o feiticeiro
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o feiticeiro
O FEITICEIRO Lucas Zanella Fraga chegou na cidade às treze e dezessete; o dia estava bonito, ensolarado e as nuvens muito bem dispersas no céu azul de Cármenes. Era uma quartafeira e todos se sentavam em suas varandas, balançando-se em suas cadeiras. O velho Jacir estava mascando um palito de dente, por alguma razão achava aquilo bom, mas ninguém realmente compreendia o porquê dele fazer essas coisas malucas que faz. Era viúvo, a mulher havia morrido três anos atrás, nunca tiveram filhos. Vivia sozinho e todos achavam que ele já não batia muito bem das ideias. Não é a toa que um dos médicos da cidade grande, ao passar por lá quando ficou perdido na rua asfaltada, recomendou que ele tomasse um remédio – que o próprio Jacir nem se lembrava o nome. Na verdade, não se lembrava nem mesmo da conversa com o médico. Possuía setenta e quatro anos e a memória já começava a falhar, mesmo tão cedo. A casa do outro lado da rua era habitada por Carolina e Jacobá, eram os mais novos na cidade, mudaram-se havia sete anos. Ninguém realmente sabia da existência da cidade, ela já não aparecia mais nos novos mapas. Alguns diriam que era uma cidade-fantasma, mas ela não poderia estar mais viva. - Você viu o garoto novo, Antônio? - Guides perguntou para um freguês enquanto limpava sua mesa com um pano encharcado de álcool. O bar não estava muito movimentado. Nunca era movimentado nas quartas-feiras. Nas segundas e terças, bebiam porque era o início da semana. Nas quintas e sextas, bebiam porque era quase o fim de semana. Nos sábados e domingos, bebiam porque era o final de semana. Mas as quartas eram calmas, como se fosse o único dia da semana em que tudo era zen, o único dia em que todos aceitavam que a semana havia começado e já estava para acabar, portanto ninguém bebia. Todos haviam de ficar sóbrios por pelo menos 24 horas na semana. E ficavam. E foi justamente num dia zen que Fraga chegou em Cármenes, como se soubesse que o dia estava calmo e aquilo o aborrecesse. Precisava mudar essa coisa maluca que todos chamavam de “tranquilidade”. - Que garoto novo? - Antônio demorou para responder. Primeiro esperou Guides limpar sua mesa, enquanto segurava o copo de cerveja no ar, depois o pousou, limpou a garganta e bebeu um gole. - Ora, como não o viu chegar? Se me perdeu a cena que Jacir fez, isso me faz pensar o que mais não perdeu enquanto esteve aqui - Guides respondeu enquanto começava a limpar o balcão. Estudiosos diriam que ela possui um transtorno obsessivo-compulsivo e que sente a necessidade de limpar tudo a todo momento. Uma terrível doença para alguém que trabalha num bar ter. Antônio apenas diria que ela é uma “mulher para casar”, pois estava sempre limpando as mesas, as louças e o chão do bar. Antônio era o xerife da cidade, e não havia muita coisa que um xerife fazia lá. Basicamente, ele apenas ficava sentado em sua cadeira, atrás da sua escrivaninha, com os pés cruzados sobre a mesa e o chapéu preto de caubói caído no rosto, como se estivesse tentando esconder o fato de que estava dormindo. Durante toda a história da cidade, apenas uma pessoa foi presa, um garoto de vinte e tantos anos que foi preso porque roubou a casa da Dona Carmen. O xerife estava, como sempre, dormindo em sua cadeira. O garoto deu um jeito de escapar da sua cela - pra falar a verdade, as celas não eram nem mesmo boas o suficiente para prender alguém dentro delas - e fugir da cidade. Nunca mais foi visto, provavelmente partiu para uma cidade grande e está agora mesmo roubando de outras casas. - Por falar nisso - Guides começou. Não haviam “falado nisso”, mas ela sempre inicia uma segunda parte de uma conversa dessa maneira -, o senhor não deveria estar no xerifério? Por alguma razão que ninguém sabia, a atendente do bar-hotel chamava a delegacia da cidade de xerifério. - Por falar nisso outra coisa - o xerife disse e depois percebeu que não entendeu o que havia dito. - Como a senhorita ficou sabendo da chegada dele? - Bom, eu tenho a única pousada da cidade falou com um sotaque caipira que não lhe caía bem -, então ele se hospedou aqui! - E o que você estava falando sobre a briga dele com o velho Jacir? - perguntou o xerife. Guides o contou tudo nos mínimos detalhes, embora, como se não pudesse evitar, aumentou um ponto ou outro. Tal como aconteceu com todos os outros que começavam a contar o que havia acontecido para seus maridos, esposas e companheiros. A própria Guides deixou algumas partes de fora, mas não por má intenção, e sim porque não acompanhou a discussão toda. Ninguém havia acompanhado, mas todos saíram de suas casas quando perceberam que os gritos não parariam tão cedo. Eis aqui o relato do que aconteceu, tal qual aconteceu. Fraga parou no início da cidade, logo após fazer a curva na estrada principal, que era a única asfaltada. Ele andou como se fosse o mais novo caubói da cidade e parou de repente, pondo as mãos no cinto. Jacir estava sentado na varanda de sua casa, mascando seu palito de dente, como faz todos os dias. Aquele dia não era como outro qualquer. O velho olhou para o lado e viu o homem em pé olhando para a cidade, como se fosse eu protetor ou destruidor. Fez um barulho com a garganta e cuspiu no chão. - Você não deveria estar aqui - gritou com sua voz rouca e um pouco fina de velho. Fraga não pareceu se importar. - Essa cidade não é sua para destruir! - Cale a boca, velho! -- Fraga disse enquanto começava a andar até a frente da varanda da casa de Jacir. Os outros moradores começaram a sair de suas casas, um por um. Jacir os viu e decidiu deixálos informados do que estava acontecendo. - Foi ele quem matou o pessoal de Ravéra gritou para os vizinhos mais próximos. - Precisamos fazer algo, ele vai acabar matando nóis também! - Povo de Cármenes, não temam minha chegada. Por favor ignorem o velho aqui, nós nos conhecemos anos atrás e, por conta de um malentendido, ele passou a me odiar, nada que valha a pena ocupar espaço em suas memórias. Voltem para as suas casas, não se incomodem. E todos pareceram acreditar, pois começavam a entrar nas suas casas. O velho, com sua cara enrugada e suas costas doídas, levantou-se da cadeira e ela pareceu soltar um grito estridente enquanto continuava a se balançar de trás para frente, como se o espírito invisível de uma garotinha estivesse nela se balançando. O velho Jacir pegou um rolo de papel que pousava numa mesinha de madeira ao lado da cadeira e balançou para o público que lhe restava. - Não acreditem nesse feiticeiro filho da mãe - gritou o mais alto que pode até começar a tossir leiam o jornal, ele é procurado pela região toda e está se refugiando na nossa cidade. - Cale a boca, velho! - gritou pela primeira vez. - Pode não gostar de mim, mas exijo que pare de espalhar mentiras por todo lado. Isso não é coisa de gente decente. - E quem é você para falar de gente decente? - o velho Jacir desceu as escadas da sacada da casa e ficou cara a cara com Fraga, um homem alto, vestindo um casaco preto, com botas e calças marrons e uma barba curta no rosto. - Eu sou um habitante de Meléas e mereço respeito – disse Fraga. - Tu não é habitante de Meléas coisa alguma - o velho tornou a gritar, alguns vizinhos continuavam do lado de fora apreciavam o show que Jacir dispunha. - É um cultivador do senhor das trevas, isso sim. É um habitante de seu reino de fogo e nada mais que isso. Meléas era o nome do estado onde viviam, e era um estado de respeito. Era verdade que muitos cultos adoravam o senhor das trevas, mas ninguém realmente ligava para eles, sendo que nenhum desses grupos de adoradores fazia algo além de se reunir para cantar músicas esquisitas que falavam sobre mortes e sacrifícios. Mas Fraga não estava em culto algum ou cantava aquelas cantigas satânicas que apenas o faziam rir. Ele era melhor que isso. Sentia que não precisava fazer essas coisas ridículas para ser adorado pelo seu senhor. E por isso pensava que nada nem ninguém conseguia o derrotar. - Jacir, deixe o bom homem em paz - gritou um dos vizinhos, que tomava um mate amargo enquanto assistia a briga; o que era, para ele, o equivalente a um bom filme e um balde de pipoca. - Ele não é bom, Clemente! - gritou Jacir olhando para o vizinho no segundo andar da casa à frente da sua. Fraga, enquanto isso, saía de lá e entrava no bar. Guides, que agora já havia começado a acompanhar a briga, o olhou torto enquanto entrava, apenas porque sabia que Jacir não era mentiroso. Mas também, depois quando olhou o jornal, viu que não havia notícia alguma sobre procurado algum. É por isso que ela disse "sim" quando ele perguntou: - Você possui algum quarto vago? perguntou batendo a caneca agora cheia apenas com espuma na mesa, ele viu o aviso na parede, que falava sobre a hospedaria que funcionava no segundo andar do bar. - Sim, vai querer? - indagou Guides. - Por favor - respondeu e pagou logo de imediato, mostrando sua carteira cheia de deneres, mas não comentou sobre sua riqueza ou sobre como a conseguira. Tampouco explicou a razão de ter ido para uma cidade pequena quando, com todo aquele dinheiro, poderia estar num local grandioso como a Cidade dos Anjos. Guides o levou para o segundo andar, disse seu clássico "cuidado onde pisa" enquanto subiam a escada quebradiça e abriu a porta do quarto com a chave mestra. Entregou para o homem uma chave pequena que era a do quarto de número 3. Haviam três quartos em toda a pousada, e eles nunca estavam todos cheios ao mesmo tempo. Não era muita gente que visitava a cidade, apenas aqueles que se perdiam no meio do caminho à Cidade dos Anjos ou aqueles que possuíam o carro quebrado no meio da pista e precisavam de um mecânico urgentemente. Ted era o único mecânico da cidade, e ele cobrava caro. Mas afinal, como não cobrar? Ninguém dentro da cidade possuía carro e era, talvez, uma vez por ano que alguém parava para ter seu carro concertado ou checado a fim de ver se estava tudo em ordem. Além de mecânico, também era encanador, a profissão que mais lhe dava dinheiro, porque os canos das casas não funcionavam direito parte porque ele os arrumava com uma “data de validade”. Sendo que era o único encanador, era certo que tornariam a contratá-lo quando o cano estourasse novamente. E iria estourar. Não era fácil trabalhar em Cármenes. As únicas pessoas que ganhavam dinheiro de verdade eram os agricultores, que vendiam seus produtos para os outros habitantes e para a cidade grande – onde ninguém sabia produzir merda alguma e compravam do pessoal do campo – e também Guides, que possuía o único bar da cidade, onde os agricultores iam para beber algo depois de um longo dia de trabalho debaixo do sol ardente. Guides ganhava cerca de vinte e sete deneres por dia, os agricultores ganhavam quarenta e nove deneres por mês. Ted cobrava, para consertar os canos, dez deneres, e trabalhava talvez uma ou duas vezes por mês. Logo, Guides era a mulher mais rica da cidade, embora a menos letrada. Mas certamente não tão rica quanto Fraga, visto que mesmo ela ficou surpresa ao ver toda aquela grana. - Pacote completo? - perguntou Guides enquanto contava o dinheiro. - Hã... claro - aceitou mesmo sem saber o que o pacote incluía ou quanto custava. Guides o devolveu uma pequena parte do punhado de deneres e guardou o restante no sutiã, depois deu duas palmadinhas como se isso fizesse ele ficar mais seguro. Mais tarde, naquele mesmo dia, Fraga estava sentado em sua cama, encarando o nada, como se estivesse fazendo uma oração. Apenas observava a parede com fascínio e não sabia nem mesmo a razão de tamanho encanto. Levantou-se e abriu a janela, o dia estava acabando, já era de noitinha. Ele se escorou na janela e ficou observando todos abaixo dele. O velho Jacir, que ficava na casa ao lado, já não podia ser visto, pois provavelmente estava dormindo. Mas certamente começaria a incomodá-lo novamente. Fraga precisava dar um jeito no velho, mas não ainda. Agora precisava dormir para recuperar suas energias, depois poderia começar a fazer com aquela cidade o que fez com a anterior. Ouviu batidas na porta enquanto botava sua roupa de dormir, que era apenas uma longa blusa branca rasgada, não usava nada por baixo. Andou até a porta ajustando a blusa e girou o trinco, observando o corredor e a visita através de uma fresta. - Olá, sinhô - uma moça jovem falou com sotaque carregado e logo empurrou a porta e se aconchegou na cama. - Que perturbação é essa? - ele perguntou ficando um pouco enfezado por conta da falta de privacidade. - O sinhô pediu o pacote completo - a moça puxou a coberta da cama para o lado e fez um gesto para que Fraga a acompanhasse. - Se eu soubesse o que o pacote completo continha, não o teria pedido - Fraga agarrou a garota pelo braço e ela reclamou da dor, ele a arrastou até fora do quarto. - Por favor, sinhô, se eu não fazê isso num ganho minha parte do dinheiro - o que soou como partinheiro vindo de sua boca. Ela se pôs para dentro do quarto novamente. - Eu não ligo. Saia agora, antes que acabe sobrando para você! A garota vestia uma camisola branca curta, um pouco mais bem cuidada do que a blusa rasgada de Fraga, mas que também mostrava ter alguns anos de uso. A garota apenas balançou a cabeça em negação; Fraga não a queria ali, não estava na cidade para aquelas coisas, estava a trabalho, apenas iria conseguir vítimas para seu chefe, saquear as casas, matar aqueles que resistissem e então partir para a próxima. - Eu estou mandando! - agarrou a garota novamente pelo braço e a empurrou para fora do quarto novamente. - Não, por favor, eu preciso do dinheiro para minha mãe! - gritou a moça. Fraga pareceu se interessar de repente, largando o braço da moça e a deixando entrar no quarto. A moça entrou calmamente e Fraga a seguiu muito interessado no assunto. - Ah. Por que não falou antes? O que há de errado com a sua mãe? - Ela tá duente, sinhô, preciso de dinheiro pra levar ela pra Cidade dos Anjos onde tem médicos bom. - Talvez isso nem mesmo seja necessário - ele falou com uma voz calma. - O que você estaria disposta a ceder pela vida de sua mãe? - Tudo, sinhô, tudo! - E que tal a sua própria? - perguntou gentilmente. A garota se afastou um pouco, estava sentada na cama e Fraga sentava também. - Sabe... eu faço negócios por um homem amigo meu, e posso garantir que ele fará a sua mãe ficar bem... por um preço. Ele virá buscar você em alguns anos, e você terá de ir com ele, ou então sua mãe morre, mas se fazer tudo como ele disser, ela viverá! Deu um sorriso esquisito e torto. A moça já não sabia o que responder. - Táááá... - respondeu desconfiada. - Excelente - o homem comemorou. Apenas vou precisar que assine um contrato com o meu mestre! - Ô senhor Fraga! - Guides gritou à porta do homem. - Não há razão para gritar, minha cara; é ou não é um bom dia hoje? - ele perguntou ao abrir a porta. Guides pôs a cabeça para dentro do quarto e notou Eloá deitada na cama do hóspede. - Vejo que gostou do que o pacote inclui Guides sorriu para ele. - Ah, sim - Fraga olhou para a moça em sua cama e voltou seus olhos para Guides. - Posso dizer que achei... de matar! Sorriu para a mulher e fechou a porta, saindo do quarto e acompanhando Guides enquanto desciam as escadas. - O café está servido, senhor. Se quiser pode sentar à mesa e juntar-se aos outros que vieram. - Claro, eu adoraria - Fraga disse. O bar estava cheio, afinal, era quase fim de semana, quinta-feira. Fraga olhou para o relógio e notou que era sete e meia da manhã. Havia uma mesa onde o café fora servido, uma xícara com café preto, uma jarra de leite gelado ao lado, junto de pão, presunto, queijo e manteiga. Não havia muita variedade do que comer, e por isso Fraga comeu o que viu. Tomou o café preto para acordar e logo pediu outro, então colocou leite e preparou um sanduíche com o pão, o presunto e a manteiga sobre a mesa. Desprezava queijo. Para ele, era algo do... ser cujo nome não deve ser pronunciado, porque seu patrão não gosta. O mestre de Fraga sempre retira um pouco de dinheiro do pagamento do funcionário quando ele diz o nome Dele. O dia aparentava estar calmo, pelo menos tão calmo quanto todos os outros dias da semana. Todos bebiam e gargalhavam enquanto contavam histórias uns para os outros. Você pensaria que, por ser uma cidade pequena onde nada nunca acontece, alguma hora não teriam mais histórias para contar, mas não. Eles sempre arranjavam um novo causo. Guides limpava as mesas daqueles que saíam e a caixa de som que ficava sobre o balcão gritava feito louca as músicas que tocavam na rádio da cidade grande - que não dava para ouvir muito bem porque o sinal era péssimo, mas todos pareciam gostar. Jacir entrou no bar dando socos na porta e viu que o cara que ele chamara de feiticeiro ainda estava na cidade. Isso o enfureceu tanto que não aguentou e precisou falar algo. - O que vocês tão fazendo? - ele gritou e girou em torno de si mesmo de maneira cômica, mas ninguém riu na hora. Estava a ponto de chorar. - O que foi agora, Jacir? - perguntou um homem de cabelo longo que ia até os ombros. Era um cabelo dourado, como sua barba bem arrumada. O homem certamente havia visto a cena que o velho fizera no dia anterior. Fraga já sabia que o assunto era com ele e não estava nem um pouco a fim de enfrentar aquele velho. Desafio mesmo foi o rei de Florrika, que possuía uma multidão de guardas; Jacir seria apenas uma pequena medalha para colocar no fundo de sua estante de troféus. O velho era um nada, e Fraga não queria desperdiçar sua tão conquistada energia com alguém daquela laia. - Ele ainda está aqui - Jacir disse, o que soou como istáh. - Eu pensava que vocês fossem criar juízo e expulsar ele da cidade, mas parece que sou o único que realmente entende o que é que se deve fazer. - Jacir, deixe ele em paz, o que foi que o cara te fez? - o mesmo homem perguntou. - Ora, Maninho, ele não fez nada comigo, ele fez algo é com a outra cidade - gritou de volta Jacir. - É isso o que você diz - gritou um homem de voz grossa e cavanhaque preto do fundo do bar, era um pouco mais letrado e sua pronúncia quase tão correta quanto a de Fraga -, mas quando fui olhar o jornal não vi nada disso, não, Jacir. E é claro que não viu, não deu tempo. Jacir apenas viu a notícia porque havia lido o jornal antes de Fraga chegar e mudar a notícia para algo sobre um sequestro de irmãos na Cidade dos Anjos. A notícia de Fraga era a única que o jornal publicara que não falava sobre a Cidade, a única que dava importância às cidades menores. Portanto, não ver algo no jornal sobre um caso que aconteceu numa cidade menor não seria surpreendente. - O problema é que ele já está velho, não vê mais coisa com coisa - um homem à frente do com cavanhaque disse baixinho para ele. - Velho coisa nenhuma – véicoisniuma. – Romero, não era você quem anteontem mesmo foi à minha casa me perguntar como trocar uma fechadura? Como me confiaria numa coisa dessas se eu fosse um velho que não sabe de nada? - É um bom argumento - Cavanhaque falou para Romero e Fraga virou a cabeça, já pensando que iria dar merda se todos começassem a ouvir o que o velho Jacir falava. - E você, Britinho, alguma vez eu já falei alguma mentira? Você me conhece desde que se mudou pra cidade, eu mesmo te arranjei uma casa aqui e agora tá dizendo que fiquei maluco? - Jacir gritou para um outro conhecido. Britinho, um homem de trinta e poucos anos, escondeu a cara, como se não quisesse dizer o que realmente pensava ou então estava com vergonha por ter se questionado sobre aquilo. Como poderia pensar que o amigo estava maluco? Pessoas que pensam isso não são amigas, tão mais pra inimigas. “Bom, isso saiu de controle rapidamente!”, pensou Fraga enquanto era empurrado para a parede. Ele estava sobre o mini palco onde bandas se apresentariam no bar caso houvessem bandas na cidade. Todos preferiam ouvir as músicas em má qualidade que passavam pelo rádio do que ouvir Antônio ou Guides cantarem com suas vozes de taquara rachada, e olha que isso é elogio. Jacir havia começado a falar de todos os favores que realizou para todos os que estavam no bar e, tal como dizem que de pouco em pouco a galinha enche o papo, de conversa em conversa, todos começaram a acreditar no que o velho dizia. Fraga tentou escapar antes que a vaca fosse para o brejo e começasse a montar acampamento, mas quando notou que não estava mais com a vantagem da briga já era tarde demais. Dois homens o agarraram pelos braços e o arrastaram para o centro do bar. Guides também não possuía controle da situação. Mas estava mais preocupada em continuar a receber o dinheiro por hospedar o homem do que realmente salvá-lo do que quer que pudesse acontecer com o pobre coitado. - A gente precisa é tirar ele daqui! - gritou um homem no fim da grande bola de pessoas que circulava Fraga. - Bora jogar ele na estrada principal pra ir pra Cidade dos Anjos, aqui não é lugar pra esse feiticeiro. “Malditos redatores” xingou Fraga. Não gostava de ser chamado de feiticeiro, a palavra parecia diminuir suas habilidades. Um feiticeiro não seria capaz de falar com os mortos ou produzir todo tipo de maldição, um feiticeiro é capaz de fazer um Wingardium Leviosa e olhe lá. Mas os redatores de jornais pareciam insistir em chamá-lo de feiticeiro, mesmo sem sequer o conhecer. - Senhores, por favor - Fraga falou pela primeira vez. - Vocês realmente vão logo de cara ir julgando um homem que pouco conhecem? Perguntem à moça que ontem chegou em meu quarto, enviada por Guides. Eu a ajudei com seu problema familiar, sou um mau homem? Mereço ser expulso desta pequena cidade que mal me conhece e logo me joga para fora? Os homens pareceram parar para pensar nas suas ações pela primeira vez em todas as suas vidas. - Se há alguém - continuou - que merece seu desprezo é este que está lhes jogando mentiras, o homem que, por conta de um desentendido por ele causado agora quer me ver longe. Um homem que engana o outro para seu próprio deleite é nada senão um charlatão. É por isso que eu vos digo pela primeira e última vez: não é comigo que devem se preocupar, é com ele - apontou para Jacir. - Pois se um homem pode enganar seu próximo com tanta facilidade, ele não é um homem confiável, ele é um homem que manipula a verdade a seu bem entender. Se há alguém que merece ser expulso ou preso é ele, meus senhores, e não eu. Todos voltaram seus olhares para Jacir, que começava a lentamente andar para trás enquanto protestava com “não acreditem nele“s e “vocês me conhecem”s. Nenhum dos homens pareceu o ouvir, como se estivessem hipnotizados. - Não deixem que ele lhes enganem, pois são espertos. São inteligentes e sabem ver o que é certo e o que é errado - Fraga recuperava o poder e logo o calor do medo que antes sentia se tornava num frio prazer de controle. - Me conhecem há tão pouco tempo e já sabem que estou dos seus lados, nunca faria nada para lhes fazer mal, não sou um feiticeiro. ELE É! - Sim - responderam em uníssono. - Ele é o feiticeiro que conhecem, o homem que... George, não se lembra? Ele matou seu filho para que pudesse realizar um ritual satânico! Queimem esse anticristo filho da puta antes que ele queime vocês com o fogo do inferno sendo jogado em suas caras - gritava como um pastor numa missa. - Meu filhinho - o homem que se chamava George chorava com desprezo por Jacir. - Por que fez isso com ele? - Eu não fiz, nada George, eu não fiz nada, por favor! - implorou Jacir. - Cale a boca, feiticeiro - gritou Fraga fazendo gestos como se estivesse livrando Jacir de um demônio que estava preso em seu corpo, como se jogasse água benta sobre a pele velha do homem. - Em nome do nosso Pai e nosso Senhor, você será condenado e sofrerá por toda a eternidade. - Amém - todos os homens gritaram Fraga riu baixinho. Todos os homens, como zumbis na busca por cérebros, andavam lentamente atrás de Jacir, que não corria, tanto por conta da idade quanto pelo fato de que pensava ainda ser possível convencer seus amigos de que Fraga era o malfeitor, e não ele. Mas Fraga possuía o dom da oratória, conseguia convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. É por isso que tinha o chefe que tinha. Suas argumentações eram dignas daquele trabalho. Parecia um feiticeiro, com o perdão da palavra, pois sua voz enganava todos aqueles que o ouviam. Como a sereia Iara, que enganava os pescadores por meio do seu canto, Fraga enganava os cultos e os estúpidos por meio de seu discurso. Um verdadeiro político. Não continuou a falar, pois já não era mais necessário. Os homens estavam cegos à razão e levavam Jacir à delegacia. Antônio, que estava dormindo em sua mesa, ficou surpreso ao ver todos os trabalhadores da cidade invadirem seu local de trabalho e descanso. - Posso saber qual o motivo dessa bagunça? gritou para o povo enquanto ficava com sua mão pousada no coldre. - Jacir está nos enganando, xerife, ele deve di ficar preso! - falou um dos homens. - Pois bem, sob quais acusações, exatamente? - perguntou, como sendo o bom agente da lei que era. - Enganação, perturbação da paz púbica, xerife - o homem que falou tinha problemas com o “L”, mas ninguém riu do fato de ele ter dito “púbica” em vez de “pública”. - Coloquem-no naquela cela ali, depois resolveremos todo esse caso! - Antônio disse tentando tomar controle da situação. O xerife esperou todos os homens passarem para dentro da delegacia até que viu um que conhecia e confiava. - Guilherme, você fica de vigia, não dá pra confiar nessas celas. - Como quiser, senhor xerife - Guilherme disse. Antônio ficou olhando todos jogarem Jacir para dentro da cela. O velho bateu na parede e caiu no chão duro e sujo, pois a cela nunca antes fora limpada. O xerife não fez nada do caso por enquanto, embora nenhum dos homens realmente parecesse estar são. Se estivessem bêbados, provavelmente iriam depois à delegacia para pedir a Antônio que libertasse Jacir, então isso poupar-lhe-ia o trabalho de investigar. Investigar não era para Antônio, apenas leu sobre investigação uma vez, num parágrafo em um livro que seu neto lia durante uma visita da filha, duas semanas após a fuga do marido. Era uma história de um tal de Parrot, se não lhe falhava a memória. Jacir acordou na cela da prisão e, por um segundo, não entendeu por que estava lá, então se lembrou do que aconteceu. Olhou para fora da cela e viu que Guilherme estava lá, em pé, como se fosse um soldado. O xerife não era visto em lugar algum. Enquanto isso, Fraga continuava a procurar mais possíveis clientes. Andou pela cidade e procurou por todos os lados alguém que estivesse em aflitos. Não havia muita gente com problemas, no mais era a prostituta e ela seria a única cliente que acharia. Seu chefe não gostaria disso, ele prefere pelo menos cinco pessoas por cidade - e quando é cidade grande tem que ser no mínimo vinte. É, não era fácil a vida de Fraga. Ninguém da cidade o olhava torto, mas ninguém era simpático com ele. Não porque não queriam, mas porque o próprio Fraga não queria, e ele lhes disse isso, embora não nessas palavras exatas. O homem andava pela cidade como se ela fosse dele, se sentindo o tal. Suas botas marrons levantavam poeira por onde passavam e seu chapéu preto o protegia do calor escaldante do sol. Decidiu entrar no bar para beber algo antes de continuar seu trabalho de escravo. - Bom dia, senhor Fraga - Guides o cumprimentou, estava limpando ainda mais mesas, parecia que nunca parava. - Bom dia, dona Guides - Fraga cumprimentou dando uma ajeitada no chapéu. - Vai querer uma cerveja? - perguntou quando já estava de volta ao balcão e ele já se sentava numa mesa limpa. - Sim, por favor. Guides pegou um copo grande de trás da bancada e o pôs sob um grande barril, onde girou uma pequena peça e o líquido amarelado e muito espumado desceu à caneca. O copo bateu na mesa e Fraga tomou um gole grande. - Obrigado - disse depois de pousar novamente o copo grande na mesa. Fraga olhou melhor para Guides e notou que ela estava com uma expressão estranha na cara - Algo aconteceu? - Não, não é nada! - ela disse inocentemente. - Por favor, Guides. Posso não ser um entendido de mulher, mas sei quando uma tá preocupada com alguma coisa - é geralmente assim que ganho mais trabalho, ele não acrescentou. - O problema, Fraga, é que pensei que viria para a cidade apenas por algum tempo, até me estabilizar financeiramente e então partiria para a Cidade dos Anjos, onde poderia abrir um negócio de verdade, sabe? - falou sonhadora. - Mas agora faz mais de cinco anos que tô aqui nessa merda e parece que nunca vou sair. - Não deve desistir dos seus sonhos, Guides, algum dia eles podem se realizar. - Mas sonhar é algo tão bobo; você tá sempre nas alturas, parece que tá querendo que a queda seja maior ainda. - Sonhar não é bobo, é apenas... humano! E de ser humano Fraga entendia. Podia ter seu chefe que lhe ajudava o máximo que podia porque Fraga era um bom funcionário, mas que era humano era. Possuía um corpo de carne e osso como qualquer um e pode morrer, quer queira, quer não queira. Claro que, ao morrer, iria para o lugar onde seu chefe mora. Mas mesmo que fosse para um bom lugar, viver sempre será melhor. É na vida onde temos cidades grandes e altas oportunidades de trabalho - como naquela vez em que Fraga invadiu um orfanato e conseguiu diversos trabalhos, pois lá ninguém tinha esperança, todos faziam qualquer acordo. Eventualmente o orfanato fechou porque não havia mais crianças lá. E eventualmente a funerária da cidade já estava cheia de enterros para realizar. Você pode conseguir o que quer, mas tem de conseguir por si mesmo, ou então não vive tempo o suficiente para aproveitar. - Suponho que ocê tenha razão, Fraga Guides concordou por fim, após um bom tempo refletindo sobre a frase dele enquanto esfregava o balcão. Fraga saíra de sua mesa e agora seu copo pousava no balcão de Guides, o homem estava sentado num banco alto que lhe possibilitava pousar os braços na madeira que apoiava seu copo. - E caso você não consiga isso tão logo quanto espera, talvez eu possa te ajudar, sabe... eu tenho uns contatos que podem te dar um avanço muito grande até o seu sucesso. - Pois me fale, homem - Guides pareceu se interessar de repente. - Não, não. Primeiro você precisa tentar sozinha, senão não tem o porquê conseguir. Se for pra pegar um atalho ao topo, melhor nem seguir por esse caminho. - Suponho que ocê tenha razão - repetiu. - É claro que tenho. Sabe, eu vou passar na Cidade em algum tempo, vou dar uma procurada por você e espero que esteja lá, hein?! Guides deu um sorrisinho tímido. Não era bela, mas não era feia. Fraga não se importaria de aguentar aquela mulher pelo resto da sua vida caso fosse um simples trabalhador. Mas naquele emprego possuía dinheiro o suficiente para contratar as melhores prostitutas das cidades onde passava. Cármene era a única cidade onde as prostitutas não eram tão belas quanto o esperado. Sabia por experiência própria que as das cidades pequenas são as melhores, pois a cidade é pequena e elas não são rodadas demais, mas não aquela uma que foi em seu quarto. Fraga percebeu que aquela realmente tentava ajudar sua mãe, o cheiro de pecado era forte. Mas não era pecado para ele e seu chefe, apenas para o outro cara; para os dois aquilo era, entre diversas outras coisas, apenas um outro acaso da vida. - Não chove mais - Guides falou como que para não deixar a conversa morrer, encarava o chão. - Perdão? - Fraga perguntou. - Disse que não chove mais - repetiu, agora deixando de encarar o além e olhando para Fraga, então jogando o pano molhado no balcão e tornando a limpá-lo. - Por que diz isso? - Porque a última chuva que aconteceu faz mais de uma semana, foi terrível. Caiu pedra do céu. Fraga pensou por um momento, sem saber o que ela dizia. - Ah, granizo! - entendeu. - Isso mesmo, essas pedras do demônio xingou Guides. - Depois daquele dia não choveu mais, o que é um horror pras plantações, e as pedras ainda quase destruíram os quartos lá de cima. Também destruiu um monte de casas. - Essas chuvas parecem que vêm acontecendo bastante pela região - disse antes de dar outro gole na caneca com um restinho de cerveja. Guides não viu o sorriso de Fraga. O homem sabia do porquê dessas chuvas, era a maneira que o outro cara achava para avisar o povo de uma região que o coletor do senhor das trevas está chegando. Primeiro ocorre a chuva de granizo, para preparar a população para o pior, então, uma semana depois, chega Fraga, já escolhendo quais são suas vítimas. Era incrível, na opinião dele, nenhum jornal ter percebido que isso sempre acontece antes dele chegar no local em questão, sendo que as chuvas estão sendo estudadas há algum tempo já. Elas não começaram há muito, pois Fraga apenas chegou naquela região de Meléas há pouco tempo. Menos de um ano. Mas as chuvas o acompanhavam, sempre alertando os habitantes, ou ao menos tentando. Para Fraga, seria mais prático o outro cara descer dos céus para avisar sobre a chegada, mas ele não fazia isso. Não se sabia o porquê. - Mas logo é verão - Fraga disse. - Deve começar a chover em alguns dias. Assim que eu sair da cidade, para ser mais preciso, pensou. - Deus te ouça - Guides disse e olhou para os céus, fazendo um gesto de pedido que Fraga não entendeu, apenas porque, quando faz um pedido, ele não vai para os céus. Guides não notou que Fraga a lançara um olhar assassino ao falar o nome do outro cara. Ele mesmo é proibido de falar, bom, proibido não, mas é como se fosse. Passara tanto tempo chamando ele de “outro cara” que já começava a estranhar ouvir os outros o chamando daquele nome estranho e sem significado. O outro cara, é isso o que ele é. Os dois estavam conversando, o tempo passava rapidamente. Fraga não bebeu mais, precisava ficar sóbrio caso uma oportunidade batesse à sua porta. E uma porta bateu, a do bar. Uma mulher entrou correndo e logo se aproximou do balcão, usava um vestido curto vermelho e seu cabelo estava preso em um coque. Olhava para trás desesperadamente e estava suada, como se tivesse corrido desde a Cidade dos Anjos até Cármene. - Por favor, preciso de ajuda - a mulher falou para Guides em engasgos. - O que aconteceu? - Guides perguntou, embora não a conhecesse. - Meu marido, ele tá me seguindo. Eu preciso me esconder em algum lugar! Guides olhou Fraga como se quisesse uma ajuda, mas ele não respondeu. O bar era dela, e se a mulher quisesse ajudar a outra, que ajudasse. - Entre aqui! - Guides levantou uma parte do balcão e a mulher entrou. - Obrigada - agradeceu ela. Guides a empurrou para baixo e encarou Fraga por um segundo, como se estivesse assustada e não soubesse se havia feito a coisa certa. Logo veio outro tapa na porta, desta vez mais forte. Fraga virou o pescoço e notou que era o marido, ou então alguém muito furioso com a mulher que se escondia atrás do balcão. - Cadê ela? - gritou soltando saliva pelo ar. - De quem fala? - Fraga perguntou, achou que era melhor ele lidar com o homem do que a própria Guides fazer isso. - Da puta da minha mulher, Georgia, que estava com o Marciel, estava sim que eu vi! pareceu estar defendendo sua causa num tribunal. - Ninguém está falando que ela não estava Fraga tentou acalmá-lo. - Mas não vimos sua mulher aqui! Fraga ainda segurava sua caneca de cerveja, um restinho ainda menor do que antes. Falava calmamente, pois achava que isso amansaria a fera. O homem, que parecia estar bêbado, embora devesse ter bebido em outro bar ou em casa, pois não aparecera lá pela manhã, começou a revirar o salão todo atrás da esposa traíra. Jogou mesas e cadeiras no chão. Fraga deixou sua caneca no balcão e foi atrás do marido. - Ei, acho melhor você ir embora, pois aquela mulher lá é a esposa do xerife! - Fraga mentiu parecendo ser um bom ator, ele apontava para Guides. O homem acreditou. - Não importa quem é quem, cadê minha mulher? - o homem jogou Fraga para o lado e ele caiu numa montanha de cadeiras, bateu as costas. O marido andou pisando firme até o balcão e gritou com Guides, que não respondeu nada porque estava assustada. Logo o maluco se apoiou no suporte de madeira e espiou por cima da bancada, viu sua mulher chorando agachada no chão duro do bar. - Achei você, sua vadia - sua voz foi aumentando de tom. - Não, por favor! - Georgia gritou em desespero. O marido iria agarrá-la e provavelmente a matar, mas antes que pudesse fazer isso foi agarrado por trás e jogado para o lado, embora não tivesse caído. Era Fraga, que havia se levantado e deixava uma mão na coluna numa tentativa fútil de fazer a dor diminuir. - Eu disse que era melhor você sair daqui! falou e correu para cima do homem. Fraga o agarrou e jogou para fora do bar, o marido caiu na estrada de chão e poeira foi jogada aos céus. O homem o olhou com desespero e levantou-se aos poucos, então saiu correndo de perto do bar. Fraga ficou lá por mais algum tempo, para o caso do maluco voltar. Pôs a cabeça de volta para dentro do bar e recebeu um abraço e um agradecimento de Georgia, que disse que era perseguida por seu marido durante todos os seus anos de casados, que ele a via com um Marciel imaginário e todo dia ela precisava correr para se esconder do marido maluco. Ele estava sempre bêbado, embora a mulher não soubesse de onde vinha a bebida. Ela disse que nunca teve coragem de contar ao xerife, mas Fraga a afirmou que era isso o que deveria fazer, e logo. - Não, eu não posso aceitar - Georgia disse para Guides. - Por favor, eu insisto. Não é como se eu pudesse ficar sem fazer nada depois de ver o que quase aconteceu aqui. Se não fosse Fraga... Por favor, aceite. - Mas eu não tenho nem como te pagar. - Psst! - brincou Guides. - Não precisa pagar! Georgia falou com Guides e a mulher, tendo um bom coração, a ofereceu um dos quartos do segundo andar, não cobraria nada. Fraga pagou pela cerveja, apesar da insistência de Guides e saiu do bar com um aceno com a cabeça. O feiticeiro parou na frente de uma igreja e percebeu que havia algo ocorrendo lá dentro, um sermão, uma missa. Ele empurrou a porta e, embora tenha feito um tremendo barulho, ninguém olhou para trás, estavam focados no padre que parecia falar frases mais hipnotizantes que o próprio Fraga. Haviam diversas fileiras de bancos marrons, onde diversos fiéis se sentavam. A igreja estava lotada e Fraga teve de ficar em pé ao lado da porta, escorado na parede como se fosse um garoto que só estava lá porque esperava a missa acabar para tacar fogo no local. Todos vestiam roupas levemente formais: as mulheres vestidos claros e os homens ternos, exceto aqueles que possuíam menos dinheiro que os demais, esses usavam apenas suas camisetas sujas que também usavam para o trabalho. O padre vestia uma longa túnica branca e balançava muito as mãos, como se o movimento fosse fazer sua voz ser transmitida com mais facilidade. O cabelo do homem era curto e preto, seu rosto um pouco arredondado, embora fosse magro como um palito, pelo que dava para perceber por conta da grossura de seus braços. Fraga continuava a mascar o palito em sua boca, o padre o olhava de hora em hora, parecia estar checando se ele não havia tacado fogo na igreja antes da hora de costume. O homem, em seus trinta ou quarenta anos, ficava muito longe. A igreja era comprida demais para que ele reparasse em Fraga, para que realmente percebesse o que vestia e usava em seu pescoço, o símbolo daquele ser que o padre não gosta. - Irmãos - o padre gritou e o grito terminou num agudo alto. - Não devemos, sob hipótese alguma, ceder às tentativas que o senhor das trevas nos dá. Ele promete coisas que nunca irá cumprir, e tudo isso porque é o rei da mentira. Não confie nesse homem podre que lhes promete melhoras de vida, pois ele é egoísta e só pensa em sí próprio. DEUS é o caminho, a verdade e a vida. Amém. - Amém - disseram em uníssono. Dessa vez, Fraga não riu, mas seu rosto demonstrava desprezo. - Agora, irmãos, vamos rezar a oração que o Pai nos ensinou - sua voz foi diminuindo até que se calou, cruzou as mãos à sua frente e todos os fiéis fizeram o mesmo, começando a olhar para baixo. - Pai nosso que estais no céu - começaram a rezar e rezaram duas vezes mais, pois “o Diabo está aqui conosco, eu o sinto, rezemos novamente” foi dito pelo padre outras duas vezes. - Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe o padre sorriu e fez um gesto delicado à porta, como se estivesse mandando o Senhor junto dos fiéis que começavam a sair da capela. - Graças a Deus – falaram todos antes de se levantarem e sair. Todos passavam por Fragas, mas ninguém se importava com sua presença, muitos nem sequer o conheciam. Os mais fiéis não iam ao bar e não estavam na hora da discussão do dia anterior porque estavam na igreja. Há missas quase todos os dias na cidade. O último saiu porta afora e o padre desceu do altar e andou até Fraga, o som de seus passos circulavam por toda a igreja, o piso era liso. Ele cruzou os braços antes de chegar, como se estivesse preparado para ouvir ou estivesse impedindo a entrada de o que quer que Fraga fosse falar. - Bom dia, meu filho - o padre falou para Fraga de bom humor. - Bom dia, seu padre - respondeu. - O que queres aqui na minha humilde igreja? Vejo que espera uma resposta ou explicação. - Nada disso, não, senhor padre, só entrei aqui porque notei que havia algo acontecendo. - Entendo. Então não é de ir em igrejas? perguntou o padre. - Digamos que não - Fraga respondeu. - Pois bem, mas saiba que isso lhe garante um lugar com o nosso Senhor, lá no paraíso - apontou para cima como se o paraíso ficasse no teto da igreja. - O problema, senhor, é que já tenho outro lugar marcado para ir! - Fraga respondeu dando um sorriso de canto de boca, o padre não notou. O que o bom homem notou, porém, foi muito pior. Fraga usava, pendurado no pescoço como um colar, o símbolo do pentagrama invertido. O colar era de ferro, assim como o símbolo. O padre deu uma olhada e fez o sinal da cruz, tentando expulsar o demônio de dentro da casa do Senhor. - Creio que seja melhor se o senhor se retirasse - o padre falou educadamente. - Ah, mas justamente quando recém cheguei? - Minha igreja é local para pessoas de alma bondosa e pura, não para pessoas que usam o símbolo do capeta no pescoço - fez o sinal da cruz de novo para se livrar do mal-olhado. - Mas quem disse que eu quero ficar aqui dentro da sua igreja? - Fraga perguntou em uma voz fina enquanto, com a mão direta, acariciou o cabelo do padre. - Ótimo, então por favor se retire - repetiu. - O único problema, senhor padre, é que eu ganho pelas minhas ações, e não apenas pelos meus negócios - sorriu de maneira assassina. O padre o olhou esquisito, medrosamente. Pôs a mão no pescoço e puxou uma corda para cima, em sua ponta havia um crucifixo e nele o filho de seu Senhor. Fraga desviou o olhar. O padre agarrou o crucifixo de tal maneira que sua mão chegava a ficar vermelha. Parecia, talvez, estar se punindo por ter permitido que um cultuador do homem de baixo entrasse na casa do Senhor. Não podia se dar chibatadas porque não era hora de se fazer isso ainda, então aquela era a única punição que podia se dar. Não podia maltratar o adorador porque isso não era coisa de um homem de puro coração. Só lhe restava a fé, e embora sua fé fosse forte o suficiente para mover montanhas, talvez pudesse não ser o suficiente para parar o ataque de Fraga. - O Senhor é meu Pastor - o padre repetiu religiosamente em sussurros, como se os únicos que pudessem ouvir fossem ele e seu próprio Deus. - Será que ele é? - perguntou Fraga e logo se pôs a rir. - Tu vais para o inferno, e lá serás torturado por desrespeito ao nosso Senhor, o único Senhor, aquele que mandou seu filho para que sofresse por nós, para que pagasse nossos pecados - o padre continuou incansavelmente, Fraga já não parecia mais se importar com as constantes acusações. - Se queres falar de meu Senhor desta maneira - Fraga começou a dizer, usando o mesmo tom do padre -, ensinar-te-ei a não desrespeitá-lo, pois se o seu não lhe ajuda, o meu me dá forças para combater os desprezíveis como vós. O padre estava a um braço e meio de distância de Fraga, segurando seu crucifixo e rezando. Não rezava apenas por ele, rezava também por Fraga, afinal, era um cristão, e tinha esperanças de que todos tinham salvação, mesmo aqueles que, como Fraga, faziam as escolhas erradas. - Liberte sua alma e permita que veja a sua luz, meu Deus - o padre falou um pouco mais alto do que o resto de suas frases. Fraga estendeu o braço e fechou os olhos, começou a rezar tão forte quanto o padre. Mas enquanto o padre rezava pela alma de Fraga, o próprio rezava por outra coisa, por isso sua prece foi atendida. A alma do homem já estava podre, além de vendida, não valia nada além de um mísero centavo que não era da época. Nem mesmo o Senhor do padre poderia o salvar, mas o Senhor de Fraga atenderia seu pedido com todo o prazer do mundo, afinal, é isso o que faz nos tempos livres. O padre apertava o crucifixo contra o peito e logo sua respiração ficou pesada. Lentamente seus órgãos foram parando de funcionar e ele já não respirava mais, sem deixar de, com seu último suspiro, pedir pela benção de todos da cidade. Não morreu, pois voltou logo depois, antes mesmo de cair no chão. Voltou dando fungadas fortes para que o ar entrasse em seus pulmões que brevemente voltaram a funcionar. Estava com suas mãos nos joelhos, encarando o chão como em uma oração esquisita. Recuperava seu fôlego e logo o diafragma prendeu durante a mesma respiração. A morte é algo “a mais” para o Senhor de Fraga, o bom mesmo é a tortura, tanto que essa é a premissa de seu local de descanso. A tortura dá, para o Senhor de Fraga, mais prazer do que a morte, que apenas termina. A vida termina na morte. A tortura pode durar para sempre. O padre pôs a mão no abdome e tentava respirar pela boca, a mantinha aberta para o caso de o ar resolver ser sorvido novamente. Logo o diafragma foi solto e o homem se pôs a ofegar novamente. Não sentiu que voltaria a ter sua respiração presa então aproveitou o ar puro de dentro da igreja. Seu estômago rebulhava e sua cabeça estourava em febre. - Por que fazes isso? - o padre perguntou ainda de cabeça vidrada no chão da capela. Fraga se aproximou até que sua boca estivesse na altura do ouvido do padre. Molhou os lábios e pareceu ter pensado durante um segundo no que falar. - Diversão - foi o que escolheu responder. - Você ainda tem salvação, meu filho - o padre tentou, pela última vez, libertar a alma de Fraga. - Não, senhor. VOCÊ ainda tem salvação. É só aceitar meu Senhor como o seu Senhor e estará ao Seu lado, não sofrerá nem será punido, receberá luxúrias por toda a eternidade. - Esse não é o meu Senhor, e não deve ser o seu também! - o padre disse. Fraga fechou os olhos e pôs a mão na nuca do padre, apertando-a com força. O homem reclamou da dor, mas logo não a sentiu mais. O que acontecia era pior do que a própria dor. A lava de um vulcão parecia subir por sua garganta procurando pela boca, e finalmente a achou. O padre estava com os olhos abertos enquanto encarava o chão e viu o líquido vermelho sair pela boca e cair no piso bege da igreja. Seu sangue brilhava no soalho liso e inundado por sol. Sentiu que mais vinha e sentia dor. Seus pulmões, seus rins, seu diafragma e seu coração doía. O pequeno músculo que lhe dava vida lutava para realizar a sístole e diástole de sempre. Lentamente o coração parou de bater e permaneceu parado, mas o homem continuava em pé. Nunca é um caso perdido até que o cérebro também tenha morrido, mas ele morria junto do resto do corpo. O padre pôs a outra mão na cabeça, enquanto a direta segurava o diafragma que apertava sua barriga. O cérebro parecia derreter e a febre aumentava. Logo o homem sentiu como se vomitasse o próprio órgão do sistema nervoso pela boca. “No céu eu estarei ao lado do Senhor, serei cuidado pelos anjos que Lhe servem” o padre pensou, e pensou novamente enquanto vomitava seu próprio sangue. Tossia e o barulho de sua agonia só não era ouvido da rua porque parecia estar isolado apenas na igreja. - Escolha melhor na próxima vida, filho da puta - Fraga disse no ouvido do padre antes dele desmaiar no próprio vômito. - Eu escolhi o certo. Eu escolhi o certo foram suas últimas palavras. A túnica branca estava encharcada de vermelho. E ninguém suspeitaria que o assassino fora Fraga, pois ninguém realmente o notou parado à porta da igreja. Sairia de lá impune e poderia procurar por mais desesperados para conseguir as outras quatro pessoas que lhe faltavam. Mesmo que não conseguisse, sabia que o chefe estaria satisfeito depois daquela demonstração de seu poder e crueldade. Fraga esfregou as mãos nas calças e ajustou o casaco grande, então deu um peteleco no chapéu e abriu a porta da igreja para sair de lá. Foi recebido na cidade por uma pessoa que lhe era conhecida. O problema com guardas comuns é que eles dormem, e com as celas sendo fracas, é fácil para um preso sair de uma delas e aparecer com uma espingarda nas ruas da cidade. Fora isso o que Jacir fizera, apenas esperou Guilherme pisar na bola, saiu da cela e pegou a espingarda do xerife que não estava lá no momento, pois falava com Guides no bar. Jacir apontava a espingarda de cano prata para Fraga, o velho usava uma camisa flanela de xadrez e calça bege. Seu cabelo era ralo e seus dentes pretos. - Isso aqui – içaki - não é lugar procê, feiticeiro filho da puta! - gritou e apertou o gatilho. A bala foi rápida demais para que Fraga desviasse. Ela passou direto pela sua testa, saindo do outro lado e levando o chapéu junto. O homem caiu de costas no chão duro da igreja e, quando os outros habitantes chegaram para ver o que acontecera, notaram padre Francisco caído no chão, deitado sobre seu próprio sangue.