Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos

Transcrição

Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos
Cidade: produção de espaços, formas
de controle e conflitos
Vera da Silva Telles
Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.
Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS-USP).
Publicações recentes:
- A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.
- Em co-autoria com Christian Azïs e Gabriel Kessler. Ilegalismos, cidade e
política. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
- Em co-autoria com Gabriel Kessler, Dossiê: Ilegalismos na América Latina. Tempo Social, revista de sociologia da USP, volume 22, número 2,
dezembro/2010.
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www.veratelles.net
São Paulo, doze milhões e oitocentos mil habitantes (18
milhões na região metropolitana), espalhados em uma superfície
a perder de vista. No correr dos últimos anos, desenhou-se um
cenário muito contrastado, muito heterogêneo, em que, mesmo
os bairros populares, situados nas expansivas periferias urbanas, são muito diferenciados internamente. É um cenário que
torna inoperantes as grades de análise consagradas nos estudos
urbanos, em grande parte regidas pelas noções de segregação
urbana e exclusão social. Não se trata de dizer que os problemas
indicados por essas noções tenham deixado de existir; muito
pelo contrário. Mas, as oposições binárias que essas noções
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carregam (exclusão-inclusão; dentro e fora, centro e periferia) não mais
dão conta dessas realidades multifacetadas. De uma maneira geral, seria
possível dizer que, nos últimos anos, vem se desenhando novas fronteiras
sociais e territoriais, legais e políticas, seguindo os traços das mudanças engendradas pelos circuitos globalizados da economia urbana, bem como pelas
redefinições dos modos de governo da cidade e seus espaços. É um cenário
desenhado por territorialidades urbanas de contornos incertos, atravessadas
por conflitos e campos de tensão espalhados por todos os lados, mas que
se configuram em torno dos pontos de fricção postos pelas tendências de
uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas e forma de vida,
no seu entrecruzamento com formas de controle e a lógica militarizada de
gestão de espaços e territórios urbanos. Esta é a questão – e hipótese de
trabalho – exposta nas linhas que se seguem.
I
Para bem situar as questões a serem discutidas neste texto, é importante pontuar as inquietações que se colocaram em nossas reflexões sobre
essas configurações urbanas em São Paulo. Quer dizer: os desafios teóricos
e empíricos que se colocaram, e se colocam, para nós no próprio andamento
de nossas pesquisas1.
Se hoje já é lugar comum dizer que nossas categorias de análise estão
sendo desafiadas – aliás, há um bom tempo – por realidades urbanas muito
alteradas em relação a décadas passadas, é justamente essa situação que
nos faz lançar a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual
descrever e colocar sob perspectiva crítica a nossa complicação atual. Como
ponto de partida, diria que esse é um desafio que nos alerta para as armadilhas
de um padrão recorrente, até muito recentemente – e ainda persistente –, de
certa topografia teórica pela qual as cidades do Norte são apresentadas como
modelo e referência, e as cidades do Sul, o lugar de todos os problemas e
incompletudes de uma modernidade (qual mesmo?) posta como referência
normativa. Para usar uma fórmula sintética, o modelo da Cidade Global ao
Norte e, ao Sul, o “Planeta Favela”, para evocar o livro famoso de Mike
Davis, a enormidade de uma distopia urbana em escala global, lócus de todas
as mazelas e desgraças sociais potencializadas ao extremo pelas circunstâncias perversas de uma economia globalizada (DAVIS, 2006). Por certo,
a crítica a esse jogo de espelhos invertidos entre o Norte e o Sul já foi feita
e não é de hoje, mas não basta dizer – ou se confortar a dizer – que agora
“eles” têm que lidar com as mazelas que “nós” conhecemos de longa data
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(pobreza, trabalho precário, economia informal, violência urbana …), pois
aí o jogo de referência continua o mesmo, apesar do espelho trincado. O
problema, digamos, é um certo habitus intelectual-acadêmico pelo qual se
tende a transformar experiências e contextos urbanos em modelos e, no nosso
caso, no campo dos estudos urbanos, tomar a cidade como uma entidade
substantivada. Todavia, é justamente isso que, em pleno século XXI – mas,
desde meados do século passado – é impossível de ser sustentado. A situação
hoje é muito distinta daquela que moveu os fundadores da sociologia das
cidades, definindo a Cidade (sim, com C maiúsculo) a partir de seu oposto
(o rural, a tradição, a comunidade, o vilarejo) e, nesse passo, fazendo dela
um instrumento heurístico para decifrar e nomear um mundo urbano que
emergia em meio às transformações aceleradas daquele início de século, um
operador analítico e normativo para formular, problematizar e projetar o que
então se entendia, ou poderia se entender, por modernização e modernidade,
urbanidade e civilidade.
Outros tempos, outros contextos polêmicos, outros contextos semânticos. Hoje, no cenário de uma urbanização planetária, a cidade perdeu o seu
duplo ou, para falar em termos mais precisos, perdeu o seu Outro ontológico
a partir do qual ela poderia ser definida como cifra de uma modernidade que
então se colocava como questão, como problema, como projeto (BRENNER,
2013; FARIAS, 2010). Como diz Brenner (2013), o problema empírico e
teórico a ser hoje enfrentado é identificar os processos socioespaciais históricos que produzem o caráter urbano dos lugares e engendram as paisagens
heterogêneas do capitalismo contemporâneo. Ao invés de tomar a cidade
como objeto estável e definido, propõe Farias (2010), trata-se de investigar
os agenciamentos urbanos a partir dos quais os espaços, seus artefatos, suas
redes e trama de relações são produzidos em lugares concretos da prática
urbana e, por essa via, identificar e trabalhar teoricamente a emergência
das situações e circunstâncias que constroem o nosso próprio presente.
Conforme Ananya Roy (2009b), será preciso construir novas geografias
teóricas, que se alimentam das questões tais como estas se configuram nos
modos diferenciados de produção dos espaços urbanos, nas diversas “áreas
geográficas”, tomadas estas como “áreas epistêmicas” a partir das quais as
questões são formuladas e problematizadas. São essas questões que, apoiadas em contextos situados de problematizações – em diálogo umas com as
outras –, podem nos oferecer um jogo de referências que permita trabalhar
as transversalidades presentes nas várias cidades e contextos urbanos e, por
essa via, nesse jogo cruzado de referências, entregar pistas para deslindar os
problemas postos nos cenários urbanos, ao Norte e ao Sul.
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Lidar com essas questões na prática da pesquisa urbana não é propriamente uma questão simples, em particular para aqueles que, como eu,
praticam o que se poderia chamar de socioantropologia urbana. O risco é cair
em algo como um caleidoscópio de situações e contextos urbanos. O fato é
que, nos últimos anos, vêm sendo desenvolvidas pesquisas sobre temas os
mais diversos: tráfico de drogas e seus modos de territorialização nos bairros
populares; formas de criminalidade e seus nexos com os vários ilegalismos
incrustados na vida urbana; comércio ambulante e suas territorialidades; habitação popular e os conflitos abertos nas várias e vastas regiões de ocupação
irregular; novas formas de ativismo social e suas ambivalentes relações com
o chamado empreendedorismo popular, hoje moeda corrente nos programas
sociais implementados em várias regiões da cidade. O inventário poderia
se prolongar. Algumas questões se impõem: qual o estatuto da informação
que produzimos em nossas pesquisas? Qual o campo de problemas – melhor
dizer: campo de problematizações – que se abre ou pode se abrir em torno ou
a partir de nossas questões de pesquisa? Ainda: qual o jogo de referências a
partir do qual construir os critérios de pertinência e relevância daquilo que
colocamos em forma e fazemos ver no trabalho da escrita etnográfica? Por
certo, não há respostas fechadas, tampouco fórmulas feitas para lidar com
essas perguntas, e longe de mim propor alguma solução prévia para uma
questão que, a rigor, clama e depende do trabalho reflexivo em torno de nossas próprias questões de pesquisa2. Devo dizer que essa é uma inquietação
que nos acompanha desde o início. Nós, eu quero dizer: eu mesma, meus
parceiros de pesquisa e o coletivo de pesquisadores que, desde o início dos
anos 2000, vem se lançando em uma prospecção das tramas da cidade, e
suas veredas. Na verdade, um desassossego com o modo como, muitas vezes
e muito frequentemente, nossas pesquisas e nossos escritos eram (e são)
recebidos por seus leitores (ou ouvintes, no caso de fóruns de debate) – tudo
muito “interessante”, o que é sempre sinal de que nem sempre conseguimos
explicitar as questões que gostaríamos de propor. Ou, talvez, as questões
não estavam (bem) trabalhadas.
Desdobrando o ponto anterior: uma outra ordem de inquietações
pertinente a uma espécie de ponto cego no campo dos estudos urbanos. Ou
seja, simultaneamente, temos: as pesquisas que tratam das várias dimensões
da chamada “cidade neoliberal” (alguns anos atrás, o tema recorrente, onipresente, seria o da “cidade global”), trabalhadas sobretudo por geógrafos e
urbanistas, e uma vasta pletora de problemas sociais e urbanos, situados em
seus contextos de referência, sob as lentes de sociólogos e antropólogos. Em
certo sentido, repõe-se aqui a mesma oposição binária comentada antes: de um
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lado, a produção da cidade-mercado no contexto de economias mundializadas
e, do outro, as consequências perversas da hegemonia dos mercados nos
modos de produção e gestão da cidade e seus espaços. É como se os estudos
de corte socioantropológico fossem destinados a fazer não mais do que a
justa denúncia das desigualdades e violências engendradas pelas mutações
urbanas recentes ou, em suas versões mais pragmáticas, propor programas
de combate à exclusão social e critérios de avaliação de seus resultados.
Se é possível dizer que existe um “ponto cego” no campo dos estudos urbanos, é porque nessa paisagem teórica perde-se de vista muito das
dinâmicas urbanas atuais, pertinentes justamente aos modos pelos quais
os espaços urbanos são produzidos; ou para colocar em outros termos, os
modos pelos quais processos socioespaciais da chamada cidade-mercado se
territorializam em contextos situados, que são também contextos contraditórios, dinâmicos e conflitivos (BRENNER, 2013).
Ainda mais: é um “ponto cego” que nos interdita de pensar e problematizar o estatuto do conflito na produção dos espaços e suas territorialidades.
No entanto, esses espaços são pontilhados por uma situação de conflito que
assume as mais diversas formas, que vem ganhando configurações renovadas nos últimos anos e se multiplicando no cenário urbano atual. Tomo por
referência a metrópole paulista, mas isto não significa que esses fenômenos
lhes sejam exclusivos. Várias são as expressões: queima de ônibus por razões
as mais diversas – um verdadeiro repertório de ações coletivas, que não é
recente, mas cada vez mais recorrente nas periferias urbanas; resistências
e enfrentamentos, por vezes, violentos, nas regiões de ocupação de terras
urbanas e também de edifícios no centro da cidade; lutas contra remoções
forçadas e as chamadas reintegrações de posse; protestos em torno de temas
diversos e muito frequentemente contra a violência policial nas regiões
periféricas da cidade, e também contra a intervenção policial militar nas
chamadas “regiões de risco” habitadas por moradores de rua, usuários de
crack e outros tantos tipos urbanos que circulam nesses lugares. Ao lado de
movimentos por moradia, um verdadeiro mosaico de coletivos e associações
atuantes em torno das mais diversas questões, com notável predominância
da questão da violência policial.
Salvo engano – e posso efetivamente estar enganada –, arriscaria dizer
que o conflito deixou de ser tematizado nos últimos anos pela literatura que
trata da pesquisa social. Seja porque foi colonizada – se me permitem uma
expressão talvez forte demais, ou injusta – pelas teorias dos movimentos
sociais e da ação coletiva, abordando seus tipos, modos e repertórios, mas
deixando de lado a natureza dos conflitos que impulsionam esses movimenRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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tos, além de deixar fora de mira outras tantas manifestações que escapam às
formas e formatos codificados e tipificados pela teoria social. Seja porque
foi deslocada pelo tema pervasivo do Crime Organizado (e da Violência
Urbana, tudo assim, em maiúscula), essas entidades fantasmáticas que se
tornaram clichês explicativos para as turbulências das periferias urbanas.
No entanto, a questão está hoje posta no cenário contemporâneo:
rebeliões e protestos urbanos explodindo no coração das grandes cidades,
desde 2008, ou antes, e que vem alimentando discussões e debates variados.
Não por acaso, o “direito à cidade” é slogan e bandeira dos mais diversos
movimentos e articulações políticas em inúmeras cidades do planeta, além
de ser pauta de inúmeras publicações recentes e fóruns de discussão voltados
ao deciframento dos protestos que vêm explodindo no coração das cidades
globalizadas em diversas regiões do mundo.3
No que diz respeito a São Paulo (e outras cidades brasileiras), se
os conflitos apareciam de forma difusa nos espaços urbanos ao longo dos
últimos anos, processou-se algo com um efeito de condensação em torno
das chamadas “jornadas de junho”, em 2013, e seus desdobramentos nas
manifestações e conflitos em enfrentamentos que acompanharam a preparação e a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014.
Na cartografia política dos protestos e dos pontos sensíveis dos embates e manifestações, podemos seguir os traços, ponto a ponto, de tudo o que
constitui o próprio metabolismo urbano em sua face política e contraditória,
com seus espaços e lugares, estruturas e funções, circuitos e distribuição
de riquezas e seus modos de apropriação. Pudemos ver, aqui, ao vivo e a
cores, uma tese cara a toda uma linhagem de estudos urbanos: a cidade não
é apenas um contexto, uma arena em que os conflitos acontecem; é algo que
está posto no próprio modo como seus espaços e estruturas são produzidos,
geridos e agenciados na dinâmica da acumulação urbana, de produção da
riqueza, modos de circulação e apropriação; as estruturas urbanas, suas
redes, funções, espaços e artefatos são instrumentos e recursos estratégicos
nos processos de acumulação urbana e expansão das fronteiras do mercado
(BRENNER et alli, 2012; HARVEY, 2012). É o que ficou estampado nas
chamadas intervenções urbanas para os preparativos e realização da Copa do
Mundo, os programas ditos de renovação urbana que redesenham os espaços
da cidade e seus lugares, redefinem a distribuição das populações afetadas,
seus circuitos de deslocamento, seus modos de assentamento e seus modos
de habitar, trabalhar e viver na cidade.
Como diz Stephen Graham (2013), o funcionamento das cidades
está inteiramente inscrito e depende de suas redes e aparatos sociotécnicos,
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entrelaçados com políticas de espaço e o governo da cidade. Daí o poder de
gravitação da questão da mobilidade urbana posta em cena nas “jornadas
de junho”, em 2013: não apenas uma questão de política pública, mas algo
que afeta a dinâmica da cidade, atinge o seu nervo sociopolítico, também
a economia política da cidade e os dramas sociais inscritos nas formas de
segregação acionadas pelo acesso desigual e precário aos recursos da cidade. Adalberto Cardoso (2013) tem razão ao dizer que se o estopim foi o
aumento das tarifas públicas, esse não foi um estopim qualquer. Entra em
ressonância com as fricções e conflitos que vieram se acumulando ao longo
dos anos, colocando em cena as tensões engendradas por uma cidade cada
vez mais privatizada, que obsta o direito à mobilidade, quer dizer: direito
à cidade, ao acesso a seus espaços, bens e recursos. Segundo o autor, não
se trata apenas da precariedade dos transportes públicos, mas, também, de
seus sentidos em uma cidade na qual seus espaços e estruturas são cada vez
mais capturados pela lógica expansiva dos mercados, fazendo do direito
à mobilidade “um resíduo do direito à acumulação capitalista do espaço
urbano (CARDOSO, 2013, p. 26).
Porém, o ponto sensível que fez desencadear a onda de manifestações
por todo o país foi a desmedida repressão que se abateu sobre o que poderia
ser apenas mais uma manifestação (em 13 de junho de 2013) na sequência
de muitas outras que precederam4. Mais do que excessos das forças policiais, são os seus modos operatórios que merecem atenção, na medida em
que deixavam estampado na cena urbana a lógica militarizada da gestão
(ou melhor: da não gestão) dos conflitos e problemas urbanos: junto com
um fortíssimo e pesado aparato de contenção e repressão, os procedimentos
do cerco e ocupação de lugares estratégicos, próprios do que vem sendo
chamado de “guerra urbana”, termo que já faz parte do jargão dos gestores
urbanos. Tal jargão é amplamente utilizado nas formas de intervenção nos
territórios ditos de risco sob o primado da “guerra ao tráfico de drogas” e a
“guerra ao crime” e que, agora, mais recentemente, transborda para as figuras
da “insurgência urbana” associadas aos protestos de rua e movimentos fora
de lugar ou fora dos espaços institucionalizados pelo governo e ordenados
pela racionalidade dos mercados.
Essas cenas se repetiram, nos meses que se seguiram, na repressão às
manifestações que se multiplicaram em protestos contra os descalabros dos
preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil. Lembrando:
miríades de associações e articulações políticas, coletivos e associações de
base, movimentos por moradia e outras formas de ativismo, em protesto
contra a cidade-mercado expressa nas intervenções urbanas que construíram o
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grande negócio da Copa do Mundo, acompanhadas pelas remoções forçadas
e dispositivos excludentes de uso e acesso aos espaços e vias de circulação,
com a também explosiva exclusão do comércio de rua, dos ambulantes e
outros tantos que habitam, trabalham ou circulam nesses lugares.5
Sendo assim, os protestos não foram quaisquer protestos. Toda a
cidade, em suas dimensões contraditórias, estava cifrada em cada ato e em
cada ponto sensível daquelas manifestações. Para usar uma fórmula sintética – parafraseando Carlos Vainer que, há anos, vem se dedicando a esses
temas –, trata-se de conflitos que encenam a contradição entre a Polis e a
City (VEINER, 2011); ou, na precisa formulação de Laurindo Minhoto, a
contradição entre a cidade como valor de uso e a cidade como valor de troca,
a tensão entre espaços públicos cosmopolitas e os enclaves excludentes dos
lugares de comércio, consumo e negócios; entre o direito à cidade e o direito
funcionalizado por estratégias de governo das populações (MINHOTO, 2014).
Os conflitos e enfrentamentos que se desdobraram ao longo desses
meses nos alertam para a importância de se reter a cidade como plano de
referência, para bem situar os eventos e fricções, e os agenciamentos políticos
postos em ação em seus vários espaços e territórios. Em cada um desses
pontos, as formas de controle e contenção, em seu conjunto, lançam os contornos da cartografia política dos circuitos do mercado e da riqueza urbana.
É isso propriamente que nos coloca o desafio de deslindar os nexos entre a
produção e a expansão dos mercados, as formas de controle e dispositivos de
poder, e a situação de conflito renovada que se espalha por todos os espaços.
São esses cenários conflituosos que me permitem retomar as questões
lançadas no início deste texto e retomar também o “fio da meada”.
II
Nossas hipóteses de trabalho se orientam em torno de duas proposições chaves:
Primeira: ao invés de partir de definições pré-codificadas sobre os territórios nos quais transitamos em nossas pesquisas (“a” favela, “a” periferia,
“as” ocupações), trata-se de perscrutar as lógicas de produção dos espaços
urbanos e os jogos situados de escala, inscritos em cada um dos contextos,
como campos de agenciamentos sociourbanos, de práticas sociais e conflitos.
Definições pré-codificadas, quer dizer: definições jurídicas e normativas próprias das políticas urbanas; definições de senso comum (definições
nativas, como diriam os antropólogos; também as definições construídas
pelas pesquisas urbanas, formuladas em determinados contextos sociais,
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históricos e polêmicos, mas que tendem a ser “essencializadas” no correr
dos tempos (BRENNER, 2013).
Jogos situados de escala, quer dizer: escalas são campos de ação e
intervenção e isso implica jogos de poder e jogos de atores (GROSSETI,
2007). Assim, por exemplo, em um programa dito de urbanização de uma
grande favela, podemos encontrar: representantes dos poderes públicos que
implementam esses programas, agências multilaterais de financiamento;
escritórios de arquitetura de circulação internacional interessados na experimentação urbanística; bancos privados interessados em capturar novos
clientes no hoje expansivo e lucrativo consumo popular; empresas privadas
também em disputa de novos mercados. Simultaneamente, encontramos
também: moradores locais e suas associações; igrejas evangélicas e seus
seguidores; políticos locais e suas clientelas; chefes locais do tráfico de
drogas e suas redes de negócios ilícitos... E ainda: agentes da ordem que
tratam de controlar e policiar condutas e atividades cotidianas, sem esquecer
seus “acertos” com os negócios ilícitos locais ou modos de acomodação e
composição com os jogos de interesses constelados em cada local.
Tudo isso se articula, compõe e se compõe em uma arena de disputas,
negociações, acomodações, acordos e conflitos em torno da distribuição dos
recursos, dos modos e lugares de implementação de serviços e melhorias
urbanas, etc. E é por isso também que, ao olharmos de perto certos programas – esse o trabalho etnográfico –, nos damos conta de que não se trata
propriamente de programas de inserção social, como se diz correntemente,
muitas vezes na linguagem (e gramática) de um discurso edificante. Esses
programas podem ser vistos como dispositivos de expansão das fronteiras
urbanas – e também fronteiras de mercado, como veremos mais à frente.
Quanto aos atores em cena, eles transitam entre essas várias escalas, sabem
mobilizar os recursos materiais e de poder associados a cada uma delas – é
o que se define como jumping scales, para usar um termo corrente entre os
geógrafos urbanos. Mas é isso também que nos dá pistas para qualificarmos
os sentidos dos conflitos que nesses – e em outros lugares – se processam
justamente no cerne dessas relações, tensas e contraditórias, por vezes disparatadas em suas práticas e em seus desdobramentos no tempo e espaço.
Trata-se, portanto, de conflitos inscritos nas formas de produção e gestão
dos espaços, dos ordenamentos urbanos nesses lugares.
Segunda: para escapar do caleidoscópio de situações “interessantes” –
imagem evocada no início – sem cair em generalizações da “cidade-mercado”
no contexto da mundialização, será preciso reter a cidade como plano de
referência, buscando trabalhar as transversalidades e ressonâncias presentes
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nos diversos espaços e territórios urbanos. E são elas que nos entregam os
traços das linhas de força que atravessam as várias territorialidades urbanas
e em torno das quais os ordenamentos locais são produzidos, negociados e
agenciados em suas formas rotineiras ou conflituosas.
Poderíamos dizer que são duas as linhas de força: de um lado, as lógicas
e circuitos de mercado, e as tendências de uma expansiva mercantilização
dos espaços e territórios, mas também das formas de vida, modos de ser e
habitar a cidade, em seus contextos de referência; de outro, as formas de
controle inscritas na produção de gestão desses espaços.
Esta é a hipótese com a qual estamos trabalhando: se as lógicas de
mercado engendram clivagens, desigualdades, segregações e exclusões, as
formas de controle, nos contextos situados em que operam, terminam por se
constituir em polos de tensão e fricção, que não poucas vezes se desdobram
em modalidades de conflito e enfrentamentos abertos – verdadeiros campos
de gravitação da experiência urbana.
Mas essa é uma hipótese lançada no que se poderia dizer um outro
“ponto cego” dos debates recentes sobre o urbano e que diz respeito a uma
espécie de estranhamento mútuo entre a linhagem de estudos tributários
das sociologias do controle (e da punição) e a de tributários da sociologia
da cidade, por mais que os temas e questões debatidos por uns e outros se
apresentem, crescentemente, nas respectivas pesquisas, ao menos de forma
transversal (BROWN; HERBERT, 2006; GRAHAM, 2010a).
De um lado, os mecanismos de controle e seus modos operatórios se
apresentam, já há algum tempo, cada vez mais, sob formas territorializadas,
situadas, intricadas com a gestão dos espaços e gestão das populações – é o
caso dos chamados controles situacionais, para ficar em um exemplo talvez
o mais evidente –, e que nos faz ver os mecanismos pelos quais o governo
da segurança passa a se confundir com o governo dos espaços (BECKETT;
HERBERT, 2008; BROWN; HERBERT, 2006; COLEMAN, 2004). O fato
é que as dimensões espacializadas e territorializadas dos dispositivos de
controle ganham um lugar cada vez mais importante nos debates atuais.
No entanto, nem sempre essa discussão desdobra-se na direção de uma
problematização mais fina acerca do lugar desses dispositivos espaciais nas
dinâmicas socioeconômicas e políticas da cidade contemporânea (MINHOTO,
2015). De outro lado, no caso dos estudos urbanos, os pesquisadores muitas vezes tratam dos dispositivos de controle e seus aparatos como algo
que aparece como evidências do trabalho de campo, como circunstâncias
de conjunturas ou microconjunturas políticas, sem chegar a conferir um
estatuto a esses mecanismos no desenho da cartografia política da cidade.
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E, mais precisamente, o seu lugar na produção das territorialidades urbanas.
A questão, quando muito, aparece de forma alusiva e genérica, sem que se
examinem em profundidade os nexos internos entre formas espacializadas de
controle – inscritas nos espaços e redes urbanas – e as dinâmicas expansivas
do que vem sendo chamado de “cidade neoliberal”, tema onipresente nos
debates atuais no campo dos estudos urbanos: a cidade-mercado, a cidade-negócio, figuras que sinalizam a expansiva mercantilização dos espaços,
dos lugares e artefatos urbanos, também das formas de vida e agenciamentos
do cotidiano, cada vez mais mediados pelas formas mercantis e ativados por
modos de subjetivação regidos pelo ethos do chamado empreendedorismo.
Este é o desafio que se apresenta para nós: deslindar os nexos que
articulam gestão dos espaços, forma de controle e produção dos mercados.
Nossa aposta: a cidade passa a ser um lugar estratégico para entender os
nexos entre produção dos mercados, dispositivos de poder e gestão das
populações – o que também significa dizer, gestão das desigualdades e
segregações consteladas nos espaços da cidade (MINHOTO, 2014)6.
A hipótese a ser trabalhada: os conflitos nos e pelos espaços urbanos
parecem se confundir com ou se desdobrar, cada vez mais, em um conflito
em torno dos ordenamentos sociourbanos e seus dispositivos de poder
(GRAHAM, 2010a). Nesse registro, é toda uma discussão que se abre, pertinente às dimensões conflituosas, ambivalentes e multifacetadas inscritas
na própria produção – negociada, disputada, agenciada – da ordem social
e, mais precisamente, da ordem urbana.
É isso o que eu gostaria de expor na sequência deste texto, seguindo
as linhas de força que atravessam os espaços urbanos e se compõem sob
formas variadas, nos diversos contextos situados da cidade.
III
Sem a pretensão de dar conta de uma questão complexa e intricada,
vale destacar duas facetas pelas quais vem se processando a expansão das
fronteiras do mercado, redefinindo lugares e espaços da cidade.
De um lado, há alguns anos, vem se processando a redefinição dos
espaços urbanos sob o impacto dos chamados programas de renovação ou
revitalização urbana, em áreas ditas deterioradas ou áreas ditas “de risco”:
sejam regiões do centro da cidade, sejam favelas, sejam ainda os assentamentos de ocupação irregular e moradias precárias nas periferias urbanas.
Concretamente, trata-se da expansão ou criação de novas fronteiras urbanas
para os circuitos do mercado. Nos locais em que tais programas são impleRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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mentados, as consequências são conhecidas: deslocamento de populações,
remoções forçadas em áreas de ocupação, moradias precárias e favelas; e
também: reordenamentos locais redefinindo os usos desses espaços, excluindo todos os que parecem ser portadores de condutas indesejáveis ou
à margem dos padrões do que se entende por uma urbanidade regida pela
lógica dos negócios e do consumo. A literatura sobre essa temática é imensa
e são inúmeras as pesquisas que já flagraram e discutiram esses processos
nas várias cidades, ao Sul e ao Norte do planeta. Nos termos da discussão
que aqui nos interessa, bastaria lembrar: nos anos e meses que antecederam
a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a cartografia das remoções e expulsões corresponde ao circuito da especulação imobiliária e dos
pesados jogos de interesse envolvidos na construção não apenas dos estádios,
mas também dos equipamentos de consumo e serviços que acompanharam
esses projetos. Populações foram deslocadas, assim como foi intensamente
afetada a distribuição do comércio popular e dos trabalhadores ambulantes
nos espaços da cidade. Estamos aqui no coração do que David Harvey chama
de “acumulação por despossessão” (HARVEY, 2004; 2012).
De outro lado, fenômeno mais recente, e ainda a ser bem entendido:
nos ditos territórios da pobreza, vem se dando a promoção do chamado
empresariamento popular, mobilizando toda uma pletora de instrumentos,
mecanismos e mediações e, sobretudo, programas de microcrédito em boa
parte promovidos pelos principais bancos privados do país. Em linhas gerais,
são programas regidos pela agenda do chamado combate à pobreza pelas vias
do mercado. Na prática, trata-se de transformar os “pobres” em operadores
do mercado, empreendedores capazes de transformar as circunstâncias locais
em “oportunidades de mercado”.
Nos lugares em que são implantados, tais programas parecem construir os pontos de conexão desses espaços com os circuitos globalizados da
riqueza urbana. No Rio de Janeiro, como bem enfatizam Tommasi e Velazco
(2013), em seu estudo sobre a Cidade de Deus, ainda sob o impacto da ocupação recente de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP): “a chegada
do Bradesco foi o acontecimento mais significativo depois da ‘pacificação’”
(p. 32), seguida da entrada de operadoras de TV a cabo e de telefonia fixa
e móvel. Na sequência, cursos de empreendedorismo, patrocinados pelo
Sebrae ou agenciados por fundações privadas com recursos transnacionais (a
multinacional americana Chevron e a Fundação Kellogg); multiplicação de
projetos e programas de forte componente pedagógico voltados aos jovens
“promissores”, ancorada em suposto compromisso com a “comunidade” e
concomitante empenho em “vender a marca ‘favela pacificada’ e alavancar
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o empreendedorismo de base comunitária” (p. 39). Sob o prisma de suas
formas de territorialização, os circuitos do mercado se enredam nos programas
sociais, seus operadores e agências financiadoras e tudo isso fica misturado
e embaralhado na trama das relações sociais. Basta fazer o mapa de bens,
valores, produtos e pessoas. É o que as autoras fazem nessa etnografia de
Cidade de Deus: mais do que uma superposição de circuitos (e suas escalas)
é um embaralhamento que, nas situações etnografadas, abre um cenário
marcado, segundo as autoras, por uma verdadeira “dança de papeis”. Nas
palavras de Tommasi e Velazco:
(...) policiais que realizam atividades de educadores ou animadores sociais, oferecendo atividades esportivas, recreativas e de reforço escolar
às crianças; gerentes de banco que funcionam como conselheiros de
negócios e empreendimentos; comerciantes que viram caixa de banco;
líderes comunitários que gerenciam programas de governo; gestores
públicos que transacionam empreendimentos privados (2013, p. 19).
Em tempo: a agência do Bradesco foi aberta em uma casa que é uma
sede da CUFA (Central Única das Favelas), onde também funciona a Associação dos Moradores. Oferecendo apenas serviços de abertura de contas
e financiamento, os caixas foram terceirizados e são operados no interior
das pequenas lojas locais, escolhidas justamente por serem comandadas por
empreendedores “bem sucedidos” e assim avaliados pelo arguto e muito
ativo gerente do banco.
Em São Paulo – na favela Paraisópolis, a segunda maior da cidade –,
Bruna Ramachiotti (2012) encontrou situações equivalentes. Aqui, os circuitos do mercado se enredam e reconfiguram uma densa trama associativa
que vem de longa data, construída por associações de moradores, coletivos
diversos, ONGs, programas sociais e filantrópicos de filiação variada. Nos
últimos anos, a paisagem local foi fortemente impactada pela chegada das
Casas Bahia, a primeira das redes de grandes lojas a chegar a Paraisópolis e
também a primeira experiência dessa empresa em uma favela paulistana. E
os bancos também chegaram, o Bradesco em primeiro lugar e, em seguida,
o Banco do Brasil que inaugura sua agência na sede da União de Moradores,
selando uma parceria voltada à formalização de “empreendedores” a ela
associados. Em meio aos programas de regularização do comércio local e
também dos assentamentos ilegais-informais, multiplicam-se os cursos de
empreendedorismo e “educação financeira”; fundações privadas, empresas e
operadoras de mercado se instalaram na região, seja promovendo seus serviRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
ços e produtos (exemplos: agências de turismo, a Porto Seguro Seguradora,
redes de comércio), seja na forma de parcerias em torno de projetos ditos
de desenvolvimento local, seja ainda na promoção de atividades sociais e
eventos esportivos. Quanto aos projetos de urbanização da favela, Paraisópolis
ganha o mundo e entra no circuito transnacional dos arquitetos e urbanistas
com seus programas e projetos premiados em prestigiosos concursos mundiais. Na prática, em torno dos programas de urbanização da favela e dos
chamados projetos de desenvolvimento local, há uma meada intrincada – e
também embaralhada – de ação de organismos estatais, circuitos de mercado,
programas sociais de base local, parcerias com fundações empresariais na
promoção de atividades e eventos culturais e esportivos, circuitos transnacionais por onde circulam projetos e empreendimentos, também fontes de
financiamento, tudo isso se conjugando para fazer de Paraisópolis um “caso
de sucesso”, celebrado pelos sinais de sua inclusão na “cidade legal”, tanto
quanto pelas competências empreendedoras de seus moradores.
Essa conversão dos “pobres” em empreendedores não é fenômeno
específico de São Paulo, Rio de Janeiro e de outra tantas cidades brasileiras.
É algo que atravessa – e é transversal, sob modulações variadas – diversas
cidades do chamado Sul Global. E esse é também um registro pelo qual se
pode apreender o modo como esses lugares vêm sendo mundializados pelas
vias de programas e organizações sociais conectadas em redes transnacionais, por onde circulam as fontes de financiamento, as ideias e projetos, os
modelos de best practices, consultores e suas pautas de avaliação, categorias,
indicadores, especialidades técnico-sociais, etc. Aparatos de uma governamentalidade transnacional, como sugerem Ferguson e Gupta (2002), que se
territorializam pelas vias de agenciamentos locais. E em cada lugar, o mundo
entrelaçado das parcerias, das organizações sociais, mobilizando, por sua vez,
um elenco de atores os mais diversos e no qual também se fazem presentes
as agências públicas e organismos estatais (FERGUSON; GUPTA, 2002).
É nesse campo ampliado de referências que se situa essa “conversão”
da pobreza em mercado. Como mostra Ananya Roy (2011, 2013), esses programas podem e devem ser vistos como mecanismos pelos quais os territórios
da pobreza – sejam áreas de moradia precária, sejam locais de concentração
do comércio informal – passam a se transfigurar em fronteiras de mercado
e frente de expansão do capital financeiro, contraface das transformações
recentes do capitalismo contemporâneo, acionando dispositivos voltados
ao que as expertises chamam de “base da pirâmide social”: os milhões de
homens e mulheres na mira dos serviços financeiros que articulam bancos
comerciais globalizados (que controlam o acesso ao capital) e as associações
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ditas comunitárias (que têm acesso aos “pobres”). É questão que a autora
discute ao cunhar a expressão poverty capital (2011), mostrando os vários
dispositivos pelos quais o chamado “capital social” é convertido em capital
econômico e ativo financeiro, na própria medida em que a hoje celebrada
capacidade de iniciativa, improvisação e invenção popular é mobilizada
para a criação de situações de mercado. Apresentadas como programas de
erradicação da pobreza, a rigor são formas de intervenção que abrem as vias
para expansão dos mercados: das várias modulações do chamado microcrédito ancorado em associações populares locais, passando pela promoção
do que vem sendo chamado de “capitalismo criativo”, termo inefável que
diz tudo e nada ao mesmo tempo, evocando a dita capacidade de invenção
e criatividade popular (entenda-se como quiser) de aproveitar ou inventar
“oportunidades de mercado”, chegando aos serviços financeiros que se
apresentam sob a formulação altissonante (e tons edificantes) de democratização do crédito voltado à “base da pirâmide social”. Na prática, trata-se
de um esforço no sentido de colocar todas as dimensões da vida social (e
da existência) sob a égide do mercado, convertendo a troca mercantil em
código ético e princípio de conduta. Entre os eventuais e poucos “casos de
sucesso”, resta saber, pergunta-se Roy, se não estamos presenciando mais
um campo de exploração e predação (ROY, 2011, p. 31). E também: outros
tantos domínios de exercício de relações de poder e sujeição, na própria
medida em que essas “oportunidades de mercado” não se efetivam sem
os igualmente renovados dispositivos de disciplina e controle, também de
punição, tal como a autora pode verificar em alguns dos lugares nos quais
realizou sua pesquisa. (ROY, 2011; 2013)
Muito longe da retórica da inclusão social ou sob a retórica da inclusão
social, desenham-se, na verdade, outras dimensões do que David Harvey
(1996) chamou de empresariamento urbano, agora não apenas restrito
aos “circuitos superiores” da Cidade Global, e sim alcançando também
os circuitos do “mundo popular”, do trabalho e da moradia, bem como as
várias dimensões das vidas e dos modos de vida a serem regidos pelo ethos
mercantil (MCFARLANE, 2012). Em outros termos: outras dimensões pelas
quais a cidade se transforma em mercado e seus territórios são disputados
como fronteiras de expansão do capital.
Essas experiências, em curso em várias regiões da cidade, encontram
seu duplo em formas bastante agressivas de intervenção nas regiões de
concentração do chamado comércio de rua: os ambulantes, também eles,
estão na mira de programas e de outras formas de intervenção voltados a
transformá-los em micro empreendedores. Nesse caso, prevalece não tanto
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
a retórica da inclusão social pelas vias do mercado. Na prática, tais iniciativas são regidas pelos imperativos do combate à pirataria e é nessa chave
que, nesses espaços, o chamado combate à informalidade urbana desliza e
se confunde com a “guerra ao crime” associado ao comércio de rua (HIRATA, 2012). Sobretudo no Centro da cidade, os ambulantes praticamente
desapareceram das ruas. Alguns foram bem sucedidos nessa conversão,
saíram das ruas e se instalaram nas inúmeras galerias destinadas ao consumo
popular – em sua maioria, galerias sob controle de comerciantes chineses
(FREIRE, 2014). Os demais, sob a suspeita de práticas agora vistas como
criminosas, sujeitos à repressão pelas forças da ordem, se deslocaram para
outros lugares e outras cidades no entorno da capital.
Concretamente, está em curso uma redefinição dos mercados informais, de seus modos de funcionamento e de seus espaços. No campo de
conflito e disputas que se armam nesses territórios, estão em jogo, a rigor,
as fronteiras do formal-informal, do legal-ilegal. E no centro desse conflito
está o Estado com suas prerrogativas de poder; poder soberano de definir
ou suspender as regras que permitem ou interditam uns e outros de exercer
suas atividades, colocando uns (e não outros) no universo da ordem e da
lei, jogando outros tantos no limbo social e também jurídico, no terreno
incerto entre a ilegalidade e o crime, sob suspeita e sujeitos ao controle e
à repressão. Há toda uma cartografia política do comércio de rua que se
redefine, cujos contornos são cambiantes tanto quanto as regras – formais
e informais, legais e extra legais – que regem o acesso e o funcionamento
desses mercados, ao mesmo tempo em que há uma legião de ambulantes
que, desprovidos de recursos e condições para compor essa intrincada rede
de relações, são expulsos, sujeitos às formas mais agressivas de controle e
repressão, espalhando-se por outros cantos da cidade e, com isso, desenhando
outras territorialidades urbanas a serem ainda conhecidas (e prospectadas).7
Mas isso também significa reconhecer que a “acumulação por despossessão” não se processa apenas pelas vias de expulsão e remoção, na
medida em que a tão celebrada “inclusão pelo mercado” se processa por meio
de dispositivos de governamentalidade de espaço e populações – expressos
na conversão de moradores e trabalhadores em empreendedores –, introduzindo novas clivagens que redefinem o “dentro” e o “fora”, os que portam
credenciais da “inclusão” e todos os demais que escapam, não se adaptam
ou resistem a esses agenciamentos locais, colocados sob suspeita, na mira
de formas de controle e punição ou simplesmente sujeitos à exclusão – e
“despossessão” – de seus lugares de vida e de trabalho (ROY, 2009a; 2013).
Entre deslocamentos e remoções forçadas de populações e os dispositivos de “inclusão” pelas vias do mercado, desenha-se um cenário contrastado
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VERA DA SILVA TELLES
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da cidade, que será preciso prospectar. Daí a exigência de colocarmos a cidade
como plano de referência, para situarmos nossas questões, em particular no
que diz respeito a esses lugares governados pelas lógicas de mercado. Essa
constelação de práticas e dispositivos pelos quais os territórios da pobreza
se transformam em negócio e fronteiras de expansão dos mercados, não se
instala em quaisquer lugares. Se bem que disseminados um pouco por todos
os lados, pode ganhar especial densidade em algumas regiões da cidade.
Sejam os bairros alvo de programas de empresariamento popular; sejam
as regiões de concentração do comércio popular, são territórios urbanos
situados em pontos estratégicos de circulação da riqueza urbana. A favela
Paraisópolis, por exemplo, com seus 90 mil habitantes, está situada no coração do bairro mais rico da cidade (Morumbi) e na estreita proximidade da
região que concentra todos os equipamentos e serviços da “cidade global”
(sede de bancos, empresas de serviços de ponta, escritórios de empresas
multinacionais, equipamentos de consumo de luxo...). No Centro da cidade,
os lugares de concentração do comércio ambulante se situam, por sua vez,
em áreas alvo de amplos e ambiciosos projetos de renovação urbana. Este,
o primeiro ponto.
Segundo ponto: esses lugares sempre foram vistos como espaço-problema, parecendo concentrar todas as patologias associadas à pobreza:
tráfico de drogas, crimes, violência, episódios sucessivos de confrontos com
a Polícia. Não é ocioso dizer que Paraisópolis foi palco da chamada Operação
Saturação, versão paulista menos espetacular (ou menos espetacularizada)
das UPPs no Rio de Janeiro, também elas situadas no cinturão da riqueza
urbana da cidade e também elas transformadas, após a “pacificação”, em
verdadeiros laboratórios da inefável “economia criativa”, alvo de uma ruidosa
(e mediática) celebração das virtudes empreendedoras de seus moradores,
mas que se entrelaçam sob formas variadas com situações e contextos da
vida local nas quais a “guerra ao crime” parece se desdobrar em práticas
e dispositivos de policiamento de condutas e regulação de movimentos,
deslocamentos, pontos de encontros segundo critérios de uma ordem policiada (cf. SILVA, 2010) – ou da “paz armada”, para usar a expressão de
Vera Malagutti Batista (2012).
No centro da cidade, nas regiões de concentração do comércio
informal, em resposta a resistências e protestos dos ambulantes contra a
“despossessão” de seus lugares de trabalho, sucederam-se episódios de
cerco e ocupação. Estes podem ser traduzidos como verdadeiras operações
bélicas com pesadíssimo aparato policial militar, desdobrando-se, depois, na
gestão militarizada dos lugares e atividades: em nome da “guerra à pirataria”
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
e “guerra ao crime” agora associado ao comércio de rua, a fiscalização e o
controle das ruas passaram a ser capitaneados pela Polícia Militar. Isto em
função de um dispositivo administrativo, político, de legalidade duvidosa – a
chamada Operação Delegada – que suspende as circunscrições legais que
definem as atribuições da Polícia Militar, de modo a ampliar o seu espaço de
atuação nesse terreno em que as funções de fiscalização e controle eram de
responsabilidade de outras instâncias administrativas (fiscais da prefeitura)
e de outros órgãos de polícia (Polícia Civil, Guarda Civil Metropolitana)
(HIRATA, 2012).
Por esse prisma, é possível levantar a hipótese da produção e gestão
dos mercados também como dispositivos de gestão da ordem; ou seja, dispositivos pelos quais se tenta transformar as circunstâncias locais (de vida e de
trabalho) em recursos de governamentalização de espaços e suas populações
(ROY, 2009). Na formulação de Sally Merry (2001), trata-se de uma lógica
de produção da ordem não mais centrada na disciplinarização dos indivíduos
(e produção de “corpos dóceis”), mas na gestão das populações por meio
da produção de “espaços governáveis”, e também protegidos contra todos
os que podem ser vistos como ameaça ou portadores de comportamentos
indesejáveis. Em outros termos, o “governo das condutas” ganha formas
espacializadas, ao mesmo tempo em que a gestão desses espaços mobiliza
dispositivos de controle voltados aos “indesejáveis”, figuras inefáveis de
todos os que são vistos como portadores de risco e ameaça a um certo regime
de ordem e segurança.
Nesse plano, é possível apreender os sentidos dessas formas de produção e gestão dos espaços urbanos, nos seus pontos e contrapontos: gestão
dos fluxos urbanos, que são também e, sobretudo, fluxos de mercado; gestão
dos espaços e das circulações, pondo em cena “topologias de poder”, para
usar os termos de Collier (2011), que, sob composições variáveis conforme
lugares e circunstâncias, combinam dispositivos de governamentalidade
(instrumentos políticos e jurídicos – também financeiros – para a conversão
de moradores e ambulantes em microempreendedores) e o uso da coerção
(e violência) para impor as novas regras e o policiamento de condutas, entre
vigilâncias e punição.
Esses espaços e suas localizações nos circuitos de produção e circulação da riqueza urbana são também estratégicos para se entender a lógica
que prima na composição dessas topologias de poder. Para ir direito ao
ponto: nesses lugares, explicitam-se os mecanismos pelos quais a gestão
urbana e a gestão da ordem se fazem sob a égide de princípios securitários,
gestão dos riscos e das emergências, multiplicando as formas de controle e
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os alvos sob suspeita. A gestão dos riscos é o elo que articula, internamente,
a gestão militarizada dos espaços e as tendências, igualmente expansivas,
de práticas policialescas de condutas.
Sabemos que, no Brasil, uma história e uma tradição plasmaram
uma concepção (e prática) militarizada de segurança pública. Uma história
e uma tradição que se atualizam e se redefinem em fina sintonia com o que
vem acontecendo em outras cidades, ao Sul e ao Norte do planeta, sob a
égide da lógica militarizada da gestão urbana. Como diz Stephen Graham
(2010), trata-se de uma crescente colonização do espaço urbano e da vida
cotidiana das cidades pela racionalidade militar – práticas, procedimentos,
agenciamentos regidos pela noção de guerra – guerra urbana – de tal forma
que, como bem nota Minhoto (2012), questões e eventos da ordem cotidiana
de nossas cidades são convertidos em assunto de guerra. Este o ponto de
inflexão e deslocamento importante de ser observado: cada vez mais o governo das cidades e o governo da segurança se entrelaçam e se confundem,
sob o primado de uma gramática bélica, que projeta a cidade como campo
de guerra – é nos seus espaços e artefatos, nas suas redes e em seus circuitos
de deslocamento que se supõem encontrar as evidências de ameaça e risco
à ordem e à segurança (dos mercados, dos negócios, de seus circuitos), fazendo esfumaçar, nesse passo, as diferenças entre crime, protestos de rua e
comportamentos “indesejáveis”; tudo posto sob as figurações da insurgência
e da ameaça real ou potencial à segurança urbana, quer dizer: segurança dos
mercados e dos cidadãos agora transfigurados como operadores de mercado
(consumidores e empreendedores).8
A gestão militarizada dos espaços e territórios urbanos é acompanhada por uma crescente e expansiva “vigilância policialesca” de condutas
e práticas “indesejáveis”, condenáveis não por indicarem alguma infração
legal, mas pelo potencial de risco e ameaça à ordem urbana e ao bem-estar de
suas populações, de que parecem ser portadoras. Como nota Lianos (2001),
essas novas formas de controle, sob a égide da gestão dos riscos, termina
por acarretar um notável deslocamento da lei e das instituições judiciais
como mecanismos de processamento de conflitos e gestão da ordem social.
O que é visto como “desvio” é cada vez mais desconectado de infração (o
crime supõe o sistema de direito) e associado a ameaça. Daí a busca de índices de “desvios” em relação a um padrão de regularidade próprio de um
lugar determinado. Nisso, esfumaça-se a distinção entre o comportamento
legal e o ilegal que, segundo Lianos, abria margens para comportamentos
“não-conformes”, porém, legais: essas margens perdem todo o sentido, na
medida em que, sob figurações do risco, esfumaça-se a diferença entre o
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
“indesejável” e o “ilegal”. Na prática, isso significa uma ampliação extensiva
das situações e tipos urbanos na mira de operações de controle; dos protestos de rua às pequenas violações legais, passando por: comércio informal,
populações de rua, usuários de drogas, jovens barulhentos e inconvenientes,
todos colocados sob o signo do risco e da ameaça à ordem urbana.
IV
Aqui, voltamos ao nosso ponto de partida: os processos e as práticas
pelos quais os espaços são produzidos, pois é disso que se trata nos modos
operatórios dessas formas de controle, entre a lógica militarizada de gestão
urbana e a prática policialesca das condutas.
Essas formas de controle operam em contextos situados e, nesse
sentido, compõem e se compõem com os agenciamentos urbanos pelos
quais os espaços são produzidos como lugares de práticas, de conflitos,
contracondutas, formas surdas ou abertas de resistência, ou acomodações.
As inúmeras etnografias hoje disponíveis sobre as favelas “pacificadas” no
Rio de Janeiro oferecem um arsenal fabuloso de informações (e discussões),
a propósito dos modos como os ordenamentos locais se fazem e refazem
sob o impacto cruzado da ocupação militar e o policiamento de condutas,
circunscrevendo todo um terreno ambivalente, também conflituoso, feito
de acomodações, negociações e resistências, ao mesmo tempo em que os
circuitos dos ilegalismos urbanos – e não só o tráfico de drogas – se deslocam
e se refazem sob novos agenciamentos locais.9
Por esse prisma, as dinâmicas de produção e gestão dos espaços
urbanos se abrem a uma série de questões a serem pontuadas.
Primeiro: nos contextos situados em que as forças da lei e da ordem operam, nada funciona exatamente como posto na racionalidade dos
controles, descrita e tematizada pela literatura: há inversões de sentido, há
“derivas”, há “escamoteamentos”, há linhas de fuga, há formas de resistência ou de contraconduta, para não falar de outras formas de enfrentamento
e protestos organizados. Ou seja, os dispositivos de controle operam em
um campo atravessado pela indeterminação, nas formas não previstas de
composição com outros modos de regulação das relações e conflitos locais,
acertos, negociações, um trânsito constante entre mecanismos formais e
informais, entre dispositivos legais e extralegais, nos modos de regulação
e gestão dos ordenamentos locais, dos microconflitos, disputas, atritos que
pontilham esses lugares. Nesse registro, toda uma discussão se abre não
propriamente para denunciar os excessos e derivas dos aparatos do Estado,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
VERA DA SILVA TELLES
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mas algo mais fundamental e que diz respeito às dimensões conflituosas,
ambivalentes, multifacetadas inscritas na própria produção – negociada,
disputada, agenciada – da ordem social e, no nosso caso, da ordem urbana
e ordenamentos espaciais.
Segundo: sob a lógica do risco, os dispositivos de controle e seus
alvos proliferam, na medida em que o que é posto como risco e ameaça
se expande e se multiplica, conforme o arbítrio das forças da ordem, com
modulações associadas a circunstâncias e microconjunturas políticas. Como
diz Hélène L’Heuillet (2004), em seus modos de agir (e decidir) a Polícia
compõe com as circunstâncias, acasos e tudo o mais que é visto como desordem a ser controlada. Ela age por “delegação de soberania” e é essa a
dimensão de arbitrariedade que lhe permite acionar a violência; também a
violência extralegal sob a cobertura da autoridade que essa soberania lhe
confere (L’HEUILLET, 2004). Na conjunção entre a lógica militarizada
de gestão dos espaços e a vigilância policialesca das condutas, os pontos
de atrito e conflito se multiplicam, na medida em que esses dispositivos de
poder tendem a se confundir com a gestão das vidas e das formas de vida,
com a vida cotidiana e suas circunstâncias.
Terceiro: nos contextos situados em que operam, os modos de intervenção das forças da ordem terminam por embaralhar os sinais da lei e
do extralegal, da ordem e de seu avesso, do “certo” e do “errado”, mesmo
quando se trata de assuntos abertamente concernentes a práticas e condutas
“fora da ordem” (drogas, ocupações, etc.). E isso acontece seja no caso da
violência extralegal (achaques, extorsões, execuções, prisões arbitrárias)
que compõe a história das periferias urbanas (mas não só); seja no caso do
chamado “policiamento desproporcional” (técnicas de “gestão das multidões” próprias da lógica militarizada da gestão urbana) que acompanhou
as manifestações ao longo de 2013 e 2014, mas que é também recurso de
poder (dissuasão, como se diz) em outras circunstâncias; sejam ainda normativas administrativas ou judiciais de legalidade duvidosa, autorizando a
intervenção da PM no combate ao comércio ambulante nas ruas da cidade; o
fechamento de bares e pontos de encontro de jovens nas favelas e periferias
urbanas; o uso da força nas remoções nas regiões de ocupação; a repressão
a condutas insubordinadas em espaços e lugares de circulação da cidade.
Aqui, nesse registro, vemos as vias pelas quais uma história persistente de
arbítrio e violência policial se atualiza e se redefine na própria medida em
que espaços e dispositivos de exceção se multiplicam, já que ativados sob
a lógica da gestão dos riscos e suas urgências.
Não por acaso, vemos hoje o surgimento de modalidades de ativismo
jurídico (advogados ativistas e, sobretudo, defensores públicos), cada vez
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
mais presente nessas arenas conflituosas. Trata-se de formas de ativismo que
operam justamente nesses terrenos incertos entre o direito e a exceção, entre
a lei e o extralegal. As suas formas de atuação em vários destes pontos de
incidência dos dispositivos de “lei e ordem” podem nos dar algo como um
roteiro de um multifacetado campo de disputa que se estrutura na produção
na ordem urbana, entregando as pistas para deslindar as dimensões conflituosas da própria produção da ordem urbana, nos nexos entre dispositivos
legais-institucionais, produção da ordem urbana e conflito.
Finalmente, retomando as primeiras páginas deste texto, essa é questão que remete ao estatuto da informação etnográfica que produzimos em
nossas pesquisas. Aqui, uma hipótese teórico-metodológica a ser trabalhada,
e que diz respeito ao modo de tratar a presença (e o lugar) do Estado e dos
dispositivos legais nos contextos situados em que operam, e que remete ao
que alguns autores vêm propondo nos termos de uma antropologia do Estado
visto pelo ângulo de suas práticas em contextos situados ou, como propõem
Das e Poole (2004), a partir de suas “margens”. Se essa é uma perspectiva
fecunda de análise, será preciso levar a sério o que as autoras (e outros, em
outras chaves teóricas) propõem, quando dizem que é nessas “margens” que
o Estado está redefinindo seus modos de governar e legislar: isso requalifica
as “cenas etnográficas” trabalhadas em nossas pesquisas, postos de observação privilegiadíssimos para entender o modo como ordenamentos sociais
são fabricados no coração dos campos de tensão e disputa que se armam
justamente nos seus pontos de fricção com a lei e o poder.
Menos do que uma conclusão, uma aposta: é nesse registro, dos atritos, fricções e conflitos com a lei e o poder que talvez possamos identificar
as transversalidades e ressonâncias presentes nas diversas territorialidades
urbanas. Um campo de gravitação da experiência urbana, poderíamos
dizer. Nesses conflitos e pontos de atrito que se multiplicam pela cidade,
não se trata apenas de resistências e protesto contra os excessos das forças
da ordem. Trata-se, arriscaríamos dizer (é uma hipótese), de uma disputa
sobre os próprios modos como os ordenamentos urbanos são produzidos e
administrados, afetando os usos dos espaços e seus circuitos, modos de ser,
viver e habitar a cidade; de circular e se apropriar de seus recursos. Talvez,
nessa chave se possam identificar as mútuas ressonâncias entre as manifestações dos anos recentes, comentadas no início deste texto e a situação de
conflito, multifacetada que pontilha os espaços da cidade. Entre uns e outros,
é a vida urbana – e a cidade – que se perfila pelas linhas entrecruzadas de
uma cartografia política desenhada pelas linhas de força que perpassam esses
vários pontos de conflito, atritos e fricções.
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VERA DA SILVA TELLES
NOTAS
37
1 Conjunto de pesquisas que vem sendo desenvolvidas no âmbito
do grupo de pesquisa Cidade e Trabalho, associado ao LAPS,
Laboratório de Pesquisa Social - PPGS, USP.
2 Em outro contexto de discussão, trabalhei essas questões em
Telles, 2013
3 Entre muitos outros, cf. Brenner et alii, 2012. Em artigo recente,
David Harvey (2014) traça paralelos entre as manifestações ocorridas em diversas cidades do mundo, entre elas São Paulo, para
discutir “a crise da urbanização planetária”,.
4 Para uma discussão atenta à dinâmica dessas manifestações,
seguindo a cronologia de suas fases, e desdobramentos, ver
Singer, 2013. Eerdem Yörük (2013), por sua vez, ao traçar paralelos
entre as manifestações no Brasil e Turquia, no mesmo ano de 2013,
nos entrega pistas para discutir os nexos entre a dinâmica dessas
manifestações e os modos de (não) gestão politica dos conflitos
na cena urbana contemporânea.
5 A literatura sobre o lugar dos grandes eventos na economia
política das cidades é imensa e, no nosso caso, são inúmeros
os pesquisadores que trataram de acompanhar e discutir esses
acontecimentos. Vários artigos e coletâneas já estão em circulação,
discutindo os mais diversos aspectos desses eventos e dos conflitos
que os acompanharam - bibliografia já é considerável. Tratar disso
exigiria um outro artigo.
6 Esta questão está no centro de nosso Projeto Temático (Fapesp),
“Gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a
experiência paulista”, 2014-2018. O projeto está disponível no
site www.veratelles.net
7 Trabalhei essas questões em artigo recente. Ver Telles, 2015
8 Impossível discutir aqui as matrizes desse urbanismo militarizado e o modo como seus dispositivos e tecnologias circulam no
mundo contemporâneo. Além do livro já citado de Stephen Graham
(2010), referência obrigatória nessa discussão, ver Bonditti, 2013;
Nasser, 2014, 2015.
9 Vale a consulta do dossiê sobre as UPPs, publicado em dois
números pela revista Dilemas. Cf. Silva; Leite, 2014, 2015
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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VERA DA SILVA TELLES
Palavras chave:
produção de espaços
urbanos, mercantilização de
espaços e territórios urbanos,
formas de controle e gestão
militarizada de espaços urbanos, conflitos urbanos.
Resumo
Keywords:
production of urban
spaces - commodification of
spaces and urban territories
- militarized forms of control
and management of urban
spaces - urban conflicts.
Abstract
Tomando como referência empírica a cidade de São Paulo,
trata-se de deslindar as lógicas de produção de territorialidade urbanas atravessadas por conflitos e campos de tensão
espalhados por todos os lados, mas que se configuram
em torno de pontos de fricção postos pelas tendências de
uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas
e formas de vida, no seu entrecruzamento com formas de
controle e a lógica militarizada de gestão dos espaços urbanos. Esta é a hipótese explorada, buscando-se deslindar os
nexos entre a produção e expansão do mercado, as formas
de controle e dispositivos de poder, e uma conflitualidade
renovada, que se expressa sob as mais variadas formas.
Procura-se decifrar como essas duas linhas de força – as
lógicas de mercado e as formas de controle – se territorializam em contextos situados, circunscrevendo campos de
tensão e de conflito, cujas formas e sentidos são colocados
em discussão.
Taking as an empirical reference the city of São Paulo, this
article tries to unravel the various logics through which
the urban territoriality is produced, traversed by conflicts
and strain fields that are everywhere, but are also shaped
around friction points determined by processes of growing
commodification of spaces, places, lives and ways of
life, in its intersection with militarized forms of control
and the logical management of urban spaces. This is the
assumption that we intend to explore in order to unravel
the nexus between production and expansion of markets,
forms of control and power devices, and a renewed conflict,
which is expressed in the most varied forms. We seek to
understand how these two ‘lines of force’, the logic of the
market and forms of control, territorialize in located/situated/placed contexts, circumscribing areas of tension and
conflict, whose forms/shapes and meanings are precisely
what we want to discuss.
Recebido para publicação em abril/2015. Aceito em junho/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41