a natureza do trabalho dos indígenas
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a natureza do trabalho dos indígenas
I- A NATUREZA DO TRABALHO DOS INDÍGENAS NAS EMPRESAS MANTIDAS PELOS JESUÍTAS SUMÁRIO INDICAÇÕES DE ORDEM GERAL – Antônio Paim ....................................................... 3 PRINCIPAIS TEXTOS RELACIONADOS AO TEMA NOTA INTRODUTÓRIA – Antônio Paim ................ 5 OS INCIDENTES DO MARANHÃO REGISTRADOS PELOS PRÓPRIOS JESUÍTAS – Antônio Paim ...................................... 15 TEXTO DE LÚCIO DE AZEVEDO (1855/1933) ...... 27 AS ESTRATÉGIAS DE IMPLANTAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL – Jorge Couto (Universidade Nova de Lisboa) .......... 63 ASPECTOS ECONÔMICOS DA EXPULSÃO DOS JESUÍTAS DO BRASIL – Daurul Auden ......... 83 1 2 INDICAÇÕES DE ORDEM GERAL – Antônio Paim A estrutura da historiografia brasileira foi estabelecida em bases definitivas no século XIX, graças à criação do Instituto Histórico, à adesão ao princípio da valorização do documento – de que a obra de Varnhagen seria o exemplo emblemático; o reconhecimento da necessidade de proceder-se à fixação dos respectivos períodos históricos e de identificar suas principais fontes documentais; etc. A preservação desse patrimônio não significa a ausência de controvérsias. Apenas que sua identificação subordina-se aos princípios básicos da historiografia. Entre estes, o de que a história refere-se ao passado não lhe competindo dizer como será (ou poderá ser) o futuro. A esse propósito cabe lembrar a seguint e advertência de Hegel, contida da Filosofia do Direito: “Conhecer o que é, eis a tarefa da filosofia, pois o que é equivale à razão. No se que refere ao indivíduo, cada um é filho de seu tempo; a filosofia, do mesmo modo, resume seu tempo no pensamento. Seria estúpido imaginar que um filósofo qualquer ultrapasse o mundo contemporâneo do mesmo modo que um indivíduo salte por cima do seu tempo... Se uma teoria de fato ultra passa esses limites, se constrói um mundo tal qual deve ser, este mundo existe somente em sua opinião, elemento inconsistente que pode assumir não importa que forma.” 3 Essa advertência serve também para lembrar que embora a cultura corresponda a uma totalidade, no seu estudo somos obrigados – em nome do rigor e da objetividade – a estabelecer determinados limites. Dizer como será ou poderá ser o mundo é parte da política, justamente a esfera da vida social em que vigora a violência e a paixão. Portanto, nada tão distante das exigências da objetividade histórica, pressupondo seu estudo o que Max Weber designou como “neutralidade axiológica”, isto é, a aceitação de que a valoração, que terá presidido à escolha do fato a ser estudado, não deverá ser objeto de disputa. O rigor e a consistência da análise terá que ser avaliada, exclusivamente, no âmbito abrangido pelo próprio fato. Muitas questões passaram o crivo da historiografia antes de serem considerados controversos. Ao hierarquizá-las, naturalmente, a preferência do historiador pecará inevitavelmente pela subjetividade. Assim, a escolha que efetivamos não se pretende universalizável, contentando-nos com a evidência de que sua natureza controversa seja plenamente reconhecida. 4 PRINCIPAIS TEXTOS RELACIONADOS AO TEMA Nota introdutória – Antônio Paim A principal controvérsia remanescente da historiografia brasileira diz respeito ao papel dos jesuítas. Varnhagen procurou registrar como se posi cionava diante daquela presença a sua própria época, concluindo que “justo é reconhecer que a Ordem prestou ao Brasil alguns serviços, bem como, por outro lado, parcialismo ou demência fora negar, quando os fatos evidenciam que, por vezes, pela ambição e orgulho de seus membros, chegou a provocar no país não poucos distúrbios” (1). O desdobramento desta hostilidade seria a expulsão da Ordem de nosso país, não se podendo perder de vista que o fenômeno ocorreu em outras nações, culminando com a própria extinção, deter minada pelo Vaticano. O problema central consiste no seguinte, tomando-o aqui na maneira como o formularia o próprio Varnhagen: “Na conversão dos índios prestaram um grande serviço, na infância da colonização, desanimando os governadores a prosseguir sem escrúpulos o sistema de os obrigar à força, em toda parte reconhecido como o mais profícuo para sujeitar o homem que desconhece o temor a Deus e a sujeição de si mesmo pela lei. Entretanto, é lamentável que justamente se apresentassem a sustentar o sistema contrário, quando tiveram fazendas que granjear com o suor dos índios, ao passo que os moradores da terra, comprando os escravos 5 da África e arruinando-se com isso, não poderiam competir com eles na cultura do açúcar, etc.”. Como classificar o trabalho realizado pelos índios nas Fazendas Jesuítas? Lamentavelmente não se dispõe de um levantamento das dimensões que teriam assu mido. Preservaram-se indicações dispersas relacionadas sobretudo às existentes no então chamado Estado do Maranhão, pelo fato de que justamente o conflito com Pombal assumiu ali nitidamente a feição de uma disputa comercial. O próprio Varnhagen deixou-nos a indicação de que os jesuítas mantinham naquela região 20 aldeias e 22 grandes fazendas, de gado e cana-de-açúcar, que rendiam anualmente 165 contos, equivalentes a 75% dos rendimentos de 221 contos apurados pelas 56 fazendas sustentadas por ordens religiosas (2). Alguns desses estabelecimentos seriam efetivamente de muito grande porte. Kenneth Maxwell os refere deste modo: “Embora os inimigos dos jesuítas lhes exagerassem a riqueza, esta não era despicienda. Os jesuítas, em virtude do número e do valor de suas propriedades, do governo temporal sobre as numerosas aldeias das missões e da utilização da mão -de-obra de muitos outros povoados indígenas, detinham um capital e um poder havia muito cobiçado pelos colonizadores portugueses do Grão-Pará e Maranhão. Somente na ilha de Marajó os jesuítas administravam fazendas que continham mais de cem mil cabeças de gado e propriedades rurais produtoras de açúcar. Também 6 comercializavam os frutos das expedições indígenas ao interior da floresta amazônica em busca de drogas nativas, cravo, cacau e canela, que, transportados por frotas de canoas para o litoral do Atlântico, eram recolhidos aos armazéns dos colégios jesuítas. Ali esses produtos ficavam isentos de impostos e taxas alfandegárias e eram colocados no mercado mediante uma feira mantida enquanto a frota portuguesa estava no porto. Em Belém, os produtos eram vendidos a capitães de navios e comissários vindos de Portugal e uma porção menor consignada à Metrópole em nome da Companhia de Jesus e sob o seu selo. Como seus colegas em todo o Brasil, os jesuítas, além das suas atividades religiosas, administravam uma operação comercial de considerável sofisticação que resulta va de anos de acumulação de capital, reinvestimentos e administração cuidadosa” (3). Serafim Leite descreve as fazendas jesuítas e explica o seu nascedouro como uma forma de assegurar o abastecimento dos gêneros de que careciam tanto os membros da Ordem como os índios aldeados. A descrição considerada encontra-se, basicamente, nos volumes IV e V de sua monumental História da Companhia de Jesus no Brasil e também na Suma Histórica da Companhia de Jesus no Brasil (Lisboa, Junta de Investigações no Ultramar, 1905). Em que pese aquela circunstância inicial, indica expressamente que, com o correr do tempo, tornou-se uma atividade comercial. Assim, manteve engenhos de açúcar, tanto no Recôncavo da Bahia (que chegou, segundo refere a 7 produzir 150 caixas de açúcar de mil libras cada uma, em 1722), como em Sergipe, na capitania do Espírito Santo, em Pernambuco (dois), no Maranhão e no Pará. Serafim Leite trata com naturalidade a posse de escravos negros pela Companhia de Jesus. Assim, quando se refere à Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, indica achar-se dotada das características de grande estabelecimento agropecuário, ao que acrescenta depois de mencionar os diversos bens produtivos de que dispunha: “e só no núcleo central da povoação as senzalas eram 232, onde as famílias viviam sobre si mesmas, à parte se eram de prole numerosa”. Talvez porque fossem muito numerosos, os escravos negros dispunham de algumas regalias, como o próprio gado para obtenção de carne e leite. O autor explica a situação deste modo: “este gado dos escravos era o que os padres lhes davam e proliferava por conta dos mesmos escravos, pastando livremente nos campos da fazenda, distinguindo-se do outro gado apenas pela marca. Não só lhes concedia essa regalia, mas também os tornavam participantes das suas pescarias, entre as quais uma se denominava de “negros na ilha da senzala” (História da Companhia, vol. VI, p. 59; Suma histórica, p. 187). O jovem promissor historiador português Jorge Couto – que em sua dissertação de mestrado (1990) cuidou do destino do patrimônio do Colégio dos Jesuítas no Recife – teria oportunidade de assinalar divergências na Ordem quanto à posse de escravos negros, controvérsia que terminou com a vitória da corrente que 8 denomina de pragmática, isto é, daqueles que preferiam gerar os recursos requeridos para o seu sustento ao invés de depender de incertas doações oficiais. A descri ção dos desdobramentos dessa disputa é efetivada na comunicação ao Congresso América 92 – Raízes e Trajetórias, inserida no livro Confronto de culturas: conquista, resistência, transformação (Rio de Janeiro, Editora Expressão e Cultura; São Paulo, EDUSP, 1 997). Quanto à natureza do trabalho indígena, Serafim Leite não é explícito. Indica apenas que a estes incumbia as pescarias registrando igualmente a sua presença no recolhimento de madeira. A Companhia mantinha serrarias e exportava madeiras. Quanto às fazendas de gado, Serafim Leite indica que as maiores encontravam-se em Campos de Goitacazes (com 16.580 cabeças), no Piauí (com 32 mil cabeças) e na Ilha de Marajó com mais de 50 mil). Lúcio de Azevedo é mais explícito embora os seus levantametos digam respeito apenas às províncias do Grão-Pará e do Maranh/ao (Os jesuítas no GrãoPará. Suas missões e a colonização. Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão, 1901). Segundo sua estimativa, no século XVIII havia, na Província do Grão-Pará, cerca de sessenta aldeamentos de índios aculturados (“mansos”, como diz) com uma população de cinqüenta mil pessoas. Não apresenta estimativas relativamente ao Maranhão. Acerca do tema que os ocupa afirma ex pressamente o seguinte: “Usando dos mesmos processos de cativeiro e domínio, aplicados pelos seculares, os padres lograram acrescentar os seus estabelecimentos, 9 ao passo que os dos simples colonos minguavam, até a extrema decadência. Escravos eram os índios em poder destes, como no daqueles, e em ambas as partes o trabalho violento. Não era talvez a menor tirania do religioso na missão, que a do lavrador na fazenda. Mas o desinteresse pessoal do sacerdote fazia a parte divergente, de onde partiam os caminhos, aos quais um levava a obra empreendida à existência vivaz, o outro a conduzia ao marasmo, de que nenhum reagente conseguia levantá-la. É que o missionário, forçando o selvagem ao trabalho, aplicava o produto à manutenção das aldeias; e a riqueza econômica, criada pelo braço cativo, vinha incorporar-se nos próprios estabelecimentos onde havia brotado. O trabalho do que se achava em poder da gente laical, esse era dissipado na vida indolente dos colonos, ou transferido na bagagem dos funcionários, para quem engrossar os cabedais era a superior preocupação do ofício. As missões enriqueciam portanto; e as dos jesuítas sobrepujavam a todas em número e valor das propriedades”. (p. 195-196). Segundo indica, os jesuítas possuíam, na capitania do Pará, nove fazendas rurais; no Maranhão, seis de criação de gado e sete outros estabelecimentos agrícolas “entre estes um engenho de açúcar produ zindo mais de duas mil arrobas anuais de açúcar”. Embora enfatize sobremaneira o fato da atividade produtiva achar-se voltada para os aldeamentos, não deixa de registrar as exportações (admitindo mesmo que algumas ficavam de fora dos registros oficiais, por ele 10 compulsados), isentas de dízimos e de direitos alfandegários, o que, por seu turno, aumentava ainda mais o ódio dos particulares contra a Companhia. (“A isenção, odiosa aos habitantes da colônia, jus tificava-se com serem tais valores aplicados no sustento das missões”, pág. 127). Lúcio Azevedo está longe de aprovar as medidas tomadas contra os jesuítas, sob Pombal, e até procura minimizar a presumível riqueza por eles acumulada. De todos os modos, na documentação compulsada e que registra, vê-se que funcionários da Metrópole, nos começos do século e ainda sob D. João V, como escreve “manifestam o quanto é desagradável ao monarca verificar que religiosos empregam seu maior cuidado nos negócios temporais”. De um documento que encontrou na Biblioteca de Évora, com a data de 13 de janeiro de 1723, em que se manda retirar das missões os padres das Mercês e do Carmo, transcreve o seguinte: “por certo (diz a Ordem Régia) se estão servindo dos índios como escravos para suas grangerias e comércio”. Trata-se de memorando da Corte encaminhado ao governador. No ensaio elaborado para a obra coletiva Conflict and Continuity in Brazilian History (Columbia, SC, 1969; trad. brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970), organizada por Henry H. Keith e S. F. Edwards, sob a denominação de “Aspectos econômicos da expulsão dos jesuítas do Brasil”, Daniel Alden reconstitui a maneira pela qual a Companhia de Jesus acumulou a riqueza de que estava de posse à época da 11 expulsão. Além de doações da Coroa, herdou espólios e também foram efetivadas compras diretas, tanto de terras como de outros bens. O dimensionamento e características de seus empreendimentos econômicos é concluído com relativo sucesso. Começa por indicar que as lavouras mais importantes eram mandioca, arroz, algodão e tabaco. Havia igualmente cultivos de legumes, frutas cítricas e trigo. Destinando-se basicamente ao consumo próprio, geravam contudo excedentes exportáveis, notadamente no caso dos engenhos de açúcar. Acerca dessa última atividade escreve: “Embora tivessem começado a cultivar a cana logo depois de terem chegado no Brasil, os jesuítas só adquiriram seu primeiro bangüê em 1604, quando se construiu o engenho Camamu na Bahia em local escolhido pelo Padre Fernão Cardim. O engenho foi destruído pelos holandeses em 1640, mas os padres continuaram a adquirir outros grandes bangüês, por doação (como no caso do famoso Sergipe do Condé) ou por compra (por exemplo, o engenho Pitanga, também na Bahia), até que cada um dos colégios mais importantes pode retirar parte de sua renda de uma ou mais plantações de cana. Pelos meus cálculos, os jesuítas tinham ao todo dezessete canaviais, cada um equipado com um ou mais engenhos, ao tempo de sua expulsão. Essas instalações compreendiam não só moendas e outros maquinismos relacionados com o fa brico de açúcar, mas também destilarias de aguardente, forjas, tanoarias, olarias e oficinas de tecelagem, e, em 12 alguns casos, estaleiros aptos para construir em barcações que, quanto ao tamanho, iam desde as canoas amazônicas até às sumacas de navegação marítima”. Quanto à atividade pecuária sua estimativa é a seguinte: “Além das lavouras de subsistência e dos canaviais, cada colégio também possuía muitas fazendas de criação que produziam principalmente leite e gado para o corte, afora cavalos, porcos, ovelhas, cabras e aves de quintal. Ao tempo do confisco havia, por exemplo, 16.580 cabeças de gado na fazenda do colégio ao norte do Rio de Janeiro, um total avaliado em 32.000 cabeças distribuídas por trinta criatórios no Piauí, e mais de 100.000 reses nos sete estabelecimentos da ilha de Marajó”. No que se refere à forma de gestão, indica que “eram geridas por um ou dois padres que supervisionavam o trabalho dos negros escravos, como acontecia nas lavouras de cana, ou dos índios, como nas fazendas de criação do Amazonas. Dentre as insti tuições, a Companhia de Jesus era provavelmente a maior proprietária de escravos do Brasil; seguramente possuía o maior número de escravos existentes em uma só fazenda em toda a América colonial”. As posses dos jesuítas incluíam ainda muitos prédios urbanos que eram alugados para renda (186 casas em Salvador; 70 no Rio de Janeiro; etc.) Os dados mobilizados por Daniel Alden permitem-lhe avaliar em mil contos de reis o patrimônio confiscado aos jesuítas. O ensaio considerado descreve os conflitos em que estiveram envolvidos, notadamente por razões 13 comerciais nas províncias subordinadas ao Rio de Janeiro como no tocante a mão-de-obra indígena no Norte, detendo-se em especial na década de cinqüenta do século XVIII, onde se originaram as causas imediatas da expulsão. No caso da utilização do trabalho dos indígenas, sem indicar expressamente em que elementos se apóia para afirmá-lo, considera que a expulsão “retirou aos índios amazônicos o já tradicional manto protetor dos missionários, expondo o gentio à explo ração desenfreada posta em prática pelos rivais se culares dos padres, apesar de uma lei que no papel deixava os indígenas em liberdade”. Como se v ê, a questão da natureza do trabalho realizado pelos índios nas fazendas dos jesuítas, está de fato marcada pela controvérsia, sendo difícil na matéria conduzir as análises com objetividade. NOTAS (1) História geral do Brasil, vol. II, tomo IV, 10ª edição integral, Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, p. 141. (2) Além dos jesuítas, segundo a mesma fonte, mantinham essa praxe, os carmelitas e os capuchinhos. (3) Marquês de Pombal – paradoxo do iluminismo. Tradução brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 199 6, p. 58-59. (Transcrito de Momentos decisivos da história do Brasil . São Paulo, Martins Fontes, 2000. págs. 35 -41). 14 OS INCIDENTES DO MARANHÃO REGISTRADOS PELOS PRÓPRIOS JESUÍTAS - Antônio Paim A disparidade de situações, em matéria de ati vidade produtiva, entre os jesuítas e os colonizadores portugueses, provocou muitos conflitos. Aqueles que ti veram lugar, na segunda metade do século XVII (segundo da colonização) no Estado do Maranhão (tenha-se presente que abrangia grande parte do território , independente do Estado do Brasil, ambos ligados auto nomamente a Lisboa), foram registrados pelo padre jesuíta João Filipe Bettendorff (Lintengen, Luxemburgo, 1625/Pará, 1698) em Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão (editada pelo Senado Federal em 2010), cuja cópia seria preservada na Torre do Tombo de Lisboa. Varnhagen dela teve conhecimento e a situa entre “as fontes de maior confiança a que recorreu para historiar os sucessos de que foram teatro o Maranhão em fins do século XVII.” Os jesuítas reivindicavam que lhes fosse atribu ído o governo não apenas espiritual dos índios mas igualmente o governo temporal. Esse privilégio veio a ser-lhes concedido por D. João IV que reconquistara a independência de Portugal em 1640 e reinou até o ano de seu falecimento (1656). Não vem ao caso determo nos na crise de sua sucessão devido à condição de saúde do herdeiro (mal podia andar), que chegou a ser 15 formalmente coroado como Afonso VI. Registre-se apenas que, na verdade, governou seu irmão, D. Pedro, primeiro como Regente e após o falecimento de Afonso VI em 1683, como D. Pedro II (reinado desde então até 1706, quando ascende ao trono D. João V). O padre Antônio Vieira (1603/1697) obteve de D. João IV, em 1655, a seguinte disposição: “Que as aldeias e os índios de todo o Estado sejam governados e estejam sob a disciplina dos religiosos da Companhia de Jesus; e que o Padre Antônio Vieira, como superior de todos, determine as missões, ordene as entradas ao sertão e disponha os índios convertidos à fé pelos lugares que julgar mais conveniente.” Na época, a colonização abrangia o litoral do Maranhão e do Pará, com entradas no rio Amazonas e outros cursos dágua. É dessa fase o início da colonização da ilha de Marajó. Essa primeira experiência de governo total dos jesuítas praticamente sobre todos os povoados situados fora de São Luís e Belém, acabou provocando a revolta dos colonizadores portugueses que, à vista da atividade produtiva desenvolvida pela Ordem, sofriam a sua concorrência. Em maio de 1661, conseguiram, graças a movimento popular, que os religiosos da Ordem fossem presos e ordenada sua expulsão do Maranhão e do Pará. A par disto, as Câmaras Municipais revogam os pri vilégios de que dispunham. Em setembro são devolvidos a Lisboa. Mas o padre Vieira conseguiu revogar essa disposição, mais uma vez por pouco tempo. Provisão de outubro de 1663 fez cessar toda a ingerência de religiosos no governo temporal dos índios. 16 O cativeiro dos indígenas voltou a ser permitido em determinadas circunstâncias (notadamente em se tratando da1queles que já estivessem escravizados, como ocorria em decorrência de guerra entre tribos: os derrotados perdiam a liberdade). A proibição de toda espécie de escravização de indígenas é de 1680. Em 1684, estoura nova revolta contra o direito dos jesuítas de empregar a mão-de-obra indígena, o que passou a ocorrer nos aldeamentos nos quais dispunha também do governo temporal. Desta vez o movimento é liderado por Manuel Beckeman (1630/1685), senhor de engenho português. Contou com o apoio das autoridades eclesiásticas e civis, bem como dos responsáveis pela fora pública, o que lhe permitiu estruturar amplo movimento popular. Achando-se ausente o governador, além de efetivar a expulsão dos jesuítas, constituiu governo. Essa última providência obrigou Lisboa a intervir. Contudo, o movimento durou até maio de 1685, quando a região é ocupada pela tropa portuguesa. Restabelece-se a situação anterior (governo temporal e espiritual dos jesuítas nos aldeamentos indígenas). A descrição dos incidentes pelo padre Bettendorff está longe de corresponder a relato direto e claro. Certamente como não poderia deixar de ser, segue o estilo geral da Crônica, onde o processo de ocupação, de que participavam os prelados, numa terra estranh a ao olhar europeu, tinha sempre algo curioso e inusitado a registrar, entrecortanto a seqüência do relato. No caso do incidente de 1661, o padre Betterdorff primeiro o atribui a uma carta do padre Vieira enviada 17 aos superiores da Ordem, em Lisboa, que tendo sido violada e do conhecimento das autoridades, as deixara agastadas, Mas, ao mesmo tempo indica que a Câmara encaminha “as queixas do povo sobre o governo temporal dos índios”. Diante da exigência do Gover nador, ao subprior, de que “largasse Sua Paternidade este governo”, respondeu (o padre Ricardo) que aquele governo era concedido aos padres missionários da Companhia de Jesus pela lei do ano de 1655, “passado por el-rei D. João o 4º, de gloriosa memória, e que não tocava a ele subprior da casa largá-lo, mas pertencia esta deixação ao padre subprior de toda a missão, o padre Antônio Vieira, o qual estava no Grão -Pará; intimou-se logo esta resposta do padre Ricardo Careo ao povo, o qual estando já a paz alterada pelos maus conselhos de vários amigos de novidade e alterações, em 15 de maio de 1661, dia do Espírito Santo, se levantou contra os padres e assanhados todos como feras bravas, investiram à casa de N. S. da Luz, mandando e obrigando todos que em ela estavam a saírem. Estavam ali além do padre subprior Ricardo Carreo, o padre José Soares, o padre Antônio Soares, o irmão João Fer nandes; o irmão João de Almeida com um secular Manuel da Silva, que estava para se admitir no noviciado.... (págs. 188 e 189 da edição do Senado”). E, a partir daí, novamente o relato se perde (por exemplo: ao mencionar o nome do administrador da Casa residência dos jesuítas traça a história pela qual enriqueceu) para então indicar que “presos os padres da Casa, mandaram também vir da aldeia de São José o 18 padre Antônio Ribeiro e o puseram com os mais. Todas estas violências sacrílegas fizeram sem o Governador Dom Pedro de Melo se opor a coisa alguma”. Indica também que foi providenciada a ida de líderes dos amotinados ao Grão-Pará (Belém) a fim de que se efetivasse a prisão dos que ali se encontravam, inclusive o padre Vieira. Diz bem do estilo do padre Bettendorff que nessa altura o relato se interrompe, seguindo -se um outro capítulo dedicado à missão de que se incumbiu aos índios Tapajós para então, somente no capítulo seguin te, relatar os acontecimentos de Belém. Retomando o tema da expulsão, afirma que ali também “foi -se o povo amotinado ao colégio de Santo Alexandre e lá prendeu o padre Antônio Vieira subprior e visitador das missões, e o levou preso com grandes descortesias para a eremida de S. João Batista, onde o tiveram com tanto aperto que nem por uma necessidade estava livre...” (pág. 201). Os prelados presos em Belém logo foram embarcados para Lisboa, inclusive o padre Vieira. Quanto aos de São Luís, entre os quais o próprio padre Bettendorff, ao Ceará em embarcações precárias, o que os obrigou a completar a pé o percurso, e somente dali encaminhados a Lisboa. Conforme foi referido, o padre Antônio Vieira, chegado a Lisboa obteve a reconstituição do quadro institucional anterior, sendo os prelados mandados de volta ao Maranhão. A revolta contra os jesuítas de 1884, liderada por Manuel Beckman, será objeto dos primeiros capítulos do 19 Livro VII (págs. 405 à 440). Na descrição do episódio, mais uma vez, procura atribuir sua origem a outra causa que não os privilégios dos jesuítas. Assim, começa tratando da indisposição causada entre os colonizadores portugueses a decisão do governo de monopolizar a comercialização dos produtos oriundos dos empreendimentos locais, o que não afetava os religiosos, isentos de tributos... “Em presença de homens turbulentos para levar adiante qualquer ocasião de tumultos”, prossegue, começam a aparecer panfletos incitando-os à revolta. Até aí uma questão entre o governo e o empresariado português. Contudo, logo adiante que “para dar alguma cor de justiça a uma ação tão prejudicial, fez o povo uma petição à Câmara em que lhe representava “as misérias, por se não lhes darem índios dos padres da Companhia, visto que eles, suposto que tinham o governo dos índios, não tinham a repartição deles, pois a tinha o sr. Bispo, eleito pela mesma Câmara.” Para dar resposta à petição, a Câmara convocou o visitador da missão. Acompanhou-o o próprio Bettendorff. No encontro, enfatiza, evidenciou-se a indisposição da Câmara contra a Companhia de Jesus mas, nessa ocasião, não houve outros desdobramentos. Ainda assim, prossegue, “não faltou quem atiçasse o figo dos ânimos alterados, entrando nisso não só alguns clérigos do hábito de Cristo, mas também, que pior é, religiosos das várias religiões...” Mais adiante: “Os cabeças principais daquele motim eram Manuel Beckeman, senhor de engenho da 20 Vera Cruz, sobre o rio Meari, e Jorge de Sampaio, escrivão da Ouvidoria, que já se tinha achado noutro motim, e o reverendo padre frei Inácio, o ventoso, por alcunha, vigário provincial de Nossa Senhora do Carmo, sem embargo das obrigações que tinha aos padres missionários da serra, que lá o tinham agasalhado como seu irmão, havia tempos com toda caridade e ajudado para seguir sua viagem ao Brasil, como me contou o mesmo Pero Pedroso, que por então era superior daquela residência, tendo por companheiro seu o padre Gonçalo de Veras”. (p. 408 da edição do Senado). Indica então que o motim se inicia em fins de janeiro de 1984, criando-se uma Junta que, entre outras coisas, “no tocante aos padres da Companhia de Jesus, que se lhes havia de tirar a jurisdição temporal sobre os índios; mas não se concluiu se havia de botar fora do Estado, nem se havia de negar obediência ao governador Francisco de Sá, que então governava”. A 23 de fevereiro de 1684, os amotinados decidem prender o capitão-mor, convocando os jesuítas para dar-lhes conhecimento da “resolução que tinham tomado os três Estados, o do eclesiástico, da nobreza e do povo”. Indica adiante que, como procurador do povo e cabeça do motim, Manuel Beckeman começou a falar assim: “Reverendo padre reitor, eu, Manuel Beckeman, como procurador eleito por aquele povo aqui presente, venho intimar a vossa reverência, e mais religiosos as sistentes do Maranhão, como justamente alterado pelas vexações que padece, por terem vossas paternidades o 21 governo temporal dos índios das aldeias, se tem resolvido a lançá-los fora, assim do espiritual como do temporal, e não por alguma falta ou mais exemplo da vida, que por esta parte não tem de que se queixar de vossas paternidades; portanto, notifico a vossa pater nidade e mais religiosos, por parte deste alterado povo, que se deixem estar recolhidos ao Colégio, e que não saiam para fora dele para evitar alterações e mortes, que por aquela via se poderiam ocasionar; e entretanto ponham vossas paternidades sobre seus bens e fazendas para deixá-las em mãos de seus procuradores que lhes forem dados, e estejam aparelhados para o todo tempo e hora embarcarem para Pernambuco, em embarcações que para este efeito lhes fossem concedidos.” (p. 410) Coube ao padre Estevão Gandolfin a função de responder-lhe. Resumindo, a alegação consiste em afirmar que, de motu próprio, os jesuítas já haviam se proposto deixar o governo temporal sob a condição de que as autoridades o assumissem (naturalmente sem imiscuir-se na gestão de suas atividades produtivas), condição que, como diz, na ocasião não foi aceita. Reiterando-a, não via motivo para insistir na expulsão. Afirma nessa altura: “Bem viam eles a força da razão, mas como nos motins prevalece a paixão sobre a mesma razão, foram obstinados, e sem responder à proposta foram diretos para a casa de Melânio Rodrigues, estrangeiro, e tomando as fazendas em rol, as mandaram fechar com ordem de não vender mais coisa alguma, e acabado isso se foram para a Sé, tão satisfeitos como se tivessem acabado uma obra de grande serviço de Deus, 22 em ação de graças pelo bom sucesso mandando cantar o Te Deum Iandamos, como se Deus Nosso Senhor os tivesse ajudado e não o Diabo, autor desse motim.” (pág. 410, cit.) Formalmente constitui-se governo. Tentaram embarcar os jesuítas em canoas, o que foi recusado, em face do que providenciou-se duas embarcações que ali se encontravam. A expulsão consumou-se a 26 de março de 1684. As peripécias da viagem acham-se minuciosamente descritas. A viagem para a Europa iniciou -se a 4 de julho daquele mesmo ano. Na sua estada em Lisboa, Bettendorff teve oportunidade de avistar-se com o Rei D. Pedro II e dele obter que incumbisse um de seus ministros de atendê-lo. A este (Roque Monteiro) teria oportunidade de entregar Memorial no qual apresenta as medidas em apoio ao trabalho missionário que a Companhia de Jesus voltará a desenvolver no Estado do Maranhão. Neste Memorial (Capítulo X do mesmo Livro VII, págs. 449-452) é explícito quanto à necessidade de que suas prerrogativas sejam restituídas “pela mesma forma que dantes estavam.” Não só se estabelece claramente que os índios sob sua jurisdição destinam -se ao serviço como a forma de pagamento (“duas varas de pano cada mês”). A exclusividade também deverá ser assegurada (“que se proibisse, sob graves penas, aos brancos e mestiços irem às aldeias, sem especial licença, para tirar índios ou comerciar com aguardente”). No Memorial, o trabalho dos índios acha-se diretamente associado ao sustento das missões (“visto 23 que os Colégios do Maranhão e Pará não terem com que se sustentar, fosse Sua Majestade servido ao Colégio do Maranhão a aldeia dos guajajaras, em Meari ... e ao Colégio do Grão-Pará a aldeia de Guaçari). Trata também das contribuições em dinheiro. Nesse particular, espera receber os atrasados, em decorrência dos grandes gastos acarretados pela expulsão. Bettendorff regressou ao Maranhão em agosto de 1687. Ainda em Lisboa, teve muitos contatos com Gomes Freire de Andrade, nomeado governador do Maranhão. a quem coube efetivar a ocupação militar e restaurar a situação anterior. A Crônica abrange até 1698, quando faleceu o padre João Filipe Bettendorff. Na sua volta ao Maranhão, foi reitor do Colégio e Comissário da Inquisição (1688 a 1690), Superior da Missão (até 1693). Nesse ano começou a redigir a Crônica. Nos aldeamentos jesuíticos, os índios praticavam o extrativismo – cravo, castanha e canela – realizavam a pesca, produziam essências medicinais, pelas artesanais, construíam igrejas e residências dos missionários; construíam e remavam canoas, etc. Além disto, os jesuítas possuíam engenhos de açúcar e fazendas de gado. Para acolher a produção obtida nas aldeias, existiam armazéns junto aos colégios e residências. Além de dedicar-se à exportação, os jesuítas participavam das feiras que se realizavam habitualmente nas capitais. 24 O padre Vieira denunciou a existência, em outras ordens, do que denominou de “religioso mercenário” ( ou mercedário), cuja profissão consistia em reunir cativos. Menciona expressamente o caso de um deles que trazia índios como escravos e os vendia publicamente. Nessa circunstância não deixa de causar espécie a naturalidade com que os membros da Ordem passaram a escravizar os índios, segundo se pode verificar da forma como Bettendorff considerou o problema ao longo da sua Crônica. Essa perplexidade continua merecendo a atenção de estudiosos atuais, como se pode ver da citação adiante: “Quando encerrada a fase em que Antônio Vieira esteve à frente dos jesuítas, defendendo com profundo fervor a liberdade dos índios, instaurou -se um período que Moreira Neto intitula de “fase empresarial das missões jesuíticas”. O resultado final, segundo o autor, foi a missão jesuítica ter tomado características empresariais, tão comprometida com as operações de produção, comércio e lucro de seus estabelecimentos quanto qualquer outra agência econômica colonial. Ironicamente, os jesuítas passaram a ser liderados, nessa nova fase ou concepção no Brasil, por dois antigos auxiliares de Vieira: os padres Jorge Benci, autor da Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos, editado em 1705, e João Antônio Andreoti, o Antonil de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de 1711.” O texto de Moreira Neto, citado, consiste em “Os principais grupos que atuaram na Amazônia brasileira” 25 in História da Igreja na Amazônia, Petrópolis, Vozes, 1992. O autor da citação e do trecho transcrito é James O. Sousa – “Mão-de-obra indígena na Amazônia”. Em tempo de histórias, nº 6, Brasília, UnB, 2002. 26 TEXTO DE LÚCIO DE AZEVEDO (1855/1933) CAPÍTULO XI A EMANCIPAÇÃO DOS ÍNDIOS I. A declaração das liberdades. Adiamento da mesma para momento oportuno. A questão de limites. Resistência dos missionários. Oposição em Espanha. Irritação de Mendonça. II. Governo interino do bispo. Desterro de quatro jesuítas para o Reino. III. A criação da Companhia de Comércio acolhida em sossego na colônia. Receios e suspeitas de Mendonça. Fundação de Borba a Nova. A artilharia dos jesuítas. IV. Regressa o capitão-general ao Pará. Proclama a abolição do governo temporal dos missionários. Os da Companhia de Jesus recusam entregar os bens existentes nas aldeias. Retiram-se com o que podem conduzir. Como procedem no Maranhão. Rebelião de soldados no rio Negro. V. O breve Imme4nsa Pastorum. Entra em execução a lei das liberdades. O bispo publica o breve. I Meu irmão do coração. – Esta carta acompanha a lei, que El-Rei Nosso Senhor estabeleceu, para restitui r aos índios desse Estado a liberdade que lhes era devida, e aos povos dele os operários, que até agora não 27 tiveram, para cultivarem os muitos e preciosos frutos, em que abundam essas terras. Da mesma lei vereis que nela se não contém novidade, porque toda consiste em uma renovação das antigas e saudáveis leis, cuja inobservância, reduziu o Pará e o Maranhão, à miséria a que achastes reduzidas essas duas capitanias (1). Com estas palavras principia a carta, em que Sebastião José de Carvalho participa ao governador do Grão-Pará expedir-lhe a lei das liberdades. Dependente, em seu espírito, esta providência da instituição da Companhia de Comércio, e do termo de regime até aí adotado nas missões, foi promulgada na mesma data que o estabelecimento daquela, assim como o decreto, que retirava aos religiosos o governo dos índios, passado este definitivamente ao poder civil. A reforma, que tão profundamente abalava o predomínio das ordens monásticas, e a que, alterando as relações do indígena com o colono, era a igual tempo transformação social e econômica, não permitiu a prudência do governo saírem a público; mas, perma necendo secretas, ao arbítrio do capitão-general foi encomendado pô-las em execução, quando chegasse o momento oportuno. Estas ordens não as recebeu ele na capital do seu governo, pois saíra dela, em outubro do ano antecedente para o rio Negro, onde devia encontrar-se com os encarregados das demarcações por Castela. A comissão que sobrepujava em importância qualquer outra das que lhe incumbiam, era porventura também mais que elas eriçada de escolhos. Sabemos que, do lado espanhol, a 28 convenção fora acolhida com desconfiança. Em Portugal variavam as opiniões, podendo-se dizer que havia um forte partido contrário. O Pará via somente prejuízos na troca de territórios. João de Sousa de Azevedo, o arrojado sertanejo que, viajando dali a Mato Grosso, tantas vezes percorrera as regiões, por onde havia de passar a fronteira, consultado pelo governador, res pondia parecer-lhe tal divisão uma traição formal; e o próprio Mendonça chega a inferir, das informações que recolhe, “que naquele contrato tiveram os outros melhores procuradores que os portugueses” (2) Aos obstáculos, que das prevenções de uma e outra parte haviam de resultar, juntavam -se as dificuldades de ordem material. Já o antecessor de Mendonça, em 1750, representara ao governo de Lisboa quão difícil se tornaria grangear, no Estado, os recursos indispensáveis à expedição. A epidemia diminuíra o número de índios, faltando portanto as farinhas e a gente do remo. Achando-se o ponto de encontro dos plenipotenciários, no rio Negro, em terreno longínqüo, desabitado e inculto, indispensável se tornava depositar ali, com antecedência, todo o necessário para o conve niente agasalho da numerosa população adventícia, soldados, tripulações, e comissários de ambas as na cionalidades que compunham as expedições. Mas tal dificuldade não era para desanimar o atual governador. No seio do deserto havia agora de surgir uma cidade; sobre mantimentos provia-se mandando plantar pelos indígenas extensas roças, que fornecessem as farinhas; e o Provincial dos jesuítas, e superiores dos outros 29 missionários, dariam, para os serviços de transporte, lavoura e edificação, os índios que lhes fossem requisitados. Com isto se ateou a guerra, entre os religiosos e o capitão-general. Às positivas determinações do governo, confessando aliás o melhor desejo de cumpri -las retorquiam os missionários não terem nas aldeias tantos índios disponíveis. Escasso como era o número dos que se apresentavam para tomar parte na expedição, esses mesmos depois se evadiam. Guarnecidas as embar cações, e disposto Mendonça a partir, desertavam; e assim, de uma vez, forçado lhe foi dilatar a viagem. Avisado destes fatos, o governo da metrópole não hesita em proceder severamente contra os que, com verossimilhança, julga delinqüentes. Extingue -se por isso nas aldeias, a que pertencem os desertores, o poder temporal dos missionários; manda substituir o religioso em funções, por padre de outra Ordem, incumbido só dos encargos espirituais; e comete a administração política do povoado à autoridade civil, na forma que o governador, em junta com o prelado diocesano e magistrados, venha a resolver (3). Em todo o tempo, e foram muitos meses, que durou a expedição, o principal missionário português teve de lutar com essa contrariedade. A fuga dos índios não era caso novo, nem que unicamente a estranhas sugestões se pudesse atribuir. A cada passo os assalariados abandonavam quem os tinha ao serviço, para se acolherem ao jugo mais brando dos regulares. Pretendiam estes que quase sempre saudades da família, 30 de quem se viam apartados, impeliam os fugitivos. Era também constante, entre as pessoas que com eles lidavam, não lhes ser nenhuma imposição mais odiosa que o serviço régio, às ordens de grosseiros soldados, mais brutais e desumanos, se tal é possível, que o comum dos moradores brancos. Em circunstâncias normais, bastariam estas considerações para justificar os missionários, acusados de provocarem seus administrados à deserção; mas o interesse, que evidentemente eles tinham em frust rar as diligências do governador, depõe com suficiente clareza contra a hipótese da sua não responsabilidade. Sem aventurarmos, tão pouco, a de um acordo preexistente com os jesuítas castelhanos, em que se fundavam as alegações de Carvalho, é certo que uns e outros simultaneamente trabalhavam contra o bom êxito do tratado: os espanhóis por se verem despedidos de sete aldeias, no Uruguai, além de outras no Guaporé; os portugueses querendo fomentar o descrédito de um governo, que ameaçava despojá-los da autoridade e proventos, que por tantos anos havia fruído. Também no sul do Brasil, a crueldade de que se usava com os indígenas, expulsando uma população de trinta mil almas das terras que hereditariamente possuíam, e impondo-lhes um penoso êxodo, para sítios inóspitos e desconhecidos, à farta justificava a revolta. De sorte que ao será temeridade afirmar que os missionários não somente animavam nos índios a idéia da reação, como também lha incutiam; de modo que à Ordem se pode atribuir o rebelarem-se uns de seus jurisdicionados no 31 Uruguai, assim como outros desertavam no Amazonas. Em Madrid, agitavam-se os jesuítas. O procurador geral do Paraguai levara ao rei uma representação, em que se alegavam razões políticas contra o tratado, e entre elas que, entregue aos portugueses o território das missões, facilmente podiam estes penetrar, e os ingleses seus aliados, no coração dos domínios castelhanos, ao alcance das minas de ouro e prata, tão cobiçadas do mundo inteiro. A representação, examinada em conselho, não teve efeito; mas, se é verdade o que referem os jesuítas, ao Marquês de Enseñada, que foi o mais hábil ministro de Fernando VI, não lhe sofreu o ânimo assistir tranqüilo à realização de um convênio, prejudicial à sua pátria; e posto que, no conselho, tivesse votado com os colegas, saindo dele, tudo comunicou ao embaixador das Duas Sicílias, para que prevenisse o rei, seu amo, presuntivo herdeiro da Coroa espanhola. Ainda, se devemos fé ao escritor parcial dos jesuítas, a quem seguimos, daí resultou fazer o rei das Duas Sicílias um protesto; e, conhecidos os meneios de Enseñada, cair este no régio desagrado, sem que Fernando VI, dominado por sua mulher, deixasse de prosseguir na execução do convênio (4). Qualquer que seja a crença que esta anedota possa merecer-nos, o abandono em que finalmente caiu o tratado, subindo ao trono Carlos III, presta-lhe de certo modo verossimilhança. Lutando contra os obstáculos que, ao feliz desempenho da sua comissão, opunha a má vontade dos missionários, contra eles se vai acerando a inimizade de 32 Mendonça. Muitos parágrafos de suas cartas dão testemunho dessa disposição de espírito: “Os regulares (escrevia ele a Sebastião José) são o inimigo mais poderoso do Estado, e, por isso mesmo que doméstico, ainda mais poderoso e nocivo”. Ou então: “O cansado, absoluto e prejudicialíssimo poder dos regulares, é a total ruína do Estado, e há de obstar ao progresso de quantos estabelecimentos nele se quiserem fazer”. Instigado pelos embaraços, que a cada passo lhe suscitam com réplicas, protestos, reclamações, promete extinguir0lhes a arrogância, como fazia ao escalracho das vinhas de Oeiras. E o excesso de irritação traduz-se na frase, adotada entre os irmãos para exprimir os rancores da família: Estas gentes são o meu Manuel Pereira de Sampaio” (5). Executando a parte de suas instruções, relativa aos missionários, onde se via o influxo das queixas e propostas, sobre as quais Paulo da Silva Nunes, em tempos anteriores, tanto insistira, Mendonça, por si próprio, indagara dos recursos das missões, dos bens que as comunidades religiosas possuíam, do fundamento com que se lhes imputava a ruína do Estado pelo monopólio do comércio. Para esse fim, visitara os aldeamentos e povoações vizinhas da capital; ouvira as opiniões dos principais habitantes; e, procurando com eles com debelar os males presentes, parecera-lhe o alvitre da companhia para a introdução de negros o mais adaptado ao propósito. Com ele enfraquecia as comunidades suscitando-lhes um valente competidor no tráfico do sertão. Mas isso não bastava: cumpria 33 arrancar-lhes de todo a opulência, e reduzi-las à modéstia primordial. Mandara o Conselho Ultramarino perguntar o valor das fazendas rurais, pertencentes aos religiosos, e se deveria a Coroa apossar-se delas, prestando aos despojados os indispensáveis meios de subsistência. O governador foi de parecer que a expropriação se fizesse. Aumentar-se-ia, no Estado, a Fazenda Real, com o produto dos dízimos, de cujo pagamento os regulares se haviam desobrigado; e, privados estes de todo o pretexto de negócios, cresceria a renda das alfândegas, pelos direitos incidentes nos gêneros, até aí livres, como propriedade das missões. E, acima de tudo isto, afir mava Mendonça, campearia a vantagem de se verem os padres transformar “de feitores de fazendas em missionários e conquistadores de almas para o céu” (6). Esta proposta de espoliação tinha fundamento na lei, e, além disso, não era então a primeira vez que se punha em dúvida o direito dos regulares à posse das terras. As representações de Paulo da Silva Nunes haviam feito sair à tona particularidades interessantes. Por efeito delas, verificou-se que não podiam as comunidades, segundo as leis do reino, adquirir bens de raiz, sem preceder licença régia; e as existentes no Pará não a tinham. A providência era antiga, e já se acha consignada nas primeiras Ordenações, de 1446(7). Tivera por objeto impedir que os conventos con tinuassem absorvendo as melhores terras cultiváveis, em detrimento da população rural. Judiciosa, no Reino, essa praxe, pela escassez do terreno, não teria muita razão de 34 ser nas colônias, onde a extensão, pode-se dizer ilimitada, do solo, requeria somente quem o fizesse valer. Por isso, as aquisições dos regulares não tinham em princípio levantado protestos, e o abuso fora sancionado pela diuturna prática. Mas a lei era lei, e o texto da ordenação positivo. Desperta a atenção dos poderes do Estado, pronunciaram-se estes; e aconteceu, por isso, serem os missionários demandados a juízo, poucos anos havia, quando já nos tribunais superiores do Reino fermentava latente a hostilidade, que breve mente ia romper. Chamados a responder, os carmelitas e merce nários, ignorantes da lei, ostentosamente invocaram o seu direito às propriedades, que haviam adquirido por compras e heranças. Mais cautelosos, os jesuítas confessaram a ilegalidade, e ardilosamente ofereceram entregar todos os bens, uma vez que Sua Majestade lhes desse as côngruas. Só desta maneira, asseguravam, lograriam descanso em seus clautros. Mas o intento era outro: de antemão sabiam eles que não ousaria o rei agravar os cofres públicos com esse dispêndio. Agora, porém, diferente era a situação. Mendonça enumerava as conveniências do seqüestro; indicava se convertessem as fazendas em povoações; propunha que todos os escravos, existentes nelas, fossem declarados livres, colocando-se em cada uma, como administrador, um oficial de guerra. Está aqui todo o plano de emancipação, realizada por Carvalho mais tarde. Além disso, queria Mendonça que os religiosos se recolhessem aos conventos, e se lhes proibisse admitirem 35 noviços. A concluía, exprimindo a idéia, que daí por diante foi a sua Delenda Carthago: “É impossível restabelecer a propriedade do Estado, sem retirar aos regulares todas as fazendas que possuem” (1). Os manes de Berredo e Paulo da Silva Nunes deviam então rejubilar na sepultura. II Na ausência do capitão-general, o bispo, D. frei Miguel de Bulhões, foi investido no governo da colônia. Confidente e turiferário de Mendonça, al imentava o prelado, contra os missionários, animosidade igual à de seus predecessores. Achava-se ainda pendente, aguardando solução de Lisboa, a questão das visitas. Em favor das regalias episcopais, aparece, é verdade, em 1748, uma decisão, mandando pôr em prática, no Estado, o mesmo que em 1731 se determinou para Goa, isto é, que as aldeias se sujeitem à visita do Ordinário; mas, ainda em face da direta intimação, as comunidades recusam-se; e os jesuítas, mais altivos, e fiados nas influências que os protegem, sustentam que será preciso submeter o assunto a um definitório provincial, que em derradeira instância decidirá. Ao mesmo tempo, le vantam a pretensão de serem as igrejas propriedade sua particular, assistindo-lhe direito a indenização, no caso de esbulho: flagrante contradição ao que sempre tinham afirmado, justificando o seu comércio, a saber: que este era dos índios, e aplicado, entre outros objetos, à erecção e fábrica das igrejas (9). Não lhes bastando 36 repelirem, por este modo, a jurisdição episcopal, procuravam ainda cercear as prerrogativas espirituais do Ordinário. Por uma carta de Carvalho a seu irmão, sabemos que o jesuíta Manuel de Azevedo alcançara do pontífice um breve, para que os missionários da So ciedade pudessem, no Brasil, administrar o sacramento da confirmação, em território fora das missões, isto é, da exclusiva jurisdição dos bispos. Com tantos agravos, o prelado, monge domínico, e nessa qualidade inimigo natural dos jesuítas; doído, como superior, de ver menosprezados seus privi légios; interessado além disso em lisonjear os Carvalhos, de quem espera adiantamentos; de bom grado se presta a ser o braço direito da repressão. Antes mesmo de assumir o governo, intriga e denuncia: assim vai alhanando o caminho, para a mitra mais pingue , que ambiciona na metrópole. Aos pés dos protetores, roja se em exageros de servilismo. Se faltarem os índios para a viagem do capitão-general, ele mesmo tomará o remo, que foi o primeiro ofício dos apóstolos. Assim escreve a Carvalho; e esse excesso de fingimento, na adulação, é a fotografia do seu caráter (10). à vista disto se julgará como receberia a ordem, vinda da corte, para a expulsão de alguns padres. Por estes se deu princípio ao castigo, que breve se estenderia a toda a Ordem. Carvalho mandava r etirar do Estado, e recolher ao Reino, quatro missionários “pelos atentados com que insultaram os ministros de Sua Majestade, e contrabandos que fizeram e em que continuam” (11). Não lhes foram declaradas as culpas, 37 nem delas tão pouco souberam os superior es. É necessário recorrer à correspondência de Mendonça, para as encontrar. Manuel Gonzaga era o missionário que, no Piauí, havia lançado a excomunhão ao Ouvidor. Sobre outro, Teodoro da Cruz, pesava o aleive de ter ministrado peçonha a um clérigo; e, escrevendo ele ao bispo que desejava uma satisfação pública de tamanha injúria, fora a reclamação tomada por ofensa. Aos dois restantes, padres António José Roque Hundertpfund, missionários do rio Madeira, se argüia de instigarem ao desprezo das régias ordens, que vedavam a comunicação, por essa via, com Mato Grosso, e de facilitarem o contrabando do ouro. Aos mesmos, a Relação Abreviada, conhecido panfleto de Pombal, acusa de terem, no tempo das demarcações, sublevado os índios das vizinhanças do rio Negro, induzindo-os a desertarem; e ao último incrimina mais de participar em uma trama, cujo objeto era entregar a província aos franceses de Caiena. As duas imputações são igualmente caluniosas, e a apologia dos acusados saiu cabal (12). Em setembro embarcaram os exilados, chegando a Lisboa no dia imediato ao do terremoto. Atravessando a custo do cais, por entre as ruínas da cidade, mal sabiam eles quanto lhes fora propícia a medonha catástrofe. O infinito pavor e as aflições do momento não davam ao governo aso a cuidar em negócios mínimos. Caíram em temporário esquecimento as culpas dos jesuítas, e o padre Hundertpfund pôde recolher-se imune à Alemanha, sua pátria, evitando o cárcere, reservado aos companheiros 38 que, por missões. enquanto poupados, ficavam ainda nas III A erecção da Companhia de Comércio não encontrou no Pará a hostilidade receada por Carvalho. Os negociantes estabelecidos na terra, eram em pequeno número. Pobres e humilhados pelo tratamento grosseiro de Francisco Xavier; tendo visto frustrada e p unida a soberbia do Ouvidor, em cuja devassa tinham dado vazão ao desgosto; jamais lhes passaria pela mente declararem-se em oposição a um governo tão forte, como demonstrava ser o atual. Os jesuítas, atordoados com o golpe, que tão inopinadamente os feria, do exílio dos seus, e avisados do que sucedera na côrte, não ousavam lançar-se em cometimentos novos de resistência, e punham em reserva as energias, para a decisiva contenda, sobre o domínio das missões, que já próxima se lhes antolhava. O resto da população era indiferente: tudo suportaria, compreendendo que nada lhe podia ser mais duro que permanecer no mesmo estado de abatimento e penúria. Prometiam-lhe negros de África em quantidade, e o milhão dos acionistas, a derramar -se no tráfico, por multiplicados canais. Os missionários iam perder as vantagens, que lhes dava a superioridade do seu comércio, e porventura teriam de entregar mais tarde os índios, de que faziam tão proveitoso uso. Da mudança, algum bem havia de resultar. No sertão, continuava Mendonça preocupado com a falta de gente, para o serviço das embarcações, e 39 trabalho de preparar subsistências e alojamentos para a numerosa comitiva dos demarcadores. As deserções principiadas no Pará não cessavam; atribuindo ele, ao só influxo dos missionários, o que em parte se poderia imputar à instabilidade natural dos selvagens. Via também meneios dos jesuítas na demora dos comissários castelhanos que, hóspedes deles no Orinoco, não vinham realizar a demarcação. E, com isto, crescia a sua indignação contra os padres. As novas que lhe chegavam de outras partes, quer da sede do seu governo, em Belém, quer do sul do Brasil ou da metrópole, todas lhe confirmavam as desconfianças, que desde o princípio alimentava. Do Pará o bispo continuava a pressagiar-lhe ciladas, e descobria-lhe a suposta conjuração de Hundertpfund. O que sabia da rebelião dos índios, no Paraguai, exagerado por interessadas falsidades, como por efeito da distância, e pela incerteza dos fatos, avivava -lhe suspeitas, sugeria-lhe receios. De Lisboa, manifestavalhe seu irmão fiar pouco da lealdade castelhana. As tropas, que deviam operar no Rio da Prata com as portuguesas, tinham-se retirado a Buenos Aires, deixando Gomes Freire a braços com a revolta; e as escusas do gabinete de Madrid eram frouxas, a ponto de parecerem capciosas. Temendo da banda do norte alguma inesperada incursão, mandava o governo estabelecer a nova capitania de S. José do rio Negro, “para se povoar a fronteira ocidental do Amazonas e defender as comunicações com Mato Grosso”; e recomendava fossem expelidos os espanhóis, e 40 apreendidos os índios das aldeias, que se encontrassem na margem portuguesa do Madeira. As instruções acrescentavam: “Escuso de vos lembrar o muito que se faz necessário separar os padres jesuítas (que já claramente estão fazendo esta guerra) da fronteira de Espanha... Também será bom que acheis meios para lhes interromperdes as comunicações com os outros padres, que residem nos domínios de Espanha, visto que, com esta potência eclesiástica, nos achamos em tã o dura e tão custosa guerra”. Desta arte via Mendonça o poder dos jesuítas senhorear em Espanha, e ameaçar talvez a integridade dos domínios portugueses. As noções que de fora recebia, a interpretação dos fatos, à sua vista presentes, davam-lhe a consciência de uma enorme responsabilidade, e apontavam-lhe o inimigo, o mesmo em toda a parte, que a todo o custo era preciso abater. Seu espírito não fora talhado para longas dissimulações e astutos planos; o subitâneo impulso a um ato violento era a lei dele: expulsar os jesuítas da colônia pareceulhe então o meio salvador. Não vindo os comissários espanhóis, aproveitou Mendonça a delonga, para ir fundar nas margens do Madeira a vila de Borba a Nova, em que, segundo as instruções da corte, se convertia a aldeia jesuíta de Trocano. O fato tem importância, por iniciar a abolição do poder civil dos religiosos nas agremiações de indígenas, e também por um incidente, que mais tarde havia de ser explorado na campana anti-jesuítica: a anedota famosa dos artilheiros disfarçados, que Pombal fez correr mundo nas páginas da Relação Abreviada. 41 A criação da vila, embora fazendo parte do plano, já concertado entre Carvalho e sei irmão, de organizar, à feição de município, os povoados, até aí regidos pelos missionários, tinha por aparente objeto proporcionar um lugar de “refresco e descanso” aos vassalos, que freqüentavam o caminho de Mato Grosso (13). Apreciando, pelo que valiam, as judiciosas considerações de Mendonça, o governo da metrópole favorecia agora o que antes vedava com ciúme. Abaixo deste lugar habitava João de Sousa de Azevedo, o audacioso sertanejo que, desprezando as proibições, mais do que ninguém contribuíra para abrir, pela banda do norte, uma porta, a central e insulada região de Mato Grosso; e, com tanto risco o fazia que, na última viagem, se sujeitara à execução pela soma de nove mil cruzados, fiança exigida, pelo governador, às pessoas de quem suspeitava haveriam de romper a interdição. Salvou-o da perda total de sua fazenda, em que o arresto importaria, o bom senso de Mendonça, que dispensando a culpa, reconheceu a utilidade do feito (14). Era isso contra as suas instruções, par ticularmente instantes neste ponto. Em Lisboa, receavam se despovoasse o Pará, pela sedução das minas, e que as nações limítrofes, conhecendo a via, corressem a apossar-se do valioso território. Mas o governo da colônia, mais perspicaz que os anteriores, demonstra a inanidade de tais raciocínios: bispo e governador combatem os receios, e apontam o impossível de transportar e prover, em país inimigo, e a tão grande distância, quaisquer forças militares. A 42 teimosia de Azevedo, e as judiciosas considerações de Mendonça, dão por fim em terra com a proibição, já anteriormente revogada por lei, mas ainda efetiva (15). À distância de um tiro de espingarda da missão, achava-se estabelecido o posto fiscal. Um oficial e poucos soldados vigiavam o rio, fazendo visita às canoas que desciam. Quando algum mineiro transitava com ouro, acompanhavam-no dois guardar à capital, para lá se verificar o que trazia, e realizar o pagamento do imposto. Chegou o governador a Trocano em 20 de Dezembro. Por espaço de alguns dias, conservou oculto ao missionário, que era o alemão Anselmo Eckart, o objeto da viagem. A 31, fazendo-lhe certa comunicação por escrito, tratava-o ainda por missionário de Trocano; mas, no dia imediato, convidando o religioso para assistir à solene inauguração da vila, que nomeou por Borba a Nova, omitiu qualquer referência àquele título, de certo por considerar extinto o cargo. Convocados os índios ao som das trombetas, fêz lhes um oficial da escolta de Mendonça, perito na linguagem tupi, uma prática, insinuando -lhes que, para o futuro, viveriam em outros costumes, outra disciplina e outra lei. Em seguida, entraram os selvagens, ajudados por soldados, de fazer uma grande derrubada, e, no meio da clareira, em pouco tempo aberta, ele varam, à feição de coluna, um tosco madeiro: o pe lourinho, símbolo das franquias municipais. Alguns vivas ao soberano, e os tiros de duas pequenas peças de artilharia, existentes na missão, saudaram o levan 43 tamento desta à dignidade de vila. Restava só designar quem havia de reger a povoação, e quais as suas leis, para a obra ser completa. Sobre um e outro ponto havia o governador antecipadamente disposto. Pôde, pois, recolher-se sem demora ao rio Negro, a esperar os demarcadores, en quanto o missionário se retirava para uma aldeia vi zinha, a dos Abacaxis, pertencente também à sua Or dem. A administração dos índios e o governo da vila ficaram a cargo de um oficial militar. A experiência daí resultante, tinha de servir de molde à transformação sucessiva das outras agremiações indígenas, dirigidas pelos missionários. Tão obscura ficaria na história a aldeia de Trocano como o tem sido a vila, que lhe sucedeu, não fôra o incidente dos canhões. Os que salvaram em presença de Mendonça eram duas peças de pequeno alcance, levadas para ali anos atrás, com assentimento do governador João da Maia da Gama, não para defesa material, mas afim de, com o estrondo, afugentarem os selvagens, da nação hostil dos Muras. Subjugados estes índios, inúteis jaziam no povoado as inocentes máquinas de guerra, exceto nas ocasiões de público regozijo, em que seus tiros acordavam os ecos da floresta. Nenhum cabedal fizera Mendonça deste fato; seu irmão, porém, mais ardiloso, não hesitou em divulgar que se achavam os jesuítas, a exemplo do Paraguai, fortificados em Trocano, sendo talvez os padres alemães, desta aldeia e dos Abacaxis, disfarçados guerreiros. E assim o descarado engano correu mundo (16). 44 IV Enfastiado de aguardar no rio Begro os comis sários espanhóis, e convencido afinal de que não viriam; cansado das privações inevitáveis em lugar tão remoto, enfermo em razão delas e por efeito do clima; achou Mendonça que era tempo de regressar à capital. Já a isso o convidavam ordens da corte, que aliás não recebera ainda, por irem em caminho; e seu irmão, dando -lhe parte das instruções que lhe recomendavam se recolhesse ao Pará, para tratar da saúde, fazia notar que “com os amos não há cumprimento senão cega obediência” (17). Não obstante, deixava ele contrariado a povoação, que ambicionava houvesse de ser, ao menos por algum tempo, cidade populosa, e ficar célebre como estância onde se firmariam perpétuas pazes entre duas nações. Não fôra o sítio bem escolhido, nem se prestava a magnificências. O terreno alagadiço mal se podia trilhar a pés enxutos. Por espaço de dois anos, ali trabalharam os índios da missão de carmelitas, existente no lugar, com muitos outros arrebanhados de diversas paragens. A rudeza dos obreiros não permitia esmeros de arquitetura: de tábuas, palha e barro grosseiro se construíram, ao jeito do sertão, as casas de morada e quartéis da tropa; mas entre as modificações avultava a que devia ser palácio das conferências, com du as largas portas por onde haviam de entrar, cada um de seu lado, e dispensando precedências, os dois grupos de comissários. Caindo breve em ruínas as construções toscas, feitas então, a vila de Barcelos, ainda hoje 45 insignificante, nada conserva que rememor e os planos, relativamente grandiosos, do seu fundador. Deixando esse lugar de Mariuá a 23 de novembro, o governador chegou à capital aos 22 do mês seguinte, disposto a publicar imediatamente a lei das liberdades, com que, a um tempo, realizava os planos de seu irmão, e satisfazia, por um golpe decisivo, a cólera que o animava contra os missionários, especialmente os da Companhia de Jesus. Não lhe permitiu contudo a doença agir com a prontidão desejável. Temia ele que os habitantes, sempre desafeiçoados ao regime novo, que os sucessos anteriores deixavam entrever, se abalançassem a algum ato de resistência formal; e, reputando a sua presença indispensável para submetê -la, foi adiando até que, recobradas as forças, se viu em posse da sua energia habitual. Ainda assim usou de precauções. Atendendo aos conselhos do bispo e autoridades civis da capitania, começou por dar à publicidade, em 5 de fevereiro, somente a lei que abolia o governo temporal dos missionários, ainda assim expungida das palavras relativas à emancipação, complemento necessário dela. Convocada no colégio dos jesuítas a junta de missões, e lido o diploma, resolveu se ficarem nas aldeias todos os bens existentes, posto que os missionários alegassem direitos sobre eles; em seguida se apregoou a lei, em bando pelas ruas. Por mais preparados que estivessem os religiosos para o golpe, certo é que, no primeiro instante, grande foi o seu espanto e confusão. Nem mesmo, na pior das imaginações, eles o esperavam tão fundo. Acharem -se 46 privados do governo das aldeias era situação que já de há muito os ameaçava, e, não sendo nova, cuidariam de acudir-lhe como das outras vezes; mas despojarem-nos de propriedades, que julgavam suas e legitimamente adquiridas; expulsarem-nos, de tudo despidos, e sem compensação, como servos infiéis, parecia-lhes, além de injúria, supremo escárnio. Mais esta vez entrava nas dissenções dos jesuítas com o poder civil, o orgulho, principal causa da sua perda. Cinco dias passados, requereu o bispo nova junta, a pedido dos missionários, que tinham de propôr certas dúvidas. Perguntou primeiramente o vice-provincial da Companhia se aos seus padres seria lícito tomarem conta dos gêneros: cacau, salsa-parrilha, etc., guardados nas aldeias, e cujo produto destinavam a solver adiantamentos, feitos para benefícios das mesmas, e salários aos índios livres. A resposta foi, como se devia esperar, negativa; e a tal replicou o jesuíta com um protesto, que infalivelmente o condenava. Era a confissão implícita do caráter mercantil, que haviam assumido as missões, até então sempre por eles renegado. Deixando-se levar pela má compreensão de seu direito, e por uma analogia infeliz de expressões, o Provincial, tendo só em vista a conta corrente da sua administração financeira, deu a entender que os missionários eram caixeiros da Sociedade, trabalhando como tais, e nesse caráter lhes cumpria reivindicar o que não era propriedade sua individual, mas do acervo comum. Pode-se calcular o júbilo de Mendonça ao ouvir tão insensata declaração. Ordenando ficassem os 47 gêneros em depósito, deu parte ao governo do sucedido, como a prova mais cabal de quanto no assunto havia anteriormente asseverado (18). Outro ponto, sobre que versou a consulta, foi a posição em que se conservariam nas aldeias os religiosos, privados da antiga autoridade; e aí se levantou a tão debatida questão das visitas, reservada, por indicação de Carvalho, para esse momento. Com o sua astuciosa mansidão, e certo já de qual seria a resposta dos jesuítas, declarou o bispo que estimaria ficassem os missionários nas aldeias, exercendo funções de párocos, sujeitos todavia à sua inspeção, consoante as leis do reino. Único, entre os religiosos presentes, o representante da Companhia se manifestou contra; invocou argumentos antigos; declarou que por modo algum os seus súditos haviam de sujeitar-se à jurisdição episcopal. Com isto proferia a sentença dos seus. Abandonando as aldeias e o trabalho de doutrinarem os indígenas, que por mais de dois séculos fôra a sua ocupação e razão de existência na América, que far iam ainda ali? A resposta do governo de Lisboa foi a que o desafio arrogante demandava. No ano seguinte – porque era grande a demora em transmitir informações e voltarem resolvidas as consultas – ordem expedida do reino mandou suspender todas as côngruas, que aos jesuítas do Pará e Maranhão fossem pagas a título de missões, paróquias ou qualquer outro (19). Privados assim desta renda, como o tinham sido já das vastas propriedades; sem meios de subsistência, além dos que podiam fornecer-lhes, de outra parte, os consórcios, o 48 que entrava nas praxes da Ordem; só lhes restava abandonarem o campo. Mas, antes disso, outras im prudências vieram tornar-lhes mais penosa a situação, e acarretaram sobre alguns, enquanto não chegava a derrocada final, o efeito de tantas iras acumuladas e até aí represas. A recusa dos missionários aceitarem a jurisdição episcopal tinha, como inevitável conseqüência, a sua retirada das aldeias. É verdade que o superior propunha ficarem eles exercendo funções de coadjutores, ao lado e de acordo com os párocos, que o bispo elegesse; mas o alvitre fôra prudentemente rejeitado, para evitar conflitos, e impedir que, à sombra do cargo, conti nuassem os jesuítas a manter sobre os índios a mesma indisputável influência. Vendo-se por esta parte coartado, e reconhecendo a impotência de seus meios, o Provincial lançou-se em atos de represália, dos que unicamente servem a revelar o desespero dos vencidos; não refletindo que fazia assim o jogo de adversários, ansiosos de verem a sociedade irremediavelmente perdida. No seu arrebatamento passou aos religiosos ordem de abandonarem as aldeias, trazendo o que pudessem dos bens transportáveis. Assim se cumpriu em toda a parte. Alfaias, imagens e paramentos, tudo os sacerdotes carregavam em barcos, muitas vezes oculto de maneira indecorosa, entre os gêneros de comércio, resto das grangearias de que não queriam privar a comunidade. Onde havia gados e canoas, isso vendiam, a troco de gêneros. E, deslizando as embarcações, de tantas partes, rio abaixo, a chapinhar com o peso das 49 cargas, mais pareciam voltar de predatórias incursões, que recolher ao cenóbio de catequistas, só ocupados na pregação do Evangelho. Interrogado acerca de tais fatos, o prelado jesuíta não ocultou que tudo se passara assim por ordem sua. Sustentava, como sempre, que os bens existentes nas aldeias pertenciam à sua religião; que, para havê -los, contraíra esta grandes dívidas, de cujo valor teria direito a indenização, sendo esbulhada. Com mais vigor defendia ainda a propriedade de duas fazendas , na vizinhança da cidade, depois vilas de Curuçá e Porto Salvo; e não somente do terreno, com os produtos da cultura, senão também dos índios que o trabalhavam, escravos no dizer do jesuíta, transmudado do antigo altruísmo, e objurgando já agora as liberdades. Ao rei e à rainha, em lacrimosas súplicas, recorriam os padres, por outra parte, das violências de Mendonça, as severando que tirar-lhes os escravos o mesmo era que privá-los dos últimos meios de subsistência. E não se pejavam, para comprovarem a sua boa fé, e a justiça destes cativeiros, de invocar a recordação de antigos tempos, em que padeciam, advogando o direito dos índios (20). Tal excesso de imprudência era sintoma da intima dissolução, que minava o corpo da Sociedade, e em pouco tempo a faria perecer. Cegos para tudo que não fosse o próprio e imediato interesse, os jesuítas não enxergavam a transformação, que ia dar-se; não compreendiam que a era antiga, das escravidões, terminara, e que nenhuma ocasião mais útil se lhes 50 poderia deparar de aplicarem o famoso oportunismo, que, no espiritual como no mundano, fora sempre a norma de sua política. Passados tantos anos, em lutas incessantes, propugnando as liberdades; mal vistos e combatidos pelos colonos, em toda a América lusitana, de São Paulo ao Pará, só por fazerem obstáculo aos cativeiros; pelo mesmo motivo, perseguidos no Maranhão, e duas vezes expulsos; renegavam a doutrina tradicional, e passavam ao campo adverso, no próprio momento em que apregoado objeto de seus esforços ia enfim ser realidade. É certo que o subterfúgio dos lícitos cativeiros, a que agora se pegavam, fora obra sua, concessão por meio da qual, sem renegarem os prin cípios, transigiam com os interesses contrariados. Por outro lado, a condição dos índios, denominados livres, nas aldeias, sob o regime do obrigatório trabalho, da estreita obediência, e dos castigos, não se diferenciava do estado servil; se bem que podiam alegar ser essa disciplina o meio único de manter, sujeitos aos encargos da vida policiada, homens que o aguilhão das necessidades não compelia, e a quem a natureza pródiga, e o exemplo dos congêneres, para não mencionarmos os impulsos do atavismo, convidavam à fácil existência do antepassado, indolente e nômade. Mas, sofismando assim os princípios, a que se diziam fiéis, os missionários, se por uma parte ofendiam a lei moral, que lhes exigia coerência, por outra chamavam sobre si as iras de um governo obstinado nos seus projetos, e implacável, como já havia mostrado, contra quem se a eles opunha; mais ainda, qual se deve imaginar, 51 assumindo a resistência, como agora, o caráter de desafio. Recorrer do governador para a corte, do ministro para o rei, e ainda da presumível indiferença deste para a benevolência da rainha, era desconhecer em absoluto a transformação, que nos últimos anos se havia dado nas altas regiões do poder. Os jesuítas do Pará fiavam ainda muito da influência dos seus, no paço, quando os ventos já sopravam francamente do lado contrário. Desta forma, juntando a imprudência das representações ao desvario das represálias, instigavam a cólera do adversário, e davam-lhe o desejado pretexto para os últimos golpes. No Maranhão, não se mostraram os regulares mais submissos; e faltando, para conter-lhes as arrogâncias, a energia do irmão de Carvalho, irromperam em estrondosos protestos, nos quais, mal avi sados, tomaram parte outros religiosos, além dos jesuítas. Não colhera estes ali de surpresa, como no Pará, a nova ordem de coisas. Levou-lhes a notícia um mensageiro, clandestinamente enviado pelos consórc ios, enquanto o correio, portador da participação oficial ao governo de S. Luís, era detido por dificuldades no trânsito, habilmente preparadas pelos missionários. Quando, pois, lhes foram intimadas as disposições, prontos se achavam já a responder, com protestos e requerimentos diversos, que deixaram perplexo o governador subalterno. As igrejas existentes nas po voações eram, conforme entendiam, do padroado real; el rei, como grão-mestre da Ordem de Cristo, fizera mercê delas à Companhia; portanto, não se julgavam obrigados 52 a entregá-las aos párocos, escolhidos pelo bispo, nem a reconhecer a inteira jurisdição dele, consoante se lhes exigia. “Todos estes requerimentos (dizia Mendonça) não consistem em outra coisa mais que em forcejarem estes religiosos por se sustentarem nas povoações que administravam e o grande comércio que nelas faziam” (21). Outros sucessos, no rio Negro, fizeram crescer a irritação dos governantes, e deram ensejo a poderem eles divulgar, mais tarde, que uma vasta conspiração, organizada pelos jesuítas, em todas as classes tinha adeptos, e visava a semear a anarquia no Estado, preparando elementos para uma aberta rebelião. A 11 de março, revoltaram-se os soldados que tinha ficado de guarnição no lugar onde deviam ser as conferên cias das demarcações, roubaram os armazéns reais, e, embar cando-se em canoas, apossaram-se da fortaleza existente na barra do rio Negro. Daí prosseguiram, águas do Solimões acima, em direção à fronteira castelhana. Perto dela, num posto militar, quis o comandante chamá-los à obediência, mas seus próprios soldados se rebelaram, juntando-se aos camaradas. O oficial, prisioneiro, foi incumbido de levar ao capitão-general as condições em que os revoltosos voltariam à disciplina. Cifravam estas em pouco: que, como lhes fora prometido em Lisboa, lhes pagassem os soldos por inteiro, sem injustas deduções. Estes soldados faziam parte dos dois regimentos, criados por Carvalho, quando seu irmão lhe fez saber o estado indefeso da colônia, e a total desorganização da força armada. Da correspondência do ministro se vê que era seu intento dar aos comissários 53 espanhóis, quando chegassem, vantajosa idéia dos elementos militares ali congregados (22). A esta circunstância se prende a expedição de tropas, em 1753, destinadas a guarnecer a fortaleza de Macapá, que então se construía, e à defesa das fronteiras. Erram os mal informados historiógrafos que nos dizem saíra Mendonça de Lisboa com três regimentos, para submeter os índios em revolta e reprimir os intentos belicosos dos jesuítas. Tal asserto é uma das muitas fábulas, envolta nas quais passou até nós a luta da Ordem com o seu resoluto antagonista. Não se descuidou ele próprio, em favor da sua causa, de as inventar, torcendo a seu jeito os fatos. Na Relação Abreviada, aparece o insignificante fato desta sublevação, motivada por causas de descontentamento naturais e vulgares, como sendo meneio de jesuítas. Já, pelas mesmas queixas, houvera antes um princípio de sedição no Pará, e os atos de indisciplina não deviam causar estranheza em soldados, que eram a ralé dos vagabundos da corte. Explicava o governador que entre os revoltosos se encontravam cerca de vinte ladrões e assassinos, “do que demonstrativamente se vê que os viciosos costumes daqueles homens foi o que os fez romper naqueles desatinos” (23). Com esta informação, e sem mais fundamento que meras suspeitas, ou deli berada má fé, Carvalho afirma que os jesuítas “não podendo obrar na honra e fidelidade dos oficiais das tropas, obraram contudo nos soldados de menos obri gações” (24). E sobre tais bases se tem construído a histó ria desta, por tantos motivos, interessante contenda! 54 V Antes do governo de Mendonça, quando o bispo D. Miguel de Bulhões tomara o báculo, levara consigo o breve Immensa pastorum, a cuja publicação, como sabemos, conveniências do governo, ou influências poderosas, se tinham oposto. O documento menciona diligências, empregadas com D. João V, para que o monarca desse às exportações do pastor o apoio da autoridade civil; e o resultado foi a promessa, por ele feita, de promover a fiel execução das leis, tantas vezes promulgadas em favor dos selvícolas (25). Com efeito, nos anos seguintes mais decisiva é a proteção que o governo lhes outorga: anulam-se as licenças particulares para os resgates, e põe-se termo aos que, por conta do Estado, se faziam. Ao mesmo tempo, coincidência que tem seu valor, manifesta-se nas decisões da Coroa uma tal ou qual tendência a coartar os abusos dos missionários. No entanto, ao condenatório diploma pontifício não se alude. É lícito conjecturar, no caso, a intervenção do padre Carbone, jesuíta, conselheiro íntimo e amigo do rei, quase ministro pela autoridade e mais do que isso pela influência, o qual não havia de consentir se divulgasse escrito de tal ordem, e com que os bons créditos da Sociedade padeciam. Bem desejaria o bispo promulgar o breve, ao entrar na diocese, mas atou-lhe as mãos o receio de cometer uma imprudência. Ser-lhe-ia perigoso atrair a cólera do régio confidente, e o amor das conveniências pessoais dominava nele o ódio, aliás profundo, que tinha aos jesuítas. 55 Com o falecimento de D. João V, que a curto espaço seguiu o do jesuíta, mudara a situação; mas o novo governador, incumbido de estabelecer um regime, tão oposto aos usos e preconceitos existentes, temia sobressaltar o espírito público, se empregasse desde logo meios radicais. Deu tempo a preparar os ânimos para a reforma, entendendo que, afastado o temor da repulsa, as letras pontifícias serviriam a conter a gente da Igreja, e dar maior autoridade às ordens da Coroa. Neste propósito o confirmara o assentimento do ministro seu irmão. Mas chegou finalmente a época, em que lhe era dado coroar, com as últimas resoluções, o plano, que fazia agora a meta do seu governo. Passados dois anos de hesitação e silêncio, vai-se por termo a secular injustiça, e resgatar, num lance de generoso altruísmo, as ignomínias passadas. A resistência dos jesuítas facilitava-lhe a tarefa. Declarando-se em luta com o poder civil, davam-lhe eles o melhor pretexto para, de um golpe, arrebatar os índios à sua temida influência, e estabelecer definitivamente nas aldeias o regime novo, sem recorrer a subterfúgios, que pouco a pouco fossem apartando delas os missionários. Escravos da soberba, fiados no antigo poder e, sobretudo, incônscios da situação, os filhos de Loiola tinham abandonado o campo, simulando a retirada. Nada melhor podiam fazer em benefício dos que tinham em mente expulsá-los: frustrando-lhes a expectativa, em breve o governador os substituiu nas missões por delegados próprios. A 21 de maio, houve junta em casa do bispo, para 56 se considerarem os impedimentos, que podia haver ainda à execução da lei. Foi unânime parecer dos pre sentes que, da parte dos moradores, nenhuma resistência surgiria. Havia seis anos que se lhes dava a entender serem os índios livres. Tinha-se feito a repartição, no regime dos salários, chegando a perto de dois mil os serviçais distribuídos. Estavam portanto os seculares já familiarizados com a idéia, e só era de temer alguma oposição, suscitada pelos eclesiásticos nos púlpitos e confessionários: mas a essa obviaria o breve de Bene dito XIV, até aí secreto, que se publicava com a lei. Foi isso o que se fez, dando conhecimento da mesma, primeiramente aos prelados das religiões, e autoridades da capitania, em reunião no paço episcopal, efetuada no dia 28; em seguida ao povo, nas ruas, por bando, na forma costumada. No dia imediato, se afixou o edital do bispo, com a cópia d breve. Apesar de quanto haviam feito, em oposição à reforma, e dos juízos contrários, que não deixavam de manifestar, tão enraizada se achava, acerca dos jesuítas, a idéia que tudo que se obrasse em favor das liberdades era devido a esforços seus, que ainda desta vez, a opinião pública lhes atribuiu o malefício. Não ousando pronunciar-se contra o governo, os colonos, em seu desabafo, lançavam à conta de seus antigos contendores a inovação, que estes, tanto havendo trabalhado por ela, no extremo da incoerência rejeitavam agora (26). Mas tudo se passou sem abalo. Resignados os habitantes do Pará-Maranhão volviam os olhos para a Companhia de Comércio que com os negros vindos de África havia de 57 trazer-lhes a prosperidade. Com isso não mudavam de norte: guardavam zelosos as mesmas esperanças, que a mesma ilusão alimentava. NOTAS (1) Sebastião José de Carvalho a Francisco Xavier. Carta de 4 de agosto de 1755. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb., Cód. 626. (2) Ofício de 20 de janeiro de 1752. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (3) C. R. de 11 de março de 1755. (4) Von der Schicksale der Jesuiten in Portugal: em Mürr, Journal zur Kunstgeschichte und zur allgemeinen Litteratur, tomo 4. (5) Carta de 18 de fevereiro de 1754. Biblioteca Nacional de Lisboa. Sampaio tinha sido embaixador na corte de Roma, durante a missão a Viena, e entre ele e Carvalho se levantou azeda controvérsia, seguida de enredos perante os ministros em Lisboa. Cf. supra, pág. 276. (6) Carta a Sebastião José de Carvalho, 18 de fevereiro de 1754. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (7) Liv. 2º, tít. XI: “Q ue os clerigos e hordeés nom comprrem beés de rrajz ssem autoridade delrrey”. Figueiredo, Synopsis Chronologica, tomo 1. (8) Carta a Sebastião José de Carvalho, 18 de fevereiro de 1754. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (9) Francisco Xavier a Sebastião de Carvalho: “... Do que se vê que, no ano de 1729, o cabedal com que se faziam as igrejas era dos índios, e não tinham os padres nelas mais que a admi 58 nistração; e, em 1749, são suas as igrejas e casas de residência, fundadas a expensas próprias, e, se Sua Majestade quiser dar nova forma, é preciso que lhas compre”. – Carta familiar, 25 de outubro de 1752. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (10) “Não terei mais remédio que ir eu mesmo, com todos os meus familiares, suprir a falta dos índios; nem se poderá julgar impróprio em um prelado o exercício de remar, atendendo que os bispos são os legítimos sucessores dos apóstolos, os quais largaram os remos para empunharem os báculos” – Carta a Sebastião José de Carvalho, 8 de março de 1754. Bibliot eca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (11) Carta a Francisco Xavier de Mendonça, 14 de março de 1755. Idem. (12) “Flumina illa (Madeira e Negro) distant ab urbe Paraense minimum 300 horis. Ego missionarius fui in flumine Madera ab anno 1742 usque ad 1746 inclusive: deinceps vero ab anno 1747 fui socius Vem. P. Malagrida, et usque ad annum 1755, quo mihi exsulandum omnino ex Maragninia fuit numquam amplius ad illa flumina perveni, sed semper haesi in districtu Paraensi, in distancia tantum 50 horarum ab urbe. Ergo jam anno 1746 debuissem inducere Indos fluminum Madera et Rio Negro ad deferendas habitationes suas, ubi deinde impediretur expeditio demarcationis limitum. A. 1754 faciendae”. – Carta do padre Roque Hundertpfund em Mürr, Journal zur Kuntsgeschichte und zur allgemeneinen Litteratur, tomo 4. Do crime de traição mandou o bispo fazer a devassa, e os demais acusados remetidos para Lisboa, permaneceram no cárcere, até que, mais humano, Francisco Xavier intercedeu por eles. Deste caso refere o bispo D. frei João de S. José, sucessor de Bulhões: “Dois clérigos de péssima conduta delataram contra o pai de Lourenço Furtado, dizendo era infiel à Coroa, e que meditava meios para entregar a praça a Caiena... Pode tanto a calúnia que lhe acabou a vida, antes que a apologia pudesse mostrar a inocência”. – Viagem de Visita ao Sertão, na Revista do Instituto Historico Brasileiro, tomo 9. Da co-participação do jesuíta não fala. Mendonça, porém, na mesma ocasião em que solicita clemência para os presos, atribui -lhe o papel de instigador, posto que de nenhum fato positivo houvesse 59 revelação na devassa. Ofício de 23 de novembro de 1757. Arquivos do Pará. (13) C. R. de 3 de março de 1755. (14) “Do mal da desobediência deste homem tiramos o bem de sabermos que em seis meses de tempo se pode ir desta cidade, e vir, às minas de Mato Grosso”. – Ofício de 9 de março de 1754. Arquivos do Pará. (15) Resolução de 23 de outubro de 1752, baseada em parecer do Conselho Ultramarino, autoriza as comunicações pelo Madeira, vedando em absoluto a navegação do Tocantins. (16) “Indo fundar-se no mês de janeiro de 1756 a vila de Borba a Nova, na aldeia chamada de Troano, se achou nela o padre Anselmo Eckart, alemão, que havia chegado poucos meses antes como missionário, armado com duas peças de artilharia, e, unido com outro padre, também alemão, chamado António Meisterburgo, ambos praticaram naquele território desordens, que fizeram verossímil a suspeita, de que em vez de religiosos, poderiam ser dois disfarçados engenheiros”. – Relação abreviada da republica que os jesuítas, etc. (17) Carta de 2 de dezembro de 1756. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (18) Ofício de 27 de maio de 1757: “Sendo seis as comunidades que aqui administram as aldeias, foram entre todos singulares os religiosos da Companhia, em fazerem uma asserção tal como esta, de dizerem que conservavam nestes sertões tantos caixeiros quantos eram os missionários que tinham nas aldeias, os quais todos trabalhavam em benefício do comum da sua religião, e em total destruição dos povos de que se tinham encarregado”. – Arquivos do Pará. (19) Provisão de 14 de agosto de 1758. (20) ... “Sendo nós os protetores das liberdades, por cujo respeito temos padecido tanto neste Estado, não queríamos nem podíamos 60 possuir algum escravo, que não fosse legítimo; assim como também não estamos para perder os que são verdadeiros, e que possuímos com bom e seguro título, dando -os, como quer o governador, por livres”. – Carta do padre Domingos António, reitor do colégio do Pará à rainha. Ms. da Biblioteca de Évora. (21) Ofício de 26 de maio de 1757. Arquivos do Pará. (22) Carta de Sebastião José de Carvalho, de 6 de julho de 1752: recomenda a Mendonça a organização das milícias... “e ainda que vão outras tropas, para marcharem ou ficarem aí, se mpre é razão que nessa cidade se conserve um corpo capaz de se ver, para que, quando a ela voltarem os hóspedes, a não achem desguarnecida e deserta, como até agora esteve, com a conseqüência de que esse abandono os convide a eles, e aos mais vizinhos, a v irem estabelecer-se nessa parte, sabendo que não têm quem lhes dispute o país...”. Idem de 13 de maio de 1753: “... As tropas que levou Gomes Freire para a sua guarda foram somente quatro companhias de granadeiros, tais e tão faustosas e bem disciplinadas que assombraram os castelhanos. Aí podeis praticar o mesmo, fazendo armar com barretes de granadeiros mais duas companhias ligeiras, e dispondo o mais com o possível luzimento...”. Biblioteca Nacional de Lisboa. Col. Pomb. (23) Ofício de 13 de junho de 1757. Arquivos do Pará. (24) Relação Abreviada, etc. (25) “Antes de tudo excitamos a exímia piedade, e nunca assás compreendido zelo da propagação da fé católica, que resplandecem no nosso caríssimo em Cristo filho João, rei preclaríssimo de Portugal e dos Algarves: qual pela filia, reverência que nos professa, e a esta santa sede apostólica, nos segurou logo, sem a menor dilação, que ordenaria a todos e cada um dos ministros e oficiais dos seus domínios, que castigassem com as gravíssimas penas estabelecidas pelas suas leis todos os que fossem compreendidos na culpa de excederem com os referidos índios a mansidão e caridade, que prescrevem os ditames e os preceitos evangélicos”. – Coleção dos Breves pontifícios e Leis régias, etc. 61 (26) “... Os tristes padres da Companhia, que de culpados na promulgação da nova lei não tem mais que o que falsamente lhes impõem os mal afetos...”. Morais, História da Companhia de Jesus, liv. 5, cap. 1º. (Transcrito de Os jesuítas no Grão-Pará. 2ª ed. revista. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, págs. 304 -333). 62 AS ESTRATÉGIAS DE IMPLANTAÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL Jorge Couto (Universidade Nova de Lisboa) Em 1548, D. João III decidiu criar o governogeral do Brasil, enviar uma importante expedição colonizadora – comandada por Tomé de Sousa – e fundar uma cidade da Capitania da Baía de Todos -osSantos, entretanto integrada na Coroa devido à morte de seu titular, Francisco Pereira Coutinho, em combate com os tupinambás. O monarca aproveitou a oportunidade para solicitar aos jesuítas que enviassem missionários para a Província de Santa Cruz, à semelhança do que já acontecia com o Estado da Índia desde 1541. O padre Simão Rodrigues, Provincial de Portugal e co-fundador da Companhia de Jesus com Inácio de Loiola, Francisco Xavier e outros companheiros, decidiu inicialmente dirigir ele próprio a missão ao Brasil, mas devido ao falecimento do seu presuntivo sucessos e ás reticências do primeiro Geral, acabou por designar o padre Manuel da Nóbrega, bacharel em cânones pela Universidade de Coimbra e comendador de Sanfins do Minho, para chefiar o primeiro grupo de inacianos destinado à América. Os seis religiosos, quatro padres (Nóbrega, Leonardo Nunes, António Pires e João de Azpilcueta Navarro) e dois irmãos (Vicente Rodrigues e 63 Diogo Jácome), partiram de Lisboa em fevereiro de 1549, a bordo de um navio pertencente António Car doso de Barros que se integrou, pouco depois, na armada do primeiro governador-geral, desembarcando na Baía a 29 de março seguinte. As primeiras preocupações de Nóbrega centraram-se na imposição de normas de conduta aos colonos, nomeadamente através da persuasão individual e de críticas do púlpito às situações de poligamia em que incorriam muitos dos moradores da Vila do Pereira. Outra das suas prioridades consistiu em instruir os missionários na língua utilizada pelos índios, pelo que incumbiu o padre João de Azpilcueta de a aprender. Por outro lado, encarregou o irmão Vicente Rodrigues de ministrar a doutrina cristã aos filhos dos indígenas e de assegurar o funcionamento de uma escola de ler e escrever destinada tanto aos descendentes dos colonos como aos dos índios. Enquanto não dominavam o tupi, os inacianos pregaram, doutrinaram e confessaram com recurso a intérpretes, utilizando, designadamen te, os serviços de Diogo Álvares, o Caramuru. Em 1550, Nóbrega enviou Leonardo Nunes e Diogo Jácome em missão às capitanias de Ilhéus e Porto Seguro. Tomou, ainda, a iniciativa de solicitar ao provincial de Portugal que mandasse mais jesuítas para o Brasil e que desenvolvesse diligências junto do rei no sentido de ser nomeado um bispo ou, pelo menos, um vigário-geral para a cidade do Salvador, de modo a disciplinar o comportamento do clero secular, pouco conforme com as normas da moral cristã e com o 64 espírito da Contra-Reforma, bem como a impulsionar a obra de cristianização dos indígenas. Apelou, também, para que fossem transferidas órfãs para terras brasílicas, a fim de permitir aos colonos constituir legalmente família. A 22 de junho de 1552 aportou à Baía a esquadra que transportava o bispo D. Pero Fernandes Sardinha. De fato, D. João III tinha conseguido obter do papa Júlio III (1550-1555) a criação da diocese de Salvador, através da bula Super specula de 25 de fevereiro de 1551. A chegada do prelado e de alguns membros do seu cabido libertou o superior dos jesuítas de muitas das funções pastorais que até então desempenhava informalmente, pelo que ficou mais disponível para se dedicar ao seu objetivo principal: a conversão do gentio. Aproveitando a circunstância de Tomé de Sousa pretender inspecionar as capitanias situadas ao sul da Baía, Nóbrega embarcou na armada do governador-geral e visitou Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, baía da Guanabara, São Vicente e o planalto de Piratininga, pregando, criando aldeias de índios cristianizados e fundando estabelecimentos da Companhia de Jesus em algumas dessas regiões. A missão do Brasil da Companhia de Jesus foi elevada à categoria de província por decisão de Inácio de Loiola anterior a 6 de abril de 1553. Por cartapatente de 9 de julho seguinte, o preposto geral nomeou o padre Manuel da Nóbrega para o cargo de provincial dos Índios do Brasil (1). 65 No decurso do período inicial de permanência dos jesuítas em terras brasílias, o custeamento das suas ati vidades foi garantido pela Província de Portugal, pela Coroa, que consignava a verba mensal de um cruzado para o sustento de cada missionário, fornecia víveres (mandioca e arroz) e apoiava a construção de templos, residências e colégios, pelo apoio oficial e par ticular do governador-geral e pela generosidade de alguns colonos. No entanto, essa fórmula de financiamento desagradava a Nóbrega, porque, por um lado, tornava a Companhia demasiadamente dependente da vontade e das dispo nibilidades das autoridades régias e, por outro, não fornecia os recursos necessários a uma rápida expansão das atividades evangelizadoras que constituíam o cerne das suas preocupações. A solução encontrada para custear as enormes somas necessárias para construir e apetrechar igrejas, colégios e residências, para sustentar os meninos órfãos e para prover as aldeias de índios cristianizados de vestuário, artigos metálicos (machados, enxadas, facas e tesouras) e de outros bens consistiu em aceitar terras cedidas pela Coroa, responsabilizando-se os padres da Companhia pelo seu arroteamento e, com a venda dos produtos excedentes, designadamente mandioca e gado, obter, desse modo, recursos adicionais para financiar as suas atividades religiosas, educativas e culturais. Foi com o objetivo de pôr em prática essa forma de apoio aos missionários jesuítas que Tomé de Sousa concedeu, por instrumento jurídico datado de 21 de outubro de 1550, uma propriedade ao Colégio da Baía, 66 que ficou conhecida por sesmaria da Água dos Meninos, doação confirmada pelo terceiro governador-geral, Mem de Sá (1558-1572), a 30 de setembro de 1569. A posse de terras por parte da Companhia de Jesus colocava um importante problema ao nível da mão-de-obra. Como os padres e irmãos eram em número extremamente reduzido (somente 10 até 1553) não se podiam dedicar pessoalmente aos trabalhos agrícolas e pecuários; por outro lado, não existiam homens livres que pudessem ser contratados para executar esses trabalhos. Restava o recurso ao trabalho escravo, so lução que levantava escrúpulos de natureza moral, mas que o provincial do Brasil decidiu ultrapassar, con siderando que essa era a única forma de obter os recursos necessários à evangelização do gentio. A 14 de setembro de 1551, Nóbrega, através de carta redigida em Olinda, solicitou ao rei D. João III que mandasse: “dar alguns escravos de Guiné há casa pera fazerem mantimentos, porque a terra hé tam fertil, que facilmente se manterão e vestirão muitos meninos, se tiverem alguns escravos que fação roças de mantimentos e algodoais...” (2). Já na Baía, o primeiro provincial do Brasil retomava o assunto em carta dirigida ao padre Simão Rodrigues, datada de 10 de julho de 1552, na qual informava que: “Ho mantimento e vestiaria que nos El Rei dá todo lho damos a elles, e nós vivemos de esmola s e comemos pollas casas com os criados desta gente principal, ho que fazemos por que se não escandalizem 67 de fazeremos roças e termos escravos, e pera saberem que tudo hé dos meninos” (3). Como tinha adquirido a crédito três escravos negros e diverso gado leiteiro, Nóbrega pediu, na mesma ocasião, ao provincial de Portugal que obtivesse uma doação régia daqueles bens, uma vez que não se encontrava em condições de satisfazer os compromissos assumidos: “Já tenho escrito sobre os escravos que se tomarão, dos quais um morreo logo, como morrerão outros muitos que vinhão já doentes do mar. Tão bem tomei doze vaquinhas pera criação e pera os meninos terem leite, que hé grande mantimento. Em toda a maneira este anno tragão os Padres provisão de el -Rei assi dos escravos como destas doze vaquas, porque tenho dado fiador pera dentro de hum anno as pagar a El-Rei, e será grande fortuna se deste anno passar. Nas vaquas se montarão pouquo mais de trinta mil reis. [...] Se El-Rei favorcer [o Colégio da Baía] e lhe fizer igreja e cassas, e mandar dar os escravos que digo (e me dizem que mandão mais escravos a esta terra, de Guiné; se assi for podia logo vir provisão pera mais tres ou quatro alem dos que a casa tem), antes de hum anno se sustentaram cem meninos e mais, porque assi como ella está agora mantem a trinta pessoas; e mais agora mando fazer algodoais pera mandar lá muito algodão pera que mandem pannos de que se vistão os meninos, e não será necessario que ho collegio de Coimbra quá nos ajude 68 senão com oraçõis, antes de quá lhe seremos boons em alguma cousa” (4). Os pedidos do provincial do Brasil foram atendidos pela Coroa que, através de provisões datadas, respectivamente, de 25 de outubro de 1552 e de 17 de abril de 1553, “mandou fazer esmola aos Padres da Companhia de Jhesu que residem na Cidade do Salvador da Baya de Todoslos Santos” de três escravos de São Tomé e de doze vacas (5). A 13 de julho de 1553 aportou à Baía a esquadra do segundo governador-geral, D. Duarte da Costa (15531557), que transportava a terceira expedição de jesuítas (três padres e quatro irmãos), entre os quais se contavam o padre Luís da Grã e o irmão de Anchieta. O padre Grã (1523-1609), antigo reitor do Colégio de Coimbra (1547-1550), foi nomeado, logo em 1553, adjunto do provincial. Possuía idéias bastante diferentes e, em alguns casos, opostas às do seu superior hierárquico: não considerava útil a existência de colégios de meninos órfãos, reprovava o fato da Companhia possuir bens de raiz, dedicar-se a atividades agrícolas e utilizar mão-de-obra escrava e não era adepto de um ritmo demasiado rápido de evangelização e batismo dos índios. Professava, em suma, ideais de rigor, ascetismo e pobreza. A sua chegada ao Brasil refletiu-se na estratégia de missionação e expansão adorada pela Companh ia de Jesus, verificando-se uma inflexão nos métodos até então adotados. Nóbrega acolheu, durante um certo 69 período de tempo, as observações e as reflexões de ordem ética, moral e espiritual levantadas pelo seu colateral. De acordo com esta nova orientação e para evitar a aquisição de escravos destinados a cultivar as terras que eram doadas à Companhia de Jesus, o primeiro provincial do Brasil pediu, através de carta datada de maio de 1556, ao padre doutor Miguel de Torres, provincial de Portugal e confessor da rainha D. Catarna de Austria desde setembro de 1555, que intercedesse junto de D. João III no sentido de que o apoio à Coroa às atividades dos inacianos nas paragens americanas fosse facultado em dízimos e não através da concessão de terras, cujo aproveitamento implicava o recurso a mão-de-obra (6). Esta posição do padre Manuel da Nóbrega resultou de pressões exercidas pelo padre Luís da Grã para que os jesuítas não aceitassem do rei terras nem escravos para granjearia. No entanto, as dificuldades financeiras da Coroa não permitiam adotar outras fórmulas de auxílio além das já concedidas. Os padres da Companhia no Brasil tiveram que optar entre expandir o ritmo da atividade missionária, o que implicava a aceitação de propriedades e a utilização de escravos, ou recusar essa via e, por conseguinte, abdicar dos objetivos de alargamento do seu âmbito de atuação. A maioria dos jesuítas pronunciou-se a favor da primeira alternativa, defendida por Nóbrega e combatida por Luís da Grã. 70 O apoio de muitos companheiros às teses de Nóbrega, levou-o a comunicar ao provincial de Portugal, em 2 de setembro de 1557 que, com o parecer favorável dos padres do Colégio da Baía, tinha decidido aceitar todas as doações feitas à Companhia, “até palhas”. Pedia, em seguida, uma “boa dada de terras” e escravos da Guiné, uma vez que não era conveniente ter escravos da terra. Os negros cultivariam as terras, criariam gado, pescariam, colheriam vegetais e frutos e obteriam água e lenha para abastecer os colégios, libertando os irmãos dessas tarefas e tornando-os disponíveis para outras atividades mais diretamente relacionadas com a missionação (7). Estruturam-se, assim, duas correntes no seio dos jesuítas da Província do Brasil. Uma, encabeçada pelo padre Manuel da Nóbrega, adotava uma atitude pragmática e considerava que a expansão da Companhia implicava a posse de bens e a utilização de escravos; outra, cuja figura mais representativa era o padre Luís da Grã, privilegiava a pobreza e o ascetismo, recusando, assim, a possibilidade da Companhia aceitar bens de raiz e recorrer à utilização de escravos. Somente admitia que, em caso de grande necessidade, se contratassem trabalhadores e nunca que se comprassem escravos (8). Em meados de 1559, o padre Manuel da Nóbrega, de acordo com instruções recebidas de Lisboa, abriu a primeira via de sucessão para o cargo de provincial. A nomeação recaiu no padre Luís da Grã, seu colateral e antigo reitor do Colégio de Olinda (9). Nos primeiros dias de janeiro do ano seguinte, Nóbrega entregou o 71 governo da Província do Brasil ao seu sucessor e partiu para São Vicente, na companhia do terceiro governador geral, Mem de Sá (10). Como era de prever, a orientação imprimida pelo segundo provincial (1559-1571) divergia substancialmente daquela que até então tinha sido delineada pelo fundador da Província do Brasil. Em carta datada de 12 de junho de 1561, redigida na vida de São Vicente, Nóbrega expunha ao padre Diego Laínez (1558-1565), segundo geral da Companhia, as suas divergências de opinião com o novo provincial, relacionadas sobretudo com a posse de bens de raiz e com o uso de escravos: “O Padre Luís da Grã parece querer levar isto por outro espírito muito diferente e quer edificar a gente portuguesa destas partes, por via de pobreza, e converter esta gente da mesma maneira que S. Pedro e os Apóstolos fizeram e como S. Francisco ganhou muitos por penitência e exemplo de pobreza, e esta opinião me persuadia sempre, quando eu tinha o cargo, e ainda agora desejava introduzi-lo quanto fosse possível, e sempre teve escrúpulos, porque é ele muito zelador da santa pobreza, a qual queria ver em não possuirmos nós nada, nem haver granjearias, nem escravos, pois éramos poucos, e sem isso com as esmolas mendigadas nos podíamos sustentar, repartidos por muitas partes e desejava casas pobrezinhas. E isto foi causa que, partindo eu desta Capitania para a Baía, e deixando escravos e escravas entregues a um homem, com mantimentos para os Irmãos, alcançando de mim licença para fazer o que lhe parecesse, se concertou com aquele 72 homem, deixando-lhe tudo, com lhe dar certo mantimento, tirando os escravos muito necessários para o serviço da casa, o qual acabado ficasse a casa sem escravos e sem mantimentos e sem criação, exceto das vacas. O mesmo propósito levara para fazer agora a Baía, onde ficou muito mantimento feito assim para os nossos como para os meninos, e alguns escravos, de que um homem tinha o cargo, porque tem ele por melhor comprar o mantimento, que ter quem o faça. Bem creio que os Padres da Baía lhe irão à mão, senão mudarem sua opinião, conformando-se com a do seu provincial. Também me deixou mandado agora, partindo para a Baía, que eu não mercasse escravos, nem mesmo para trabalhar nas obras do Colégio, que ele deixava mandado que se fizesse, mas que se alugassem, qu e é coisa muito custosa, e requer muita renda, e não há cousa dessa maneira, que baste. Tem também o Padre por grande inconveniente ter muitos escravos, os quais ainda que sejam todos casados, multiplicação tanto, que será cousa vergonhosa para religiosos, multiplicando muito sua geração, além da pouca edificação dos cristãos. Essa razão não me conclui muito, porque como um homem leigo os tem a cargo, sem nós entendermos com eles, por mais inconvenientes tenho ter dous ou três necessários para o serviço da casa, de que a casa tenha cuidado, que ter muitos mais, se nós entendermos com eles, porque todos confessamos não se poder viver sem alguns que busquem a lenha e água, e façam cada dia o pão, que se come, e outros serviços, que não é possível poderem se fazer pelos Irmãos, sobretudo sendo tão 73 poucos, que seria necessário deixar as confissões e tudo o mais. Esta opinião do Padre me fez muito tempo não firmar bem o pé nestas cousas, até que me resolvi e sou de opinião (salva sempre a determinação da santa obediência) de tudo o contrário, e me parece que a Companhia deve ter e adquirir justamente por meios, que as Constituições permitem, quanto puder para nossos Colégios e Casas de Rapazes; e, por muito que tenham, farta pobreza ficará aos que discorrerem por diversas partes. E não devemos de querer que sempre El-Rei nos proveja, que não sabemos quanto isto durará, mas por todas as vias se perpetue a Companhia nestas partes, de tal maneira, que os operários cresçam e não minguem. E até se fosse tanto, não teria por desacertado adquirir-se para Casa de Meninas dos gentios, de que tivessem cargo mulheres virtuosas, com as quais depois casassem estes moços que doutrinássemos. E temo que fosse esta grande invenção do inimigo vestir -se da santa pobreza para impedir a salvação de muitas almas. Estamos em terra tão pobre e miserável, que nada se ganha com ela, porque é a gente tão pobre, que, por mais pobres que sejamos, somos mais ricos que eles. Não é poderosa toda a gente do Brasil a sustentar -nos aos da Companhia de vestido, ainda que seja mais vil que frades de S. Francisco, e se adoece um da Companhia se não tem remédio de Portugal, na terra não há quem lho dê, antes o esperam todos de nós, e não somente gentios, mas também cristãos. Aqui não há 74 trigo, nem vinho, nem azeite, nem vinagre, nem carnes, senão por milagre; o que há pela terra, que é pescado e mantimento de raízes, por muito que se tenha, não deixaremos de ser pobres, e mesmo isto não o temos se não se trabalha, porque nem disto há esmolas, que bastem. Quem aqui há de trabalhar na vinha do Senhor, precisa de sustentar o sujeito, porque os trabalhos são muito maiores que em outras partes, e os mantimentos são muito fracos, e, posto que a caridade e juventude façam não se sentirem tanto, todavia deve-se ter respeito a conservar-lhes a saúde, e é grande perca perder um da Companhia a vida e saúde com que muito se serve Nosso Senhor” (11). Em resposta à exposição de Nóbrega, o padre Diego Laínez aprovou as medidas tomadas pelo primeiro provincial do Brasil e reconheceu a utilidade da Companhia possuir bens de raiz e desenvolver atividades econômicas, designadamente a criação de gado, como forma de assegurar o sustento dos meninos índios e mamelucos do colégios, além dos padres, irmãos e escravos (12). Relativamente à questão dos colégios possuírem escravos, face às divergências existentes, o geral da Companhia, através de carta datada de 25 de março de 1563 e subscrita pelo padre Juan de Polanco delegou ao provincial de Portugal, padre Gonçalo Vaz de Melo (1561-1563), a resolução do assunto, devendo comunicar aos padres Nóbrega e Grã a posição adotada 75 (13). Apesar desta iniciativa, a disputa permaneceu sem solução. A posição adotada pelo geral Laínez foi posta em causa pelo seu sucessor, Francisco de Borja (1565 -1572) que, em cartas datadas de 30 de junho e 22 de setembro de 1567, dirigidas ao visitador da Província do Brasil, padre Inácio de Azevedo (1566-1568), determinou “que se não criasse gado para vender [...] e que vissem no Brasil se era possível passar sem tais encargos” (14). As dificuldades que a aplicação das orientações preconizadas pelo novo geral criariam à manutenção e desenvolvimento das atividades missionárias e educa tivas exercidas pela Companhia de Jesus na Província de Santa Cruz levou à convocação de uma congregação provincial em 1568. O conclave elaborou um postulado em que se reafirmava a necessidade vital dos colégios possuírem fazendas para a criação de gado como forma de garantir a prossecução das tarefas evangelizadoras em terras brasílicas. A assembléia provincial deliberou, ainda, autorizar os superiores dos seus estabelecimentos a adquirirem os escravos necessários, se não houvesse outro meio de garantir o funcionamento das suas atividades. A Província do Brasil incumbiu o visitador In ácio de Azevedo de expor os seus pontos de vista ao geral da Companhia, fazendo-lhe notar os inconvenientes que resultariam da aplicação estrita das suas ordens. Pressionado pelos seus companheiros da Terra de Santa Cruz e pelo parecer de Azevedo, Francisc o de Borja acabou por ceder e dar o seu assentimento para que os 76 colégios brasílicos pudessem ter o gado que fosse necessário para o seu sustento (15). Segundo a opinião do padre José de Anchieta, que desempenhou o cargo de provincial do Brasil entre 1577 e 1587, sem terras e sem criação de gado seria impossível assegurar a subsis tência dos padres da Companhia (16). Em 1576, a congregação provincial decidiu revogar a proibição imposta pelo geral Francisco de Borja dos colégios possuírem escravos índios (1 7). A aquisição de escravos pela Companhia levantava o problema de se saber se a privação da liberdade resultara de guerra justa. Ora, no caso dos negros essa averiguação era impraticável, foi, pois, decidido seguir o parecer da Junta de Burgos que, em 1511, para facilitar e legitimar a entrada de negros na América Espanhola adotou o pressuposto de que “todos os africanos traficados já eram escravos em seus países de origem” (18). Ao serem transportados para outro continente apenas mudavam de senhores. Opinião frontalmente contrária perfilhava o jesuíta Miguel Garcia. Para este sacerdote, nenhum escravo oriundo de África ou do Brasil era justamente cativo, pelo que se recusava a confessar todos os possuidores de escravos, incluindo alguns padres do colégio da Baía. Em carta datada de 26 de janeiro de 1583, Miguel Garcia comunicava ao quinto geral, Cláudio Aquaviva (1581-1615), que a Companhia possuía uma multidão de escravos na Província do Brasil – particularmente no colégio da Baía – circunstância que ele de forma alguma podia aceitar, por 77 não estar profundamente convencido de que tinham sido licitamente capturados. Acrescentava, ainda, que aquele colégio tinha setenta pessoas oriundas da Guiné e um grande número de escravos da terra, entre certos e duvidosos, fato que lhe provocava muitos escrúpulos (19). Outro jesuíta que contestou a escravatura foi o padre Gonçalo Leite, primeiro professor de artes no Brasil. As suas tomadas de posição face aos colonos e aos seus próprios companheiros originaram hostilid ades para com a Companhia, bem como a inquietação no interior das comunidades de jesuítas. A solução encontrara acabou por ser idêntica à adotada no caso do padre Garcia, ou seja, a ordem para regressar à metrópole por inadaptação (20). O melindre desta questão, devido aos casos de consciência que levantava, justificou que sobre ela se debruçassem os teólogos e jurisconsultos jesuítas. Nos finais de Quinhentos, Luís de Molina (1535-1600), antigo professor das universidades de Coimbra e de Évora e uma das glórias intelectuais da Companhia, publicou o primeiro tomo do seu tratado, em seus volumes, De Iustitia et Iure (Veneza, 1594). Nesta obra, o pensador jesuíta ocupa-se, entre outros problemas, da questão da escravatura. Na Disputa 32 do Tratado 2º analisa a legitimidade da instituição, concluindo que a escravidão era lícita e justa se os títulos fossem legítimos, o que era manifesto pela opinião comum dos doutores, pelo Direito Civil e Canônico e também pela Sagrada Escritura. Nas Disputas 34 e 35, pronuncia -se 78 sobre a origem dos escravos (da guerra ou do comércio) bem como sobre a natureza das várias guerras, considerando algumas justas e, por conseguinte, legítimos os escravos delas resultantes, pelo que os mercadores e compradores não tinham obrigação de consciência de se informarem sobre os títulos dos escravos (21). A longa convivência da Igreja com a escravatura, cuja legitimidade – em certas condições – acabou por ser teorizada pelos seus doutores (22); a percepção de que a oposição à introdução de escravos negros no Brasil contribuiria para intensificar as operações de escravização dos índios; a consciência de que a importação de mão-de-obra escrava constituía uma necessidade vital para o funcionamento da economia da colônia e o entendimento de que a sobrevivência das atividades de missionação dependiam do recurso a mão de-obra escrava acabaram por convencer definitivamente a esmagadora maioria dos inacianos e aceitar a utilização de escravos, sobretudo negros, nas suas casas e unidades produtivas, consagrando, por conseguinte, a vitória dos defensores da corrente pragmática, face aos puristas da corrente ascética. Em 1590, devido às diligências desenvolvidas pelo colégio da Bahia, o geral da Companhia autorizou que, além da criação de gado, os colégios pudessem construir engenhos e dedicar-se à produção de açúcar. A opção efetuada pela Companhia de Jesus de se integrar no sistema produtivo da América portuguesa, como forma de financiar autonomamente as suas 79 atividades missionárias e, também, com o objet ivo de assegurar uma estratégia de expansão que garantisse a auto-suficiênca econômica de cada colégio, refletiu -se, naturalmente, no tipo de patrimônio acumulado ao longo de cerca de dois séculos. A partir de doações reais e de contributos dos fiéis, os jesuítas adotaram a política de investir parte significativa das disponibilidades monetárias na aquisição de prédios rústicos e urbanos. A Província do Brasil da Companhia de Jesus acumulou, no decurso de cerca de 210 anos (1549-1759), um imenso, diversificado e lucrativo patrimônio (engenhos, canaviais, fazendas de criação de gado, lavouras de subsistência, prédios rústicos, imóveis urbanos, olarias etc.), tornando-se, sem margem para dúvidas, na “ordem religiosa mais rica do Brasil”. De acordo com os cálculos de um historiador norte-americano, “uma estimativa aproximada da riqueza total dos jesuítas em 1759” aponta para “uma cifra total que passa de mil contos” (24). A título de exemplo, refira -se que, em 1759, somente o “patrimônio do Colégio do recife va lia mais de noventa contos de réis” (25). NOTAS (1) Cf. Serafim Leite, Breve Itinerário para uma Biografia do Padre Manuel da Nóbrega, Fundador da Província do Brasil e da Cidade de São Paulo (1517-1570), Lisboa-Rio de Janeiro, 1955, pp. 110-111. 80 (2) Cartas do Brasil e Mais Escritos do Padre Manuel da Nóbrega (Opera Omnia), introd. e notas históricas e críticas de Serafim Leite, Coimbra, 1955, p. 101. (3) Idem, p. 121. (4) Idem, pp. 121-123. (5) Cf. Idem, p. 122. (6) Cf. Idem, pp. 207-215. (7) Cf. Idem, pp. 260-276. (8) Cf. Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. II, Lisboa-Rio de Janeiro, 1938, p. 348. (9) Cf. Idem, pp. 271-475. (10) Cf. Idem, p. 470. (11) Cartas do Brasil..., pp. 391-394. (12) Cf. Serafim Leite, op. cit., vol. I, p. 176. (13) veja-se a carta do “P. Juan de Polanco por Comissão do P. Geral Diego Laynes ao P. Gonçalo Vaz de Melo, Provincial de Portugal”, pub. in Monumenta Brasiliae, dir. por Serafim Leite, vol. III (1558-1563), Roma, 1958, p. 543. (14) Pub. Por Serafim Leite, op. cit., vol. I, p. 176. (15) Idem, ibidem. (16) Idem, ibidem. (17) Cf. Serafim Leite, op. cit., vol. II, pp. 349-350. (18) Evaristo de Moraes, A Escravidão Africana no Brasil (Das Origens à Extinção), 2ª ed., Brasília, 1986, p. 18. 81 (19) Cit. por Serafim Leite, op. cit., Vol. II, pp. 227-228. (20) Idem, ibidem. (21) Cf. Idem, “A Companhia de Jesus e os Pretos do Brasil”, Brotéria, 68, Lisboa, 1959, pp. 134 -135. (22) Cf. Fernando Cristóvão, A Abolição da Escravatura e a Obra Precursora do Pe. Manuel Ribeiro Rocha, comunicação apresentada à Academia das Ciências de Lisboa em 14 de maio de 1992. (23) Cf. Serafim Leite, op. cit., Vol. I, pp. 147-148. (24) Daril Alden, “Aspectos Econômicos da Expulsão dos Jesuítas do Brasil: Notícia Preliminar”, in Conflito e Continuidade na Sociedade Brasileira, org. de Henry M. Keith e S. F. Edwards, trad. port., São Paulo, 1970, p. 37. (25) Jorge Couto, O Colégio dos Jesuítas do Recife e o Destino do seu Patrimônio (1759-1777), dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, vol. I, Lisboa, 1990, p. 417. (Transcrito de Confronto de Culturas: conquista, resistência, transformação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Expressa e Cultura/Edusp. 1997, págs. 187 -198). 82 ASPECTOS ECONÔMICOS DA EXPULSÃO DOS JESUÍTAS DO BRASIL: Notícia Preliminar (*) Dauril Alden A primeira colônia do Novo Mundo a receber membros da recém-fundada Companhia de Jesus (1540) foi o Brasil, onde o contingente inicial de loyolistas desembarcou em 1549; a primeira colônia do Novo Mundo de onde a companhia foi expulsa, duzentos e dez anos depois, foi também o Brasil. No transcurso desses dois séculos os jesuítas fizeram sentir sua presença na colônia através de uma notável diversidade de apt idões – como destacados missionários e combativos defen sores dos direitos dos índios, como conselheiros das principais autoridades administrativas, como educadores de quase toda a pequena parcela da juventude colonial letrada, como construtores das maiores bibliotecas da colônia, como exploradores dos sertões, e como lingüistas, historiadores, antropólogos, botânicos, farmacêuti cos, médicos, arquitetos e artesãos dos mais diversos tipos. Tais atividades têm sido examinadas por numerosos escritores (1), entre os quais o mais abalizado é Serafim Leite, S. J., autor da monumental e acreditada História da companhia de Jesus no Brasil 83 (2). Espalhadas pelos dez grossos volumes do Padre Leite, encontram-se também referências aos jesuítas como horticultores, criadores de gado, superintendentes de fazendas e administradores de imóveis urbanos. De vez em quando ele ainda fornece informações sobre o valor e a extensão das propriedades da ordem no Brasil. Mas apesar de ter indicado a necessidade de um estudo pormenorizado do papel econômico da Companhia da Colônia (3), o Padre leite não publicou tal trabalho (4), e aqueles que escreveram sobre a história econômica da colônia ignoraram o assunto (5). Talvez o preenchimento dessa importante lacuna em nossos conhecimentos exceda as aptidões e energias de um investigador isolado. Seja como for, tenho em mente um objetivo mais limitado: ver até que ponto a decisão da Coroa de expulsar os jesuítas de seus domínios foi economicamente motivada, e avaliar as conseqüências econômicas daquele ato (6). Quando há vários anos iniciei a minha pesquisa, comecei pelas seguintes indagações: (a) como chegou a Companhia de Jesus a ser grande proprietária de bens urbanos e rurais, incluindo escravos negros, no Brasil? (b) em que medida suas atividades econômicas provocaram queixas da parte dos interesses econômicos concorrentes na colônia e que influência exerceram tais críticas sobre a política da Coroa? (c) qual era a extensão e o valor das propriedades jesuíticas no Brasil no momento do seqüestro? e (d) que destino lhes deu a Coroa após o confisco? É evidente que a busca de respostas a estas e outras questões afins terá de estender-se pelos arquivos 84 brasileiros e portugueses, e muito provavelmente pros seguir também nos repositórios existentes em Roma. Por enquanto, nas seções seguintes apresento os resultados das pesquisas que fiz até agora com relação às três primeiras indagações. I. As fontes da riqueza jesuítica no Brasil Ao tempo de sua expulsão havia 474 jesuítas na Província do Brasil e outros 155 na Vice-província do Maranhão (7). Os padres, seus noviços e seus pupilos indígenas achavam-se largamente espalhados pelas instituições educativas, espirituais, agrícolas, pastoris, recreativas e hospitalares da companhia, que se estendiam do alto Amazonas ao Paraná e Santa Catarina, no sul. Tais instituições abrangiam dezenove colégios, cinco seminários, diversos hospitais, mais de cinqüenta missões (aldeias) e grande número de estabelecimentos de instrução, noviciarias e retiros (8). A construção e manutenção dessas instalações e o cuidado com o bem-estar dos auxiliares naturalmente exigiam recursos substanciais. Esses recursos pro vinham de várias fontes. A princípio contaram os padres com as esmolas dadas pelos colonos fundadores da Bahia, mas tais donativos e as pensões para comida e roupa que a Coroa fornecia não eram suficientes para sustentar as ambiciosas empresas missioneiras e edu cativas dos jesuítas (9). Essas operações fixaram -se num alicerce mais firma em 1550, quando a companh ia 85 recebeu sua primeira doação territorial ( sesmaria) no Brasil (10). Em parte destinava-se essa concessão a ajudar no estabelecimento do primeiro colégio da ordem em Salvador. Em décadas posteriores ao século XVI novos colégios foram fundados no Rio de Ja neiro e em Pernambuco. Estes também receberam sesmarias (11) e foram contemplados com receitas deduzidas dos dízimos. O montante de tais dotações dependia a princípio do número de padres indicados para cada distrito do colégio, mas embora o número de padre s naqueles distritos continuasse a crescer durante os séculos XVII e XVIII, as dotações mantiveram -se inalteradas depois de 1575 (12). Quando a companhia levou as suas atividades à área amazônica no século XVII e criou-se ali uma vice-província, a Coroa também favoreceu as missões setentrionais, embora em escala menor do que o fizera na Província do Brasil (13). Essas concessões territoriais e dotações re presentavam a amplitude da assistência econômica direta da Coroa aos jesuítas (14). Com o correr do tempo, em fins do século XVII pelo menos, a importância dessa ajuda foi em muito ultrapassada pelo nível de beneficência particular e pela quantidade de capital que os jesuítas podiam produzir com o número cada vez maior de suas propriedades. Passados os pri meiros anos de sua chegada no Brasil tornaram-se os jesuítas recipiendários de terras incultas e rebanhos, que lhes foram dados por vultos notáveis como Brás Cubas e Diogo Álvares (mais conhecido pelo nome de Cara86 muru), mas as doações testamentárias de grandes porções de terrenos agrícolas cultivados e imóveis urbanos, incluindo canaviais, criatórios, mansões cita dinas e escritórios comerciais, parecem datar do segun do decênio do século XVII (15). O tamanho desses legados e as condições neles estipuladas variavam muito. Comumente os testadores determinavam que parte dos cabedais transmitidos à Companhia fosse reservada para missas por suas almas e pelas dos seus familiares. Excepcional foi o caso de Domingo Afonso Certão, o célebre co-fundador das pastagens do Piauí, que em seu curiosíssimo testamento mandou que se dissessem cinco missas diárias por sua alma na igreja do colégio de Salvador, mais uma missa semanal cantada na igreja da noviciaria da mesma cidade, “até o fim do mundo” (16). Muitos doadores davam instruções aos padres curadores para que vendessem parte dos bens deixados e pagassem as dívidas do espólio, fizessem a partilha entre os herdeiros e aplicassem o restante em obras pias, tais como donativos anuais aos pobres, missas especiais ou benfeitorias nos templos onde haviam feito suas devoções. Alguns doavam à Companhia dinheiro de contado para ser invertido em empréstimos a juros ou em prédios para alugar. Outros recomendavam que se empregasse a maior parte de seus bens na criação de novos colégios ou de outros tipos de estabelecimentos educacionais. Uns simplesmente deixavam seus haveres para os reitores dos colégios, a quem facultavam o direito de os conservar para a ordem ou deles dispor como melhor lhes aprouvesse. Uma vez que 87 esses testamentos eram de ordinário preparados com a assistência dos próprios jesuítas, eram inevitáveis as acusações de que os padres usavam de coação com os moribundos a fim de assegurar a posse de quinhões particularmente valiosos do patrimônio dos seus benfeitores, mas não seria fácil hoje achar prova convin cente de tais alegações (17). Além das dádivas da Coroa e de particulares, os jesuítas também adquiriam propriedades mediante compras diretas (18). Sempre que possível, ampliavam suas fazendas mais promissoras a fim de garantir acesso a melhor transporte aquático ou a facilidade de irrigação, maior área para plantar cana ou criar gado, e para outros fins. Foi em conseqüência de muitas aquisições, doações e ações judiciais levadas a cabo durante mais de um século que eles conseguiram aumentar a célebre fazenda de Santa Cruz, na Capitania do Rio de Janeiro, até vir ela a medir mais de 100 léguas quadradas e tornar-se o domicílio de mais de mil pessoas, em sua maioria escravos negros (19). Os padres também compravam lotes desaproveitados e casas de um e de muitos andares nas cidades coloniais, na expectativa de suas futuras necessidades de expansão e tendo em vista a renda que daí adviria para as instalações existentes (20). Todas as vezes que determinadas propriedades deixavam de encaixar-se em seus planos, os jesuítas vendiam-nas a outras ordens ou a particulares (21). Os jesuítas utilizavam seus bens de vários modos. Em suas fazendas cultivavam uma ampla variedade de 88 lavouras indígenas e européias. Entre aquelas, as mais importantes eram mandioca, arroz, algodão e tabaco; entre as últimas estava diversos tipos de legumes, frutas cítricas e trigo. A produção destinava-se principalmente ao sustento dos padres e seus pupilos, mas os excedentes eram vendidos a pessoas estranhas à ordem. O mercado primário para a lavoura mais lucrativa dos jesuítas, a cana-de-açúcar, era naturalmente o reino. Embora tivessem começado a cultivar a cana logo depois de terem chegado no Brasil, os jesuítas só adquiriram seu primeiro bangüê em 1604, quando se construiu o engenho Camamu na Bahia em local escolhido pelo Padre Fernão Cardim. O engenho foi destruído pelos holandeses em 1640, mas os padres continuaram a adquirir outros grandes bangüês, por doação (como no caso do famoso Sergipe do Condé) ou por compra (por exemplo, o engenho Pitanga, também na Bahia), até que cada um dos colégios mais importantes pôde retirar parte de sua renda de uma ou mais plantações de cana. Pelos meus cálculos, os jesuítas tinham ao todo dezessete canaviais, cada um equipado com um ou mais engenhos, ao tempo de sua expulsão (22). Essas instalações compreendiam não só moendas e outros maquinismos relacionados com o fabrico de açúcar mas também destilarias de aguardente, forjas, tanoarias, olarias e oficinas de tecelagem, e, em alguns casos, estaleiros aptos para construir embarcações que, quanto ao tamanho, iam desde as canoas amazônicas até às sumacas de navegação marítima. Além das lavouras de subsistência e dos 89 canaviais, cada colégio também possuía muitas faz endas de criação que produziam principalmente leite e gado para o corte, afora cavalos, porcos, ovelhas, cabras e aves de quintal. Ao tempo do confisco havia, por exemplo, 16.580 cabeças de gado na fazenda do colégio ao norte do Rio de Janeiro, um total av aliado em 32.000 cabeças distribuídas por trinta criatórios no Piauí, e mais de 100.000 reses nos sete estabelecimentos da ilha de Marajó (23). As propriedades exploradas pelos próprios jesuítas eram geridas por um ou dois padres que supervisionavam o trabalho dos negros escravos, como acontecia nas lavouras de cana, ou dos índios, como nas fazendas de criação do Amazonas. Dentre as instituições, a Companhia de Jesus era provavelmente a maior proprietária de escravos do Brasil; seguramente possuía o maior número de escravos existentes em uma só fazenda em toda a América colonial. (24). Os jesuítas também davam em arrendamento e de aluguel pastagens e terras de cultivo, embora a renda que percebiam de tais propriedades fosse bem menor do que a auferida dos prédios urbanos (25). Seu maior conjunto de imóveis urbanos localizava-se na cidade de Salvador (Bahia), onde à época da expulsão (1759 -1760) possuíam 186 casas no valor de 162.165.000 réis, que produziam uma renda anual de 10.918.160 réis (26). Uma relação preparada duas décadas antes revela que na cidade do Rio de Janeiro, onde a ordem rinha seu segundo grande conjunto de prédios urbanos (setenta), recebia ela 5.824.280 réis de aluguéis anuais. 90 Contrastando com isso, no mesmo ano os dois colégios de São Paulo possuíam apenas seis propriedades urbanas que lhes davam uma renda anual de 980.000 réis (27). Outro inventário da década de 1740 mostra que os dois colégios de Pernambuco possuíam quarenta prédios urbanos dados em arrendamento que produziam uma receita de 751.000 réis (28). De acordo com os cálculos do Padre leite, as propriedades urbanas da Companhia em Salvador e Recife eram sua mais lucrativa fonte de renda na época do confisco (29). Quando foram expulsos, os jesuítas eram indiscutivelmente a ordem religiosa mais rica do Brasil (30). Além das doações régias e particulares e dos ganhos provenientes da exploração direta e da locação de imóveis rurais e urbanos, provinha aquela riqueza das inversões em empréstimos a juros (sobre os quais não tenho informações) (31), e das vendas das chamadas especiarias amazônicas, que abrangiam cacau, cravo, canela, pimenta, salsaparrilha, matérias corantes e até manteiga de tartaruga. Enquanto não forem concluídas outras pesquisas arquivais, será impossível apresentar mais do que uma estimativa aproximada da riqueza total dos jesuítas em 1759. Os dados de que dispomos, compreendendo inventários de alguns dos maiores engenhos de açúcar dos jesuítas, relações de suas propriedades urbanas mais importantes à época do confisco, e notícias referentes às vendas de algumas dessas propriedades, indicam uma cifra total que passa de 1.000 contos (32). 91 II. Conflitos entre os jesuítas e seus rivais antes de 1722 Considerando as extensas propriedades dos jesuítas no Brasil, os privilégios econômicos de que gozavam de direito ou que se arrogavam (adiante trataremos disso mais detidamente), a especial benevolência com que desde muito eram tratados pelos soberanos de Portugal e pelas altas autoridades da colônia, como os membros da família Sá, e os esforços que faziam constantemente para defender os ameríndios contra os leigos predatórios, não é de surpreender que os padres da Companhia se vissem sob os ataques de determinados grupos de interesses rivais. Tais ataques começaram logo depois que os jesuítas chegaram na colônia. Muito antes de surgirem as questões relacionadas com suas atividades econômicas, os jesuítas opuseram-se aos leigos no tocante ao controle dos índios. Os colonos queriam estes últimos concentrados em aldeias nas proximidades de suas lavouras a fim de os explorar como força de trabalho. Os missionários, desejando proteger os índios contra a exploração e facilitar a iniciação deles nos preceitos do cristianismo, isolavam-nos o mais possível dos colonos e insistiam em servir de intermediários entre os indígenas e os fazendeiros em questões de trabalho e comércio. Nas diretrizes gerais e em legislação especial, a partir de 1570, a Coroa apoiou as tentativas jesuíticas de defender os índios até a década de 1750. Apesar disso, em fins do século XVI os silvícolas tinham sido 92 virtualmente eliminados de muitas partes da costa oriental, destruídos que foram pela escravização e pelo contacto com doenças européias e africanas, ou afugentados para o interior, onde eles e seus primos eram perseguidos pelos missionários e seus rivais (33). A perseguição intensificou-se durante o século XVII, quando os portugueses expandiram suas con quistas ao sul e ao norte. No sul, os bandeirantes paulistas caçadores de escravos internaram-se no sudoeste de São Paulo, e entre 1628 e 1641 invadiram e destruíram dois aldeamentos recém-fundados pelos jesuítas sediados no Paraguai espanhol, e só foram impedidos de praticar novas devastações quando os padres armaram seus pupilos (34). Em 1640, tão logo os jesuítas tornaram público um breve pontifício que condenava todas as formas de escravização dos ame ríndios, a população rebelou-se e expulsou-os da Capitania. E seus irmãos do Rio de Janeiro por pouco não tiveram o mesmo destino (35). Como na mesma época os portugueses avançavam em direção ao Amazonas, a disputa entre os colonos e os padres da Companhia pelos corpos e almas dos índios criou novas tensões entre os jesuítas e seus rivais. O resultado em duas ocasiões (1661-1662 e 1684) foi a expulsão dos loyolistas do Estado do Maranhão. Se da primeira vez a Coroa contentou-se com a reintegração dos padres e a proclamação de um perdão geral aos responsáveis pelo banimento, mostrou-se ela menos clemente da segunda vez, quando três chefes do tumulto 93 foram enforcados e vários outros receberam sentenças menos severas (36). À segunda reintegração dos jesuítas no Estado do Maranhão seguiu-se a adoção de um conjunto de normas (o regimento de 1686) que iria governar as relações entre os loyolistas e as outras ordens atuantes na região amazônica (principalmente os franciscanos, carmelitas e mercedários), os silvícolas e os colonos, pelo espaço de setenta anos. As regras básicas desse documento são dignas de nota, uma vez que se tornaram questões vitais durante a década de 1750, a mais atribulada para os loyolistas. O regimento conferiu aos missionários pode res espirituais, políticos e temporais dentro das aldeias por eles administrados, vedando a entrada a todos os colonos. A cada um dos colégios dos jesuítas em São Luís e Belém coube uma aldeia de trabalhadores indí genas dedicados ao serviço exclusivo do estabele cimento. Além disso, cada residência da Companhia situada a uma distância de trinta léguas ou mais de algum dos colégios, estava autorizada a empregar vinte e cinco índios (mais tarde vinte e cinco famílias, por ter sido assim interpretado o disposto no regimento), nas tarefas da missão. Todos os funcionários públicos, inclusive os governadores reais e os conselhos muni cipais, incumbidos de regular as relações entre o gentio e o colono, tais como o descimento de índios de resgate apanhados no longínquo interior, a distribuição de trabalhadores indígenas e a determinação de seus salários e períodos de serviço, eram obrigados a ouvir os missionários antes de agir (37). 94 Essas normas eram mais favoráveis aos jesuítas do que a qualquer outra ordem religiosa e refletem as relações intimas que existiam entre a Companhia e o governo de Pedro II (1683-1706). Temos outro reflexo disso na renovação em 1684 de um alvará pass ado originalmente no reinado de D. Sebastião (1557 -1578), isentando os jesuítas do pagamento de todos os direitos alfandegários sobre as mercadorias que eles importavam e exportavam do Brasil (38). No curso da mesma déc ada a Coroa mais do que duplicou o estipêndio dos loyolistas designados para o Maranhão, censurou energicamente um governador que perguntou se os jesuítas tinham direito a certas aldeias e fez -lhe ver que o Rei esperava que seus governadores prestassem toda a assistência e proteção possível aos padres, de modo a lhes facilitar os esforços (39). Entretanto, foi durante o reinado de Pedro II e o de seu predecessor imediato, João IV (1640 -1656), que a Coroa começou a levar a sério as queixas coloniais quanto à excessiva riqueza dos jesuítas e de outras ordens religiosas. Essas queixas remontam pelo menos a 1603, quando a câmara de Goa advertiu que se se viesse a perder o Estado da Índia, isto se daria por culpa dos Padres da Companhia [de Jesus], que, com permissão de Vossa Majestade descreveremos e provaremos, têm (...) tão grande receita neste Estado que equivale à metade das receitas do real Tesouro. Eles são senhores absolutos da maior parte desta Ilha, e compram tudo, de sorte que inevitavelmente dentro de dez anos não haverá uma casa ou um bosque de palmeiras que não lhes 95 pertença. Os cidadãos estão sendo despojados de tudo quanto possuem, razão por que este Estado é tão pobre (40). Grifei a última parte dessa queixa porque a alegação de que a propalada prosperidade das ordens, especialmente a dos jesuítas, era responsável pela pobreza e miséria dos súditos do rei, veio a ser um estribilho comuníssimo, embora nunca satisfatoriamente documentado, nos memoriais e mensagens dos adver sários dos jesuítas em épocas posteriores. Umas quatro décadas depois que os vereadores de Goa fizeram essa advertência, a câmara do Rio de Janeiro repeliu os esforços de seu governador, Salvador de Sá, no sentido de persuadir o conselho a votar verbas suplementares para as defesas locais, salientando que a cidade já contribuíra largamente para aquele fim e que os loyolistas “são muito ricos e donos das melhores propriedades desta terra e da metade (2 partes) dos chãos e do gado que há nela” (41). Esse protesto encontrou eco dezesseis anos depois no conselho municipal de Salvador, que lamentou: “As Ordens Religiosas, que nesta capitania possuem muitos bens de raiz e muito engenhos de açúcar, herdades, fazendas, casas, gado e escravos, recusam-se a dar qualquer contribuição para as despesas da guerra [a luta de Portugal para se libertar da Espanha, 1640-1668], de modo que o resto da população está sobrecarregada e os pobres sofrem contínua opressão.” 96 A tais denúncias Francisco Barreto, o prestigioso governador-geral do Estado do Brasil, acrescentou outra quando escreveu à Coroa criticando as ordens religiosas, mormente os jesuítas, por se negarem a pagar os dízi mos de suas numerosas e prósperas propriedades (42). O conflito entre os funcionários da Coroa e cobradores dos dízimos de um lado, e as ordens religiosas, sobretudo os jesuítas, do outro, concernente ao pagamento do dízimo, é familiar aos estudiosos da América colonial espanhola e não deve causar surpresa o ter sido, segundo todas as aparências, interminável no Brasil também (43). Pela bula Super specula (1551), a arrecadação dos dízimos no Brasil cabia aos soberanos de Portugal na qualidade de Grão-Mestres da Ordem de Cristo, a qual era teoricamente responsável pela Igreja colonial (44). No ano seguinte os funcionários da Coroa tentaram pela primeira vez impor o dízimo às propriedades dos jesuítas no Brasil mas foram repelidos pelo padre Manoel da Nóbrega, primeiro Vice Provincial da Companhia no Brasil, que asseverou estar a sua ordem isenta de tais pagamentos (45). Talvez o padre se reportasse à bula Licet debitum de Paulo III (18 de outubro de 1549), o primeiro de muitos rescritos papais de que se socorreriam os jesuítas para justificar a recusa a pagar os dízimos. O que seus defensores jamais esclareceram foi se tal legislação recebeu algum dia a sanção da Coroa, de modo a ser aplicável à Igreja no Brasil (46). O que é indiscutível é que os jesuítas e as outras ordens missionárias do Brasil se negaram pertinazmente 97 a acatar as determinações da Coroa e pagar os dízimos de suas propriedades. Em 1614 Filipe III (1598-1621) notou com desprazer a incapacidade de seus predecessores para infundir nas ordens o dever de contribuir para os fundos dos dízimos, e deu a entender que seu governo estava resolvido a corrigir essa situação (47). No entanto, como já observamos, o Governador-Geral Barreto declarou em 1661 que as ordens continuavam recusando-se a pagar dízimos. Que resposta deu a Coroa a essa queixa não sabemos. Não há dúvida que os governos de Pedro II e João V (1706-1750) envidaram esforços, repetidas vezes, para compelir as ordens a pagarem os dízimos, e ameaçaram privá-las de suas propriedades, excetuando as concessões iniciais para novos colégios, se elas não atendessem. Em 1711 a Coroa decidiu que, para evitar “prejuízos” ulteriores, todas as futuras doações de terras aos colonos conteriam como condição para que fossem aceitas o compromisso de que não seriam mais tarde transferidas à ordens, a não ser com a cláusula de que os possuidores concordariam sempre em pagar os dízimos (48). Os primeiros reis bragantinos também procuraram considerar uma outra queixa de seus colonos, a saber, que as ordens religiosas, especialmente os jesuítas, possuíam terra em demasia. Em 1642, quando o Padre Luís Figueira foi a Lisboa pedir permissão para instalar missões jesuíticas no Amazonas, D. João IV aquiesceu mas “deixou claro que os jesuítas não teriam licença de adquirir bens sem o consentimento da Coroa” (49). Tal condição era em tudo coerente com a legislação real do 98 tempo do Código Afonsino (1446), que proibia rigorosamente as ordens religiosas de adquirir propriedade se não contassem com autorização régia para fazê-lo (50). A inclusão desse princípio nos códigos subse qüentes, nas ordenações manuelinas de 1521 e nas filipinas de 1603, além da promulgação de leis complementares sobre o mesmo assunto, indica que tais preceitos se notabilizavam mais pelas violações que pela observância (51). Em 1690 e novamente em 1711 a Coroa determinou que nem os conventos nem os mosteiros do Brasil “podem ou devem adquirir terras e retê-las, exceto aquelas que lhes foram doadas para sua fundação, por causa das conseqüências perniciosas que resultam de semelhantes aquisições e das desordens [que causam] entre os vassalos daqueles estados [i. e., das capitanias] ...” (52) Sete anos depois, quand o o Conselho Ultramarino ordenou ao governador do Rio de Janeiro que lhe desse informações acerca das propriedades que possuíam na Capitania as três ordens não-mendicantes (beneditinos, carmelitas e jesuítas), o Governador comunicou que os superiores daquelas ordens tinham respondido com evasivas ao pedido de informações, ao mesmo tempo que a câmara do Rio de Janeiro se queixava dos “embaraços” que tais pro priedades causavam à Coroa e seus vassalos, uma vez que tinham sido acumuladas ao arrepio das leis d o reino. O Conselho então admoestou severamente os superiores a cumprirem o que se lhes determinava. O resultado foi possivelmente o primeiro levantamento pormenorizado dos bens possuídos pelas ordens naquela capitania (53). 99 Resta descobrir se se fizeram inventários análogos em outras capitanias na mesma época. A verdade é que isto não parece ter provocado mudança alguma na política do reino. Quatro anos depois, porém, viram-se pela primeira vez os jesuítas diante de um dos seus inimigos mais obstinados e intratáveis, o famoso Paulo da Silva Nunes, porta-voz populista da Amazônia. III. A campanha de Paulo da Silva Nunes contra os jesuítas: 1722-1746 Na Amazônia realizaram os loyolistas alguns de seus maiores feitos e conheceram algumas de suas mais amargas tristezas. Em 1693, quando a Coroa deliberou pôr termo às tradicionais rivalidades entre as quatro ordens religiosas que procuravam levar a fé aos primitivos ameríndios do Amazonas, e com esse intuito repartiu entre elas aquela área imensa, os jesuítas asseguraram a posse do território mais vasto e mais vantajoso (54). Se estavam satisfeitos com aquela adjudicação e com os termos do regimento de 1686, não o estavam com a decisão da Coroa de revogar um estatuto mais antigo e novamente tornar lícita em cert as condições a captura de escravos indígenas. A nova lei de 1688 autorizou as campanhas ofensivas contra índios hostis e pagãos, desde que a natureza dessa hostilidade fosse primeiro confirmada por escrito por missionários franciscanos e jesuítas que deviam acompanhar as expedições de resgates. Por motivos compreensíveis, 100 não quiseram os loyolistas participar de um negócio tão sórdido e parece que tentaram anular a nova lei declinando de tomar parte nos resgates (55). Isso não impediu que escravistas inescrupulosos encontrassem meios de conseguir mão-de-obra cativa, muitas vezes com a conivência de governadores reais (56). Foi após a demissão de um desses governadores, o célebre cronista Bernardo Pereira de Berredo (57), que Paulo da Silva Nunes fez seus primeiros esforços públicos no sentido de banir os jesuítas do Amazonas (58). Levando-se em conta sua importância, é muito pouco o que sabemos do passado de Silva Nunes ou das razões específicas da intensidade do seu ódio aos jesuítas. De origem evidentemente peninsular, ele apareceu no Pará como soldado durante a guerra da sucessão espanhola (1702-1713). Em Belém ligou-se ao círculo do Capitão-general Cristóvão da Costa Freire (1707-1716), ou na qualidade de seu secretário (como ele mesmo dizia) ou de seu barbeiro (como afirmaram mais tarde os jesuítas). Valendo-se de seus contatos palacianos, Silva Nunes tornou-se governador de duas cidadezinhas do baixo Amazonas (Vigia e Icatu), superintendente de fortificações e capitão de uma companhia de milícia colonial. Esta última distinção garantiu-lhe o ingresso na aristocracia local, se assim podemos chamá-la, casando-se Silva Nunes com uma descendente de um dos mais famosos avoengos dessa aristocracia, o guerreiro-explorador seiscentista Pedro Teixeira (59). 101 Quando um desembargador que acompanhou o sucessor de Berredo, João da Maia da Gama (1722 1728), a Belém iniciou uma devassa sobre o tratamento dispensado aos índios cativos, ficou constatada a culpa de numerosos colonos que haviam tomado parte em expedições ilícitas de resgate. Tais acusações produziram intranqüilidade geral em todo o Pará. Pasquins apareceram denunciando os loyolistas, a quem indigita vam como instigadores da devassa, e exigindo que fossem expulsos da capitania (60). Numa sessão do conselho municipal de Belém, Paulo da Silva Nunes leu um enfadonho arrazoado em que defendia os colonos e atacava os jesuítas por terem neutralizado as diretrizes da Coroa concernentes ao suprimento de trabalhadores indígenas para os fazendeiros, por se terem trans formado em senhores absolutos dos aborígenes, e por engajarem-se no comércio das especiarias amazônicas em prejuízo do tesouro real (61). Não se deixando impressionar por essas acusações e persuadido pelo visitador jesuíta de que Silva Nunes era o cabeça do movimento dos colonos contra os loyolistas, Maia da Gama deu ordem para que o detivessem e encarcerassem temporariamente numa fortaleza. Essa medida, que parecia sufocar a agitação, apenas marcou o início da implacável campanha de Silva Nunes visando a desacreditar os jesuítas e bani-los permanentemente do Amazonas. Logo que foi solto, Silva Nunes fugiu para Lisboa levando um longo memorial assinado por paraenses descontentes, que externavam suas queixas contra o 102 Capitão-general e os missionários. Nessa petição, a primeira das muitas que iria preparar no curso das duas décadas seguintes em que serviria de procurador dos colonos residentes no Estado do Maranhãoi, Silva Nunes alegava que os padres eram a fonte de todas as discórdias naquele Estado. Eram os padres acusados de exercer influência ilimitada e despótica sobre os funcionários da Coroa, os colonos brancos e os índios, incitar os escravos negros a abandonarem os senhores e fornecer aos silvícolas as armas de fogo com que estes haviam assassinado moradores brancos. Afirmava Silva Nunes que no interior de algumas das missões os padres mantinham cárceres onde até transgressores brancos tinham sido postos a ferros. Além disso, dizia, as missões e colégios assemelhavam-se mais a enormes alfândegas, onde se realizava escandaloso comércio ilícito, do que a lugares de oração. Pior ainda, os jesuítas eram acusados de estabelecer relações traiçoeiras com os vizinhos de Portugal na região amazônica: holandeses, franceses e espanhóis. O memorial terminava pela inevitável afirmação de que o Estado do Maranhão tinha possibilidade de se tornar extraordinariamente próspero mas estava à beira da ruína econômica e seria destruído se Sua Majestade não ministrasse os remédios imediatos e eficazes. Que remédios tinha em mente o procurador? Primeiro, que se retirasse aos religiosos a faculdade de exercerem autoridade temporal, política ou econômica dento das aldeias. Segundo, que se lhes proibisse continuar a instruir os ameríndios na língua geral, 103 impondo-se-lhes, ao invés, o dever de ensinar português ao gentio (62). Terceiro, que fossem os missionários obrigados a admitir em seus estabelecimentos inspetores encarregados de lhes examinar o comportamento. E quarto, que a Coroa tomasse providências no sentido de enviar cada ano cinqüenta famílias de suas ilhas atlânticas para a região amazônica a fim de povoar os sertões e ajudar no desenvolvimento econômico do território. Mal cegou em Lisboa, Silva Nunes arranjou um aliado importante na pessoa do ex-capitão-general Berredo, que saíra de Belém desacreditado e estava sem dúvida ansioso por denegrir a reputação de seu sucessor. Como Silva Nunes, também ele não era amigo dos jesuítas. Foi Berredo quem convenceu a câmara de Belém a contribuir para as despesas de Silva Nunes, e foi ele quem custeou do próprio bolso a cabala administrativa quando o procurador estava sem recursos (64). Foi ele provavelmente quem abriu portas que de outro modo teriam continuado fechadas para o procurador (65), sobretudo as de pessoas influentes no reino que partilhavam da sua hostilidade aos loyolistas. Dos meados para o fim da década de 1720, Silva Nunes continuou a redigir longos memoriais escorados em citações de autores clássicos, de juristas eruditos como Solérzano Pereira, e da anterior legislação régia, tentando sublinhar a bestialidade dos indígenas e ao mesmo tempo apresentar as motivações dos colonos sob o melhor dos prismas. Sustentava que os selvagens, de quem dizia que talvez fossem descendentes dos judeus, 104 “não eram verdadeiros homens mas brutos arbóreos incapazes de participarem da fé católica”. Eram “selvagens imundos, ferozes, e tão vis” que quase não tinham nada de humanos. E perguntava: “Se os etíopes podem ser feitos cativos, por que não os índios do Maranhão?” Na realidade, assegurava ele à Corte, os brancos não pretendiam, em absoluto, escravizar os índios; desejavam apenas empregá-los nas plantações e engenhos, pagando-lhes salários, alimentando-os, vestindo-os e ensinando-lhes a doutrina cristã e os bons costumes. Sugeria que se nomeassem os cabos brancos casados para substituir os missionários como administradores das aldeias a fim de que, entre outras coisas, pudessem minorar as aflições físicas dos indígenas (66). Durante vários anos parece que os memoriais de Silva Nunes não foram oficialmente levados em consideração, ainda que muitas de suas alegações fossem corroboradas pelos relatórios enviados ao Conselho Ultramarino pelas câmaras do Maranhão e do Rio de Janeiro (67), e por Alexandre de Sousa Freire, Capitão-general do Maranhão (1728-1732), amigo íntimo de Berredo e patrão de Silva Nunes, que lhe representava os interesses na Corte (68). Mas ao fim da década essa massa crescente de críticas aos jesuítas começou a produzir resultados. Um deles foi o anúncio feito pelo Conselho Ultramarino (em 1728) de uma nova lei referente ao descimento de índios do interior. Expedições oficiais (mas não particulares) de resgate foram novamente autorizadas a fim de suprirem os 105 fazendeiros de trabalhadores, mas os índios deveriam continuar livres ao invés de se tornarem escravos (69). Uma carta régia de 1729 também reiterou a insistência da Coroa em que a propriedade originalmente concedida aos particulares não fosse transferida para as ordens religiosas, a menos que tais transferências ressalvassem expressamente o direito da Coroa a cobrar os dízimos. Ainda outra determinação régia desses anos instava com os jesuítas para que apresentassem uma relação dos bens adquiridos por eles no Pará em conseqüência de legados e outros ajustes (70). Diante do visível endurecimento da política da Coroa em relação aos loyolistas, dois vultos preeminentes saíram em defesa deles. Um foi o Padre Jacinto de Carvalho, outrora missionário no Amazonas e mais recentemente confessor de Maia da Gama e Sousa Freire. Em 1729 pegou ele da pena como recémnomeado procurador das missões jesuíticas no Maranhão e redigiu uma prolixa contestação às acusações de Silva Nunes (71). O outro foi o ex-Capitão-general Maia Gama, que em 1730, atendendo à solicitação do Conselho Ultramarino para que desse parecer sobre os memoriais de Silva Nunes, declarou-os totalmente infundados e nascidos do velho ódio pessoal do politiqueiro aos loyolistas (72). Em 1734 a Coroa passou quase toda essa massa de testemunhos conflitantes para as mãos de um magistrado superior, o desembargador Francisco Duarte dos Santos, e mandou-o ao Maranhão verificar até onde eram procedentes as acusações contra os jesuítas e 106 recomendar as modificações que lhe parecessem necessárias nas diretrizes régias concernentes aos índio s e aos missionários (73). Os jesuítas saíram indenes da investigação. Após colher depoimentos orais e escritos durante um ano e empreender viagens a lugares apropriados com o fito de averiguar as alegações e contra-alegações, o desembargador encaminhou um lúcido relatório em que formulou suas conclusões enérgica e inequivocamente. Primeiro: não encontrou prova confirmadoras das queixas contínuas dos colonos, segundo as quais eram obrigados a viver na maior miséria, sem trabalhadores suficientes, por causa das atividades dos missionários. Ressaltou que os colonos possuíam muitas casas suntuosas de construção recente em Belém, que se davam ao luxo de usar roupas feitas de tecidos de boa qualidade importados da França e da Itália, e que muitas de suas propriedades continham de cinqüenta a mais de duzentos escravos, índios em sua maioria, quase todos obviamente não adquiridos pelas vias legais já que não estavam registrados. Segundo: pouco do que havia apurado endossava a afirmação dos colonos de que as campanhas ofensivas contra os indígenas eram necessárias como medida de proteção das propriedades contra as incursões de selvagens turbulentos. Terceiro: estava convencido de que se se pusesse em prática a repisadíssima proposta de Silva Nunes no sentido de se transferir dos missionários para oficiais brancos casados a autoridade temporal, política e econômica sobre as missões, ao cabo de alguns anos “as aldeias seriam apenas uma lembrança”. Por con 107 seguinte, “Sou de opinião que os missionários [con tinuem a] administrar as aldeias em questões tanto espirituais quanto temporais, como no passado.” Quarto: absolveu os jesuítas da acusação de negociarem em larga escala e ilicitamente em produtos coloniais e europeus. Era verdade, admitiu, que suas fazendas eram prósperas, mas as mercadorias por eles produzidas eram utilizadas primordialmente na manutenção das missões, e os excedentes vendidos aos colonos eram mercadejados a pedido destes e a preços antes módicos que escorchantes. Também era verdade que grandes quantidades de especiarias desciam o rio das barcaças dos jesuítas, mas não havia razão para os colonos não poderem emular os missionários na extração dos recursos das florestas exceto o preferirem encher as canoas com carregamentos ilegais de escravos indí genas. Por outro lado – e esta foi a segunda recomendação importante do magistrado – não era favorável ao continuado engajamento dos missionários em atividades comerciais, presumivelmente porque se dava conta de ser este o principal motivo de queixa dos colonos contra eles, e portanto aconselhava firmemente a Coroa a dar suficiente apoio financeiro aos mis sionários para que estes pudessem abandonar suas operações comerciais (74). A reação do Conselho Ultramarino ao relatório do desembargador foi ambígua. Implicitamente, pelo menos, seguiu-lhe a recomendação de que não se modificasse a autoridade dos missionários sobre suas aldeias. Mas a conselho dos funcionários do tesouro, 108 votou contra a proposta de aumento do auxílio financeiro da Coroa às missões (75). No momento mesmo em que o desembargador rejeitava muitas das denúncias de Paulo da Silva Nunes, qualificando-as de meras “fantasias”, aquele implacável jesuitófobo redigia novos memoriais. Em 1734, pre cisamente o ano em que o real investigador foi mandado a Belém, Silva Nunes compôs mais uma diatribe contra os jesuítas, na qual remoeu velhas acusações e acrescentou outras novas. Entre as últimas figurava a afirmação de existir, contra os direitos da Coroa e dos colonos, uma conspiração jesuítica que se estendia às próprias salas do Conselho Ultramarino, onde a Companhia vivia a tecer intrigas contra as autoridades coloniais que se opunham às suas atividades. Também preveniu que os jesuítas continuavam a afrontar as ordens da Coroa, recusando-se a ensinar aos catecúmenos a língua portuguesa e a pagar os dízimos de suas propriedades, com grande prejuízo para o comércio lícito. Por motivos não conhecidos, quando entregou esse memorial ao Conselho Ultramarino em 1735, Silva Nunes moderou o tom e abreviou o tamanho. Mas ao mesmo tempo adicionou um apêndice em que enumerava as propriedades e as alegadas rendas das ordens religiosas que atuavam no Amazonas. Três anos depois o infatigável peticionário escreveu sua suma final contra os loyolistas, simplesmente repetindo a ntigas afirmações. Então, carregado de dívidas e abandonado pelos amigos, foi parar na cadeia, de onde saiu oito anos depois (1746) para ser enterrado (76). 109 Seria fácil menosprezar Paulo da Silva Nunes, tachá-lo de maníaco e fracassado, mas julgá-lo desse modo seria subestimar grosseiramente a sua impor tância. Ele era indiscutivelmente um homem inteligente, embora mal orientado, mas não se pode saber agora até que ponto o material informativo que acompanhava seus memoriais era fruto de pesquisas pessoais ou contribuição de pessoas desconhecidas para quem ele servia de porta-voz. É verdade que Silva Nunes não viveu o suficiente para ver atingida sua meta principal, mas sua influência, imediata e a longo prazo, não foi de maneira alguma insignificante. Embora não se possa estabelecer a esta altura um nexo causal direto, não é improvável que seus últimos memoriais tenham influído sobre a decisão da Coroa de reavivar a questão do dízimo com as ordens religiosas em fins da década de 1720 e novamente na de 1730 (77). Nem é improvável que tenham instigado a Coroa a determinar no princípio da década de 1740 que as autoridades coloniais investigassem o montante dos bens que as ordens possuíam no Brasil e que infringiam as ordenações do reino (78). É verdade que essas medidas não redundaram em mudança relevantes na política régia em toda a década de 1740, mas elas e os memoriais que Silva Nunes escreveu ajudaram a preparar o caminho para os golpes decisivos que desabaram sobre a Companhia de Jesus no decurso do fatal decênio de 1750. Foi então que as autoridades maiores do reino repetiram Silva Nunes com aprovação, e foi no meado daquela década decisiva que o governo português reuniu e publicou a 110 última série dos memoriais sob o título de Terribilidades jesuíticas no governo d’el-rei d. João V (Lisboa, 1755) (79). Assim, no fim de contas, parafraseando o Prof. Boxer, as venenosas sementes que Paulo da Silva Nunes plantara nas décadas de 1720 e 1730 produziram frutos amargos para os loyolistas (80). IV. O clímax da jesuitofobia portuguesa: a funesta década de 50 A catastrófica série de acontecimentos da década de 1750, cujo ponto culminante foi a decisão do governo português de expulsar a Companhia de Jesus de todos os seus domínios, deve ser estudada em três – muito provavelmente quatro – teatros: as terras das missões do que veio a ser o Estado do Rio Grande do Sul, o Estado do Maranhão, o reino e presumivelmente Roma também. Aqui só disponho de espaço para examinar em detalhe a segunda dessas loci contentiones. As tribulações dos jesuítas nessa década decisiva começaram quando da assinatura do Tratado de Limites (1750) entre Espanha e Portugal. Esse acordo, que substituiu o antigo e impraticável Tratado de Torde silhas (1494), visava a pôr fim às seculares disputas territoriais entre as duas potências ibéricas na América do Sul. Uma de suas cláusulas fundamentais exigia a permuta do entreposto de contrabando português da Colônia do Sacramento pelas terras das chamadas Sete Missões situadas a leste do rio Uruguai na região 111 ocidental do Rio Grande do Sul. Essas missões, e as florescentes fazendas de criação de gado ligadas a elas, tinham sido mantidas desde os começos do século pelos chamados jesuítas espanhóis para a manutenção dos seus catecúmenos guaranis. Por motivos compreensíveis, esses loyolistas não desejavam abandonar um campo tão promissor e usaram de todos os meios a seu alcance para persuadir as autoridades espanholas a que não cum prissem as condições da permuta estipulada. Mas foi tudo inútil. No começo de 1753, quando uma comissão mista ibérica da inspeção chegou à fazenda de Santa Tecla, viu-se impedida de prosseguir por um grupo de guerreiros guaranis armados e foi obrigada a voltar. Como as negociações subseqüentes não lograram convencer os índios a cessarem a resistência, foi esta rompida pela força após uma decepcionante campanha de dois anos (1754-1756) em que os soldados espanhóis e portugueses, normalmente inconciliáveis, lutaram juntos contra as tropas heterogêneas dos guerreiros guaranis cujo defesa – disso se convenceram os europeus – era organizada e dirigida pelos jesuítas (81). Embora os loyolistas da Província do Brasil e da Vice-Província do Maranhão não estivessem diretamente envolvidos na guerra, a oposição da ordem ao tratado de 1750 e seu propalado papel na guerra guaranítica bastaram para lançar suspeitas sobre os intuitos de todos os jesuítas domiciliados em terras portuguesas e serviram para dar crédito às alegações que um de seus mais terríveis antagonistas, Francisco Xavier de 112 Mendonça Furtado, apresentou contra eles. Sendo um dos dois irmãos mais moços de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês de Pombal, Mendonça Furtado foi enviado a Belém em 1751 com dois encargos: servir como o principal membro português da comissão mista de demarcação da fronteira setentrional e ocupar os postos de Governador e Capitão-general do Estado do Maranhão. Ex-oficial de marinha, Mendonça Furtado era autoritário, impetuoso, cru, violento de gênio, ambicioso, ainda que intei ramente leal ao irmão mais velho, piedoso à moda do Velho Testamento, simplório mas desconfiado dos intuitos de toda a gente, em particular daqueles que tinha na conta de inferiores e que sustentavam opiniões contrárias à sua; era portanto totalmente inflexível (8 2). Mendonça Furtado chegou a seu posto em setembro de 1751, cerca de um ano depois que seu irmão mais velho assumiu a chefia do gabinete e deu início ao domínio de vinte e sete anos sobre Portugal. Se a missão primordial de Mendonça Furtado no Brasil era auxiliar o irmão na destruição da Companhia de Jesus, é um ponto ainda discutido. Os que negam a existência dessa conspiração dos dois irmãos ressaltam que as instruções do Capitão-general falavam favoravelmente do tratamento caridoso dispensado aos índios pelos jesuítas (83). Mas devem também levar em consideração dois dos chamados artigos secretos daquelas instruções, os quais, apesar de não mencionarem explicitamente os jesuítas, foram escritos evidentemente com o pensamento voltado antes de tudo para eles. O artigo 13 113 avisava que se os regulares, termo que os autores portugueses da época usavam frequentemente como sinônimo de jesuítas, fizessem oposição às diretrizes da Coroa, caberia informá-los de que o Rei esperava que fossem eles os primeiros a obedecer a essas ordens, em especial “porque as fazendas que possuem são inteiramente ou pela maior parte contrárias à (...) lei do reino”, e que o Rei poderia aplicar tal legislação se as sociedades religiosas continuassem a ser negligentes ou insubordinadas. O artigo 14 era igualmente ameaçador: Como à minha real notícia tem chegado o ex cessivo poder que tem nesse Estado os eclesiá sticos, principalmente no domínio temporal nas suas aldeias, tomareis as informações necessárias, aconselhando -vos com o bispo do Pará, que vos instrua com a verdade (84) (...) para me informardes se será mais conveniente ficarem os eclesiásticos somente com o domínio espiritual, dando-se côngruas por conta da minha real fazenda, para cujo fim deve-se considerar o haver quem cultive as mesmas terras, de que fareis todo o exame para um informardes, averiguando também a verdade do fato a respeito do (...) poder excessivo e grandes cabedais dos regulares; em tudo isso deveis proceder com grande cautela, circunspecção e prudência (85). Qualquer que tenha sido no passado a pre disposição do novo Capitão-general em relação aos jesuítas (86), aquelas instruções, que reacenderam muitos dos debates travados durante o reinado precedente acerca 114 das atividades dos loyolistas, decerto condici onaram a atitude tornou-se evidente quando Mendonça Furtado anotou algumas de suas primeiras impressões sobre as condições do Estado, menos de dois meses depois de lá ter chegado. As terras eram muito ricas, escreveu ao irmão, e um dos seus recursos mais importantes eram os índios, em suas maioria inteligentes e dóceis, mas horrivelmente maltratados pelos missionários, que exerciam completo domínio sobre eles, não só sobre os que viviam dentro do recinto das missões, mas também sobre “toda aquela infinidade de infelizes que nasceram nestes sertões”. As aldeias, prosseguia ele, eram praticamente repúblicas isoladas. Dentro delas o nome do rei era desconhecido e o mesmo se podia dizer da língua portuguesa; dentro delas os índios gozavam escandalosamente da liberdade de associar em seu espírito o panteão de seus próprios deuses com o Deus e os santos cristãos; dentro delas os missionários empunhavam despoticamente o açoite, do qual não havia apelação salvo para seus próprios superiores, que até arranjavam os casamentos dos silvícolas e os vendiam para a escravidão. Em virtude do controle dos missionários sobre a vida dos índios e de sua recusa a pagar os impostos devidos por todos os colonos, continuava ele, os religiosos estavam mono polizando o lucrativo comércio de especiarias do interior e dominavam os mercados de peixe e carne das cidades. Além disso, os conventos eram verdadeiras fábricas, produzindo toda sorte de mercadorias para os de fora assim como para seus próprios estabelecimentos, e os 115 lucros auferidos eram depositados em caixas-fortes ao invés de circularem no Estado. A conclusão do Capitão general era inevitável: as atividades econômicas dos missionários, mormente dos jesuítas, prejudicavam seriamente o Estado e arruinavam os colonos, que se viam reduzidos aos “derradeiros estágios de pobreza e miséria” (87). Paulo da Silva Nunes, cujos memoriais Mendonça Furtado citou com aprovação mais de uma vez (88), não poderia ter defendido melhor a causa. Mas havia uma diferença enorme entre a dose de influência que aquele politiqueiro obscuro, exilado e manifestamente imbuído de preconceitos podia pôr em ação, e a de um dos funcionários coloniais mais categorizados de Sua Majestade, cujas impressões eram novas e tidas na conta de objetivas, e cujas mensagens eram dirigidas aos ministros das colônias e ao primeiro-ministro de facto de Portugal, que era seu irmão. Em todo o início da década de 1750 Mendonça Furtado, expoente pré-actoniano (Relativo ao Barão de Acton, John Emerich Edward Dalberg-Acton (18341902), historiador inglês) da sentença que diz que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe de modo absoluto”, continuou a desancar os jesuítas, que, insistia ele, haviam destruído a antiga prosperidade do Estado (89) e o impediam de recuperar-se. Consideravam-se, acrescentava, “soberanos e independentes” de toda autoridade régia. No interior de seus definitórios decidiam que leis atendiam melhor aos seus interesses e deviam ser cumpridas, e que outras lhes eram pre 116 judiciais e deviam ser desconsideradas, embora estivessem sempre prontos a defender a rigorosa aplicação da legislação que restringia as oportunidades dos colonos. O comportamento dos eclesiásticos não era verdadeiramente religioso, pois a religião se tornara um simples pretexto para eles, “como é na maioria das nações do Norte”. Isso não acontecia só aos jesuítas, dizia ele, mas a todos os que lhes seguiam o exemplo, franciscanos (Capuchos), mercedários e carmelitas, que na América haviam perdido aquele senso de dedicação espiritual que os distinguira no reino e adquirido uma mentalidade mercenária, que os fazia ciosos de privilégios e rebelados contra os oficiais do rei. Insistiu em que fossem removidos do Amazonas os missionários mais “arrogantes e incômodos” e que os superiores em Lisboa fossem avisados das escandalosas atividades comerciais de seus subordinados (90). Em fevereiro de 1754 Mendonça Furtado fez importantes recomendações concernentes à futura con dição dos jesuítas na Região Amazônica. Para atender a um pedido de informações do Conselho Ultramarino acerca do rendimento e do valor dos bens dos jesuítas, realizou uma inspeção pessoal nas vizinhanças da capital, pretextando “simples curiosidade e diversão”. Baseado nesse passeio encaminhou um relatório geral em que descreveu os tipos de atividades a que se entregava cada fazenda, e declarou, sem dar nenhuma prova específica, que todas eram prósperas (91). Depois voltou-se para a questão apresentada pelo artigo 14 de suas instruções, isto é, se as propriedades dos 117 missionários deviam continuar nas mãos deles ou ser encampadas pela Coroa em troca de subsídios fornecidos pelo rei. Sem vacilar, Mendonça Furtado afirmou que a Coroa devia assumir o controle das propriedades e passou a explicar por que. Primeiro: tal providência aplicaria um sério golpe nas pretensões da “mais poderosa inimiga do Estado”, ou seja, a Companhia de Jesus. Segundo: nas mãos dos vassalos do rei aquelas propriedades renderiam muito mais do que o preço dos subsídios, uma vez que os novos donos pagariam os dízimos e os direitos alfandegários. Terceiro: o “grande número” de escravos indígenas que os jesuítas empregavam no cultivo das terras ficaria em liberdade, e seus escravos negros poderiam ser leiloados com grande proveito para Sua Majestade. Quarto: os jesuítas seriam portanto “convertidos de administradores de fazendas em missionários e conquistadores de almas”, raison d’être de sua presença na colônia. O Capitão-general fez ainda suas outras recomendações: primeira, que o número de missionários indicad os para cada colégio ou mosteiro fosse limitado de acordo com o montante de subsídios que o Rei pudesse conceder; segundo, que, privados os jesuítas de suas fazendas, ser lhes-ia “totalmente inútil e infrutífero” continuar a reter a autoridade temporal sobre as missões. E não podendo contar com os trabalhadores indígenas, deixariam de ser “senhores de todas as preciosas especiarias do sertão”. Em suma, escreveu ele, ou Sua Majestade queria restabelecer a prosperidade do Estado, ou devia consentir que este permanecesse na ruinosa situação em 118 que se encontrava. Se o Rei pretendia alcançar o primeiro objetivo, ele, Mendonça Furtado, estava con vencido de que suas propostas ofereciam o melhor meio de fazê-lo (92). Logo após concluir essa importante mensagem, Mendonça Furtado iniciou sua árdua, exasperadora e decepcionante subida do Amazonas até o Rio negro, onde esperava encontrar o delegado espanhol da demarcação a fim de superintender os primeiros passos do traçado da nova linha divisória entre os dois impérios no norte. Enquanto aguardava em vão a chegada dos espanhóis, o Capitão-general visitou diversas missões jesuíticas e meteu-se em inúmeras polêmicas com os loyolistas sobre a quantidade de rações e os contingentes de índios que eles lhe forneciam (93). A escassez de umas e outros, e mais os inexplicáveis atrasos dos espanhóis, os testemunhos não confirmados que os antigos empregados dos loyolistas prestaram contra os padres, os periódicos acessos de doença do próprio Capitão-general e as notícias vindas de Lisboa a respeito das dificuldades que a comissão da fronteira meridional vinha tendo com os guarani, tudo isso serviu para convencer Mendonça Furtado que a Companhia de Jesus estava empenhada numa vasta conspiração em todo o continente, visando a impedir que as potências ibéricas pusessem em execução o Tratado de Madri (94). De bom grado, escreveu ele, trocaria de lugar com Gomes Freire de Andrada, o alto comissário português no sul, pois pelo menos os adversários deste eram visíveis e não lhe faltavam meios de os derrotar, ao passo que os seus próprios inimigos se 119 ocultavam e lhe moviam a “guerra mais cruel que se possa imaginar” (95). Foi numa dessas visitas ao acampamento do “inimigo” que o Capitão-general ficou ainda mais convencido da baixeza e dos traiçoeiros intuitos dos jesuítas que atuavam no Amazonas. Em outubro de 1755 dirigiu-se ele à aldeia de Trocano à margem do rio Madeira a fim de presidir à sua reintegração como vila portuguesa, rebatizada com o nome de Borba a Nova (96). Ao entrar numa grande habitação coberta de palha, que servia de residência do padre encarregado da aldeia e de capela da missão, a primeira coisa a lhe atrair a atenção foi o altar com as Sagradas Escrituras em cima. E a menos de um metro (vara) estava uma balança grande, do tipo que os jesuítas usavam para pesar as especiarias compradas aos índios que moravam fora da missão. A chocante justaposição desses dois objetos lembrou ao Capitão-general a cena em que Jesus expulsou os cambistas do templo (97). Que melhor prova era necessária para mostrar como se tinham tornado mercenários os loyolistas? E enquanto se encontrava na mesma missão assistiu Mendonça Furtado a uma alarmante demons tração da potência de fogo dos jesuítas. Décadas antes o Capitão-general Maia da Gama autorizara os loyolistas a montarem dois canhões de pequeno calibre na missão a fim de afugentar os grupos de índios selvagens que faziam incursões à aldeia. Os padres alemães que viviam na missão quando Mendonça Furtado lá esteve, ambos descritos mais tarde por Carvalho como “engenheiros 120 disfarçados”, estavam muito orgulhosos de sua artilharia e descarregaram-na em várias ocasiões festivas durante a estada do Capitão-general. Associado às notícias da artilharia jesuítica no Paraguai, isto provou a Mendonça Furtado – e a seu irmão – que os loyolistas constituíam uma ameaça armada (98). Por sua audácia, os padres Anselmo Eckart e Antônio Maisterburg figuraram entre os vinte e um jesuítas que por “crimes” análogos foram expulsos do Estado do Maranhão em 1757 e 1758 e encarcerados pelas duas décadas seguintes nas prisões do reino (99). Em dezembro de 1756 Francisco Xavier de Mendonça Furtado regressou a Belém, depois de perder a esperança de se reunir com o delegado espanhol da comissão demarcadora e tendo assuntos urgentes que reclamavam sua presença na capital (100). Dentre esses assuntos, os mais importantes diziam respeito à execução de duas leis novas que, ligadas à recente criação da companhia régia de monopólio para o de senvolvimento econômico do Maranhão e do Pará (1775), traziam sérias ameaças ao futuro econômico dos jesuítas na região amazônica. A primeira foi a chamada lei das liberdades dos índios, que determinou a aplicação da bula Immensa pastorum (1741), de há muito negligenciada, em que Benedito XIV categoricamente condenou a escravização dos índios por seculares ou eclesiásticos, “inclusive jesuítas”, sob quaisquer pretextos (101). A segunda aboliu o poder temporal dos missionários sobre os índios no Estado do maranhão e ordenou a conversão das aldeia s em comu121 nidades civis (102), adotando assim uma antiga proposta de Paulo da Silva Nunes e uma mais recentemente apresentada por Mendonça Furtado, como Carvalho prontamente reconheceu (103). Essas duas importantes leis atingiram naturalmente todas as ordens atuantes na região amazônica, mas eram dirigidas primariamente contra os loyolistas, e, prevendo a oposição dos padres da Companhia, Carvalho aconselhou o irmão a con servar em segredo os textos até achar um momento propício para os divulgar (104). No começo de fevereiro de 1757, pouco depois do regresso à capital, Mendonça Furtado convocou uma reunião especial da junta das missões, no curso da qual revelou o teor da lei de 7 de junho de 1755, que secularizou as aldeias (105). Embora reagissem à de cisão da Coroa com aparente equanimidade, logo se viram os jesuítas embrulhados numa série de con trovérsias que exacerbaram mais ainda as relações entre eles e os agentes da Coroa e que redundaram finalmente no confisco de seus bens no Estado do Maranhão e em outras partes da colônia. Uma daquelas controvérsias surgiu em outra reunião da junta das missões, realizada ainda em fevereiro, quando Dom Frei Miguel de Bulhões, bispo do Pará, inopinadamente exigiu que todos os missionários que continuavam a viver nas antigas aldeias se submetessem dali por diante ao seu controle. O problema da inspeção episcopal com relação aos membros do ramo regular do clero era velho no Brasil, como o era na América espanhola (106), e o fato de Bulhões ter decidido insistir na questão nesse 122 momento dá a entender que ele sabia que semelhante poder fora concedido aos bispos de Goa desde 1731, e pressentia que naquele estado de espírito a Coroa estava disposta a lhe dar todo o apoio no Maranhão. Os chefes de três das ordens religiosas devem ter percebido isso também, pois, apesar de relutantes, cederam à insis tência do Bispo, mas o Vice-provincial dos jesuítas respondeu, como sempre haviam feito seus predecessores em casos análogos, que seria contrário aos Institutos da Companhia aceitar a supervisão episcopal. Em vez disso, propôs que os loyolistas que continuavam a atender às necessidades espirituais dos índios nas antigas aldeias fossem considerados como coadjuvantes do Bispo mas permanecessem livres de seu controle (107). Tal solução, porém, era inaceitável para Bulhões, e a controvérsia prosseguiu a fogo lento até a expulsão definitiva. Outras disputas entre os loyolistas e seus adversários diziam respeito às questões econômicas. Em abril de 1757 o Vice-provincial endereçou uma petição ao Capitão-general solicitando que fosse permitido aos loyolistas continuarem a trazer especiarias do interior a fim de saldar as dívidas das aldeias para com os colégios ou, se tal não fosse possível, que a Coroa tomasse outra providência para liquidar aquelas obrigações. Pediu licença também para que os jesuítas continuassem a utilizar os escravos indígenas a que tinham sido legalmente autorizados antes da nova lei que aboliu a escravidão dos silvícolas. O Capitão general indeferiu rudemente esses pedidos, alegando que 123 os jesuítas não tinham débitos legítimos a receber no Estado e que apenas desejavam continuar a monopolizar o comércio, explorar os índios e sobrecarregar o tesouro régio (108). Diante dessa recusa, os loyolistas, instruídos pelo Vice-provincial, começaram a retirar das aldeias os objetos religiosos, o gado, as canoas e outros artigos. Alguns foram vendidos; outros foram armazenados nos colégios e residências. Quando soube da ordem do Vice provincial, o Capitão-general ficou furioso, pois sustentava que todos os bens das missões pertenciam em verdade às novas comunidades e que a remoção deles era mais uma demonstração da arrogância, da conduta despótica e da determinação dos jesuítas de desacatar a vontade da Coroa (109). Como os jesuítas insistissem em que os artigos retirados eram bens industriais com que haviam contribuído para a organização das aldeias e que de direito lhes pertenciam, Mendonça Furtado exasperou-se ao ponto de redigir um extenso documento, contendo cem parágrafos numerados, em que formulou uma crítica geral às atividades econômicas dos loyolistas no Estado do Maranhão (110). Declarou em primeiro lugar que as atividades comerciais dos padres eram contrárias ao direito canônico e portanto ilegais; os bens consignados às missões em conseqüência de tais atividades não podiam, por conseguinte, pertencer à Companhia e, uma vez que foram adquiridos à custa da exploração dos índios, a estes pertenciam legiti mamente. Em segundo lugar, afirmou que tal comércio nunca fora necessário para auxiliar a missão espiritual 124 da Companhia. A seguir examinou a alegação dos jesuítas, segundo a qual as antigas aldeias estavam carregadas de dívidas para com os colégios, e asseverou que tais obrigações foram artificiosamente inventadas. A Companhia não podia absolutamente estar endividada, afirmou, porque era coisa sabida de todos que o colégio de Belém possuía “grandes almoxarifados” em que os padres armazenavam os produtos do vasto comércio que mantinham ilicitamente no interior com tribos selva gens e até com povoados espanhóis. E era também do conhecimento geral, prosseguiu, que as fazendas dos jesuítas continham amplas oficinas onde os artífices trabalhavam continuamente, dia e noite, domingo e até dias santos, produzindo artigos que eram vendi dos à comunidade acima do dobro dos preços cobrados em Lisboa por mercadorias similares. Em comparação com os imensos lucros que os loyolistas auferiam dessas empresas, concluiu o Capitão-general suas despesas eram bastante modestas. Foi um documento impressionante, quer tenha sido preparado de conformidade com instruções vindas de Lisboa, quer tenha sido feito por iniciativa do próprio Capitão-general e com a assistência de alguém que não conhecemos. Convém assinalar que, embora tenha reforçado suas razões com citações do direito canônico, das coletâneas de editos papais e até da Política indiana de Solórzano y Pereira, deixou Mendonça Furtado de fornecer o tipo específico de dados estatísticos indispensáveis para tornar convincentes as suas asserções. Não importa; as autoridades de Lisboa foram persuadidas pela lógica da 125 argumentação e em julho de 1757 decretaram a expulsão dos jesuítas dos sertões amazônicos (111). Restava definir o destino das fazendas dos jesuítas na ilha de Marajó e no continente fron teiro. Em junho de 1757 manifestou-se o Capitão-general sobre uma proposta feita pela Coroa um ano antes no sentido de despojar as ordens religiosas do excedente de suas propriedades, embora se lhes permitisse reter algumas das fazendas para a sua manutenção, desde que concordassem em pagar prontamente os dízimos de tais bens. Coerente com os pontos de vista que havia ex ternado três anos antes, Mendonça Furtado pronunciou -se energicamente contra a adoção do plano, entre outras razões porque estava convencido de que as ordens logo tratariam de expandir as posses e solicitar novas dispensas das restrições impostas pela Coroa, e assim “dentro de alguns anos ver-nos-íamos novamente diante do mesmo mal que desejamos evitar”, a saber, o domínio da economia do Estado pelos religiosos. Voltou a argumentar que seria muito melhor seqüestrar todos os bens das ordens, reduzir o número de seus membros no Maranhão e pagar-lhes estipêndios do tesouro. Então eles deixariam de ser mercadores públicos e tornar -seiam, em vez disso, chefes espirituais. Como já o fizera em 1754, Mendonça Furtado previu que nas mãos de se culares as propriedades confiscadas contribuiriam deci sivamente para o aumento da prosperidade do Estado e portanto para o aumento das receitas da Coroa (11 2). Antes que a Coroa tivesse tempo de considerar essas reflexões, Dom Francisco volveu a atenção para a 126 irritante questão do dízimo. Já em 1751 frisara que tendo os carmelitas concordado em pagar ao donatário da ilha de Marajó a redízima (i.e., uma cota feudal equivalente a 1% do dízimo devido por um determinado trato de terra), não podiam logicamente esquivar -se ao pagamento dos dízimos. Observou que três ordens, mercedários, jesuítas e carmelitas, possuíam enormes rebanhos na ilha e de fossem obrigadas a pagar o dízimo de tais animais, as receitas seriam substanciais (113). Em 1756, enquanto Mendonça Furtado estava ainda no Amazonas, a Coroa deu instruções ao Bispo Bulhões, que o substituía temporariamente, para que investigasse os numerosos roubos de gado selvagem (gado do vento) na ilha, lembrando-lhe que de acordo com um edito real de 1728 todo esse gado pertencia à Coroa. Assim, o bispo publicou um bando nesse sentido e nomeou um rendeyro do vento para arrebanhar o gado. Esta providência atingiu especialmente as ordens religiosas, que eram as principais donas de fazendas da ilha, e em 1757 todas, à exceção dos jesuítas, apresentaram uma contraproposta. Reconhecendo que o gado do vento pertencia ao rei, pediram permissão para continuar a explorar esses animais, prometendo em troca pagar um dízimo extraordinário no valor de 14%, mais um terço dos couros de bois selvagens que fossem abatidos. A princípio os jesuítas recusaram associar -se a essa proposta, mas depois cederam, e, em outubro daquele ano, Mendonça Furtado relatou com evidente satisfação a assinatura do acordo (114). Em agosto do ano seguinte o ministro das 127 colônias aprovou esse acordo. Mas ao mesmo tempo determinou que fosse exigida dos “cúpidos” jesuítas a apresentação de provas de propriedade das fazendas que ocupavam em Marajó, e também das licenças régias que os isentavam das antigas ordenações que proibiam à Igreja possuir propriedade fundiária. Se não apresen tassem tais licenças, disse o ministro, seriam confiscados os bens (115). Agindo de acordo com essa diretriz, o Capitão-general criou uma junta especial, da qual, além dele, faziam parte seu sucessor, o bispo, e três magistrados, e exigiu que os jesuítas exibissem documentos comprovadores de que possuíam suas fazendas legitimamente e com o consentimento régio. Ao examinar os papéis fornecidos pelos loyolistas, a junta não encontrou as necessárias isenções, e em fe vereiro de 1759 foram as fazendas confiscadas junta mente com mais de 130.000, de gado (116). Duas semanas depois, em 3 de março, Francisco Xavier de Mendonça Furtado passou a um sucessor as responsabilidades do cargo e preparou-se para regressar à pátria, onde seria recompensado por seus serviços no Brasil com a nomeação para a chefia do ministério das colônias, posto que ocupou até morrer em 1769. Se durante seus últimos dias no Pará, Dom Francisco recapitulou mentalmente o que conseguira realizar no curso daqueles momentosos sete anos e meio, não se sabe; se chegou a fazê-lo, há de ter ficado satisfeito com essas meditações. Fossem quais fossem as outras proezas que podiam tê-lo impressionado, ele certamente se deu conta de haver desempenhado importante papel 128 na tarefa de convencer as mais altas autoridades régias, sobretudo seu irmão, que em breve seria Conde de Oeiras, de que os jesuítas não eram mais úteis à Coroa e se tinham transformado em séria ameaça a ela. Foi em boa parte graças a seus informes tendenciosos que a Coroa retirou aos índios amazônicos o já tradicional manto protetor dos missionários, expondo o gentio à exploração desenfreada, posta em prática pelos rivais seculares dos padres, apesar de uma lei que no papel deixava os indígenas em liberdade. Mendonça Furtado saíra vitorioso onde o infatigável Paulo da Silva Nunes tinha fracassado: levara a Coroa a crer que a s atividades comerciais dos jesuítas punham em grave perigo as possibilidades do desenvolvimento econômico do Brasil setentrional e privavam o rei de vastas receitas. E foi em reação a suas críticas, enfadonhas mas persuasivas, da função econômico dos jesuítas, que a Coroa invocou velhas leis inoperantes para justificar o confisco das propriedades jesuíticas no Amazonas e também em outras partes do Brasil nos anos que precederam imediatamente a expulsão da Companhia (117). Mas embora tenha tido a satisfação de ver os jesuítas enxotados das aldeias e fazendas e individualmente expulsos do Maranhão, Mendonça Furtado não estava presente na colônia quando chegou a ordem régia que baniu os loyolistas do Império Português, ainda que deva tê-la previsto. Foi assinada exatamente seis meses depois que ele deixou o posto. A carta régia de 3 de setembro de 1759, que exilou definitivamente os jesuítas de todos os domínios 129 portugueses, marcou o clímax da crescente deterioração das relações entre a Companhia de Jesus e a C oroa de Portugal, ou melhor, seu agente motor, Sebastião José de Carvalho e Melo, no decurso da década de 1750 e em especial depois de 1755 (118). Tenham razão ou não os historiadores jesuítas, e outros, que partilham a mesma opinião, quando dizem que Carvalho deveu sua nomeação para o gabinete à influência jesuítica (119), não resta dúvida que o resoluto, operoso, suspicaz e intolerante ministro português mostrou-se decidido a extirpar todos os vestígios da influência jesuítica em terras portuguesas. No desenrolar daquela que veio a ser indiscutivelmente uma campanha premeditada contra os loyolistas, ainda que, na verdade não tenha começado como tal, Carvalho fez extenso uso do “testemunho” de seu irmão, Mendonça Furtado, de Gomes Freire de Andrada, capitão-mor do Rio de Janeiro e principal membro português da comissão demarcadora da fron teira do Sul, e de outros funcionários coloniais, para provar a existência de uma conspiração jesuítica contra a Coroa e a necessidade de promover uma reforma radical da Companhia ou a sua extinção. Como escreveu João Lúcio de Azevedo, a lenta e abafada pendência ente os jesuítas e Carvalho tornou -se ostensiva pela primeira vez com o sermão do Padre Manoel Ballester que, menos de um mês depois da criação da Companhia de Comércio do Maranhão (1775), preveniu que aqueles que investissem na companhia “não seriam membros da Companhia de Cristo”. Embora o padre tentasse depois atenuar por 130 meio de explicações o sentido de sua advertência, esta não passou despercebida a Carvalho, que o exilou da Corte e em seguida mandou prender o procurador-geral da Vice-província do Maranhão, Padre Bento da Fonseca (120). No ano seguinte, Carvalho, já de posse de um grande número de mensagens de seu irmão, cheias de depoimentos adversos aos jesuítas do Maranhão, informou ao núncio papal que era mister tomar-se alguma providência acerca da conduta dos loyolistas que no Amazonas estavam utilizando seus poderes para mal tratar os índios e desacatar os funcionários do rei (121). Novas advertências foram feitas em 1757, em seguida à revolta dos produtores de vinho do Porto, levante que o governo disse ter sido fomentado pelos jesuítas. Em conseqüência disso, viram-se os loyolistas impedidos de aparecer na Corte ou pregar na catedral. Carvalho explicou ao núncio que tais medidas eram necessárias por causa da rebelião dos jesuítas no Estado do Maranhão, e tornou a declarar que os padres desafiavam as leis do reino e os editos dos papas, negando liberdade aos índios, apropriando-se dos bens deles e entregando-se a atividades comerciais proibidas. Assegurou ao núncio que tinha provas de tais crimes e avisou que caso não fossem castigados de imediato, ao fim de dez anos seriam os jesuítas tão poderosos que todos os exércitos da Europa não conseguiriam desalojá los do vasto território que ocupavam no coração da América do Sul, onde mantinham centenas de milhares de escravos em fortificações preparadas por engenheiros europeus disfarçados de padres. As mesmas acusações 131 foram repetidas em Roma pelo emissário português, que insistiu com o Papa para que tomasse medidas eficazes a fim de reformar a corrupta Companhia (122). Tal exigência foi reiterada no ano seguinte, quando o emissário apresentou como parte das provas de seu governo a famosa “Relação Abreviada da Repú blica fundada pelos Jesuítas nos Domínios Ultramarinos de Espanha e Portugal”, manifesto impresso inicialmente sob a forma de panfleto e escrito por Carvalho ou sob sua supervisão. Nele o governo rememorou os esforços de seus agentes para tomar posse das t erras das missões, descreveu o que chamou de levante guaranítico dirigido pelos jesuítas, e a rebelião dos loyolistas contra o alto comissário português no Amazonas, e afirmou que os padres continuavam a fazer pouco caso das leis do reino e da Igreja, uma vez que escravizavam os índios, apropriavam-se de sua agricultura e comércio, e entregavam-se a “sediciosas maquinações” contra a Coroa (123). O enviado informou a Benedito XIV que seu governo insistia na reforma radical ou na abolição da Companhia (124). Com relutância, em 1 de abril de 1758 o Papa designou o Cardeal Francisco Saldanha, parente de Carvalho e a quem ele próprio e a família deviam muitos favores (125), para reformador e visitador dos jesuítas em Portugal, com instruções para investigar as acusações do governo acerca das más ações da Companhia, em especial no tocante aos empreendimentos comerciais que se dizia serem contrários à política da Igreja e responsáveis pela perda de enorme parcela das receitas régias (126). 132 Os jesuítas foram presos antes de terem sido julgados. Embora só iniciasse as investigações em 31 de maio, o Cardeal lançou uma proclamação uma semana depois, em que dizia ter informações precisas de que se realizavam operações bancárias e comerciais em todos os colégios, residências, noviciarias e outros estabelecimentos jesuítas, em desrespeito aos cânones e bulas papais. Ameaçando-os com a excomunhão, o Cardeal ordenou aos loyolistas que cessassem tais atividades imediatamente e lhe entregassem todos os livros de escrituração mercantil. É interessante notar que apesar de só ter sido publicada em 7 de junho, a proclamação tinha a data de 15 de maio (127). Dois dias depois dessa publicação, o Patriarca de Lisboa anunciou que todos os jesuítas de sua jurisdição estavam impedidos de pregar ou ouvir confissões, “por causas justas, para a glória de Deus e o benefício do povo cristão” (128). Novas provações não se fariam esperar. Em 3 de setembro de 1758 José I, Rei de Portugal, foi alvo de um atentado misterioso e malogrado quando rumava para o palácio após um encontro noturno com a amante. O curioso é que somente no dia 13 de dezembro foram detidos os primeiros suspeitos, membros todos da alta nobreza e íntimos dos jesuítas. Na mesma noite todos os jesuítas que moravam na capital acharam-se confinados numa espécie de prisão domiciliar, medida necessária, disse Carvalho, para os proteger da plebe que estava convencida da participação deles na fracassada conspiração regicida. Um mês depois, dez eminentes 133 loyolistas, entre eles o Provincial de Portugal e o santo asceta, missionário e pregador Gabriel Malagrida, foram acusados de serem os instigadores da conspiração. Em 19 de janeiro de 1759 o Rei assinou uma ordem confiscando todos os bens dos jesuítas no reino, sob o pretexto de que os padres haviam insuflado a guerra guaranítica e o atentado contra a sua pessoa (129). Entraram então os soldados nas residências da Companhia em todo o reino e levaram a cabo uma frenética mas infrutífera busco dos tesouros que, segundo se propalava desde muito, os padres haviam acumulado. Tais minas não foram encontradas, mas a busca iria repetir-se em muitas partes do mundo ibérico nos meses e anos seguintes. O decreto final de expulsão, que exigiu o confisco do resto do patrimônio jesuítico em todo o império, assinou-o o Rei no primeiro aniversário de seu salvamento acidental das mãos dos pretensos assassinos (130). Se bem que aquele decreto fosse em certo sentido anticlimático, em face das medidas anteriores da Coroa contra os loyolistas, foi, não obstante, um passo essencial do ponto de vista dos adversários dos jesuítas, pois marcou o triunfo definitivo de longa e inexorável campanha contra a Companhia de Jesus. V. CONCLUSÃO Seria um equívoco atribuir a expulsão dos jesuítas de Portugal e do império a um unico fator. É óbvio que a 134 decisão da Coroa foi produto de muitas influências. Como ocorreu na subseqüente expulsão da Companhia de Jesus de territórios franceses e espanhóis (respectivamente em 1764 e 1767), o regalismo desem penhou importantíssimo papel (131). O governo do futuro Marquês de Pombal, agisse ou não sob o influxo das doutrinas jansenistas ou das heresias britânicas, como sustentaram alguns autores, simplesmente não tolerava a existência na sociedade de nenhum elemento que lhe criticasse as diretrizes e não se mostrasse totalmente subserviente à vontade do rei, tal como a interpretavam os ministros. Embora fossem os jesuítas o alvo primeiro do anticlericalismo daquele governo, convém não esquecer que este era hostil também a outras ordens missionárias no Brasil e que várias delas foram expulsas da colônia nos anos seguintes (132). A convicção do governo português de que existia uma “conspiração” jesuítica contra as coroas de Portugal e Espanha era também uma expressão de sua orientação regalista, porque, como escreveu há pouco Magnus Mörner, “Do ponto de vista do regalismo, o pior de todos os pecados era qualquer indício de ação eclesiástica bem organizada e coordenada em oposição à política da Coroa” (133). A sistemática e persistente recusa dos loyolistas de ambos os impérios a pagar os dízimos, sua relutância em submeter-se à disciplina episcopal, seu antagonismo ao Tratado de Madri, e a resistência dos indos, influenciados pelos jesuítas, às condições daquele acordo, tudo isso, visto por um prisma regalista, parecia evidenciar a existência de tal conspiração. 135 Pode ser também que o governo português, que era suficientemente sensível ao que na época passava por “opinião pública” para tentar modelar as atitudes de outros governos europeus para com os jesuítas, mediante a publicação de uma série de informes oficiais contra os loyolistas, tenha pressentido que a década de 1750 era o momento propício para banir os jesuítas de seus domínios, aproveitando o declínio da popularidade dos padres. Apesar de suas inúmeras qualidades admiráveis, os padres tinham uma capacidade notável para fazer inimigos figadais, fora e dentro da Igreja, entre outros motivos porque eram extremamente ciosos de suas prerrogativas, legalistas até a chicana, fari saicos, sobranceiros para com os adversários e tão intransigentes como seus rivais. Entre esses rivais estavam não só os colonos e os funcionários régios mas também os membros de outras ordens missionárias e o episcopado. É evidente que houve, dentro de ambos os grupos de eclesiásticos, aqueles que colaboraram intimamente com a Coroa para por termo à estada dos jesuítas no Brasil, e que o episcopado e outras ordens figuraram entre os beneficiários da expulsão dos loyolistas. É difícil determinar que “opinião pública” concernente aos jesuítas havia realmente no Brasil do século XVIII, em parte por falta de meios adequados de expressão e também porque o que sabemos das opiniões dos colonos nos vem principalmente da pena de funcionários régios quase nunca imparciais. Entr etanto, parece significativo que, ao espalhar-se na colônia a notícia do banimento dos loyolistas, não se tenha 136 registrado um só tumulto de protesto contra a medida da Coroa, como houve em Nova Espanha. Os clérigos não foram, naturalmente, os únicos ou sequer os principais beneficiários dos infortúnios que sucederam aos jesuítas, pois tanto a Coroa como os interesses privados, inclusive fazendeiros, criadores de gado, rendeiros e mercadores, obtiveram vantagens consideráveis. Isto me conduz à tese principal deste trabalho: minha convicção de que a expulsão dos jesuítas do Brasil foi ditada sobretudo por considerações econômicas. Tais considerações abrangiam as previsões otimistas dos críticos dos jesuítas, segundo as quais a Coroa asseguraria a posse de vastas riquezas através do confisco dos bens da Companhia. Mas suspeito que o que impressionou ainda mais esses críticos foi a certeza de que era essencial eliminar o papel econômico de uma instituição influente, que gozava de isenção de impostos ou pelo menos não os pagava, e cujas atividades – disso eles estavam persuadidos – impediam o desenvolvimento econômico do Brasil e privavam a Coroa de enormes receitas. Esses foram os pontos que Mendonça Furtado salientou repetidas vezes em suas longas mensagens, ainda que em verdade quase todos os argumentos que formulou contra os jesuítas se encontravam nos escritos de Paulo da Silva Nunes, aquele vulto ainda indistinto que precisamos conhecer mais e melhor. Ao contrário, porém, dos ministros de João V, os de José I sabiam perfeitamente que a Coroa tinha necessidade premente de rendas adicionais e mostravam-se portanto especialmente receptivos às 137 acusações que Mendonça Furtado reiterava, muito embora faltassem a elas as provas elementares que a nosso ver deveriam sustentá-las. Mas não basta identificar e pesar os inúmeros fatores que conduziram ao clímax a prolongada luta entre os jesuítas e seus adversários. É próprio do historiador emitir julgamentos, coisa que bem poucos dentre nós costumam fazer, sobre a solidez das acusações e contestações feitas pelos críticos dos jesuítas e pelos próprios loyolistas. Ainda não estamos em condições de fazer esse julgamento. Por exemplo, enquanto não tivermos analisado os registros que mostram como os loyolistas realmente adminis travam suas múltiplas empresas econômicas e não tivermos explicado suas rendas e investigado suas despesas, não poderemos falar com autoridade acerca da rentabilidade de seus numerosos empreendimentos, e muito menos calcular se tais atividades eram excessivamente onerosas para a economia colonial ou o rei. E enquanto não tivermos oportunidade de examinar os relatórios que os padres enviavam regularmente aos superiores sobre a gestão dos bens da Companhia, não poderemos dizer se os inventários que os agentes do rei fizeram desses bens após o confisco representaram estimativas corretas, inflacionadas ou depreciadas de seu valor. E enquanto não tivermos à mão um maior número de escritos dos próprios jesuítas datados da década de 1750, não poderemos ajuizar do verdadeiro mérito das acusações que seus inimigos lhes dirigiram durante aqueles anos cruciais. 138 A expulsão dos jesuítas do Brasil resolveu uma série de problemas espinhosos, mas suscitou bom número de outros – entre estes o de saber se a Coroa devia administrar, ela mesma, os bens seqüestrados, ou aliená-los a particulares. Os argumentos apresentados pró e contra, e a solução finalmente adotada, formam uma história interessante e complexa, mas que terá de ficar para outra ocasião. NOTAS (1) Serafim Leite, Artes e ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549 1760) (Rio de Janeiro, 1953); John Bury, “Jesuit Architecture in Brazil”, The Month, mês não especificado, IV (1950), 385 -408; Lúcio Costa, “A arquitetura dos Jesuítas no Brasil”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Rio de Janeiro), V (1941), 1-100; Alfred Métraux, “The Contribution of the Jesuits to the Exploration and Anthropology of South America”, Mid-America, XXVI (Julho, 1944), 183-92; E. Bradford Burns, “Introduction to the Brazilian Jesuit Letters”, ibid., XLIV (Julho, 1962), 172-86; e Manoel Xavier de Vasconcelos Pedrosa, “O exercício da medicina nos séculos XVI -XVII e na primeira metade do século XVIII no Brasil colonial”, IV Congresso de História Nacional, Anais (Rio de Janeiro), VIII (1951), 268-74. (2) 10 vols.; Rio de Janeiro-Lisboa, 1938-1950; citada daqui por diante como HCJB. (3) Ver ibid., IV, 209, nota 2, e I, 75. (4) Para uma biografia dos trabalhos do Padre Leite veja -se Miquel Batllori, comp., Bibliografia de Serafim Leite, S. J. (Roma, 1962). 139 (5) Roberto C. Simonsen, História econômica do Brasil (1500 1820) (3ª ed., São Paulo, 1957); Caio Prado Júnior, História Econômica do Brasil (8ª ed.; [São Paulo], 1963); e Celso Furtado, The Economic Growth of Brazil: A S urvey from Colonial to Modern Times, trad. de Ricardo W. de Aguiar e Eric C. Drysdale (Berkeley, 1963). (6) O único trabalho em inglês sobre a expulsão dos jesuítas do império português é o de Alfred Weld, S. J., The Suppression of the Society of Jesus in the Portuguese Dominions (Londres, 1877), estudo baseado em fontes insuficientes, e que é fatalmente incorreto. É ao mesmo tempo uma veemente condenação do Marquês de Pombal, pela responsabilidade que teve na expulsão, e uma combativa defesa da inocência da Companhia e de seus membros. Em parte alguma o autor trata das bases econômicas da ordem no Brasil, e não toma conhecimento dos aspectos econômicos da expulsão. Consultei um exemplar existente na biblioteca de Alma College, Alma, Cal. (7) HCJB, VII, 240. Em toda a extensão deste ensaio empreguei “Maranhão” para significar Estado do Maranhão e não apenas a capitania geral daquele nome. (8) Serafim Leite, Suma histórica da companhia de Jesus no Brasil ... 1549-1760 (Lisboa, 1965), Apêndice IV. (9) D. Alden, “The Early History of Bahia, 1501 -1553” (tese de licenciatura, inédita, Universidade da Califórnia, Berkeley, 1952), p. 197, e fontes contemporâneas lá citadas. (10) Sobre a sesmaria de “Água dos meninos”, cocnedida por Tomé de Souza a Manoel da Nóbrega em 21 de outubro de 1550, ver Serafim Leite, ed. crit., Monumenta brasiliae, I (1538-1553) (Roma, 1956), 194-96. (11) Serafim Leite, “Terras que deu Estácio de Sá ao colégio do Rio de Janeiro. A famosa sesmaria dos Jesuítas. Documento inédito quinhentista”, Brotéria, XX (1935), 90-108; reimpresso em Monumenta brasiliae, IV (1960), 219-39. Não vi o texto da doação original ao colégio de Recife. 140 (12) Leite, Suma histórica, p. 177. (13) Veja-se “Livro grosso do Maranhão”, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (daqui por diante citados como ABNRJ), LXVI (1948), 56-57, 77-78 e 91-92. (14) Destaquei a assistência direta porque a Coroa também proporcionava à companhia outros tipos de ajuda econômica, como sejam: isentar-lhe os bens dos lançamentos de direitos alfandegários e, no Amazonas, designar grupos de índios para o trabalho nas propriedades da ordem. Além disso, os padres alegavam que tinham direito ao que representava outra forma de subsídio concedido pela Coroa, isto é, isenção do pagamento dos dízimos devidos por suas propriedades. Q. v. a explanação mais adiante. (15) “Relação dos bens sequestrados aos regulares proscriptos, e expulsos da companhia... de Jesvs onerados com encargos pios, com declaraçaó dos nomes dos instituidores, dos títu los por que disposeraó das obras pias, que ordenaraó, dos bens e rendas, que para este effeito deixaraó, e do que estes annualmente produzem em rendimentos certos, e incertos, ...” Bahia, 1 de outubro de 1761, Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (doravan te citado como AHU), Documentos da Bahia, nº 5586; “Relações dos bens appreendidos e confiscados aos Jesuítas da capitania de S. Paulo...”, Arquivo do Estado de São Paulo; Publicação official de documentos interessantes para a história e costumes de São Pa ulo (doravante citados como DI), XLIV, 337-78. (16) “Testamento de Domingos Afonso Certão, descobridor do Piauhy”, Bahia, 12 de maio de 1711, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (doravante citada como RIHGB), XX (1857), 140-50. (17) Sobre um caso bastante suspeito que, contudo, diz respeito a uma doação testamentária feita em Angola e não no Brasil, veja -se a carta régia de 15 de fevereiro de 1625, em Antônio Brásio, ed. crit., Monumenta missionaria africana, 1ª serie, África ocidental 141 (1611-1621), VII (Lisboa, 1955), 394 -95. Devo esta referência ao Professor Engel Sluiter da Universidade da Califórnia, Berkeley. (18) E. g., Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Documentos históricos, LXII (1943), 140 e ss.; LXIII (1944); passim; e LXIV (1944), 3-112. Não incluí nesta seção as propriedades que os jesuítas podem ter adquirido em conseqüência de execuções de hipotecas, uma vez que não disponho de informação capaz de indicar a importância dessa prática como fonte de aquisição. (19) “Treslado do autto de inventário da real fazenda de Santa Crus e bens que nella se acharam...”, 6 de maio de 1768, A. J. Melo Morais Filho, ed. crit., Archivo do Districto Federal: revista de documentos para a história da cidade do Rio de Janeiro (doravante citada como RADF), I (1894), 73-77, 124, 182-92, 217, 333-39, 418-25. (20) Alguns desses exemplos encontram-se no fim da relação baiana de 1761 citada na nota 15 supra. (21) Como exemplo de uma venda de terra feita pelos jesuítas aos carmelitas, à vista, veja-se “Regizto de hum documento de venda que fizeraó oz padrez da companhia, ao convento do Carmo dezta cidade... anno de 1595”, RADF, III (1896), 251. (22) Este cálculo baseia-se em diversas fontes da época e mais recentes, achando-se entre as últimas a HCJB, passim. O número de fazendas dos jesuítas dedicadas principalmente ao cultivo da cana-de-açúcar variava de um período para outro à medida que novas fazendas eram adquiridas e algumas das mais antigas davam sinais de diminuição da fertilidade e passavam ter outros usos. Assim, a fazenda Muribeca (Espírito Santo) tornou -se criatório e a maior parte do Engenho Velho (Rio de Janeiro) foi dividida em lotes para arrendamento. (23) Leite, Suma histórica, Cap. XI. Ver também nota 115. (24) O inventário incompleto de Santa Cruz (ver nota 19) sugere que o total de escravos naquela fazenda em 1759 talvez chegasse a 1.600 ou 1.700. Segundo Alberto Lamego, havia 1.435 escravos 142 na “fazenda do colégio” no norte do Rio de Janeiro no momento em que foi confiscada: A terra Goytacá à luz de documentos inéditos, III (Bruxelas-Paris, 1925), 163. Em contraste com isso, sabe-se que o maior número de escravos pertencentes a um único senhor nas colônias continentais britânicas à época da Guerra da Independência americana eram 49 0. Louis Morton, Robert Carter of Nomini Hall.. (Williamsburg, 1945), p. 101, nota 43. Os dados que pude reunir acerca da posse de escravos na América espanhola setecentista indicam que as concentrações de escravos nas fazendas não eram tão grandes como ne ssas duas dos jesuítas. Quando se tornarem conhecidos os inventários completos das propriedades da Companhia da Bahia, é provável que revelem populações servis pelo menos tão numerosas como as de Santa Cruz. (25) Na década de 1750 os jesuítas tinham 273 r endeiros nos lotes do Engenho Velho no Rio de Janeiro, RADF, I (1894) 73n. Como exemplo das condições de privilégios de pasto que eles concediam na mesma fazenda, veja-se ibid., 427. Exemplos de seus acordos de locação acam-se ibid., 426-27, 455-60, 550-62, e II (1895), 917, 62. Na Bahia, à época da expulsão, 58 lotes pequenos que os padres davam em arrendamento produziam uma receita anual avaliada em 300.000 réis. Ver nota 26. (26) Cálculos baseados no inventário intitulado “Termo das declaraçoens e valiaçoens que fizerao os avaliadores do conselho e mestres das obras da cidade [do Salvador]”, 26 de março de 1760, AHU, Docs., nº 4952. O inventário compreende não só as propriedades urbanas como as habitações a elas incorporadas como também um cais pertencente à ordem (valor estimado em 3.600.000 réis). “Çitioz que occupaváo os Padres” que podiam ser arrendados, outros que tinham essas propriedades foi calculado em 190.886.000 réis, e sua renda anual em 1.141.520 réis. Essas estimativas talvez tenham sido exageradas. O Padre Leite cita uma fonte coeva que indica que o colégio de Salvador recebeu 888.000 réis de suas propriedades urbanas em 1757. HCJB, V, 579, nº 1. (27) “Relação de todas as casas, foros e chãos que há nesta cidade pertencentes aos padres da companhia nas ruas que abaixo se declara”, 8 de julho de 1740, RADF, II (1895), 366-71. 143 (28) “Relação de todos os conventos e hospícios que há dentro do destricto d’este governo de Pernambuco com o número de religiozos e rendas, que tem cada um”, s.d., circa década de 1740, ABNRJ, XXVII (1906), 416. (29) HCJB, V, 479, 579, nº 1. (30) Cf. os relatórios dos superiores das ordens dos beneditinos, carmelitas e franciscanos, enviados à Coroa sobre suas pro priedades e rendimentos no Brasil em 1764 -1765, e, quanto à capitania do Rio de Janeiro, o valor dos bens das mesmas ordens, segundo informação do Conde de Rezende (Vice -rei do Brasil) em 1797, RIHGB, LXV:1 (1902), 118-65; ibid., XLVI:1 (1883), 18788. (31) O provincial dos beneditinos, por exemplo, comu nicou à Coroa que o mosteiro de São Paulo concedera empréstimos no valor de 3.468.865 réis, mas que 1.116.000 réis eram considerados incobráveis por causa de falências e da morte de devedores que não deixaram bens recuperáveis. Frei Francisco de São José a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 12 de maio de 1765, RIHGB, LXVI:1 (1904-1905), 137-65, Apêndice G. (32) Estimativa aproximada que espero aperfeiçoar quando tiver ensejo de analisar uma quantidade maior dos inventários que reuni. (33) Sobre os começos do conflito entre os jesuítas e os colonos acerca da situação dos índios, as obras autorizadas são ainda as de Alexander Marchant, From Barter to Slavery: The Economic Relations of Portuguese and Indians in the Settlement of Brazil, 1500-1580 (reimpressão; Gloucester, Mas., 1966), e Mathias C. Kiemen, The Indian Policy of Portugal in the Amazon Region, 1614-1693 (Washington, D.C., 1954); ver também Charles R. Boxer, Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola, 1602-1686(Londres, 1952), pp. 124-25. 144 (34) Como introdução à literatura dedicada aos bandeirantes, vejase Richard M. Morse, comp., The Bandeirantes: The Historical Role of the Brazilian Pathfinders (New York, 1965). (35) Para detalhes, ver Boxer, Salvador de Sá, pp. 129-37, e HCJB, VI, 252-65, 416-21. (36) Kiemen, Indian Policy of Portugal, pp. 115-16, 146 e ss. Sobre o perdão real de 1663, ver provisão de 12 de setembro de 1663, “Livro grosso do Maranhão”, I, 31-32. (37) Kiemen, Indian Policy of Portugal, pp. 158-62; HCJB, IV, 369-74. (38) Carta régia de 4 de novembro de 1684 (renovando alvar á datado erroneamente de 4 de maio de 1543 [ sic em vez de 1573]), José Justino de Andrade e Silva, comp., Collecção chronológica da legislação portuguêsa..., X (Lisboa, 1859), 22-23. (39) Cartas régias, 4 de janeiro de 1687 e 23 de março de 1688 (duas mensagens), Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará (doravante AAP), (Belém, 1902), 90-93, 95-96. (40) Charles R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics: The Municipal Councils of Gôa, Macao, Bahia, and Luanda, 1500 1800 (Madison, Wis., 1965), p. 17. (41) Resposta da câmara a um requerimento de Sá, 16 de novembro de 1641, Eduardo de Castro e Almeida, comp., Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da Marinha e Ultramar de Lisbôa, VII (Rio de Janeiro, 1934), 16-17. (42) Boxer, Municipal Councils, p. 89, de onde também foi extraída a citação. Não sei qual foi o volume das contribuições fiscais dos jesuítas para as guerras de Portugal no século XVII, mas note-se que a Companhia ocupou o quarto lugar entre os que mais contribuíram para o fundo de resgate exigido da cidade do Rio de Janeiro pelo corsário francês Duguay -Trouin em 1711. “Relação das pessoas, e das quantias com que contribuirão para o 145 resgate desta cidade, rendida pelos francezes em 11 de setembro de 1711”, em Antonio Duarte Nunes, “Almanac histórico da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro” (1799), RIHGB, XXI (1858), 31. (43) Sobre o conflito gerado pela recusa da ordem a pagar dízimos nas colônias espanholas, vejam-se Lilian Estelle Fisher, Viceregal Administration in the Spanish American Colonies (Berkeley, 1926), pp. 199-200; Guadalupe Navarro, Los diezmos em Mexico durante el tiempo de la colonia (Roma, 1936), Cap. V; e Woodrow Borah, “Tithe Collection in the Bishopric of Oaxaca,, 1601-1867”, Hispanic American Historical Review, XXI (1941), 386 e ss. (44) O estudo básico ainda é o de Oscar de Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil nos períodos da colônia e do império (Juiz de Fora, 1940). (45) Nóbrega a Simão Rodrigues, agosto [?], 1552, Afrânio Peixoto, ec. crit., Cartas do Brasil 1549-1560 (Rio de Janeiro, 1931), p. 139. (46) Ver Oliveira, Dízimos eclesiásticos, p. 70. (47) Ibid., p. 90. (48) Provisão de 2 de novembro de 1692 (referente a uma provisão anterior, de 17 de janeiro de 1685, que não vi). “Livro grosso do Maranhão”, I, 130-131; do rei ao provedor da fazenda (Pará), 11 de janeiro de 1701, ibid., 203-204; idem a Christovão da Costa Freire (capitão-general do Maranhão), 4 de abril de 1709, e idem a idem, 27 de junho de 1711, ibid., II, 37-38, e 88. Como prova da preocupação da Companhia com os esforços da Coroa no sentido de a obrigar a pagar o dízimo, veja -se a instrução de Michael Angelus Tamburinus (geral) ao Padre Ignacio Ferreira (superior da Vice-Província do Maranhão), 22 de outubro de 1712, em João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará: Suas missões e a colonização... (1ª ed., Lisboa, 1901), pp. 332-33. 146 (49) Kiemen, Indian Policy of Portugal, p. 52. (50) Ordenações do Senhor Rey d. Affonso V (Coimbra, 1792). Liv. II, tits. XIII e XIV. (51) Código philippino ou ordenações e leis do reino de Portutal recompiladas por mandado d’el-rey d. Philippe I, ed. crit., Cândido Mendes de Almeida (14ª ed.; Rio de Janeiro, 1870), Liv . II, tit. XVIII, que abrange referências a seções apropriadas das Manuelinas. (52) Citado numa petição sem data ( circa 1740) de Manuel Ferreira Feital e Antônio de Alvarenga; Castro e Almeida, Inventário, VII, 384-85. (53) Conselho Ultramarino a Antônio Brito de Menezes (governador do Rio de Janeiro), 22 de setembro de 1718, RADF, III (1896), 186-88: “Lista das propriedades que possuem os padres da companhia do Rio de Janeiro e parte dos da comarca the o anno de mil e sette centos e dezoito”, ibid., UU (1895), 370-72; “Registro das listas das terras dos padres da companhia, de S. Bento e do Carmo, sitas no districto de Cabo Frio, que remetterão os officiaes da câmara ao corregedor (i. e., ouvidor) da comarca”, 26 de dezembro de 1719, ABNRJ, LXXI (1951), 44-46. (54) Kiemen, Indian Policy of Portugal, pp. 176-78. (55) Ibid., pp. 164-66. (56) Azevedo, Os Jesuitas, pp. 160-63. (57) Capitão-general do Maranhão, 1718-1722, autor dos tediosos mas importantes Anais históricos do Maranhão (Lisboa, 1749), e anos depois soldado notável no norte da África. (58) A opinião tradicional acha que a hostilidade de Silva Nunes data de 1722, quando ele foi preso por ter feito comentários satíricos contra os jesuítas, mas João da Maia da Gama, sucessor de Berredo e conhecido jesuitófilo, sustentou que essa hostilidade se fazia notar antes daquela data. Ver nota 72. 147 (59) Azevedo, Os Jesuítas, pp. 167-68. (60) Pasquins análogos circularam em Belém em 1688. Kiemen, Indian Policy of Portugal, p. 169. (61) Jão da Maia da Gama à Coroa, 28 de agosto de 1722 (duas mensagens), em Alexandre João Melo Moraes, Corographia... do império do Brasil, IV (Rio de Janeiro, 1860), 291n. -294n. (62) A língua geral era uma espécie de dialeto comum por meio do qual os jesuítas (e outros familia rizados com ele) podiam comunicar-se com índios de idiomas os mais diversos. Em 1689 a câmara de Belém queixou-se ao Rei que os padres não faziam caso da ordem de ensinar a língua geral aos jovens portugueses, o que era essencial, porquanto estes substituí am os pais como supervisores do trabalho indígena nas plantações. Kiemen, Indian Policy of Portutgal, p. 170. No tempo de Silva Nunes, porém, os jesuítas eram criticados pela razão oposta. A carta régia de 12 de setembro de 1727 ordenou de fato aos jesuíta s que cuidassem de ensinar mais aos seus pupilos o português. AAP, II, 190-91. Mas quanto a alguns dos problemas práticos implícitos nessa questçao veja-se a defesa dos jesuítas feita por Maia (citada na nota 72). (63) Azevedo, Os jesuítas, pp. 168, 178. (64) Berredo à câmara de Belém, 6 de abril de 1726, Melo Moraes, Corographia, IV, 291n. (65) Em 1726, por exemplo, Silva Nunes declarou que já tivera duas auspiciosas conferências reservadas com um ministro de Estado cujo nome não informou. Silva Nunes à câmara de São Luís do Maranhão, 31 de março de 1726, ibid., 288. (66) Azevedo, Os jesuítas, pp. 168, 178. (67) “Representação dos senhores de engenho e lavradores de canna de Marepicu, freguezia de N. Sª da Conceição e districto do Rio de Janeiro, contra as usurpações de terrenos que lhes tinham feito os padres da Companhia de Jesus e os religiosos de N. Sª do 148 Carmo” (1730), Castro e Almeida, Inventário, VII, 62; câmara do Rio de Janeiro ao rei, 12 de agosto de 1731. RADF, II (1895), 281-84 (queixando-se do comércio ilícito dos beneditinos e da preferência deles mais pelos recrutas peninsulares do que pelos nascidos na colônia). (68) Azevedo, Os jesuítas, p. 174. Ver cartas régias de 28 de julho e 1 de agosto de 1729, e de 11 de janeiro de 1731, AAP, IV (1905), 55, 57-58 e 66-67, referentes à alegação de Sousa Freire de que os jesuítas estavam usando os índios da missão para plantar tabaco e açúcar e trabalhar nos engenhos da companhia, contrariando assim as instruções por ele baixadas. (69) Carta régia de 13 de abril de 1728, “Livro grosso do Maranhão”, II, 223-24; ver Azevedo, Os Jesuítas, pp. 175-77 para uma análise e comparação com a de 1718, que foi mais favorável aos interesses dos colonos. (70) Carta régia de 24 de janeiro de 1729, DI, XVIII (1896), 26768; HCJB, IV, 202. (71) “Papel que o padre Jacinto de Carvalho... apresentou a el -rei para se juntar aos dous requerimentos do procurador das câmaras do Maranhão e Pará”, 16 de dezembro de 1729, Melo Moraes, Corographia, IV, 305n.-330n. Para um esboço biográfico e uma lista anotada dos escritos do procurador, ver HCJB, VII, 149-53. (72) “Parecer de João da Maia da Gama... sobre os requerimentos que a el-rei apresentou Paulo da Silva Nunes, contra os mis sionários”, 22 de fevereiro de 1730, Melo Mo raes, Corographia, IV, 258n.-274n. (73) Alvará de 13 de abril de 1734, ibid., 253n.-254n. (74) “Informação e parecer do desembargador Francisco Duarte dos Santos...”, 15 de julho de 1735, ibid., 123n.-150n. (Este é o segundo de dois longos documentos que correm ao pé dessas páginas e está impresso em tipo menor do que o primeiro). 149 (75) Azevedo, Os jesuítas, p. 183, onde infelizmente não consta nenhuma fonte. Presumivelmente os funcionários do tesouro sabiam que a Coroa desde muitos anos não pagava côngru as aos missionários do maranhão (ver a segunda carta de Maia da Gama, 28 de agosto de 1722 [citada na nota 61], p. 293) nem estava em condições de pagar somas ainda maiores. (76) Azevedo, Os jesuítas, pp. 184-87. (77) Oliveira, Os dízimos eclesiásticos do Brasil, p. 73, cita uma instrução de 21 de fevereiro de 1739, do geral da ordem ao vice provincial do Maranhão, avisando -o de que ainda havia esperanças de que a questão se resolvesse favoravelmente para a Companhia, mas que, se tal não ocorresse, um nov o decreto real mandando que as ordens pagassem os dízimos seria obedecido pelos jesuítas enquanto não fossem julgados os apelas ulteriores. Nesse ínterim era necessário observar grande prudência para evitar “males mais graves”. (78) Cartas régias de 9 de julho de 1740 e 21 de janeiro de 1743, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Documentos Historicos, I (1928), 398-99, 440-41; ver também as resoluções de 31 de maio de 1740 e 25 de maio de 1741, do Conselho Ultramarino, citadas no início da relação mencionada na nota 27. (79) Não vi este volume, mas é citado em Azevedo, Os Jesuítas, p. 187. (80) Charles R. Boxer, The Golden Age of Brazil... (Berkeley, 1962), p. 289. (81) Examinei um pouco mais detalhadamente a guerra guaran ítica em meu livro Royal Government in Colonial Brazil (Berkeley, 1968), Cap. IV, seção 2. (82) Estas impressões baseiam-se em grande parte na leitura que fiz da correspondência do Capitão -general (ver nota 87). Para um sumário das opiniões de historiadores coevos e subseqüentes, ver [João] Lúcio de Azevedo, Estudos de história paraense (Pará, 1893), pp. 13-17. 150 (83) Este é o ponto de vista de Azevedo ( ibid., pp. 20-26, e Os Jesuítas, p. 238) e dos que o seguem, e. g. Marcus Cheke, Dictator of Portugal: A Life of the Marquis of Pombal 16 99-1782 (Lomdrss, 1938) p. 56; cf. HCJB, VII, 338-339. (84) Isto é, Dom Frei Miguel de Bulhões e Sousa, beneditino que mostrou não ser amigo dos loyolistas. (85) As instruções, datadas de 31 de maio de 1751, foram publicadas pela primeira vez por Azevedo , Os Jesuítas, pp. 34856. (86) Assunto curioso e importante que, pelo que sei, nenhum autor examinou convenientemente. (87) [Mendonça Furtado] a [Sebastião José de Carvalho e Melo], 21 de novembro de 1751, A Amazônia na era pombalina: Correspondência inédita do governador e capitão -general do estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759, ed. crit., Marcos Carneiro de Mendonça (3 vols.; Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, s.d. (circa, 1964), I, 63-78 (doravante citado como C/FXMF). O grosso dos documentos incluídos nessa inestimável mas des concertante coleção compõe -se de mensagens enviadas por Mendonça Furtado à Coroa entre 1751 e 1757 (apesar do título); a maior parte provém de arquivos existent es no Museu Britânico, mas (ainda apesar do título) algumas vêm da conhecida série dos AAP. O editor crítico, cujas notas são às vezes úteis mas não tão numerosas ou esclarecedoras como deviam ser, parece achar que essa correspondência explica por que se j ustificou plenamente a expulsão definitiva dos jesuítas, mas não se dá conta de que falta à sua coleção o outro lado da história: as cartas escritas pelos próprios jesuítas. Além disso, muitas das mensagens nela pu blicadas relacionam-se com importantes anexos não encontrados nos arquivos de Belém ou de Londres. Aos compulsadores dessa coleção avisamos que o índice do Vol. III não arrola as últimas oitenta e uma páginas do mesmo volume, nas quais se encontra um conjunto de documentos diversos. 151 (88) Mendonça Furtado de Carvalho e Melo, 25 de outubro de 1752, C/FXMF, I, 254; idem a Tomé Joaquim da Costa Corte Real, circa 23 de maio de 1757, ibid., III, 955. (89) Em sua mensagem de 29 de dezembro de 1751, o Capitão general afirmou que “este Estado se fundou, floresceu e nele se estabeleceram infinitos engenhos e plantações, enquanto as Religiões não tiveram este alto e absoluto poder”, mas não indicou precisamente quando existiu esse período de tanta prosperidade. (90) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 29 d e dezembro de 1751, 2 de janeiro e 25 de outubro de 1752, e 26 de janeiro de 1754, C/FXMF, I, 143-48, 155-57, 252-55, e II, 465-70. (91) “Memória das fazendas que até agora tenho podido averiguar que têm os padres da companhia nesta capitania do Pará, e d as notícias que até agora achei delas”, 8 de fevereiro de 1754. ibid., II, 485-89. (92) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 18 de fevereiro de 1754, ibid., 498-505. (93) Em 1753 a Coroa ordenou aos superiores das ordens dos je suítas, carmelitas, mercedários e franciscanos que pusessem à disposição do comissário português as provisões e os traba lhadores indígenas que ele solicitasse das missões, prometendo compensação adequada a tais serviços. Ordem geral de 18 de maio de 1753, Museu Britânico, mss. sup. 20987 (Coleção de Microfilmes da Biblioteca Bancroft, Universidade da Califórnia, Berkeley). (94) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 7 e 9 de julho, e 20 de novembro de 1755, C/FXMF, II, 714-21, 738-39; II, 870-71; idem a Luís da Cunha [Manoel], 12 de outubro de 1756, ibid., III, 948; Diogo de Mendonça Corte Real (ministro das colônicas) a Mendonça Furtado, 1 de maio de 1755, Jaime Cortesão, ec. crit. e comp. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri (1750), V (Rio de Janeiro, 1963), 431 (expressando a e sperança de que Mendonça Furtado não encontrasse as grandes dificuldades que a resistência 152 guaranítica chefiada pelos jesuítas criava no momento para a comissão demarcadora dos limites meridionais). (95) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 7 de julho de 1 755, C/FXMF, II, 714. (96) Esta foi a primeira missão jesuítica na Amazônica a ser secularizada. A razão aparente da medida foi a necessidade de fundar uma pousada para os que viajavam entre o Amazonas e Mato Grosso, mas o verdadeiro intuito foi o de erig ir uma barreira para impedir o propalado fluxo de contrabando do interior produtor de ouro para a costa. Carvalho e Melo a Mendonça Furtado, 14 de março de 1755, ibid., 661. (97) Mateus 21: 12-13; marcos 11: 15-17; Lucas 19: 45-46; ou João 2: 14-16. A fonte (nota 98) não esclarece qual destas passagens o Capitão -general tinha em mente. (98) Azevedo, Estudos, pp. 127-29. (99) Entre os vinte e um achavam-se o cronista e o viceprovincial do Maranhão e os reitores dos colégios do maranhão e do Pará. HCJB, VII, 352. (100) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 14 de outubro de 1756, C/FXMF, III, 992-93. Sobre a impossibilidade do comissário espanhol de entrar em contacto com seu colega português em virtude de problemas de navegação e da alegada falta de cooperação dos jesuítas, ver Demétrio Ramos Pérez, El tratado de limites de 1750 y la expedicion de Iturriaga al Orinoco (Madri, 1946), pp. 197 e ss. e 214 e ss. (101) Lei de 6 de junho de 1755, Colecção dos breves pontificios e leys régias, que forão expedidos e publicadas desde o anno de 1741, sobre a liberdade das pessoas, bens, e commércio dos Índios do Brasil; ... (Lisboa, 1760), nº II. O texto da bula forma o nº I desta coleção, um dos numerosos informes oficiais que o governo português pôs em circulação, a lguns traduzidos, durante o decênio de 1757-1767, a fim de angariar apoio para a campanha contra os jesuítas. 153 (102) Lei de 7 de junho de 1755, ibid., nº III. (103) Carvalho e Melo a Mendonça Furtado, 14 de março de 1755, C/FXMF, II, 660. (104) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 12 de novembro de 1755, ibid., 821. (105) [Idem à Coroa], 8 de abril de 1757, AAP, IV (1905), 182-84. A junta das missões do Estado do Maranhão, uma das várias juntas desse tipo que existiam nas mais diversas partes do império português, foi criada em 1680. Dela participavam o Capitão general, muitos outros funcionários da Coroa, o Bispo (nessa época do Pará), e os superiores das várias ordens missionárias atuantes na região. (106) Ver Robert C. Padden, “The Ordenanza del Patro nazgo, 1574: An Interpretative Essay”, The Americas, XII (abril, 1956), 333-54. (107) [Mendonça Furtado à Coroa], 8 de abril de 1757, citada na nota 105; requerimento de Francisco de Toledo (vice -provincial), circa 10 de fevereiro de 1757, AAP, IV (1905), 207-209. (108) Mendonça Furtado a Carvalho e Melo, 25 de abril de 1757, C/FXMF, III. 1034-38. (109) Idem a Idem, 2 de maio de 1757, ibid., 1039-40; também publicada em AAP, IV (1905), 209-12. Este foi na verdade o segundo round da disputa do Capitão -general com os jesuítas em torno da posse dos pertences das antigas missões. O primeiro começou por uma pendência a respeito da alegada pilhagem da ex aldeia de Trocano, transformada na comunidade de Borba a Nova. Ver idem, ao Padre Anselmo Eckart, Borba a No va, 31 de dezembro de 1755, C/FXMF, III, 890, e idem a Carvalho e Melo, 13 de outubro de 1756, ibid., 949-54. À última mensagem mencionada o Capitão-general anexou uma declaração assinada por um missionário carmelita reconhecendo que todos os pertences das missões eram de propriedade destas e não da ordem. 154 (110) Idem a Tomé Joaquim da Costa Corte Real, circa 23 de maio de 1757, ibid., 955-76. O documento, que nesta edição não está datado mas leva o título de “Papel... no qual se mostra que o negócio que os padres fazem nem é lícito, nem necessário, nem, em conseqüência dele, há bens industriais, e que os que adquirem nas aldeias são para o comum delas”, foi enviado a Lisboa em duas partes. Veja p. 970n. A segunda parte do memorial, que traz a data, o remetente e o destinatário dados aqui, também está publicada em AAP, IV (1905), 212-20. (111) Decreto de 10 de julho de 1757, mencionado sem citação da fonte por Ernesto Cruz, “Seqüestro dos bens dos regulares da Companhia de Jesus no Pará, Maranhão e Piauí”, I nstituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da Sede do Governo do Brasil (1963), II (Rio de Janeiro, 1967), 14. (112) [Mendonça Furtado] a Carvalho e Melo, 16 de junho de 1757, C/FXMF, III, 1098-1104. (113) Idem a Diogo de Mendonça Corte Real, 23 de dezembro de 1751, ibid., I, 131-32. (114) Idem a Tomé Joaquim da Costa Corte Real, 7 de junho, 8 e 18 de outubro de 1757, AAP, V, 215-301; VI (1907) 44-46. (115) Tomé Joaquim da Costa Corte Real a Mendonça Furtado, 2 de agosto de 1758, C/FXMF, III, 1187; também publicada em Ernesto Cruz, “O Pará dos séculos XVII e XVIII”, IV Congresso de História Nacional, Anais, III (Rio de Janeiro, 1950), 26n., onde a data é dada erroneamente como sendo 1753. (116) Mendonça Furtado a T, J, da Costa Corte Real, 22 de fevereiro de 1759, AAP, VIII (1913), 215-27. Um inventário realizado poucos meses depois revelou que os jesuítas tinham possuído 134.465 reses e bestas em quatro fazendas grandes e três menores na ilha de Marajó. [Manoel Bernardo de Melo e Castro] a idem, 30 de julho de 1759, ibid., 56 -59; também publicada ibid., II (1902), 152-53, nota 2. 155 (117) Na primavera de 1758 a Coroa despachou para a Bahia uma junta especial, composta de três magistrados d a prestigiosa Casa de Suplicação, com instruções para apreender todos os bens dos jesuítas naquela capitania -geral, caso os padres não apresentassem as licenças que os autorizavam a possuir tais bens. O Rei a Manoel Estevão de Almeida de Vasconcelos Barber ino, 8 de maio de 1758, Castro e Almeida, Inventário, I, 332-33. Ordens idênticas foram enviadas aos capitães -generais do Rio de Janeiro e Pernambuco em 21 de julho e 23 de agosto de 1759. Conde de Bobadela ao desembargador Manoel da Fonseca Brandão, 2 de novembro de 1759, RADF, I (1894), 288-89; carta régia a Luiz Diogo Lôbo da Silva, 23 de agosto de 1759, Revista do Instituto Archeológico, Histórico e Geográfico Pernambucano , nº 43 (1893), 34-38. Em outra ocasião espero analisar as atividades da junta da Bahia, à base de extensas fontes manuscritas que coligi. (118) É vasta a literatura referente à acidentada luta entre o futuro Marquês de Pombal e os jesuítas, e até aqui só pude examinar uma pequena parte dela. No preparo desta seção foram -me particularmente úteis as obras de João Lúcio de Azevedo. O Marquês de Pombal e a sua época (2ª ed.; Lisboa, 1922), Capítulos 4-6; Ludwig, Freiherr von Pastor, The History of the Popes from the Close of the Middle Ages, trad. E. F. Peeler, XXXVI (St. Louis, Mo., 1950), 8-23, 294-343; e Christoph Gottlieb von Murr, História dos Jesuítas no ministério do marquêz de Pombal, trad e notas de J. B. Hafkemeyer, S. J., publicada como Vol. III da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, 1903). Escrito por um protestante alemão à base de materiais fornecidos por ex jesuítas e publicado originalmente em Nuremburg em dois volumes em 1787-1788, é este o mais antigo trabalho bem documentado sobre a expulsão dos jesuítas do império português. (119) Cf. Weld, The Supression of the Society of Jesus, pp. 8 e ss. e Lamego, A terra Goytacá, III, 84 e ss. (120) Azevedo, Estudos, pp. 62-63. (121) Pastor, History of the Popes, XXXVI, 10. 156 (122) Ibid., pp. 10-12, 16. (123) Publicada originalmente em 17 57, a “Relação abreviada” foi reimpressa várias vezes em forma de panfleto e incluída entre as “provas” que acompanharam o principal informe oficial do governo português contra os jesuítas, a Deducção chronológica, editara em três volumes em 1768. Ver Provas da parte primeira da deducção chronológica e analytica, e petição de recurso do doutor Joseph de Seabra da Sylva. I (Lisboa, 1768), 336-72. (124) Pastor, History of the Popes, XXXVI, 18. (125) Ibid., 295. (126) Ibid., 22-23. (127) Mandamento do Cardeal Francisco Saldanha, 15 de maio de 1758, Col. dos breves pontifícios, nº 8; também publicado em Melo Moraes, Corographia, IV, 542-48. (128) Citado em Pastor, History of the Popes, XXXVI, 296; ver também seu comentário na p. 298 acerca da legalidade da medida do patriarca. (129) Ver Muss, História dos Jesuítas, Cap. XIII, onde se encontra um exame bastante singular do confisco e venda dos bens dos jesuítas em Portugal. (130) Sobre o texto, que repete na essência e na linguagem as principais acusações dirigidas pelo governo português aos jesuítas nos últimos anos da década de 1750, veja -se Antônio Delgado da Silva, Collecção da legislação portuguesa de 1750 a [1820], I (Lisboa, 1830), 713-16. (131) Para uma recente reafirmação da importância do regalism o na expulsão da Companhia dos domínios espanhóis, ver Magnus Mörner, “The Expulsion of the Jesuits fromSpain and Epanish America in 1767 in Light of Eighteenth -Century Regalism”, The Americas, XXIII (outubro, 1966), 156-64. Embora o professor 157 Mörner reconheça a importância de outros fatores na motivação da expulsão (p. 163), não leva em conta o papel das influências econômicas. (132) Assim, em conseqüência da recomendação de Mendonça Furtado, os Capuchos e os religiosos da Conceição da Beira e Minho foram proscritos do Pará em 1758. Cruz, “O Pará dos séculos XVII e XVIII”, p. 32. Em 1794 os mercedários foram também banidos do Amazonas e tiveram suas propriedades seqüestradas. Domingos Antônio Raiol (Barão de Guajará), “Catechese de índios no Pará”, AAP, II, 153-54. (133) “The Expulsion of the Jesuits”, p. 158. (Transcrito de Conflito e continuidade na sociedade brasileira – Ensaios. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1970, p. 31 -78). 158