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Através deste instrumento, autorizo a utilização gratuita da obra “Entre respirar
e fazer arte” para download, assim como para cópia, distribuição, exibição do
trabalho protegido por direitos autorais. Os trabalhos derivados feitos com base
nele, deverão possuir crédito à autora e propósitos não comerciais.
Rio de Janeiro, 09 de abril de 2011.
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Marcelo Campos
Entre respirar e fazer arte: reinscrevendo pequenos ofícios, relatos, vestígios na
contemporaneidade.
Marcelo Campos1
Marcel Duchamp afirmara “gosto mais de viver, de respirar, do que trabalhar... se quiser, a
minha arte seria a de viver. Cada segundo, cada respiração é uma obra que não está inscrita
em nenhum lugar, que não é visual nem cerebral”. 2 Se compararmos tal afirmação com a
fábula A cigarra e a formiga, atribuída a Esopo e recontada por La Fontaine, Duchamp
assumira o papel da Cigarra, ou, abrasileirando o mito, deitara-se na rede com a preguiça de
Macunaíma. O fato é que a produção de Duchamp, para além das convenções epocais ou de
vanguarda, pendulara entre trabalhar e respirar, arte e vida, ações imateriais e produções
materiais. Nos gestos do artista, vemos imagens que funcionaram como vestígios da
presença de um sujeito subversivo, pintando bigodes em obras-primas, jogando xadrez em
instituições públicas: “Uma partida de Xadrez”, afirmava Duchamp, “é uma coisa visual e
plástica... é um desenho, é uma realidade mecânica”.
3
Este legado foi adaptado em
distintas épocas, incorporando-se a conceitos de vanguarda, mas continua a nos instigar
quando nos deparamos com parte da produção contemporânea. Muitas vezes, Duchamp é
citado pela apropriação de objetos e deslocamentos. Aqui me interesso pelos resultados
materiais destas ações que cercavam os objetos, deixando-nos os vestígios, os ofícios, os
relatos. Trabalhava ou vivia?
Um vídeo, produzido em 2006 por Rivane Neuenschwander e Cao Guimarães, atualizou
esta discussão. Quarta-feira de cinzas mostra formigas carregando confetes coloridos,
vestígios de carnaval, ao som de um discreto samba, sampleado. O retorno à ordem, o
trabalho, a tristeza pelo fim da folia apresentam a condição subjetiva que pode representar
uma quarta-feira de cinzas. Deixa-se de respirar a pretendida liberdade catártica para voltar1
Professor Adjunto do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes/ UERJ. Doutor em
Artes Visuais pelo PPGAV/EBA/UFRJ.
2
Ducahmp, Marcel. Engenheiro do tempo perdido: entrevistas com Pierre Cabanne. Lisboa: Assírio & Alvim,
2002, p. 112.
3
Idem, p. 25.
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se à tortura, palavra etimologicamente ligada ao trabalho. Principalmente para o Brasil com
sua condição colonial em que o carnaval foi dominado por uma cultura de resistência, afrodescendente, torturada. As formigas do vídeo de Rivane e Cao criam ações, pequenos
ofícios, transportando os vestígios da folia para a arte contemporânea brasileira. Vemos
cenas de disputa, (a menor perdendo para a maior), de escolhas, (lutas pelo confete
laminado de dourado), de conquista. Na junção de elementos simbólicos simples - formigas
e confetes - os gestos ganham significação cultural. A adição de gestos e elementos
unitários cria performances coletivas, pletora de cores. Desfez-se o carnaval.
Trabalho e ofício. Autor e gesto. O autor está no gesto. Lawerence Weiner removeu o
reboco da parede de uma galeria, de 36 por 36 polegadas. Robert Rauschenberg apagou o
desenho de Willem de Kooning. On Kawara produzira, sistematicamente, o gesto de pintar,
reproduzindo, sobre telas, as datas nas quais estas pinturas eram realizadas. A vida é um
fato histórico. Muitas vezes os autores/artistas precisam apenas manipular conceitos, sem
necessariamente produzir resultados materiais. Toda escritura, afirma o filósofo Giorgio
Agamben, “é um dispositivo, e a história dos homens talvez não seja nada mais que um
incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram” 4.
Historicamente poderíamos circunscrever tais gestos artísticos na “arte conceitual”, mas
isso obstaculiza nossa compreensão do gesto político, das subversões, da condição material
ou imaterial pela qual passa a arte contemporânea, deflagradas em tais iniciativas. Lucy
Lippard, produzindo um importante documento sobre seis anos de arte conceitual, afirmou
que a idéia suplantava o objeto5. Hoje, proponho uma atenção aos objetos, ou ao que restou
deste conceito, como uma das mais importantes observações sobre a produção artística
atual. Um suposto momento de crise é valorizado, agora, como afirmação da poesia
existente na instabilidade dos objetos. Isto deixa mais evidente que uma obra de arte não é
física, como afirma Richard Wolheim. E os objetos no mundo são seu “vestígio ou
encarnação” 6.
Agamben, G. O autor como gesto. In: ______ Profanações, São Paulo: Boitempo, 2007, p. 63.
Lippard, Lucy. Seis Años: la desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972. Madrid: Akal, 2004.
6
Wolheim,Richard. A arte e seus objetos. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 37.
4
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Duas teorias corroboram as afirmações de que a arte não é o objeto de arte: os “incorporais”
de Anne Cauquellin e a “sobreidade” de Arthur Danto. Cauquellin afirma que a arte
freqüenta os incorporais, situando-se nos arredores da corporeidade. Com isso, pode ser, ao
mesmo tempo, exemplificada no corpo das coisas e no vazio dos conceitos. Um dos
domínios da arte não é a linguagem, mas, sim, o exprimível incorporal, “que possibilita a
ocorrência de uma significação, seu acontecimento, na medida em que o que é dizível ou
exprimível pode ser dito ou expresso sem obrigatoriamente dever ser”.
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Portanto, posso
fazer arte, ficando em silêncio, posso fazer pintura, deixando a tela em branco. No texto
Arte e significado, Danto aponta que a existência da arte não depende de sua condição
material. Viver em um mundo em que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, afirma ele,
é “imaginar o que o objeto poderia significar se fosse veículo de uma declaração artística”.
Freqüentamos os incorporais da arte na sobreidade, aboutness. Danto nos alerta para uma
contradição: ainda que um objeto crie um espelhamento, uma indiscernível aparência da
realidade da vida, o fato de um espelho específico ser uma obra de arte "tem muito pouco a
ver com sua condição de espelho". 8 A teoria da reflexividade, então, de que a arte seja um
espelho voltado para a natureza, tornar-se-ia irrelevante. Mas, ao longo da história da arte,
criaram-se grandes empreendimentos tanto para aproximar os objetos das concepções intraestéticas, proclamando uma suposta autonomia da arte, quanto para aproximá-lo das
concepções subjetivas, fazendo da declaração artística um lugar de projeção da primeira
pessoa. Entre as duas concepções, temos a presença de um conceito que interessa-nos
atualmente, o relato.
O autor que, segundo teóricos como Walter Benjamin, assumira a condição de produtor,
hoje, passou a ser analisado como propositor de gestos, como nos termos de Agamben,
mantendo-se, para Foucault, à margem do texto.
Assim, a materialidade passa a ser
vestígio de ações e pensamentos, ora empreendida nas tradicionais categorias: pintura,
escultura, desenho. Ora, possibilitada pelo simples gesto de caminhar, abrindo mão,
algumas vezes, de quaisquer registros.
Cauquelin, Anne. Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea, São Paulo:
Martins Fontes, 2008, p. 42.
8
Danto, Arthur. Arte y significado. In: ______ La Madonna del futuro: ensayos en un mundo del arte plural.
Buenos Aires: 2003, p. 31.
7
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A concepção de relato aproxima-se das afinidades entre arte e narrativa, colocando artistas
como narradores de experiências, reais ou fictícias, temporalmente e espacialmente
reinscritas. As ações contemporâneas refazem contatos com as atividades antropológicas
dos diários de campo, ou dos inquéritos policias, como nos gestos da artista Sophie Calle.
Procura-se, com isso, estabelecer relações entre anotações e relatos que contribuíram para
dotar os objetos artísticos de uma certa potência etnográfica. Institui-se, na arte
contemporânea, uma espécie de geografia imaginária. Constroem-se objetos amalgamando
imagem, escrita, documentos e ficções. Percursos, vestígios participam de uma possível
instabilidade do objeto. São diversificados, os exemplos: Richard Long caminhava. Barrio
caminhava. Marina Abramovic caminhava. Mas isso é arte ou vida? Respirar é fazer arte.
Com o relato, tais autores inscrevem-se como sujeitos, primeira pessoa da narrativa.
Artistas tornam-se personagens das ações, em voz, em presença, em rastros. Com isso, a
banalização da materialidade da arte ou até mesmo sua desaparição pode tratar de autoria e
de subjetividade. O artista refaz a noção de auto-retrato se colocando como personagem,
assumindo a enunciação do discurso.
Ainda que sobre pouco espaço para as habilidades técnicas, os ofícios permaneceram nas
ações: repetição, manejo, reflexões. Victor Grippo, afirmou em texto de 1976, que a arte
precisava retomar a concepção de ofício. Brígida Baltar empreendera uma série de
trabalhos em que os ofícios são revistos. Porém, agora, passada a ampliação material
empreendida pelos objetos da arte conceitual, tais ofícios tangenciam os sintomas do
impossível. Da própria casa, Brígida retirou as primeiras materialidades de suas ações.
Criou buracos nas paredes, recolheu tijolos em pó, coletou goteiras. Os objetos utilizados
ocupam o lugar de pequenos receptáculos para coletar e guardar vestígios efêmeros. A
partir dos anos noventa, a artista empreendeu uma serie de coletas, registradas em vídeos e
fotografias, ampliadas em desenhos e objetos. Coletavam-se neblinas, orvalhos, maresias.
Assim, como uma personagem do sublime, vemos Brígida empenhada em ações
impossíveis. Mas também é impossível estabelecer a eternidade dos objetos. Nestas ações
empreendem-se pequenos ofícios, banais, utópicos. E o que sobra é a afirmação de que a
arte reside fora dali, como promessa.
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Márcia X derramara o azul do céu, como metáfora, em líquido da carga de caneta
esferográfica. Uma ação performática: Alviceleste. O gesto era sistematicamente repetido.
Enchiam-se os funis de maneira instável, errática. Enquanto isso, o líquido que escapava
escorria pelo corpo da artista, tingindo-a, benzendo-a. A ação ritualística é a própria história
a ser contada, mesmo que não sobre nada depois para repeti-la, só vestígios destes
pequenos ofícios. A temporalidade, o empenho, a escolha dos locais e objetos criam obras
materiais para conceitos imateriais.
A materialidade torna-se etérea e precária: umidades, poeiras, confetes de carnaval, papéis
sujos de borracha. Mas, como alertara Duchamp, a materialidade da arte sempre foi
precária. Uma pintura dura, com suas características originais, apenas poucos anos, assim
como quem a fez. “Para sempre é sempre por um triz”, como nos versos da canção de
Chico Buarque. Mas algo deve restar depois que apagamos as luzes dos museus e galerias.
Naum Gabo, um dos expoentes do construtivismo, nos instigou com a pergunta: “quem é o
gênio que nos contará uma lenda mais arrebatadora do que este conto prosaico chamado
vida?”.
9
Assim, a arte poderia sucumbir, desistir, procurar em vão purezas formais,
autonomias, como de fato aconteceu. Mas, há alguns séculos que a pintura inaudível e
estática de Giorgione e Poussin nos estimulara à não-rendição diante da impossibilidade
representativa das tempestades. O gesto de Pollock também não fraquejou à
impossibilidade do automatismo. Lucio Fontana no embate com a tela não desistira,
oferecendo-nos um rasgo conceitual, o resultado de uma luta. Yves Klein criara suas
próprias asas do desejo, mergulhando no vazio. Um Ícaro repentino numa pacata rua
parisiense. Corpo, ações, ofícios, incapacidades, gestualidades. Tudo são vestígios. E a arte
insiste diante da perenidade, aproximando-se da banalidade de viver. Ser é perecer. Atestase a presença da extenuação, tanto na materialidade dos objetos quanto na efemeridade dos
fatos socioculturais. Restos de carnaval. Telas rasgadas. Orvalhos e neblinas em litros
incompletos. Um ar do tempo. A arte contemporânea, então, empenha-se em não se render
9
Gabo, Naum. O manifesto realista 1920. In: Chipp. H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 331.
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às autorias geniais da Natureza ou de Deus, trazendo-nos um pouco de calor, algum verão
para o fog londrino da Tate Gallery com o sol de Olafur Eliasson que iluminava e aquecia
os espectadores, anulando parte do prédio, fazendo da galeria o firmamento.
Para finalizar, coloco uma afirmação de Duchamp que nos faz refletir sobre a tarefa do
historiador da arte em criar cada vez mais relações com a vida, para fora das gavetas e
arquivos, atentos a não-inclusão dos outsiders, à elitização da historiografia. Na década de
sessenta, Ducahmp declarou:
“O quadro morre ao fim de quarenta ou cinqüenta anos, porque a sua frescura
desaparece. A escultura também morre... Depois, chama-se a isso História da
Arte... os homens são mortais, os quadros também... a História da Arte é o que
resta de uma época num museu, mas não é necessariamente o melhor dessa época...
não vou ao Louvre há vinte anos”. 10
Palavras-chave: Narrativa, vestígio, arte contemporânea.
Keywords: Narrative, trace, contemporary art.
10
Duchamp, op. cit., pp.103s.
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