial são duas qualidades correlativas. Assim sendo, arbitrário e diferencial estão em relação de mútua dependência, o que significa dizer que o princípio do arbitrário mostra que, ao dividir o signo linguístico em significado e significante, a combinação entre eles não é motivada, uma vez que não há a priori à constituição da língua. Por isso, é preciso compreender o que implica dizer que se trata de um laço necessário, conforme posto por Benveniste ([1939] 1995). É preciso, ainda, questionar a evidência de que esse 116 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini “necessário” corresponderia à condição sistêmica do signo. Não parece ser o caso. Não é à-toa que Benveniste alocou seu texto “Natureza do signo linguístico” na seção Comunicação dos PLG I. O ponto de vista em prevalência é o semântico e não o semiótico. É necessário, então, compreender que a “linguagem habilita a palavra à significação” para que ela possa cumprir sua função simbólica e, dessa forma, haver a possibilidade de uma correferência, na instância de discurso, entre os (inter)locutores. Essa associação entre significado (conceito) e significante (imagem acústica), nessa perspectiva, torna-se necessária para que o locutor reconheça a forma como uma unidade linguística disponível à conversão da língua em discurso. Benveniste, por sua vez, compreende essa contradição constitutiva e a (d)enuncia, a seu modo, em diferentes momentos de sua produção e, em particular, no artigo de 1939, “Natureza do Signo Linguístico”. De um outro modo, ele a (d)enuncia no artigo de 1962, “Os níveis da Análise Linguística”, ao trabalhar com a correlação entre forma e sentido nos níveis da análise linguística e, assim, demonstrar que, embora alguns linguistas tentem expurgar o sentido e priorizar a forma, “essa cabeça de medusa [o sentido] está sempre aí, no centro da língua, fascinando os que a contemplam” (BENVENISTE, [1962] 1995, p.135). Isto porque, para Benveniste, esse sentido é o sentido diferencial, opositivo, distintivo, delimitativo das unidades linguísticas, que está na base de toda e qualquer análise linguística. Benveniste ([1962] 1995) é levado, então, a distinguir duas formas de sentido: um sentido diferencial e distintivo, relativo à língua, e um sentido referendum, relativo ao discurso. Ao propor essa distinção, esse autor está colocando em evidência essa contradição constitutiva e convocando o linguista a questionar a evidência de um sentido sempre já-lá implicado na constituição do signo linguístico. Além disso, Benveniste está levando a sério o aspecto relacional da língua e do discurso. Aspecto esse muito caro a esse autor, uma vez que sua luneta Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 117 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE teórica, para analisar a língua e, também, a linguagem, é a presença do homem na linguagem2. Por conseguinte, embora a demonstração do princípio do arbitrário, conforme análise de Benveniste em a “Natureza do Signo Linguístico”, seja falsa, essa falsidade da demonstração não prova que o princípio em si seja falso. A relação significante e significado, na constituição do signo linguístico, é arbitrária e, também, é necessária. É arbitrária sob o ponto de vista da língua e é necessária sob o ponto de vista do discurso, uma vez que o discurso é produto da enunciação, ato de conversão da língua em discurso. Mo(vi)mento em que a língua encarna em linguagem e esse processo de encarne, ou enforme, tem a ver com o sentido referendum, cuja função é tornar possível o estabelecimento de certa correferenciação3 entre os (inter)locutores, promovendo, dessa forma, o acirramento da relação discursiva entre os participantes da enunciação. Quando alguém recebe um signo, ele recebe o significado e o significante juntos. “Juntos foram impressos em meu espírito”, diz Benveniste ([1939] 1995, p.55). Por isso, para o falante, não há signo vazio, sem conceito nomeado. O falante recebe o signo via discurso e, por isso, já enformado de significação, de uma significação relativa ao semantismo social e ao semantismo subjetivo. Como se trata de uma significação relativa à instância de discurso que a produziu, esse sentido referendum não é imanente ao signo e, por isso, pode ser alterado em outra instância de discurso. Essa implicação entre os planos, semiótico e semântico da língua, leva Saussure ([1916] 1996, p.90) a afirmar que “uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que deslocam, de minuto a minuto, a relação entre o significado e o significante”. 118 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini 3. Exemplificando. A relação constitutiva entre língua e discurso Segundo Saussure ([1916] 1996, p.142), “num estado de língua, tudo se baseia em relações”: as relações sintagmáticas e as associativas. No discurso, diz esse autor, os signos estabelecem entre si relações baseadas no caráter linear da língua. Assim, as combinações, que se apoiam na extensão, são, por ele, denominadas sintagmas. Trata-se, em tais relações, de unidades consecutivas, as quais adquirem seu valor na oposição em relação ao que a precede e ao que a sucede. Fora do discurso, os termos que apresentam algo em comum se associam, na memória, formando grupos. São as relações associativas. Essas não têm por base a extensão; sua sede é o cérebro. Ambas relações estão no entremeio da língua e da fala. Portanto, é possível afirmar que elas se materializam no discurso. O falante faz a associação; a associação pertence à fala, mas é determinada pela língua. Assim sendo, as relações associativas são, segundo Saussure ([1916] 1996]), um fator de deslocamento da relação entre os constituintes sígnicos. Abaixo apresento algumas frases que servem para exemplificar esse deslocamento, via relações associativas: (1) (a) O gato da minha vizinha é da raça Persa. (= animal de estimação)4 (b) Mariana está apaixonada por um gato. (= homem bonito; gato animal) (c) Cuidado! Há gatos assaltando na praia. (= assaltantes; bandidos) (d) Descobriram um gato no prédio. (= animal; ligação clandestina; ladrão) Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 119 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE O signo linguístico gato apresenta um significado e um significante, ambos com sentido diferencial e correlacionados, em relação à língua. Em relação ao discurso, o sentido referendum apresenta várias possibilidades já estabilizadas socialmente na Língua Portuguesa, ou seja, que fazem parte do semantismo social da Língua Portuguesa, conforme é possível observar a partir do verbete gato, reproduzido abaixo, do Dicionáro online Priberam5. ga·to (latim cattus, -i) substantivo masculino 1. [Zoologia] Mamífero digitígrado, da ordem dos carnívoros, tipo da família dos felídeos, de que há várias espécies, uma das quais é o gato doméstico. 2. Vergalhão de ferro com espigões (grampo) para manter unidas as pedras das paredes. 3. Pedacinho de arame com que se conserta louça partida. 4. Peça de ferro em forma de grampo entre a qual e a madeira da porta joga a tranqueta da aldraba. 5. Utensílio de tanoeiro para arquear as vasilhas. 6. Peça de ferro com que se endireitam as aduelas. 7. [Termo venatório] Ferro com um gancho para caçar. 8. Excesso de carne na parte superior do pescoço das cavalgaduras. (Também se diz gato carnoso). 9. [Regionalismo] Omissão, lapso, erro, engano. 10. [Portugal: Alentejo] Pele preparada, em forma de odre, para levar vinho. 11. Pedaço de fazenda que o alfaiate furta ao freguês. 12. [Marinha] Gancho de que se dependura um moutão. 13. [Portugal: Trás-os-Montes] Mentira. 14. [Brasil, Informal] Pessoa fisicamente atraente. 15. [Brasil, Informal] Desvio ou prolongamento ilegal de um ponto de fornecimento de energia elétrica. (= gambiarra). 120 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini Esse conjunto de acepções não esgotam as possibilidades de associações. No cotidiano, o locutor faz deslocamentos que permanecem em estado de latência e/ou possibilidade e que, no entanto, são passíveis de serem compreendidos pelos (inter) locutores, porque o signo já é parte da língua. Assim, por exemplo, é possível um falante dizer para outro: “Nossa! Como você está gatoso hoje.” e essa frase não constituir um problema de compreensão. O sentido de gatoso (adjetivo formado a partir do acréscimo do sufixo -oso ao morfema lexical gat-, cujo sentido é “cheio de gato”), nessa frase, pode, por exemplo, ser “manhoso”, “bonito”, “elegante”, “atraente” etc. A ancoragem do sentido dependerá da instância de discurso na qual essa frase aparecer, assim como das relações que os termos que a constituem podem assumir. Assim, se a (1d) se relaciona a frase “Alguém ficará sem TV a cabo.”, delimita-se o sentido referendum a “ligação clandestina”, descartando-se os sentidos referendum “animal” e “ladrão”. (2) ANGELI, 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/ #29/3/2014> Acesso em 29 março 2014. Nesse cartum, há um rosto de homem desenhado na prancheta que se personifica e elucubra sobre seu destino inevitável: ser um desenho em uma prancheta. Parece haver nesse cartum uma relação metonímica entre o cartunista e seus desenhos, de modo que ele se torna aquilo que Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 121 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE desenhou. O homem é na e pela linguagem. De qualquer forma, o que me interessa é analisar a frase “a maldição da prancheta” – a maldição pertenceria à prancheta ou a prancheta seria a própria maldição? Essas indagações só são possíveis tendo sido a língua já enformada de significação, uma vez que, lançada no discurso, a frase “a maldição da prancheta” torna-se ambígua por seus elementos deixarem de ter um valor puramente diferencial e “receberem” o sentido referendum. No plano semântico, o locutor que a lê apropriasse dela fazendo referência ao mundo (já significado pela língua) de uma certa maneira. Ao lê-la, estabeleço uma associação de pertença (a maldição pertence à prancheta?) e de existência (a prancheta é uma maldição?), o que traz à tona a ambiguidade. Entretanto, outro locutor-leitor poderia fazer outras associações, e não ver essa ambiguidade, por exemplo. Outra coisa é o funcionamento dessa frase no plano semiótico. Para começar, “a maldição da prancheta”, nesse plano, nem se configura como frase, uma vez que “com a frase se deixa o domínio da língua como sistema de signos e se entra num outro universo, o da língua como instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso” (BENVENISTE, [1962]1995, p.139). A frase já está para a ordem do discurso, no plano semântico. No plano semiótico, pois, “a maldição da prancheta” é apenas uma linha linear de signos, os quais se diferenciam por seu valor, não pelo referendum. A esse respeito, Saussure explica que “os significantes acústicos só dispõem da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro; eles formam uma cadeia” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.84). Os signos se dispõem em uma sucessão linear que obedece simplesmente ao critério do tempo, não ao da sintaxe, como ocorre no nível da frase. Os signos acústicos têm que se suceder uns após os outros para não se interporem, o que geraria complicações simultâneas, como ocorre com os signos visuais, por exemplo. Portanto, no nível semiótico, os 122 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini elementos “a maldição da prancheta” se diferenciam simplesmente por um princípio estrutural e não discursivo. (3) LAERTE, 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/cartum/cartunsdiarios/ #29/3/2014> Acesso em 29 março 2014. Nesse cartum, “D. Ruth” toca os personagens envolvidos de maneira especial, tanto pela aposição “dona”, que, na nossa sociedade, rememora respeito, quanto pelo nome próprio “Ruth” que designa uma pessoa reverenciada pelos personagens; ela nem precisaria de ter hora marcada, o que é inferido a partir do pedido de “Desculpa” do atendente. Quando ela se apresenta à plateia, seu nome é reverenciado. Cada um que o repete, o faz de maneira singular. Saussure mesmo afirma que uma repetição nunca é a mesma. No dizer de Saussure ([1916] 1996, p.125-126), quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a palavra Senhores!, temos o sentimento de que se trata, toda vez, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 123 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE da mesma expressão, e, no entanto, as variações do volume de sopro e da entonação a apresentam nas diversas passagens, com diferenças fônicas assaz apreciáveis – tão apreciáveis quanto as que servem, aliás, para distinguir palavras diferentes. (…) o sentimento de identidade persiste, se bem que do ponto de vista semântico não haja tampouco identidade absoluta entre um Senhores! e outro, da mesma maneira por que uma palavra pode exprimir ideias bastante diferentes sem que sua identidade fique seriamente comprometida (cf. “adotar uma moda” e “adotar uma criança”, “a flor da macieira” e “a flor da nobreza” etc.) Constato, pois, a partir da colocação de Saussure supracitada, que a cada enunciação de “D. Ruth” há um sentido referendum diferente, já que do ponto de vista semântico não há identidade absoluta entre as ocorrências de “D. Ruth”. Entretanto, no plano semiótico, “no lugar de ideias dadas de antemão”, há “valores que emanam do sistema” (SAUSSURE, [1916]1996, p.136). Não poderia haver um sentido referendum diferente a cada repetição de “D. Ruth”, se o sistema tivesse ideias dadas a priori. Ora, as ideias, ou o sentido referendum, está para o plano semântico porque são consequência da atividade social entre os homens. No sistema, não há ideias, há apenas valores. Se existissem ideias, não seria possível que cada enunciação de “D. Ruth” fosse diferente: sendo elas dadas a priori, cada “D. Ruth” teria um e apenas um referendum. Com isso, a linguagem seria transparente e o sentido seria unívoco. Como a linguagem é opaca e o sentido é equívoco porque é relacional, é possível que cada “D. Ruth” seja único e irrepetível. Portanto, o fato de a língua possuir valores puramente diferenciais reflete no fato de a linguagem poder veicular ideias, volições, sentimentos etc., sempre diferentes a cada momento em que são enunciados. 124 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini Consequentemente, a repetição de “D. Ruth! D. Ruth! D. Ruth!”, no plano semiótico, apenas leva em consideração a linearidade estrutural dos signos, que adquirem um valor por simplesmente um ser o que os outros não são. Já no plano semântico, nessa repetição, estão imbricadas questões para além de sociais, subjetivas. (4) “Neymar e Daniel Alves são alvos de racismo em clássico na Catalunha” (Manchete. Disponível em: <http://www.folha.uol.com.br/> Acesso em 29 mar 2014) Nessa manchete, há uma denúncia: a de racismo contra duas personalidades importantes do futebol. É por meio do plano semântico da língua que é possível atribuir um sentido referendum a “Neymar”, “Daniel Alves” e a “clássico”, por exemplo. “Clássico” pode ter muitos sentidos diferentes, mas a frase da manchete poderia delimitá-la para o de “partida de futebol muito importante”. Com relação a “Neymar” e “Daniel Alves” seria cômico se a língua já tivesse um referendum preestabelecido para eles: todos os Neymares do mundo seriam jogadores de futebol, teriam a pele morena e o cabelo meio aloirado e espetado para cima. Ora, o processo de substancialização da língua não implica algo tão absurdo. Substancializando-se, a língua se refere a algo no mundo. Sendo equívoca, esse algo pode ser significado de modos bem diferentes e irrestritos. A equivocidade e a opacidade são condições fundamentais para o funcionamento da língua; não são, portanto, meros pressupostos de teorias discursivas particulares. Sem isso, a ordem da língua (e do mundo) seria um absurdo. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 125 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE Portanto, no nível semiótico, “Neymar” se contrapõe a “Daniel Alves” apenas a fim de se positivar pela negação: “Neymar” se negando a “Daniel Alves” se torna um um, um signo, e vice-versa. No sistema, não faz diferença se “Neymar” é uma pessoa desta ou daquela maneira. A esse respeito, Benveniste ([1963] 1995, p.31) afirma que “não há relação natural, imediata e direta entre o homem e o mundo, nem entre o homem e o homem. É preciso haver um intermediário, esse aparato simbólico, que tornou possíveis o pensamento e a linguagem”. A língua é o intermediário entre o homem e o mundo e os homens entre si. É sabível que, na mediação, há aquilo que falta ou aquilo que excede, o que torna impossível uma transmissibilidade completa e fechada. Considerações finais Do exposto, é possível concluir que o sentido referendum se “cola”, em certo sentido, ao significado (conceito), espaço topológico diferencial da língua, enquanto constituinte do discurso, de modo a produzir uma implicação entre o plano da língua, o semiótico, e o plano do discurso, o semântico. Essa implicação reflete nas definições de língua presentes no CLG, o que possibilita a emergência de explicações da constituição do signo linguístico que imiscue os planos, de modo a atribuir ao significado um sentido positivado. Esse tipo de explicação está presente no próprio CLG, conforme citação abaixo. O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da 126 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini associação, o conceito, geralmente mais abstrato (SAUSSURE, [1916] 1996, p.80). Assumir que o signo linguístico é uma entidade psíquica exige levar em conta que se trata de uma impressão capaz de firmar valor linguístico no sistema, tendo em vista as possibilidades previstas pelo próprio sistema. Por isso, Saussure ([1916] 1996) considerou que as partes constituintes do signo linguístico são, respectivamente, um conceito e uma imagem acústica e não uma coisa e uma palavra. Essa impressão consolida-se no cérebro a partir de uma associação feita pelo locutor e é parte do próprio funcionamento do sistema. Nesse sentido, conforme posto em Agustini e Leite (2012, p.117), o valor linguístico que essa impressão pode firmar teria a ver exatamente com a consequência imediata que procede do sistema. Na base dessa associação, está funcionando o princípio da arbitrariedade do signo linguístico. Isso porque, para Saussure ([1916] 1996), não há uma relação de motivação entre conceito e imagem acústica, quando da constituição do signo linguístico em dado sistema. Como vimos considerando aqui, trata-se de uma relação gerida pelo próprio sistema, sendo desconhecida uma causa externa a ele; além disso, do ponto de vista da contingência, a associação entre conceito e imagem acústica assume um formato específico, restando, como contra face, a própria possibilidade de assunção de outro formato para tal associação. Entretanto, uma vez constituído no sistema, o formato específico passa a ser da ordem do necessário. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 127 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE Intentamos, até aqui, demonstrar que a articulação constitutiva entre língua e discurso é a responsável por certa confusão na explicação da constituição do signo linguístico, uma vez que a conceituação do significado/conceito precisa ser melhor problematizada, a fim de fazer trabalhar a sua constituição paradoxal, que implica um sentido diferencial e um sentido referendum, conforme tentei explanar. A unidade linguística, o signo linguístico, é uma entidade concreta, haja vista que não é possível valer-se dela a bel-prazer. A unidade linguística impõe-se ao locutor. O mesmo ocorre com o significado e o significante que é recebido por herança de outros locutores. Assim, os locutores falam, em Língua Portuguesa, “casa”, por exemplo, porque outros, antes e alhures, já falaram “casa”. Embora seja verdade o fato de que o homem não é senhor da língua, o sistema linguístico lhe confere uma certa “liberdade” nas relações associativas e na contraparte subjetiva do sentido referendum. Essa “liberdade”, no entanto, é delimitada pela língua e pelo semantismo social; em última instância, é a ordem própria da língua e o semantismo social que põem cabresto no locutor. Essa “liberdade” permite ao locutor produzir outros sentidos referendum para um signo linguístico já constituído, mas não lhe permite mudar a constituição sígnica. “Uma sequência de sons só é linguística quando é suporte de uma ideia. […] na língua, um conceito é uma qualidade da substância fônica, assim como uma sonoridade determinada é uma qualidade do conceito” (SAUSSURE, [1916] 1996, p.119). Nessa citação de Saussure reside uma outra contradição se não for considerado que o signo é uma impressão psíquica e que a língua é uma forma e não uma substância. É possível compreender a conversão da língua em discurso como um processo de substancialização da língua. Se assim for, o significado/conceito é uma qualidade da substância fônica e, por isso, somente tem existência a partir do discurso. Parece 128 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Cármen Agustini circular, mas esse processo de substancialização retoma o axioma: não há língua sem discurso e não há discurso sem língua. Sem língua não há nem a possibilidade de existência da sociedade. Portanto, o significado/conceito é o termo do signo habilitado pela linguagem a significar, que, nesse processo, é enformado de significação, passando, por isso, a ter, embora provisoriamente, um sentido referendum. Por isso, Benveniste afirma que a referência é da ordem do discurso, do plano semântico; é na e pela enunciação que as instâncias do discurso são construídas e (re)atualizadas à injunção do semantismo social (sentidos possíveis e estabilizados que são (re)produzidos no e pelo discurso), responsável pela possibilidade de se estabelecer ou não uma certa correferenciação entre os (inter)locutores. Portanto, para que as formas sejam “plenas 6” é preciso mudar de domínio; é preciso que a língua (enquanto possibilidade de língua) esteja em discurso, porque é no discurso que o sentido referendum se produz, ou seja, é no discurso e por ele que o locutor representa a realidade imaginária7, a sua realidade. Assim sendo, no plano semiótico, a língua é forma e, no plano semântico, o discurso é substância. A conversão da língua em discurso é coextensiva ao processo de substancialização da língua. A língua não acontece sem o discurso. Eles formam uma “dupla instância conjugada”. Aí reside o paradoxo constitutivo e o ponto de muitas problematizações possíveis. Notas 1 Benveniste teoriza a existência, na linguagem verbal, de dois planos implicados entre si, ou seja, que funcionam concomitantemente e que são, por isso, inalienáveis. O plano semiótico é o plano da língua enquanto sistema de signos linguísticos e o plano semântico é o plano da língua convertida em discurso e, por isso, semantizada. 2 Benveniste, em sua arte de questionar as evidências, inverte a comumente questão da presença da linguagem na vida do homem, de modo que o homem é quem está na linguagem, porque é a linguagem que o constitui, que o alça ao estádio hominal. Por isso, “não atingimos jamais o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a” (BENVENISTE, [1958] 1995, p.285). Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 129 O PROBLEMA DO SIGNO LINGUÍSTICO EM SAUSSURE E EM BENVENISTE 3 A correferenciação não é completa; há uma hiância constitutiva que é dada pelo aspecto subjetivo da linguagem. 4 Os enunciados de 1(a) a 1(d) são enunciados forjados pela autora deste artigo, como parte da explicação em tela. 5 “Gato” In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/gato, consultado em 28-03-2014. 6 “Plenas” aqui está sendo compreendido como forma enformada de significação no e pelo discurso. 7 A expressão “realidade imaginária” é de Benveniste ([1963] 1995, p.27) e é relativa à realidade construída na e pela linguagem em oposição ao real, intangível. Referências Bibliográficas AGAMBEN, G. (2005). Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 188p. AGUSTINI, C. L. H.; LEITE, J. de D. (2012). “Benveniste e a teoria saussuriana do signo linguístico: o binômio contingêncianecessidade”. In: Revista Línguas e Instrumentos Linguísticos, v. 30, pp. 113-129. Disponível em: <http://www.revistalinguas.com/edicao30/artigo7.pdf>. Acesso em: 01 mar. 2014. BENVENISTE, É. (1963). “Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da linguística”. In: BENVENISTE, É. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005 [1963], pp. 19-33. _____. (1962). “Os níveis da análise linguística”. In: _____. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 127-140. _____. (1958). “Da subjetividade na linguagem”. In: _____. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 284-293. _____. (1939). Natureza do signo linguístico. In: _____. Problemas de Linguística Geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995, pp. 53-59. MACEDO, W. (2012). O livro da semântica: estudo dos signos linguísticos. Rio de Janeiro: Lexikon, 159p. SAUSSURE, F. (1916). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1996. 130 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 DOSSIÊ PERCURSOS DA METÁFORA Recebi, há algum tempo, da Comissão Editorial da Revista Línguas e Instrumentos Linguísticos, um convite que muito me honrou: organizar uma nova seção da Revista, uma seção temática que teria como primeiro assunto a metáfora. Assim, os textos que seguem são de autores que assumiram comigo esta grande responsabilidade. Assumiram também, cada um de seu lugar específico, a tarefa de pensar sobre as questões que envolvem o funcionamento da metáfora em outras áreas do saber, que não só (mas também) as Ciências da Linguagem. Contribuíram com suas reflexões um historiador – André Joanilho; um filósofo – Hélio Rebello Cardoso Jr.; uma psicóloga – Renata P. Domingues; um psicanalista – Maurício Maliska; e, duas linguistas – Andréia da Silva Daltoé e Mariângela P. G. Joanilho. Tivemos também como contribuição para a Seção Resenha da Revista o texto de Anderson Braga do Carmo sobre um livro do filósofo francês Paul Virillo, que em suas reflexões, parte de uma metáfora fundamental; segundo ele, o homem habita o tempo e não o espaço. Esperamos com isso poder contribuir com os estudos sobre esta sedução da linguagem, que é a metáfora. Para apresentá-los, deixarei que falem os autores nos resumos de seus textos, a partir de agora: Em “O direito de ser esquecido, o direito de ser lembrado: memória, esquecimento e o funcionamento da metáfora”, Andréia da Silva Daltoé investiga como se dá o funcionamento da metáfora no interior da relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de observar de que modo este deslizamento faz trabalhar as noções de memória e esquecimento. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 131 PERCURSOS DA METÁFORA Maurício Maliska, em seu “Da condensação freudiana ao forçage/chiffonage lacaniano: o transbordamento da metáfora na teoria psicanalítica” busca explorar um percurso da metáfora na psicanálise, tocando nos seus limites e transbordamentos no ensino de Lacan, intentando mostrar os limites da metáfora dentro da psicanálise, uma vez que o psicanalista não busca construir metáforas, nem mesmo sentidos para o sujeito, mas desconstruí-los, com o objetivo de esvaziar o excesso de significação que há tanto nos sonhos como no sintoma, para que o sujeito passe a não mais sofrer com esse excesso de sentido. Já em “Intoxicação pela Metáfora segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari: os desenhos do pequeno Richard (1941)”, Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues partem da seguinte questão: quando um menino de dez anos, que vive em uma cidade sob risco de ser bombardeada pelo inimigo, desenha um navio de guerra para sua psicoterapeuta, o que quer ele dizer? Começam com essa questão simples para dar ensejo à revisão crítica que fazem Deleuze e Guattari a respeito da utilização de imagens nos escritos e nos desenhos reproduzidos em Narrativa de uma Análise de Criança de Melaine Klein, a partir do quê destacam o papel da metáfora para a produção da alegada intoxicação psicanalítica. André Luiz Joanilho, em seu “O historiador e a metáfora” trata a escrita da história como metáfora do passado não reconhecida pelos historiadores que, ao contrário, buscam o literal nas suas narrativas formadas por documentos que poderiam ser compreendidos também como metáforas, mas que são abordados como emulação do real. Do documento ao texto, a metáfora é esconjurada como ruído não real. No entanto, conforme o autor, a escrita não é feita de verdades e literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem, estando na origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade. Finalmente, em “Das relações de sentido na linguagem ou sobre como a metáfora produz o acontecimento” ocupo-me da descrição da 132 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela P. G. Joanilho metáfora na Semântica do Acontecimento em sua relação com a Análise de Discurso de filiação francesa. Escolhi, como pesquisadora em Ciências da Linguagem, dedicar-me de modo direto à tarefa de estudar a instanciação do sentido metafórico. Neste estudo, como parte de meu percurso anterior, procurei discutir o fenômeno da constituição do sentido metafórico e sua relação com a memória nas discussões que envolvem a formulação do conceito de língua nacional e, consequentemente, na configuração do processo identitário. Veremos que a metáfora é uma memória que se apresenta em diversos textos. E, como memória, “lembra e esquece e abre caminho para a mudança”, como define tão finamente Eduardo Guimarães. Mais uma vez, quero dizer que esperamos contribuir com as discussões acerca da metáfora, mostrando, mesmo que parcialmente, que este fato de linguagem movimenta os sentidos e promove infindáveis deslocamentos para as questões teórico-epistemológicas nas Ciências da Linguagem e nas Humanidades. Mariângela P. G. Joanilho Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 133 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE SER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA Andréia da Silva Daltoé UNISUL Resumo: Este artigo investiga o funcionamento da metáfora no interior da relação entre o chamado direito ao esquecimento e os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), tomados aqui em seus efeitos metafóricos como ‘direito de ser esquecido’ e ‘direito de ser lembrado’, respectivamente. Tendo como base a Análise do Discurso, busca observar de que modo este deslizamento faz trabalhar as noções de ‘memória’ e ‘esquecimento’. Abstract: This paper investigates the functioning of metaphor within the relation between the so-called right to be forgotten and the work of the National Truth Commission (CNV), taken here in their metaphorical effects as ‘right to be forgotten’ and ‘right to be remembered’, respectively. Based on Discourse Analysis, it aims to observe how this gliding movement puts the notions of 'memory' and 'forgetfulness' to work. Questões introdutórias A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. (...). Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 135 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. (...) Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. (Carlos Drummond de Andrade) Em junho de 2014, o Google comunicou, em São Francisco/CA, que passaria a aplicar o direito ao esquecimento determinado pela Corte de Justiça Europeia, a qual, em maio do mesmo ano, já havia exigido que os sites de buscas da internet possibilitassem a eliminação de referências desatualizadas ou fatos passados que, retomados no presente, pudessem ferir a integridade da pessoa humana e/ou sua privacidade. Depois da decisão, o Google disponibilizou um formulário online para os usuários que pretendessem a eliminação de suas informações pessoais da rede. Quatro semanas depois, a empresa havia recebido 41 mil pedidos. No Brasil, o debate ganhou calor com a VI Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho de Justiça Federal em Brasília, março de 2014, quando juristas de todo o país e do exterior aprovaram o Enunciado 531, de força doutrinária, que prevê o direito ao esquecimento, direito este não apenas restrito ao espaço da internet, mas também estendido a qualquer outro meio de comunicação. A discussão não é nova, mas tem tomado fôlego diante da necessidade de abrigo legal para as questões de internet e o modo como a disseminação de informações ganha o mundo em segundos, o que também reascende a polêmica entre os direitos individuais e o direito coletivo de acesso às informações. Sem entrar nesta contenda, objetivamos relacionar, na presente pesquisa, este direito ao esquecimento e os trabalhos que estão sendo desenvolvidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de investigar como estas duas instâncias fazem trabalhar a memória, o sujeito, a história e o próprio esquecimento, a partir do movimento que preveem, neste deslizamento, entre um dizer e um não dizer, entre um não dizer e um dizer. Num efeito metafórico, designaremos o primeiro como o direito de ser esquecido e o segundo como o direito de ser 136 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé lembrado, entendendo que não estamos colocando as duas questões como se fossem da mesma natureza jurídica, muito menos em relação de oposição, em que uma seria o contrário da outra no par esquecer/lembrar. Ambas as metáforas serão problematizadas a partir de nossa inscrição na Análise do Discurso (AD) de linha francesa, campo teórico que nos orienta como pesquisadora e cuja área nos permite pensar a língua e o sujeito em sua relação com o político nas condições materiais em que se inscrevem. Neste caso, são condições que passam por políticas de memória, aqui compreendidas como toda determinação que atinge o dizer a partir das formas de individualização do sujeito pelo Estado. Com a ajuda da noção de metáfora numa abordagem discursiva, queremos pensar este processo na relação de nunca acabar entre memória e esquecimento, movimento este visceral em AD para compreendermos os processos discursivos em suas diferentes materialidades. No caso desta pesquisa, as materialidades serão tomadas como Sequências Discursivas de Referência (SDr) (COURTINE, 2009), constituídas por recortes de leis, recurso jurídico, depoimentos de alguns dos já ouvidos pela CNV e falas de ex-presos políticos em reportagens a respeito dos temas, estes dois últimos transcritos de vídeos disponibilizados na rede. Neste percurso, trataremos: Do direito de ser esquecido: metáfora que se dá a partir do direito ao esquecimento, que, entre outras formas de a justiça brasileira regular o uso da rede, prevê, conforme o Enunciado 531, que “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”1, com base no Art. 11 do Código Civil, trazido aqui como uma SDr: SDr 1: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 137 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.335.153 - RJ (2011/0057428-0))2. Do direito de ser lembrado: metáfora que se dá a partir dos trabalhos da CNV, Comissão esta criada em 18 de novembro de 2011, de acordo com a Lei nº 12528, e instituída em 16/05/20123 pela Presidenta Dilma Rouseff, com o propósito de apurar violações aos direitos humanos ocorridas no período de 1946 e 1988, que inclui a ditadura (19641985)4, buscando, conforme Art. 1º, “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Dentre seus objetivos previstos no Art. 3º da presente Lei, destacamos: SDr 2: II - promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; (...). SDr 3: IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995; (...). SDr 4: VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e SDr 5: VII - promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações. Nos deslocamentos necessários, importante dizer que, no primeiro caso, não estamos diante de uma lei, mas de um recurso legal, de caráter doutrinário, cuja aplicação se dará pela interpretação do operador do direito. 138 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé De outra natureza, a CNV não tem poderes punitivos nem indenizatórios, mas desempenha um importante papel de reafirmação democrática do País ao procurar voltar aos fatos deste passado e construir, a partir de uma outra narrativa, a história que vitimizou famílias tragicamente afetadas por um regime em que os militares, conforme Indursky (2013), “sob o pretexto de salvarem a pátria da corrupção, da desordem e do comunismo, empolgaram o poder, nele perpetuando-se por 21 anos, impondo suas posições e calando vozes discordantes” (2013, p.323). Resguardadas as devidas diferenças, a relação que estabelecemos entre ambos os direitos (não no sentido jurídico do termo) se justifica pelo modo como, em ambos, podemos investigar processos de individualização pelo Estado, e também pelo modo como cada um, à sua maneira, mobiliza um trabalho sobre memória e esquecimento que muito interessa à AD. Nosso interesse é, então, relacionar estes dois direitos para problematizá-los em relação ao modo como são afetados pelas ilusões que nos constituem: ilusão do sujeito como origem e do sentido como colado à língua. De qualquer modo, vale ressaltar que esta aproximação já ocupa outros lugares de debate na mídia, por exemplo, em relação ao temor de que o direito ao esquecimento seja usado pelos torturadores da ditadura militar no Brasil a partir dos desdobramentos dos relatórios da CNV, como apresenta o sujeito enunciador a seguir, que é ex-preso político, torturado pela ditadura, hoje presidente da Comissão da Verdade Rubens Paiva de SP: SDr 6: O que tão querendo é usar um direito ao esquecimento para ter impunidade, nem se fala sobre o crime cometido, mas essa gente não foi processada, não foi condenada, não pagou a pena. Querem ser esquecidos antecipadamente? (Ivan Seixas) 5. Filiado a uma outra Formação Discursiva (FD), que não a jurídica, o sujeito enunciador desta SDr representa os defensores dos direitos humanos que entendem o direito ao esquecimento como um contraponto ao direito de memória, direito este preconizado pela própria Lei que institui a CNV. Não entraremos neste debate de aplicação jurídica, mas, sem dúvida, esta discussão vem reforçar a Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 139 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA relação tensa entre o que estamos tratando aqui como direito de ser esquecido e direito de ser lembrado. 1. O deslizamento dos sentidos entre um dizer e não dizer Desde a tese (2011)6, quando analisamos as Metáforas de Lula, temos nos debruçado sobre a noção da metáfora e seu trabalho de deslizamento de sentidos do ponto de vista discursivo. Daí o interesse em trazer esta questão a partir do conceito que formulamos na pesquisa de doutorado para, agora, pensar o direito de ser esquecido e o direito de ser lembrado. Considerando que ambas as propostas colocam em relação um dizer e um não dizer, conforme as SDrs de 1 a 5, observamos o modo como o texto da lei é afetado por um imaginário que concebe o poder de as palavras preencherem o espaço do vazio, ao passo que sua ausência representaria um lugar em branco. Neste efeito de sentido, em que a palavra pode ser retirada de cenário para dar lugar ao vazio, a crença à letra da lei se reafirma na SDr 1, considerando-se possível voltar à história de um indivíduo e reescrevêla, determinando não só o uso que é dado aos fatos pretéritos, mas também o modo e a finalidade com que são lembrados. Este desejo, em alguns momentos, se mistura aos domínios semânticos da internet, aos modos de uma vontade realizada pelo simples toque de um botão, como aponta a SDr 7, retirada do Recurso relatado pelo Ministro Luiz Felipe Salomão7: SDr 7: (...) em recente palestra proferida na Universidade de Nova York, o alto executivo da Google Eric Schmidt, afirmou que a internet precisa de um botão de delete. (Recurso Especial nº 1.335.153-RJ (2011/0057428-0)). Nesta SDr, vemos, no desejo pela tecla delete, o sentido do jurídico se misturando aos da internet em nome da mesma vontade ou ilusão de, com facilidade de um toque, apagar registros da rede. A proposta da CNV também é atravessada por este imaginário em relação à palavra que viria agora, a partir das audições dos envolvidos na ditadura, preencher um vazio; o desejo de que a palavra viria reconstruir a história (SDr 5) deste período no Brasil, preenchendo a lacuna deixada pelos dizeres, à época, interditados. Trabalham estes 140 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé sentidos os desejos de, conforme nossas materialidades, esclarecimento dos casos (SDr 2), localização e identificação dos corpos (SDr 3), reconstruir a história (SDr 5), não repeti-la e se reconciliar com ela (SDr 4). Pensando estes efeitos de sentido, que trabalham afetados por um imaginário de que a palavra preencheria o lugar do vazio e de que, inversamente, sua ausência seria um não sentido, neste primeiro momento, poderíamos ler este deslizamento do seguinte modo: a) em relação ao direito de ser esquecido: do pleno/saturado para o silêncio/interditado b) em relação ao direito de ser lembrado: do silêncio/interditado para o pleno/saturado Ou seja, no primeiro caso, parte-se do pressuposto de que o sentido das palavras já divulgadas na rede em um determinado momento do passado migrariam para o espaço do vazio, para que as informações prejudiciais à dignidade da pessoa humana ou à sua privacidade fossem deletadas dos arquivos da máquina e, assim, apagadas da memória dos demais usuários. Já, no segundo caso, os dizeres que sofreram a interdição da ditadura, que foram silenciados naquele momento, seja pela tortura, pela ameaça, pela força dos atos institucionais, migrariam, agora, para o espaço do poder dizer, promovendo o preenchimento necessário das lacunas do passado. A partir de tais efeitos, a metáfora trabalharia numa relação entre elementos de oposição comutáveis, intercambiáveis, cujos sentidos operariam na relação interditado/saturado. Todavia, este entendimento situa a metáfora no terreno do senso comum: figura de linguagem que estabelece relações de similitude entre palavras (mesmo que neste caso sejam de oposição), pela ideia paralela entre os termos. Funciona aí, portanto, a ilusão de que a presença de palavras trabalha o pleno e sua ausência, o vazio. Pêcheux e Fuchs (1997 [1975]), relendo os trabalhos da AAD 69 e refletindo se as substituições mudam ou não os sentidos, admitiram que, no início, “estas substituições eram necessariamente índices de Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 141 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA equivalência, em outros termos, que as n seqüências de um domínio constituem n formas semânticas equivalentes de uma mesma proposição, no sentido lógico do termo” (1997, p.211). Pensada nesta dualidade, o funcionamento da metáfora não faz intervir as condições históricas, sociais e ideológicas de um e outro momento do deslizamento e assim também não considera o modo como a memória que os atravessa vai além de um caráter temporal. Courtine (2009) levanta um problema central para esta questão: “o da definição de critérios permitindo determinar as ‘orientações’ entre comutáveis (2009, p.191). Conforme o autor, esta concepção inicial de paráfrase desenvolvida por Pêcheux pressupunha uma noção de identidade semântica entre as formulações, e a trazemos aqui porque, neste momento, as substituições simétricas funcionavam, segundo Pêcheux e Fuchs (1997), no nível da metáfora, designada como uma metáfora adequada (um termo por outro). Ou seja, a metáfora era pensada como uma substituição simétrica, atuando num trabalho de equivalência a partir da seguinte definição: “A é contextualmente sinônimo de B, ou então, é uma sua metáfora adequada (e reciprocamente para B em relação a A)” (1997, p.212). Neste caso, a metáfora adequada da AAD 69 seria o resultado de uma comparação “perfeita” de elementos com características em comum. Nesta revisita, Pêcheux e Fuchs (1997) apresentam duas contribuições importantes: a primeira, em observar que a definição dos pontos de comparação como algo natural é, antes, bastante arbitrária; e a segunda se coloca, particularmente, em saber “se a identidade ou a não-identidade entre dois “conteúdos” deve revestir-se da mesma significação, quaisquer que sejam estes conteúdos” (1997, p.216). Ou seja, Pêcheux e Fuchs reconhecem que a questão é mais complexa, considerando que os fenômenos semânticos de substituição “não se reduzem, de qualquer maneira, a uma ‘identidade da interpretação semântica’” (1997, p.218). Estas questões nos ajudam a pensar que o deslizamento dos pares saturado/interditado e interditado/saturado trabalham uma noção de metáfora reduzida a fenômenos semânticos equivalentes, a partir do jogo opositivo esquecer/lembrar como elementos comutáveis. Todavia, no funcionamento do discurso, esta possibilidade do dizer saturado (a não ser enquanto ilusão) e a garantia de que o silêncio é ausência de sentido precisa ser problematizada. Em AD, nem tudo pode ser dito, 142 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé assim também o silêncio não significa a ausência de sentido. Conforme Orlandi (2007), o silêncio: (...) não é o nada, não é o vazio sem história. É o silêncio significante. (...) possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a que o situa na relação do ‘um’ com o ‘múltiplo’, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa. (2007, p.23-24). Sendo assim, consideramos que os pares esquecer/lembrar, vazio/palavra, silêncio/palavra, dizer/não dizer, saturado/interditado, do ponto de vista discursivo, não são termos que se opõem, um não é o sentido contrário do outro, o que reafirma que os sentidos da metáfora não se justificam no que cada palavra, a priori, à luz de uma semântica geral, significa. Por isso, julgamos que é preciso fazer intervir os pressupostos da AD para explicar porque, para nós, é impossível pensar que os sentidos trabalham em determinados lugares e não em outros pela força de políticas de memórias ou mesmo pela vontade soberana do sujeito. Para dizer o que, então, observamos no funcionamento da metáfora a partir de nosso corpus, trazemos antes algumas questões sobre sujeito, memória e esquecimento. 2. O sujeito de direito(s) Falar em sujeito na AD é retirá-lo do seu espaço de dono do dizer, de origem em si, de autonomia diante da língua e do real. É, conforme Pêcheux (2011, p.156), deixá-lo de pensar como eu-consciência mestre do sentido para reconhecê-lo como assujeitado ao discurso. A formasujeito pela qual o sujeito se identifica com a FD vai, porém, segundo Pêcheux (1988), mascarar este assujeitamento, esta determinação, ao absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, organizando, desse modo, “a unidade (imaginária) do sujeito, sua identidade presentepassada-futura” (1988, p.167). Se o sujeito aparece como senhor de seu discurso é somente enquanto unidade imaginária, o que o autor vai chamar de efeito ideológico elementar (1988, p.153), expressão trazida de Althusser para tratar a própria condição de ser sujeito no mundo. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 143 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA Esta ilusão do sujeito como origem está ao lado de uma outra: a ilusão do sentido como reflexo do real. Estas duas questões são tratadas pelo autor como esquecimento nº 1 e nº 2: o primeiro, da ordem do inconsciente e afetado pelo ideológico, nos dá a ilusão de estarmos na origem do dizer. Trata-se do apagamento produzido pela ideologia, que, ao mesmo tempo em que nos toma, nos esconde sua “captura”; e o segundo, da ordem da língua, conforme Pêcheux (1988), representa o processo segundo o qual “todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e seqüências que nela se encontram em relação de paráfrase” (1988, p.173). Estes dois esquecimentos nos constituem sem que tenhamos pleno acesso sobre seu funcionamento. É assim que julgamos que somos a origem do que dizemos (esq. nº 1), esquecendo-nos de que retomamos o tempo todo sentidos já-lá, bem como julgamos que nossa fala estabelece relação direta com nossos pensamentos (esq. nº 2). Com isso, vimos que o acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito, tratados pela noção de esquecimento, não tem a ver com uma falta de memória, com o esquecido, mas sim com sua constituição enquanto sujeito do/no discurso, causando-lhe a ilusão do eu sei o que estou dizendo, eu sei do que estou falando (PÊCHEUX, 1988, p.174). Desse modo, a forma-sujeito de cada FD é, portanto, um efeito e não a origem e, neste trabalho, interessa-nos pensar sobre o modo como nos identificamos à forma-sujeito histórica do capitalismo, compreendonos como livres e responsáveis, de direitos e deveres: um sujeito-dedireito conforme Haroche (1992, p.30). É desse modo que somos individualizados pelo Estado, que, para “garantir” nossos direitos, antes, conforme a autora, nos faz uniformes, regulares, determinados, previsíveis e mensuráveis (1992, p.30). É assim que as práticas jurídicas contribuem silenciosamente com as práticas de individualização do Estado (ORLANDI, 2005) 8, ao mesmo tempo em que mascaram ao sujeito os efeitos do jurídico na sua subjetividade, em outras palavras, simulando ao sujeito que ele não é controlável. Esta determinação, segundo Orlandi (2005), nos leva a tratar de maneira complexa a questão do sujeito, da ideologia e da resistência “como algo que não se dá apenas pela disposição privilegiada de um sujeito que então poderia ser livre e só não o é por falta de vontade” (2005, p. 4,5). 144 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé Guardadas as diferenças, é preciso problematizar o modo como as políticas de memória, que atravessam ambos os direitos tratados aqui, trabalham este sujeito responsável e esta memória como um arquivo de lembranças a ser acessado, pois, conforme Pêcheux (2006), não há identificação plenamente bem sucedida, o que o leva a dizer que todo ritual está sujeito à falha, à incompletude, aos apagamentos, à contradição. Olhar para isso é poder encontrar vestígios do funcionamento da ideologia no sentido. Pensando a questão do sujeito em AD, vimos que o esquecimento do direito ao esquecimento não é da mesma natureza que os esquecimentos 1 e 2, no sentido de que, neste caso, não seria possível controlar plenamente aquilo de que se pode lembrar, aquilo de que se pode esquecer. Aliás, é preciso justamente esquecer para que os sentidos sejam lembrados e retomados como nossos, intervindo a partir de um já-lá do interdiscurso. Enfim, esquecer para lembrar, o que aqui não representa uma relação opositiva, binária, em que as palavras se equivaleriam. Desse modo, só podemos falar em alguma relação, mas de funcionamento bem distinto, do seguinte modo: o direito de ser esquecido é compreendido como uma garantia ao sujeito justamente porque este, desconhecendo o funcionamento de sua dupla determinação (esquecimentos 1 e 2), crê-se protegido pelo Estado, que, ao lhe garantir o direito à privacidade, apaga as contradições do social e do jurídico, fazendo crer que, pelo toque de um delete, sejam apagadas suas informações, e não só: que este apagamento deixe de produzir sentido. Trabalha aí uma vontade onipotente do sujeito de direito em, a partir da retirada de seus dados da internet ou de outras formas de mídia, controlar a memória da sua vida e a memória dos outros sobre sua vida. Esta “garantia” apaga ao sujeito as contradições de que é causa e este apagamento não deixa de produzir sentidos, o que nos ajuda a problematizar as políticas de memória. Ou seja, a crença do abrigo da lei mascara ao sujeito o modo como o sistema capitalista o impulsiona à mercantilização de sua imagem. Os dados de qualquer usuário da internet hoje formam arquivos que são negociados por grandes empresas e retornam o tempo todo a estes clientes/consumidores no formato de vendas e ofertas. Estamos expostos ao mundo da internet, por isso o desafio jurídico em encontrar formas de proteção ao sujeito que, paradoxalmente, se vende o tempo todo na rede. Nas palavras de Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 145 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA Gadet e Pêcheux (2004), é a língua de madeira do direito se enroscando com a língua de vento da publicidade e da propaganda (2004, p.23). Outra contradição que se mascara é o próprio de toda atividade jurídica, que é feita de palavras, de entendimentos dos operadores, o que aparece ao sujeito como efeito da pura aplicação da lei a cada caso. Estas contradições são apagadas pelo efeito da ideologia e é assim que nos identificamos a dizeres como: SDr 8: Quem pretende ir à Justiça com a intenção de apagar essas marcas negativas do passado pode invocar o direito ao esquecimento. 9 SDr 9: Ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros do passado. (Quarta Turma do STJ).10 SDr 10: Essa é a origem da teoria do direito ao esquecimento, consagradora do right to be let alone, ou seja, do direito a permanecer sozinho, esquecido, deixado em paz (Rogério Fialho Moreira, desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região).11 SDr 11: As pessoas têm o direito de ser esquecidas pela opinião pública e pela imprensa. (Guilherme Magalhães Martins, Autor do Enunciado 531, o promotor de Justiça do Rio de Janeiro).12 Apesar de nos identificarmos com esta garantia de tutela pelo direito ao esquecimento, isso não apaga as contradições a que estamos expostos. Por exemplo, as relações de poder que entram em jogo na hora de um julgamento sobre a procedência ou não do pedido de retirada de dados da internet, ou o argumento a favor deste direito, trazido na SDr 1, como condição de ressocialização de um ex-detento, o que sabemos que vai muito além do peso de sua memória. Ou seja, ignoram-se (e não é por descuido), a partir de uma garantia de igualdade, as desigualdades que nos constituem. Do ponto de vista da AD, ignoram-se as determinações ideológicas e materiais que atingem a memória e que, justamente por isso, não se deixa engendrar por determinações legais. 146 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé A problematização que fazemos em torno dos trabalhos da CNV é de outra ordem, mas não deixa de passar pelo modo como somos afetados aí também por uma ideia de memória que se deixaria organizar. Do mesmo modo que o esquecimento do primeiro direito não é da mesma ordem que os esquecimentos 1 e 2, também o esquecimento que a CNV busca conter e/ou impedir, ao voltar aos fatos do passado e contá-los de novo, não o é. Isso não diminui, em absoluto, sua proposta, que, conforme Indursky (2013), “está produzindo um trabalho importante que consiste em não deixar os fatos ocorridos durante a ditadura militar caírem no esquecimento” (2013, p.341). Todavia, compreendendo que este esquecimento que a CNV procura conter está determinado pelo funcionamento dos esquecimentos 1 e 2, passamos a entender esta volta à história fora da ilusão de agora, então, ser possível, efetivamente, se fazer justiça e se reconciliar com o passado. Eis a contradição com a qual precisamos lidar. O sujeito aqui também se identifica à proteção do Estado, que, neste momento, abre-lhe a possibilidade de dizer, quando antes o negou, todavia, dadas as condições de produção de todo e qualquer discurso, que é regulado não somente por força da censura de um regime de governo, é importante pensar que, mesmo com a condição de dizer de agora, a interdição se dá de diferentes modos, exigindo, por sua vez, que o sujeito, ainda assim, resista e diga. Fazendo intervir a contradição na assunção do sujeito interpelado, esquecimento ganha, para nós, um caráter poroso e litigioso, pelo modo como haverá sempre, em torno dele, uma luta por palavras a tentarem garanti-lo ou impedi-lo. Julgamos que problematizar este sujeito diante dos dois direitos tratados aqui pode ajudar a pensar nas formas de individualização pelo Estado e o modo como, a partir da contradição, da falha, encontram-se vias de resistência aos meios que regulam o dizer. Com isso, não conseguimos nos colocar, conforme Pêcheux (2006), fora do jogo ou fora do Estado, mas nos posicionar diante de uma história que não é o relato fiel de um tempo, mas sempre uma “disciplina de interpretação” (2006, p.42). Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 147 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA 3. A memória que se esburaca Nas materialidades que trouxemos até aqui, a história significa como um conjunto de fatos a que se pode voltar/não voltar, uma memória compreendida como um depósito cognitivo de acumulados do passado, aonde podemos retornar ou para deletar certos arquivos ou para trazer de volta novas informações que possam nos ajudar a reconstruí-lo. Bom, podemos e não podemos fazer isso. Podemos ser atendidos juridicamente pelo direito ao esquecimento, mas não podemos acreditar que os “apagados” deixem de produzir sentidos; do mesmo modo, podemos voltar aos momentos de chumbo da ditadura e tentar reconstruir a história, desde que compreendamos que, conforme Pêcheux (2006), a história é interpretação e, portanto, a verdade nunca deixa passar mais do que sua metade, conforme o poema que abre estes escritos. Importante ressaltar, conforme o autor, que isso não elimina em nada nosso desejo pelas coisas-a-saber (2006, p.43), o desejo pela verdade dos acontecimentos, pela história a que se pode ter acesso no mundo dos livros. Sem dúvida, a história da ditadura deve ser recontada longe da ameaça da captura, da tortura, da asfixia do não dizer, mas precisamos entender este retorno como um processo de interpretação, sujeito a recortes, fragmentos, esquecimentos, interdições que continuam afetando o dizer. São outras as condições de produção hoje, todavia não estão isentas das dificuldades que se colocam às investigações da CNV: documentos queimados ou que não aparecem, restos mortais dispersos e decompostos, traições da memória, traumas que impedem o tudo dizer, enfim, interesses diversos para os quais o calar é necessário. Além disso, há mesmo o esquecimento que precisa acontecer: não podemos de tudo lembrar e muita coisa precisa, de fato, ficar no passado. A história que reclama interpretação não nos fornece a felicidade das coisas-a-saber, como fazem muito bem, conforme Pêcheux (2006), o Estado e as instituições; “polos privilegiados de resposta a esta necessidade” (2006, p.34), por isso nos organizam, nos segmentam, nos massificam. A história que pensamos aqui está subordinada ao fato de que: (...) todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele 148 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inscientes) de deslocamento no seu espaço (2006, p.56). Nesta movência, a memória distingue-se de Achard (2010), que a apresenta a partir do par implícito/explícito, cujas repetições “estão tomadas por uma regularidade” (2010, p.14). Pêcheux (2010), na mesma obra Papel da Memória, interroga: “a questão é saber onde residem esses famosos implícitos, que estão ‘ausentes por sua presença’ na leitura da seqüência: estão eles dispostos na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um registro do oculto?” (2010, p.52). Do ponto de vista da AD, a resposta à pergunta (que já vem na própria pergunta) seria não, não há este escondido da memória, onde se armazenam fatos do passado, trazidos ao presente, ou não, pela vontade do sujeito. Não estamos falando, conforme Indursky 13 (2011, p.71), de uma memória cuja regularização lhe comanda, permitindo que os discursos sejam retomados e repetidos. Repetir em AD, segundo a autora, “não significa repetir palavra por palavra algum dizer, embora frequentemente este tipo de repetição também ocorra. Mas a repetição também pode levar a um deslizamento, a uma ressignificação, a uma quebra do regime de regularização dos sentidos” (2011, p.71). Por este motivo, conforme Pêcheux (2010), [...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (2010, p.56). Há um já-lá, um antes no dizer que vem pela memória, que traz as marcas de um tempo, de uma história, mas isso não é linear, nem cronológico, aparece, conforme Pêcheux (1988), “como um processo não-unificado, atravessado por desigualdades e por contradições” (1988, p.275). São estas contradições que intervêm no político e que Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 149 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA permitem o espaço do aberto, dos sentidos outros, apesar de que, conforme Corten (1999), “a narrativa do poder determina, efetivamente, o fechamento do espaço ‘político’ (1999, p.40). Os trabalhos da CNV, sem dúvida, podem recuperar informações que permitirão uma nova possibilidade de leitura do passado, mas não como o encontro com a verdade inteira, do tudo que agora será dito, pois, desse modo, segundo Fonseca (2013), a leitura tende “à ingenuidade ou à obsessão quando não percebe que determinadas faltas e apagamentos merecem ser vistas não como falhas ou acidentes de percurso, mas enquanto materializações de um outro ritual que nos remete à esquivocidade dos sujeitos, à sua prática política” (2013, p.59). É, então, a partir destas considerações que fizemos sobre sujeito, esquecimento, memória e história que compreendemos a metáfora. E a ela voltamos. 4. Quando a metáfora se estilhaça: um ritual que falha Ao questionarmos anteriormente o deslizamento entre os pares pleno/silêncio no funcionamento da metáfora, queríamos alertar para o modo como não víamos ali uma relação que justificasse o simbólico, o político, o ideológico. Fazendo intervir estas questões, o que observamos no funcionamento de ambos os direitos é um deslizamento que não trabalha este nível do relacional, do linear. No caso do direito ao esquecimento, mesmo marcado pela página em branco da internet, este dizer, ou melhor, o não dizer, não deixa de produzir sentidos, efeitos de memória, logo, o vazio é saturado e este silêncio significa. Assim, a crença no deletar da SDr 7 atua senão enquanto ilusão, uma vez que o sentido e a memória não se deixam engendrar. Este suposto vazio dá lugar a outros sentidos, como apresenta a SDr a seguir, retirado do Jornal espanhol El País14 sobre consequências do direito ao esquecimento: SDr 12: O denominado efeito Streisand, como se denomina quando a tentativa de silenciar algo termina por torná-lo ainda mais conhecido. (18/07/2014). Com isso, questionamos também a ideia de interditado/saturado das SDrs a seguir, retiradas de depoimentos à Comissão Estadual da Verdade (CEV)15 Paulo Stuart Wright de SC, na cerimônia de 150 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé Audiência Pública em Florianópolis em Homenagem a P. S. Wright, que dá nome à Comissão: SDr 13: Nós queremos a verdade, nós não vamos aceitar nada menos que a verdade. SDr 14: Que esta comissão da verdade seja realmente de verdade. A partir das SDrs 13 e 14, observamos o efeito do saturado da verdade. Portanto, do mesmo modo que o silêncio no direito de ser esquecido não significa vazio, também aqui os sentidos não deslizam do silêncio para o tudo. Se o silêncio está neste deslizamento é tanto no antes quanto no depois, como fundante (ORLANDI, 2006). Os sentidos podem sempre ser outros e, conforme Pêcheux (2011), “construir ‘o’ sentido da história arrisca ao mesmo tempo em fixá-la em uma eternidade administrativa” (2011, p.160161). É preciso, portanto, suportar os sentidos no plural e, no caso dos levantamentos de informações que a CNV está possibilitando, entender que este processo sofrerá determinações que afetam sempre o trabalho de um dizer por outro: o trabalho da metáfora. Portanto, conforme o autor, precisamos frustrar nosso desejo de uma historicidade homogênea e “suportar a categoria da contradição” (2011, p.161), tal como se apresenta na SDr a seguir, que traz o depoimento de um ex-preso político ouvido pela CEV de SC, ao defender os trabalhos da Comissão Popular da Verdade: SDr 15: Senhores da burguesia, nós haveremos não com a comissão da verdade, que não vai apurar nada, com a comissão da anistia, que é uma farsa. Enganam-se aqueles que pensam que, do seio do estado terrorista, vai surgir uma comissão que vai apurar a verdade. Diferente de outros muitos depoimentos, bem como do que prevê a Lei que institui a Comissão, nesta SDr, podemos verificar como a contradição se marca, fazendo ouvir outros sentidos possíveis que vão problematizar a própria verdade da CNV. A partir dessas considerações, vimos que a metáfora ganha um outro tratamento, que não se limita a observar a relação estabelecida entre dois termos por relações de similitude, num trabalho linear de um antes Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 151 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA e de um depois, até porque a memória que intervém no dizer, para a AD, não trabalha nesta correspondência. É porque, segundo Indursky (2007), “certos sentidos que são constituídos a partir de uma determinada interpelação/identificação, a partir de um certo momento, podem ser questionados e um sentido pode tornar-se um outro” (2007, p.170), que se instaura a instabilidade, a heterogeneidade no interior de uma língua. No caso da representação que fizemos anteriormente, de um sentido passar do pleno para o vazio ou do vazio para o pleno, não estávamos ainda lidando com esta heterogeneidade de que fala Indursky, pois, para que isso seja possível, precisamos lidar com as condições de produção desse dizer e confrontar as evidências do discurso com sua opacidade, com os desentendimentos, com as contradições, com as possibilidades de o sentido ser sempre outro, construindo-se, como história, não mais do que um efeito de relato, conforme Corten (1999, p.49), em meio à concorrência de outras tantas versões narrativas. Nessa perspectiva, metáfora não é tratada como um sentido figurado, decorrente de uma base linguística, mas como, segundo Pêcheux (1988), um “processo sócio-histórico que serve como fundamento da ‘apresentação’ (donation) de objetos para sujeitos, e não como uma simples forma de falar que viria secundariamente a se desenvolver com base em um sentido primeiro, não-metafórico” (1988, p.132). Sendo assim, o deslizamento promovido pela metáfora não se justifica na superfície da língua, a partir da qual um dizer é tomado, substituído por outro. Conforme Pêcheux (1988) “‘uma palavra por outra’ é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político” (1988, p.301). Concebendo a metáfora como constitutiva do sentido e determinada pelas condições de produção que promovem o encontro de uma memória e de uma atualidade, é que consideramos o direito de ser esquecido e o direito de ser lembrado a partir do tratamento teórico que demos à noção de Metáfora Discursiva (MD) na tese: “a substituição de um sentido por outro, justificada no interdiscurso e materializada no intradiscurso sob a forma de uma estrutura metafórica” (DALTOÉ, 2011, p.138). 152 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé No caso do direito de ser esquecido, a MD trabalha sim a relação entre um antes e um agora, mas não significa que, neste deslizamento, o sentido passe para o espaço onde nada mais será dito ou significado. O interdiscurso estará neste depois também perfurando o espaço “em branco”, atualizando o não dizer no dizer. De aproximada maneira, no direito de ser lembrado, a MD produz um efeito de novo, um novo que guarda os vestígios do passado: um já outro da história. Para nós, é por este motivo que o silêncio também é espaço de resistência, resistência da língua que também não se deixa engendrar por determinações de individualização pelo Estado e é, a partir desta irrupção de sentidos que escapam às determinações do poder, que se abrem brechas para sentidos e sujeitos outros, que resistem. A memória convocada por este tratamento da MD representa, conforme Pêcheux, uma divisão da identidade material do enunciado, fazendo com que “sob o ‘mesmo’ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva...” (2010, p. 53). Diferentemente das relações parafrásticas, que se dão num plano horizontal, no nível do enunciado, a metáfora funciona, conforme Pêcheux, como uma “espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrarse em paráfrase” (2010, p.53). Ou seja, não se trata de retornar ao mesmo dizer e recolocá-lo – é o não-idêntico que trabalha aí, em que a memória é ressignificada, sofrendo o efeito dos furos de sua retomada. Segundo Pêcheux, isto produz um “efeito de opacidade (correspondente ao ponto de divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em que os ‘implícitos’ não são mais reconstrutíveis” (2010, p.53). Por isso, entendemos a MD, aos modos de Pêcheux (2011), como um curto-circuito simbólico, que “se produz entre dois termos sem que nenhum discurso justificativo o subentenda: as explicações e as justificações virão após” (2011, p.159), dado o modo como se justificam no interdiscurso. No caso dos dois direitos analisados, temos pistas do funcionamento da MD, em cuja materialidade, conforme Orlandi (2010), “o real histórico faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade material contraditória (ideologia)” (2010, p.67), ao trabalhar as relações de repetição/transformação. Não estamos, com isso, negando, no caso da CNV, o papel da memória também enquanto lembrança de fatos, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 153 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA cujos depoimentos podem esclarecer e ajudar a montar este outro modo de contar a “mesma” história. Todavia, sejam todos os dados levantados, é preciso entender esta repetição de memória, conforme Courtine (2006), como uma repetição vertical, em que se repete também: (...) um não-sabido, um não-reconhecido, deslocado e deslocando-se no enunciado: uma repetição que é ao mesmo tempo ausente e presente na série de formulações: ausente porque ela funciona aí sob o modo do desconhecimento, e presente em seu efeito, uma repetição na ordem de uma memória lacunar ou com falhas (2006, p.21). Entre o mesmo e o diferente, algo se move e o mesmo já é outro, o que faz com que o deslizamento dos sentidos entre um enunciado X e um enunciado Y produza um efeito de memória, não porque estaria recuperando um discurso de outro momento passado, mas porque faz trabalhar uma memória que atinge uma atualidade e se justifica pela força das condições materiais em que se dá. Conforme Indursky (1999), este é o funcionamento da memória discursiva, que “promove o encontro de práticas passadas com uma prática presente” (1999, p.174) e que, segundo Pêcheux (2010): “seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os préconstruídos, elementos citados e relatos, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível” (2010, p.52). Nesse sentido, a MD promove uma ressignificação/desestabilização, que, pelo deslizamento de sentido que provoca, guarda algo da memória, ao mesmo tempo em que a faz aparecer de outro modo, em outro lugar. Queremos observar esta proposta a seguir, tomando de empréstimo uma metáfora trazida por Indursky (2013, p. 42) no Posfácio As outras vozes e as feridas ainda abertas à reedição de seu livro, quando ela trata dos trabalhos das Clínicas do Testemunho: a escuta da dor. Voltamos ao Recurso do Ministro Salomão 16 na parte que trata do tema desta peça jurídica: 154 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé SDr 16: No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um “direito ao esquecimento”, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes (grifo nosso). Neste Recurso, o sujeito enunciador da SDr 16 vota contra o pedido de reparação de danos feito pela família de Ainda Curi, morta em 1958, contra a TV Globo Ltda, por ter explorado o caso no Programa Linha Direta-Justiça. A partir desta materialidade, podemos observar que o direito de ser esquecido, enquanto garantia à dignidade da pessoa humana, está subordinado ao trabalho de interpretação que não está isento das relações de força, de poder, que atingem todo dizer. É com este material, a língua, que se legisla, se decide e se justifica que a dor de antes não é a dor de agora. Pensando a metáfora da escuta da dor e o funcionamento da MD, consideramos que não se trata aqui de pensar o deslizamento de uma dor maior para uma menor, ou comparar ambas as dores, mas de relacioná-las às determinações ideológicas que as atingem e as fazem não ser tratadas como sentidos que se substituem simplesmente. Em relação à CNV, a escuta da dor, como um sentido que desliza, pode ser pensada a partir de inúmeros significantes, mas queremos aqui trazê-la a partir da metáfora do corpo, este corpo que se procura para ser enterrado e por cujo direito familiares e amigos lutam até hoje. Um corpo que, para nós, pode representar, como efeito de sentido, também uma presença que vem preencher uma ausência. Vejamos: SDr 17: Não é dado o direito de enterrar os mortos. (Anita, CEV/SC)17. SDr 18: O desaparecimento é um crime continuado. (Derlei Catarina de Luca, CEV/SC)18. Podemos observar nestas SDrs, que a dor de antes e a dor de agora não significam necessariamente que, mesmo encontrando-se Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 155 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA novas pistas e até o próprio corpo (e o livro-relatório Direito à Memória e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (2007) vem para confirmar o quanto isso é difícil), que esta dor se amenizasse e produzisse o fechamento desta história. Em alguma medida, sem dúvida, encontrar o corpo representaria uma forma de justiça, mas não se trata de um deslizamento de uma falta a uma presença que abrandaria as feridas: a dor continua a doer e dificilmente se pode fazer as pazes com um passado de tortura. Mesmo que este corpo seja encontrado, sua presentificação não atingiria o tudo poder dizer, não tamponaria a dor por completo, nem traria a verdade dos fatos, ao mesmo tempo em que, em não aparecendo, esta ausência significa, significa a dor que persiste. E vamos sempre lutar pelo direito de enterrar nossos mortos. A questão do corpo, em sua presença/ausência, portanto, não trabalha numa relação de oposição, não há deslizamento que saia do nada para o tudo, da dor para a alegria. Haverá sempre o sentido da dor. Esta metáfora do corpo pode ajudar a pensar a própria ilusão pela verdade da CNV: mesmo que ela aconteça, tal como trabalha nosso desejo do tudo querer saber, seria sempre uma construção pela palavra, sujeita às brechas do sentido, sujeito aos dizeres que não se deixam dizer barrados pelo trauma. Haverá sempre verdade no plural, neste caso, no mínimo: a dos torturados e a dos torturadores. Vejamos isso, passando a dizeres de uma FD antagônica a dos direitos humanos: a FD do regime militar, a partir do depoimento de Paulo Malhães (P.M), coronel reformado do exército, à CNV, respondendo a quantas pessoas teria matado: SDr 19: Tantos quantos foram necessários. (P.M.)19. E, ao ser perguntado por que não entregavam os corpos, o sujeito enunciador justifica: SDr 20: Porque era o senhor deixar um rastro, e isso não foi técnica nossa, foi técnica aprendida. (P.M.)20. Ao ver o vídeo deste depoimento, a metáfora da escuta da dor se transforma, inevitavelmente para nós, em a dor da escuta a partir do modo como P.M. responde, de forma bastante tranquila, aos 156 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé questionamentos da Comissão sobre como torturavam e descaracterizavam os presos antes de serem jogados no rio. Do lado deste sujeito enunciador, esta é a sua verdade, daí ele mesmo dizer que a CNV é apenas “meia comissão da verdade” e, perguntado sobre arrependimento, ele reafirma: SDr 21: Eu cumpri meu dever. [CNV: Não tem arrependimento?] Não, eu não tinha outra solução. (...) isso era feito normalmente, eu acho que todos os serviços de informações faziam. (P.M.) 21. A SDr 21 significa o modo como o sujeito enunciador se identifica à FD do regime militar e se reconhece no papel que desempenha na posição-sujeito de torturador. Em seu depoimento, em mais de uma vez, ele se defendia, dizendo que este trabalho era um trabalho como outro qualquer e ele o fazia do melhor modo porque devia obediência às forças armadas. Isso reafirma o modo como o sujeito se reconhece no processo de individualização de um Estado que regia à força, no modo como se identifica à FD que o determina até hoje e à posição que ocupava. Nestas condições, tortura, morte, abuso sexual, ditador, violência são palavras que assumem um sentido litigioso em relação ao que significam em uma FD antagônica: a dos direitos humanos, com a qual se identificam as vítimas e todos que se horrorizam com este passado. As casas de tortura, por exemplo, no depoimento do coronel, são designadas como: casa de Petrópolis, sistema de informações, casa de conveniência, lugar para ganhar os presos 22. Ou seja, conforme Barthes (2004) “as mensagens ou os significantes têm um único sentido, que é o certo” (2004, p.111). A próxima SDr aponta para este litígio, quando o presidente da CNV, advogado Dr. José Carlos Dias, perguntou a P. M. se o presidente Médici, e Dias acrescenta, o ditador, sabia desses fatos. A resposta foi: SDr 22: Não era ditador, era presidente. (P.M.)23. Estas materialidades reafirmam o entendimento que trouxemos aqui de memória, que, segundo Orlandi (2010), atua “como um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de desdobramentos, réplicas, Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 157 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA polêmicas e contra-discursos” (2010, p.65), marcado a seguir pela resposta de Dias a P.M.: SDr 23: O senhor chama de presidente, eu chamo de ditador. (J. C. Dias)24. Este litígio em torno da palavra, nos termos de Rancière (1996), não cessará e segue construindo a história, a nossa história. E é assim mesmo que precisamos enfrentá-la, como uma disciplina de interpretação, como um cenário que se mostra sempre pela meia porta da verdade de Drummond. É nessa perspectiva que a metáfora trabalha, estabelecendo relações, conforme Rancière, entre “coisas que não têm relação, é fazer ver junto, como objeto do litígio, a relação e a nãorelação” (1996, p.52). Considerações finais No texto Maio de 1968: os silêncios da memória (2010), Orlandi trabalha a falha como constitutiva da memória e do esquecimento, mas também trata da falta, uma falta por interdição, daquilo que é tirado do sentido para não significar, provocando, desse modo, furos, buracos na memória para que os sentidos censurados não formem um já-dito: “há faltas – e não falhas” (2010, p.65). Para nós, a CNV precisará lidar com falhas e também com faltas, pois a interdição ao dizer se marca de outros modos fora do regime militar, mas continua. É preciso se dispor a isso e interpretar a história, caso contrário, segundo Indursky (2013), esta recusa “implica amordaçar aqueles que desejam e clamam por justiça” (2013, p.340), bem como impede a explicitação política da tortura de que trata Orlandi (2010). Problematizar esta memória é significá-la agora de um outro modo, trazendo o que está fora dela, conforme Orlandi (2010), “como uma sua margem que nos aprisiona nos limites dos sentidos. O que está fora da memória não está nem esquecido nem foi trabalhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-significado” (2010, p.66). É preciso ressignificar este passado. Serão, pois, sentidos re-inscritos num agora que apontam para o modo como é preciso esquecer para dizer e é preciso dizer para lembrar, num trabalho em que memória e esquecimento não deslizam 158 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé do vazio para o pleno, do nada para o tudo, mas que funcionam pelo modo como a língua e o sujeito precisam ser expostos às contradições que os determinam, fazendo intervir o político, o histórico, o ideológico. É preciso enfrentar esta escuta e aceitar que as palavras teimam em dizer mesmo quando ali não estão. E, como eu já trouxe na tese: como é importante a possibilidade de dizer de novo, dizer de outro modo. Acrescento agora: como é importante dizer quando antes não se podia. E como é necessário esquecer e lembrar. Notas 1 In: BUCAR, Daniel. Controle temporal de dados: o direito ao esquecimento. Civilistica.com. A. 2. N. 3. 2013. 2 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em 25/07/2014. 3 In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm> Acesso em 10/07/2014. 4 In: http://www.cnv.gov.br/index.php/institucional-acesso-informacao/a-cnv/57-ainstalacao-da-comissao-nacional-da-verdade> Acesso em 10/07/2014. 5 In: http://www.youtube.com/watch?v=TF8bKZa-9Js> Acesso em 25/07/14. 6 As metáforas de Lula: a deriva dos sentidos na língua política, defendida em 2011 pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 7 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em 10/07/2014. 8 Conferência II SEAD: O Sujeito Discursivo Contemporâneo: um exemplo. In: http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/2SEAD/CONFERENCIA/EniOrla ndi.pdf> Acesso em 12/07/2014. 9 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em 25/07/2014. 10 In: http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2013/10/22/o-direito-de-ser-deixado-empaz/ 11 Idem. 12 Idem. 13 Artigo A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F.; MITMANN, Solange; FERREIRA, M. C. (Orgs.). Memória e história na/da Análise do Discurso. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2011. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 159 O DIREITO DE SER ESQUECIDO, O DIREITO DE ER LEMBRADO: MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E O FUNCIONAMENTO DA METÁFORA 14 El País, Madri, 18 jul de 2014. In: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/17/tecnologia/1405630090_940193.html. Acesso em 20/07/2014. 15 Audiência Pública em Florianópolis em Homenagem a Paulo Stuart Wright. In: http://www.youtube.com/watch?v=3vpqU675x2Y. Acesso em 10/07/2014. 16 In: http://s.conjur.com.br/dl/direito-esquecimento-acordao-stj-aida.pdf> Acesso em 10/07/2014. 17 Trecho extraído da carta que Anita, sobrinha de P. S. Wright, que dá nome à CEV de SC, fala sobre o tio, deputado de SC, que teve seu mandato cassado com a instauração do Ato Institucional nº 5. In: http://www.youtube.com/watch?v=qYKU2tOoGLU> Acesso em 10/07/2014. 18 Derlei C. De Luca é membro da CEV/SC. Idem. 19 In: http://www.youtube.com/watch?v=T7oSIE5pm3Y > Acesso em 20/07/2014. 20 Idem. 21 Idem. 22 Ganhar os presos significava convencê-los a se infiltrar de volta nos movimentos chamados revolucionários e, então, delatar seus companheiros de luta aos militares. P. M. diz que esta foi a arma que ganhou a guerra. 23 Idem. 24 Idem. Referências bibliográficas ACHARD, P. (2010). Papel da memória. Campinas, SP: Pontes Editores. BARTHES, R. (2004). Inéditos, I: teoria. Tradução Ivone Castilho Benetetti. São Paulo: Martins Fontes. BUCAR, D. (2013). 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Curso de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre. 160 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Andréia da Silva Daltoé DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos / Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos - Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007. FONSECA, R. O. (2013). “Um olhar historiador para o trabalho com as formações discursivas: os palanques enunciativos”. In: INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L.; MITTMANN, S. (Orgs.). O acontecimento do discurso no Brasil. Campinas, SP: Mercado das Letras. GADET, F.; PÊCHEUX, M. (2004). A língua inatingível: o discurso na história da lingüística. Tradução de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes. HAROCHE, C. (1992). Fazer dizer, querer dizer. São Paulo: Hucitec, INDURSKY, F. (2013). A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas, SP: Editora da Unicamp. ______. (Org.). 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Palavras-chave: esquecimento, memória, discurso Keywords: forgetfulness, memory, discourse 162 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA Maurício Eugênio Maliska UNISUL Resumo: Este texto explora o percurso da metáfora na psicanálise, tocando nos seus limites e transbordamentos no ensino de Lacan. Procura mostrar os limites da metáfora dentro da psicanálise, uma vez que o psicanalista não busca construir metáforas, nem mesmo sentidos para o sujeito, mas desconstruí-los, com o objetivo de esvaziar o excesso de significação que há tanto nos sonhos como no sintoma, para que o sujeito passe a não mais sofrer com esse excesso de sentido. Abstract: This paper explores the course of metaphor in psychoanalysis, touching its limits and overflows in the teaching of Lacan. It seeks to show the limits of metaphor within psychoanalysis, once the psychoanalyst does not try to build metaphors or senses to the subject, but to deconstruct them in order to empty the excess of signification present both in dreams and in symptom, so that the subject will no longer suffer from this excess of sense. Iniciaremos com a conceituação da condensação na teoria freudiana, partindo dos sonhos como um carro chefe para entender o processo de condensação, para depois introduzir a metáfora como o seu correlato no pensamento lacaniano. Nesse percurso entre Freud e Lacan despontam os diálogos entre a Psicanálise e a Linguística como áreas de Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 163 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA interlocução. A metáfora situa-se como um elemento mediano e de articulação entre essas áreas, aproximando o funcionamento psíquico do funcionamento linguístico. Na psicanálise, a metáfora encontrará seus limites naquilo que Lacan nomeou de real da língua, em que a construção de sentido, via metáfora, transborda em um sem sentido do real da língua que não cessa de não se inscrever, de acordo com a concepção de Lacan (1985). Nesse artigo, procuramos (re)fazer um pouco desse percurso. 1. A condensação freudiana O objeto central de estudo da Psicanálise é o inconsciente. Freud (1900), ao tentar investigar os processos inconscientes, tomou os sonhos como paradigma desses processos. Para ele, o estudo dos sonhos era a via régia para o inconsciente; em suas palavras: “a interpretação dos sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente” (FREUD, 1910[1909], p.46). Dessa forma, Freud dedicou parte de seus estudos à investigação dos processos oníricos como forma de acessar o inconsciente. Postulou que o sonho, da forma como é apresentado, basicamente em forma de imagens e sons ─ um rébus pictórico-acústico ─ constitui-se de conteúdos manifestos de representações inconscientes. Dessa forma, dividiu os processos oníricos em dois eixos: os pensamentos oníricos latentes e os conteúdos manifestos dos sonhos. Os pensamentos oníricos latentes são inconscientes, encontram-se recalcados no inconsciente e, dessa forma, impossibilitados de vir à consciência. Já o conteúdo manifesto dos sonhos é a configuração que aparece na forma de sonho; é, portanto, o sonho sonhado. Para Freud (1900), os conteúdos manifestos nada mais são do que distorções/transformações dos pensamentos oníricos latentes, ou seja, uma vez que esses pensamentos estão recalcados e impedidos de advir à consciência, eles sofrem processos de transformação de modo a serem suportados pela consciência. Esses dois 164 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska processos de formação dos sonhos e transformação dos pensamentos oníricos latentes em conteúdo manifestos do sonho foram nomeados por Freud de condensação e deslocamento. Para Freud (1900), esses processos referem-se a transformações do conteúdo inconsciente necessárias para poder transpor a barreira do recalque. Não nos deteremos, nesse momento, no processo de deslocamento. Iremos privilegiar o processo de condensação pela sua relação com a metáfora. Para introduzir a temática da condensação, Freud (1900, p.305) expõe que “os sonhos são curtos, insuficientes e lacônicos em comparação com a gama e riqueza dos pensamentos oníricos”. Com isso está dizendo que há no sonho uma condensação dos pensamentos oníricos latentes nos conteúdos manifestos do sonho; tanto que se for relatado ou escrito talvez ocupe pouco espaço de fala ou de papel, já as análises correlativas aos pensamentos inconscientes podem gerar uma produção mais extensa. Freud (1900) argumenta que não se tem como saber o tamanho de uma condensação, ou seja, na interpretação de um sonho nunca se sabe exatamente até onde foi à condensação; sempre pode ter outros elementos condensados. Por isso mesmo que um sonho não se esgota em uma interpretação ou mesmo em uma sessão de análise, pois a interpretação de um sonho pode levar toda a duração de uma análise; em outras palavras, a análise de um sujeito pode estar condensada num sonho. Nesse sentido, o importante não é tentar dar conta da interpretação do sonho, como se isso fosse possível, mas trazer seus elementos em associação de modo a provocar um efeito analítico de interpretação. Nesse sentido, a condensação é um elemento de transformação do sonho, ou seja, respeita o mesmo mecanismo em que uma representação inconsciente tenta passar, atravessar a barreira da censura e é interceptada pelo recalque que faz com que essa representação seja condensada com outras, ou outra, representação. Neste sentido, a condensação é um elemento de formação dos sonhos visando à Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 165 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA realização do desejo inconsciente, ainda que condensado e/ou deslocado em seus elementos. Quase todos os exemplos de sonhos analisados por Freud (1900) podem ser usados como exemplo de condensação, pois em todos eles o conteúdo relatado do sonho é menor que sua análise, o que representa que os pensamentos oníricos inconscientes estão condensados nos conteúdos manifestos do sonho. A condensação, nesse sentido, atua como uma substituição, pois em lugar de uma representação inconsciente aparece um conteúdo representativo, havendo, portanto, a substituição de um elemento por outro. Por exemplo, quando se sonha com uma pessoa, mas ela parece ter o aspecto de outra e ainda estar vestida tal como uma terceira pessoa, isso pode apontar para uma condensação de várias imagens em uma única, promovendo ao mesmo tempo uma substituição dessas imagens em uma única. 2. A metáfora em Lacan É fundamentalmente sob esse aspecto da substituição da representação inconsciente que Lacan (1998), apoiado na teoria linguística de Jakobson, toma a condensação como uma metáfora. Na condensação ocorre uma sobreposição dos significantes, o que equivale a “(...) uma palavra por outra” (LACAN, 1998, p.510), mostrando que a metáfora é aquilo que está no lugar de outra coisa. A metáfora “(...) indica que é na substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação” (LACAN, 1998, p.519). Em outras palavras, a substituição de um significante por outro provoca uma significação ou um sentido (efeito de). O sinal (+) presente na fórmula (Fig.1) não deve denotar adição ou somatório, mas mostra que a barra do recalque que divide o sistema inconsciente do sistema consciente, ou que divide o significado do significante, é atravessada. Há um atravessamento da barra que é a própria substituição de um termo por outro. “O sinal +, colocado entre ( ), manifesta aqui a 166 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska transposição da barra ─, bem como o valor constitutivo dessa transposição para a emergência da significação” (LACAN, 1998, p.519). f ( S’) S ≡ S (+) s S Figura 1: Estrutura da metáfora Fonte: LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.519. Neste ponto, a metáfora atesta uma rede de significantes, em que um significante vem ocupar o lugar de outro significante e isso produz um sentido. É nessa substituição que reside a condensação na medida em que substitui o pensamento onírico latente pelo conteúdo manifesto dos sonhos. Nosso propósito, nesse texto, não é o estudo (aprofundado) do sonho, mas sim mostrar como os mecanismos presentes no sonho podem conduzir à relação da metáfora com o sentido. Se o sonho é a via régia para o inconsciente, ele pode esclarecer a relação da metáfora com a condensação, em que se produz o sentido. 3. O sintoma e o sentido A introdução do conceito de metáfora remete, como já foi dito, ao sentido, pois a metáfora implica em produção de sentido. O sonho, na psicanálise, não é o único que faz metáforas, de certo modo todas as formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, chistes, sintoma) ─ que Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 167 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA são produzidas na transposição de pensamentos latentes no inconsciente em conteúdos manifestos na consciência ─ são metáforas que produzem um sentido como efeito. Para melhor explorar esta relação, iremos tomar o sintoma como metáfora, pois para Lacan (1998, p.532) “o sintoma é uma metáfora, quer se queira ou não dizê-lo a si mesmo (...)”. Se o sintoma é uma metáfora, ele também produz sentido; essa significação que se produz no atravessamento da barra do recalque, que se produz na substituição paradigmática de um termo por outro, em um tempo sincrônico, cujo efeito roça a poesia. Nas palavras de Lacan (1998, p.522): O mecanismo de duplo gatilho da metáfora é o mesmo em que se determina o sintoma no sentido analítico. Entre o significante enigmático do trauma sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a centelha que fixa num sintoma ─ metáfora em que a carne ou a função são tomadas como elemento significante ─ a significação, inacessível ao sujeito consciente onde ele pode se resolver. A origem etimológica de sintoma remete à ideia de sinal, inclusive o termo sintoma é tomado no campo médico como o sinal de alguma infecção ou patologia. Para a Psicanálise, o termo sinal remete classicamente à angústia, pois para Freud (1926 [1925]) a angústia é um sinal de que algo incomoda, para dizer grosso modo. É interessante notar que no texto, Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926 [1925]) também situa o sintoma como um sinal, porém acrescenta o fato desse ser um substituto de uma satisfação. “Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual [pulsional] que permaneceu em estado jacente; é uma consequência do processo de repressão” (FREUD, 1926 [1925], p.95). Dessa forma, temos tanto a angústia 168 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska quanto o sintoma como um sinal, e o sintoma também aparece como um substituto de uma satisfação pulsional: “(...) o sintoma é uma satisfação substitutiva; está posto no lugar de outra coisa [substituto]” (HARARI, 2008, p.166). Isso remete à proposta de Lacan (1998) que é entender o sintoma como uma metáfora, em que nesta também está em jogo uma substituição. Dessa forma, pode-se pensar, por um lado, o sintoma como uma metáfora, por ser uma substituição, e, por outro, quase análogo, como sinal, e aqui cabe entender sinal como significante, aquilo “(...) que representa um sujeito para um outro significante” (LACAN, 1988, p.197). Em termos lacanianos, será necessário precisar que este sinal não é um signo, como poderia ser entendido dentro de um escopo semiótico, pois o “(...) signo se prende ao fato de ele representar algo para alguém” (LACAN, 1988, p.197). Neste sentido, o signo propõe uma união entre o representante e aquilo que é representado, união essa que Saussure (1983) representava através de círculos em torno do signo e das setas paralelas que remetiam a um enlace entre o conceito e o seu representante (imagem acústica). Figura 2: O signo em Saussure Fonte: SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1983. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 169 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA A noção de significante quebra com isso quando trata de um deslizamento de um significante para outro, ou seja, a significação, diferentemente do signo, não está na união entre o conceito e a imagem acústica, mas no deslizamento de um para outro significante. A produção de um possível efeito de sentido, no significante, fica atrelada a esse deslizamento de um representante (significante) para outro representante. S s Figura 3: A subversão do signo saussuriano. Fonte: LACAN, J. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.500. É por este sinal ser um significante que se pode pensar no sintoma como uma metáfora. O sinal em questão é o próprio sintoma, é um significante metafórico sinalizando que algo não vai bem. O significante promove um deslizamento que propicia que o sintoma seja esse “substituto de uma satisfação pulsional”, como dizia Freud (1926 [1925], p.95), ao mesmo tempo em que a característica central de uma metáfora é a substituição. Portanto, sintoma e metáfora se conectam nesse aspecto da substituição processada pelo significante. Para entender melhor esse processo, partiremos para duas argumentações correlacionadas, uma que coloca o sintoma como um significante, e outra que o coloca como uma metáfora. 170 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska O sintoma como um significante remete à concepção de inconsciente e de suas formações. Do inconsciente nada sabemos, somente temos acesso às suas formações. É através das formações do inconsciente que se pode saber algo a seu respeito. Afinal, como salienta Freud (1915, p.171), “Como devemos chegar a um conhecimento do inconsciente? Certamente, só o conhecemos como algo consciente, depois que ele sofreu transformação ou tradução para algo consciente”. O inconsciente em seu estado “puro” é inacessível, mas sabemos de sua existência através das suas formações. Esse inconsciente “puro” é apenas um conceito, um lugar teórico; algo que Freud (1915, p.179) conclui após uma ampla e minuciosa exposição: “(...) será útil lembrar que, no pé em que as coisas estão, nossas hipóteses [sobre o inconsciente] nada mais exprimem do que ilustrações gráficas”. Em outras palavras, o inconsciente ─ enquanto mecanismo e estrutura ─ é uma ilustração gráfica, um lugar teórico, um conceito que serve de base para sustentar a experiência clínica da realidade inconsciente posta em ato na análise através das suas formações. Para Freud (1915), o aparelho psíquico é constituído de dois sistemas: o sistema Inconsciente (Ics.) e o sistema Consciente (Cs.). O sistema consciente inclui o Pré-consciente (Pcs.), que se situa entre o inconsciente e o consciente. Para Freud, uma representação [Vorstellung] inconsciente somente passaria para o sistema Pcs. se esta representação fosse suportável para esse sistema. Caso contrário, ela sofreria um (re)calque para continuar no sistema Ics. No entanto, tudo o que é recalcado volta sob a forma de disfarces ou com alguma transformação para passar ao sistema Pcs-Cs. Se uma determinada representação foi recalcada no Ics., este irá tentar transformá-la, transfigurá-la, para que ela possa passar pela barreira da censura, responsável pelo recalque e situada entre o Ics. e o Pcs-Cs. De modo mais preciso, não é a representação [Vorstellung] que passa de um sistema a outro, pois a representação inconsciente é inacessível, fica recalcada, em seu estado “bruto”. Ademais, esta Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 171 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA representação seria insuportável para a consciência. O que passa então de um sistema a outro é o representante da representação [Vorstellungsrepräsentanz], ou seja, um derivado da representação inconsciente. Lacan (1988, p.206) insiste nisto “(...) que o que é recalcado não é o representado do desejo, a significação, mas o representante ─ traduzi, literalmente ─ da representação”. E, mais adiante, esclarece que “o Vorstellungsrepräsentanz [representante da representação] é o significante binário.” (p.207). O representante da representação é o derivado da representação reprimida que ultrapassa a repressão e chega ao sistema consciente. Esse representante da representação também é uma formação do inconsciente, pois é através dele que se sabe algo sobre o inconsciente. Em outras palavras, não é o inconsciente, propriamente dito, do ponto de vista topográfico, que é trabalhado em análise, mas as suas formações. Entre essas formações encontra-se, além do sonho que já foi aludido, o sintoma que também é um representante da representação, ou seja, um significante. 4. O sintoma e a metáfora Freud (1917[1916-17]) apontava para o fato de o sintoma estar atrelado ao sentido e que o neurótico sofre de reminiscência, de um excesso de lembranças, de um excesso de sentido sobre essas lembranças. Na Carta 105, Freud (1899, p.330) expõe que “(...) o sentido do sintoma é um par contraditório de realizações de desejos”, pois ao mesmo tempo em que dá um sentido para o sintoma, percebese que esse sentido não faz nenhum sentido, ou seja, o sentido que mantém o sintoma é ao mesmo tempo um sem sentido, na medida em que ele serve tão somente para o gozo do neurótico. Freud (1917[191617]) mostra que o sentido para formar o sintoma é inconsciente, e que nenhum sentido consciente forma sintoma. “O sentido dos sintomas é desconhecido para o paciente, e que a análise regularmente demonstra que esses sintomas constituem derivados de processos inconscientes” (FREUD, 1917[1916-17], p.286). Logo, do ponto de vista da 172 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska consciência, o sintoma não faz nenhum sentido, é inclusive o que as pessoas dizem quando não sabem porque agem de uma determinada forma ou alimentam determinado sintoma. Já do ponto de vista inconsciente, há um sentido, que por mais absurdo que possa parecer, é ele quem opera. O sonho também se processa de igual forma, pois quando um sonho é lembrado por vezes parece ser sem sentido algum, no entanto, seu “sentido” é inconsciente. Por isso, para Freud (1901, p.253), sempre há uma causalidade de ordem psíquica, tal como numa passagem de Psicopatologia da vida cotidiana em que ele acredita “(...) no acaso (real) externo, sem dúvida, mas não em casualidades (psíquicas) internas.” O sentido contribui para a formação do sintoma, pois como foi dito anteriormente, o sintoma, como metáfora, produz sentido ao mesmo tempo em que é produzido por um “sentido” inconsciente, mesmo que para a consciência isso seja absurdo ou sem nexo. A presença ou a falta, assim como o excesso e a escassez de sentido remetem igualmente a algo em torno do sentido. A título de exemplo, pode-se pensar que na neurose obsessiva os pensamentos (obsessões) são “(...) carentes de significação, ou simplesmente assunto sem importância para o paciente; frequentemente são de todo absurdos e, invariavelmente, constituem o ponto de partida de intensa atividade mental que exaure o paciente e à qual ele somente se entrega muito contra sua vontade” (FREUD, 1917[1916-17], p.266). Dessa forma, é bizarro como o Homem dos Ratos (FREUD, 1909b) por várias vezes retira e coloca a pedra da estrada por onde sua amada irá passar, num ritual em que ele mesmo duvida e ao mesmo tempo acredita que aquilo possa fazer algum sentido. O excesso de sentido ─ colocar a pedra na estrada, mas a carruagem onde estava Gisele [a amada] poderia tombar, e por isso retirar a pedra ─ transborda em um sem sentido, pois é absurdo ficar retirando e colocando a pedra na estrada. Tal como um sonho, o sintoma pode se apresentar como algo desconexo e absurdo, mas pleno de significações inconscientes. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 173 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA Na Conferência XVII ─ O Sentido dos sintomas, Freud (1917[191617]) apresenta como exemplo o caso de uma mulher que corria desde seu quarto até o quarto contíguo, lá soava a campainha chamando a empregada; dava algum recado ou dispensava sem maiores explicações e depois corria de volta para seu quarto. Esta senhora não sabia por que fazia isso, mas a análise do caso revelou que havia uma conexão com a sua noite de núpcias em que o marido corria de um quarto ao outro e fazia tentativas de manter relações sexuais com ela, mas não conseguia por ser totalmente impotente. Na manhã seguinte, ele derrama uma tinta vermelha sobre o lençol para que a empregada pudesse perceber o ato sexual que não aconteceu. Dessa forma, correr de um quarto a outro tem a ver com a cena do marido na noite de núpcias, assim como chamar a empregada é uma forma de mostrar a ela o lençol manchado. Nesse mesmo texto, Freud explora outros exemplos que denotam a íntima relação do sentido com o sintoma, ainda que seja por um excesso de sentido que faz parecer o contrário, ou seja, a sua ausência. Neste ponto, é importante marcar no mínimo duas articulações do sentido com o sintoma, pois se por um lado ele produz significação, na sua função de metáfora, por outro, ele é produzido como um significante oriundo do inconsciente. O sintoma é, tal como os sonhos, os atos falhos e os chistes, uma formação do inconsciente, ou seja, um derivado do inconsciente que se constitui como um representante da representação [Vorstellungsrepräsentanz] inconsciente. Nos termos de Lacan (1988), é um significante que representa o sujeito para outro significante. Nesse sentido, o sintoma é um significante que está em cadeia na associação livre, um significante que constitui o sujeito do discurso. Pode-se pensar em outros exemplos em que esse significante assume essa função de um representante. No Pequeno Hans (FREUD, 1909a), por exemplo, o cavalo não é efetivamente a causa da fobia de Hans, mas aquilo que ele representa, funcionando como um representante de uma 174 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska representação inconsciente. O cavalo é uma metáfora de algo; o que causa a angústia fóbica não é esse objeto da realidade (o cavalo), mas a maneira como ele funciona metaforicamente na condição de significante. Dessa forma, há uma série de outros exemplos em que o sintoma é o significante e uma formação do inconsciente. O efeito de sentido sobre a vida de um neurótico não se restringe à formação dos sintomas, mas sob este aspecto também está presente na tentativa de entendimento desse sintoma. O neurótico chega à análise em busca de um sentido para o seu sintoma, ou até mesmo, em busca de outros sentidos, porque provavelmente já agregou algum ao seu sintoma. Nesse momento, inclusive, reside o corolário das psicoterapias em que o terapeuta dá um sentido, uma explicação e até mesmo conselhos sobre como o sujeito deve fazer em sua vida, levando assim a que o paciente se identifique com a sua maneira de ser e de fazer. O ponto central dessa discussão é que o “(...) neurótico tem como condição de estrutura o fato de que no seu horizonte vá surgir uma pessoa a quem ele vai atribuir um saber” (HARARI, 2008, p.201). Desse movimento em busca de sentido ou de um saber sobre si ou sobre o seu sofrimento, o seu sintoma, o neurótico mobiliza uma atribuição de saber ao Outro, um Outro que não teria passado pela castração e que por isso tem um saber completo. Ele supõe que há um Outro que sabe o porquê ele sofre, sabe o porquê de seu sintoma. Com isso inicia-se a transferência, motor fundamental da análise. O psicanalista colocado pelo analisante neste lugar que Lacan (1988) denominou de Sujeito Suposto Saber (S.s.S.) não irá exercer esse saber como se o possuísse, permitindo que o saber se desloque para o próprio sujeito. Não é o analista que detém algum saber sobre o sujeito, mas ele próprio; e a transferência, mantida nesta suposição, deve promover um movimento para surgir o saber que está no sujeito. Para Freud (1905[1904]) este movimento supõe um saber no analisante, ou seja, o analista vai em busca de um saber, inconsciente evidente, no Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 175 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA analisante, pois esse saber está nele. Para Harari (2008, p.163), “Aí está o truque: o analista se colocar como uma pessoa que se oferece para receber essa atribuição do saber. Mas, qual vai ser o percurso dessa terapia? Tratar de sair desse lugar, não se aproveitar disso, mas começar por esse equívoco paradoxal que é o início de nossa psicanálise”. Dessa forma, Freud (1905[1904], p.247) compara a análise à escultura, baseado em Leonardo da Vinci, dizendo que esta “(...) funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida”; ao contrário da psicoterapia e dos métodos sugestivos que funcionam per via di porre, ou seja, acrescentam sentidos, encarnam o saber e identificações puramente imaginárias. Para Freud (1905[1904], p.247), “a terapia analítica não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e para esse fim preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da ideia patogênica, cuja eliminação é sua meta”. Desta forma, o analista não coloca sentidos, não infla o sintoma de saber, mas busca a retirada desses sentidos, assim como a retirada do sintoma, busca uma quebra nessa relação. Acerca do trabalho do psicanalista, Remor (2008, p.218) pergunta e propõe uma resposta: A interpretação tem sentido ou procura a sua quebra? Na psicanálise quebra-se esse equilíbrio [adaptativo do sintoma neurótico] mediante recursos linguageiros. O termo “explicar” que envolve diretamente a questão do sentido, deu lugar à famosa frase, atribuída a certa maneira de se referir ao mestre vienense: “Freud explica”. A maneira de oferecer escuta psicanalítica àqueles que nos procuram como destinatários de certo saber, certamente, não é explicativa, mas implicativa, à medida que possamos nos implicar no que nos é demandado. Essa é a responsabilidade ética, à medida que a ética da psicanálise se 176 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska constitui pelo modo como o psicanalista não cede ao desejo do analista. Lacan (1999) irá situar o sentido, no nó borromeo, na intersecção entre o simbólico e o imaginário, pois para ele, o sentido está entre os dois registros. Ainda que a experiência analítica possa conduzir o sujeito ao não sentido, mesmo aí, o sentido pode estar presente, ainda que seja pela sua ausência. O eu é, nas palavras de Remor (2008, p.221), uma “máquina de fazer sentido, o eu dá coerência ao fantasma, à realidade, numa aparência de que tudo está em seu lugar”. Logo, a psicanálise não trabalha com o eu, mas com o sujeito, com a divisão do sujeito. O sentido que o eu mantém faz com que se sustente o sintoma. “O analisante ama a seu sintoma como a si mesmo” (HARARI, 2008, p.166) e faz esforços “(...) para incorporar o sintoma, e aumenta a fixação deste último [pois] esses laços conciliatórios entre o ego e o sintoma atuam do lado das resistências e que não são fáceis de afrouxar” (FREUD, 1926[1925], p.102). O eu vê um ganho proveniente do sintoma, por isso o eu “(...) gostaria de incorporar o sintoma e torná-lo parte dele mesmo” (FREUD, 1926[1925], p.102). Mas o sintoma não apraz plenamente o eu, ele provoca, no mínimo, um mal-estar e faz exigências de satisfação que o obriga a corresponder a essas exigências num gozo que mistura sofrimento e prazer. O eu produz sentido, infla o sintoma de sentido, buscando alguma forma de gozo, de modo que o papel da análise é justamente fazer a quebra do sentido. Não se trata, na análise, de produzir mais sentido, mas de promover o efeito de quebra. O próprio termo análise remete a isso se entendemos o sufixo lise como quebra, tal como na química concebemos a hidrólise, como a quebra da molécula da água em dois hidrogênios e um oxigênio. Então, a análise é um corte, uma secção e Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 177 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA não uma (re)significação da vida do sujeito, o que seria uma nova significação. Não se trata de significar, nem de resignificar, isso o próprio inconsciente produz nos sonhos e sintomas, como foi visto, de modo que a análise tenta romper com o sentido, para que o sujeito possa viver de modo mais livre. Sabemos que ninguém vive sem sentidos, o eu se encarregará de produzir sentido, mas o sujeito já não será mais o mesmo, algo se passa com o sujeito em que o sentido que se produz após a experiência de análise não é mais o mesmo, o sujeito se produz de forma diferente. Enfim, na análise não se trata de produzir metáforas, isso o sujeito já faz por sua própria sujeição à linguagem, mas de desconstruí-las, desfazer as metáforas, desinflando o eu de sentido, e com isso o sujeito poder viver de forma a não gozar com o sentido sintomático, mas de gozar da vida sem excessos de significação. 5. Os limites da metáfora Pensar a quebra de sentido na metáfora é também, de certo modo, conceber os seus limites. Se o analista busca o sem sentido, o rompimento com o sentido, o faz por um efeito que não é o da produção de sentido, mas o de seu fracasso. A metáfora na psicanálise, enquanto produtora de sentidos, deve ser exaurida nos seus limites. O que está em jogo a partir de um determinado momento na teoria lacaniana é aquilo que Lacan nomeou de o real da língua, como aquilo que encontra um limite no campo simbólico da representação da linguagem. O real da língua é tomado por Lacan como aquilo que está para além do campo simbólico e que toca, ainda que por fragmentos, em um real que não cessa de não se inscrever no campo da linguagem. Esse real é um impossível, cujas palavras não dão inteiramente conta, que escapa aos processos de simbolização. A metáfora como um processo de substituição de um termo por outro, ou de um pensamento inconsciente por um conteúdo manifesto, 178 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska mostra a representabilidade do inconsciente, certa metaforicidade que se traduz numa cadeia significante em que um termo toma o lugar de outro formando uma cadeia. O que se manifesta é um inconsciente representacional, equivalente a dizer de um inconsciente metafórico, já a proposta de Lacan, ao conceber um real da língua, toca nos limites desse representacional; ou seja, até que ponto o inconsciente funcionaria como uma representação metafórica? Até que momento o inconsciente é uma linguagem ou é estruturado como uma linguagem? Até o momento em que a linguagem encontra seus limites na própria estrutura, ou seja, até o ponto em que a estrutura do inconsciente funciona como uma linguagem muito específica. Essa uma linguagem específica pode ser entendida como a lalangue. Uma linguagem que não é uma língua, nem mesmo um idioma, mas uma linguagem operada na clave do real da língua, que constitui o sujeito. A lalangue, para Lacan, surge de um ato falho, em que ele queria se referir ao dicionário Lalande e comete um lapso dizendo lalangue. A partir disso, começa a teorizar formulando o conceito de lalangue. Para Lacan, a lalangue dite maternelle, não se refere à língua enquanto idioma, mas uma língua singular de cada sujeito, inscrita a partir dos restos fonemáticos do cantarolar e da lalação da mãe. Não é uma língua materna, mas a “língua” da mãe enquanto restos vocálicos, “manhês”, fragmentos de real, pedaços de sons que constituem um real da língua. 6. O transbordamento da metáfora nos conceitos de forçage e chiffonage Ao concebermos a lalangue como o real da língua, estamos tocando nos limites da metáfora. Isso abre possibilidades para articularmos com uma noção lacaniana que Harari (2007) intitulou de uma violência da/na linguagem, que consiste basicamente em fazer a língua soar para além do sentido, fazer torções no significante para que a língua possa fazer despertar algo de um real da língua que se situa para além da metáfora, nos seus transbordamentos. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 179 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA Diante dessa violência com a linguagem, surgem dois conceitos forjados nos últimos seminários de Lacan, forçage e chiffonage. O forçage é uma violência na e da linguagem e tenta produzir um significante desatrelado de sentido. No Seminário 24, Lacan (1977, 19/04/77) acrescenta que “é o forçage por onde um psicanalista pode fazer soar outra coisa que o sentido”, pois o sentido obstrui e o forçage abre, rompe, quebra. O termo forçage não possui inscrição no léxico da língua portuguesa; a sua aproximação com forçamento perde a riqueza de sua potência. Em francês, forçage significa: “Cultura de plantas antes da estação” (MORVAN, 1995, p.305, tradução nossa), também pode ser entendido como fora da estação ou num lugar inapropriado. Talvez essa intradução do termo soe bem condizente com a proposta do Seminário 24, em que se aposta na intradução como forma de uma transliteração, para além da tradução, e de tomar o significante ao pé da letra. Trata-se de conceber o termo forçage na sua violência da, na e com a linguagem, roçando o sem sentido de pontas de um real impossível de ser simbolizado. Lacan trabalha um além da palavra, marca os limites da interpretação que são ultrapassados por um saber fazer da ordem de um, ou como um, forçage que promove uma violência da e na linguagem, estropiando ali com a metáfora sintomática, com a linguagem fálica do sintoma. Trata-se de estropiar a palavra, apostando que toda palavra é valise, em que há diversas palavras/significantes dentro dessa mala. É necessário violentá-la para enxotar o sentido que serve ao gozo sintomático ─ a jouissance (jouis-sens), o gozo com o sentido do sintoma. O forçage é aquilo que tenta quebrar, com a violência da linguagem, com o real da língua, a metáfora sintomática, e transformar o gozo fálico do sintoma em um gozo produtivo, um gozo da vida. O sintoma que foi produzido pela linguagem será quebrado na forja da linguagem. Lacan (2007, p.39) mostra que “(...) é por estar engajado na linguagem que o sintoma subsiste, ao menos se julgamos poder 180 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska modificar alguma coisa no sintoma pela interpretativa, isto é, jogando com o sentido”. manipulação dita Essa violência da linguagem é apontada por Roberto Harari (2007) em seu livro Palabra, violencia, segregación y otros impromptus psicoanalíticos, ao mostrar que James Joyce promove uma outra escrita com a língua a partir dos restos sonoros e não mais o significante simbólico, carro chefe da metáfora. É isso que Harari tenta enfatizar, pois para ele, na clínica, trata-se de fazer a língua ecoar outra coisa. A violência da linguagem promove um ato, um forçage que insiste na transliteração da letra, na transgressão do significante e no eco da voz como forma de esvaziar o sentido da interpretação para produção do sinthome1 e uma quebra da metáfora sintomática. Para além da interpretação, trata-se de saber fazer ali com aquilo que gerava o sintoma para que possa gerar algo de um sinthome. Podemos trazer um pequeno fragmento clínico como forma de tentar ilustrar a violência com a linguagem através de um jogo homofônico. Nessa violência com a linguagem aparece algo que não é tão somente uma interpretação, nem somente uma construção ou uma intervenção situada unicamente no plano simbólico-imaginário. Trata-se, no fragmento clínico, de um jovem, filho de “mãe solteira”, que foi criado pelos avós. O avô muito rígido e exigente sempre lhe cobrava uma postura ética e moral frente à vida, isso significava que além de conselhos, colocava uma ênfase especial no sentido de que ele deveria ser trabalhador, responsável, namorar e casar com uma moça de família, não ter vícios e conseguir prosperar financeiramente com o seu trabalho. Em análise, o jovem constantemente se reportava a esse avô/pai e ao conflito com as exigências desse supereu voraz, que lhe fazia exigências quase impossíveis para seu ser. Numa determinada sessão, ele falava de um episódio que havia acontecido em sua vida e depois de um momento de silêncio diz: “Vou me ferrar!” e isso soou Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 181 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA homófono a: “Vô me ferrar!”. O que o analista intervém, ao modo de um forçage, com: “(O) vô (vai) me ferrar?”. Isso marca uma intervenção na clave do forçage, ou seja, uma transliteração da letra, um fazer soar algo para além da palavra. O fragmento mostra como não se trata de um ato falho, por exemplo; pois, o analisante não cometeu nenhum lapso, não houve uma brecha (abertura/lapso) por onde o inconsciente se manifestasse. O analisante, no plano imaginário da consciência, tão somente expressa uma preocupação com o ocorrido sobre o qual estava falando (e que não tinha relação direta com seu avô), mas por um forçage foi possível fazer soar um significante outro, correspondente àquilo que Lacan (2007, p.92) marca no Seminário 23: “o significante se reduz (...) a uma torção de voz”. O fragmento aponta então para uma torção da voz, para soar uma outra coisa, um significante novo, que corta o fluxo sonífero do discurso, pois para Lacan (1977[2000], tradução nossa), na classe de 19/04/1977, do Seminário 24, “um discurso é sempre adormecedor, salvo quando não se o compreende ─ então desperta (...) o despertar é o real sob seu aspecto do impossível, que não se escreve senão com força ou pela força”. O despertar então é para o sem sentido, tal como Freud (1900) advertia que o despertar não era o acordar, uma vez que a vida de vigília é sonífera, mas que o despertar acontecia diante do real onírico. Para Harari (2001, p.285, itálico do autor), essa forçage mostra que a operação “(...) resulta não negociável, não substituível, não metaforizável: singular, então, e necessária”. Trata-se de poiésis, não no sentido do sujeito fazer poemas ou se tornar um poeta, mas ser um poema, produzir algo de inventivo em sua vida. Essa invenção não se dá na clave da interpretação da metáfora, pois nessa o sentido impera produzido na clave da linguagem. O sinthome invoca uma outra operação, por isso mesmo o que se produz a partir daí não é aquele significante (no sentido do representante de uma representação), não é 182 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska uma metáfora (tal como é o sintoma), não é o plano imagináriosimbólico (tão plástico quanto elástico), nem mesmo uma (re)significação (tão regozijada nas psicoterapias), mas se produz uma invenção. A (des)ordem da invenção sinthomática é um real que encerra o império do sentido, inscrevendo um gozo outro, não significante, não localizado, não específico, não restrito ao significante, mas dissipado, fluído, inventivo, que liberta o sujeito do sintoma, que quebra as amarras simbólico-imaginárias. No fragmento clínico, a torção da voz rompe com o fluxo de consciência (no sentido do episódio que estava sendo contado e que não era o principal) e vem à tona o significante vô (não como representante da representação inconsciente, mas como um efeito da torção da voz). Esse significante aponta para a pedra angular da constituição do sujeito, pois está em jogo uma nominação, muito mais do que a nomeação (dar um nome), mas uma nominação no sentido de que o nome vô diz algo muito especial para o sujeito. A intervenção em cena também aponta para a chiffonnage que é introduzida por Lacan (1977), no Seminário 24, como um amarrotamento, enrugamento da palavra, tentando estropiá-la. Na classe de 17/05/77, do referido seminário, ele esclarece que esta operatória “(...) consiste em se servir de uma palavra para fazer um outro uso que aquele pelo qual ela é feita” (LACAN, 1977, tradução nossa). A palavra chiffonnage vem de chiffonner, que significa amarrotar, enrugar, [froisser], também significando comprimir, submetendo a uma pressão violenta. Para Harari (2003, p.150-151), há uma referência ao sifão [siphon], que é uma garrafa onde se introduz água gasosa sob pressão e que contém um dispositivo em seu gargalo que, se apertado, faz jorrar o líquido de uma maneira forte, repentina. Sifão também é um tubo enrugado que geralmente serve para fazer a conexão entre a pia e a saída do esgoto em uma edificação. Contudo, pode-se também levar em consideração derivativa a palavra chiffon, que significa trapo velho, farrapo (amarrotado, sem dúvida). Para além das etimologias e origens da palavra, a utilização que Lacan faz do termo é Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 183 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA uma referência ao modo do analista incidir na sessão, em que se trata de amarrotar a palavra. Numa incisão breve, repentina, o analista faz jorrar desse amarrotamento um significante novo, “(...) um significante que não teria, tal como o real, nenhuma espécie de sentido (...) isso seria fecundo (...) um meio de sideração, em todo caso”. (LACAN, 17/05/77). A chiffonnage tenta expropriar o sentido da palavra ao invés de dar-lhe outro, por isso essa intervenção em forma de jorro, repentina, e não as longas “intervenções” (quase sempre explicativas) do “analista”. Lacan mostra uma chiffonnage “traduzindo”, ou melhor, transliterando unbewusst [inconsciente] em une-bévue [uma equivocação]; que não é a mesma coisa, o sentido fica expropriado da palavra por esta estropiação, em que não se produz um outro sentido, mas um significante novo através de uma translinguisticidade. Vocês poderiam, nesse momento, questionar: Afinal, não seria um outro sentido que tomou o lugar do primeiro? A intervenção não substituiu o significante vou (me ferrar) por vô (me ferrar), ou seja, não estaria aí uma substituição (sintomática), uma re-significação ao modo das psicoterapias que inflam o sujeito de significações e (re)significações? Ao nosso entender, não. Não há nenhum sentido no avô querer ferrá-lo, isso é um sentido que o sujeito construiu. O sujeito construiu, implantou e implementou esse sentido, fazendo das recomendações/preocupações do avô ─ típicas de pai, diga-se de passagem ─ um supereu insatisfeito, sempre lhe cobrando e exigindo mais ainda (encore). Esse é um sentido atribuído pelo sujeito, em que ele atribui um gozo absoluto a esse pai, que nunca está satisfeito com as suas conquistas, buscando e exigindo mais e mais. Esse gozo do Outro, como uma espécie de pai da horda primitiva, que tudo tem e tudo pode, e que nunca reconhece o empenho e a dedicação do filho é uma construção imaginária do sujeito. Esse avô não gozava dessa forma, tampouco o escravizava desse modo. O sujeito implantava a dialética hegeliana do senhor (o avô) e do escravo (ele próprio), e há nele um 184 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Maurício Eugênio Maliska gozo com essa posição, um gozo podre com esse sintoma que o escraviza. O que faz a análise com isso? Tenta quebrar esse gozo. A intervenção colocada na forma interrogativa ─ “(O) vô (vai) me ferrar?” ─ tenta fazer soar um significante outro (vô), não para dar mais um significante e consequentemente mais uma significação na vida do sujeito, isso seria contribuir com a solidificação de um sentido sintomático para o sujeito. A forma interrogativa é justamente para colocar em xeque o suposto gozo desse avô que tudo pode e que a ele só resta se ferrar. É uma tentativa de desfazer esse sentido, mostrar a ele que há um sem sentido nisso que ele tanto alimenta. Cabe questionar o analisante por que ele precisa tanto sustentar que o avô irá ferrá-lo, exigir-lhe coisas quase impossíveis, como se ele fosse incapaz de se ferrar por conta própria, aliás, essa é a forma que ele faz para se ferrar. É necessário atravessar esse fantasma para que esse sintoma cesse, para que ele cesse de se ferrar na vida. Em resumo, aqui também encontramos uma transformação e não uma substituição, ou seja, não se trata de substituir um significante por outro, naquilo que seria a (re)significação das psicoterapias, mas da transformação do significante para que ele possa produzir outra coisa que não o sentido. O que pretendemos demonstrar com esse testemunho é uma outra possibilidade da inscrição da linguagem, situada mais no campo da letra do que no campo do significante. O significante estaria articulado com a metáfora e a produção de sentido, enquanto que a letra, para a psicanálise, denuncia o fracasso da metáfora, em que a produção de sentido não dá conta do real da língua, fazendo com que a metáfora encontre os seus limites e transborde em um sem sentido. A letra funciona como uma torção do significante, desatrelada do significado, tangenciando os limites do sentido para transbordar no sem sentido do real da língua e da quebra, ainda que parcial, com o campo simbólico. Esse efeito é capaz de fazer a palavra soar outra coisa e não o sentido. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 185 DA CONDENSAÇÃO FREUDIANA AO FORÇAGE/CHIFFONAGE LACANIANO: O TRANSBORDAMENTO DA METÁFORA NA TEORIA PSICANALÍTICA Operar isso na clínica exige fazer torções, quebras e isso não se passa em intervenções explicativas e ou contemplativas, mas intervenções que possam gerar uma outra articulação entre a metáfora e o seu transbordamento. Notas 1 Conceito formulado por Lacan (2007) no seminário homônimo de 1975/76. Trata-se da grafia arcaica da palavra sintoma, em francês, mas que Lacan conceitualiza como um marcador do fim da análise, na medida em que o Sinthome não é mais o sintoma, mas, grosso modo, aquilo que se pode fazer com o que o gerava. Referências bibliográficas FREUD, S. (1926[1925]). Inibição, sintoma e ansiedade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ______. 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Abstract: Starting with a critical review that make Deleuze and Guattari about the use of images in the writings and drawings reproduced in Narrative of a Child Analysis, by Melanie Klein, the authors reflect on the place of metaphor in the speech of this analyzed child about desiring life, intoxicated with Oedipian metaphors. They highlight the role of metaphor in the production of the alleged psychoanalytic intoxication. Introdução Na história da filosofia há um subtexto pouco explorado, o qual diz respeito a diferenças de grande porte entre os pensadores que são adeptos da metáfora e aqueles que são contra ela. Essa divergência não Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 189 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) toca o uso da metáfora como figura de linguagem, se refere, antes, ao lugar que ela ocupa quanto à operação conceitual característica do pensar. Para Paul Ricoeur (1913-2005), por exemplo, no oitavo estudo de seu livro, Metáfora Viva, a linguagem se encontra imanente à própria estrutura do real na base de uma “metafórica inicial”, de modo que a “articulação conceitual (...) encontra no funcionamento semântico da enunciação metafórica sua possibilidade” 1, sendo que esta, então, realiza uma transposição semântica cujo movimento é o “dar forma” abrindo novos campos de significado e, portanto, proporcionando que novas ideias surjam. Já, em uma situação diametralmente oposta, e sem obviamente negar o recurso da linguagem à metáfora, pensadores como Deleuze (1925-1995) e Guattari (1930-1992) creem que a centralidade conferida à metáfora destitui o conceito de sua criação própria e com isso o pensamento perde o movimento do real. Para Deleuze e Guattari, os conceitos são criações e por isso eles não podem depender da função de dar forma, própria à metáfora, pois então os conceitos seriam latentes à linguagem ou estariam prefigurados como produtos linguísticos. 2 Para Deleuze e Guattari, o conceito é imanente à realidade, porém, essa realidade não é imanente à linguagem, como o é para Ricoeur, de forma que o conceito é necessariamente extralinguístico. Apesar da exterioridade do conceito, obviamente, há uma prática linguística própria à filosofia, como mostra Zourabichivili 3. Porém, a fim de fazer jus à imanência em seu caráter extralinguístico, em Deleuze, a prática linguística da filosofia precisa efetivar-se em uma escrita literal e não pode recorrer, em princípio, à metáfora, pois tem de dar-se ao pé da letra4. Quando Deleuze e Guattari, por exemplo, falam em máquinas desejantes para definir a dinâmica do inconsciente, não se trata de uma metáfora que faz uma analogia entre a máquina e o modo de operação do desejo; eles querem dizer que o desejo produz a realidade de seus objetos maquinando, isto é, cortando e recortando fluxos, códigos e resíduos da realidade, literalmente, através de sínteses de elementos 190 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues concretos que são descritas como “síntese conectiva”, “síntese disjuntiva” e “síntese conjuntiva”.5 Obviamente, tal cláusula inclui um longo espectro de questões desde, como vimos, a própria concepção do pensar, o conceito de conceito, a escrita filosófica, até o lugar da linguagem no pensamento de Deleuze – sua filosofia da linguagem. Afeta, igualmente, um possível conceito deleuziano de metáfora, pois se ele critica seu uso como operação conceitual não quer dizer que a proscreve como conceito. De fato, a concepção deleuziana de metáfora deve estar radicada em outra repartição entre o próprio e o figurado, diversa daquela, por exemplo, estabelecida pela hermenêutica de Ricoeur 6. Obviamente, se não podemos nos dedicar neste momento a todo este espectro de questões, por si só já um programa de estudos com várias etapas, é válido propor um atalho para acompanhar in loco a luta de Deleuze contra a concepção usual de metáfora. Com efeito, Deleuze procurou rastrear o mau uso da metáfora em alguns campos de conhecimento, principalmente naqueles em que a utilização da linguagem é fundamental, como a psicanálise. O interessante a notar, neste caso, é que há certa e benéfica inversão pragmática, cara ao pensamento deleuziano: o inconsciente como objeto e as práticas terapêuticas relativas ao mesmo requerem um conceito renovado de inconsciente, e nessa medida a metáfora deve ser surpreendida em seu uso negativo e, então, a partir dessa base de dados, certos problemas de teoria linguística são apontados. Mas, em que sentido pode haver um mau uso da metáfora pelas teorias linguísticas? Deleuze e Guattari7 afirmam que Lacan faz uma crítica da linguística em nome do inconsciente. Trata-se de uma crítica que tem caráter histórico e age em uma dupla frente. De um lado, a teoria linguística se engana ao conferir caráter de universalidade a um regime linguístico que é, na verdade, relativo e datado. Por isso, Deleuze e Guattari Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 191 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) afirmam que a teoria da linguagem que permeia o inconsciente freudiano fora produzida em um regime sócio-histórico chamado por eles de imperial. Este, além de possuir um modo de produção próprio, gera um modo de representação do pensamento caracterizado por tornar os significados efeitos, em última instância, de um significante transcendente, por isso as linguísticas – sejam elas teóricas ou pragmáticas - produzidas na perspectiva do regime imperial se inserem em uma espécie chamada de linguística significante. No entanto, historicamente falando, haveria outros três regimes linguísticos: o présignificante, o pós-significante e o contra-significante8. De outro lado, no inconsciente freudiano, não por acaso, essa exacerbação linguística do significante propaga-se através de uma inflação psicanalítica calcada na metáfora como interpretante de seu regime próprio de signos. A psicanálise, portanto, perfaria uma prática que se vale, em geral, de uma linguística de caráter significante para dar conta do desempenho do inconsciente. Sendo assim, a crítica da linguística desse tipo se estende ao inconsciente, de forma que é justo afirmar que, para Deleuze e Guattari, o caráter histórico foi amputado da dinâmica pulsional elementar. Da mesma forma que esta linguística significante está atada a uma formação histórica determinada que ela escamoteia através da pressuposição de universalidade, o conceito de inconsciente se nutre de certo caráter universalizante que se fecha para o efeito que o mundo histórico tem sobre sua dinâmica. A consequência mais evidente dessa destituição histórica do inconsciente seria a concepção de que ele não seria produtivo por si mesmo, pois efetuaria uma performance meramente representativa como teatro e efeito de um significante central que circunscreve a dinâmica pulsional: Édipo. Sendo assim, os signos derivados da vida desejante do inconsciente nada mais expressariam do que metáforas reprodutoras dessa centralidade do significante central, isolando-a da realidade histórica. 192 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues Embora – admita-se novamente - não tenhamos espaço para explicar a vigência de cada um desses regimes de significante e de que modo um conhecimento e uma prática como a psicanálise o incluem, entendemos que, lançando mão de um exemplo, um caso de psicanálise infantil, explicitaremos a crítica que Deleuze e Guattari fazem a respeito da destituição da dimensão histórica do inconsciente, tanto em seu aspecto expressivo como linguagem, quanto em sua dinâmica pulsional. O olhar não metaforizante que lançamos aqui sobre a criança e sua vida desejante, juntamente com Deleuze e Guattari, visa ampliar a noção de inconsciente infantil, considerando que além das relações familiares, a criança já se relaciona com o meio que a cerca com todas as relações políticas aí implicadas: lugares de gênero, raça e etnia, sexualidade, concepções religiosas, culturais, posição de classe social, de modo que seu inconsciente não metaforiza a realidade para conduzir processos inconscientes; ao contrário, é o inconsciente infantil que opera a realidade como exigência de investimento de sua vida desejante: A criança não espera ser adulta para captar sob pai-mãe os problemas econômicos, financeiros, sociais, culturais que atravessam uma família: pertencer ou desejar pertencer a uma ‘raça’ superior ou inferior, o teor reacionário ou revolucionário de um grupo familiar com o qual já prepara suas rupturas e conformidades.9 E mais ainda, as próprias definições de pai e mãe, bem como família, são construídas neste mesmo caldo e atravessadas pelos fluxos econômicos, políticos e sociais. Assim, “o que a criança investe através da experiência infantil, o seio maternal e a estrutura familiar, já é um estado de cortes e fluxos do campo social no seu conjunto, fluxos de mulheres e de alimentos (...)”.10 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 193 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) A discussão que nos toca realizar neste momento é do quanto o inconsciente infantil fica reduzido às estruturas familiares – o que Deleuze e Guattari chamam de familialismo – em alguns casos da psicanálise infantil. Apontam, ainda, capturas importantes como uma “intoxicação” pelo olhar psicanalítico no momento de afirmação e legitimação desse saber. É fundamental notar a desconsideração de elementos da multiplicidade da experiência desejante elencados pela criança durante a análise em prol de um único foco de relevância para a compreensão do inconsciente, a família. No presente artigo, nos ateremos ao caso do pequeno Richard, de Melanie Klein, trazendo momentos da análise kleiniana, os desenhos da criança e questões apontadas pela esquizoanálise11. 1. Pequeno Richard: intoxicação psicanalítica, mapas e decalques do inconsciente Richard é um garoto de 10 anos analisado por Melanie Klein (18821960) no ano de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, sendo este processo de análise de certa forma paradigmático, pois ele fornece a base empírica para a formulação conceitual kleiniana do complexo de Édipo. Trata-se deum caso extenso, tema do livro Narrativa da análise de uma criança12. Para melhor atender o argumento do presente artigo, trabalharemos com o recorte do caso feito pela própria autora num artigo intitulado “Complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas” (1945)13, na primeira parte em que a autora trata da análise do pequeno Richard. A autora declara que o objetivo da publicação deste caso de análise infantil é “mostrar a influência de certas angústias iniciais sobre o desenvolvimento genital”14. A queixa trazida a Klein diz respeito ao medo alegado por Richard; medo de ir à escola e de estar com outras crianças que o leva não mais querer sair de casa só. Segundo relato da analista, ele demonstrava 194 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues também grande preocupação com sua saúde e às vezes mostrava-se deprimido, embora possuísse vocação para a música e atividades dramáticas, bem como um interesse muito grande pela natureza. Sentiase melhor entre adultos, especialmente mulheres. Klein considera que ele tentava impressioná-las, seduzi-las. Relata ainda a autora que a mãe de Richard tinha uma clara preferência pelo irmão mais velho do garoto e demonstrava muita preocupação com a saúde de Richard, que já havia se submetido a duas cirurgias, circuncisão e tonsilectomia, enquanto seu pai se mostrava pouco participativo de sua educação. O local da análise é o País de Gales, para onde Klein se muda e a mãe de Richard o leva para lá para dar continuidade à análise que ocorria anteriormente em Londres. Certa feita, ao deixar Londres, Richard tem sua casa bombardeada. Tal evento repercute no medo que Richard manifesta quando Klein decide viajar para Londres. Richard temia pela vida de Klein, visto que Londres na época corria realmente sério risco de ser bombardeada e Richard sabe disto, uma vez que está o tempo todo em interação com o que acontece no campo social, como ficará patente em vários momentos do caso. No entanto, Klein superpõe a percepção da realidade da criança, colocando-a em segundo plano ante o aspecto transferencial em curso na análise: Sabemos que ao ir a Londres eu tinha me tornado um objeto ferido em sua mente. Entretanto, eu não tinha sido ferida apenas pela exposição ao perigo das bombas, mas também porque ao frustrá-lo (com a interrupção da análise) eu despertara seu ódio; como consequência, ele acreditava inconscientemente que tinha me atacado. Numa repetição de situações de frustrações anteriores, ele se identificara – em seus ataques fantasiados contra mim – com o perigoso pai Hitler por trás dos bombardeios e agora temia retaliação. Transformei-me, então, numa figura hostil e vingativa.15 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 195 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) É importante lembrar aqui que a transferência na psicanálise se refere à projeção das relações afetivas mais primordiais do paciente sobre o analista. Em geral o paciente projeta uma figura feminina por quem foi cuidado, de forma que a relação terapêutica implica em repetição dessa relação anterior, e por isso, conclui Grosskurth sobre a relação de Richard com Klein, “o relacionamento foi tão firmemente estabelecido porque ela representava sua avó querida, que morrera recentemente”16. Além da transferência, há outros conceitos da teoria kleiniana que aparecerão ao longo do relato do caso. Como visamos refletir sobre a questão da intoxicação psicanalítica através de metáforas, torna-se necessário fazer uma breve apresentação de alguns conceitos da teoria kleiniana. Restringiremos ao que for de maior importância para a discussão que faremos adiante com Deleuze e Guattari acerca do caso, presente em Mil Platôs17, bem como no texto “O que as crianças dizem”18. Klein parte da distinção entre “seio bom” e “seio mau” que se faz na relação da criança com a mãe, quando o bebê percebe que o mesmo seio que gratifica (alimenta), também o frustra, quando sua fome não é prontamente saciada. Diante da impossibilidade do ego lidar com estes dois aspectos pertencentes ao mesmo objeto, ocorre o processo de cisão a partir do qual o bebê considera que sejam seios distintos, objetos distintos: o seio bom e o seio mau. Esta cisão é característica da primeira posição chamada esquizo-paranóide, na qual a principal ansiedade é persecutória. Em seguida, a criança vive a posição depressiva, quando o seio bom e o seio mau passam a fazer parte do mesmo objeto e há então uma integração egóica. No estudo do caso do pequeno Richard, Klein tenta estabelecer uma relação entre a posição depressiva e o complexo de Édipo, a partir da interação entre amor e ódio, considerada pela autora como base do funcionamento mental. Assim, é a resolução do complexo de Édipo que permite estabelecer a integração entre os 196 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues impulsos sexuais e os agressivos nas relações familiares; acordo este que, segundo a autora, é a base afetiva de todas as demais relações do indivíduo. Outra formulação teórica importante para compreendermos o que pretende Klein com suas interpretações sobre o pequeno Richard é sua conceituação das fantasias pré-genitais, que consistiriam em fantasias arcaicas sobre o pênis do pai dentro do corpo da mãe e ainda sobre o interior da própria criança que conteria bebês. É então, a partir deste referencial teórico que o pequeno Richard é analisado. Deleuze e Guattari apontam alguns problemas neste modo de entender a infância, o qual implica em uma prática clínica subsequente. Segundo esses autores, o quadro conceitual kleiniano realiza uma intoxicação psicanalítica, posto que o inconsciente infantil é aí visto como um teatro de metáforas. Para eles, o antídoto dessa inflação metafórica se daria através do restabelecimento da dimensão históricosocial do inconsciente, a partir da crítica à edipianização do inconsciente infantil. Intoxicação psicanalítica ocorre toda vez que Klein reduz quase todas as expressões, desenhos, falas, comportamentos ou sentimentos do pequeno Richard a significados que abarquem suas formulações teóricas acerca do complexo de Édipo. O que ocorre nestes momentos é que os trajetos e devires dos mapas de Richard são ajustados à teoria kleiniana do desenvolvimento genital, não importando muito que tipo de conexões e experiências a criança faça. Esse ajuste tem uma direção determinada. Isto porque Édipo prevê que a família seja o marco dos investimentos inconscientes do qual derivam todos os outros, quando há a resolução do complexo de Édipo. Este se torna então o significante transcendente que se impõe às diversas conexões do pequeno Richard, as quais se tornam metáforas vivas daquele significante central. Como diz Deleuze: Mais até que os adultos, as crianças resistem à pressão e à intoxicação psicanalíticas; Hans ou Richard o tomam com todo o humor de que são capazes. Porém, não conseguem resistir por Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 197 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) muito tempo. Têm de guardar seus mapas, sob os quais só restaram fotos amareladas do pai-mãe19. Dizem Deleuze e Guattari que as crianças em suas experimentações elaboram mapas de devires. Estes mapas são feitos de qualidades que uma criança experimenta em seus percursos pelos diversos meios que a cercam, vivenciando, nestes trajetos, trajetos histórico-sociais. Sendo assim, o desejo investe diretamente ligado o social, político, econômico, cultural etc. A vida desejante de uma criança é feito de maquinações heterogêneas, envolvendo meios e elementos muito diversos. Por isso seus mapas são desmontáveis, reconectáveis e abertos para múltiplas relações. Assim, toda e qualquer conexão que Richard faz com os eventos da guerra está associada à sua produção desejante, a seus mapas de devires. Para Klein, no entanto,esses eventos são secundários e passíveis de uma interpretação depurativa para que servissem como material de análise, sendo o principal objetivo desta, encontrar as angústias constitucionais do psiquismo que permeiam o mundo interno infantil. Ao pensar deste modo, Klein interpreta o grande interesse de Richard pelos eventos da guerra como consequência de sua agitação interna, cuja causa são conflitos relativos ao processo integrativo do ego ocorridos quando ele ainda era um bebê. Para Deleuze e Guattari, não é possível que essa projeção a partir do interior da criança para o mundo exterior aconteça através de uma operação semântica regrada pela irradiação metafórica de uma tensão interna. É que o inconsciente infantil, operando através de maquinações desejantes, que se fazem de modo caótico e criativo, transborda e não se limita somente aos territórios familiares. Os mapas das crianças incluem um verdadeiro passeio pelo mundo real. Isto implica em pensarmos os mapas do inconsciente como trajetos sem hierarquia ou eixo central para o movimento dos fluxos desejantes, mas como processos de singularização. Com efeito, o tema da infância está intimamente atrelado aos processos de singularização. O índice linguístico desses processos, na 198 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues linguagem infantil, segundo Deleuze e Guattari, é a recorrência aos artigos e pronomes indefinidos: “notamos muitas vezes a que ponto as crianças manejam o indefinido não como um indeterminado, mas, ao contrário, como um individuante em um coletivo” 20. As singularizações infantis implicam em pensarmos em “uma criança”, no sentido de um agenciamento coletivo do qual a criança é ponto de encontro, comportando devires que não são pessoais, e que, portanto, não podem estar centrados na dinâmica familialista do Édipo psicanalítico e em sua lógica de expansão semântica através de operações metafóricas. E ao mesmo tempo, implica que sejam produzidos ali, com uma criança, acontecimentos que são resultado de mapas únicos. Segundo Deleuze e Guattari, ao contrário referir-se às crianças por meio de artigos definidos – a criança – contém um modelo, um padrão de inconsciente infantil que procura abarcar as crianças de um modo geral e homogêneo, pelo que têm em comum e não pelos processos únicos de singularização. Uma criança expressa algo da multiplicidade-criança em conexões singulares, feitas a partir de devires coletivos, que envolvem todo o campo social. Por isso um processo de singularização infantil é único e ao mesmo tempo coletivo, são traçados pelo mundo, andanças e trajetos. O inconsciente, portanto, possui um processo que se caracteriza mais pela pragmática de seus mapas de trajetos reais pelo campo histórico-social onde a criança vive, do que pela semântica dos decalques de metáforas. Decalques, para Deleuze e Guattari, são cópias, fotos, reprodução, repetição exaustiva dos temas edipianos. Portanto, os decalques têm a ver com o modelo de inconsciente psicanalítico preso ao significante central. Embora o inconsciente infantil também faça decalques, a partir de metáforas, estas não totalizam o funcionamento do inconsciente de uma criança, já que este se produz por mapas. O antídoto para a desintoxicação psicanalítica da análise é muito simples: as metáforas se tornam uma forma de olhar os decalques, inseridos em um processo caótico e real das conexões Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 199 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) desejantes, de modo que são os decalques que estão contidos nos mapas; e não representam através de metáforas a reverberação de um significante transcendente. Justamente, pensar os mapas a partir dos decalques é ainda consequência da intoxicação psicanalítica, que projeta os decalques sobre os mapas e o complexo de Édipo sobre todas as outras conexões e sentidos que os mapas infantis podem alcançar. Sobre isso dizem Deleuze e Guattari que: Ao contrário da psicanálise, da competência psicanalítica, que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda ideia de fatalidade decalcada.21 Segundo Deleuze e Guattari, Klein não compreende bem o problema de cartografia de uma de suas crianças-pacientes, o pequeno Richard, e contenta-se em encontrar em seus desenhos e em sua fala decalques estereotipados – Édipo, o bom e o mau papai, a má e boa mamãe – enquanto que a criança tenta com desespero prosseguir uma performance que a psicanálise desconhece absolutamente. O material de análise de Richard mostra que seus pensamentos e sentimentos contêm opções políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança vive concretamente em seu dia a dia, com toda a força de seu desejo. Após este apanhado acerca dos impasses conceituais que Deleuze e Guattari apontam na psicanálise, passemos ao trabalho com o material de análise descrito por Klein, a partir das sessões realizadas com o pequeno Richard. A partir da inspeção desse material, estaremos aptos a ratificar e estender a caracterização que fizemos até aqui, a respeito do mau uso da metáfora e a consequente intoxicação psicanalítica. 200 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues 2. Os desenhos do pequeno Richard e análise de M. Klein Ao longo de toda a análise, Richard faz 74 desenhos, dos quais somente os 7 primeiros serão tema de nosso estudo, pois são estes os que Klein utiliza para pensar sobre o complexo de Édipo. Optamos por apresentar os desenhos em cores neste trabalho para uma melhor visualização das descrições do garoto 22. Juntamente com estes desenhos, apresentamos um contraponto entre as falas de Richard e suas ações, de um lado e as análises kleinianas de outro. Para os desenhos em que há pouca fala entre analisando e analista, optamos por reproduzir os trechos no corpo do texto; ao passo para desenhos que se relacionam com diálogos mais amplos optamos por utilizar tabelas contendo paráfrases comentadas, tanto das falas de Richard quanto de Klein, para melhor organização e síntese do material. Algumas questões levantadas na discussão acima se tornarão evidentes na descrição desses encontros analíticos. Por exemplo, a distância que aparece entre o que diz (e faz) Richard e as formulações kleinianas que são atribuídas à análise do garoto. E ainda na sequência faremos alguns comentários acerca destes encontros, no que se refere a momentos em que aparece a intoxicação psicanalítica. Os desenhos e as falas serão tomados em termos de fazerem mapas ou decalques, conforme a terminologia apresentada anteriormente. Para começar, faremos um comentário geral acerca das cores e dos conteúdos dos desenhos de Richard. Em seguida, passaremos ao tratamento individualizado das figuras escolhidas. As cores dos desenhos de Richard são interpretadas como metáforas que atualizam símbolos familiares. O primeiro grau da intoxicação psicanalítica é, por assim dizer, sinestésico. Grosskurth afirma que: “As quatro cores principais usadas foram preto, azul, roxo e vermelho - que para Klein, simbolizavam o pai, a mãe, o irmão e ele [Richard] mesmo respectivamente”23. Estas conclusões tiradas do primeiro desenho, foram consideradas como um padrão de cores representativas dos entes Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 201 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) queridos que se estendem aos desenhos posteriores que estudaremos. Klein tenta fazer um decalque sobre os mapas infantis de Richard, como se as cores tivessem sempre um sentido anterior à formulação dos mapas e se projetassem a partir de um fundo pré-definido. Tal fato de interpretação já apresenta certa postura hierática dos símbolos que os desenhos incorporam, desconsiderando o fato evidente de que os desenhos-mapas dependem do encontro de Richard com diversos elementos e que, portanto, é necessário que os desenhos descrevam uma variedade e uma dinâmica que deve burlar a fixidez projetiva da metáfora, a começar pelas cores e pelo uso de material para pintá-las. Esta característica dos mapas, a de serem dinâmicos e desmontáveis, é notada por Klein24, mas considerada um dado secundário ou desprezível. Os desenhos do menino, apesar de guardarem uma semelhança superficial, variavam muito em seus detalhes – na verdade, não havia dois que fossem exatamente idênticos. A maneira como Richard fazia esses desenhos – ou, de fato, praticamente qualquer outro – era bastante significativa. Ele não partia de um plano deliberado e, muitas vezes, fica surpreso com o resultado final. Empregava vários tipos de material em sua brincadeira; por exemplo, os lápis de grafite e os lápis de cera, que usava para fazer os desenhos, também representavam pessoas, não necessariamente as figuras parentais. As cores e os materiais utilizados para as pinturas são, então, incluídos nos decalques de Klein. No entanto, o mais surpreendente se dá com os conteúdos e motivos das imagens em seu processamento interpretativo. Por exemplo, ao comentar desenhos em que há várias figuras que reproduzem os eventos bélicos em curso, afirma Klein: É importante observar que o interesse do menino nos eventos relacionados à guerra desempenhava um papel considerável nas suas associações. Muitas vezes Richard procurava nos mapas os países que Hitler tinha subjugado e a relação entre esses países e os seus próprios desenhos era evidente. Os desenhos do império 202 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues representavam a mãe, que estava sendo invadida e atacada. O pai geralmente aparecia como inimigo; Richard e o irmão assumiam vários papéis nos desenhos, às vezes como aliados da mãe, outras como aliados do pai.25 Deleuze é bastante direto a respeito dessa operação de personificação dos mapas-desenhos: “cada mapa é uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras, que necessariamente vai de baixo para cima. Não é só uma inversão de sentido, mas uma diferença de natureza: o inconsciente já não lida com pessoas e objetos, mas com trajetos e devires (...)”26. Prossigamos, agora, com o tratamento visual de cada desenho por nós selecionados, tratando agora de seu conteúdo, significado, em paralelo com o diálogo entre analista e analisando a respeito desses desenhos; diálogos estes que são colocados em colunas à guisa de contraponto. DESENHO I Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 203 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) Este desenho foi feito no primeiro encontro com Klein após a interrupção da análise por conta da viagem de Klein a Londres. Os primeiros trajetos Richard na análise de E a interpretação kleiniana: I - Ele pergunta se ela tinha visto Londres “arrasada”, se ela havia visto algum bombardeio enquanto estivera lá e se havia caído alguma tempestade em Londres. Diz não gostar da cidade onde se realiza a análise, chamando-a de chiqueiro. Sai para o jardim onde vê alguns cogumelos que acredita serem venenosos. Abre então um livro em que aponta a figura de um “monstro horrível” lutando contra um pequeno homem. No segundo encontro Richard conta ainda a Klein que tinha medo de sua mãe ter mais filhos, que achava que podia doer e que ao dizer isto a sua mãe ela lhe explicou como se dão as relações sexuais, ao que Richard responde que “não gostaria de por seu órgão genital dentro do órgão genital 204 I - “Em minha interpretação, liguei esse medo à cidade ‘chiqueiro’; na sua mente ela representava o seu ‘interior’ (inside) e o ‘interior’ de sua mãe, que tinha se tornado mau por causa das tempestades e das bombas de Hitler. Estas representavam o pênis do pai ‘mau’ entrando no corpo da mãe e transformando-o num lugar ameaçado e, ao mesmo tempo, ameaçador. O pênis ‘mau’ dentro da mãe também era simbolizado pelos cogumelos venenosos que tinham crescido no jardim durante minha ausência, assim como pelo monstro contra o qual lutava o pequeno homem (que representava o próprio menino). A fantasia de que a mãe continha o órgão genital destrutivo do pai explicava em parte seu medo de ter relações sexuais. Essa ansiedade fora incitada e intensificada pela Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues de outra pessoa, pois isso o minha ida a Londres. Seus deixaria assustado”27. próprios desejos agressivos ligados ao coito entre os pais vieram a aumentar em muito suas ansiedades e sentimentos de culpa. O medo que Richard tinha do pênis do pai ‘mau’ dentro da mãe estava intimamente ligado à sua fobia de crianças. Esses dois medos estavam intimamente ligados às fantasias em que o ‘interior’ da mãe era um lugar perigoso. O menino acreditava ter atacado e ferido os bebês imaginários dentro do corpo da mãe, e que estes tinham se tornado seus inimigos. Boa parte desta ansiedade foi transferida para as crianças do mundo externo”28. II - Após pintar as partes vermelhas: “Estes são os russos”. Dizia também que não confiava neles embora fossem aliados de seu país na guerra, considerando-os 29 suspeitos. II - Richard tem medo de sua própria agressividade, já que pelo padrão, o vermelho o representa mesmo, lembrando que o roxo era seu irmão, o preto seu pai e o azul-claro sua mãe. “O Desenho I expressa suas ansiedades em torno do corpo da mãe, atacado pelo pai-Hitler mau (bombas, tempestades, cogumelos Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 205 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) venenosos)”30. Neste mesmo desenho, segundo Klein ainda, “o corpo da mãe era perfurado por três órgãos genitais, representando os três homens da família; o pai, o irmão e o próprio Richard. Já sabemos que durante essa sessão Richard expressou o horror que tinha da relação sexual. À fantasia de que a mãe seria destruída pelo pai ‘mau’ somou-se o perigo da agressividade do próprio Richard, pois este se identificava com o pai ‘mau’. O irmão também aparecia como um agressor. Nesse desenho, a mãe (azul-claro) contém os homens maus – ou, em última análise, seus órgãos genitais maus. Seu corpo, então, é um lugar ameaçado e, ao mesmo tempo, um 31 perigo” . Se até os cogumelos venenosos são o pênis do pai... Fica claro no contraponto I, o modo como o inconsciente é pensado. O que Klein diz sobre o pequeno Richard é que todos os investimentos 206 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues libidinais que a criança faz são decorrentes de sua relação com seus familiares. Não se consideram os investimentos afetivos que não digam respeito a territórios familiares. Richard se refere aos eventos da guerra, mas este tipo de maquinação desejante que não funciona exclusivamente a partir de um sujeito efetivamente personalizado não tem sentido por si mesmo para a autora. Esta atitude diante das expressões dos trajetos histórico-sociais do desejo, que se tornam irradiações metafóricas da família, reaparece em vários momentos da análise de Richard, bem como nas interpretações de seus desenhos. Podemos perceber na execução deste desenho, no item II, que Richard faz mapas e estes são reconectáveis, ora o vermelho se liga ao pequeno Richard, ora aos russos. Assim, as cores não têm para a criança um sentido anterior que possa se repetir em todos os desenhos. A cada nova conexão é necessário que se reconsiderem as questões, mudam-se as perspectivas, os materiais e combinações possíveis. Por isso os mapas são como obras de arte, em que ao mudar a posição da obra no espaço, mudam-se os sentidos, os olhares, as intensidades experimentadas. No entanto, o que notamos é que Klein tenta imprimir um significado padronizado às conexões de Richard com os materiais, no caso as cores. A consequência direta de tal atitude é que ficam empobrecidos os mapas feitos pela criança. É disto que trata, em primeiro lugar, Deleuze com a expressão intoxicação psicanalítica. Por conta de haver uma teoria a priori sobre desenvolvimento infantil, o que o pequeno Richard diz parece ser considerado em segundo plano, já que sempre há algo por trás de suas falas, como as fantasias infantis pré-genitais. Assim, em alguns momentos, como no trecho acima, parece haver uma tentativa de adaptação das falas infantis à teoria do desenvolvimento genital que Klein tenta confirmar com o caso da criança em questão. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 207 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) DESENHO II 208 O que diz Richard: Interpretação kleiniana: I - Richard diz que a seção vermelha “atravessa todo o império da Mamãe” e depois se corrige, dizendo que “não é um império da mamãe, é só um império onde todos nós temos alguns países”32. I - “O império inteiro representava o corpo da mãe, perfurado pelo órgão genital ‘mau’ do próprio menino” 33. Por isto Richard tem medo de admitir que aquele império era de sua mãe, porque o vermelho, que representa ele mesmo, o estaria perfurando. II - Após a interpretação I, diz Richard que a seção vermelha “parecia um órgão genital”, sendo uma divisão II - O lado esquerdo representa a mãe boa, onde não há quase nada do pai ou do irmão, denotando uma relação muito Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues entre oeste, onde estavam os países de todos e a leste, estavam o menino, o pai e o irmão, e nada de sua mãe. Assim, se segue a interpretação II: próxima de Richard com o seio bom da mãe, enquanto no lado direito estavam os homens do perigoso leste lutando entre si com seus órgãos genitais. A mãe não aparecia deste lado pela impossibilidade de suportá-los. “Esse desenho expressava a divisão entre a mãe má ameaçada (a mãe genital) e a mãe amada e segura (a mãe-seio)”34. E ainda, o desenho II apresenta métodos de defesa utilizados por Richard para lidar com a culpa, ansiedade e ambivalência. Estes sentimentos eram perceptíveis, segundo Klein, no desenho I e agora se apresentam os mecanismos de defesa empregados para lidar com estes sentimentos no desenho II. Quanto ao órgão sexual visto por Richard, após várias menções de Klein a que estivessem por trás de suas falas, ela diz que: “É altamente esclarecedor que no Desenho II essa divisão seja feita por uma seção particularmente pontiaguda e alongada que Richard interpretou como um órgão genital. Desse modo, ele Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 209 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) expressava a sua crença de que o órgão genital masculino era perfurante e perigoso. Essa seção parecia um longo dente afiado ou uma adaga e, na minha opinião, possuía ambos os significados: o primeiro simbolizava o perigo dos impulsos sádico-orais para o objeto amado; o segundo, aponta para o perigo que o menino relacionava à função genital em si por causa de seu caráter de penetração”35. Isso tudo impelia Richard para a mãe-seio, o que implica em forte tendência à regressão e fixações nas etapas do desenvolvimento infantil do garoto, para Klein. Eis que surge o objeto pontiagudo esperado... Neste momento, quase exclusivo, Richard fala finalmente de um órgão genital. Klein prontamente tira suas conclusões sobre a culpa de Richard por desejar furar a mãe com seu órgão genital em seus impulsos sádicos. A interpretação deste desenho traz de forma clara a questão da intoxicação psicanalítica. Richard não diz em momento algum o que Klein afirma estar em seu inconsciente. Este é um momento da prática clínica em que faz muita diferença a concepção que se tem de inconsciente infantil. Para a esquizoanálise não se trata de desvendar o inconsciente enquanto metáfora, mas de produzi-lo e, ainda, não 210 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues existem imagens no inconsciente que sejam acessíveis somente ao analista. Este saber a que Klein se refere não parece ter sido produzido no processo psicoterapêutico. Fica difícil imaginar qual a relação entre o conhecimento que a autora produz e as falas, ações e sentimentos do pequeno Richard. Mesmo porque, não importa muito o que ele diz, todas suas falas são remetidas aos órgãos genitais familiares, às relações edipianas. DESENHO III Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 211 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) Os mapas de Richard: Os decalques kleinianos:: I - “Richard foi para o jardim e falou de seu desejo de escalar montanhas, principalmente Snowdon, que já tinha mencionado antes na análise. Enquanto falava, percebeu que havia nuvens no céu e disse que uma tempestade perigosa estava se formando. Em dias como esse, afirmou, tinha pena das montanhas, que passavam por maus bocados quando uma tempestade caía sobre elas”36. I - O desejo de escalar montanhas é visto por Klein como desejo de ter relações sexuais com a mãe e medo de ser castrado pelo pai mau ao se referir à tempestade perigosa, que também podia punir o pai. Para a autora, portanto, trata-se de uma tentativa da criança de reprimir seus desejos edipianos. II - Antes ainda de fazer seu desenho, conta que viu um cisne com quatro “doces” filhotinhos e em seguida brinca com uma frota de navios, um ele entrega a Klein e ambos partem para um cruzeiro marítimo, Richard se afasta com seu barco, mas logo se aproxima novamente chocando-o com o navio de Klein. II - Ou seja, novamente Richard simboliza a relação sexual dos pais, expressando seus desejos genitais. “Os cinco desenhos que prometera me dar representavam a si mesmo (o cisne) dando a mim – ou melhor, à mãe – quatro bebês (os filhotinhos)”37. III - Richard pega o lápis de III - “Essa brincadeira cera azul e o vermelho, os põe expressava o desejo de Richard de pé, um ao lado do outro e de que a mãe, juntamente com 212 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues em seguida o lápis preto marcha até eles, sendo expulso pelo vermelho, enquanto que o azul, expulsa o roxo. ele próprio, expulsasse o pai e o irmão perigosos. A mãe como figura forte, lutando contra os homens maus e seus órgãos genitais ameaçadores (...)”38. IV - Aparecem no desenho navios, plantas, estrelas-domar e peixes em várias combinações, segundo Klein, série que aparecia várias vezes na análise. Primeiro desenha os navios, em seguida o peixe grande com alguns peixinhos a sua volta. Diz Klein que neste momento a criança ficou ansiosa e animada, desenhando então, uma porção de outros peixesfilhotes. Richard apontou para um peixinho que estava coberto pela barbatana do “peixe-mamãe” e disse: “Este é o bebê mais novo”. Ao ser perguntado se ele estava entre os peixinhos, a criança responde que não. Diz também que a estrela-do-mar entre as plantas era uma pessoa adulta e que a estrela IV – As plantas submersas representavam os órgãos genitais da mãe, já que havia um espaço no meio entre as duas plantas, e ao mesmo tempo representavam os seios da mãe e “quando uma estrelado-mar aparecia entre elas, isso invariavelmente significava que a criança tinha posse dos seios ou estava tendo relações sexuais com a mãe. As pontas dentadas na forma de estrelado-mar representavam dentes e simbolizavam impulsos sádico-orais do bebê”39. Diz ainda que neste momento era a situação edipiana positiva que ocupava primeiro plano na vida do garoto, juntamente com a posição genital e desse modo: “A afirmação de que a estrela-do-mar no meio das plantas era uma pessoa adulta implicava que ela representava o pai, enquanto Richard era Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 213 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) menor era meio-adulta, sendo representado pelo ‘Sunfish’, seu irmão. que era maior ainda que o ‘Rodney’ (a mãe). Desse modo, ele expressava uma inversão da relação entre pai e filho. Ao mesmo tempo indicava seu amor pelo pai e o desejo de fazer reparação ao colocar a estrela-do-mar entre as plantas, oferecendo-lhe a posição de uma criança satisfeita”40. V – Após a interpretação da situação IV, sobre a inversão na situação entre pai e filho, diz Richard que o avião na parte de cima do desenho era inglês e que realizava uma patrulha.41 V – Um submarino encostado no outro representava o desejo de ter relações sexuais com a mãe e Richard imaginava que o pai suspeitava disto podendo punir-lhe, já que ele era observado, patrulhado pelo pai, que aqui era um ‘pai interno’, parte do superego da criança e ainda a patrulha significava também Richard se colocando entre os pais de modo a patrulhar a vida sexual deles, querendo separá-los. Peixes, plantas, cisnes, estrelas-do-mar: o que sobrevive à água intoxicada metaforicamente? 214 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues Note-se que este desenho é figurativo, ao passo que os anteriores (I e II) e os posteriores (IV, V-VI e VII) são comparativamente mais abstratos, representando antes campos delimitados por cores, que Richard chama de “impérios”, conferindo a eles uma referência geopolítica; já o desenho III representa de fato objetos, animais e plantas. Richard tenta de todo modo fazer seus mapas de trajetos através de cenas concretas e referenciadas, com os mais diversos materiais. Até os lápis de cera que antes serviam somente para colorir os desenhos, agora se tornam personagens de suas criações singulares, dando assim, múltiplos sentidos aos materiais, que se colocam aqui como meios para as conexões infantis. Richard fala ainda de sua relação com a natureza, de seu desejo de escalar montanhas, de sua potência. Experimenta sentimentos em relação à natureza que o cerca, se pergunta se as montanhas sentem a chuva que as toca, faz maquinações com o clima, experimenta acontecimentos naturais, como se entrasse em uma devir chuva-sobre-montanha. Richard fala ainda de peixes, plantas, estrelasdo-mar, cisnes e seus devires-animais. Mas a análise produz um massacre de seus devires, quando todos eles só podem remeter aos territórios familiares, tirando-lhes sua potência de fuga, capaz de promover outros tipos de combinações, maquinações desejantes. Richard ainda tenta produzir linhas de fuga às interpretações kleinianas, quando diz que os navios eram ingleses estavam fazendo uma patrulha, novamente numa expressão do desejo histórico-social. No entanto, Klein só produz decalques metafóricos sobre os mapas de Richard, como apontam Deleuze e Guattari, embora saiba que estes mapas se fazem quando diz que o desenho apresenta “uma grande variedade de detalhes, mas certos elementos sempre representavam os mesmos objetos e situações”42. É como se os navios não fossem uma realidade cotidiana para a criança circunscrita temporal e espacialmente por uma guerra de grandes proporções e que ameaçava sua existência de forma inquestionável. É como se sua vida desejante não investisse de forma direta o campo histórico-social que se lhe apresentava, inclusive para Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 215 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) procurar saídas para os impasses dessa mesma vida desejante, seja com relação às relações familiares seja com relação a outras relações sociais. DESENHO IV 216 As conexões de Richard: Interpretação kleiniana: I - Enquanto coloria as partes azuis, Richard cantava o Hino Nacional e disse que a mãe era a rainha e ele o rei, dizendo em seguida que havendo muito dele no desenho e também de sua mãe, juntos eles podiam derrotar o papai.43 I - A presença do azul por quase todo o desenho significa que Richard tem esperança de que a mãe recupere o território perdido, tentando restaurar seu objeto bom para que este o protegesse também. Isto implica que possa lidar melhor com sua agressividade, voltando-a para fora e vivenciando a disputa Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues entre ele, o pai e o irmão pela mãe como fantasia. A derrota do pai se atribui ao fato deste, nas fantasias de Richard, ter se tornado um bebê quando Richard anexa os órgãos genitais do pai aos seus, tornando-se potente e deixando-o frágil. II – Richard ainda canta o hino da Noruega e da Bélgica ao colorir as seções roxas e disse: “Ele é legal”.44 II – O irmão de Richard também havia se tornado um bebê, dado o tamanho da seção roxa em comparação com a vermelha e a azul e a frase de Richard se refere ao pai e ao irmão, crianças inofensivas. Do mesmo modo que o pai aparecia no desenho, embora fosse inofensivo, não era possível eliminá-lo totalmente, numa identificação com suas fezes, algo que estava dentro dele e era perigoso. A culpa e ansiedade geradas pela situação edipiana, por amar o pai e querer destruí-lo, necessitavam de algum mecanismo de defesa que as aliviasse. Assim, quando Richard acreditava inconscientemente que seu pai havia se tornado um bebê que ele teria com sua mãe, encontrava uma forma de compensação e conciliação para lidar com Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 217 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) sentimentos de ambivalência pelo pai. Os hinos cantam: Papai é um bebê? Obviamente, a crítica de Deleuze e Guattari a respeito do inconsciente psicanalítico e o significante central em Édipo, não exclui a possibilidade do inconsciente também se investir sobre os territórios familiares, uma vez que as maquinações desejantes se fazem por toda parte. No entanto, percebemos que há na análise em questão, um excesso de interpretações que se referem aos temas familiares, num movimento de reterritorialização constante sobre a família. O que ocorre no transcurso do caso é que o inconsciente de Richard sofre de “edipianização”, para utilizarmos termo de Deleuze e Guttari que traduz com precisão a intoxicação metafórica da criança. Na verdade, o caráter ostensivo desta acaba por produzir reprodução de um movimento, uma vez que as saídas para os fluxos não-familiares ficam bloqueadas, tornando-se sufocante para a vida desejante. Impossibilitado que se encontra de criar linhas de fuga pelos decalques-metáforas edipianos que se proejetam sobre seus mapas de trajetos reais, Richard acaba por se ver também a partir destes decalques. Algumas linhas de fuga persistem, como cantar o hino nacional ou o de outros países enquanto faz os desenhos, ainda que por fim aceite tratar-se somente de papai e mamãe tendo relações sexuais enquanto o pequeno Richard se sente incluído na situação edipiana clássica. Richard, no entanto, reage e procura potencializar-se, incorporando os decalques kleinianos aos seus mapas, tentando conectá-los com outros materiais, de modo que possam também, e apesar das metáforas de referência centralizadora, tornaremse linhas de fuga, disjuntores para circuitos de corrente mais difusa. Neste caso, a musicalidade e os hinos cantados tornam-se material para essa rota de fuga, justamente porque a canção surge como uma 218 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues possibilidade de trajeto que a edipianização dos desenhos já não permite. DESENHO V e VI Estes desenhos compõem um díptico – observe-se que há entre eles certa concordância de linhas e proporcionalidade de formas – e são feitos na mesma sessão e na mesma folha de papel, quando Richard tinha dor de garganta e havia tido febre na noite anterior, sintomas que Klein considera terem origem afetiva e geradores de ansiedade hipocondríaca no garoto. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 219 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) 220 O que diz Richard: Interpretação kleiniana: I - Diz Richard que sua garganta está muito quente, tendo algum veneno atrás do nariz e ainda que tinha medo de estar comendo comida envenenada. Olhou para a janela e ao ver dois homens conversando disse, desconfiado, que o estariam espionando. Colocou então, o dedo na garganta meio preocupado, procurando germes. E diz ainda que os impérios dos desenhos V e VI eram os mesmos. I - Richard apresenta medos paranoides (despertados pela gripe) de que seu pai e irmão o espionem por sua relação edipiana com a mãe e ainda que esta tenha se aliado ao pai contra ele, espionando-o também, sendo que os dois homens simbolizavam, deste modo, os pais. E ainda os germes estavam relacionados com o medo de ser envenenado, pois representavam o pai-Hitler preto, ligados aos homens que o espionavam, aos pais. II – No dia seguinte, Richard havia se recuperado da dor de garganta e relata seu café da manhã animado por ter comido flocos de trigo, já que, no dia anterior, por conta da dor, não podia comer direito. Diz que tinha até ficado com o estômago pequeno e magro por causa disto, com ossos grandes dentro dele que apareciam até ele poder tomar café pela manhã. Falou da mãe com amor e admiração e II – Os ossos grandes eram o pai internalizado com seus órgãos genitais, representados anteriormente como polvo ou monstro. Os flocos de trigo eram a mãe boa (com seu seio e leite bons), já que Richard já os havia relacionado com um ninho de passarinhos. Klein acredita aqui que este bom humor e tranquilidade de Richard eram resultado das interpretações que fizera na sessão anterior, em que se Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues admirou ainda os vestidos e sapatos de Klein, disse que estava linda, bem como os campos, demonstrando tranquilidade e bom humor. reduziu o medo dos objetos de perseguição internos, aumentando a confiança nos objetos bons internalizados embora diga que a depressão e ansiedade de Richard tenham voltado em sessões posteriores. III – Diz Richard que o desenho V parece um ‘pássaro muito horrível’. O azul-claro era uma coroa, sendo o roxo um olho do pássaro, cujo bico estava “escancarado”. III – Diz Klein: “Propus a interpretação de que a coroa azul-clara indicava que o pássaro era a mãe – a rainha, a mãe ideal do material anterior – que agora parecia voraz e destrutiva. O fato de seu bico ser formado por seções vermelhas e roxas expressava a projeção dos impulsos sádico-orais do próprio Richard (e do irmão) para a mãe”. Assim, o desenho V indica ainda integração egóica entre o seio bom e o seio mau, característica da posição depressiva, já que a mãe era ao mesmo tempo um pássaro horrível e uma rainha com sua coroa. IV - Após a interpretação da IV - O desenho VI é o próprio fala III, reafirma Richard que o Richard que internaliza o pássaro era mesmo horrível e pássaro horrível, sendo o bico Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 221 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) que o desenho VI também era um pássaro, mas sem cabeça, do qual saiam “cacas”, tudo muito horrível. aberto do pássaro a mãe voraz, sendo expressão do desejo da criança de devorar a mãe junto com o irmão. Se ao internalizar a mãe boa, se protegia dos ossos grandes do pai destruidor, ao internalizar o pássaro horrível, a mãe havia se associado ao pai monstro que agora devoravam Richard por dentro e o castravam externamente. É por conta do sentimento de retaliação de Richard, segundo Klein, que ele desenha o pássaro sem cabeça. A “caca” grande representava os ataques anais de Richard contra essas figuras internas aterrorizantes. Devorar a mamãe e ficar com os ossos grandes do papai no estômago? Os sintomas que Richard apresenta – dor de garganta e febre – se referem à ansiedade e às dificuldades que vive naquele momento, seu corpo é expressão disso. A criança vive corporalmente este encontro com a doença que perpassa a análise. Os devires também produzem conexões com este corpo infantil e aqui Richard fala novamente de devires-animais. No entanto, a linha de fuga que estes devires produzem já não é vivida aqui na forma de potência criativa, como ocorre no desenho III, mas como força de destruição, produtora de medo, de terror. Richard aprende com Klein que seus devires não são confiáveis, 222 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues que não se deve dar passagem a afectos não-familiares. Richard vive sim uma castração, uma retaliação, a de seus devires-animais, por conta da análise. Restringe-se demasiadamente as conexões desejantes quando o inconsciente é edipianizado. Isso significa tomar o complexo de Édipo como estrutura central do inconsciente, o desejo de dormir com a mãe e matar o pai como os desejos que sofrem ação da repressão e, posteriormente, dão origem aos investimentos desejantes no campo social. Além disso, a própria edipianização é por si só produtora de repetição, uma vez que as saídas para os fluxos não-familiares ficam bloqueadas. DESENHO VII O que diz Richard: Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 223 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) Diz que as seções azuis-claras aumentaram e que queria que o irmão se tornasse seu aliado. As seções pretas estavam cercadas (tidas até o presente momento por Klein como o inimigo perigoso). Interpretação kleiniana: Representa o interior de Richard, pintado de vermelho, onde estavam o pai, a mãe e irmão, seus objetos internalizados. O pai perigoso estava cercado por Richard que se aliara à mãe e ao irmão. Proteger a mãe interna para Richard era fundamental para que ele se mostrasse confiante diante das situações da vida e que pudesse enfrentar suas angústias depressivas, era o que Richard havia feito neste desenho, em que a mãe conseguia enfrentar com ele o perseguidor e derrotá-lo. Klein45 conclui, neste ponto, a análise do caso dizendo que o medo de Richard de estar com outras crianças na verdade era um ódio reprimido que ele tinha por elas, consequência do ódio que sentia por seu pai: “pênis = criança”. Assim, o pênis mau só poderia lhe trazer crianças más. Diz ainda a autora: Outro fator determinante na sua fobia de crianças era o ciúme que sentia do irmão e de qualquer outro filho que a mãe pudesse ter no futuro. Seus ataques sádicos inconscientes contra os bebês dentro do corpo da mãe ligavam-se ao ódio pelo pênis do pai, que também se encontrava dentro dela.46 Klein, em sua conclusão, ainda alega que o mérito da análise foi a integração do seio bom com o seio mau, o que permitiu a Richard viver de forma mais tranquila, seus desejos edipianos, sem tanta culpa e ansiedade, sendo estes conflitos responsáveis em parte por sua fobia. Assim, com a proteção da mãe boa internalizada que impedia os ataques da mãe genital, ele podia defender-se dos medos persecutórios em relação ao pai, fortalecendo assim a posição genital e suas defesas egóicas. 224 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues Enfim, a intoxicação metafórica dos mapas do inconsciente de Richard teria sido bem sucedida. Considerações finais: então era tudo medo dos pipis? Klein conclui que tudo que Richard viveu nos encontros analíticos e ainda toda a sua angústia e depressão se deviam ao modo como ele se relacionava com suas fantasias edipianas, com os objetos internalizados e genitalizados: pai, mãe e irmão. Em contrapartida, dizem Deleuze e Guattari sobre tal movimento da análise kleiniana: E vejam o que faz Klein com os mapas geopolíticos do pequeno Richard: ela tira fotos, ela faz decalques, tirem fotos ou sigam o eixo, estágio genético ou destino estrutural, seu rizoma será quebrado. Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma árvore acontecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem à morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e produtivas.47 O eixo arborescente no presente caso é a família, que se reproduz em todos os seus ramos; ao passo que Richard com seus mapas tenta expressar suas maquinações desejantes rizomáticas, pois o rizoma 48 é a imagem que melhor caracteriza a vida desejante do inconsciente: Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 225 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) O rizoma não se reproduz através de um eixo central; mas se produz de forma acentrada. Para Deleuze e Guattari, temos um conceito de inconsciente caracterizado por uma linguística significante; e outro, onde a linguagem é entendida na perspectiva de uma linguística de fluxo. Obviamente, em cada caso, aquilo que se pode chamar de metáfora cumpre funções diversas. Naquele, a metáfora está atrelada à operação de centralidade de um significante; neste, a metáfora é obrigada a seguir circuitos descentrados, que se fazem sem uma ordem transcendente, pois quando Richard desenha navios, é pelos navios reais da guerra que passa seu desejo. O inconsciente é literal em seu investimento sócio-histórico. Uma linguística de fluxo melhor se adequaria ao inconsciente rizomático, pois os trajetos de uma criança como Richard se produzem diretamente na história, na cultura e na sociedade, ao invés de serem a irradiação de um significado de base que se dissemina metaforicamente através de um significante transcendente, como dissemos inicialmente. É destes funcionamentos coletivos que Richard trata em seus desenhos, nos quais o território familiar aparece, necessariamente, porém, este, ao contrário do que pretende a metáfora 226 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues arborescente do inconsciente, não totaliza os mapas infantis. Inversamente, são os mapas que produzem territórios familiares e não o contrário; são os rizomas do inconsciente com suas metáforas instáveis e circunstanciais que produzem a árvore do inconsciente. O problema, do ponto de vista prático, é que conceber a metáfora como de concentração do inconsciente no ambiente familiar, desmobiliza a capacidade de conexão dispersiva própria da vida desejante. Como Deleuze e Guattari dizem, o rizoma se faz por impulsões exteriores. Neste caso, apesar da intoxicação metafórica, talvez se torne possível a Richard reconectar os decalques-metáforas que a análise produz aos mapas, abrindo o esquema arborescente de eixo estruturante (Édipo) aos mapas de trajetos histórico-sociais do inconsciente e, assim, neles novamente potencializar o corpo infantil em seus recortes criativos. Trata-se de perguntarmos o que pretendemos com as psicoterapias infantis? Que infância produzimos, de que inconsciente falamos, com que ferramentas nos aproximamos das intensidades infantis? Quais os efeitos éticos, estéticos e políticos das nossas intervenções? Quais os riscos de naturalizarmos a metáfora como procedimento interior à operação do conceito de inconsciente, sem conhecermos as condições de produção da vida desejante e o seu impacto sobre as condições de existência infantil? O estudo de caso do pequeno Richard, à luz das problematizações de Deleuze e Guattari, gera desconfortos, inquietações e estranhamentos que nos fazem pensar... Notas * Psicóloga, Arteterapeuta e Mestre em Educação pela UFRGS. Psicóloga Capsi, atuando com criancas e adolescentes em Sao Leopoldo- RS 1 RICOEUR, Paul. Metáfora Viva. São Paulo : Loyola, 2000, p.455. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia?.Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p.13. 2 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 227 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) 3 ZOURABICHIVILI, François. Deleuze e a questão da literalidade. In: Edu. Soc., Campinas, vol. 26, nº 93, pp. 1309-1321, set./dez., 2005, p.1313. 4 DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 26. 5 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: L’AntiOedipe. Paris: Minuit, 1973 [1972], pp.44-48. 6 ZOURABICHIVILI, Deleuze e a questão da literalidade, op. cit, p.1314; segundo BLAKE, Terence P. Deleuze and Metaphor, Laruelleandsuperposition: thinking nonreductionwithinteraction, postado em 25/05/2013 no blog do autor, disponível em http://terenceblake.wordpress.com/2013/05/25/deleuze-and-metaphor-laruelle-andsuperposition-thinking-non-reduction-with-interaction/,acessado em 24/03/2014. Este autor acredita que Deleuze utiliza a “metáfora maquínica” ao invés de “metáfora significante”, sendo a consequência desse novo conceito de metáfora que sua área de estudo deixa de ser a semântica e passa a pragmatática; a esse respeito ver também CARDOSO JUNIOR, Hélio Rebello.Pragmática menor: Deleuze, imanência e empirismo, 2 v.: il. (571 f.), Tese de Livre-Docência – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, 2005, pp.319-375. 7 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: L’AntiOedipe, op. cit.,pp. 247-248. 8 DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Capitalisme et Schizophrénie: Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980, pp.168-169, 177-178. 9 DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Lisboa: Ed. Assírio e Alvim, 1995, p. 353 (a partir de agora AOE). 10AOE, p. 349. 11 O objetivo geral da esquizoanálise é o de propor um novo conceito de inconsciente, também chamada de “psiquiatria materialista”; a esquizoanálise se baseia nos combates a uma psicanálise baseada em uma linguística significante, ver HOLLAND, Eugene. Schizoanalysis. PARR, Adrian (ed.). The Deleuze Dictionary, revised edition. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2011, pp.239-240. 11 MP v.4, p.22. 12 KLEIN, M. Narrativa da análise de uma criança. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 13 KLEIN, M. “Complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas (1945)”.In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos, Obras Completasv. 1. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, pp.413-442. (a partir de agora ACR). 14 GROSSKURTH, P. O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p.282 (a partir de agora MOMK) 15 ACR, p.423. 16 MOMK, P. 284. 17DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs, vols. 1 a 4. São Paulo: Ed. 34, 2000 a 2002 (a partir de agora MP v. 1 a 4). 18DELEUZE, G. “O que as crianças dizem” In Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997(a partir de agora OQCÇASD) 19OQCÇASD, p. 74. 20MPv. 4, p. 52. 21MP v.4, p. 22. 22 Os trabalhos da criança foram feitos utilizando estas cores. Na edição do livro de Klein, os desenhos aparecem em preto e branco, com legendas referentes às cores. 228 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Hélio Rebello Cardoso Jr. e Renata P. Domingues Respeitamos os desenhos originais, acrescentando somente as cores correspondentes nas figuras aqui apresentadas, a fim de conferir maior realismo aos desenhos. 23 MOMK, p.282. 24 ACR, p. 422-423 25 ACR, p. 419. 26 OQCÇASD, p. 75. 27 ACR, p. 419. 28 ACR, p. 420-421. 29 ACR, p. 422. 30 ACR, p.422. 31 ACR, p. 422. 32 ACR, p. 424. 33 ACR, p. 422. 34 ACR, p. 424. 35 ACR, p. 425. 36 ACR, p.426. 37 ACR, p. 426. 38 ACR, p. 427. 39 ACR, p. 428. 40 ACR, p. 429. 41 ACR, p. 430. 42 ACR, p. 427. 43 ACR, p.430. 44 ACR, p. 430. 45 ACR, p.438. 46 ACR, p. 438-439. 47 MP v. 1, p. 23. 48 Imagem do rizoma disponível em http://thinkingenterprise.blogspot.com.br/2011/04/rhizome-on-dilemmas-inenterprise.html, acessada em 31/03/2013. Referências bibliográficas BLAKE, T. P. (2014). Deleuze and Metaphor, Laruelleandsuperposition: thinking non-reduction with interaction. Postado em 25/05/2013 no blog do autor, disponível em http://terenceblake.wordpress.com/2013/05/25/deleuze-and-metaphorlaruelle-and-superposition-thinking-non-reduction-with-interaction/, acessado em 24/03/2014. DELEUZE, G. (1997). “O que as crianças dizem”. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1973 [1972]). Capitalisme et Schizophrénie: L’Anti-Oedipe. Paris: Minuit. 229 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 INTOXICAÇÃO PELA METÁFORA SEGUNDO GILLES DELEUZE E FÉLIX GUATTARI: OS DESENHOS DO PEQUENO RICHARD (1941) DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1995). O Anti-Édipo – capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Editora Assírio e Alvim, pp.353. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1992). O que é a Filosofia?. Rio de Janeiro: Editora 34. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1980). Capitalisme et Schizophrénie: Mille Plateaux. Paris: Minuit. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (2000). Mil Platôs, v.1. São Paulo: Editora 34. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (2002). Mil Platôs. v. 4. São Paulo: Editora 34. DELEUZE, G. & PARNET, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta. DOMINGUES, R. P. (2004). Estudo do conceito de inconsciente no pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari: um olhar sobre a infância como mapa de devires em alguns casos clínicos da psicanálise infantil. Relatório Final de Projeto de Pesquisa de IC, desenvolvido com bolsa FAPESP, nº do processo: 02/13581-7, março de 2004. GROSSKURTH, P. (1992). O mundo e a obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago. HOLLAND, E. (2011). “Schizoanalysis”. In: PARR, A (ed.). In: The Deleuze Dictionary, revised edition. Edinburgh: Edinburgh University Press, pp.239-240. KLEIN, M. (1976). Narrativa da análise de uma criança. Rio de Janeiro: Imago, 1976. KLEIN, M. (1945 [1996]). “Complexo de Édipo à luz das ansiedades arcaicas (1945)” In: Amor, culpa e reparação e outros trabalhos, v. 1. Rio de Janeiro: Ed. Imago, pp.413-442. RICOEUR, P. (2000). Metáfora Viva. São Paulo: Loyola. ZOURABICHIVILI, F. (2005). “Deleuze e a questão da literalidade”. In: Edu. Soc., Campinas, vol. 26, nº 93, pp. 1309-1321, set./dez. Palavras-chave: metáfora; psicanálise; Keywords: metaphor, psychoanalysis, linguistics 230 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 linguística O HISTORIADOR E A METÁFORA* André Luiz Joanilho UEL Resumo: Este texto sustenta que escrita da história é uma metáfora do passado não reconhecida pelos historiadores, os quais, ao contrário, buscam o literal nas suas narrativas formadas por documentos que poderiam ser compreendidos também como metáforas, mas que são abordados como emulação do real. Do documento ao texto, a metáfora é esconjurada como ruído não real. No entanto, a escrita não é feita de verdades e literalidade, mas de imaginação e de fatos da linguagem, estando na origem dos eventos a dispersão e a descontinuidade. Abstract: This paper argues that the writing of history is a metaphor of the past unrecognized by historians, who, in contrast, seek the literal in their narratives made by documents which could also be understood as metaphors, but which are treated as the emulation of the real. From the document to the text, metaphor is banished as unreal noise. However, writing is not made up of truth and literalness, but of imagination and facts of language, dispersion and discontinuity being at the source of events. Para o historiador a metáfora não existe, ou melhor, não deveria existir. O discurso histórico é literal, busca o sentido exato dos acontecimentos, fugindo de quaisquer outras possíveis formas explicativas. Afinal, o historiador deve explicar e a sua clareza não pode se confundir com fatos de linguagem, mesmo quando se trata de estilo de escrita. Sabemos das figuras de linguagem que as narrativas históricas lançam mão para se fazer compreendidas. A discussão de Hayden White (1995) não nos é estranha. Porém, não estamos propondo discutir Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 231 O HISTORIADOR E A METÁFORA as estruturas narrativas em história e, em seguida, fazer um estudo tropológico, mas apresentar a relação do historiador com a metáfora. E, de início, o historiador deve fazer a sua narrativa “transparente” com relação ao seu objeto, ou pelo menos esse é o aprendizado da disciplina. Da chamada escola metódica às teorias interpretativas do “linguistic turn” dos anos oitenta, a marca é a exatidão. Enquanto que os metódicos sonhavam com uma história cientificista, na qual o documento era uma expressão do real, os intérpretes contemporâneos pretendem desvendar os significados dos documentos para se chegar à trama dos eventos do passado. Porém, tanto uns quanto outros buscam descrever o que aconteceu e tornar a narrativa uma emulação do que realmente aconteceu. Portanto, a exatidão, se podemos dizer que há alguma na escrita da história, deve ser o norte da narrativa e, no limite, a metáfora deve acrescentar mais clareza e remeter diretamente ao objetivo desejado se for utilizada como recurso estilístico. Não deve haver nada além do literal na narrativa histórica ou não deveria. Esse mundo fechado do historiador se confronta com a metáfora que está fora da sua objetividade, justamente no seu material mais precioso: os documentos. Estes sim, repletos de fatos de linguagem. O documento nunca é a expressão do que aconteceu mas o material que permite ao historiador compor quadros narrativos. Pode-se até mesmo dizer que o documento é uma metáfora do evento. De um, lado o historiador e a objetividade, de outro o documento enquanto metáfora do real. O trabalho historiográfico consiste em transitar entre esses polos opostos do fazer história. Evidentemente que não se compreende o documento como expressão do que aconteceu, pois, como iremos considerar adiante, ele não traz consigo tudo o que aconteceu. Mesmo a reunião de todos os documentos sobre um determinado evento, não é suficiente, pois, para usar uma metáfora, a narrativa histórica “não é um geometral”, ou citando Paul Veyne (1982, p.31): “Os acontecimentos não existem com a consistência de um objeto concreto. É necessário acrescentar, não importa o que se diga, não existem também como um ‘geometral’; prefere-se afirmar que eles têm 232 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho existência em si mesmos como um cubo ou uma pirâmide: nunca percebemos todas as faces de um cubo ao mesmo tempo, só temos um ponto de vista parcial”. Há uma impossibilidade em apreender tudo do passado. Mas, além de ser metáfora do real, o documento ele próprio, muitas vezes é metafórico, ou seja, traz consigo fatos de linguagem. Uma pintura, por exemplo, remete a algo para além da figuração. Poder-seia dizer que ela é de fato uma representação. Mas o que é uma representação senão uma metáfora? Uma fotografia é uma representação, mas também uma metáfora, pois alude a algo que não é ela própria. Mesmo um documento escrito pode ser compreendido como postulando metáforas. Podemos tomar como exemplo um artigo num jornal operário do início do século XX no Brasil: Anarquia e Revolução Não devemos abandonar nunca a ideia da revolução. Só ela é fecunda, só ela produzirá todos os frutos que a anarquia vem cultivando num imenso labor de mais de meio século. A revolução é também o único, o exclusivo elemento de conquista da igualdade e da justiça social (...). Os nossos esforços devem convergir para a organização do levante geral das vítimas, pouco nos importando qual seja o ideal que se batem os revoltados. A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução; ao passo que a revolução nem sempre sai e pode mesmo não sair da anarquia. É pouco provável que os povos só se revoltem definitivamente quando hajam compreendido a anarquia; eles se revoltarão de preferência por motivos alheios a tão nobre ideal. A nós, anarquistas, faltando o impulso e a decisão revolucionária, falta o senso e a razão de ser na sociedade. Há, entretanto, inúmeros revolucionários que ignoram completamente a anarquia. Ora, a sociedade futura deverá sua existência à devastação da atual esterqueira. Portanto, é preciso que nós nos revoltemos; Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 233 O HISTORIADOR E A METÁFORA naturalmente com a maior urgência possível. (D.R.F. A Plebe, nº 4 ano II, 15/09/1919, p. 4). Se o historiador está formando um quadro a respeito da luta de classes na sociedade brasileira no início do século XX, encontrará farto material em documentos deste tipo. Haveria clareza e transparência, afinal o autor do artigo mostra a necessidade de organizar o movimento revolucionário a partir do ideal anarquista e de que forma a revolução pode e deve ocorrer. Mas, há uma pletora de metáforas no texto. “Vítimas”, “frutos”, “nobre ideal”, “a atual esterqueira”, etc., que nos remete justamente aos fatos de linguagem e ao discurso. Como dissemos, o documento possui uma duplicidade: composto de metáforas e ele próprio sendo uma metáfora dos eventos passados. Assim, de uma história da luta de classes, pode-se passar a uma história das práticas discursivas. Há discurso e práticas no texto do militante. Por mais que não se dispusesse a ter posição, ele tem de se remeter às imagens ou representações sociais correntes, ou melhor, ele as usa porque tem de usá-las. Não está à sua disposição como numa prateleira de supermercado na qual faria escolhas. As escolhas, de certo modo, estão dadas e é a partir disso que podemos compreender as práticas discursivas. Comecemos por “nobre ideal”. Se a anarquia luta para exterminar qualquer diferença social, não deixa de ser sintomático que o termo “nobre” seja utilizado, palavra que remete à diferenciação, mesmo se tratando de ideias. A anarquia é nobre, superior, logo os anarquistas também são superiores e podem conduzir a revolução, portanto o povo. Ao lado de “nobre” temos o termo “ideal”, também sintomático, pois sendo a anarquia uma prática, nada teria de idealização, ou melhor, as suas ideias sairiam da prática revolucionária, como o militante afirma: “A anarquia é uma perpétua revolução e deve sair da revolução”. É possível identificar uma prática discursiva a respeito de como os sujeitos devem proceder ou se conduzir: as ideias anarquistas são superiores, portanto se impõem “naturalmente”, ou seja, a revolução, no fim das contas, é uma ação de homens superiores. 234 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho Ora, para a história tradicional, ou ainda, para os historiadores que acreditam na transparência de suas narrativas e o evento, o primeiro trabalho é justamente “limpar” o documento das metáforas, isto é, “traduzi-las” para uma linguagem “científica” (as aspas são para marcar os termos, afinal é o trabalho do historiador explicar o que aconteceu e, como foi dito acima, a metáfora não deveria existir). Porém, de modo contraditório, não é possível ao historiador escapar da metáfora. Logo, o discurso histórico é metafórico, ou ainda, o discurso científico é metafórico. Vejamos um exemplo atual: como explicar o Bóson de Higgins? O bóson de Higgs é um elemento-chave da estrutura fundamental da matéria conhecida como a "Partícula de Deus". No "modelo padrão", a teoria da estrutura fundamental da matéria elaborada nos anos 60 para descrever todas as partículas e forças do universo, o bóson de Higgs é considerado a partícula que proporciona sua massa a todas as demais. Ao tentar isolar os menores componentes da matéria, os físicos descobriram várias séries de partículas elementais. Em 1964, por dedução, o físico britânico Peter Higgs postulou que existia o bóson que hoje leva seu nome e que devia dar sua massa a outras partículas. "A ideia é que existem partículas que se chocam permanentemente com bósons de Higgs. Estes choques freiam seu movimento, que se torna mais lento, e dão a eles a aparência de uma massa", explica o físico e filósofo Etienne Klein. Klein compara este fenômeno com um homem que tenta passar correndo em meio a uma multidão, que freia sua corrida e faz com que diminua sua velocidade. Também compara o campo de Higgs com uma espécie de cola em meio à qual se encontrariam relativamente aderidas as partículas, o que seria percebido como uma massa. (AFP, 08/10/2013, http://br.noticias.yahoo.com/b%C3%B3son-higgspart%C3%ADcula-chave-f%C3%ADsica-fundamental142036455.html) Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 235 O HISTORIADOR E A METÁFORA Este simples exemplo nos mostra que nenhum discurso escapa do metafórico, muito menos a história. Afinal, um homem “correndo no meio a uma multidão, que freia a sua corrida” é uma boa explicação para os bósons. Porém, toda a história da ciência, se podemos dizer que há uma ciência, é, além do mais, a história da separação entre o metafórico e o literal. O ponto de inflexão, nas narrativas que buscam a origem do pensamento científico, teria sido Aristóteles. Nele nasceu a definição do discurso verdadeiro ou literal e o metafórico, sempre colocado como inferior em relação ao literal já que este explicaria o real e “junto à Aristóteles, o julgamento negativo (...) do que ele chama de metáfora em importantes campos, na sua lógica e na sua filosofia da natureza, é bem mais marcado. Ele sustenta, por exemplo, que é preciso evitar a metáfora e as expressões metafóricas numa definição” (LLOYD, 1993, p.42)1. Essa separação não cessou de fazer caso no discurso científico. A metáfora é boa para se fazer poesia, mas negativa para a explicação científica (ibidem, p.44). E não somente para Aristóteles, mas também para os historiadores da ciência. Seguindo ainda a análise sobre este assunto, Geoffrey Lloyd afirma que o seu “argumento é então que a distinção entre o literal e o metafórico – como a distinção entre mito (como ficção) e a narrativa racional – não seria somente, na origem, um elemento neutro e inocente de análise lógica, mas uma arma forjada para defender um território, expulsar o inimigo, humilhar os rivais” (ibidem, p.46)2. Aristóteles utiliza a distinção para fazer a sua lógica superior aquela dos seus rivais. Nenhuma inocência ou superioridade do científico sobre o mito, apenas um jogo de forças que impõe o literal como superior, devendo o metafórico se ater ao literário, pois, “na sua exigência de clareza, ele (Aristóteles) exclui a metáfora porque tudo que se diz através de metáfora é obscuro” (ibidem, p.42) 3. Porém, sabe-se que o discurso científico recorre às metáforas e aos seus próprios mitos (o que seria o Big Bang senão uma ótima metáfora) e o discurso histórico é pleno delas. A sua pretensa objetividade se 236 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho perde ao emaranhado de práticas discursivas, quer dizer, não há uma segunda natureza nos discursos. Há fatos de linguagem que remetem a uma espécie de positividade. O que está dito quer dizer exatamente o que está dito. A metáfora, neste aspecto, não é um fato de linguagem que remete a um sentido que estaria aquém ou além do próprio discurso, mas o informa. Porém, na sua maior parte, os historiadores reconhecem nas metáforas um sentido além do que está dito. Há algo na superfície que torna opaco o seu verdadeiro sentido. O historiador deve trazer à luz o que não está aparente e deve encontrar o que realmente se quis dizer. O pensamento de Aristóteles ainda frequenta as práticas dos historiadores. Vejamos: Empédocles tinha dito que o mar é salgado porque ele seria o suor da terra (...) Mas Aristóteles fez o seguinte comentário: ‘Dizer tal coisa pode ser apropriada por razões poéticas – pois a metáfora é poética – mas isso não serve para compreender a natureza [da coisa]. Outras imagens utilizadas por Empédocles e determinados filósofos pré-socráticos foram condenadas porque elas seriam ou obscuras, ou grosseiras, ou ainda que elas precisam ser nuançadas, ou então porque as similitudes sobre as quais são fundadas eram superficiais, ou até mesmo porque os exemplos comparados não tem algum ponto em comum (ibidem, p.43)4. É perceptível o quanto este pensamento ainda persiste no discurso científico e, sendo a narrativa histórica uma tentativa de emular este tipo de discurso, nas formas de narrar que se tornaram inerentes à ciência. A lógica da explicação deve ser feita com base na prova, estando o documento disponível para que se efetive esse discurso. Não deve haver obscuridade ou conflito, apenas clareza e comprovação. Então, podemos compreender que há um espaço entre o documento e a narrativa histórica, sendo preenchido por explicação e não qualquer Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 237 O HISTORIADOR E A METÁFORA uma. Deve ser uma explicação “densa” que produza uma narrativa que não deixe nenhum vão entre o literal e a metáfora. Mas o que fabrica o historiador com a densidade da sua narrativa? Efeito de real, para citar a expressão de Roland Barthes (1968), porém de modo diferente. Enquanto na literatura este efeito produz o verossímil, o historiador acredita que, pelo fato de utilizar documento, de qualquer tipo, para a sua narrativa, trata do real. Tanto que a narrativa é algo que quase não frequenta as preocupações de quem escreve história, pois é dado como incontornável o fato de se escrever o real. É notável que nas graduações de história, ou na formação de historiadores em outros países, não se vê uma disciplina “Narrativa em História”. Discute-se teoria, às vezes ainda, filosofia da história, historiografia, mas quase nada sobre documentos e nada sobre argumentação. Essa naturalização da escrita é herança da história cientificista do século XIX. O discurso científico é expressão do real, porém, como estamos apontando, ele deixa escapar metáforas e, no caso do historiador, a sua duplicação no documento é como um quarto de espelhos: a imagem refletida pela narrativa não deixa de ser outra imagem. Logo, não é possível apreender o real por essa duplicação em escala. Haveria alguma possibilidade de se apreender o que realmente aconteceu? Somente se o passado se tornasse fixo, imóvel. Porém, o que podemos apreender é a polissemia dos acontecimentos da mesma maneira que a memória individual é polissêmica. Nunca damos a mesma explicação para o que nos aconteceu e nem o mesmo sentido. Mudamos e o nosso passado muda. No caso da história há as relações sociais que se constituem e desfazem ao longo do tempo. Portanto, há um agravante. Nunca o historiador estará em condições de fixar o que realmente aconteceu pela mobilidade do presente e pela impossibilidade temporal, ou melhor, pelo paradoxo geográfico do conto de Borges: um rei queria o mapa perfeito e os geógrafos se esforçaram tanto que o mapa ficou do tamanho do próprio reino. Uma narrativa que apreenda o real levará tanto tempo para ser feita quanto o próprio acontecimento e se isso for possível, a sua leitura levará o mesmo tanto. 238 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho Podemos, como outro exemplo, reproduzir parte da narrativa da vida de Danton: Danton, como Robespierre e Marat, foi uma criação da Revolução (Francesa). Emergiu do enorme acontecimento sem qualquer aviso prévio. Apesar dos esforços de seus biógrafos em buscar na sua juventude traços que lhe anunciassem a carreira, é difícil discernir no jovem Danton de seus retratos um personagem já destinado à futura Revolução (...) Nas vésperas da Revolução era um advogado modesto, menos desprovido de recursos do que o disseram os seus adversários (para melhor salientar o caráter súbito e inconveniente de sua fortuna), menos próspero do que o garantem seus partidários. Sem dúvida possuía a Encyclopédie em sua biblioteca, entre os volumes de Plutarco e Beccaria, mas tratava-se de uma propriedade então quase obrigatória, o que não faz concluir que ele se alimentava de Diderot. Como primeira causa, tivera de defender um pastor contra um senhor, mas a que advogado não coubera naqueles tempos tratar de tal assunto de eleição? Nada disso basta para explicar um engajamento revolucionário (FURET e OZOUF, 1989, p.240). O efeito produzido é a sensação de que se trata da vida de Danton, porém, os documentos – obras biográficas, biblioteca pessoal, palavras de detratores, palavras de partidários – que emulariam um real são metáforas do que foi Danton e neles próprios vamos encontrar as metáforas que os constituem. Nesta duplicidade, o historiador produz o efeito de real que não deixa de ser também uma metáfora, pois não é efetivamente o narrado, mas resultante de um jogo metafórico que deixa de ser duplo para ser tríplice, ou seja, entre o que está representado no documento, ele próprio e a escrita do historiador. Danton revolucionário não está exatamente onde se poderia pensar, na linearidade temporal da sua vida, mas numa teia de relações que é impossível de reconstituir inteiramente. Por isso, deve o historiador Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 239 O HISTORIADOR E A METÁFORA praticar esse jogo tríplice para produzir o efeito de real. Porém, quase não há consciência do jogo e muitos o tomam como o próprio quadro retratado na narrativa, não se afastando o suficiente do que seria o objeto da escrita. Não encontramos Danton antes de 1789, mas na Revolução. Nela emerge o personagem. O historiador percorre essa trajetória por elipses que são preenchidas pela explicação, logo o personagem só se torna pleno quando eclode a Revolução e não antes. Danton, enquanto revolucionário, só o pode ser após 1789, portanto há uma “metaforização” da narrativa, mesmo porque “trata-se de ordenar o heterogêneo e, mais efetivamente, encontrar o Outro apenas no plano da imaginação – portanto, sem sair do território do Mesmo” (OHARA, 2013, p.117-212). A imaginação, que podemos substituir por explicação, é o jogo estabelecido entre acontecimento, documento e narrativa. Este jogo dá a sensação de que se trata da verdade, pois abordaria o que realmente aconteceu, por isso, recorre aos documentos de qualquer espécie e “a verdade em história deriva, em última instância, das referências aos discursos das testemunhas” (HULAK, 2012, p.26) 5. Sem este recurso a história não poderia se estabelecer. O documento é o zero do discurso histórico e nos passa a sensação de que ele é total, pode dar conta do acontecimento, por isso o historiador chama a testemunha para estabelecer a veracidade da sua narrativa. No início temos o documento e todo o resto decorre deste epifenômeno da memória que, no seu estado bruto, será o campo de atuação do historiador. Há um claro sentimento que a história está estabelecida nos próprios acontecimentos e a memória é a testemunha chamada para comprovar a narrativa do historiador. Porém, convém lembrar que o primeiro gesto do historiador “começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira” (CERTEAU, 1982, p.81). Por isso mesmo que não se toma o passado pelo o que ele é. Podemos retomar o artigo escrito pelo militante anarquista, citado acima. Primeira questão, qual foi o lugar de sua produção? Segunda, quais as intenções do articulista? Terceira, em que 240 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho série de produção se inseria o artigo? Ao respondê-las é perceptível a distância que nos separa do artigo, não apenas temporal, também pela própria produção. Afinal, estamos tomando-o por documento, enquanto o articulista o tomava por uma peça de conscientização e de compreensão da prática anarquista. Apartamos o documento de seu local de produção, de suas intenções iniciais, de sua série e o inserimos em outra produção, outra intenção e outra série, aquelas do historiador. Este, pela explicação, torna o documento pleno de sentido, mas qual? O da explicação histórica, assim, recortando o documento, o historiador lhe dá um sentido específico e o torna “pleno” de certezas. Não há dúvida, ambiguidade, imprecisão na narrativa, somente a certeza de um vetor temporal que evoca o passado para estabelecer o presente. Afastada a metáfora do literal, a explicação histórica somente pode se ver como identitária. A metáfora é a dispersão e movimento, enquanto o literal é a unidade e imobilidade. Podemos dizer, utilizando o conceito de heterotopia de Michel Foucault (1994), que a metáfora é outro espaço no qual o historiador tradicional não se reconhece, aliás não o deseja. A metáfora é uma heterotopia, espaço asilar – dos loucos, dos mortos, dos leprosos, dos velhos, dos marginais –, por isso deve ser afastada, pois é a não identidade, o lugar dos desvios que os discursos identitários tratam de normatizar e normalizar. Daí é possível compreender porque a escrita do historiador é tão normatizada; porque deve conter determinados padrões explicativos para se fazer entender, aceita e compreendida. Ela remete à identidade que escapa todo o tempo por desvãos metafóricos. Assim, para conjurar o caráter errático da metáfora, o historiador faz apelo para as ideologias ou para as representações, dependendo da ótica adotada, pois tanto as primeiras quanto as segundas são dotadas de sentidos únicos se são bem “trabalhadas” pela escrita. Mas é interessante perceber que esses padrões tão arraigados são também dispersos no tempo. A escrita historiográfica com suas certezas de hoje se tornará erro amanhã, do mesmo modo que as de ontem se Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 241 O HISTORIADOR E A METÁFORA tornaram obsoletas, pueris, inocentes ou mal intencionadas e erradas. A conjuração da metáfora só é possível no instante que se produz escrita literal, mas ela permanece enquanto heterotopia do próprio discurso. Mas é possível outra escrita da história? Não totalmente. Se pensarmos junto com Michel de Certeau a produção historiográfica, deveremos reconhecer, de início, o lugar de produção. Há uma forma de produzir história e ela está determinada pela “instituição histórica”, isto é, o fazer deve ser feito de acordo com padrões e normas “científicos” ou, no melhor dos casos, acadêmicos. Não é qualquer um que pode escrever história, mas aqueles dotados de determinados conhecimentos e práticas, pois a escrita será validada pelos pares e “este discurso – e o grupo que o produz – faz o historiador, mesmo que a ideologia atomista de uma profissão ‘liberal’ mantenha a ficção do sujeito autor e deixe de acreditar que a pesquisa individual constrói a história” (CERTEAU, 1982, p.72). A crença num sujeito independente e produtor de saber é correlata à noção de que a sua escrita é sempre literal e os documentos se rementem ao real. A instituição História é o lugar no qual permite ou interdita a escrita, afinal a instituição “torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes na análise” (ibidem, p.77). A possibilidade ou a interdição se apresentam como “naturais”, pois é assim que tem de ser ou isto é realmente importante, aquilo nem tanto e aquilo outro nem se deve falar. Há assuntos completamente tabus na nossa sociedade, mas disso não queremos saber. Além do interdito há o normatizado e, seguindo ainda Michel de Certeau, o historiador: trabalha sobre um material para transformá-lo em história. Empreende uma manipulação que, como as outras, obedece a regras. Manipulação semelhante é aquela feita com o mineral já refinado. Transformando inicialmente matérias-primas (uma 242 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho informação primária) em produtos standard (informações secundárias), ele os transporta de uma região da cultura (as ‘curiosidades’, os arquivos, as coleções, etc.) para outra (a história) (ibidem, p.79). Não esquecendo de que os próprios arquivos já são “refinados”, quer dizer, já passaram por uma seleção, uma separação. Portanto, o historiador, ao obedecer a regras de produção, deve enquadrar a sua escrita numa espécie de “gosto médio” de seus pares. Este procedimento permite a aceitação do produto. Separar e reunir: a operação do historiador implica numa produção num sentido mais integral, isto é, ele produz história. Para ajudar no raciocínio: “longe de aceitar os ‘dados’, ele os constitui. O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente” (ibidem, p.81). Isso nos leva a questão, o objeto histórico se encontra à espera do historiador para ser desvendado? Se o material é criado pelo historiador, logo ele não está dado, não se encontra disponível para ser garimpado como ouro de aluvião. Ele deve ser produzido plenamente, logo, o objeto não é natural. Não é encontrado naturalmente. Mais ceticamente pode-se dizer que o fato “Segunda Guerra Mundial” está dado. Sim num sentido, não em outro. O que se escolhe para narrar da Segunda Guerra? Qual é a abordagem? Qual o material que será observado? Se ficarmos no nível das estratégias de aliados e eixo, será um recorte, uma criação, pois a guerra não se desenrola unicamente nos bunkers dos ministérios da defesa. A possibilidade de criar um objeto cresce exponencialmente quando multiplicamos o efeito da escrita para “uma visão de baixo”, aquela dos soldados. Podemos ainda estender para as famílias, para as economias das pequenas cidades, para o sistema de saúde e assim por diante. Todos esses “objetos” não estão prontos à espera da narrativa que os traga a lume. São produções historiográficas. A escrita é a mise em scène de uma representação histórica, pois busca a identidade, mas, se compreendermos que o relato histórico Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 243 O HISTORIADOR E A METÁFORA como metáfora, então nos afastamos da hipótese identitária e passamos à diversidade, ou ainda, a metáfora é a dispersão do sujeito constituinte. Porém, a história praticada marca a identidade, pelo menos enquanto fundamento de sua própria formulação e “não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com o corpo social e com uma instituição de saber” (ibidem, p.93). Este pertencimento impede, até certo ponto, encontrar na origem de uma série de eventos a dispersão, a heterotopia. Por isso, o recurso à citação é exaustiva nos discursos científicos, pois: a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como referencial, introduz nele um efeito de real; e por seu esgotamento remete, discretamente, a um lugar de autoridade. Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do relato e uma validade do saber. Ela produz credibilidade (ibidem, p.101). A escrita ganha validade e atesta “o que aconteceu”, produzindo o efeito de real desejado e tornando o discurso histórico verdadeiro. Por isso, a metáfora deve passar ao largo. Ela instaura o quiproquó e a dispersão. Ela pode ser aceita se domesticada, se o seu uso for para dar mais estilo ao efeito de real, mas no estado bruto, tomando o discurso como metáfora do passado, o documento como metáfora do real e as metáforas no interior do próprio documento, isso produz um intenso ruído e não instaura a identidade. Por isso que “citando, o discurso transforma o citado em fonte de credibilidade e léxico de um saber. Mas, por isso mesmo, coloca o leitor na posição do que é citado; ele o introduz na relação entre um saber e um não-saber. Dito de outra maneira, o discurso produz um contrato enunciativo entre o remetente e o destinatário” (ibidem, p.102). Incluindo o leitor na relação de saber, o discurso histórico provoca a sensação de que o que ele produz é a identidade do sujeito apartado dela 244 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho pelo tempo que passa, daí também o exercício da cronologia nos relatos. A temporalidade passado-presente produz o efeito de que o sujeito destinatário está no topo de uma cadeia evolutiva, portanto, mais consciente e mais “sabedor” do que aqueles que viveram em outros tempos. O continuum na escrita é o corolário da identidade, a certeza de que não haverá distância ou corte na constituição do sujeito: A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá um dia – sob a forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada (FOUCAULT, 1986, p.14-15). Finalmente poderíamos perguntar se é possível uma história da dispersão. Sim, ela teria de lançar mão de outros procedimentos para se constituir. Temos um ótimo exemplo com a História da Loucura, de Michel Foucault. Ele não persegue ao longo da sua escrita a evolução do conceito de loucura e nem de como, infantilmente, outras eras tratavam os loucos, mas trata da própria constituição da ideia de loucura, ou seja, trata dos discursos que conformaram a prática em torno da loucura em cada época, portanto, não é uma curva evolutiva, mas quadros que se formaram num determinado momento e depois desapareceram nos levando a pensar que o nosso próprio quadro sobre a loucura irá desaparecer para dar lugar a novas práticas sociais. Nesse tipo de história, não temos a busca pela constituição da identidade, entendida ela própria como fruto de práticas. Dessa forma, temos no início a metáfora, a remissão a algo que essencialmente não é Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 245 O HISTORIADOR E A METÁFORA a verdade, mas formas de dizer que existem práticas que constituem a verdade e de imaginá-las. A metáfora, se o historiador adotá-la, o lembrará de que o discurso é um jogo de remissões e de imaginação. Talvez, assim, poder-se-ia descobrir o papel do historiador na sociedade: contar história. Notas * Este texto foi possível graças à bolsa-produtividade da Fundação Araucária. “Mais chez Aristote, le jugement négatif (...) de ce qu’il appelle metaphora dans des domaines improtants, à la fois dans sa logique et dans sa philosophie de la nature, est bien plus marqué. Il soutient par exemple qu’il faut éviter la métaphore et les expressions métaphoriques dans la définition.” 2 “Mon argument est donc que la distinction entre le littéral et me métaphorique – comme la distinction entre me lythe (en tant que fiction) et le récit rationnel – n’était pas seulement, à l’origine, un élément neutre et innocent d’analyse logique, mais une arme forgée pour défendre un territoire, repousser l’ennemi, humilier les rivaux.” 3 “Dans son exigence de clarté, il exclut la métaphore parce que ‘tout ce qui se dit par métaphore est obscur.” 4 “Dire cela est peut-être approprié pour des raisons poétiques – car la métaphore est poétique – mais ça ne l’est pas pour compreendre la nature [de la chose]. D’autres images utilisées par Empedocle et certains philosophes présocratiques sont condamnées parce que qu’elles sont soit obscures, soit grossières, ou qu’elles ont besoin d’être nuancées, ou parce que les similitudes sur lesquelles elles sont fondées sont superficielles, ou même parce que les exemples comparées n’ont aucun point commun”. 5 “La vérité en histoire dérive, en dernière instance, de la visée référentielle des discours des témoins.” 1 Referências bibliográficas CERTEAU, M. (1982). A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. FOUCAULT, M. (1986). A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária. FOUCAULT, M. (1994). Dits et écrits, T IV, “Des espaces autres”, n° 360, pp. 752 - 762, Gallimard, Nrf, Paris. 246 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 André Luiz Joanilho FURET, F. e OZOUF, M. (1989). Dicionário Crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. HULAK, F. (2012). Sociétés et Mentalités: La science historique de Marc Bloch. Paris, Hermann Éditeurs. LLOYD, G. E. R. (1993). Pour en finir avec les mentalités. Paris: Éditions La Découverte. OHARA, J. R. (2013). “Passado histórico, presente historiográfico: considerações sobre ‘História e Estrutura’ de Michel de Certeau”. In : História da historiografia, nº 12, agosto 2013. Ouro Preto. UFOP, pp. 197-212. BARTHES, R. (1968). “L’Effet de reel”. In: Communications, no 11. VEYNE, P. (1982). Como se escreve a história. Brasília: Editora UnB. WHITE, H. (1995). Meta-história. São Paulo: Edusp. Palavras-chave: História; escrita; literalidade Keywords: History; writing; literalness Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 247 O HISTORIADOR E A METÁFORA 248 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO Mariângela Peccioli Galli Joanilho UEL Resumo: Este artigo traz uma análise da designação da palavra ‘língua’ em jornais da Primeira República (1889-1930). O objetivo é compreender como sua designação é estabelecida nas metáforas que produzem os sentidos sobre a palavra língua, as quais mostram que a enunciação sobre a língua, na relação entre o nome língua e outras formas empregadas, assegura a construção da identidade e do sujeito nacional. Abstract: This paper presents an analysis of the designation of the word ‘language’ in newspapers published during the First Republic in Brazil (1889-1930). The aim is to understand how the designation of the word is established in the metaphors engaged in producing its senses, metaphors which show that what is said about language, in the relation between the name ‘language’ and other names employed, ensures the construction of identity and of the national subject. 1. Linguagem, metáfora e subjetivação Toda a experiência em que se manifesta uma subjetividade e em que se coloca a produção de sentidos envolve modos historicamente peculiares de se compreender a própria experiência de si. E estas experiências não se fazem sem se passar pela linguagem. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 249 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO Escolhi, como pesquisadora em Ciências da Linguagem, dedicar-me de modo direto à tarefa de estudar a instanciação do sentido metafórico. Neste estudo, como parte de meu percurso anterior, procurei discutir o fenômeno da constituição do sentido metafórico e sua relação com a memória nas discussões que envolvem a formulação do conceito de língua nacional e, consequentemente, na configuração do processo identitário. Veremos que a metáfora é uma memória que se apresenta em diversos textos. E, como memória, “lembra e esquece e abre caminho para a mudança” (Guimarães, 1998, p.88). Veremos, também, no caso dos textos que apresentaremos que o sentido é uma relação do corpo com as palavras da e na língua. O que permite o deslocamento das designações entre o corpo e a língua é, como mostraremos a seguir, o efeito sobre os enunciados de construções metafóricas que aparecem no texto em um movimento constante de retomadas e reconfigurações construindo, para a língua, uma modalidade de existência particularizante, que opera a sua institucionalização. 2. Tempo, língua e sentido Na tentativa de oferecer uma compreensão adequada do processo metafórico e também da forma como este processo introduz uma temporalidade na atividade linguageira, passo a enumerar, apresentar e comentar rapidamente algumas teses do gramático francês do século XVIII, César Chesneau Dumarsais (1988), produzidas em seu Des tropes ou des différents sens, publicado, pela primeira vez, em 1730, em Paris. As figuras de significação ou tropos estão no centro de sua reflexão teórica. O tropo é para ele um fato de discurso, mas que não tem outra existência que não seja fora da gramática ou, mais especificamente, fora 250 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho das relações entre os elementos da língua. Passemos então a enunciar suas teses. 2.1 Primeira tese: Há uma pulsão/vontade individual que legitima os sentidos da língua Dumarsais propõe a seguinte definição para a metáfora: La métaphore est une figure par laquelle on transporte, pour ainsi dire, la signification propre d’un mot à une autre signification qui ne lui convient qu’en vertu d’une comparaison qui est dans l’esprit. Un mot pris dans un sens métaphorique perd sa signification propre, et prend une nouvelle qui ne se présente à l’esprit que par la comparaison que l’on fait entre le sens propre de ce mot, et ce qu’on lui compare (DUMARSAIS, 1988, p.135). De certa maneira, para o autor, o sentido próprio recobre o literal e o sentido espiritual estaria ligado ao literal, na medida em que todo o transporte (de um sentido a outro) se faz por meio de uma comparação que está no espírito, numa “pulsão/vontade” individual. Há um engendramento que existe entre sentidos que estão garantidos na língua e um desejo do locutor. Isso faz com que Catherine Détrie (2001) afirme que a contribuição fundamental de Dumarsais seja esta de colocar precisamente o papel do sujeito falante na emergência do fato metafórico. Assim, a autora explica: (…) la métaphore n’a d’existence que par la volonté d’un sujet parlant de travailler la signification d’un mot et de la modifier en fonction “d’une comparaison qui est dans l’esprit” de celui qui sollicite une expression métaphorique. Il enrichit ensuite sa réflexion en mettant en relief le rôle de la syntaxe dans le fait Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 251 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO métaphorique. Ce deux points n’avaient pas été précisément envisagés avant lui (DÉTRIE, 2001, p.48). Mas resta ainda, na perspectiva de Dumarsais, um caráter de transporte de sentido para a metáfora, isto é, para ele, a metáfora é descrita em termos de uma transferência de significação, que se faz no “espírito” do locutor. A distinção entre sentido literal e sentido próprio se faz na medida em que o primeiro se define, ainda para Dumarsais, como a significação que a palavra apresenta imediatamente ao espírito daquele que conhece a língua. Haveria então uma relação constitutiva entre os dois sentidos, algo que se definiria como se o sentido literal fosse uma significação que passasse necessariamente pelo locutor e o sentido próprio dissesse respeito ao sentido lexicalizado, na medida em que a anterioridade (a literalidade) se faria no “espírito” do falante, sujeito legitimador dos sentidos da língua. O “constitutivo”, nesse caso, designaria, então, não uma constituição dada, mas um processo de instauração. Isso acontece porque, para Dumarsais, o sentido figurado funciona de forma que faz parte da “vontade” do locutor na expressão de suas ideias, de seus enunciados. Détrie (idem, p.45) chama a atenção para isso, quando comenta que, para Dumarsais, “(…) le choix du trope correspond de la part du locuteur à une volonté d’adéquation maximale entre la volonté de dire et de la façon dont il le dit”. Isto é, ainda como propõe a autora, o efeito do tropo em Dumarsais é o de revelar uma ideia principal, por meio de qualquer outra ideia acessória, de dar mais energia às nossas expressões, de ornamentar o discurso e de torná-lo mais nobre, enfim o tropo permite enriquecer a língua, multiplicando o uso de uma mesma palavra. Ou seja: O sentido, para ele, é algo que se faz na relação entre a vontade do sujeito (o desejo individual de significar) e a sintaxe da língua. 252 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho 2.2 Segunda tese: Todos os fenômenos semânticos podem ser explicados relativamente à teoria das figuras O quadro estabelecido por Dumarsais sobre a relação entre as figuras e a realidade apresenta a formulação de uma teoria da significação, pois suas hipóteses se voltam para conceber em toda língua a existência de um conjunto de ligações entre sons-ideias, a partir do qual todos os fenômenos semânticos podem ser explicados relativamente à teoria das figuras; assim, a teoria dos Tropos estaria construída de tal maneira, que só valeria se pudesse ser explicada a partir desses princípios. Vemos então Dumarsais fazer avançar questões da ordem e do funcionamento da linguagem e das línguas. Sabemos que estas questões são trazidas por outras teorias, não pelas mesmas vias, mas por vias que se resvalam e se tocam, por pontos de sentido (o efeito metafórico de Pêcheux, os eixos metafórico e metonímico de Jakobson e de Milner) e, por que não, de não-sentido (o nonsense de Lacan), por pontos instauradores das questões da significação, que trazem consigo múltiplos usos e múltiplas potencialidades passíveis de inúmeros enriquecimentos para o que envolve a conhecida fórmula qualquer coisa colocada no lugar de uma outra. Esta segunda tese está estreitamente relacionada a uma terceira e última, que formularemos da seguinte maneira: 2.3 Terceira tese: Existe um arbitrário semântico fundador das relações de sentido na linguagem Para falar deste arbitrário semântico, tomaremos as considerações de Auroux (1979), em La sémiotique des encyclopedistes. Nesta obra, o linguista discute amplamente as formulações do gramático sobre a teoria das figuras relacionada ao estudo genético da língua – ou seja, ao Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 253 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO seu funcionamento na gramática, e nas redes parafrásticas estabelecidas pela tradução. Assim, para Auroux, ao arbitrário da teoria da significação, a teoria dos Tropos inclui algo como se fosse um contraditório fundador das relações de significação, isto é, um arbitrário semântico, de forma que, pela via dos Iluministas, dizer que uma palavra ou uma expressão muda de sentido, significa dizer que ela designa uma ideia que não é a sua significação, seu sentido próprio. Enfim, qualquer que seja a situação, a teoria das figuras limita os efeitos do arbitrário semântico que ela permite descrever, a partir do que o autor chama de efeito de sentido da figura, produzido com base nas relações entre designação, tradução e paráfrase, operações que preservariam esse arbitrário semântico. Nas palavras do autor: Du moment qu’on admet l’universalité des idées, comme représentations du monde et comme significations du langage, cette équivalence est préservée lors de la traduction. Soit qu’une expression manque et qu’on la rende par une paraphrase, soit qu’on traduise le sens propre d’un terme par l’emploi figuré d’un terme qui n’a pas le même sens propre, le Trope préserve en chaque cas l’identité de ce dont on parle. (...) La traduction est doublement concernée par cet effet de sens; d’un côté elle doit l’assigner tel qu’en lui-même, de l’autre elle doit le traduire (AUROUX, 1979, p.286-287). Por um lado, deve-se, então, garantir o termo e, por outro, deve-se traduzi-lo. Ainda, segundo Auroux: 254 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho Une conclusion s’impose immédiatement: la traduction met en evidence une scission fondamentale entre figuration et signification. Nous nommons signification d’une expression une idée qui comme b est designée par cette expression à la suite d’un processus de figuration. (…) Dans une langue donnée, les figures sont différentes façons de présenter une même pensée qui lui confèrent des qualités adjacentes (ao qual conferimos qualidades adjacentes). Dans des langues différentes, les différences de figuration, c’est-à-dire l’arbitraire sémantique, sont également différentes façons de présenter le savoir vrai du monde, qui donnent a ces langues leur visage particulier et leurs qualités propres. Ou seja : l’arbitraire demeure l’accidentel et l’accessoire, contingence irréductible qui, constituant l’esprit ou le génie de chaque peuple, exprime pourtant une même raison universelle sous de teintes différentes. (...) Les figures ne sont pourtant pas sans effet sur la connaissance (AUROUX, 1979, p.288-289). É um belo enunciado produzido por Auroux este que propõe a razão universal pintada por tintas diferentes, que traz toda a força das questões que envolvem a significação do processo metafórico, notadamente quando se afirma que são as figuras que garantem as diferenças entre as línguas. Questões anunciadas e desenvolvidas por Dumarsais, pelos enciclopedistas franceses, das quais estamos aqui, tentando tocar alguns pontos sensíveis, para, mais uma vez, tentar mostrar como o processo metafórico ultrapassa a questão do desvio, do afastamento e das divisões, nos caminhos constitutivos das relações de sentido na linguagem. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 255 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO 3. Língua, metáfora e memória Como ficariam então todas estas reflexões sobre o sentido metafórico trazidas agora para a produção das singularidades, quando se pensa a discussão da língua nacional no Brasil do início do século XX? Na perspectiva teórica da Semântica do Acontecimento ou dos estudos históricos da enunciação, perspectiva na qual me coloco para refletir sobre a questão da significação na linguagem, não há como falar de sentido sem falar de memória, ou falar de memória, sem falar de sentido. Pretendemos tomar esse assunto em sua dimensão histórica, ou seja, tentar compreender que práticas fizeram com que o sujeito, que não deixava sua identidade (de brasileiro) transparecer pela língua, passasse a se marcar no interior dos enunciados, através de inovações linguísticas, como o aumento do uso de certas estruturas, que eram aceitas pela comunidade. Para isso, a compreensão do funcionamento do sentido metafórico é fundamental. É interessante compreender nos textos, por exemplo, como a metáfora–local modulada, organizada argumentativamente pela expressão referencial “no Brasil”, relativizando os efeitos de retórica na memória, aparece sustentando o dizer nas formulações dos autores, construindo os sentidos da identidade nacional. Passaremos então a destacar algumas metáforas que apareceram nos textos jornalísticos para verificar a construção da textualidade. De certo modo, poderemos perceber que, para os autores dos artigos jornalísticos do início do século XX, pertencer à mesma língua seria, nesse momento, a marca da extensão de uma mesma civilidade, significando que uma só língua seria compartilhada em terras diferentes. Efeitos dos jogos de identidade e representação numa política de línguas. Então, 256 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho estudar a língua inclui o estudo da forma como se produz conhecimento sobre a língua: foi o que busquei quando trabalhei os textos do jornal. 4. Língua, naturalização e individuação O jornal O Estado de São Paulo era, inicialmente, um periódico produzido pela elite letrada brasileira. Foi fundado em 1875, por um grupo de republicanos, liderados por Francisco Rangel Pestana e Américo de Campos. Nessa época, chamava-se A Província de São Paulo e, só passou a ter a outra nomeação a partir de 1889, com a Proclamação da República. Entre o final do século XIX e início do XX, o periódico era apresentado na forma de um caderno de seis a oito páginas, dividido em várias seções em que circulavam desde anúncios sobre temas variados, até traduções de romances franceses e artigos científicos. Ainda naquele momento, principalmente em fins do século XIX, havia toda uma ordem positivista que orientava as discussões dos articulistas e colaboradores menos frequentes. Os enunciados que aparecem em seguida foram extraídos de artigos escritos por Oliveira Lima (um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, diplomata e, por vários anos, professor em Washington) e Silvio de Almeida (professor de língua portuguesa na Escola Normal, em São Paulo, e colaborador no jornal O Estado de São Paulo, por mais de uma década e meia). A análise dos artigos nos permitiu verificar que a discussão sobre a língua nacional está posta, em um primeiro momento, pela ordem de uma naturalização, isto é, há um conjunto de metáforas que predicam a língua portuguesa no Brasil como um corpo que sustenta a nacionalidade daquele que aqui nasceu. Apresentaremos, em seguida, a análise de algumas sequências 1 extraídas de um artigo escrito por Oliveira Lima e de dois artigos Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 257 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO assinados por Silvio de Almeida. O texto produzido pelo primeiro autor foi publicado em uma seção do jornal intitulada “Coisas Nacionais”, na qual ele escrevia regularmente; já Silvio de Almeida publicou seus textos na coluna “Divagações” por mais de uma década. Um estudo da designação dos nomes nas colunas diárias do jornal mostraria uma compreensão bastante interessante da linguagem e da significação, que, como bem sabem aqueles que trabalham as discursividades da língua, não é nem neutra, nem transparente... Voltemos então às sequências que nos interessam. Como afirmamos anteriormente, trataremos, em primeiro lugar, dos enunciados produzidos por Oliveira Lima, transcritos como no original: (1) O periodo de transição que atravessa no Brasil o portuguez transplantado, é certamente o que mais influe na geral imperfeição grammatical do momento actual: porquanto é curioso observar que as questões da lingua assumem proporções nacionaes e um caracter grave, numa terra em que de ordinario se não escreve bem. (...) Por isto mesmo, para que taes imperfeições externas á não convertam numa deformação essencial, é que mais necessario se torna ter sempre presente o que Gonçalves Dias denominava o respeito devido ao genio da lingua (...). (2) As alterações, assim, operarão superficialmente, mesmo sensivelmente, mas sem tocar nas fontes vivas e na estructura intima do idioma. A transformação inevitavel tem aliás de ser regrada para se não tornar anarchica, de ser paulatina para não se desmanchar na precipitação. Ao cabo poderá bem acontecer que affecte o fundo, naquelle genio da lingua. Traduzindo este como traduz o caracter do povo, há de modificar-se afinal se o caracter, apresentar differenciação notavel. 258 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho (3) A relação entre a lingua e o caracter nacional é uma coisa innegavel, tanto que se conhece logo o escriptor que, escolhendo outro idioma para meio de transmissão dos seus pensamentos, deixa de lado o instrumento proprio e adequado á communicação intellectual com o seu publico. A’s linguas correspondem pois certos predicados de raça ou de povo, ou por outra, estas qualidades refletem-se na expressão idiomatica (Oliveira Lima, A LINGUA PORTUGUEZA NO BRASIL - COISAS NACIONAES, O ESTADO DE SÃO PAULO, Quinta-feira, 23/05/1907). As considerações de Oliveira Lima sobre a mudança imposta pelo Acordo ortográfico traziam a questão da modificação do corpo da língua como a não-aceitação da diferença, sob pena de condenarmos a sua estrutura. Da sequência (1), podemos extrair as seguintes expressões, todas relativas às transformações no “corpo” da língua: “imperfeição grammatical”, “imperfeições externas á não convertam numa deformação essencial”, ou ainda, “(...) produziremos uma deformação essencial se tocarmos as fontes vivas e a estrutura íntima do idioma”. Para o autor, a mudança deve ser “regrada para se não tornar anarchica, de ser paulatina para não se desmanchar na precipitação”. Ele ainda formula a previsão do que, para ele, parece inevitável, como aparece no trecho final da sequência (2): “Ao cabo poderá bem acontecer que affecte o fundo, naquelle genio da lingua. Traduzindo este como traduz o caracter do povo, há de modificar-se afinal se o caracter, apresentar differenciação notavel”. Ao contrário de Oliveira Lima, que em suas considerações sobre a língua nacional apresentava um tom mais brando, Silvio de Almeida era mais ácido. Para ele, as simplificações, produto do Acordo ortográfico, eram: “aleijões” (sequência 5) ou “ fruto pêco” (sequência 5); e, a Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 259 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO própria Reforma era uma “cacografia” (sequência 4) ou um “parto perdido” (sequência 6) da Academia Brasileira de Letras (sequência 6). Vemos, então, como Silvio de Almeida, afetado pelos sentidos impostos pela reforma, se coloca em uma posição em que observa que a língua, nessa sua nova ordem, torna-se “fruto pêco”, que não vingou. Para o autor, uma língua define-se pelo uso, pela “força assimiladora dos povos que a falam”, e não por imposições, “por movimentos intempestivos” feitos pelos “imortais”. Estas questões, embora se inscrevam a partir da epígrafe de “Divagações”, servem para situar o trabalho de S. de Almeida na sua época e apresentar o problema de linguagem a que ele responde: a constituição de uma forma de pensar sobre a língua nacional em que a questão da unidade se mantém: pois ao mesmo tempo em que põe um modo de pensar sobre a língua que está constituído pela sua historicização em um outro território, em um novo espaço e em um novo tempo, está fortemente significado pelo desejo de manutenção de uma unidade com Portugal, pelo desejo de pertencer à mesma língua. De certo modo, pertencer à mesma língua seria, nesse momento, a marca da extensão de uma mesma civilidade, significando que uma só língua seria compartilhada em terras diferentes. Mas há uma contradição fundamental em Silvio de Almeida: ao mesmo tempo em que não aceita a mudança, inclui a diferença pelo uso, quando incorpora em seu texto termos de línguas indígenas, como “pajés” e “tanga” (sequência 4): (4) Ninguem nega que – de parte uma ou outra assignalada excepção – na Academia Brasileira de Letras se reune a fina flor da nossa mentalidade. Alli, como em solenne floresta, vivem, longe de profanos olhares, os insignes pagés da brava gente que a sabida Europa já considera – homens de frak e de 260 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho chapéu de cocó, que não mais selvagens de tanga, de arco e flecha, e comedores de carne humana...(...). Mas, seja qual for – e já reconheci que é muita – a autoridade de Academia de Letras, certamente que essa autoridade não acoberta, nem póde acobertar, a sua recente reforma orthographica, que do sempre caustico sr. Carlos de Laet mereceu o carregado nome de cacographia.(...). (5) As simplificações se confundem com aleijões, que feramente maltratam os nossos habitos visuaes; e não só reformam, mas tambem deformam a graphia do portuguez. Fruto pêco de tantas locubrações doutoraes foi a substituição de umas por outras incongruencias. Mas então é natural que a estas, novas e anomalas, prefiramos aquellas que o uso tolera e até consagra. Exemplo dá-nos, eloquente, a propria natureza da conservação de certos orgams que perderam a sua primitiva função: elles não desapparecem de chofre; e o mesmo se pudera dizer de algumas letras, que ficam attestando na palavra o seu anterior esqueleto, mais complicado e possante. (6) Á refórma intempestiva que em má hora recebeu a consagração dos brahmanes academicos (pouco menos repulsiva, porém, mais illogica, do que a dos positivistas ou do barbeiro Nunes) mal póde servir para augmentar a nossa désordem graphica, sob o especioso pretexto só agóra lembrado, de se pôr a escripta ao alcance dos ignorantes... Fundada, há tantos annos, a nossa academia, como certos animaes, perdeu o seu primeiro parto serodio, pois que se metteu a ensinar o povo como é que elle deve escrever errado... (Silvio de Almeida, DIVAGAÇÕES, O ESTADO DE SÃO PAULO, Segunda-feira, 15/07/1907). Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 261 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO Em um artigo que foi publicado em 23 de Setembro de 1907, Almeida produz uma divisão entre poder político e poder/saber filológico, a partir de elementos que fazem a particularização de seus sentidos num movimento que traz a inversão da metáfora do “corpo deformado”, trata-se então de metáforas que fazem uma passagem do corpo à língua, da língua ao corpo: a designação formula para a língua um sentido mais espiritual do que orgânico, como podemos verificar pelas considerações que o autor tece no penúltimo parágrafo de seu texto, transcrito pela seguinte sequência: (7) Foi, em grande parte, a conservação da estructura vocabular, com as suas “superfluidades”, que permitiu achar no thesouro da linguagem, como em um sacrario, a alma das velhas gerações, essa alma que não morreu porque a escripta, principalmente, a perpetuou! Esta questão da divisão do corpo, ora mutilado, ora sacralizado retorna em seus textos, às vezes de maneira velada, às vezes de forma veemente, oferecendo-nos interessantes metáforas sobre a língua nacional, como se vê, por exemplo, nos segmentos que finalizam o artigo: (8) Eu espero (alegrem-se os leitores!) não ter mais necessidade de ativar outra pá da terra sobre esse Monstro philologico que, já morto, saiu das entranhas primiparas da Academica. Do necroterio scientifico, foi elle, em pedaços, para o cemiterio do passado, donde sairá talvez em alguma revista de anno ou nas allegorias do carnaval... (Silvio de Almeida, DIVAGAÇÕES, O ESTADO DE SÃO PAULO, Segundafeira, 23/07/1907) . 262 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho De tão adulterado, modificado, deformado, o corpo torna-se “monstro”! Essa não aceitação da mudança imposta e a insistência, por um lado pela unidade e, por outro, pela evolução natural da língua, marcam as discussões que perpassaram o ano de 1907. O que elas nos mostram é que, no movimento dos sentidos, a metáfora local traz a possibilidade de compreender as oscilações entre o mesmo e o diferente, na discussão sobre os sentidos da língua nacional. A escola, o solo, a terra funcionam na construção da referência no acontecimento (GUIMARÃES, 2002) para os sentidos da língua nacional. O povo, em todas as suas articulações com outros nomes (“almas”, “selvagem”, “estrangeiro”), reescreve o sujeito nacional. Portanto, é através de um jogo entre metáforas locais (a língua é esteio, é corpo que sustenta e/ou deforma a nacionalidade), no processo metafórico, que se funda um espaço próprio para significação na/da língua. É através do duplo jogo – entre metáfora local e processo metafórico – que encontramos um sujeito efeito da linguagem, um sujeito que significa pela divisão, pela desestabilidade na ordem do acontecimento. 5. Considerações Na última década, vários estudos sobre a gramatização brasileira do português mostraram como as questões que envolvem a língua colocam fortemente o problema da unidade nacional e o da diversidade regional. A retomada das metáforas construídas nos textos dos escritores no jornal republicano produz um efeito de memória que consiste em reescrever o discurso da unidade nacional (e transnacional) em um momento histórico no qual a identidade é colocada pelo mesmo movimento que suspende a diversidade. E isso é o jogo da língua que opera; um jogo político e não etimológico. Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 263 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO Trata-se de uma guerra velada entre “estar no mesmo” e “significar o diferente”, cujo horizonte é a política: uma política de línguas que suspende a diversidade para significar na unidade. Trata-se de um corte fundamental que inaugura a nacionalidade, cujos sentidos não escapam aos contemporâneos, os jornalistas republicanos, em um momento e em um lugar particulares: um jornal paulista do início do século XX. Assim, a análise dos textos publicados no jornal põe em evidência o gesto de escrita desses autores que ultrapassa as reflexões dos discursos legitimados sobre a língua. O gesto de escrita no jornal marca a forma de inaugurar um pensamento sobre a língua que a relaciona não só com seus movimentos internos, mas com a exterioridade: a língua no jornal vem “carregada de exterioridade”. É interessante notar como a constituição das metáforas de referência nos textos produzidos/publicados no jornal produz uma forma compreensão para esse período da gramatização brasileira do português, pois mostra a inauguração de um gesto de escrita que ultrapassa as evidências das reflexões nas falas estabilizadas sobre a língua: um gesto que marca a história cotidiana desses atores ordinários e a sua relação com a língua em uma lógica do texto que produz um pensamento sobre esse conceito em um momento e em um espaço em que a ideia de nação se estabelece. Nesse sentido, o Acordo ortográfico de 1907 apresenta certo número de pontos significativos com relação à língua em sua unidade: mostra como a elaboração de um movimento de reforma coincide com um momento de engajamento teórico e de crise de legitimidade, pois sublinha como as decisões teóricas fundamentais sobre a língua tomadas por uma comissão marcam a elaboração de uma metalinguagem concebida como instrumento decisivo na história da constituição do sujeito nacional. Neste estudo, propusemos duas questões norteadoras: uma que perguntava sobre o modo de funcionamento da metáfora e outra sobre os movimentos que produz na constituição dos sentidos da língua 264 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho nacional. De certa forma, com a primeira questão, estávamos tentando estabelecer uma maneira de nos aproximar desse fato de linguagem, pois buscávamos compreender o que faz, afinal, com que algo, com que um fato de linguagem seja considerado uma metáfora? No decorrer do trabalho, buscamos oferecer certos pontos sensíveis, alguns caminhos para responder a esta questão. A tentativa era a de construir um dispositivo teórico-analítico, no qual a compreensão da metáfora se fizesse a partir de deslocamentos conceituais, para produzir uma análise dos processos de designação que possibilitaram a construção da referência, isto é, “da particularização no acontecimento enunciativo”, como propõe Guimarães em seus estudos, para a nomeação “língua nacional”. Observamos então que os sentidos da língua nacional se fizeram no contraponto com os da escola e os do sujeito nacional, em certo momento, mas também a partir de uma divisão política fundamental, em que a ordem da língua era estabelecida pela ordem do corpo, como se a corporificação da diferença estivesse marcada na língua. Sobre os deslocamentos, podemos dizer que dois procedimentos foram importantes para esta compreensão das relações do sentido metafórico. São eles, a transferência (no processo) e a singularidade (na significação local). Com relação ao primeiro, a transferência – na relação metafórica em que o sentido se faz pelo deslizamento do significante – ou um significante pelo outro, podemos dizer que há a inscrição de uma diferença, pois ao deslizar, o significante retorna trazendo, nesse movimento, a inscrição da diferença, da ordem do distinto: a suspensão do sentido e o efeito de retórica na memória. Chegamos aqui à seguinte formulação: a metáfora local aparece na forma de uma significação, como um rompimento no eixo do sentido, que faz com que o deslize não seja indefinido, pois promove uma suspensão do tempo, não do tempo lógico, cronológico, mas da temporalidade do acontecimento, do tempo da significação. A singularidade, como marca do fenômeno local no acontecimento, funciona no processo de linguagem de forma que indica o que é estabilizado e o que não é. Com efeito, a questão que se colocou foi a de trabalhar essa singularidade histórica – o sempre-novo da forma-sentido –, quando pensamos no processo de constituição dos sentidos da língua nacional. Em outros termos, havia uma questão teórica nodal que “reclamava os Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 265 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO seus sentidos”. Ao longo do estudo, afirmávamos sobre a questão da historicidade como constitutiva da singularidade no processo metafórico. O que me interessava era considerar que, no processo metafórico, o imaginário que irrompe na estrutura vem não como atitude (pragmática) do sujeito, mas como efeito do sempre-novo no acontecimento. É a história trabalhando a forma-sentido, de modo que não haja recobrimento entre a singularidade e o processo de subjetivação. Desse modo, enquanto a primeira funcionaria como ponto de materialização da significação na língua, como momento em que se mostra que é estabilizado o que não é estabilizado, cuja produção vem como efeito de memória no acontecimento; o segundo é relativo à instanciação da subjetividade no processo metafórico. A meu ver, esta prática se constitui em um processo discursivo que possibilita a construção de um espaço dizível para o sujeito e para a língua no Brasil. Isso pôde ser compreendido, nas sequências analisadas, a partir do jogo constitutivo das metáforas sobre a língua nacional, produzidas em uma ordem de corporificação dos sentidos, através de uma redistribuição dos sentidos da metáfora local “a língua é esteio da nação”, trazida pelo efeito de retórica na memória, ao indicar o pertencimento do sujeito a terra, na constituição da identidade nacional. Assim, podemos afirmar que, por meio do jogo entre metáforas locais (a língua é esteio, é corpo que sustenta e/ou deforma a nacionalidade), no processo metafórico, se funda um espaço próprio para significação na/da língua. É através do duplo jogo – entre metáfora local e processo metafórico – que encontramos um sujeito efeito da linguagem, um sujeito que significa pela divisão, pela desestabilidade na ordem do acontecimento. Notas 1 Uma análise mais detalhada destas e de outras seqüências encontra-se em: JOANILHO, M.P.G. (2005) As metáforas da língua nacional. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp. (inédita) 266 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Mariângela Peccioli Galli Joanilho Referências bibliográficas AUROUX, S. (1979). La sémiotique des encyclopedistes. Paris: PUF. ______. (1992). A Revolução Tecnológica da Gramatização. (Tradução de Eni Puccinelli Orlandi). Campinas: Editora da UNICAMP. DÉTRIE, C. (2001). Du sens dans le processus métaphorique. Paris: Honoré Champion. DUMARSAIS, C. (1988). Des tropes ou des différents sens. Paris: Flammarion. (Présentation, notes et traduction: Françoise Douay – Soublin). DÉTRIE, C. (2001) Du sens dans le processus métaphorique. Paris: Honoré Champion. DUMARSAIS, C. (1988). Des tropes ou des différents sens. Paris: Flammarion. (Présentation, notes et traduction: Françoise Douay – Soublin). GUIMARÃES, E. (1995). Os Limites do Sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes. ______. (1996) “Sinopse dos Estudos do Português no Brasil. A Gramatização Brasileira”. In: GUIMARÃES, E.; ORLANDI, E. Língua e cidadania. Campinas: Pontes. JOANILHO, M.P.G. (2005). As metáforas da língua nacional. Instituto de Estudos da Linguagem. UNICAMP: Campinas. Tese de Doutorado (inédita). Palavras-chave: língua; identidade nacional; designação Keywords: language; national identity; designation Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 267 DAS RELAÇÕES DE SENTIDO NA LINGUAGEM OU SOBRE COMO A METÁFORA PRODUZ O ACONTECIMENTO 268 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 RESENHA VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp. Filósofo, urbanista, professor emérito da École Spéciale d’Architecture de Paris, detentor de uma linha de pensamento heteróclita e fundada em saberes que vão do urbanismo à filosofia, passando pela economia e a política, Paul Virilio é um dos nomes mais eminentes, mundialmente, no cenário intelectual. Além disso, é autor de trabalhos visionários sobre tecnologia e velocidade, e sobre a realidade proveniente deste encontro, o que ele nomeia de dromosphère. Dos títulos que compõem e representam seu quadro de ensaios, temos a oportunidade de dizer sobre um dos seus mais recentes empreendimentos teóricos: L’administration de la peur (2010), ainda sem tradução para o português. A administração do medo é mais uma entrevista concedida pelo filósofo francês à editora Textuel (Paris), e que compõe a série “Conversations pour demain”. A primeira entrevista concedida por Virilio à Textuel foi realizada por Philippe Petit, e publicada em 1996, sobre o título Cybermonde: la politique du pire. Agora, a presente entrevista, conduzida por Bertrand Richard, tem o objetivo de verificar o que mudou ou permaneceu no pensamento do urbanista durante estes catorze anos. Logo no prefácio do livro, Richard relata que nos dias de hoje há um jogo de cunho sociológico e moral que inverteu o campo dos valores para fazer do medo não apenas um sentimento legitimado, mas mais ainda: uma espessura temperamental suplementar, um signo de sabedoria, um instrumento do pensamento, uma propedêutica (p.8). Nessa linha, o caos climático, pânicos na bolsa, fobias alimentares, ameaças pandêmicas, colapsos econômicos, ansiedades congênitas, crises existenciais e diversos outros medos, individuais e coletivos, apresentam uma dinâmica própria, na qual a desculpabilização possui razões históricas, filosóficas e políticas, além de uma série de motivações, das quais podemos destacar o questionamento dos valores tradicionais, a desconstrução dos grandes relatos, o progresso das ideias Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 269 RESENHA VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp. individualistas e o desabamento das instituições que protegem tradicionalmente o indivíduo contra os riscos da existência: a Igreja, a família, os sindicatos, ou até mesmo um Estado providente e poderoso. O que explica a propagação contemporânea do medo, segundo Richard, é um duplo fenômeno. De um lado, o questionamento da capacidade da ciência e do progresso em prover a segurança e a felicidade da humanidade após as violências do século XX e a nuclearização do mundo, e por outro, a difusão do pensamento do filósofo alemão Hans Jonas, que toma nota destas atrocidades e faz do medo um verdadeiro “princípio heurístico”, ou seja, para pensar adequadamente o mundo é preciso começar pelo medo. Nesse sentido, vemos que Richard contextualiza a dinâmica do medo, para pensá-lo como princípio fundador e central na articulação do histórico, do filosófico e do político. Assim, a entrevista de Virilio, apresentada em três capítulos, presta um esclarecimento indispensável para se compreender este contexto recordado pelo entrevistador neste prefácio, ao mostrar que a interpretação do mundo contemporâneo se funda em uma visão do real extremamente original, e, por vezes, enraizada e descentrada, visto que o que se resta a fazer é administrar o medo. Dessa forma, de um lugar específico de reflexão, o das ciências da linguagem, o que nos interessa desta conversa entre Richard e Virilio são os deslocamentos efetuados pelo filósofo em sua linha de pensamento e uma compreensão sobre o funcionamento dos sentidos em torno do medo que nos possibilita vê-lo como um verdadeiro acontecimento de linguagem1, e também de forma metaforizada para se pensar o mundo de hoje e a sua relação com a velocidade e a tecnologia. O primeiro capítulo intitula-se “O terror é o cumprimento da lei do movimento, Hannah Arendt”, e como ponto de partida o filósofo francês é questionado sobre o que ele entende por “administração do medo” (p.15). Como resposta, Virilio responde que utiliza o termo para significá-lo de duas formas. Primeiramente, o medo é um ambiente, um meio, um mundo, o medo não apenas preocupa, ele também ocupa um lugar. Por outro lado, o medo é também um fenômeno ligado aos acontecimentos localizados, identificados e circunscritos no tempo: guerras, fome, epidemias etc. Desse modo, vemos que para o autor o medo significa enquanto algo que é espacificado, ele habita um lugar, e enquanto um fato no tempo, o que permite que o desloquemos da categoria de sentimento, para pensá-lo como metáfora: “o medo é 270 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Anderson Braga do Carmo mundo, pânico, no sentido de ‘totalidade’” (p.16). Além desse sentido, a administração do medo significa também que os Estados são tentados a fazer do medo, de sua orquestração, de sua gestão, uma política: os Estados buscam assegurar aos cidadãos, convencê-los de uma segurança corporal. Assim, uma dupla ideologia, sanitária e de segurança, realiza-se ao fazer pesar as reais ameaças sobre a democracia. Dessa forma, vemos funcionar por um lado uma espessura física, de sustentação do medo, que é espacial e temporal, e por outro o aspecto ideológico, que o administra, e é assim que o medo se materializa e passa a significar no pensamento de Virilio: uma ocupação física e mental. Na formulação desse pensamento, a velocidade (la vitesse) e a tecnologia, categorias fundamentais para o filósofo, são outros aspectos que serão colocados em questionamento pelo entrevistador. Ao que o urbanista articula em resposta: o medo e sua administração são hoje sustentados pela incrível difusão, e propaganda, das tecnologias do tempo real, essencialmente as novas tecnologias da informação e da comunicação (p.17). Nesse sentido, a dominação técnico-científica reproduz todas as características da ocupação, física e mental, do medo. Duas referências são fundamentais para Virilio, e as quais não poderíamos desconsiderar. A primeira é o livro de Graham Greene, o “Ministère de la peur”, visto que este título faz eco direto com o título da entrevista em tela. E a outra, a qual o urbanista se deterá mais, é a pensadora alemã Hannah Arendt, de quem o autor retirou a frase que nomeia o capítulo: “o terror é o cumprimento da lei do movimento”. Da mesma forma que a filósofa, Virilio compreende o terror não apenas como um fenômeno emocional e psicológico, mas como um fenômeno físico, no sentido da ciência física, e da cinética, o que faz dele um fenômeno ligado ao que ele nomeia “aceleração do real”. Por “lei do movimento”, Arendt entende o fato de que se deve relacionar o terror à vida e à velocidade” (p.22), o que o autor diz ser autorizado pela tecnologia. Assim, a “lei do movimento”, teorizada por Arendt é a lei da velocidade. O autor reforça o fato de haver também o “equilíbrio” do terror, o que para ele é o coração, o princípio gerador da administração do medo. O filósofo diz que o equilíbrio do terror está sobre tudo e, concretamente, é um equilíbrio militar que repousa sobre a indústria de Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 271 RESENHA VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp. armamento e sobre o complexo da ciência. Para Virilio, quando a ciência começa a se militarizar após a guerra de 1914 com os gazes de combate, e, literalmente, com as bombas jogadas em Hiroshima e Nagasaki, têm-se aberto o espaço do medo cósmico. Logo, vivenciamos nos dias de hoje a era do equilíbrio do terror. É por conta deste estado de equilíbrio do terror, esta operação de alternância que articula o desenvolvimento da ciência com a velocidade, a instantaneidade causada pelos avanços da tecnologia, principalmente da comunicação e transmissão de informação, que se coloca em primeiro plano o tempo real, o viver, em detrimento do espaço real, ou seja, o espaço real da geografia está ligado ao tempo real da ação humana e assume caráter secundário perante este (p.31). Virilio, para finalizar este primeiro capítulo, chama atenção para uma última distinção, entre progresso e a propaganda deste. Para o urbanista o progresso foi contaminado pela propaganda, e é a esta que o filósofo é contra. O que acontece hoje é que a propaganda substituiu o progresso, e ela propaga uma realidade aumentada, uma realidade acelerada, o que favorece a ocupação do medo. O segundo capítulo intitula-se “Administrar o medo: para uma dissuasão civil”, no qual o urbanista inaugura dizendo que a questão do medo é polissêmica. Segundo Virilio, o medo surge em um momento histórico em que os três grandes medos (o equilíbrio do terror com a bomba atômica, o equilíbrio do terrorismo com a bomba informática e o grande medo ecológico com a explosão da bomba genética) manifestaram um extraordinário poder de condicionamento. No entanto, por trás desta influência, temos apagado o poder de uma ideologia. O que se apaga neste caso é a propaganda do progresso, ou seja, a questão da velocidade e de sua violência. É esta ideologia da velocidade, apagada, que é portadora do medo e do terror, é esta que causa o condicionamento. Assim, diz o filósofo, se tempo é dinheiro, a velocidade é o poder, a essência do poder (p.44), e, portanto, como não ter medo do poder, da ubiquidade, da instantaneidade, que são na origem, significativamente, os atributos do divino? Desse modo, diante da aceleração da vida cotidiana, o medo tornase, em tempos de paz, um ambiente (environnement). Assim, habitamos o acidente do globo, o acidente de sua instantaneidade, de sua simultaneidade e da interatividade o que implica sobre a sua atividade ordinária (p.46). É nesse sentido, inclusive, que se pode pensar que para 272 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Anderson Braga do Carmo Virilio habitamos o tempo. Ao tornar-se um ambiente, no sentido em foi realizado a fusão do securitário e do sanitário, o medo, ou a propaganda do progresso nos preocupa permanentemente, e nos ocupa perpetuamente. Desse modo, o sujeito está em uma situação de ocupação nos dois sentidos do termo, temporal e marcial. Esta ocupação que monitora, telesupervisiona, sonda, testa e avalia sem cessar está cada vez mais presente, e é cada vez mais aceita como uma fatalidade, um destino. Se no primeiro capítulo Virilio falou de uma primeira dissuasão, militar (o equilíbrio do terror), neste segundo capítulo ele centra em uma segunda dissuasão, civil. Para o urbanista, hoje, face ao desequilíbrio do terror, a tentação é grande para os diversos poderes militares ou civis de instaurar uma dissuasão civil, ou seja, um estado de medo que permita congelar as situações sociais conflituosas. Assim, a insegurança social contemporânea se liga à insegurança do território da contração temporal. Este estado de dissuasão civil, por sua vez, está próximo de por em questão a democracia. Para o filósofo, estamos vivendo a era da substituição e da repulsão. Nesse sentido, o medo gerou não apenas seu ambiente, com os guetos, as comunidades fechadas, o comunitarismo, mas também gerou sua cultura, uma cultura da repulsão, o que vai junto com o racismo e a rejeição ao outro. Para finalizar o capítulo, o autor diz que há uma detenção que vive diante de nós. A claustrofobia de massa que invoca povos é uma das razões do grande medo ecológico, que se caracteriza notadamente pelo receio de um planeta incapaz de assegurar nosso desenvolvimento (p.67). É por isso que o movimento, o escape, o êxodo, tornam-se fenômenos permanentes. A única solução diante disso é mover constantemente ou ainda fugir definitivamente. O terceiro capítulo recebe o nome de “Novos medos, novos combates”. O filósofo inaugura o capítulo dizendo sobre a velocidade, umas das palavras-chave do seu pensamento como notamos pelo decorrer da entrevista. Para Virilio, o drama da nossa sociedade atual, esta ocupação do medo, está fundado sobre a velocidade. Para ele o próprio da velocidade é que o seu sucesso é o seu dano, é o sucesso em ser veloz que leva ao catastrófico. Para o urbanista, a ciência está no início de um verdadeiro craque sistêmico, de um coma filosófico. Perante isso, o autor propõe uma Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 273 RESENHA VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp. universidade do desastre. Trata-se de um convite a fazer conhecimento na era da velocidade. Visto que o grande medo ecológico combina três poluições: poluição de substâncias, de distâncias e de conhecimentos, considera o autor sobre este ponto: “O mundo do futuro será uma luta cada vez mais cerrada contra os limites de nossa inteligência” (Norbert Wiener). Segundo Virilio, a aceleração do real é tal, que os pensadores de um passado longínquo não poderiam nos ser muito úteis, mesmo com a extraordinária riqueza de seus pensamentos, pois a filosofia antiga não ajudaria a abordar a questão do fim do globo, da grande detenção da consciência, o que para o autor impõe a constituição da universidade do desastre. A questão da velocidade é uma questão eminentemente moderna e até mesmo pós-moderna se considerarmos a velocidade limite, que é majoritariamente nossa realidade com o numérico e os calculadores de altas frequências. Por conta desta velocidade limite, Virilio receia qualificar o tempo atual de contemporâneo, ele qualificaria mais facilmente a sequência na qual somos calcados de in-temporânia, no sentido em que o nosso regime de velocidade não se situa no quadro da tripartição habitual passado-presente-futuro: a instantaneidade é outro mundo e outro tempo (p.80). Se o século XX foi o século das revoluções técnicocientíficas, há agora a necessidade de uma revelação filocientífica, ou seja, a convergência de futuros Berson e de futuros Einstein, e que desta vez eles se entendam. Neste questionamento, Virilio é levado pelo entrevistador a esclarecer um outro ponto que nos interessa bastante: o divórcio entre as ciências exatas e as ciências humanas. Para o filósofo, a causa deste divórcio é o fato, segundo ele, de que a ciência é militarizada, ou seja, seu objetivo não é ser simplesmente conhecimento, mas conhecimento de potência final. Por conhecimento final compreende-se o fim do mundo e o fim da vida. Tudo objetiva substituir a filociência à tecnociência, e redescobrir o Outro da filosofia e da ciência, que eram unidos em sua origem. É por isso, inclusive, que o autor fala em revelação e não em revolução. No que esta questão toca a do medo, Virilio crê que o medo contemporâneo está igualmente ligado, para o homem de ciência, à questão das ciências experimentais. O problema gigantesco está no fato de que o homem não pode experimentar a natureza do progresso. Há um limite experimental, uma privação da 274 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 Anderson Braga do Carmo experiência, que abre caminho para a magia, para a figura do louco sábio e o desenvolvimento da philofolie. Outro ponto destacado pelo entrevistador é o fato das pesquisas atuais se voltarem sobre o vivente. Virilio chama de bomba genética o fato da ciência, por meio de tecnologias, decodificar o genoma humano e impulsionar um fenômeno de industrialização da vida, após a industrialização da morte. A questão que se coloca é a de uma verdadeira diferença entre humanos. Não diferença de raças, mas ontológica, entre aqueles que serão de sangue e esperma e aqueles que nascerão do cálculo e da bioengenharia. Esta ruptura entre estes dois tipos de humanidade será infinitamente grave, pois será irremediável e incontestável, ao contrário da antiga oposição entre selvagens e civilizados. Visto isso, podemos esperar que a discriminação seja em proporções desastrosas. Para finalizar a entrevista, Virilio chama a atenção do leitor para um dito popular: “O medo é o pior dos assassinos, ele não mata, ele impede de viver”. Esta é a definição da dissuasão civil que o filósofo evoca no decorrer da entrevista. Assim, as manifestações da administração do medo são incalculáveis, e estão, como percebemos pela entrevista, no nosso cotidiano. Então, ressaltamos que a questão do medo, como propõe Virilio, configura-se para nós como um acontecimento, pois vemos na caracterização do medo, no deslocamento da categoria de sentimento para um modo de ocupação, física e mental, no espaço e no tempo, primeiramente, que ele é afetado e experienciado por meio do simbólico: trata-se de uma materialidade histórica do real (Guimarães, 2002). Segundo, o medo temporaliza. Virilio nos mostra que o sujeito é tomado na temporalidade (ibidem) do medo, do acontecimento. Por haver um regime de velocidade que impede a tripartição habitual passado-presente-futuro, vemos que a questão do medo atual abre em si uma latência de futuro, que é administrável, ocupa e significa, pois recorta como memorável outras enunciações, outros acontecimentos. Podemos concluir também que, nesta entrevista, Virilio abre um espaço interessante para pensarmos o medo como algo que é próprio da produção de sentidos na linguagem, como uma metáfora. O medo, no sentido que é pensado pelo urbanista, como ocupação física e mental, produz pontos de visibilidade no acontecimento discursivo de uma subjetividade histórica. Ao explicitar uma certa dinâmica do Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014 275 RESENHA VIRILIO, Paul. L’ administration de la peur. Paris: Textuel, 2010, 94pp. funcionamento do medo, de sua administração, desde o momento de instauração e estado de equilíbrio do terror, com a bomba atômica sobre Hiroshima, passando pelo desequilíbrio do terrorismo com a bomba informática e finalizando com o grande medo ecológico com a angústia de uma explosão da bomba genética, Virilio nos leva a refletir sobre o medo como um processo sócio-histórico de construção de sentidos. A partir dessa dinâmica, afetada por uma singularidade histórica, nota-se que o medo constitui-se em um sentido metafórico, de ocupação, no qual o filósofo, ao trabalhar com o equívoco, atravessa as evidências do imaginário e as barreiras do já estabelecido. Anderson Braga do Carmo Doutorando em Linguística Universidade Estadual de Campinas Notas 1 Pensamos o conceito de acontecimento tal como propõe Guimarães em Semântica do Acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas: Pontes, 2002. 276 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 33 - jan-jun 2014