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ANAIS DO III CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DIREITO FACULDADE DE EDUCAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E TECNOLOGIA DE IBAITI ISSN 2179-1880 Nº 11 Julho - 2015 Esta edição contém produção científica produzida no Curso de Direito da FEATI – Ibaiti. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 1 REVISTA ELETRÔNICA DA FEATI Faculdade de Educação Administração e Tecnologia de Ibaiti (FEATI), Mantida pela Associação de Ensino Superior de Ibaiti (AESI). Edição - Nº 11 – julho de 2015 Av. Tertuliano de Moura Bueno, 1400 - Vila Flamenguinho – 84.900-000 - Ibaiti - PR - Tel. (43) 3546-1263 CONSELHO EDITORIAL – CURSO DE DIREITO Evaldo Gonçalves Leite Luciano Ferreira Rodrigues Filho Letícia Fátima Ribeiro Ronny Carvalho da Silva COORDENAÇÃO Ronny Carvalho da Silva Solicita-se permuta. Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores. Os trabalhos aqui publicados foram cedidos pelos autores em virtude de apresentação no III Congresso de Iniciação Científica promovido pelo Curso de Direito da FEATI entre os dias 01, 02 e 03 de Junho de 2015. Anais do III Congresso de Iniciação Científica : Curso de Direito. Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. -- n. 11 (2015) - . Ibaiti (PR) : a Instituição, 2015 v. ISSN 2179-1880 1. Direito - periódico I. Simpósio Internacional de Direito. II. Congresso de Iniciação Científica. III. Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 2 ÍNDICE PRODUÇÃO DOCENTE E DISCENTE Educação política: pressuposto para o exercício pleno da cidadania no Estado 06 Democrático de Direito. A reforma agrária como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais 14 A sociologia de Pierre Bourdieu 30 As implicações da terceirização nas trabalhadoras da limpeza: o sofrimento em 45 questão Penhora on-line de ativos financeiros: análise crítica da importância do instituto na 56 era da informatização. 68 O apedrejamento de Soraya M. e o caleidoscópio jurídico. Análise da coesão e coerência nas produções textuais dos alunos: orientações aos professores de língua portuguesa que atuam nos anos finais do ensino fundamental e 90 médio No rastro dos imigrantes: a esperança de um mundo novo, o Brasil para os haitianos 114 O estado regional autonômico 123 O ônus da prova e o sistema acusatório no direito processual penal brasileiro 137 Reflexões sobre a cultura do capital: relações do trabalho e educação 143 TRABALHOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA Controle de constitucionalidade brasileiro e o direito comparado 157 A execução da pena e o cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana 183 O fenômeno das sociedades anônimas 198 Aplicação da pena de morte no Brasil 208 Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 3 APRESENTAÇÃO Pelo terceiro ano consecutivo temos a grata satisfação de apresentar à comunidade acadêmica e ao público em geral o resultado dos esforços de professores e alunos no desenvolvimento da pesquisa e da iniciação científica no âmbito de nosso curso de Direito. Sabemos que o desenvolvimento de uma instituição de ensino não se mede estritamente e necessariamente pela sua dimensão de infraestrutura física, o qual, embora relevante, não merece maior prestígio do que a dimensão humana e das ideias que essa dimensão pode produzir, graças à participação ativa dos membros da comunidade acadêmica no desenvolvimento de uma criticidade construtiva, em que as reflexões e o pensamento possam encontrar livre espaço para sua construção. Assim é na FEATI, onde buscamos incentivar o Acadêmico, por diferentes modalidades, à manifestação de sua criticidade, partindo do universo da pesquisa para, em um segundo momento, construir suas próprias proposições para a busca de soluções adequadas aos diferentes desafios da vida contemporânea. Nesta edição vemos os trabalhos dos professores e dos alunos do curso de Direito, demonstrando, assim, o esforço e dedicação deles na pesquisa científica, no diagnóstico e discussão de temas relevantes na seara do Direito Constitucional e que impactam decididamente na realidade da vivência quotidiana dos direitos fundamentais em sociedade. Nosso objetivo é que as contribuições aqui reflexionadas possam se tornar conhecidas do grande público e que nosso curso cresça ainda mais na profundidade dos temas que tratar, valorizando cada dia mais a pesquisa científica, a fim de que haja uma manutenção adequada dos níveis de qualidade do ensino, mas, acima de tudo, para que tenhamos bons egressos que, ao voltarem para a sociedade depois de frequentarem os bancos desta instituição, possam perceber os graves problemas que ainda afetam a construção de uma Nação verdadeiramente democrática, pluralista e inclusiva, enfim, para Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 4 que encontrem criticamente o caminho da busca incessante da efetivação de nossa Constituição e dos Direitos Humanos em nosso País. A verdadeira educação que desejamos imprimir no curso de Direito da FEATI é aquela que possa transformar o oprimido, libertar o cativo, trazer luz às trevas da ignorância, renovar os hábitos, promover a pessoa humana e sua dignidade, enfim, uma “educação como prática da liberdade” (Paulo FREIRE), capaz de fazer de nossa Constituição uma força viva na sociedade e não “mera folha de papel” (LASSALE). É o que sonhamos... É o que buscamos... Todos os que nesta edição publicaram compartilham do mesmo sonho. Parabéns ao Curso de Direito da FEATI por possuir valorosos professores e dedicados alunos! Vamos avante! Ibaiti-PR; Julho de 2015. Prof. Me. Ronny Carvalho da Silva Coordenador do Curso de Direito da FEATI Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 5 EDUCAÇÃO POLÍTICA, PRESSUPOSTO PARA O EXERCÍCIO PLENO DA CIDADANIA NO ESTADO DEMOCRATICO DE DIREITO. Prof. Ronny Carvalho da Silva Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Procurador do Município de São José da Boa Vista. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Gilson Proença de Meira Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti 1 INTRODUÇÃO Todos são chamados a opinar na escolha dos representantes políticos a cada dois anos, votando e elegendo candidatos para a representação política nas três esferas de atuação política, quais sejam, as esferas municipal, estadual e federal, no entanto é cediço que a população brasileira ainda pode ser compreendida dentro de um contexto de analfabetismo político caracterizado pela falta de consciência política dos eleitores e da compreensão adequada do fenômeno político, da relevância do voto, da participação popular através dos mecanismos de democracia direta e outros temas ligados com o exercício pleno da cidadania. Diante das nefastas consequências de uma analfabetismo político para a condução política da Nação, e a partir dessa ótica, algumas reflexões devem ser realizadas com o objetivo de se tentar conhecer mecanismos aptos à uma mudança de panorama, vislumbrando uma busca por condições efetivas de consciência cidadã por parte dos cidadãos. Acredita-se que a problemática se assenta na inexistência de uma educação alicerçada em práticas libertadoras cunhadas sob o enfoque da política e sua importância social, partindo do pressuposto que as pessoas não são educadas politicamente de forma adequada para a participação ativa e consciente da vida em sociedade. Nesse contexto, o presente artigo aborda o tema da educação política como pressuposto para o exercício pleno da cidadania no estado democrático de direito brasileiro, tendo por referência essencial a obra do pedagogo Paulo Freire. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 6 2 EDUCAÇÃO POLÍTICA PARA EXERCÍCIO PLENO DA CIDADANIA CONSTITUCIONAL: Tem-se percebido que a educação e o educador em diversos níveis de protagonismo educacional, seja do primário ao ensino superior, tem descuidado do papel político da educação, como instrumento de inclusão no exercício da cidadania. Sob a ótica de Paulo Freire, há um erro evidente no processo educacional atual que se preocupa tão somente com a transferência meramente de conteúdos técnicos, sem preocupação alguma com a formação e a transformação do indivíduo como ser consciente de seus deveres políticos e do exercício pleno da cidadania. Conforme leciona o educador (FREIRE, 2001, p. 51): Para finalizar, gostaria de sublinhar um equívoco: o de quem considera que a boa educação popular hoje é a que, despreocupada com o desvelamento dos fenômenos, com a razão de ser dos fatos, reduz a prática educativa ao ensino puro dos conteúdos, entendido este como o ato de esparadrapar a cognoscitividade dos educandos. Este equívoco é tão carente de dialética quanto o seu contrário: o que reduz a prática educativa a puro exercício ideológico. Inegável, pois, que a educação deve ser entendida como um ato político por si só, sendo descabido o pensar em educação de forma desvinculada da política, tratando da política e sua fenomenologia apenas como uma disciplina da grade educacional. Deve-se, portanto, privilegiar uma educação que possa conferir ao indivíduo uma capacitação para o exercício pleno de sua cidadania, através do surgimento de um reconhecimento de sua inserção no contexto democrático, assim como no conhecimento de quais instrumentos democráticos estão previstos constitucionalmente para a instrumentalização dessa participação efetiva. Nos dizeres de Freire (1999, p. 20), deve haver uma “educação para a decisão, para a responsabilidade social e política”, a fim de que o indivíduo possa primeiramente adquirir consciência de seu papel histórico, sua colocação historicamente estabelecida, a partir da qual possa adquirir a consciência de sua cidadania, dos seus direitos, dos seus deveres, por conseguinte sua organização e participação inclusiva na vida comum da sociedade. Inegavelmente em termos de educação política há uma falta generalizada de conhecimento e interesse popular, de uma visão mais aguçada da vida pública, há ausência de processos pedagógicos voltados à capacitação do indivíduo acerca dos processos que Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 7 direcionam a vida em sociedade, bem como sobre o Estado e a formação das estruturas de poder político. Vale dizer que há uma cultura institucionalizada para desestimular a participação popular na política diante da ausência de uma educação política que proporcione o entendimento massificado dos instrumentos jurídicos e políticos de participação popular, da compreensão do papel das instituições políticas, da exata noção do significado dos direitos e garantias fundamentais, assim como dos deveres fundamentais que tocam aos cidadãos. Ademais, o Estado burocratizado dificulta ainda mais o entendimento e a participação ativa dos cidadãos no processo político, vez que o modelo de Administração Pública, calcado no formalismo exagerado, dificulta sobremaneira o exercício da cidadania, seja porque o próprio servidor é vítima de uma educação não política, seja porque o cidadão que busca os serviços e as informações do Poder Público desconhece os caminhos e instrumentos adequados de efetivação de suas demandas. Por meio da educação política, é possível a superação de um modelo de fatalismo ontológico assumido pelas classes sociais inferiorizadas, de modo a que o discurso possa ser modificado e reproduzido de maneira diversa. Conforme Freire (2003, p. 49): Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o que é um engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo. Com efeito, a suposta mansietude do povo brasileiro decorre mais de sua incapacidade de mobilização social e política, por desconhecimento de suas potencialidades constitucionalmente estabelecidas, do que uma característica antropológica do grupo formativo da população brasileira. É preciso romper com esse lastro de autoritarismo pedagógico, de modo a estabelecer na educação inclusiva o modelo de educação para a política, evidenciando os modelos, as práticas, os instrumentos e as prerrogativas do exercício pleno da cidadania, sem descuido com os deveres constitucionalmente estabelecidos. Assim, pois, é preciso assumir realmente a politicidade da educação, educando a todos para serem e se tornarem cidadãos plenos, conhecedores de seus direitos e deveres, e com consciência para lutar por uma transformação real da nossa realidade social na busca da efetivação do texto Constitucional. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 8 A omissão de educação política é a continuação da exclusão histórica das massas populares na participação política do estado. Isso acontece desde a Grécia antiga passando pela idade média até os dias atuais, apenas mudaram os critérios para permitir o exercício da cidadania, de voto censitário, ou seja, do grande proprietário de terras a alfabetizado (aquele que sabe ler e escrever), e isso é feito utilizando de vários instrumentos alienantes, em destaque a educação usada como instrumento de domesticação, para formar o homem objeto. Que a alfabetização tem que ver com a identidade individual e de classe, que ela tem que ver com a formação da cidadania, tem. É preciso, porém, sabermos, primeiro, que ela não é a alavanca de uma tal formação – ler e escrever não são suficientes para perfilar a plenitude da cidadania –, segundo, é necessário que a tornemos e a façamos como um ato político, jamais como um que fazer neutro. (FREIRE, 2001, p.30) Dessa forma, é possível entender que a educação política é um pressuposto para o exercício pleno da cidadania, de modo que se torna necessário e urgente que as pessoas tenham maior acesso a ela, a fim de conhecerem os mecanismos de participação popular, as garantias fundamentais e os postulados básicos e essenciais de uma vivência democrática plena. Inserido nesse contexto, deve ser dada primazia ao estudo e conhecimento da Constituição republicana, a constituição cidadã de 1988, como elemento primordial de aglutinação dos anseios políticos essenciais e fundamentais da sociedade politicamente organizada. Conforme destaca Canotilho (2003), há algumas questões fundamentais que devem ser pensadas e respondidas pelos cidadãos de modo a se tornar evidente um protagonismo político-constitucional adequado dos cidadãos. Segundo o mestre de Coimbra, todos os cidadãos deveriam ter condições de responder adequadamente às seguintes indagações: (…) o que é uma constituição e porque é que a constituição assumiu centralidade política e jurídica nos modernos estados constitucionais; qual o direito posto numa lei fundamental?; qual a melhor constituição e quais os problemas políticos agitados pelo direito constitucional? (CANOTILHO, 2003, p. 29) Perguntas fundamentais que, uma vez respondidas pela maioria da população, resultaria na adequada compreensão do fenômeno político-constitucional e consequentemente aumentariam os níveis de entendimento e valorização dos processos Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 9 constitucionalmente estabelecidos para manifestação e participação popular nas decisões políticas fundamentais, notadamente no que se refere aos instrumentos de participação democrática direta. Conforme a máxima schmittiana (SCHMITT, 1996, p. 47): “No fundo de toda normatização reside uma decisão política do titular do poder constituinte, ou seja, do povo (…).” Nesse sentido, Canotilho (2003, p. 1441) esclarece que: A organização do poder político pela constituição não se limita à criação de órgãos e definição das respectivas competências e funções. À constituição pertence definir os princípios estruturantes da organização do poder político (…). Assim, plenamente perceptível que, de fato, a constituição é antes de mais nada um reflexo de decisões políticas fundamentais de um povo, e assim sendo, tais decisões políticas precisam ser bem compreendidas para serem vivenciadas em um contexto de aproximação e percepção dos seus objetivos fundamentais. Enquanto essa adequada compreensão do papel político da constituição e da vivência política do cidadão dos postulados fundamentais previstos constitucionalmente, nãos parece crível que haverá uma efetivação da cidadania plena e do princípio democrático. Com efeito, a cidadania implica no reconhecimento de que ao cidadão é reservado o direito e o dever de participação política, ou seja, influenciar decididamente nos destinos da coletividade agrupada sob o que ficticiamente restou denominado por Estado. Cabe à educação o papel de fornecer os cabedais de informação e competências a serem transferidas aos educandos, de modo a que esses, se apropriando desses conceitos constitucionalmente estabelecidos, possam efetivá-los na vivência prática do quotidiano. Não é sem razão que a própria Constituição estabeleceu que à educação compete preparar o indivíduo para “o exercício pleno da cidadania” (art. 205), de modo que não se pode compreender a educação, como visto alhures, como mera transferência de conteúdos profissionalizantes e técnicos, mas sim como um processo de formação política do indivíduo visando prepará-lo para bem exercer seus direitos e deveres perante a coletividade, bem compreendo seu papel como “ser político” (Aristóteles), apto a manejar os instrumentos de efetivação da democracia direta previstos constitucionalmente. Bem salienta Fachin (2012, p. 206): Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 10 O capítulo reservado à educação, à cultura e ao desporto revela preocupação com a cidadania. Estabelece que a educação, compreendida como direito fundamental, deve estar voltada ao pleno desenvolvimento da pessoa humana (…). Portanto, a educação bem compreendida como um ato político de educar para preparar para a cidadania, deve ser oportunizada para todos, caso contrário estar-se-á mantendo as massas incultas nas trevas da ignorância, não permitindo que se assenhorem de seus direitos e deveres políticos em plenitude. Assevera Paulo Freira (2003, p. 128): Por que não fenecem as elites dominadoras ao não pensarem com as massas? Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua “razão”, na afirmação de Hegel, já citada. Pensar com elas seria a superação de sua contradição. Pensar com elas significaria já não dominar. Por isto é que a única forma de pensar certo do ponto de vista da dominação é não deixar que as massas pensem, o que vale dizer: é não pensar com elas. Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim – jamais permitiram às massas que pensassem certo. Com efeito, a cidadania plena somente poderá ser alcançada com a participação ativa da sociedade, de todas as camadas que compõe o substrato social, notadamente as categorias que compõe a grande maioria e que integram os grupos mais vulneráveis dos trabalhadores assalariados, urbanos e rurais, e demais classes trabalhadoras que sempre tiveram seu direito à educação negligenciado pelo Estado, elitizado que sempre foi. A cidadania plena que se pretende atingir ultrapassa meros conceitos teóricos e se consubstancia em uma capacidade reativa da sociedade em se comportar politicamente dentro do quadro geral do constitucionalismo, sob o manto das inúmeras possibilidades de participação ativa. Nos dizeres de Silva (2004, p. 104-105): A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento do indivíduo como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona- Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 11 se com o conceito de soberania popular (parágrafo único do art. 1º), com os direitos políticos (art. 14) e com o conceito de dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), com os objetivos da educação (art. 205), como base e meta essencial do regime democrático. A educação é o principal instrumento para que alcance a cidadania plena, preparando o individuo para o exercício do seu status activae civitatis, ou seja, participar ativamente da condução política do país, influindo decididamente nas decisões que possam acarretar mudança de paradigmas e adoção de rumos e programas de Estado, com considerável influência sobre todos os integrantes da sociedade. 3 CONCLUSÕES A Constituição republicana de 1988 conferiu uma série de direitos e deveres aos cidadãos brasileiros sob uma perspectiva jamais vista anteriormente. Não é sem razão que a Constituição de 1988 é reconhecida como a “Constituição-cidadã”, dado seu avançado rol de prerrogativas políticas e de participação popular na vida política do país. Inobstante os avanços alcançados na conquista de direitos e prerrogativas que conferem aos cidadãos um estruturado arcabouço jurídico-constitucional de exercício pleno de cidadania, verifica-se que o status activae civitatis não encontrou ainda ressonância na vida prática quotidiana da sociedade. A percepção nítida dos descompasso entre a previsão jurídico-constitucional e sua efetivação, no que se refere aos instrumentos de participação popular previsto na Lei Maior, não deixa dúvidas quanto à baixa interação do povo com os referidos instrumentos constitucionais. Facilmente se pode constatar que a sociedade brasileira, de um modo geral, não compreende adequadamente as ferramentas de participação democrática previstos na constituição e que permitiria uma participação ativa nas decisões políticas fundamentais. De igual modo o exato reconhecimento da importância dos institutos de participação política, de democracia direta e as de democracia participativa, dos conselhos comunitários, da iniciativa popular, entre outros, não fazem parte da cultura popular e não há um interesse generalizado pelo conhecimento desses mecanismos. Mal se sabe votar e mal se sabe a relevância do “saber votar”, de modo que apenas se trata o direito ao voto como uma “obrigação” que se não se pode furtar sob pena de Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 12 penalizações, mas não se reflete criticamente sobre o instituto e seu papel fundamental na formação do corpo político que estará à frente do corpo político nas esferas de poder. Cumpre reconhecer, dessa forma, a importância da educação política como instrumento eficaz de formação cidadã, através da implantação de uma cultura para a formação de um corpo social consciente de seu papel na condução da vida política da Nação que integram. O desprezo por uma educação verdadeiramente inclusiva e que trate dos fenômenos políticos constitucionalmente estabelecidos, implica na baixa concretização de valores tão caros à Nação e conquistados às duras penas pelas gerações que antecederam a esta. Cumpre, assim, reconhecer a educação política como mecanismo de efetivação de uma cidadania plena, assim compreendida como a cidadania verdadeiramente vivenciada no quotidiano das pessoas. Enquanto a educação não libertar o homem e a mulher do jugo das elites dominantes, que dizem o que é bom e que dirigem as vidas das massas menos favorecidas como que desprovidas de uma capacidade de se autogovernarem, não se alcançará a efetivação da cidadania plena, concluindo que a democracia brasileira ainda precisa de concretização, não bastando seu enunciado formal no texto constitucional. Somente a educação política poderá transformar nossa democracia em força viva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CANOTILHO, José Joaquim Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. FREIRE, Paulo. Política e Educação: Ensaios. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 36ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial, 1996. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 13 A REFORMA AGRÁRIA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Prof. Edson Luiz Zanetti Professor da Faculdade de Educação Administração e Tecnologia de Ibaiti – FEATI/UNIESP. Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE, Bauru. Paulo Fernando Zanetti Engenheiro Agrônomo pela Faculdade de Agronomia e Engenharia Florestal de Garça- FAEF. INTRODUÇÃO A atividade exercida pelo homem do campo é assunto que merece especial atenção dos governantes do nosso país, para a realização de uma política agrária eficaz conforme os ditames constitucionais e, as previsões legais estabelecidas, garantindo-se o fornecimento de alimentos e outros bens retirados da terra, para o consumo da população, a justa distribuição de terras, empregos no campo. A propriedade da terra é um direito fundamental, deve ser bem planejada e organizada a sua distribuição a fim de garantir vida digna àqueles que dela utilizam como fonte de sustento. A má distribuição de terras no Brasil tem razões históricas. Quando se implantou a adoção do regime das sesmarias implantado em nosso país há quase 500 anos, ficou demonstrado que, embora tenha sido importante para o povoamento das terras brasileiras, foi um dos principais responsáveis pelo processo de latifundização de nosso solo. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 14 Enfraquecido pelo autoritarismo político, o Brasil não aderiu aos movimentos sociais que, no século XVIII, democratizaram o acesso à propriedade da terra e mudaram a estrutura fundiária em toda Europa e nos Estados Unidos. (CARDOSO, 1997, p. 17) O Brasil é o quarto maior país do mundo em extensão territorial. Possui 8.547.403 quilômetros quadrados, atrás apenas da Rússia, da China e do Canadá. Para se ter uma ideia, tem extensão de terras equivalentes a toda Europa, excetuando-se a área pertencente à Rússia. Somos o país que tem a maior extensão de terra agricultável do mundo (VARELLA, 1998, p. 132). Além disso, reúne condições climáticas e a fertilidade do solo mais favoráveis que de outros países. Com todo o privilégio natural disponível, a estrutura do campo deveria estar melhor preparada para acolher as reivindicações dos trabalhadores rurais. No entanto, vivenciamos o cenário onde a maioria desses não tem um pedaço de terra para plantar, enquanto uma minoria da população é proprietária da maior parte das terras brasileiras. 1 ASPECTOS CONCEITUAIS O instituto da reforma agrária se compõe de um conjunto de medidas cujo objetivo é promover a distribuição de terras para a devida utilização e exploração da propriedade agrária, visando atender aos princípios da justiça social. A ideia central deste instituto é a desapropriação de áreas rurais improdutivas e a consequente transferência da posse e propriedade da terra a trabalhadores rurais que não possuem terras para plantar. A Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, no Art. 1º, § 1º, cuidou de conceituar a reforma agrária nos seguintes termos: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 15 Art. 1º, § 1º – Considera-se reforma agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade. Raphael Augusto de Mendonça Lima em brilhante exposição, ao conceituar reforma agrária, acrescenta o aspecto da eficiência: A reforma agrária é a modificação da estrutura agrária deficiente de um país, ou de uma região, para torná-la eficiente, de acordo com uma política do Poder Público, a ser executada segundo as instituições jurídicas que foram especialmente elaboradas a sua execução, modificando, assim as até então existentes. (LIMA, 1997, p. 231) Pinto Ferreira afirma ser “[...] a mudança dos traços essenciais e total da atual estrutura agrária em um sistema de distribuição, utilização e exploração da propriedade agrícola, tendente à democratização da propriedade rural”. (FERREIRA, 1994, p. 458). Portanto, a melhor distribuição de terras é a base da reforma agrária. Contudo, como explica, Paulo Torminn Borges, “[...] não se trata de distribuição de terras pura e simplesmente, mas envolve a ideia de corrigir o que estiver mal feito, atentando aos princípios da justiça social”. (BORGES, 1991, p. 22) Concluímos que o conceito de reforma agrária é bastante amplo, não se prendendo apenas ao aspecto da melhor distribuição de terras, mas envolvem outras medidas que atendem o bem-estar social, a produtividade e incentivos ao homem do campo. 2 A RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 16 A relativização do direito de propriedade é um dos pilares do modelo de desapropriação que foi se construindo ao longo dos anos, principalmente, para fins de reforma agrária. Durante séculos, a propriedade privada se apresentou como um dos mais importantes direitos conquistados no decorrer da história. Era concebida como direito inviolável. A noção de propriedade como direito ilimitado, se contrapunha ao pensamento de alguns estudiosos desde a Grécia antiga. Aristóteles dizia que a terra teria de cumprir um papel na sociedade. (VARELLA, 1998, p. 202). Na medida em que o bem-estar social foi se transformando no maior valor a ser defendido pelos homens e pelos Estados, o direito de propriedade, aos poucos, foi perdendo o seu caráter absoluto, com muito mais intensidade no século passado (PAULSEN, 1998, p. 132), até se formar o convencimento de que a propriedade deve atender a sua função social. Um dos primeiros estímulos à relativização da inviolabilidade do direito de propriedade e, consequentemente, para a reforma agrária, provém do século XVIII, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que no Art. 17, fez ressalva à inviolabilidade do direito de propriedade nos seguintes termos: Art. 17: Ninguém poderá ser privado da propriedade, que é um direito inviolável e sagrado, senão quando a necessidade pública, legalmente verificada, evidentemente o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. Mais de 100 anos depois, no dia 15 de maio de 1891, o Papa Leão XIII, publicou a encíclica Rerum Novarum. Esse documento reconheceu o caráter natural do direito de propriedade, ressalvando-se, todavia, o cumprimento de sua função social. É a partir desta Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 17 encíclica que a Igreja começou a destacar a importância da função social da propriedade. (ABINAGEM, 1996, p. 160). A Constituição do México, de 05 de fevereiro de 1917, também contribuiu para o assunto. Previu que as terras e águas compreendidas nos limites territoriais do país, pertenciam à nação mexicana. No seu Art. 27, como observa Olavo Acyr de Lima Rocha, “[...] deixou assentado que a nação teria sempre o direito de impor à propriedade privada as modalidades de aproveitamento dos elementos naturais suscetível de apropriação”. (ROCHA, 1992, p. 72). É bastante festejada a Constituição de Weimar de 1919, que no seu Art. 153, assegurou que o uso da propriedade constitui um serviço para o bem comum. Neste período ocorreram reformas agrárias em países como: Alemanha, Áustria, Checoslováquia, Estônia, Lugoslávia e Polônia. (ROCHA, 1992, p. 72 ). Enfim, aos poucos foi se concretizando a noção de que o absolutismo não é mais da propriedade em si mesma, mas sim, a sua função social, que constitui o seu perfil constitucional adotado na maioria dos Estados (SILVEIRA, 1998, p. 13). Com efeito, abriramse as portas para a concretização da reforma agrária nos Estados. 3 EVOLUÇÃO JURÍDICA DA REFORMA AGRÁRIA NO BRASIL Importante anotar que são três as modalidades de desapropriação reconhecidas no direito brasileiro: desapropriação por necessidade ou utilidade pública; por interesse social e por interesse social para fins de reforma agrária. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 18 Nota-se que desde a Constituição do Império e a Primeira Republicana, a possibilidade de desapropriação da propriedade particular esteve prevista, no entanto, se limitava à modalidade necessidade ou utilidade pública. Na época de vigência dessas Constituições, surgiram alguns movimentos sociais lutando por melhores condições de vida. Marcelo Dias Varella informa que “[...] tanto no período colonial quanto após a declaração da independência, é possível observar a ocorrência de diversas rebeliões de caráter nitidamente agrário” (VARELLA, 1998, p. 132 ). No entanto, tais movimentos foram logo abafados pelo governo do país. Com a promulgação da Constituição de 1946, no Art. 141, § 16, incluiu-se a modalidade de desapropriação por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. No entanto, essa modalidade de desapropriação somente foi regulamentada a partir da Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, quase vinte anos depois. Nas palavras de Ismael Marinho Falcão: Infelizmente, a norma constitucional quanto à desapropriação por interesse social, ficou como letra morta até 1962, quando veio à luz a Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, definindo os casos de desapropriação por interesse social. (FALCÃO, 1995, p. 61). A lei acima mencionada tratou de assuntos como: a decretação da desapropriação por interesse social para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social e, a definição para se considerar o interesse social e o prazo para efetivar a aludida desapropriação. Mas, o passo decisivo para a implantação da reforma agrária no Brasil, ocorreu por meio da Emenda Constitucional nº 10, de 10 de novembro de 1964, que acrescentou seis parágrafos ao Art. 147 da Constituição de 1946. No parágrafo primeiro, previu-se a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 19 desapropriação da propriedade rural mediante pagamento de prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública, resgatáveis no prazo máximo de 20 anos. Nasceu assim, a modalidade de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Nelson Demétrio alvitra que “[...] a Emenda Constitucional nº 10 rompeu o dique que opunha formal resistência ao instrumento jurídico para o processamento da reforma agrária brasileira”. (DEMÉTRIO, 1988, p. 33) No mesmo sentido, Olavo Acyr de Lima Rocha (1992, p. 72) assevera que: Foi com as modificações de fundo inseridas na Carta Magna de 1946 pela Emenda nº 10, de 10/11/1964, que se tornou possível a efetiva execução em nosso país da reforma agrária com mais de 40 anos de atraso com relação àquelas levadas a efeito na Europa. Nos cofres públicos não havia recursos disponíveis para pagar os proprietários das áreas desapropriadas. Além disso, “[...] pagar em dinheiro seria premiar quem não cumprisse sua função social” (NASCIMENTO, 1997, p. 170). A indenização em títulos da dívida pública representa um grande marco para a justa divisão de terras. O risco de sofrer uma desapropriação, obrigou os proprietários a tornar suas terras produtivas, cultivando-as de acordo com suas capacidades. Entre outras alterações também implementadas pela Emenda nº 10, se destacam: a competência exclusiva da União para promover a desapropriação agrária, a obrigação de se indenizar em dinheiro as benfeitorias úteis e necessárias constantes na área desapropriada e, a isenção de imposto incidente sobre a transferência da propriedade expropriada. Ato contínuo, o Estatuto da Terra, que entrou em vigência no dia 30 de novembro de 1964, definitivamente, se propôs a resolver a questão. Nas palavras de Nelson Demétrio: “[...] desencadeando a permissibilidade da reforma agrária em termos jurídicos, condizentes e adequados às necessidades que inspiram e informam a ordem econômica e social” Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 20 (DEMETRIO,1988, p. 34). Os ideais almejados pela classe dos trabalhadores rurais sem-terra, enfim, se transformariam em realidade. 4 A REFORMA AGRÁRIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mais uma vez foi assegurada a hierarquia constitucional à reforma agrária. Além de se estabelecer o poder geral de desapropriação prevista no Art. 5º, inc. XXIV, trata da reforma agrária com especialidade, conforme dispõe o Art. 184: Art. 184: Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão e cuja utilização será definida em lei. Seguindo as disposições anteriores, o constituinte originário estabeleceu a competência privativa da União para desapropriar imóvel rural que não esteja cumprindo a sua função social para o fim de reforma agrária. Importante destacar a opinião de alguns autores, para quem, na disputa travada entre os ruralistas e os sem-terra, na época da feitura da Constituição, os primeiros tiveram vantagem, pois a Constituição teria abordado mais a política agrícola que a reforma agrária. Nesse sentido, cabe mencionar a observação de José Afonso da Silva que assim se expressa: “[...] enquanto a esta se opuseram inúmeros obstáculos, àquela tudo ocorre liso e natural, porque aí é a classe dominante no campo”. (SILVA, 2003, p. 803). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 21 Discussões à parte, em nosso sentir, a Constituição abordou muito bem os dois institutos. É clara a vontade do constituinte em promover a política agrícola e a reforma agrária no Brasil. Para regulamentar o disposto na Constituição Federal, foi promulgada a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, Lei da Reforma Agrária, que dispõe do modelo de desapropriação para fins de reforma agrária da propriedade rural que não cumpre com a sua função social.1 4.1 Propriedades imunes à reforma agrária Estabelece a Constituição da República que não será objeto de desapropriação a propriedade rural produtiva e a pequena e média propriedade rural, se o proprietário não tiver outra, conforme a dicção do Art. 185, incs. I e II.0 A Lei nº 8.629/93, no Art. 4º, inc. II, considera a pequena propriedade rural, aquela cuja área estiver compreendida entre 01 (um) e 04 (quatro) módulos fiscais. No inciso III, dispõe que média propriedade é a área superior a 04 (quatro), até 15 (quinze) módulos fiscais. Anota-se que além da pequena e média propriedade rural ressalvada, se a propriedade é produtiva e cumpre a sua função social, mesmo que seja de grande extensão, não poderá ser desapropriada. A propósito, o art. 6º da Lei nº 8.629/93, estabelece: 1 Art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.629/93: Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 22 Art. 6º: Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente. O exame do enunciado acima evidencia, desde logo, que são dois os elementos essenciais para a constatação de uma propriedade rural produtiva: grau de utilização da terra e grau de eficiência na exploração. É de grande relevância a norma estabelecida, pois o Brasil precisa de propriedades produtivas, que gerem renda para o país, além da produção de alimentos, biocombustíveis e outros produtos levados ao mercado de consumo. Se a propriedade rural, mesmo sendo de grande extensão, atender à função social, à luz de nossa realidade, não deve ser desapropriada. Por fim, cumpre também anotar que além de ser imune à desapropriação para o fim de reforma agrária, a pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes da atividade produtiva, conforme dispõe o Art. 5º, inc. XXVI, da Constituição Federal de 1988, assegurando o princípio da dignidade da pessoa humana. 4.2 Uma melhor organização nos assentamentos de reforma agrária Hodiernamente, é compreensível a noção de que não basta promover a distribuição de terras, mas é fundamental que haja eficiência e organização nos projetos de reforma agrária no país. Necessariamente, os beneficiados devem ser aqueles que não têm terra e querem um pedaço de chão para plantar. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 23 Para esclarecer este ponto, citamos o noticiário do Jornal Nacional, 2 do dia 12 de novembro de 2007, que exibiu uma matéria que põe em dúvida a eficácia dos projetos de reforma agrária realizados no Brasil. Foram apontadas ilegalidades ocorridas em assentamentos rurais nas cidades de Uberlândia, Campo Florido e Ibiá, todas, no Estado de Minas Gerais. Constatou-se que áreas desapropriadas para o fim de reforma agrária estão sendo vendidas pelos colonos. No assentamento de Uberlândia, dos 87 lotes, 48 foram vendidos. Em Campo Florido, usineiros teriam demonstrado interesses pelas terras dos assentamentos. Na cidade de Ibiá, os lotes que deveriam atender aos fins da reforma agrária, acabaram virando chácaras. Se analisarmos os diversos assentamentos de reforma agrária, certamente constataremos que esse tipo de ilegalidade não acontece somente em Minas Gerais, mas também, em outros Estados da Federação. No dia 15 de fevereiro de 2013, o Jornal Estado de São Paulo3 publicou matéria revelando a ousadia em alguns assentamentos, onde se chega a utilizar anúncios em jornais para venda de lotes. É, justamente, para corrigir este tipo de distorção, que se exigem maiores cuidados, não se admitindo a entrega de terras a pessoas que não sabem, ou não querem cultivá-las. Precisamos de reforma agrária, mas que os beneficiários, realmente, sejam os que realmente necessitam e querem trabalhar com a terra. Evidente que existem assentamentos rurais eficientes em nosso país, onde a reforma agrária tenha dado certo. Contudo, é necessário o aperfeiçoamento do sistema, para que a área objeto de reforma agrária seja adequadamente aproveitada pelos colonos. 2 Disponível em: <http://www.jornalnacional.globo.com/jornalismo>. Acesso em: 13 mar. 2008. 3 Disponível em: < http:// www.politica.estadao.com.br/noticias/geral,venda-de-lote-da-reformaagraria-e-anunciada-em-jornal,997428 >. Acesso em 25 jul.205. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 24 Importante também observar, que a disponibilizarão de recursos financeiros e o acompanhamento técnico a esses trabalhadores, são condições imprescindíveis para que possam se manter na posse terra e viver com dignidade. 5 O LATIFÚNDIO NO BRASIL No ensinamento de Eduardo Bratz, o “[...] latifúndio é a nomenclatura atribuída a grandes extensões de terras que são cultivadas de forma precária, deficiente, com tecnologias arcaicas que proporcionam baixa produtividade”. (BRATZ, 2007, p. 52). O Estatuto da Terra, no Art. 4º inc. V, alíneas ‘a’ e ‘b’, dispõe que se considera latifúndio o imóvel rural que: Art. 4º, inc. V – [...]. a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do Art. 46, § 1º, alínea ‘b’, desta lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine; b) não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja, deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural. Desse modo, o latifúndio pode ser definido em duas modalidades: o de extensão incompatível com o previsto na lei, levando-se em conta as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine e o imóvel rural de área igual ou superior ao módulo rural que seja inexplorado, ou com incorreta utilização. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 25 Constata-se que na primeira modalidade, o latifúndio por extensão não se constitui apenas pelo tamanho da área nas mãos do proprietário ou possuidor. A impossibilidade de cultivar grandes áreas é um componente imprescindível para a configuração desta modalidade. Como assevera Cristiane Lisita Passos, “[...] latifúndio hoje denota não o tamanho do imóvel, mas a sua inexploração ou exploração ineficiente”. (PASSOS, 2004, p. 55). Na segunda modalidade, o possuidor ou proprietário considerando as características e a extensão do imóvel tem condições de explorar a terra e, mesmo assim, não o faz, ou a utiliza de forma inadequada. É importante frisar que o latifúndio é incutido à estrutura econômica do nosso país. Muitos grupos financeiros apesar de atuarem em diversas áreas da atividade econômica, se propõem a adquirir grandes quantidades de terras, e com elas fazem suas especulações e, na maioria das vezes, as mantêm intactas. Não tendo condições para explorar áreas de até 120 km², proprietários permanecem na posse da terra, não vendem, não arrendam e nem produzem. Consequentemente, no ano de 2003, constatou-se que apenas 25% da área territorial brasileira é ocupada para a exploração rural. (VILELA, s.d., p. 199). Em estudo ao assunto aqui abordado, Carlos Frederico Marés, lembra do pensamento de Lucke no século XVI, de que “[...] a apropriação está limitada, porém, à possibilidade de uso, dizendo que a ninguém é lícito ter como propriedade mais do que pode usar”. (MARÉS, 2003, p. 23). Justiça seja feita. O Brasil não precisa de gente que se apoie em suas terras com o objetivo de especulação ou de aparências, mas sim, de pessoas que trabalhem a terra. Por essa razão, dentro das condições constitucionalmente amparadas, deve o latifúndio ser desapropriado para o fim de reforma agrária. A propriedade privada é elevada à condição de direito fundamental, e sendo esta rural, desde que produtiva, propõe escopo para a consolidação da dignidade da pessoa humana. Encerramos esta parte com o pensamento de Júlio José Chiavenato, para quem Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 26 “[...] nada no Brasil mudará enquanto não eliminarmos a fonte da miséria: o latifúndio”. (CHIAVENATO, 1996, p. 06). 6 CONCLUSÕES É notória e complexa a situação dos trabalhadores sem-terra, compreendendo-se que muitos desses, há décadas, esperam por um pedaço de chão para produzir, quando, na verdade, observamos que a justa distribuição de terras no Brasil ainda está longe de se realizar. Enquanto isso, alguns privilegiados são proprietários da maior parte das terras brasileiras. Pessoas que não pretendem e não querem produzir, utilizam a terra com fins especulativos, na expectativa de que depois de alguns anos o valor comercial da terra nua seja bem superior ao de hoje, no mercado imobiliário. A desapropriação é medida necessária para resolver a questão, que na maioria dos casos, envolve latifúndios improdutivos que desconsideram completamente, a função social da propriedade. Só assim se tornará possível a tão esperada reforma agrária no Brasil, objetivando-se o acesso à terra a quem dela precisa e quer cultivá-la. O estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana não se coaduna com a precária política de reforma agrária no Brasil, é necessário incentivos políticos e econômicos para formar acampamentos rurais e após criar condições dignas para manter esta categoria de trabalhadores no cultivo da terra. Não restam dúvidas que o setor rural precisa de maior atenção por parte do Estado. Como todo cidadão urbano, os moradores e trabalhadores do campo também necessitam de condições de vida digna, principalmente, com a merecida valorização do trabalho que exercem. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 27 Por tudo se impõe uma reforma agrária como efetivação dos direitos fundamentais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABINAGEM, Alfredo. A família no direito agrário. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BRATZ, Eduardo. Direito agrário. In: GOYOS JÚNIOR, Durval de Noronha (org.). Direito agrário brasileiro e o agronegócio internacional. São Paulo: Observador Legal, 2007. CARDOSO, Fernando Henrique. Reforma agrária: compromisso de todos. Brasília: Presidência da República – Secretaria de Comunicação Social, 1997. DEMETRIO, Nelson. Doutrina e prática do direito agrário. 3ª ed. Campinas: Ago Juris, 1988. FALCÃO, Ismael Marinho. 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ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch da. A propriedade agrária e suas funções sociais. In: SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch da; XAVIER, Flávio Sant’Ana (orgs.). Direito agrário em debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária: o direito face aos novos conflitos sociais. Leme: Editora de Direito, 1998. VILELA, Mario Hamilton. Política agrícola, reforma agrária e movimentos sociais. In: Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, vol. 31, nº 94. Porto Alegre: AJURIS, s.d. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 29 A SOCIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU Profa. Flavia Wegrzyn Martinez Professora do Curso de Direito e Pedagogia da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa Jeferson de Campos Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti 1 INTRODUÇÃO Pierre Bourdieu, um intelectual intensamente afinado com as principais antinomias do tempo presente, foi o mais respeitável sociólogo público de sua geração, não apenas na França, mas também em todo o mundo. Realizou críticas ao neoliberalismo que, por sua vez, alcançaram amplas audiências extra-acadêmicas. A insistência de Bourdieu acerca da reflexividade tornou-se incansável, assegurando que sua proposta não era de denunciar ou incriminar os colegas cientistas, mas no sentido de libertá-los das ilusões escolásticas que no seu entendimento, nascem das condições especiais nas quais eles produzem o conhecimento, pois para Bourdieu, conhecer profundamente “as condições de produção do conhecimento é a condição necessária para a produção de um conhecimento melhor” (BURAWOY, 2010, p.26). Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo apresentar e compreender a grandeza do legado de Bourdieu. As reflexões teóricas no texto se dão especialmente partir dos conceitos de campo e habitus de Pierre Bourdieu. Da mesma forma, o texto realiza discussão acerca da teoria sociológica do autor, destacando suas contribuições para o campo da educação. A escolha pelos conceitos de habitus e campo se deve ao fato de representarem uma importante contribuição de Bourdieu ao pensamento sociológico, pois tais conceitos, aponta o autor, permitem uma melhor compreensão do mundo social, assim como dos múltiplos espaços que o compõem, considerando suas hierarquias e lutas internas, Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 30 revelando os aspectos conflituosos e as relações de poder que permeiam as relações humanas. Primeiramente, o texto apresenta uma concisa abordagem sobre a trajetória intelectual do autor com intento de compreender a gênese de sua teoria sociológica. Em seguida realiza-se uma discussão sobre esses dois conceitos, ao lado de outros, não menos importante, como capital cultural e violência simbólica. É indispensável salientar que os conceitos de campo e habitus representam uma unidade na sociologia de Bourdieu, o que implica em dizer que ambos os conceitos não podem ser separados quando aplicados na pesquisa. Portanto, neste texto, serão tratados separadamente apenas para efeito de exposição didática. 2 A PRAXIOLOGIA DE PIERRE BOURDIEU Pierre Felix Bourdieu (1930-2002), pertence ao grupo de filósofos da renomada École Normale Supérieur de Paris e viveu o conjunto de ritos da instituição, destinados a produzir uma convicção íntima e uma adesão inspirada, que o constitui filósofo” (BOURDIEU, 2013, p. 24). Bourdieu, embora não deixasse de intervir no campo filosófico, como expressam as obras, A ontologia política de Martin Heidegger, 1988, e Meditações pascalinas, 1997 (BOURDIEU, 2013), interessa-se pela sociologia de modo que faz dela sua vocação e seu combate. Bourdieu tem sua vida acadêmica, marcada por um trabalho científico de grande fôlego, regular, cotidiano, sistemático, persistente, sólido polêmico. A formação inicial de Bourdieu se deu no campo da Filosofia nos anos de 1950, na Escola Normal Superior de Paris e na Sorbonne, entretanto a partir do período vivido na Argélia (1955-1960), se dirigiu para a área das Ciências Sociais, em especial para a Antropologia e a Sociologia. A mudança em direção às Ciências Sociais parece estar ligada a sua origem social modesta e provinciana, fato que não lhe propiciava as disposições exigidas à época para o exercício da disciplina rainha na França (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 9). Tendo Bourdieu passado pela experiência difícil, em âmbitos subjetivos, de inserção simultânea em dois universos culturais distintos (o familiar e o da elite escolar), atribuía a si Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 31 mesmo uma espécie de habitus clivado, produto da dissonância entre a alta consagração escolar e a baixa extração social (BOURDIEU, 2004). Nosso autor ao longo de 45 anos, desenvolveu uma sociologia em que se estuda “[...] a lógica da dominação social nas sociedades de classe e os mecanismos pelos quais ela se disfarça e se perpetua” (CATANI 2007, p. 74). Suas obras são caracterizadas por ultrapassar as fronteiras disciplinares, pois compreendem estudos em diversos campos das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Sociolonguistica). Assim, como são compostas por grande variedade temática, pois o autor escreve sobre fenômenos tão díspares, como: “religião, artes, escola, a linguagem, a mídia, a alta costura, o gosto, entre tanto outros. Essas disposições intelectuais ecléticas conduziram-no à recusa de todo monismo metodológico (BOURDIEU, 2004). Para tanto, Bourdieu utiliza em seus estudos, das mais variadas técnicas e métodos de pesquisa, como: observação etnográfica, medição estatística, pesquisa por questionário, trabalho com fontes documentais até então inusitadas (NOGUERIA; NOGUEIRA, 2009). Bourdieu relata que muitas das disposições intelectuais que possui em comum com a geração estruturalista, principalmente com Althusser e Foucault devem-se ao fato de não ter aceitado o existencialismo, presente na época de 1950, em que a fenomenologia, na sua variante existencialista, estava no auge. Dessa forma, rejeitou o humanismo, no sentido de complacência em relação ao vivido. Segundo Bourdieu (2004), o estruturalismo foi muito importante, pois pela primeira vez, uma ciência social se estabeleceu como disciplina respeitável, e até mesmo dominante. Lévi-Strauss denominou sua ciência de antropologia, ao invés de etnologia, reunindo assim o sentido anglo-saxão e o filosófico alemão. Ao mesmo tempo Foucault traduziu a Anthropologie, de Kant (BOURDIEU, 2004). Tais fatos são responsáveis por enobrecerem a ciência do homem, então fundada, deve-se à referência a Saussure. Entretanto, Bourdieu afirma não se incluir dentro da corrente estruturalista, e elenca dois motivos para tanto: “[...] primeiro porque estou separado dela por uma geração escolar (fui aluno deles) e também porque rejeitei o que me pareceu ser uma moda [...]” (BOURDIEU, 2004, p. 16). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 32 Sendo assim, ao desenvolver sua teoria sociológica, Bourdieu (2004, p. 18) afirma que apesar de aplicar o “modo de pensamento estrutural ou relacional na sociologia, resistiu com todas as forças às formas mundanas do estruturalismo”. Dessa forma, a teoria sociológica na visão de Bourdieu (2004), visa estabelecer a articulação dialética entre os indivíduos e as estruturas sociais. Ademais, o conhecimento praxiológico proposto pelo sociólogo Pierre Bourdieu, procura estabelecer uma relação dialética entre os conhecimentos fenomenológico e objetivista na construção da teoria da prática ou modos de engendramento das práticas. Para o autor, o conhecimento praxiológico não extingue as aquisições do conhecimento objetivista, mas vai além, de maneira a integrar o que a postura objetivista aboliu para produzir suas formulações teóricas. Para tanto, o autor entende que a estruturação das práticas e da sociedade é realizada por meio da dialética do processo interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade (BOURDIEU, 2003). Na teoria bourdieusiana, o método praxiológico pode ser definido da seguinte maneira: O conhecimento que podemos chamar de praxiológico tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade: este conhecimento supõe uma ruptura com o modo de conhecimento objetivista, quer dizer um questionamento das questões de possibilidade e, por aí, dos limites do ponto de vista objetivo e objetivante que apreende as práticas de fora, enquanto fato acabado, em lugar de construir seu princípio gerador, situando-se no próprio movimento de sua efetivação (BOURDIEU, 1994, p. 47). Dessa forma, a praxiologia de Pierre Bourdieu é compreendida como um método, que objetiva realizar uma leitura da complexidade do mundo social, utilizando como instrumento as práticas das ações humanas a fim de obter tal compreensão. Bourdieu, foi um intelectual intensamente afinado com as principais antinomias do tempo presente, foi o mais respeitável sociólogo público de sua geração, não apenas na França, mas também em Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 33 todo o mundo. Realizou críticas ao neoliberalismo que por sua vez, alcançaram amplas audiências extra-acadêmicas. A insistência de Bourdieu (2004) acerca da reflexividade tornou-se incansável, assegurando que sua proposta não era de denunciar ou incriminar os colegas cientistas, mas no sentido de libertá-los das ilusões escolásticas que no seu entendimento, nascem das condições especiais nas quais eles produzem o conhecimento. 3 O CONCEITO DE CAMPO O conceito de campo surgiu nos estudos de Bourdieu como uma “estenografia conceitual” que conduziria todas as opções práticas de pesquisa do sociólogo, sobremaneira a sua recusa à alternativa da interpretação interna da explicação externa, perante as quais entendia o sociólogo, estavam colocados todos os produtos culturais. (BUSETTO, 2006, p. 114). No primeiro terço de seu percurso intelectual, Bourdieu (1989) define o conceito de campo assim como avança na elaboração da sua teoria geral da economia dos campos. Dessa forma, para o autor, a estrutura social de uma determinada sociedade encontra-se fundamentada na divisão social do trabalho, fato que permite aos agentes munidos de suas práticas, e as instituições, movimentarem-se no campo de um mercado material e de um mercado simbólico. Assim, o conceito de campo proposto por Bourdieu (2001), define-se como espaço onde ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, com uma dinâmica que obedece a leis próprias, acendida pelas disputas de poder ocorridas em seu interior. Para nível de compreensão, a estrutura de uma campo é definida como “um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do capital específico que, acumulado no curso das lutas anteriores, orientam as estratégias ulteriores” (BOURDIEU, 1983, p. 90). De uma maneira geral, todos os campos se estruturam a partir de relações de aliança ou conlito entre os seus diferentes agentes que lutam pela posse dedeterminadas formas específicas de capital. As hierarquias no interior de cada um desses campos se estabelecem pela maior ou menor detenção, por parte dos agentes, dessas formas específicas de capital. Dentro de um campo, Bourdieu (1989) aponta a hierarquia dos objetos legítimos, legitimáveis ou indignos, cujos temas de interesse são definidos ideologicamente e Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 34 transmitidos. Para compreender como funciona a estrutura do campo, é necessário considerar a hierarquia social dos campos científicos. [...] com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura. Algo como uma classe ou, de modo mais geral, um grupo mobilizado para e pela defesa de seus interesses (BOURDIEU, 2008, p 50). Nos campos de produção de bens simbólicos, a forma específica do capital que instiga as lutas na essência do campo é o capital simbólico expresso em configurações sob formas de reconhecimento, legimidade e consagração, podendo ser institucionalizadas ou não, que os diversos agentes ou instituições obtiveram e aculumaram durante o percurso das lutas no interior do campo ( BOURDIEU, 1989). É necessário, ainda destacar a diferença entre os conceitos de campo e aparelho na sociologia de Bourdieu. A noção de aparelho reintroduz, para o sociólogo, um mero funcionalismo nas Ciências Sociais. Fato que justifica Bourdieu, não se denominar, escola, estado, igreja e partido como aparelhos, mas sim como campos, pois: Num campo, os agentes e as instituições estão em luta, com forças diferentes e segundo as regras constituídas deste espaço de jogo, para se apropriar dos lucros específicos que estão em jogo neste jogo. Os que dominam o campo possuem os meios de fazê-lo funcionar em seu benefício; mas devem contar com a resistência dos dominados. Um campo se torna aparelho quando os dominantes possuem os meios de anular a resistência e as reações dos dominados. Isto é, quando o baixo clero, os militantes, as classes populares, etc., não podem fazer mais do que sofrer a dominação; quando todos os movimentos são de cima para baixo e os efeitos de dominação são de tais que a luta e a dialética constitutivas do campo cessam (BOURDIEU, 1983, p. 106-107). Dessa forma, o funcionamento de um campo depende da existência de “ objetos de disputas e de pessoas prontas para disputar e jogo, dotadas de habitus, que impliquem o conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas (BOURDIEU 1983, p. 89). O poder, em sua dimensão simbólica, isto é, trata-se de um poder Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 35 invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem (BOURDIEU, 1989).Nessa perspectiva, Bourdieu (2008) assegura que compreender o campo sob a ponto de vista da conformação simbólica alude em pensar em qual posição se encontra o agente social, da mesma forma, em “descobrir que o jogo que se joga nele tem qualquer coisa de ambíguo e mesmo qualquer coisa de suspeito” (BOURDIEU, 2004, p. 123). 4 CONCEITO DE HABITUS O conceito de habitus é primordial na obra de Bourdieu. Trata-se de um conceito que possui suas raízes no pensamento aristotélico e na Escolástica medieval. Palavra de origem latina, o habitus expressa “a noção grega de hexis utilizada por Aristóteles para designar então características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem” (SETTON, 2002, p. 61). Mais exatamente, hexis, significa “uma moral que se tornou hexis, gesto, postura ”(BOURDIEU, 1983, p. 104). “o recurso à noção de habitus, um velho conceito aristotélico-tomista que repensei completamente, como uma maneira de escapar dessa alternativa do estruturalismo sem sujeito e da filosofia do sujeito” (BOURDIEU, 2004, p. 22). Dessa forma, o habitus, necessidade tomada virtude, produz estratégias que, embora não sejam produto de uma aspiração consciente de fins explicitamente colocados a partir de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica de causas, mostram-se objetivamente ajustadas à situação. (BOURDIEU, 2004, p. 23) Nessa perspectiva o conceito do habitus, é entendido como princípio gerador das práticas, dessa forma, torna-se um significante instrumento para a compreensão das atitudes que estruturam e originam as práticas habituais dos agentes. Para compreender tal conceito, este não pode estar dissociado do conceito de campo, uma vez que o campo é arquitetado como um espaço socialmente multidimensional, embutido de relações sociais, nos quais os agentes se relacionam compartilhando certos interesses comuns. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 36 Assim, o habitus é então concebido como um sistema intrincado de esquemas individuais, socialmente compostos de arranjos estruturados (na sociedade) e estruturantes (nos pensamentos), obtidos nas experiências cotidianas, invariavelmente orientadas nas funções e ações da atuação cotidiana. Ademais, esse habitus é incorporando durante a vida, isto é, uma subjetividade socializada (BOURDIEU, 2004). Não é aprendido de forma mecânica, mas é o produto de uma aplicação sistemática de princípios coerentes que passa da prática para a prática, não necessitando de explicitação e conscientização. Este conceito nos é bastante oportuno, pois, torna-se indispensável à discussão suscitada sobre o conceito de habitus, para compreendermos por que a reprodução das práticas é ordenada e não se configura ao acaso nem tampouco, as ações individuais. A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante ( assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções ( hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Este efeito ideológico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a função de divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante. (BOURDIEU, 2009. p.11) Refletir a relação entre indivíduo e sociedade fundamentado na categoria habitus alude pensar que o individual, o pessoal e o subjetivo estão atrelados socialmente, e são coletivamente construídos. “O habitus é uma subjetividade socializada” (BOURDIEU, 1992, p. 101). Neste sentido, o habitus promove o equilíbrio das ações que vão construindo uma rede contínua de determinadas ações. Dessa forma, o autor se depara com o conceito, no qual acredita oferecer subsídios para compreensão das relações entre as estruturas e as práticas, sociedade e indivíduo. Nesse contexto, alude que a condição para existência está Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 37 interiorizada sob a égide de atitudes inconscientes de ação, sob o propósito de estruturas da subjetividade. Assim, o habitus surge como um conceito hábil em conciliar a divergência aparente entre realidade exterior e as realidades individuais. Um conceito capaz de propagar o diálogo entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo das individualidades. Dessa forma, o habitus para Bourdieu (1992) produz ações e reproduz práticas, porque o esquema gerado historicamente certifica sua presença no futuro, seja através do modo de perceber, pensar, fazer e sentir. Nesse sentido, incorpora-se na reprodução das práticas, porque ao longo da história foi interiorizado pelos sujeitos. Desta maneira, o conceito de habitus é entendido como um sistema de projetos individuais, mas socialmente constituído de estruturas social, ao passo que se torna adquirido pelas experiências vividas, e atuam nas ações do agir cotidiano (SETTON, 2002). Quando este habitus se torna estruturado, é capaz de produzir representações, opiniões, acerca das produções simbólicas, articulando dessa forma dialeticamente os sujeitos e a estrutura social. Assim, os sujeitos constroem as representações como base a um guia prático para determinada ação. Nesse contexto, o habitus se traduz numa dimensão essencial a se compreender no processo de constituição das representações sociais, notadamente no entendimento das especialidades que abarcam as diversas interpretações dos contextos sociais (DOMINGOS SOBRINHO, 2000). Da mesma forma Setton (2002) considera que o habitus sustenta a especificidade da formação da identidade pessoal e grupal dos indivíduos na atualidade. Setton (2002) lembra que Bourdieu não desconsidera a existência de grupos populares na disputa pela cultura legítima, por isso que a posse desse capital (privilégio de poucos) revela a concorrência de diferentes grupos sociais para a aquisição de algo que sirva como elemento não somente de legitimação, como também de distinção social. Nesta perspectiva, esse habitus é incorporando durante a vida, isto é, “uma subjetividade socializada” (BOURDIEU, 1992, p. 101). 5 BOURDIEU E A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 38 Na década de 1960, despontam os problemas relacionados às desigualdades escolares, ambiente que predominavam nas Ciências Sociais. Com inspirações funcionalistas em que a escolarização tinha um papel duplo no processo de superação do atraso econômico ocasionado pelas Guerras Mundiais. Até o momento a escola era vista como garantia de igualdade de oportunidades. A crise abrange questões que envolvem as concepções de educação da época. Pesquisas realizadas pelos governos inglês, americano e francês demonstram que o desempenho dos alunos na escola não dependia apenas deles mesmos, mas aponta para o peso da origem social sobre os destinos escolares (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). Enquanto os modelos educacionais vigentes em 1950 viam na escola uma instituição de promoção da igualdade, meritocracia e justiça social, Bourdieu revela um sistema de reprodução e de legitimação das desigualdades sociais, sendo as escolas o meio pelo qual se mantém e se legitimam os privilégios sociais. A análise da educação passa a ter um novo quadro teórico, pois ao indagar sobre a neutralidade da escola, o autor ressalta que os alunos são cobrados e avaliados a partir de gostos e crenças das classes dominantes. Dessa forma, a escola é concebida como uma instituição que contribui para a reprodução e a legitimação da dominação exercida pelas classes dominantes (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009). No intento de justificar os mal entendidos e as duras críticas que obteve na ocasião da publicação obra a Reprodução: Elementos para uma teoria do sistema de ensino, em 1970, Bourdieu (2012), com vistas a explicar que não defendia a reprodução, e nem mesmo a compreendia como inevitável, discorre que “[...] Quando você diz as coisas são assim, pensam que você está dizendo as coisas devem ser assim, ou é bom que as coisas sejam dessa forma, ou ainda, o contrário as coisas não devem ser mais assim.” (BOURDIEU; PASSERON, 2012, p. 14). A gênese do pensamento bourdieusiano em relação à escola se ampara na noção do arbitrário cultural, tendo como pano de fundo uma concepção antropológica de cultura, no sentido de que nenhuma cultura possa ser definida como superior a outra. Na perspectiva de Bourdieu, (2009, p.72) a conversão de um arbitrário cultural em cultura legítima, “só pode ser compreendida quando se considera a relação entre os vários arbitrários em disputa e determinada sociedade e as relações de força entre os grupos ou Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 39 classes sociais presentes nessa mesma sociedade”. Para a sociologia de Bourdieu, a educação não se trata de um objeto indiferente, neutro, mas constitui-se como um eixo central, no sentido de que por meio da instituição escolar, são revelados não apenas os mecanismos do conhecimento social, ou mesmo as formas que fazem os agentes se reconhecerem e conhecerem suas instituições e sistemas de instituições, mas também são mecanismos de poder. Ou seja, o conhecimento das formas que legitimam e sancionam, seja através da força, ou especialmente pela violência doce do convencimento. São estes os mecanismos de poder, pelos quais as filosofias ou representações do poder eufemizam o próprio poder (BOURDIEU, 1992). Dentro dessa lógica, deve-se compreender o interesse da escola pela opção por determinados temas, os quais irão compor o currículo e os conteúdos escolares. A escolha de tal composição orienta-se em função dos conhecimentos, valores e interesses das classes dominantes. Ademais, as disciplinas acadêmicas mais prestigiosas são de certa forma, aquelas que proporcionam o desenvolvimento de habilidades valorizadas pelos setores sociais dominantes. Assim, “toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica4, pois é imposta por um poder arbitrário, resultante de um arbitrário cultural” (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 63). Nesse contexto, a violência simbólica se sustenta no fato de que a escola opere a partir da inculcação, doutrinação ou mesmo a dominação. Para tanto, induz as pessoas a raciocinarem e a agirem de forma que não possam perceber que estão legitimando a ordem vigente. Para Bourdieu (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p. 75): O efeito de legitimação provocado pela ocultação das bases sociais do sucesso escolar é duplo: manifesta-se tanto sobre os filhos das camadas dominantes quanto sobre os das camadas dominadas. Os primeiros, pelo fato de terem recebido sua herança cultural desde muito cedo e de modo difuso, despercebido, insensível, teriam dificuldade de se reconhecer como “herdeiros”[...] O segundo grupo, 4 Trata-se do fenômeno da “relação encoberta entre a aptidão escolar e a herança cultural” (BOURDIEU, 1997 apud NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009, p 74). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 40 por outro lado, sendo incapaz de perceber o caráter arbitrário e impositivo de uma cultura escolar, tenderia a atribuir suas dificuldades escolares a uma inferioridade que lhes seria inerente, definida em termos intelectuais (falta de inteligência) ou morais (fraqueza de vontade). Desse modo, o sistema educacional contribui para reproduzir a partir da violência simbólica relações de dominação. Dessa forma, Bourdieu compreende o processo educativo como uma espécie de ação coercitiva, e por sua vez, define a ação pedagógica como um ato de violência (BOURDIEU; PASSERON, 1992). Para Dubet apud Nogueira; Nogueira (2009) a teoria de Bourdieu, de certa forma, explica alguns fatos como: os casos improváveis de sucesso escolar em meios populares, os quais são vistos como exceções que confirmam a regra, e que reafirmam a autonomia relativa do sistema escolar, alimentando a ilusão, tida como necessária, de neutralidade em seu funcionamento. Nesse sentido, há homologias entre as formas de funcionamento do campo escolar e os esquemas de perceber e avaliar e de agir no mundo (habitus) das classes dominantes. Fato este, que justifica não ser por acaso que os filhos pertencentes a classes dominantes obtêm mais sucesso na aquisição da cultura escolar e, assim, ingressam mais ampla e facilmente na universidade. Nesse sentido, os membros de famílias que possuem apreciável capital cultural, tanto intelectual quanto material, adquirem um habitus social concordante com o habitus escola. Assim, a cultura surge como um bem que pode confirmar a condição dos sujeitos, uma vez que o acesso à cultura e sua aquisição entre os grupos sociais distintos conferem aos mais privilegiados um poder real e simbólico que os torna hábil a apresentar os melhores desempenhos escolares, e uma constante relação de naturalidade com as práticas sociais e culturais as quais são mais valorizadas socialmente (SETTON, 2002, p. 80-81). Dessa maneira, a escola contribui com a reprodução social, ou seja, para a garantia da dominação pelos setores sociais dominantes. No intuito de contribuir e cumprir com sua função de reprodutora social, a instituição escolar se ampara no fato de que a escolaridade é obrigatória. E nesse sentido, trabalha na perspectiva e na inculcação de que a cultura escolar é o principal meio, que os excluídos, cuja oportunidade escolar já foi dada, acreditem ser suas inaptidões naturais as responsáveis pelo Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 41 insucesso escolar. Sem perder de vista a historicização, a seleção que a escola realiza resulta numa nobreza escolar hereditária. Assim, essa nobreza de escola comporta uma parte importante de herdeiros da antiga nobreza de sangue que reconverteram seus títulos em títulos escolares (BUSETTO, 2006). Bourdieu compreende a relação de comunicação pedagógica como uma relação formalmente igualitária, que reproduz e legitima, no entanto, desigualdades pré-existentes. O argumento do autor é o de que a comunicação pedagógica, assim como qualquer comunicação cultural, exige, para sua plena realização e aproveitamento, que os receptores dominem o código utilizado dessa comunicação (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2009). Contudo, a aparente democratização da escola, o ingresso de categorias sociais no campo escolar e apesar do considerável contingente de diplomados, ainda assim, a escola não é garantia de ascensão social. Nessa expectativa, a escola torna-se responsável pela desvalorização dos títulos. Dessa forma, o aumento no número de diplomados fez com que alguns diplomas, como o do ensino secundário e uma parte do ensino superior, mantenham valor nominal como no passado, porém simbólica e economicamente desvalorizados em relação a período anteriores (BOURDIEU, 1998, p. 220-221). A incapacidade do ensino escolar avalizar um posto coerente com as expectativas ligadas à posse de tal título, os agentes mais culturalmente desfavorecidos passam a enxergar a escola como fonte de decepção, visões explícitas que, vez ou outra, agitam o mundo escolar, como o movimento de maio de 1968 e as contestações dos liceus nos anos de 1980 e 1990 na França (BUSETTO, 2006). Pensando com Bourdieu, a instituição escolar, no intuito de conservar sua função de reprodutora social substitui gradualmente as desigualdades escolares, antes de acesso ao ensino, agora pelas desigualdades de currículos, e de cursos atrelados ao quesito de hierarquias, repletos de valores que lhe são atribuídos socialmente. Pois para Bourdieu, conhecer profundamente as condições de produção do conhecimento é a condição necessária para a produção de um conhecimento melhor (BURAWOY, 2010). 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 42 Pierre Bourdieu um dos mais proeminentes intelectuais da modernidade, no âmbito das ciências humanas, denominado e reconhecido como um polemista. Considerado um autor de leitura intricada, difícil, e em certos pontos até mesmo incompreensível, pois como dizia Burawoy (2010, p. 25) “os tolos correm por até os anjos temem pisar. Ocupar-se criticamente dos trabalhos de Pierre Bourdieu é dessas tarefas intimidantes ou, quem, sabe, temerárias”. Bourdieu, criticou aos que ele considerava servos do poder, e que assim, viviam a serviço da elite, afrontou o fundamentalismo de mercado que na sua visão, distorcia a lógica dos campos de produção cultural. Assim, sua teoria impulsionou e inovou os estudos na sociologia quando defende a praxiologia como uma opção para a análise sociológica, que por sua vez, é capaz de fazer reflexões sobre as diversas e distintas sociedades. Pois o autor compreende que as condições objetivas de existência são concretizadas através das ações e atividades humanas, por meio, de práticas que são desempenhadas pelos agentes nas múltiplas situações e condições de existência. Suas reflexões acerca da escola enfocava, especialmente o modo pelo qual a cultura e a instituição educativa penetrava nas classes dominadas, de forma a contribuir para reprodução social. Embora sua teoria receba grandes críticas, de autores como: Snyders e Perrenoud, no sentido de que a respectiva teoria, seja um tanto generalizada, é fato que a sociologia da Educação de Bourdieu, apresenta o mérito de acordo com Nogueira; Nogueira (2009) de ter fornecido os fundamentos para a ruptura com a ideologia do dom, pois a partir de Bourdieu, tornou-se praticamente impossível compreender as desigualdades escolares, meramente, como fruto das discrepâncias naturais entre os indivíduos. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. (2000). Dicionário de filosofia. Martins Fontes. São Paulo 2003. BURAWOY, Michael. O Marxismo encontra Bourdieu. Campinas: Editora da Unicamp, 2010 BORDIEU, P.;PASSERON, J.C. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2012. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 43 BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma Teoria da Prática. In: ORTIZ, Renato (Org.). A sociologia de Pierre Bourdieu, São Paulo: Editora Ática, 1994, n. 39, p. 46-86. 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Professor da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti – FEATI. 1 INTRODUÇÃO Os sistemas de trabalho dentro das organizações passaram por amplas modificações nos últimos tempos. Pelos meios da observação, avaliação e pesquisa, podem-se delinear princípios de atuação do próprio operário, ou trabalhador, em suas ações rotineiras dentro e fora do seu local de trabalho. Este processo de estudos sobre novos sistemas de trabalho se fortaleceu com o advento de novas ferramentas tecnológicas, que serviriam para o aumento da produtividade e, como conseqüência, do capital das organizações, ou seja, o trabalho voltado para a acumulação de capital. De acordo com Antunes (1999), na década de 70, este sistema de acumulação de capital entrou em crise. O autor atribui esta crise aos seguintes pontos: Rendimento baixo da taxa de lucro, causados pelo aumento do salário do trabalhador, conquistados pelas lutas sociais; esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; crise estrutural do capital e seu sistema de produção; maior concentração de capitais ocasionado pelas fusões entre empresas; crise do welfare state (Estado do bem-estar social); privatizações, que desregulamentava e flexibilizava o processo produtivo. Desta forma, não se pode afirmar que o declínio das formas de acumulação de capital ocorreu apenas pelos pontos abordados por Antunes (1999), mas também, por fatores que em todo Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 45 o século XX exerceram forte influência no mercado financeiro, como a Crise de 1929, ocasionando a depressão e os desempregos, conforme abordado por Drucker (1973). Assim, com a reestruturação das organizações, um novo sentido do trabalho emergiu, como o sistema Toyota fez com que passasse de uma “empresa insignificante, à posição de terceira montadora do mundo” (MAXIMIANO, 2008). Com seus fundamentos voltados para a eliminação de desperdício e fabricação com qualidade, a sua organização faz com que haja um maior comprometimento e envolvimento do trabalhador não só na produção, mas também no processo de decisão. Desta forma, o operário se tornou polivalente, multifuncional e qualificado, quebrando com grandes pirâmides hierárquicas para uma estrutura horizontalizada, conforme Castillo (1996 apud ANTUNES, 1999) o chama de “liofilização organizativa”. Neste sistema as organizações fazem uso de eliminações de pessoas, transferências, enxugamento de unidades produtivas e, principalmente, a terceirização. A terceirização, para Fontanella (1994), é uma tecnologia de administração que consiste na compra de bens e/ou serviços especializados que se integram na condição de atividade-meio à atividade-fim da empresa compradora do serviço, “estabelecendo uma relação de parceria” entre empresa terceirizada e empresa compradora, afirma Giosa (1997), deixando para a empresa apenas o serviço específico. A empresa terceirizada realiza suas atividades com um conhecimento particular sobre certa operação, sem fazer parte do quadro de funcionários da empresa que compra os serviços. E a terceirização traz um novo significado sobre o trabalho e as condições de trabalho, visto que, o foco das empresas ainda se baseia na produção de bens, reconhecendo apenas a excelência ou o que representa sua atividade mais lucrativa. Contudo, esta pesquisa irá confrontar os efeitos da terceirização no trabalhador e na empresa que compra o serviço de terceiros, utilizando o diagnóstico organizacional, que tem por objetivo “a identificação e análise das complexas inter-relações entre o indivíduo e o contexto do trabalho, compreendido a nível social, organizacional, grupal e individual, com vistas a dar subsídios para a intervenção do psicólogo” (ZAVATTARO, 2010). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 46 2 MATERIAL E MÉTODO A pesquisa foi desenvolvida em uma Instituição de Ensino, na cidade Ourinhos – São Paulo, na qual adotaremos o nome fictício de IE. Para aquisição de dados, foram utilizadas entrevistas, com 12 funcionárias, todas do sexo feminino, entre 3 meses a 8 anos de atuação na Instituição no setor de limpeza de uma empresa terceirizada. Também foi realizado uma entrevista com o diretor administrativo da instituição de ensino que solicita o serviço terceirizado. O instrumento utilizado para a coleta dos dados foi um roteiro de entrevistas semiestruturado, baseando-se no Diagnóstico Organizacional desenvolvido por Zavattaro (2010), bem como observações durante o expediente e conversas com funcionários da Instituição de Ensino. Para a autora, O diagnóstico psicossocial na organização tem como objetivo a identificação e análise das complexas inter-relações entre o indivíduo e o contexto do trabalho, compreendido social, organizacional, grupal e individual, com vistas a dar subsídios para a intervenção do psicólogo (p. 1). A autora propõe uma análise da organização utilizando quatro pontos que possibilitam ter uma compreensão sistemática das relações existentes com o trabalho. São eles: - Nível Social: são analisadas as participações da instituição dentro do contexto social, qual sua importância para a cidade e sua região, seus projetos sociais, participações em políticas públicas, programas que auxiliem o desenvolvimento social, programas de inserção de alunos em um curso superior. - Nível Organizacional: um olhar para a própria política da instituição, com seus objetivos, suas metas, sua missão, seus projetos e, o fundamental de nossa pesquisa, a relação com seus trabalhadores, respeito aos limites físicos e psíquicos dos trabalhadores, possibilidade de participação em decisões da instituição, bonificações, qualidade na convivência de trabalho, oportunidades de crescimento dentro da instituição. Sendo a pesquisa com trabalhadores terceirizados, procurou-se entender como se estabelece a relação entre a instituição e os Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 47 terceirizados, o envolvimento entre trabalhadores das distintas partes (terceirizados e contratados pela IE), a participação dos terceirizados e sua importância para a instituição. - Nível Grupal: neste plano, a análise restringe-se para o grupo de trabalhadores terceirizados, pois é nesta parte que se pode ter uma compreensão de como se dá a formação dos grupos de trabalho, horários, objetivos de trabalho, comunicação entre funcionários, formação de sub-grupos, conflitos existentes entre funcionários, angústia do grupo em relação ao trabalho. - Nível Individual: focalizado na individualidade do trabalhador terceirizado, suas angústias, seus desejos, seus pensamentos sobre o trabalho, o significado do trabalho, sua individualidade dentro do grupo de trabalho. A entrevista para a coleta dos dados foi aplicada no próprio ambiente de trabalho da IE, e aconteceu individualmente, durante o período de trabalho, normalmente no período da tarde. Sendo assegurado e esclarecido o anonimato e a privacidade dos dados obtidos, até mesmo de não concluírem a entrevista ou não desejarem responder qualquer pergunta, se assim desejassem. Para a análise dos dados foram utilizados recortes de suas falas, de acordo com o tema aqui estabelecido, fazendo parâmetros dos resultados com base na literatura pesquisada. 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES A instituição de ensino atua na área do ensino superior há mais de 40 anos, manteve durante muito tempo uma política de trabalho arcaica, sem um plano administrativo, fazendo uso de contratações por indicações, sem treinamento de funcionários, não dando importância para a concorrência, clientela, tecnologia e políticas de ação na área educacional. A IE foi constituída na década de 70, porém no final da década de 2010 houve uma estruturação, com um novo campus, com uma nova direção, trazendo novos cursos e, principalmente, uma mudança na cultura organizacional. Estas mudanças fizeram com que a IE se inovasse ao iniciar um trabalho de crescimento educacional, fazendo modificações pedagógicas e estruturais, adquirindo um terreno de 27 alqueires, do qual fazem parte diversas estruturas voltadas para aprendizagem, pesquisa e estágio. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 48 Nesta nova transformação da IE, deu-se ênfase também para o marketing, em que projetos de divulgação, de captação de novos alunos e de propaganda, fizeram com que esta tenha perto de 4.000 alunos de mais de 60 cidades da região. Este trabalho foi possível por meio de novas políticas de atuação, de atenção à concorrência e principalmente pelas Bolsas Reembolsáveis ofertadas pela própria instituição e órgãos do governo, como o FIES e o PROUNI. Seu trabalho hoje visa alcançar o título de Centro Universitário. Assim fez mudanças administrativas, como: na forma de contratação através de concurso, de novas políticas atuantes de professores e alunos, reestruturação da hierarquia de cargos, novos departamentos, importância para a pesquisa científica. Isto fez com que a IE deixasse de ter valores tradicionais ainda familiares sem normas estabelecidas de contratação, bonificação, salários, entre outros. Para compreender a terceirização dentro de uma instituição de ensino, é necessário contextualizar a necessidade e as causas principais da contratação de uma empresa, no caso, do setor de limpeza, para realizar seus serviços. Na entrevista com o diretor administrativo, que chamaremos de OCR, uma das questões propostas foi sobre o motivo para se estabelecer o vínculo com a empresa terceirizada (MC). Segundo OCR, como a instituição de ensino trabalha “especificamente com educação, ensino, a direção achou melhor deixar as funções que não fazem parte deste setor para empresas com competência no assunto, como a MC com a limpeza, e com o apoio destas empresas a IE pode pensar só na educação, e buscar excelência”. Este pensamento parte para uma das características da terceirização, onde a empresa concentra-se no seu produto estratégico, naquilo que é capaz de fazer melhor, com competitividade e maior produtividade e as tarefas secundárias e auxiliares são realizadas por empresas que se especializaram de maneira mais racional e com menor custo (FARIA, 1994 apud VALENÇA, 2002). Com isto, a contratação dos funcionários pela IE não ocorre, pois o contrato se dá entre a IE e a empresa terceirizada, sem levar em consideração o trabalhador. No contrato “é estipulado o trabalho e o número de funcionários. Assim, a MC fica responsável em manter o número de funcionários estipulado pelo contrato”, diz OCR. Buscando obter uma resposta para as formas de contratação e de relação entre funcionários da MC e seus proprietários, não foi possível esclarecer os fatos, visto que, seus proprietários não aceitaram realizar a entrevistas, tampouco informar qualquer dado. A não participação da direção da MC na pesquisa fez com que fosse necessário questionar as formas de contratação através das próprias funcionárias que, atribuíram suas contratações por Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 49 distintos modos, como indicação: “Uma amiga me indicou” (N, 8 anos de trabalho na IE); ou por análise de currículo: “levei o currículo na MC e fui chamada na semana seguinte” (A. P., 3 meses); ou por uma conversa pelo telefone: “estava necessitando de emprego, telefonei para a MC e arrumei emprego no momento, no dia seguinte vim para a IE” (S., 1 ano). Com isto, percebe-se que, mesmo a MC passa por mudanças na estruturação organizacional, pois as contratações estão sendo mais exigentes, mesmo sendo uma simples análise de curriculum vitae. Nesta relação de contratação, sem critérios de escolha, faz da função de limpeza carregar um significado forte para as funcionárias, pois como disse OCR “elas sabem de seu trabalho”, classificando assim, como sendo uma atividade simples, de que parte das pessoas já tenham conhecimento inato em limpeza, e com isto já saibam varrer, lavar, enxugar, ter cuidados com a saúde, aplicar produtos químicos, e como a própria funcionária revela, esta função já esta carregada com estas características simplistas, “não tive treinamento, pois já sabia sobre limpeza” (A. P., 3 meses). Se analisarmos pelo fato do funcionário poder realizar uma construção de seu próprio trabalho, isto traz ganhos positivos, como aponta Santos (2009), “significando a possibilidade real de os trabalhadores exercerem o controle sobre sua atividade, facilitando a regulação dos desgastes físicos e emocionais”. Por outro lado, quando se faz uso de materiais tóxicos e prejudiciais à saúde, o treinamento, a instrução é essencial para se manter a saúde no trabalho. Mas de acordo com OCR, este treinamento não é de responsabilidade da IE: “solicito o trabalho da MC, ela é responsável em cobrir o contrato de limpeza”. Outro ponto a ser questionado, sobre a participação das funcionárias no processo de construção de seu trabalho é quanto à comunicação, seja ela para desenvolver idéias para a IE, seja para o funcionamento de seu trabalho. Sobre isto, foi questionado a OCR o poder de comunicação das funcionárias na questão funcional: “sobre o operacional sim, suas atividades, seus pedidos, como o de compra de produtos, de equipamentos, são vistos, mas de acordo com nossas possibilidades, principalmente financeira”, que normalmente acontece visando o produto mais barato a IE, deixando assim de investir conforme a necessidade e o conhecimento das funcionárias sobre seu trabalho e os equipamentos de trabalho, isto é característico do processo de terceirização, onde “deixa de investir alto em tecnologia e qualificação profissional” (LEÃO; OLIVEIRA; DIAS, 2008). Através de uma análise grupal, conforme proposta por Zavattaro (2010), sobre as funcionárias terceirizadas, que exercem seu trabalho de segunda a sexta, 24 horas, divididos em 3 turnos que são Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 50 das 7 horas às 17 horas, 17 horas às 23 horas e das 23 horas às 7 horas; e no sábado, das 7 horas às 17 horas. Pode-se dizer que se formam grupos de trabalho conforme o turno e afinidade, “tenho bons relacionamentos, mas há aquelas que me relaciono mais” (R. C., 2 meses). Em algumas falas, principalmente das mais novas de trabalho são poucos os indícios de conflito, “sei contornar os problemas entre funcionários” (A. P., 4 meses), “não vi nada ainda” (A. P., 3 meses) referindo-se aos conflitos. Porém, em outras entrevistas surgem alguns indicadores de conflito, como foi os casos de S (1 ano) “o relacionamento é bom, alguns momentos de conflito, mas tem que saber contornar”, ou mesmo de L (7 anos) “tem muita fofoca, por isso bastante conflito” (J, 1 ano e 1 mês) “tenho relacionamento bom, mas sempre tem conflitos, pois algumas mulheres já vêm estressadas de casa, cada uma tem seu temperamento, mas tem que saber respeitar cada uma”. Isto nos possibilita aproximar da desconstrução de identidade social, pois para Ashforth; Mael (1989 apud MACHADO, 2003) “essa identidade é guiada pela necessidade do indivíduo de ser no mundo, assim como pela sua necessidade de pertencer a grupos sociais”. Mas a qual grupo elas pertencem? Grupo da limpeza? Grupo da IE ou da MC? Isto gera conflitos internos por buscar compreender o seu EU neste mundo. Machado (2003) descreve a identidade através do conceito de si, do indivíduo, o conceito de si é, portanto, uma construção mental complexa, fruto de uma relação dialética que considera o indivíduo igual a seus pares, mas único na sua existência, na sua experiência e vivência pessoal. igualdade e a diferença permeiam a todo o momento as tentativas de auto-representação por parte dos indivíduos. Assim uma identidade bem construída é aquela que delineou os limites entre a individualidade e os grupos aos quais a pessoa está vinculada. O resultado é que, embora reunidos na presença física, o eu e o grupo se encontram separados nos processos psíquicos. Contudo, há uma identificação com a IE, já que realizam suas tarefas nela, suas refeições, suas responsabilidades, “gosto muito de trabalhar na IE, e fala para todo mundo que trabalho aqui” (L. 7 anos). A identificação com a IE, resulta quando a “identidade do outro reflete na minha e a minha na dele” (CIAMPA, 1987 apud COUTINHO et al, 2007), assim, qual é então a identidade da IE? O que ela faz? Por parte de OCR, diretor administrativo, sabe-se que é uma instituição de ensino; por parte das funcionárias, “não sei nada do que a IE faz, o que ela faz?” (J, 1 ano e 1 mês), “não, não sei Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 51 o que a IE faz” (J, 2 meses), “não sei o que ocorre na IE” (A. P., 3 meses), “não, mas seria importante saber para passar para os outros, acredito que só estou ali para limpar” (L, 7 anos). Pensando nisto, da identidade sendo uma troca entre o EU e o OUTRO, podemos entender que o compromisso da instituição com o trabalhador seja uma lacuna, que em outras empresas seria realizado por uma "integração", no entanto, estamos falando de trabalhadores que não possuem sua importância financeira para a instituição, mas como um gasto que sempre deve ser "cortado". Segundo OCR, esta falta de conhecimento das funcionárias sobre a instituição faz parte de um processo de implantação, já que nos últimos anos está trabalhando para uma nova política de atuação. OCR compreende esta dificuldade quanto às funcionárias conhecerem a IE com sua história, seus objetivos, suas metas, “pensamos que estes assuntos deveriam ser por escritos, mas isto é uma falha, ainda não conseguimos”. Nesta resposta, se percebe um possível descaso, este podendo ser involuntário com os terceirizados, e até com seus próprios funcionários, que em observações também apresentam indícios de falta de conhecimento sobre a IE, uma instituição de ensino não conseguir colocar no papel sua história, suas metas e seus objetivos, uma contradição. Talvez, por pensar apenas no lado operacional dos funcionários, que só tem à satisfação “quando se dá o cumprimento do esperando” (OCR), ou seja, “procuramos avisar para que seja feito o trabalho operacional”, já que “são funcionárias da MC”. Pensado nisto, Pinto; Quelhas (2008) diz que “as empresas devem ter consciência que são as pessoas que produzem e fazem a diferença na competitividade e qualidade dos produtos e serviços oferecidos, sejam elas terceirizadas ou não”. Pois para os funcionários o vínculo com a IE, ou mesmo o trabalho de modo geral, é de muito significado. Como aponta Spink (1991), a organização compreende-se como “fluxos de ações e significados”, e que “permite encontrar pessoas com quem os contatos podem ser francos, honestos, com quem se pode ter prazer em trabalhar, mesmo em projetos difíceis” (MORIN, 2001). 4 CONCLUSÃO A pesquisa sobre a terceirização revelou a precariedade dos trabalhadores terceirizados em situação de trabalho. Seguindo a lógica do mercado global, que define a terceirização como uma Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 52 forma administrativa de se cortar gastos, percebe-se como os trabalhadores terceirizados são deixados de lado dentro da empresa. A IE deixa de realizar processos em prol do trabalhador e julga que a empresa terceirizada é responsável pelo trabalhador, que se vê obrigado a trabalhar em um novo ambiente, com diferentes sistemas, produtos e companheiros de trabalho. Este efeito cria uma dificuldade de identificação do sujeito com o seu trabalho: sou funcionário de qual organização? Para quem trabalho? O que faço? São questões que fazem do trabalhador uma “máquina ambivalente”, de contradições: trabalho para a IE ou para a FS? O que tenho que fazer? Mas o que a IE faz? E neste contexto instauram-se os conflitos internos do trabalhador, responsáveis pelos sofrimentos angustiam e conflitos dentro da organização. Trabalhadoras que são abandonado dentro de suas dúvidas, sem seu reconhecimento, sem sua participação e sem ser ouvido. Nesta pesquisa pode-se confirmar a situação deste trabalhador terceirizado, que só serve para a limpeza e só será “bem aceito” se limpar direito. Não importa a sua história, sua família, seus desejos, seus sonhos, seus conhecimento, o que vale é apenas varrer, lavar, esfregar, fazer o trabalho subalterno. Como disse Weil (1942, p. 162) "as coisas representam o papel dos homens, os homens representam o papel de coisas: eis a raiz do mal". O trabalhador como uma “coisa” que só está na instituição para fazer o seu trabalho operacional. Tornar o trabalhador único responsável por suas ações, por sua qualidade, pelo seu temperamento, faz da instituição um organismo perverso, capaz de lucrar com a agonia do outro sem mesmo ter alguma responsabilidade. No caso das funcionárias terceirizadas para a limpeza da IE, os fatos se confirmam: representam um papel de coisa. Elas entram e saem sem a IE saber de suas vidas, o que importa são os números de funcionários estabelecidos dentro do contrato. A citação de Costa (2008) trás um convite ao leitor para pensar na situação de trabalho dos homens de hoje, fazer uma crítica, questionar e transformar a forma de ação do homem com o seu trabalho, fugindo das características alienantes. Letrados e iletrados não estariam, por princípio, impedidos de conversar. O que afasta esses sujeitos assim classificados segundo o prisma da cultura formal não é a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 53 habilidade de um e a inabilidade do outro, a habilidade e a inabilidade de ler e escrever. A reificação da cultura – processo que faz pensá-la como mercadoria a ser consumida – é que promove esse pensamento e falseia o que vem antes. Ainda que dotados de conhecimentos diferentes – cultura adquirida em livros ou em invernadas – estaríamos todos em condição de conversar. Pra você conhecer um sujeito bem, basta dar um pouquinho de poder pra ele. Não precisa ser muito, não. Um cadinho só de poder pra você saber quem é o cara. Aí você conhece ele de verdade. A dominação de humanos sobre humanos pode ser explicada segundo diversas razões. Na era da cultura fabricada e embalada para venda e compra, a autorização para uns governarem outros, a autorização para exercer a força e o comando, parece ser atribuída ao controle da técnica e do conhecimento formalizado. Talvez seja por isso que vejamos tanta necessidade de alguns – pretensiosamente portadores de cultura – desqualificarem expressões populares de grande altura e importância sociais. Não devemos ignorar a força desses sujeitos. Nem o nosso poder (COSTA, 2008, p.378) (Grifo do autor). Enfim, pensar no trabalho, adotando qualquer sistema de trabalho, é pensar no homem utilizando sua capacidade, seu conhecimento, sobre a natureza do trabalho, a ponto de criar o seu produto, a sua ferramenta, e em conjunto com a organização, poder contribuir para as diversas formas de produção de bens. Desta forma, cabe à organização fomentar uma gestão de pessoas que, de alguma forma, possa contribuir para o desenvolvimento organizacional, para um maior envolvimento de seus trabalhadores e terceirizados, de forma respeitosa e verdadeira. REFERÊNCIAS ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. COUTINHO, M. C.; KRAWULSKI, E.; SOARES, D. H. P. Identidade e trabalho na contemporaneidade: repensando articulações possíveis. Psicologia & Sociedade; 19, Ed. Especial, p. 29-37, 2007. DRUCKER, P. F. Os novos mercados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973. FONTANELLA, D. O lado (des) humano da terceirização: o impacto da terceirização nas empresas, nas pessoas e como administrá-lo. Salvador: Casa da qualidade, 1994. GIOSA, L. A. Terceirização: uma abordagem estratégica. 5 ed. São Paulo: Pioneira, 1997. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 54 LEÃO, J. F.; OLIVEIRA, J. W.; DIAS, L. C. (2008). 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Para MARINONI (2007) a penhora de dinheiro é a melhor forma de viabilizar a realização do direito de crédito, já que dispensa todo o procedimento destinado a permitir a justa e adequada transformação de bem penhorado – como o imóvel – em dinheiro, eliminando a demora e o custo de atos como a avaliação e a alienação do bem a terceiro. Continuando, MARINONI acrescenta que, além disso, tal espécie de penhora dá ao exequente a oportunidade de penhorar a quantia necessária ao seu pagamento, o que é difícil em se tratando de bens imóveis ou móveis, os quais possuem valores “relativos” e, por isto mesmo, são objeto de venda em leilão público, ocasião em que a arrematação pode ocorrer por preço inferior ao de mercado. 2 PENHORA ON-LINE: TIPIFICAÇÃO LEGAL E PRINCIPAIS IMPLICAÇÕES Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 56 A penhora on-line acabou por consagrar-se legislativamente, primeiro na esfera fiscal (CTN, art. 185-A, na redação dada pela CL 118/2005)5, depois se materializando na execução civil comum (CPC, art. 655-A, na redação dada pela Lei 11.382/2006). Antes da consagração legislativa, entendia-se que a penhora on-line, era apenas uma forma diferente de apreender dinheiro, já que estava implicitamente autorizada pelo CPC, art. 655,I. (REIS, 2009, p. 43). A norma que disciplina a penhora eletrônica na execução civil comum (art. 655-A, CPC), aplicável tanto à execução de título extrajudicial como à de título judicial (por força do artigo 475-R, CPC), assim leciona: “Art. 655-A. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução. § 1º As informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução. § 2º Compete ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta-corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649 desta lei ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade. § 3ºNa penhora de percentual do faturamento da empresa executada, será nomeado depositário, com a atribuição de submeter à aprovação judicial a 5 “Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 57 forma de efetivação da constrição, bem como de prestar contas mensalmente, entregando ao exequente as quantias recebidas, a fim de serem imputadas no pagamento da dívida.” Assim, foi a penhora on-line tratada como penhora de dinheiro, embora seja, na verdade, uma penhora de crédito e por isso foi colocada em primeiro lugar na ordem de preferência, se bem que essa ordem seja flexível, como expressamente diz o art. 655, caput, do CPC. (THEODORO, 2007, p. 69). A penhora on-line realmente mais se aproxima de uma penhora de crédito que de uma penhora de dinheiro. O banco depositário recebe ordem para não entregar o valor ao seu credordepositante e passa, por força da penhora, a ser depositário judicial (REIS, 2009, p. 44-46). Conforme se depreende, a penhora on-line depende de requerimento do exeqüente, isto é, o requerimento genérico de cumprimento da sentença, em caso de título judicial, ou a simples propositura da ação de execução, no caso de título extrajudicial, não são suficientes para a determinação de uma penhora on-line, é preciso requerimento específico, como se vê no art. 655A. Claro que isso, em certos casos práticos, pode ser superado por força de princípios maiores, especialmente porque o bloqueio não funciona como penhora, mas sim como medida assecuratória do cumprimento da decisão judicial. Pode o provimento judicial consistir em simples requisição de informações sobre ativos financeiros em nome do executado ou em decretação de indisponibilidade imediata, mas as informações limitar-se-ão à existência, ou não, de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução (art. 655-A, § 1º). Eventual impenhorabilidade dos valores retidos deve ser alegada e comprovada pelo executado, eis que o prazo para os embargos à execução não tem mais qualquer pertinência com a penhora, deve-se entender que a alegação de impenhorabilidade na execução por titulo extrajudicial pode dar-se por meio de petição simples, sem necessidade de observância de prazo. Já, o prazo para a Impugnação ao Cumprimento de Sentença somente se inicia após a intimação da penhora (art. 475-J, § 1º), por isso a impenhorabilidade deve ser sustentada na própria impugnação (art. 475-L, III) em caso de execução de título judicial. A propósito, a intimação Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 58 da penhora on-line não apresenta qualquer particularidade e deve dar-se pelos meios regularmente previsto na legislação (art. 475-J, §1º), por publicação, na pessoa do advogado do executado, primeiramente, e na pessoa do representante legal ou pessoalmente, conforme o caso. Muito embora tratar-se de um sistema inovador de máxima eficácia, que se consubstanciou na assim chamada penhora on-line em alusão ao fato de que se dá no ambiente virtual da internet, quase imediatamente após o comando da autoridade judiciária, tornando dessa forma um feito executivo muito mais célere, visto que bloqueiam instantaneamente as contascorrentes do executado garantindo a execução, tal sistema tem encontrado vários óbices, tendo sido alvo de críticas de vários doutrinadores e operadores do direito. 3 ATIPICIDADE LEGAL E INCIDENTES DA PENHORA ON-LINE Assim, temas pertinentes ao estudo “penhora 0n-line”, que dado a sua característica é extremamente útil à seara judicial, convém apreciar as divergências apresentadas e discutidas pela visão dos adversos. Como bem leciona Luiz Rodrigues Wambier (2007), de um lado, trata-se, indubitavelmente, de mecanismo moderno, com aptidão de realizar, mais rapidamente, o direito do credor na obtenção do dinheiro que lhe é devido, o que materializa o princípio da máxima efetividade. A realização ilimitada desta medida executiva, no entanto, é suscetível de causar dano irreparável à empresa executada, que pode ter não apenas a obrigação executada a adimplir, mas também outras obrigações, que se relacionem à sua manutenção diária, e que podem vir a ser descumpridas em razão da penhora realizada. Baseiam-se prioritariamente no conceito da proporcionalidade, que se lastreia na maior satisfação da pretensão de um direito através da adequada restrição ao outro, ou seja “nem mais nem menos”, onde o ônus dar-se-á até a medida do necessário, visando a ponderação dos valores envolvidos com o objetivo de harmonizar os direitos em deslinde. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 59 Assim, visto que o instituto utiliza-se dos benefícios que a informática oferece com intuito de amenizar a morosidade processual, pode acarretar, pela ausência de critérios definidos, complicações e situações que poderiam ser evitadas. É possível que ocorra que os numerários encontrados em conta-corrente se enquadrem no rol do artigo 649 do CPC, pois os valores depositados podem estar comprometidos a pagamentos futuros, podendo ser anulados os atos praticados, não se esquecendo que pode haver onerosidade para o devedor. Visto isto, os críticos do sistema on-line alertam para o fato que a determinação judicial afeta todas as contas bancárias do executado, sem analisar o valor necessário para o cumprimento da obrigação, o que pode resultar em excesso de penhora. Outra divergência quanto a eficiência do penhora on-line reside nas alegações de que não se consegue liberar os possíveis saldos excedentes com a mesma eficiência do bloqueio. Se porventura ocorrer embaraços ao devedor, este imediatamente aciona o Juízo e o desbloqueio é imediato. Questão semelhante foi enfrentada em arestos do Superior Tribunal de Justiça. A prova da impenhorabilidade de bens levados à constrição deve ser produzido por quem a alega. Esse foi o entendimento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar o recurso proposto pelo Banco Rural S.A. contra Indústrias Reunidas de Colchões Ltda – Ircol e outros. Em execução de título extrajudicial, foi indeferido o bloqueio de saldo disponível em contas-correntes do executado, ao fundamento de não ter sido “comprovado nos autos que o valor ali encontrado não seja proveniente do salário”. Inconformado com a decisão, o Banco Rural interpôs agravo de instrumento. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou provimento, ao entendimento de que a penhora sobre salário é vedada por Lei: “Nesse caso, incumbe ao exequente o ônus da prova de que o saldo encontrado na conta corrente do executado não é proveniente de salário, a teor do artigo 333, I, do CPC”, decidiu. O Banco, então, recorreu ao STJ. Em seu voto, o relator, ministro Luiz Felipe Salomão, destacou que, sendo direito do exequente a penhora preferencialmente em dinheiro, a impenhorabilidade dos depósitos em contas-correntes, ao argumento de tratar-se de verba salarial, consubstancia fato impeditivo do direito do autor, recaindo sobre o réu o ônus de prová-lo. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 60 Segundo o ministro, por outro lado, no caso, a exigência de o exequente provar que os saldos e conta-corrente não possuem natureza salarial, somente poderia ser atendida mediante a prática de ilícito penal, consistente em violação de sigilo bancário. O ministro Salomão, então, apenas permitiu ao executado a impugnação do pedido do banco, em prazo curto a ser fixado pelo juízo, que poderá, se for o caso, determinar a indisponibilidade dos recursos para não tornar sem efeito a medida. O relator ressaltou, ainda, que, não havendo comprovação do alegado pelo executado, a penhora deverá ser levado a efeito. Em se tratando de execução por quantia certa, certo é que o uso desse sistema torna a penhora menos onerosa tanto ao Estado, tendo em vista a desburocratização dos atos processuais, como também para o devedor, visto que não haverá custo de registro de penhora, oficial de justiça, etc. De tal sorte que os benefícios trazidos pelo instituto ora analisado, eficiente e rápido, demonstram que as mazelas mencionadas são infinitamente inferiores que os benefícios auferidos pela aplicação da prestação jurisdicional através da penhora on-line. 4 DA PENHORA EM DINHEIRO NA EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA Na execução por quantia certa, que visa a expropriar bens do devedor a fim de satisfazer, em dinheiro, o direito do credor consagrado em título executivo. Precede à desapropriação, naturalmente, a identificação, a apreensão e a avaliação dos bens que serão objeto da alienação (REIS, 2009, p. 39). Quando a penhora, ou seja, a apreensão de bens, recai sobre dinheiro pertencente ao devedor, simplifica-se, sobremaneira, a execução por quantia certa, pois se tornam logicamente desnecessárias as fases da avaliação e de alienação dos bens, cuja finalidade objetiva é convertê-los em valor monetário, coisa que o dinheiro já tem em si mesmo. Sucede que, para que essa penhora ocorra, admitindo-se que não tenha sido o devedor a oferecer a moeda à constrição judicial, é necessário que, previamente, se tenham identificados a existência e o paradeiro do numerário. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 61 Destarte o manuseio que desfruta o dinheiro, sempre foi óbvio entender o porquê da dificuldade que sempre representou, no âmbito processual, a penhora de moeda sem a iniciativa do executado. Parece intuitivo que o executado, por sua própria condição de devedor inadimplente, geralmente não apresente situação de liquidez aparente, pois, ou realmente não tem dinheiro, ou, se o tem, será tentado a ocultá-lo, quer dizer, não tomará iniciativa alguma no sentido de oferecer a moeda de que tenha a propriedade, para saldar o débito em execução. Acresce que, a despeito de figurar em primeiro lugar na ordem dos bens penhoráveis, o dinheiro em espécie é extremamente apto à ocultação, e isso terá facilitada, ao longo do tempo, sua subtração às medidas executivas. 5 ANÁLISE DA VISÃO FINANCEIRA FRENTE AO MUNDO GLOBALIZADO E OS AVANÇOS DA INFORMATIZAÇÃO Mas essa condição do dinheiro para esconder-se tem sido dificultada à proporção que o sistema financeiro oficial absorve o fluxo de capitais e as operações econômicas em geral, tornando cada vez mais raras, e até suspeitas, as transações com moeda sonante acima de determinado valor.(REIS, 2009, p. 40-42). Os recursos que circulam pelas instituições financeiras, em função da informática, são hoje plenamente suscetíveis de rastreamento, daí que a penhora em dinheiro saiu do patamar de impraticabilidade para vir a tornar-se, atualmente, a medida executiva de menor esforço e de máxima eficácia, que se consubstanciou na assim chamada penhora on-line, em alusão ao fato de que se dá no ambiente virtual da internet, quase imediatamente após o comando da autoridade judiciária. A penhora on-line não se limita a apreender certo bem do devedor e deixa-lo à disposição do credor, como nas clássicas penhoras de bens. Na verdade, prepondera na ordem de penhora on-line o propósito de identificação de bens do devedor. Nesse sentido, a pesquisa dos bens (assunto que, como regra, precede a penhora e fica normalmente a cargo, em primeiro lugar, do credor, e só depois do Juízo) é imensamente facilitada pelo fato de o Banco Central centralizar todas as informações relacionadas ao sistema financeiro nacional. Em semelhante situação, a pesquisa de bens passa a ser teoricamente infalível, e Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 62 é esse sítio que é estabelecido em torno de determinado tipo de operação do devedor que desperta em alguns o sentimento de que a penhora on-line vai além de um simples procedimento executivo, para atingir a própria liberdade e privacidade do devedor. Uma vez identificado o numerário em nome do devedor, ele é imediatamente apreendido e colocado à disposição do Juízo. Aqui reside o espírito da chamada penhora on-line. É mais um procedimento de rastreamento e indisponibilidade de bens, que justifica a terminologia bloqueio on-line. O Estado assume a função de pesquisar bens do devedor. Daí que a indisponibilidade decorrente do bloqueio on-line pode ser usada também como medida coercitiva, tornando indisponível certo numerário do devedor até que ele cumpra a obrigação de fazer. A novidade da penhora on-line não está tanto em implicar a apreensão de dinheiro em mãos de terceiro, nem a tecnologia inovou pelo simples fato de se mandar ao Banco Central uma comunicação eletrônica em vez de um ofício em papel. A novidade foi antes fática que jurídica e consistiu na transparência da vida financeira privada que se deu a partir da progressiva substituição do dinheiro pelas transações bancárias. Já não é possível dissimular facilmente o itinerário do dinheiro, nem a condição financeira pessoal. A penhora on-line é uma consequência natural do progresso fantástico no gerenciamento de informações que a tecnologia permitiu, como o são, também, as medidas administrativas e criminais de repressão às ilicitudes praticadas no ambiente financeiro, a tributação das operações bancárias, as restrições creditícias impostas a consumidores inadimplentes e tantas outras medidas jurídicas que tomam por base o conhecimento a respeito da movimentação financeira dos particulares. Chegou-se a dizer que a realidade virtual instaurada pela tecnologia está por transformar o dinheiro apenas em uma informação. (LÉVY, 2003, p. 53) E não é possível desvencilhar-se disso: por um lado, a vida moderna impõe a utilização das instituições financeiras como depositárias dos valores em dinheiro, quer por razões de segurança individual, quer pela praticidade e pela atualização monetária, quer, enfim, pelo semnúmero de outros inconvenientes que a guarda de dinheiro em espécie traz para o seu proprietário; por outro, ao usar o sistema bancário, o titular do dinheiro expõe-se a ter sua vida financeira conhecida nos menores detalhes. E assim se fecha o circulo que leva necessariamente à transparência da vida financeira privada, e esta, por sua vez, produz uma série de consequências jurídicas importantes, sendo a penhora on-line apenas uma delas. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 63 6 PENHORA ON-LINE E O DIREITO À TRANSPARÊNCIA, INTIMIDADE E PRIVACIDADE Pelo visto, não eram completamente despropositadas aquelas preocupações e reservas que a jurisprudência apresentou quando começaram a surgir os primeiros casos de penhora eletrônica, exigindo que antes se esgotassem os meios executivos tradicionais para só depois admitir que se lançasse mão da penhora on-line. Temia-se que a banalização desse tipo de ordem pudesse representar um abalo ao sistema financeiro, e acreditava-se, também, que a penhora on-line, por ser uma medida com forte cunho intervencionista, punha em xeque o direito à intimidade, consubstanciado no sigilo bancário. Percebeu-se depois que não se tratava de uma agressão à intimidade, mas sim de uma nova concepção de intimidade, bem mais restrita que aquela que se conhecia antes do advento da realidade virtual. Agora a intimidade tem que se compatibilizar com os valores da sociedade da hiperinformação. A esfera íntima, hoje, restringe-se àquelas condutas que não trazem influencia sobre a vida das demais pessoas, embora possam ser por elas influenciadas. (LORENZETTI, 1998, p. 492). E está claro que o devedor inadimplente influencia outras pessoas com sua conduta – sem dúvida, pelo menos seu credor é diretamente influenciado -, por isso é injustificável a alegação de intimidade para proteção patrimonial nesse caso. Outra distinção interessante foi lembrada pela Ministra Carmen Lúcia, do STF, no julgamento do RE 461.366-DF, entre segredos do “ser” e segredos do “ter”. Só os primeiros seriam realmente absolutos, não os demais, que teriam surgido como exacerbação do individualismo. Cogitou-se também, em outro recurso perante do STF (RE 418.416-SC), que os dados bancários seriam absolutamente invioláveis, com base no artigo 5º, XII, CF (“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no ultimo caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”), mas o Supremo declarou que a inviolabilidade referida no mencionado dispositivo constitucional restringe-se apenas à comunicação desses dados, que não pode ser interceptada, mas não aos dados em si. (REIS, 2009, p. 42). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 64 7 OPERAÇÃO DE BLOQUEIO E DESBLOQUEIO DOS ATIVOS FINANCEIROS Como ensina o ilustre Juiz Federal Nazareno César Moreira Reis (REIS, 2009, p. 4748), convém anotar que nas operações de bloqueio/desbloqueio não se chega a conhecer completamente as transações patrimoniais do executado. Apenas se sabe se ele tem ou não recursos para serem bloqueados até o valor indicado na ordem. Já a requisição de informações, como se verá adiante, é de duvidosa constitucionalidade quando empregada além de certo limite na execução civil, pois pode implicar o conhecimento completo sobre a vida financeira do executado e revelar até mesmo a existência e conteúdo de dados caducos. A norma do artigo 655-A do CPC, deixa em aberto uma série de questões que podem surgir por ocasião da efetivação da penhora: excesso de penhora, penhora de conta conjunta, penhora de dinheiro de terceiro que esteja na conta do executado, penhora de valores já penhorados, etc. Tudo isso deverá ser resolvido no caso concreto pelo magistrado, segundo os princípios que regem a penhora física. Às vezes, porém, o regulamento do Bacen Jud avançou e conferiu às próprias instituições financeiras certas capacidades decisórias que, na verdade, em caso de impugnação de algum interessado, podem ser revistas pelo juiz. Por exemplo, o artigo 9ª, § 4º do Regulamento do BacenJud, diz que caberá à instituição financeira definir em qual conta ou aplicação financeira recairá o bloqueio de valor quando o executado possuir saldo suficiente para atender à ordem em duas ou mais contas ou aplicações financeiras. Está claro que essa decisão da instituição financeira pode ser revista pelo juiz, a requerimento de executado, para atender ao princípio da menor onerosidade possível ao devedor (art. 620.CPC). Ressalte-se, também, que a circunstância de a penhora on-line, ao contrario das penhoras clássicas, ser feita praticamente sem a participação de serventuário da justiça, o Bacen e, secundariamente, as instituições financeiras em geral é que assumem a função de destinatários das ordens judiciais. Faz com que essas instituições passem a ser participes do processo (CPC art.14) e, por isso, assumam graves responsabilidades processuais, que devem ser fiscalizadas pelo juiz. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 65 8 CONCLUSÃO Dessa forma, a edição da Lei n.º 11.382/06, que acresceu o artigo 655-A, caput e parágrafos, é uma de conseqüências basilares, qual seja, a expressa incorporação, ao Código de Processo Civil brasileiro, de disposições viabilizadoras do manejo da penhora on line, operacionalizada, no Brasil, por meio do sistema BacenJud. Destarte, buscou-se inicialmente que, mais do que a eficácia formal das normas, o Direito tem se ocupado da investigação sobre sua efetividade. O direito processual, por seu caráter instrumental, destinado que é à garantia da autoridade do ordenamento jurídico, não foge a esta regra. Por isso, a falta de efetividade do processo judicial, seja por sua morosidade, seja pela insuficiência de seus instrumentos para fazer chegar às mãos do credor o que lhe é devido, é um problema crônico, um mal jurídico de proporções sócio-econômicas. Do que se expôs, espera-se que a difusão da ferramenta resulte em maior efetividade no cumprimento da sentença, resultando em economia de tempo, esforços e recursos, tanto para as partes, quando para o Erário, haja vista a previsível racionalização de recursos. Com a penhora on line definitivamente legitimada pelo Código de Processo Civil, espera-se que o feito judicial possa cumprir os seus desígnios, deixando de funcionar como escudo aos devedores. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken de, Cumprimento de Sentença. Rio de Janeiro. Ed. Forense. Ano 2006. LÉVY, Pierre. O que é virtual? Tradução Paulo Neves, São Paulo: 34, 2003, p. 53. Em cheque o direito à intimidade, consubstanciado no sigilo bancário. LORENZETTI, Ricardo Luiz. Fundamentos do direito privado. São Paulo:RT, 1998. MARINONI Luiz Guilherme, Curso de Processo Civil, Teoria Geral do Processo, v. 1, 2ª. ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2007. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 66 NEGRÂO Theotonio, Código de Processo Civil, Editora Saraiva, 39º Edição, ano 2007. REIS Nazareno César Moreira Reis, artigo publicado na Revista Júris Plenum, ano V, n. 30.ano 2009. THEODORO JR. Humberto. A reforma da execução de título extrajudicial. Rio de Janeiro:Forense 2007. WAMBIER Luiz Rodrigues, WAMBIER Teresa A. Alvim, MEDINA José M. Garcia, em BREVES COMENTÁRIOS À NOVA SISTEMÁTICA PROCESSUAL CIVIL 3, Editora Revista dos Tribunais, 2007. VENOSA Sílvio de Salvo, Novo Código Civil, Editora Jurídico Atlas, 2º Edição, ano 2002. SANTOS Washington dos. Dicionário Jurídico Brasileiro, Editora DelRey, ano 2001. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 67 O APEDREJAMENTO DE SORAYA M. E O CALEIDOSCÓPIO JURÍDICO. Prof. Diego Nassif da Silva Professor do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Analista Judiciário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. INTRODUÇÃO Enterrada até o tórax. Os braços amarrados junto ao corpo, acima dos cotovelos. Sem ter como fugir ou se proteger, foi apedrejada até a morte por seus familiares, autoridades e vizinhos do pequeno povoado, conforme fora sentenciado. Do cadáver insepulto depositado de véspera à beira do riacho sobraram apenas alguns ossos, ignorados pelas feras selvagens. Quem é Soraya M.? Uma menina de 9 anos no único registro impessoal que restou da sua existência. A história que nos é contada pelo filme ‘O Apedrejamento de Soraya M.’ tem origem no livro homônimo escrito por Freidoune Sahebjam, jornalista franco-iraniano que, em agosto de 1986, no vilarejo de Kuhbpayeh, no Irã, foi abordado por Zahra, tia de Soraya que, em sua última conversa com a protagonista, prometeu contar sua tragédia ao mundo. Em resumo, Soraya Manutchehri sofria a violência doméstica do marido, Ghorban-Ali, carcereiro local que, querendo se casar com Malaka – menina de 14 anos oferecida pelo pai condenado à morte em troca da liberdade –, para obter o divórcio sem ter de pagar pensão e devolver o dote de Soraya, arma um teatro público de acusações infames no intuito de sujeitá-la a um tribunal corrupto e assim condená-la à morte por adultério segundo costumes religiosos locais. Penas cruéis, degradantes, desumanas e de morte, devido processo legal, corrupção, islamismo, Estado laico, direitos humanos, minorias e grupos vulneráveis, igualdade de gênero, violência doméstica e familiar contra a mulher. De qual tema trata o filme? Como qualquer recorte de realidade, os fatos comportam diferentes abordagens, sempre a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 68 prestigiar um ângulo, enfatizar outro aspecto, lançar luz a um terceiro sentido. O presente artigo propõe-se, assim, a transitar brevemente em meio a algumas dessas múltiplas janelas que esta obra artística de não-ficção abre na seara jurídica, encontrando argumentos que permitam concretamente guiar a percepção e a busca por transformação da realidade denunciada. 1 PENAS CRUÉIS, DEGRADANTES, DESUMANAS E DE MORTE Dentre os métodos de execução da pena capital existentes na atualidade (decapitação, eletrocussão, enforcamento, injeção letal, fuzilamento e apedrejamento), aquela sofrida por Soraya sem dúvida é uma das mais cruéis: El Código Penal iraní es muy concreto sobre la forma en que se llevará a cabo la ejecución y los tipos de piedras que deben emplearse. El artículo 102 establece que, para la ejecución por lapidación, los varones serán enterrados hasta la cintura y las mujeres hasta el pecho. El artículo 104 establece, en relación con la pena por adulterio, que las piedras empleadas no deberán ser “tan grandes como para matar a la persona de una o dos pedradas, ni tan pequeñas que no puedan calificarse de piedras”. Esto deja bien claro que el propósito de la lapidación es infligir un gran dolor y una muerte lenta (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008). 6 Quando o Irã se tornou uma república islâmica, em 1979, passou a adotar a Sharia, ou seja, normas jurídicas baseadas na interpretação de escritos da religião islâmica. Com 6 Tradução livre: “O Código Penal iraniano é muito concreto sobre a forma em que se levará a cabo a execução e os tipos de pedras que se devem empregar. O artigo 102 estabelece que, para a execução por lapidação, os homens serão enterrados até a cintura e as mulheres até o peito. O artigo 104 estabelece, em relação à pena por adultério, que as pedras empregadas não deverão ser ‘tão grandes como para matar a pessoa com uma ou duas pedradas, nem tão pequenas que não possam qualificar-se de pedras’. Isto deixa bem claro que o propósito da lapidação é infligir grande dor e uma morte lenta.”. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 69 isso, penas como o apedrejamento se tornaram parte do código penal. Entre os chamados delitos contra a vontade divina (hudud) apenados com lapidação está o adultério, que deve ser comprovado por testemunhas presenciais, por confissão (repetida quatro vezes) ou pelo ‘conhecimento’ do juiz de que o delito de fato ocorreu. Apesar de ser prevista também para homens, a maior parte das pessoas condenadas à lapidação são mulheres (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008). Embora o filme seja ambientado em 1986, sabe-se que a prática ainda é atual no Irã considerando que em 2010 Sakineh Mohammadi Ashtiani restou condenada à esta pena de lapidação após controverso processo judicial. O caso chamou a atenção da mídia internacional, tendo o presidente brasileiro à época pleiteado ao líder iraniano a concessão de asilo à condenada. O pedido foi negado, mas, por pressão da comunidade internacional a pena capital foi suspensa (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2014). Não obstante a condição de república islâmica permaneça na atualidade, é de se ressaltar que a morte por apedrejamento não constitui tema pacífico mesmo entre religiosos islâmicos, existindo países de orientação islâmica que não a adotam. O certo é que, após recorrentes denúncias de afronta aos direitos humanos na década de 2000, uma forte pressão internacional se abateu sobre os países que ainda aplicam penas cruéis, degradantes, desumanas e de morte7. Além do trágico desfecho, a pena de apedrejamento tem o claro propósito de infligir dor e humilhação, podendo ser considerada cruel, degradante, desumana. Acerca da possível distinção Gomes (2008) relata que o tratamento degradante “ocorre quando há humilhação de alguém perante si mesmo ou perante outros, ou leva a pessoa a agir contra sua vontade ou consciência”, ao passo que o tratamento desumano impõe “esforços que vão além dos limites razoáveis (humanos) exigíveis”, englobando, portanto, a pena ou tratamento degradante. Quanto às penas cruéis, Galvão (1995, p.173) informa serem aquela que 7 Dentre tanto outros, veja-se o caso de Safiya Hussaini, condenada à lapidação por adultério na Nigéria, em 2002 em CRUZ, Álvaro Ricardo Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão social de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 37. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 70 “intensificam o sofrimento da vítima desnecessariamente, revelando no agente uma brutalidade além do normal”. Por sua vez, Nilo Batista e Raul Zaffaroni (2003, p.233), à luz do princípio da humanidade, lecionam: 2. Em função do princípio da humanidade, toda pena que se torna brutal em suas consequências é cruel, como aquelas geradoras de um impedimento que compromete totalmente a vida do indivíduo (morte, castração, esterilização, marcas cutâneas, amputação, intervenções neurológicas). Igualmente cruéis são as consequências jurídicas que se pretendam manter até a morte da pessoa, porquanto impõem-lhe um sinete jurídico que a converte em alguém inferior (capitis diminutio). (...). 3. Uma pena que não é cruel em abstrato, ou melhor, em relação ao que acontece na maioria dos casos, pode porém tornar-se cruel em concreto diante de certa pessoa ou de certas circunstâncias peculiares (...). Melhor posição, porém, parece ser a adotada por Moraes (2005, p.336) que, dentro da noção de penas cruéis compreende a tortura, os tratamentos degradantes e os tratamentos desumanos, numa mesma escala que, por todas as vias “acarretam padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem os sofre", ou seja, “refletem uma mesma realidade” (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2008, p.140) repudiada tanto à luz da dignidade da pessoa humana. A propósito, no ponto, prevê a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da Organização das Nações Unidas (ONU, 1948): Artigo 3° Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (...) Artigo 5° Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Embora não tenha sido expressamente vedada a pena de morte, na Resolução 2857 (XXVI), de 1971, a Assembleia Geral da ONU (1971) afirmou que: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 71 (...) para garantir plenamente o direito à vida consagrado no artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o objetivo principal a atingir é o de reduzir progressivamente o número de crimes puníveis com a pena de morte, tendo em conta a conveniência de abolir essa pena em todos os países; Neste rumo, seguidas resoluções foram editadas na ONU pedindo a moratória global das execuções obtendo em 2014 o número recorde de 117 estados membros favoráveis à medida) (ONU, 2014). E não poderia ser diferente, pois, Nas palavras de José Afonso “uma constituição que assegure o direito à vida incidirá em irremediável incoerência se admitir a pena de morte” (2008, p.201-202). No Brasil, excetuada a Carta de 1937 - art.122, §13 -, todas as constituições limitaram a pena de morte aos crimes militares em tempo de guerra, destacando por vezes a expressão 'guerra externa' (BULOS, 2008, p. 272). Atualmente a Constituição de 1988, dispõe no seu art. 5º, inciso XLVII, que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada pelo Presidente da República, nos termos do art. 84, inciso XIX, hipótese em que o método de execução previsto é o fuzilamento - Decreto-Lei 1.001/69, art.56. Num aspecto mais amplo, porém, importante ressaltar que os recentes conflitos armados no Oriente Médio, no norte da África e no sul da Ásia tem apontado na radicalização da violência e na retomada da pena capital – muitas praticadas com requintes de crueldade inerentes aos propósitos terroristas de vários grupos, notadamente o denominado Estado Islâmico. 2 ISLAMISMO, ESTADO LAICO, UNIVERSALIDADE E HISTORICIDADE DOS DIREITOS HUMANOS Ao contrário do que as recentes manifestações islamofóbicas do mundo ocidental transparecem, brutais penas capitais conduzidas sob o manto do Estado não são exclusivas do islamismo. Pelo contrário: a lei mosaica (Lei de Moisés), e que, portanto, compõe a Torah e a Bíblia Cristã, preveem várias hipóteses de para o apedrejamento – o que de modo algum estaria previsto expressamente no Corão, mas em relatos da vida de Maomé. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 72 Seja como for, mostra-se equivocado considerar a Sharia, enquanto produto jurídico da religião islâmica, a razão do trágico tratamento dispensado a Soraya. Quantas 'bruxas' não forma queimadas pela Igreja Católica e quantas outras pessoas não tiveram as mais absurdas mortes determinadas em nome da religião ou de qualquer outra espécie de crença ou culto ao longo da história? De outra parte, quantas execuções da pena capital, mesmo em países laicos, não se transmutaram em sessões brutais de aniquilação da dignidade humana? Nos países com regime democrático, os Estados Unidos e o Japão são os únicos a praticar a pena capital. Ao lado deles, China, Irã, Iraque, Paquistão e Sudão respondem por 91% das execuções praticadas em 2006 (ANISTIA INTERNACIONAL, 2015). O filme ‘A Espera de Um Milagre’ chocou o público ao dramatizar algumas execuções na cadeira elétrica. Já na vida real, mesmo sendo considerado o mais avançado, a injeção letal, que promete levar o condenado à morte sem dor, já foi protagonista de episódios como o de Clayton Lockett, em Oklahoma, Estados Unidos, que agonizou por cerca de meia hora após a aplicação do composto supostamente letal e indolor (UOL, 2014). De toda sorte, mundo afora a pena capital não encontra apenas na religião seu fundamento de legitimidade e tanto em estados laicos como em estados cuja autoridade ampara-se em alguma ordem religiosa a pena capital está a afrontar direitos humanos reconhecidos pela ONU. Uma das características dos direitos humanos é a sua universalidade, porque inerentes à condição humana. São destinados a todas as pessoas, sendo ‘impensável a existência de direitos fundamentais circunscritos a uma classe, estamento ou categoria de pessoas’ (BREGA FILHO, 2002, p. 62). Essa característica da universalidade dos direitos humanos representa um grande desafio quando confrontado com o direito à liberdade religiosa ou mesmo à condição de minoria cultural. De fato, muitos dos direitos reconhecidos como universais acabam encontrando algum óbice em culturas e religiões por todo o globo. Um exemplo disso é a cultura de algumas tribos indígenas sul-americanas de matar o recém-nascido que apresente alguma deficiência ao nascer. Difícil de ser constatada, esta prática, que nos remete à Grécia Antiga – onde o filho deficiente deveria ser arremessado do monte Taigeto –, de um lado Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 73 encontra amparo no respeito à cultura da minoria indígena (DUDH, art. 18 e art.231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - CR/88), de outro, porém, afronta um dos mais elementares direitos humanos, o direito à vida. Contudo, muitos princípios e costumes da cultura grega e indígena são elogiados e respeitados por pessoas de grupos culturais diversos. Nesta linha, Noah Feldman publicou artigo lembrando que por muito tempo, até meados do século XIX, em diversos aspectos, a Sharia dispensava às mulheres tratamento mais equânime em relação aos homens do que a legislação dos países ocidentais: To many, the word 'Shariah' conjures horrors of hands cut off, adulterers stoned and women oppressed. By contrast, who today remembers that the much-loved English common law called for execution as punishment for hundreds of crimes, including theft of any object worth five shillings or more? How many know that until the 18th century, the laws of most European countries authorized torture as an official component of the criminal-justice system? As for sexism, the common law long denied married women any property rights or indeed legal personality apart from their husbands. When the British applied their law to Muslims in place of Shariah, as they did in some colonies, the result was to strip married women of the property that Islamic law had always granted them — hardly progress toward equality of the sexes. (FELDMAN, 2008).8 Sob esta perspectiva a própria noção de civilização ou de desenvolvimento torna-se equívoca, chamando atenção para uma outra característica não menos importante dos direitos humanos: a historicidade. Ou seja, como qualquer direito, os direitos humanos 8 Tradução livre: “Para muitos, a palavra ‘Shariah’ evoca horrores de mãos cortadas, adúlteros apedrejados e mulheres oprimidas. Por outro lado, quem hoje se lembra que a mui-amada common law inglesa evocava por execução para punição por centenas de crimes, incluindo o roubo de qualquer objeto no valor de cinco shillings ou mais? Quantos sabem que até o século XVIII, as leis da maioria dos países europeus autorizavam a tortura como um componente oficial do sistema de justiça criminal? Quanto ao sexismo, a common law denegou por muito tempo às mulheres casadas quaisquer direitos de propriedade ou mesmo personalidade jurídica distinta da de seus maridos. Quando os ingleses aplicaram sua lei para os muçulmanos no lugar de Shariah, como fizeram em algumas colônias, o resultado foi tirar das mulheres casadas a propriedade que a lei islâmica sempre lhes concedeu – um árduo progresso rumo à igualdade dos sexos.” Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 74 surgiram de “condições históricas objetivas” (SILVA, 1998, p. 180) que permitiram seu reconhecimento. Toda busca pela positivação, proteção e implementação de direitos pressupõem sua negação ou ameaça. Os próprios dogmas da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial são constructos culturais frutos de nosso tempo. Aceitar que povos e culturas diferentes encontram-se em momentos ou dimensões diferentes equivale a aceitar que as condições históricas condicionam o grau ou o tipo de efetivação dos direitos humanos formalmente reconhecidos assim como podem impulsionar o reconhecimento e positivação de outros direitos. Situando-se a questão entre universalidade (formal) e historicidade (material) a melhor solução destes casos difíceis certamente não passa pela eliminação dessas religiões e culturas locais e minoritárias, protegidas contra tal espécie de violência (DUDH, art. 30). Mas também não se harmoniza com o negligenciamento dos direitos das pessoas vítimas dessas práticas religiosas e culturais. Nestes termos, a eliminação de uma prática ofensiva a um direito humano não deve se confundir com a própria religião ou cultura, que, em cada caso, dentro do possível a cada tempo, se não admitir uma mudança estrutural do costume, deve abrir mão da sua execução e propagação, sob pena de intervenção estatal – algo, de fato, deveras dificultoso em estados não laicos. Assim, mesmo que os direitos humanos tais como o direito à liberdade religiosa seja colocada em sérias dúvidas nos estados não laicos, não está necessariamente nesta condição, na religião ou na cultura em si a origem da ofensa sofrida por Soraya. Sem dúvida a Sharia foi utilizada na condução do seu processo bem como na fixação da sua pena, contudo, a ausência do devido processo e o ímpeto dos corruptos julgadores mostrou-se fator determinante ao trágico desfecho. 3 DEVIDO PROCESSO DE DIREITO E PROCESSO HERMENÊUTICO Ao contrário do que afirmou Montesquieu, os juízes não são simplesmente a boca que profere as palavras da lei. Existem condições elementares à interpretação e aplicação de Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 75 qualquer lei ou paradigma jurídico e que passam muito além do domínio da língua falada e escrita – deles cuida a hermenêutica jurídica. A subsunção do fato à norma, ou seja, a adequação de uma conduta ou fato concreto à norma jurídica (norma-tipo) comumente esbarra se não na ambiguidade e imprecisão do código linguístico, nas dificuldades do processo de reapresentação do sentido normativo à luz de fatores contextuais, tais como a completude e harmonia do próprio sistema jurídico, fins, valores, cultura, tempo e lugar. Em resumo, somente diante do caso posto é que se torna possível dar vida e concretude à norma jurídica. Eis a lição de Eros Grau: O fato é que praticamos sua interpretação não – ou não apenas – porque a linguagem jurídica seja ambígua e imprecisa, mas porque interpretação e aplicação do direito são uma só operação, de modo que interpretamos para aplicar o direito e, ao fazê-lo, não nos limitamos a interpretar (=compreender) os textos normativos, mas também compreendemos (=interpretamos) os fatos. (GRAU, 2003, p.40) (...) a interpretação do direito não é uma atividade de conhecimento, mas sim construtiva, portanto decisional, embora não discricionária, (...). (GRAU, 2003a, p.62) Isso, contudo – note-se bem –, não significa que o intérprete, literalmente, crie a norma. Dizendo-o de modo diverso: o intérprete não é um criador ‘ex nihilo’, ele produz a norma – não, porém, no sentido de fabricá-la, mas no sentido de reproduzi-la. (GRAU, 2003a, p. 80-81) Marçal Justen Filho acrescenta no seguinte sentido: A textura aberta da linguagem também não produz autonomia para o aplicador, o qual tem compromisso com o sistema normativo e com a vontade legislativa. Cabe escolher um dentre os sentidos possíveis, comportados pela expressão linguística. Ou seja, há limites quanto às escolhas possíveis. Mais ainda, o aplicador tem o dever de respeitar a vontade normativa e eleger, no elenco limitado das acepções possíveis, a alternativa reputada mais adequada. (JUSTEN FILHO, 2005, p. 157) Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 76 Se a norma jurídica depende desse processo hermenêutico para sua aplicação ao caso concreto, cada caso concreto deve passar pelo devido processo hermenêutico para se garantir que é a norma jurídica que está sendo aplicada – e não a vontade particular dos julgadores. Trata-se de mais uma decorrência do advento do chamado Estado de Direito, expressão de Welker, utilizada pela primeira vez em 1813 (FERREIRA FILHO, 2002, p. 2). Os ingleses chamaram de Rule of Law – ou supremacia do direito – o conjunto de três princípios que, após alcançar as doutrinas jurídicas continentais, converter-se-iam nos princípios do Estado de Direito: a) Legalidade – Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. No De Legibus at Consuetudinibus Angliae, Henri Bracton expressa a ideia do primado da lei: 'Ipse autem rex non debet esse sub homine sed sub deo et sub lege quia lex facit regem' – não é o rei que faz a lei, mas a lei que faz o rei (BOBBIO, 2002, p. 169-170); b) Isonomia – a igual sujeição de todos (inclusive autoridades) perante a lei e aos tribunais comuns, sendo, no fundo, a manifestação de dois elementos da noção material de lei: a generalidade e a impessoalidade; c) Devido Processo Legal (ou Due Process of Law) – que é a consagração pelo direito comum das liberdades do cidadão ante a sua sujeição ao controle de juízes e tribunais ordinários, independentes e imparciais (FERREIRA FILHO, 2001, p.100-106). Tratando-se a Sharia de normas jurídicas, naturalmente o julgamento de Soraya careceu não apenas de um devido processo legal, com acusadores e defensores para exercício do contraditório e ampla defesa, mas também de um devido processo hermenêutico realizado conjuntamente com juízes ordinários, independentes e imparciais, garantindo que a acusada somente restaria obrigada a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei geral e impessoal (DUDH, art. 7º, 10 e 11). O filme deixa bem claro que isso não ocorreu, colocando a seguinte questão: a Sharia foi devidamente aplicada; ou melhor, é a Sharia que se aplicou? A inescusável participação do intérprete no processo hermenêutico releva igualmente a sua susceptibilidade a aspectos de ordem social, tais como a cultura (patriarcal na maior Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 77 parte do mundo) incluindo aí os preconceitos e discriminações dirigidas a minorias e grupos vulneráveis. Com isso em vista, no filme, mais o que a sumariedade do julgamento de Soraya, impressionou a cega aceitação do veredito pelo povo da comunidade onde vivia, revelando que a condenação não era esperada, mas desejada em sua maioria9. 4 MINORIAS, GRUPOS VULNERÁVEIS, IGUALDADE DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Na Revolução dos Bichos, Orwell (s.d., p.93) provoca: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”. A igualdade entre todas as pessoas prevista nas declarações de direitos constituiu uma afirmação, não uma constatação. Nesse contexto, a diferença pode surgir como razão de prestígio ou de segregação. Nos estados em que todos são iguais em direitos mínimos, considerando que a igualdade é tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, o tratamento diferenciado somente se justificaria para um tratamento melhor. “Quatro pernas bom, duas pernas melhor!” (s.d., p.93) – baliram as ovelhas. Assim, o reconhecimento da diferença tornou-se um privilégio, revelando a luta pelo direito à diferença uma nova dimensão no contexto da luta pela igualdade protagonizada pelos grupos historicamente excluídos. Igualdade esta muitas vezes conquistada nominalmente através das legislaturas, mas sem efetividade principalmente por abraçar um indivíduo ideal e abstrato (normal) ignorando a realidade das pessoas concretamente 9 Além da multidão não esconder a avidez por encontrar culpados, o linchamento de Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá/SP, em 2014 é prova da força de que historicamente dispõem justiceiros de plantão, não raro encontrando na porção mais vulnerável ou estigmatizada da sociedade, o destino de toda espécie de ofensa. (UOL. Mulher linchada carregava bíblia com fotos das filhas. Uol notícias: violência em São Paulo, 06 de maio de 2014. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agenciaestado/2014/05/06/mulher-linchada-carregava-biblia-com-fotos-das-filhas.htm>. Acesso em: 25 de fev. de 2015). A letra de 'Geni e o Zepelim', de Chico Buarque, revela o que veremos adiante: que o processo de humilhação e subjugação de outrem são utilizados tanto pelo indivíduo quanto pela sociedade para satisfazer seu anseio de conquistar/exibir poder. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 78 estabelecidas. Em resumo, ao indivíduo pós-moderno já não basta ser reconhecido como igual, ele deve ser reconhecido em sua diferença. E de fato, as relações de igualdade elementares à democracia não são apenas de ordem socioeconômica, mas também de natureza sociocultural. Para tanto, mais do que contrariar a ordem jurídica então vigente, foi necessário ir de encontro com as normas e práticas sociais estabelecidas. A normalidade constituiu uma terceira barreira para quem se depara com os outros, com a exclusão, com a indiferença, com a intolerância. Sobretudo a fragmentariedade da modernidade líquida pôs abaixo diversos paradigmas, problematizando o indivíduo situado, multifacetado. Diferentemente dos chamados grupos vulneráveis (vitimizados, não dominantes ou hipossuficientes) nas minorias é possível extrair uma noção de identidade entre seus membros 10. É que, embora nos grupos vulneráveis se possa constatar eventual estigma, um descrédito em função de um atributo comum não condizer com um comportamento ou o status que exercem ou almejam (atributo x estereótipo), tal condição implica efeitos em relações específicas e delimitadas de hipossuficiência em dado aspecto objetivo da vida social. Não se é, e.g., idoso, criança, jovem, consumidor, empregado em tempo integral e por toda a vida e nem sempre isso é um fator relevante de discrímen na sociedade. Já o mesmo não se pode dizer de negros, mulheres, grupos étnicos e religiosos, e.g., casos em que o estigma aferido a dado tempo e lugar em uma certa sociedade é sempre integral e generalizado, pois dizem respeito ao seu ser (e não a um estar 11), levando a um círculo vicioso de exclusão, vulnerabilidade e violação de direitos. 10 Importante salientar que o processo de identificação não precisa ser feito pelo próprio indivíduo de modo autônomo e voluntário. Ou seja, a identidade pode ser feita de maneira externa ao indivíduo, sendo na verdade muitas vezes imposta a ele pelo meio social. 11 A distinção é tênue mas fundamental, pois entre o ser e o mero estar existe um contínuum. Uma dada condição outrora restrita a certas relações sociais pode vir a ser generalizada pela sociedade, tornando-se marca social indelével sobre dado grupo populacional, dominando seu convívio social a tal ponto que passe a integrar a consciência pessoal dos indivíduos que o integram (identidade), que a partir daí passam a viver esta condição. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 79 É esse fator subjetivo, intrínseco à sua condição humana, que torna um grupo populacional, identificado pelo estigma criado pelas normas sociais em torno da sua diferença, em uma minoria. E é a consciência dessa diferença e da inexorabilidade em relação a sua existência que faz surgirem em minorias mais politizadas, ante sua latente vulnerabilidade social, ações de autoafirmação, ditas ações afirmativas. O feminismo, enquanto luta pelo direitos das mulheres, enquadra-se como movimento de ação afirmativa de uma minoria. Nesse âmbito, citando Rosiska, Bonavides (2001, p.70) confirma que “no radical confronte entre os sexos, que não se tem podido evitar, vê-se que o ‘feminismo da igualdade se prolonga como feminismo da diferença’”, vindo a complementar (2001, p.71): O trabalho é a redefinição do feminismo mal-compreendido, um caminho diferente do que aquele equivocadamente trilhado de busca de ‘igualdade de condições com os homens’ na vida pública, simplesmente porque os valores femininos, o universo feminino, nas suas específicas condições e circunstâncias, é imprescindível, não precisa ser descartado, e deve ser elevado. O padrão masculino, seu modo de ser e agir, não é o melhor do mundo, aliás, é numa cultura hegemônica masculina que o Ocidente está naufragando. A desigualdade de gênero ainda é realidade mesmo em repúblicas democráticas como o Brasil. É possível citar à exaustão estatísticas demonstrando o impacto do sexismo nos salários, nos cargos e empregos, nas eleições e em diversas outras posições de destaque. Mesmo em face disso, não se pode ignorar as relevantes conquistas quando se tem em comparação a realidade de mulheres como Soraya. E nesta comparação, a semelhança que salta aos olhos logo no primeiro momento é a violência doméstica e familiar, que, não obstante também atingir crianças, jovens e idosos, amplamente encontra as mulheres como principais vítimas no Brasil e na maior parte do mundo. De destaque mundial, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), surgiu como resposta normativa a esta chaga que acomete os lares brasileiros. Publicada a 8 de agosto de 2006, a lei traz uma série de medidas inovadoras no intuito de facilitar o acesso à justiça e à tutela dos seus direitos, tais como a previsão de criação de Juizados de Violência Doméstica e Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 80 Familiar contra a Mulher e de delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Também prevê medidas protetivas de urgência cujo pedido dispensa a intervenção de advogado. E embora opte pelo caminho da maior criminalização, com aplicação de penas mais graves e restrição de direitos – gerando fundadas críticas (BREGA; SALIBA, 2006, passim) –, não se pode negar que seu principal papel é o de propiciar à mulher, que geralmente se encontra submetida a uma posição de vulnerabilidade, instrumentos para reclamar e fazer valer seus direitos e sua dignidade. Mas nenhum instrumento legal opera por si mesmo e o Conselho Nacional de Justiça (2013) aponta que, após uma inicial queda, a violência doméstica e familiar contra a mulher continua a apresentar números alarmantes no Brasil. Além da melhoria da estrutura de atendimento pelo Estado, necessário ressaltar que, muitas vezes a falta do pedido da medida protetiva pela vítima da violência redunda na ausência de deflagração do aparato posto à sua disposição. Arrefecidos os ânimos, os laços familiares, a relação com os filhos, a fé no amor e a paixão frequentemente aparecem como mote para renunciar à proteção estatal. Não se pode ignorar que considerável parte da violência doméstica contra mulheres encontra-se vinculado ao elemento passional – não raro associado ao consumo de drogas (lícitas e ilícitas). A paixão sem dúvida é um dos mais arrebatadores sentimentos do ser humano, capaz de conduzi-lo em meio aos mais delirantes e absurdos pensamentos e atos. Mas nem sempre é assim. Além de desordens psíquicas e psicossociais, os costumes e a cultura influenciam decisivamente o comportamento humano. Especificamente no filme em tela, tem-se claro que a agressão e morte de Soraya não eram motivadas por alguma paixão que Ghorban-Ali nutria em relação a ela, nem se evidencia qualquer moléstia que o impedisse de estar consciente de seus atos. O que fica claro, todavia, é uma posição de dono, de posse, que o marido deve exercer socialmente sobre a esposa e filhos. Apropriação e consumo são outra faceta das relações sociais para com o gênero feminino. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 81 5 A MULHER E A CULTURA DE CONSUMO A condição humana é o que hoje, juridicamente, permite impede que se tratem negros, índios, mulheres como objetos de direitos, e não sujeitos de direito. Hannah Arendt, mulher, judia, imigrante, pensadora, encontrou nessa condição o fundamento de um direito, o maior de todos: o direito a ter direitos. Direitos estes brutalmente negados a grupos populacionais por todo o globo sob o manto dos totalitarismos. A retomada do paradigma jusnaturalista não representou o mero resgate do liberalismo kantiano, mas o reencontro da humanidade à luz do existencialismo: O primeiro esforço do existencialismo é o de por todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir toda responsabilidade de sua existência. E quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. (SARTRE apud AQUINO, 1997, p. 317) Como esclarece Brito (2010, P.187-188), em sua acepção jurídica, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica, sendo incorreto afirmar que a pessoa tem direito à personalidade, uma vez que, antes, é desta que surge a capacidade, a aptidão, a habilidade, de ser sujeito de direitos e obrigações. Por uma ficção jurídica, passou-se a atribuir personalidade a entes que não eram humanos. Hoje, aliás, se reconhece a titularidade de direitos e obrigações a entes despersonalizados, como o condomínio edilício, a herança jacente ou vacante, a massa falida e o nascituro. Nesse passo, a característica mais evidente da pessoa, enquanto pessoa humana, é a própria condição humana, que lhe confere uma dignidade inerente, não podendo jamais ser considerada objeto de direito, mas sempre sujeito de direitos. Em outros termos, a pessoa humana é sempre um fim em si, o valor-fonte de todos os valores12. 12 A colocação é de Miguel Reale: “Pode parecer paradoxal, mas é substancialmente verdadeira a afirmação de que, quanto mais são vertiginosas as mutações resultantes do desenvolvimento científico e tecnológico, mais ainda se impõe o encontro de soluções serenamente baseadas no primado da razão tendo como referencial a integralidade da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores e direitos universais, por Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 82 Nem sempre foi assim. A retomada do paradigma do direito natural é recente na história da humanidade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, principal paradigma deste horizonte, não completou sequer 70 anos. Artigo 6°. Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica. (ONU, 1948) É natural, portanto, que esse processo de dignificação (quando não de humanização mesmo) se encontre diferentes níveis ou etapas ao redor do planeta. Vale mencionar a lição de Reinero Antônio Lérias: (...) os homens nascem, vivem e morrem sob uma cultura de legitimação de formas de poder de um dado grupo social sobre outro. Nas sociedades greco-romana, onde a escravidão era legítima, o filho de um escravo era criado desde os primeiros dias de vida sob o da inevitabilidade de sua posição de submissão; (...). Outrossim, o mesmo acontecia com o servo de gleba, ou vilão, no feudalismo, porquanto era educado para ser subalterno a uma ordem social ditada e legitimada pela religião (...). (...) o mesmo se deu e se dá com o assalariado contemporâneo, que busca de um lado, manter o emprego, mesmo que sob condições aviltantes de outro luta, sem cessar por melhores condições de vida. (2008, p.115) Essa matriz produtiva encontra-se na raiz da intolerância. Como explica citado autor (2008, p.123), a Revolução Agrícola levou à domesticação de equinos, bovinos, muares, entre outros, para movimentar os instrumentos agrícolas, “mas nos lugares em que estes animais não existiam, o expediente utilizado foi a substituição deles por seres humanos”, tendo feito uso da escravidão “as grandes ‘civilizações’ da antiguidade”. Esclarece, ademais, (2008, p.123) que “escravidão não significava cor de pele, pois a própria palavra inglesa para escravo, ‘slaves’, quer dizer eslavos” e mesmo grupos étnicos africanos praticavam a escravidão com outros povos, não subsistindo qualquer justificativa para a associação da cor de pele à escravidão senão ideologias, inclusive de matriz religiosa, historicamente estabelecidas também sobre as bases da eugenia. ser o homem o único ente cujo ser é seu dever ser”. (REALE, Miguel. Paradigmas da Cultura Contemporânea. 2. tir. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 143) Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 83 Ora, outra forma de apropriação de seres humanos por outros ‘superiores’ é o sexismo, pelo qual o gênero feminino historicamente torna-se vítima do homem. Lérias relata diversas práticas sociais que revelam a posição de submissão e desprestígio da mulher nas culturas de sociedades de todo o mundo em várias épocas, destacando que, porquanto os direitos das mulheres tenham sido reconhecidos pelas sociedades ocidentais a partir da Revolução Francesa, “os exemplos e críticas podem ser citados ‘ad nauseum’, porquanto a distância entre o discurso e a realidade é abissal” (2008, p. 121). A exemplo, cita a luta pela conquista do útero, decidir livremente ter ou não filhos, e a luta contra a publicidade midiática “que procura transformá-la em uma mercadoria de consumo, o mito da sexysimbol; outro expediente utilizado por aqueles que consideram ainda ser a sociedade humana propriedade do macho” (2008, p. 122). Neste horizonte percebemos que Soraya não é só vítima da violência doméstica (principal vertente na discriminação de gênero), da religião, da corrupção e violência estatal, das maiorias da sociedade local, mas de toda a humanidade, que, alimentando doces sonhos de apropriação e consumo, estende sua sede de poder sobre tudo e sobre todos. Geoge Orwell, no seu distópico 1984, revela pelas bocas de torturador e torturado: - Como é que um homem afirma seu poder sobre outro, Winston? Winston refletiu. - Fazendo-o sofrer. - Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como poder ter certeza que ele obedece tua vontade e não a dele? O poder reside em infligir dor e humilhação. (...). (2005, p. 254) E então, como um brinquedo velho, Soraya foi abusada, humilhada e descartada não apenas para que se legitimasse a obtenção de um novo ‘brinquedo’, capaz de satisfazer os desejos de apropriação e consumo de seu ‘dono’, mas também para provar à comunidade o poder que exercia sobre ela. CONCLUSÃO Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 84 O presente artigo se propôs a discorrer acerca de algumas das múltiplas perspectivas jurídicas que o filme 'O Apedrejamento de Saraya M.', uma obra artística de não-ficção, foi capaz de despertar ao denunciar a tragédia ocorrida com uma mulher no Irã em meados da década de 1980. Adotando como base diversos recortes desta realidade retratada, permitiu-se expandir sua análise para situações de âmbito geral e impessoal. Com isso, foi possível identificar uma relação que reforça não só a mensagem final da obra artística - a história de uma mulher para o mundo - mas que também une todas as mulheres no mundo, ou melhor, toda a humanidade, em torno da história de uma só mulher. Soraya não foi apenas vítima de pena de morte - em si uma frontal violação do direito humano à vida -, mas de uma pena cruel, degradante, desumana que, embora prevista também para homens, tem evidentemente encontrado nas mulheres seu principal alvo, sendo recorrentes os relatos internacionais de mulheres condenadas à lapidação em diferentes países. Nesse passo, observou-se que, apesar da adoção de escritos religiosos como base da ordem normativa estatal ser incompatível com o estado laico, esta condição, verificada com certa frequência junto a povos islâmicos, não é por si causa determinante para a adoção da pena de morte ou, especificamente, da pena de lapidação nem do tratamento dispensado às mulheres - até mesmo porque a pena de morte é prevista em estados laicos assim como, no passado, tratamento pior já foi dispensado a mulheres bem como a crimes em geral em repúblicas democráticas ocidentais. Com isso, percebe-se que embora a historicidade dos direitos humanos constitua fator relevante no processo de reconhecimento e efetivação universal, tal não significa necessariamente uma vedação ou impedimento, devendo ser reclamada sua implementação seja individualmente mediante o exercício hermenêutico em tribunais ordinários, independentes e imparciais caso a caso, seja mediante a luta social e política cotidiana no reconhecimento da dignidade inerente à condição humana, especialmente na proteção de grupos vulneráveis e minorias. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 85 A obra cinematográfica em questão, neste aspecto, deixou claro que não só as provas de adultério foram forjadas como o julgamento foi viciado, não sendo possível ter garantia de que a condenação ou a pena de apedrejamento aplicada foi fruto da Sharia, da vontade individual dos juízes ou mesmo para satisfazer os anseios da comunidade - o devido processo de direito lhe foi negado. Em todo caso, ficou evidente a posição de vulnerabilidade social de Soraya dada a sua condição de mulher, uma minoria à qual, por definição, são negados direitos por uma condição inerente à sua existência, à sua identidade, à sua diferença. Nesta linha, a violência doméstica e familiar sofrida por Soraya surge como traço mais universal entre as mulher nas culturas patriarcais, amplamente majoritária no mundo, seja em função de uma dada condição particular de vulnerabilidade, seja em função da cultura sexista, dominadora e, por isso, violenta tendente a consumir, como um objeto, suas vidas e seus sonhos. Por fim, percebe-se que a Soraya, assim como a muitas mulheres vítimas de toda forma de violência mundo afora, o que de fato foi negado foi a própria condição humana. Diante deste quadro, as palavras atribuídas a Jean-Paul Sartre ganham verdade: “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”, uma derrota da humanidade. 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A reescrita propicia ao aluno condições de reelaborar o seu texto, a partir das escolhas lexicais adequadas para cada situação de produção. Após refletir sobre a função das palavras no contexto em que estão inseridas, o educando percebe o verdadeiro sentido da organização textual, articulando o plano da expressão e plano do conteúdo. A análise linguística, por sua vez, contribui para a compreensão dos aspectos formais que se articulam para a estruturação das ideias de forma coerente e coesa. Dessa forma, quando se toma o texto como ponto de partida e de chegada para o ensino e aprendizagem da língua, o trabalho com a prática escrita deixa de ser fragmentado e passa a abordar, simultaneamente, os aspectos pragmáticos e semânticos da linguagem. Os alunos, ao se sentirem sujeitos dessa forma de conduzir o trabalho, tornam-se usuários concretos da língua e, consequentemente, participantes do discurso. Nessa perspectiva, o trabalho com a linguagem escrita relaciona-se ao momento concreto de sua produção, pois o próprio texto produzido pelo aluno chama novas propostas Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 90 de escrita. Com base nisso, antes do momento da produção de textos, é fundamental oferecer ao aluno um momento de trocas de ideias, de debates, de formação de opiniões sobre o que se vai escrever. Sempre que o professor trabalhar com a atividade de produção de textos, deve proporcionar aos alunos informações provenientes das mais variadas fontes e momentos para reflexões sobre o tema solicitado. Essa estratégia permite ao aluno confrontar dados, refletir sobre eles e formar opiniões para registrá-las por meio da escrita. Considerando essa forma de pensar o trabalho com o texto em sala de aula, esta pesquisa visa mostrar, por meio de estudos teóricos e análises de textos produzidos pelos alunos, o quanto o encaminhamento do trabalho com a reescrita, na abordagem da concepção de linguagem como interação, contribui para o perfeito entendimento dos mecanismos da coesão e dos efeitos da coerência presentes nos discursos, conforme a especificidade do texto e das condições de produção das quais se resultou. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 CONCEPÇÕES DE LINGUAGENS Em se tratando do ensino e aprendizagem da produção de textos, o professor deve propiciar ao aluno subsídios para mover-se no espaço de interação. Para isso é necessário levar em conta a concepção de linguagem que orienta o trabalho no cotidiano escolar. Segundo Geraldi (2001, p. 41), três concepções podem ser apontadas, são elas: a linguagem é a expressão do pensamento; a linguagem é instrumento de comunicação; a linguagem é uma forma de interação. A discussão proposta para este trabalho procurará situar-se no interior da terceira concepção, ou seja, linguagem como interação humana, atividade, ação interindividual. Nesse pressuposto, acredita-se que os caminhos que levam o aluno a dominar a escrita passam pelo comprometimento de um trabalho que privilegie essa concepção de linguagem. Na perspectiva dessa visão de ensino, a Língua é considerada parte constitutiva do homem, considerada em seu caráter histórico, geográfico e social; linguagem e homem são realidades inseparáveis, o texto deve ser tratado como núcleo de todo e qualquer trabalho; o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 91 erro é interpretado como tentativa de comunicação, pois a sala de aula é o espaço de interação e produção de discurso. Se as ações da sala de aula forem pautadas na concepção interacionista da linguagem, é fato que o trabalho está voltado para um sujeito que é ativo em sua produção lingüística. Assim, o texto, centro de investigação, ganha valor, pois se forma num real processo de interlocução, ou seja, existe direção pré-estabelecida para as ideias externadas por meio da língua escrita. Segundo Geraldi (1995, p. 137), para produzir um texto em quaisquer situações, por mais ingênuas que sejam, é preciso que: a) se tenha o que dizer; b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer; c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem diz (ou, na imagem wittgensteiniana, seja um jogador no jogo); e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d). É apenas nessa circunstância, de efetiva interação, que o aluno pode tornar-se sujeito do que diz. Nessa perspectiva urge a necessidade de trabalhar em sala de aula o discurso como própria prática da linguagem, conduzindo o ensino na direção de levar o aluno a refletir e compreender o processo de escrita como trabalho que lhe permite estabelecer interlocução com o outro. Sob a perspectiva interacionista, o ensino da língua exige do professor reflexão constante sobre sua prática em sala de aula, a fim de realizar um tratamento dinâmico, “vivo” da linguagem nas atividades de produção escrita. Nas aulas de Língua Portuguesa, o aluno não pode perder de vista o aspecto sóciocomunicativo para compreender melhor as condições de escrita, estabelecendo, dentro Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 92 do contexto escolar, a distinção entre “produção de texto” e “redação”. A partir dessa compreensão, produzir textos na escola torna-se mais significativo para os discentes. Com base nas ideias anteriores, a escola não deve limitar-se a um espaço em que as atividades correspondam a solicitações de exercícios metalinguísticos e a produção de texto constitua-se como mais uma tarefa escolar para os alunos questionarem: total de linhas e valor. Quando isso acontece, percebe-se a escrita apenas como forma de avaliação que causa preocupação aos alunos quanto à nota, Isso reforça a ideologia que vê a escrita como uma atividade exclusivamente escolar, sem contexto de produção e sem estratégias adequadas para tal. Para evitar tal situação, é necessário adotar a o entendimento de que a prática da leitura e a prática da escrita são atividades significativas para a constituição do sujeito produtor do texto. Isso implica, durante o processo de produção de textos, falar a outrem de algo que lhe seja interessante, que volte para algum fim, que haja partilha. Dessa forma, quem produz, compromete-se, pois produz para alguém, sem o qual não há discurso, não há interação, não há o que dizer, nem como dizê-lo, mas apenas tarefas a cumprir. Trabalhar em sala de Aula com a produção de textos é dar voz ao aluno, é encaminhá-lo a compreender a sua própria história, é dar-lhe a oportunidade de assumir-se como sujeito do processo interlocutivo. Daí, se o aluno constitui-se sujeito da ação de aprender a sua própria história, co-responsável pelo seu processo de aprendizagem, é indicativo que o ensino da Língua Portuguesa se caracteriza no texto, e responde a necessidade dos falantes enquanto usuários ativos da língua materna. Leitura e escrita, para adquirem sentido, precisam se concretizar como experiência que registra ações de pessoas ou grupos, garantir o processo histórico da humanidade, sistematizá-lo e melhor compreendê-lo, suavizá-lo. Escrever, portanto, significa agir no processo, compartilhar idéias, dar novos sentidos às palavras. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 93 Assim, nesta pesquisa, o trabalho com a linguagem escrita relaciona-se ao momento concreto de sua produção. O objeto vivido e os conhecimentos prévios constituem ponto de partida, pois o próprio texto produzido pelo aluno chama novas propostas de escrita. Com base nisso, antes do momento da produção de textos, é fundamental oferecer ao aluno um momento prévio de trocas de ideias, de debates, de formação de opiniões sobre o que se vai escrever. Sempre que o professor trabalhar com a atividade de produção de textos, deve proporcionar aos alunos informações provenientes das mais variadas fontes e momentos para reflexões sobre o tema solicitado. Essa estratégia permite ao aluno confrontar dados, refletir sobre eles e formar opiniões para registrá-las através da escrita. Produzir um texto na escola é, pois, realizar uma atividade de elaboração que se apura nas situações interlocutivas criadas em sala de aula; é um trabalho de reflexão individual e coletiva e não um ato mecânico, espontaneísta ou meramente reprodutivo. (AZEVEDO E TARDELLI, 2004, p.45). O discurso não acontece no vazio, deve-se levar em conta a situação e as condições de produção. 2.2 ELEMENTOS DA TEXTUALIDADE: COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL Falar em textos coesos e coerentes não significa que o produtor tenha clareza do que seja realmente essa coesão e, conseqüentemente, essa coerência. Por isso, o intuito desta pesquisa é, com o trabalho de reescrita do texto, contribuir para compreensão dos recursos que permitem a manifestação dessas propriedades. 2.2.1 Coesão Textual Tendo em vista a função de articular os vários segmentos do texto, a coesão é fator fundamental para o estabelecimento da unidade de sentido e da unidade temática do texto. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 94 Reconhecer, portanto, que um texto é coeso é reconhecer que suas partes estão interligadas, que há continuidade e unidade de sentido. Segundo Antunes (2005, p.50), “é importante, pois, ressaltar que a continuidade que se instaura pela coesão é, fundamentalmente, uma continuidade de sentido, uma continuidade semântica, que se expressa, no geral, pelas relações de reiteração, associação e conexão”. Para que essas relações se concretizem, são necessários vários procedimentos e recursos. Antunes (2005, p. 51) indica os procedimentos e recursos de cada relação textual responsável pela coesão, conforme descrição no quadro a seguir: A COESÃO DO TEXTO Relações textuais Procedimentos recursos 1. reiteração 1.1 Repetição 1.1.1 Paráfrase 1.1.2 paralelismo 1.1.3 Repetição De unidade do léxico Propriamente De unidade da 1.2 substituição 1.2.1 substituição Retomada por: 1.2.2 substituição Lexical 2.1 Seleção Lexical Retomada por: sinônimo hiperônimos caracterizadores situacionais retomada por elipse Seleção de por antônimos palavras semanticamente próximas por diferentes modos de relações de 1.2.3 Elipse 2.Associação pronomes ou parte/ todo 3. conexão 3.1 estabelecimento Uso de diferentes Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 95 De relações sintático-semânticas entre termos, orações, períodos, parágrafos e blocos supraparagráficos Conectores: preposições conjunções advérbios e respectivas locuções Quadro 1: A propriedade da coesão do texto - relações, procedimentos e recursos. Com base nos itens do quadro acima, é possível observar que as relações textuais responsáveis pela coesão são promovidas por meio de quatro procedimentos. Esses procedimentos se efetivam através dos recursos que são ações de repetir, de substituir através de anáforas e catáforas ou por palavras semanticamente equivalentes, de associar palavras de acordo com o sentido e com a intenção pretendidos na interação, de promover a ligação entre orações e períodos fazendo uso dos conectores. Os conectores também devem ser entendidos como elementos que se responsabilizam pela consistência discursivoargumentativa que o sujeito pretende dar ao seu texto. A coesão não é apenas mera ocorrência de elementos linguísticos presentes no aspecto formal do texto, ela se relaciona, em muitas situações, com a coerência do texto, principalmente quando se refere à coerência sintática e à coerência local que “advém do bom uso dos elementos da língua em sequências menores, para expressarem sentidos que possibilitem realizar uma intenção comunicativa.” (KOCH e TRAVAGLIA, 2006, p. 41) Para o estabelecimento da coerência é necessário conhecer os elementos linguísticos e sua relação com o contexto da situação de produção. A unidade de sentido do todo do texto é estabelecida na interlocução entre os usuários de acordo com a situação comunicativa e com os recursos linguísticos empregados. No âmbito da Linguística Textual, a coerência é vista como uma propriedade diretamente ligada à possibilidade de o sujeito estabelecer um sentido para o texto, trata-se Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 96 do estabelecimento de uma relação, tanto semântica como pragmática, entre os elementos de uma sequência linguística, criando uma unidade de sentido, construída pelo leitor quando um texto faz sentido para ele. Separar coesão de coerência não é tão simples quanto, às vezes, parece. A coesão constitui um dos fatores da coerência que contribui para a linguística do texto. Para Koch e Travaglia (2006, p. 52), coesão e coerência “são duas faces do mesmo fenômeno”. Sendo a coesão uma manifestação da coerência na superfície textual, os textos organizados com diferentes recursos coesivos exigem eficientes mecanismos de compreensão para identificar a coerência. O que se pretende com o ensino da língua, na perspectiva textual e interativa, é um trabalho dinâmico que aborde os recursos linguísticos de forma que possibilite a intenção da situação comunicativa concreta. Se houver equívoco no uso dos elementos linguísticos e estruturais e falta de clareza das características do leitor e das finalidades para as quais o texto foi redigido, o interlocutor não conseguirá estabelecer o sentido do texto. Por isso, este trabalho adota como fundamental as ideias de Antunes (2005, p.169), quando salienta: “um estudo científico e consistente da linguagem somente pode ter como objeto o texto e suas propriedades, o texto e suas regularidades, o texto e seus modos de ocorrência, o texto e seus efeitos”. O professor não pode deixar de abordar, na sala de aula, o pensamento de que os elementos linguísticos da coesão não são os únicos necessários para que a coerência seja estabelecida. Haverá sempre necessidade de conhecimento prévio: lingüístico, textual e conhecimentos exteriores ao texto (conhecimento de mundo, dos interlocutores, da situação, de normas sociais). O conhecimento linguístico é responsável pela compreensão do texto verbal, pois constituem as regras da língua, utilizadas para comunicação oral e/ou escrita. O conhecimento textual garante a circulação entre os diversos gêneros textuais. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 97 O conhecimento de mundo, tanto formal como informal permite a partilha entre escritor/falante e leitor/ouvinte no entendimento do texto. Para parte significativa dos professores das séries finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, que se vê perante um trabalho com as teorias da Linguística Textual, percebe com mais relevância a coesão nos textos de seus alunos. Na perspectiva de inovar o modo de ensinar, pode acontecer que alguns professores reproduzam para seus alunos listas de elementos coesivos no intuito de facilitar o processo da escrita. Além disso, ao corrigir os textos dos alunos, destacam exclusivamente os aspectos coesivos, deixando de lado a possibilidade de discutir os sentidos do texto, ou seja, o que o aluno “disse” ou “tentou dizer” através da escrita. As categorias coesivas sobrepõem à importância da coerência Por exemplo, o poema abaixo é coerente para o leitor que possui familiaridade com a profissão de professor, porém, possui marcas coesivas mínimas: O despertador, O banheiro, A cozinha, A mesa A rua, A escola, O sino, Os cumprimentos, Os alunos, A chamada, O quadro negro, Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 98 O livro didático A conversa, O debate, As provas, As correções, A recuperação, A nota, O sino, A casa. Eis o dia-a-dia do professor. O poema ajuda a mostrar que os elementos de coesão não são os principais responsáveis pela textualidade, o necessário para entender este texto é o conhecimento textual e o conhecimento de mundo, pois possui mínimos elementos coesivos; no entanto, o leitor é capaz de construir para o texto um sentido possível: as atividades dos professores todos os dias. As teorias sobre coesão, já descritas pela literatura, embora não sejam suficientes para resolver os problemas de coerência que aparecem nos textos dos alunos, deverão ser conhecidas por todos os professores de Língua Portuguesa. Nas linhas a seguir serão apresentados alguns esclarecimentos. Segundo Koch e Travaglia (2006, p. 47 – 48) há duas grandes modalidades de coesão: a sequenciação e a remissão. A coesão sequenciadora, seria aquela por meio da qual se faz o texto avançar, garantindo-se a continuidade dos sentidos. Faz-se por meio de duas categorias: com recorrências das mais diversas ordens: de termos ou expressões, de Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 99 estruturas (paralelismo), de conteúdos semânticos (paráfrase), de elementos fonológicos ou prosódicos (rima, aliteração, assonância) e de tempos verbais. Enquanto alguns elementos conectivos que “costuram” os enunciados que constituem o texto formam o que se chama de coesão sequenciadora, outros elementos que têm a função da retomada e sinalização do texto formam chamada coesão por remissão (referencial ou remissiva). É essa a função dos elementos anafóricos e catafóricos. O termo anáfora é usado para designar expressões que se reportam a outras expressões, a enunciados, a conteúdos, já referidos no texto, relacionando, assim, dois elementos, sendo um deles o antecedente e outro o elemento anafórico, As anáforas podem ocorrer como pronomes, diversos tipos de numerais, advérbios pronominais e artigos definidos; por meio de recursos de natureza lexical como sinônimo, hiperônimos, nomes genéricos, expressões definidas; por repetição de um mesmo grupo nominal ou parte dele; por elipse. Já, o termo catáfora é entendido pelo uso de elementos coesivos responsáveis pela antecipação de referentes em um texto. Exemplo: “As palavras do diretor foram estas: o horário de início e de término das aulas precisa ser respeitado pelos alunos e também pelos professores”. Observa-se neste período um caso de catáfora, a oração “o horário de início e de término das aulas precisa ser respeitado pelos alunos e também pelos professores” tornase coesa porque foi anunciada por meio do uso do pronome demonstrativo estas que a precede. Nessa perspectiva, o intuito desta pesquisa é, com o trabalho de reescrita do texto pelo próprio aluno, contribuir para compreensão dos recursos pelos quais as propriedades de coesão e coerência se manifestam. 2.2.2 A coerência segundo Charolles Sobre a coerência, pode-se afirmar que não existe regra formal para determiná-la. O texto somente se tornará coerente quando interlocutor possui conhecimentos que permitam a compreensão da mensagem. Porém, também não dá para afirmar que qualquer conjunto Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 100 de palavras seja um texto. Para que uma sequência de palavras seja admitida como texto é preciso que respeite certa linearidade combinatória, proporcionada pela relação existente entre os constituintes textuais. Charroles, citado por Val (2006, p. 20–27), estabelece o que chama de Metarregras, que, segundo o autor para que um texto seja coerente e coeso, são fundamentais os seguintes requisitos: a repetição, a progressão, a não-contradição e a relação. Assim, a Metarregra de repetição define que um texto é tanto mais coerente quanto mais houver, no seu desenvolvimento, elementos de referência. Esses elementos perpassam todo o desenvolvimento textual, garantindo-lhe unidade. Esses recursos contribuem para a coerência tanto microestrutural quanto macroestrutural, pois favorecem para que o tema desenvolva-se de modo contínuo, por meio de uma espécie de ‘fio textual’ condutor que permite a continuidade e a progressão textual. Já, a metarregra de progressão é o complemento da repetição e indica que para um texto ser considerado coerente não deve apresentar elementos que se repetem sem constituição de textualidade, ou seja, que caminham em círculo, sem renovação das ideias. A Metarregra da não-contradição, por sua vez, enfatiza que para um texto ser coerente não se deve afirmar uma situação contrária a si mesma tanto nas ideias explícitas, como implícitas. A contradição acontece também na coesão quando se empregam, de forma inadequada, os tempos verbais, os advérbios, as conjunções, o uso do vocabulário, entre outros recursos coesivos. Nesses casos o significante empregado não condiz com o significado que se espera. Finalmente, a Metarregra de relação propõe que para um texto ser coerente, os fatos deverão ser pertinentes e exercerem papéis de causa e conseqüência, um em relação ao outro. É fundamental o produtor verificar se o texto tem continuidade, não se contradiz, possui fio condutor que sustente a significação e amarre as ideias às situações desenvolvidas. É frequente, nos textos dos alunos, a ausência de fatos ou relações expressas. Se o professor Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 101 conseguir detectar essas incoerências, terá condições de contribuir com a produção do aluno, sem ferir a intenção e o tipo textual selecionado pelo produtor. Assim, reforçará ao educando que todo discurso precisa ser facilmente compreendido pelo recebedor que possui conhecimentos prévios e capacidade de pressuposição e inferência. Embora o que faz sentido para um recebedor pode parecer absurdo para outro, um texto que não acrescente nada ao conhecimento do recebedor constitui má produção. A textualidade depende da situação de produção, por isso não dá para perder de vista a fundamental importância de redigir na escola o que acontece no dia-a-dia. Não se podem negar as imensas dificuldades dos alunos, mesmo do último do Ensino Médio, quanto à elaboração de textos coerentes, orais e, especialmente, escritos. Isso se deve ao fato de que um conjunto de palavras só funciona como texto quando contempla em si as propriedades textuais. Com base nessa situação, optou-se em trabalhar, nesta pesquisa, com as características da coesão e da coerência textual. 2.3 A CORREÇÃO E REESCRITA DO TEXTO DO ALUNO: AS PROPRIEDADES DA COESÃO E DA COERÊNCIA TEXTUAL Na perspectiva deste estudo, o texto produzido no contexto escolar constitui o objeto de trabalho da análise linguística, logo é submetido ao processo de reescrita pelos alunos. É importante ressaltar que a prática de análise linguística, por meio da reescrita do texto do aluno, teve sua primeira divulgação com a publicação do livro: O texto na Sala de Aula, organizado por João Wanderley Geraldi, em 1984. Esta obra propôs um redirecionamento para o ensino de língua materna, apontando como foco o plano de uso desta língua na interação entre os sujeitos. E, também, propôs um estudo organizado por meio de três práticas: a prática da leitura de textos; a prática da produção de textos e a prática da análise linguística. Salienta-se, ainda, que o princípio fundamental da prática de análise linguística, segundo Geraldi (1984, p.63), é “partir do erro para auto-correção”. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 102 A partir do momento que as ideias defendidas na obra organizada por João Wanderley Geraldi chegaram às escolas públicas, a expectativa foi trabalhar com a reescrita do texto do aluno de forma positiva. O autor (aluno) passou a ser visto como sujeito, cujos discursos não deveriam ser corrigidos apenas no enfoque gramatical, mas sim observadas às relações presentes no contexto enunciativo. De acordo com Bakhtin (1997, p. 332), “a reprodução do texto pelo sujeito [que se dá num processo de volta ao texto, releitura, nova redação] é um acontecimento novo, irreproduzível na vida do texto, é um novo elo na cadeia histórica da comunicação verbal.” A importância do ato de reescritura do texto está no diálogo do sujeito-autor com o resultado do seu produto e, consequentemente, com seu interlocutor. Este processo possibilita ao aluno ver aquilo que antes não via em seu texto. O ato de reescrever permite ao autor perceber que o texto é um produto inacabado, é construção de conhecimento, é ambiente de interação. Para Sercundes (2004, p.89), Partindo do próprio texto, o aluno terá melhores condições de perceber que escrever é trabalho, é construção do conhecimento; estará, portanto, mais bem capacitado para compreender a linguagem, ser um usuário efetivo, e conseqüentemente aprender a variedade padrão e inteirar-se dela. Para a atividade de reescrita, o professor fornece marcas no texto do aluno por meio de códigos de correção pré-definidos ou ainda faz interferência direta, por meio da fala, de comentários ou questionamentos orais e/ou escritos, para que o aluno tenha condições de exercer o papel de reescritor das próprias ideias. Isso estabelece interação entre alunoescritor e aluno-leitor que, repensando, ajusta suas expressões para submetê-las a um segundo leitor. O aluno continua o processo de reescritura de texto, passa a se preocupar mais com a forma como os leitores verão seu texto. E, assim, passam a perceber a importância da reescrita, já que as possíveis modificações têm como objetivo tornar o texto mais claro e adequado ao leitor/ouvinte. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 103 A reescrita deve ser entendida como uma atividade em que o aprendiz, na elaboração da primeira versão do seu texto, já teve todos os encaminhamentos necessários para o processo de produção. É necessário ter consciência dos limites do aluno no momento da reestruturação do texto, é impossível corrigir o que não se sabe. Para o aluno exercer o papel de modificador do seu trabalho, é preciso dar-lhe condições para isso. Segundo Menegolo (2005, p.77), o contato do aluno com o seu próprio texto estabelece a relação de maior confiabilidade em relação à sua produção, dá-lhe a condição de olhar para o seu texto com uma visão mais crítica e às mudanças, pois ganha condições de sujeito avaliador. Sendo assim, o aluno, no momento que recebe o seu texto para reestruturação, assume o papel de sujeito-leitor e a posição de avaliador do seu próprio produto. Um trabalho que retoma os conhecimentos adquiridos nos anos escolares, alternando os papéis de leitor e escritor, fazendo com tranquilidade as escolhas dos recursos formais e estruturais que a língua lhe disponibiliza, ou seja, segundo Geraldi (1995, p.164), “dizer o que quer dizer na forma que escolheu”. O estilo vai se aperfeiçoando ao longo dos anos escolares, ora no que se refere à coesão e coerência, ora fazendo reflexões, levantando hipóteses e questionamentos sobre os sentidos por meio do processo de interlocução/interação entre professor e aluno num processo dialógico. Isso é o que se faz necessário planejar em relação ao trabalho de reestruturação de textos no cotidiano escolar. 2.4 A PRODUÇÃO DE TEXTOS NO UNIVERSO ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA: ANÁLISE DE TEXTOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS Considerando o trabalho do professor em sala de aula uma realidade complexa, o tema desta pesquisa buscou tratar de alguns aspectos dessa realidade, rediscutindo, assim, a prática de leitura, de produção de textos e de análise linguística, em especial, como essas práticas são trabalhadas no contexto escolar da Educação Básica. Sabe-se que as teorias produzidas pela Linguística não são as únicas que o professor lança mão em sua prática, porém constituem parte importante para o perfeito entendimento da língua por seus usuários. Junto aos conhecimentos linguísticos devem estar presentes os saberes sócio- Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 104 históricos, responsáveis pela concretização das atividades de interação entre os interlocutores. A urgência da concretização de um trabalho com a língua em sala de aula que não se fixe apenas no repasse de regras e na cobrança de atividades metalinguísticas a partir de palavras, frases soltas, ou do texto apenas como pretexto para o ensino da gramática foi o que levou à realização de um trabalho que objetiva discutir a linguagem de forma dinâmica e dialógica, tendo como foco central os estudos referentes à coesão e coerência textual. A Pesquisa foi norteada pelos seguintes questionamentos: - o que se escreve na escola é lido e analisado ou apenas corrigido? - há interlocução em sala de aula por meio dos textos produzidos pelos alunos? - o autor, aluno, retoma seu texto após intervenções dos colegas e/ou professor? - o texto produzido pelo aluno circula dentro e/ou fora do ambiente escolar? - as atividades trabalhadas em sala de aula vão ao encontro das necessidades apresentadas nos textos dos alunos? - o trabalho com a gramática leva em conta a condição para a estruturação coesiva e coerente dos textos ou apenas preocupa-se com as nomenclaturas? A seguir, um esboço da proposta de ação “Leitura, produção de textos e prática de análise linguística por meio da reescrita dos textos dos alunos: propriedades da coesão e coerência textual”, realizada no 3º período do programa do Professor PDE/2007, bem como uma breve análise dos textos produzidos pelos alunos, conforme orientações dos professores nas aulas. O trabalho realizado pelo Professor PDE, juntamente com os professores de Língua Portuguesa das séries finais do Ensino Fundamental e Médio, do município de Ibaiti, fundamentou-se na concepção dialógica da linguagem e na concepção de escrita como trabalho. Nessa perspectiva, a reescrita passou a ser entendida como uma atividade em que Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 105 o aprendiz, na elaboração da primeira versão do seu texto, já teve todos os encaminhamentos necessários para o processo de produção. O educador, então, apropriouse da necessidade de conhecer os limites do aluno no momento da reestruturação do texto, pois é impossível o aluno corrigir o que não sabe. É necessário dar condições para o aluno tenha atitudes críticas em relação a sua própria produção. As atividades desenvolvidas pelo professor PDE, durante a implementação dessa proposta foram: 1- Apresentação do trabalho aos professores da Disciplina de Língua Portuguesa, atuantes nas séries finais do Ensino Fundamental e Ensino, Médio do município de Ibaiti, em conversa individual e em pequenos grupos; 2- Disponibilização de subsídios teóricos aos professores por meio da apresentação de textos de autores que discutem o trabalho com a leitura, produção de textos, coesão, coerência e análise linguística por meio da reescrita do texto do aluno; 3- Acompanhamento semanal e orientações que se fizeram necessárias durante o período de desenvolvimento do trabalho. O desenvolvimento da proposta, em sala de aula, se deu a partir dos seguintes passos: 1- Atividade prévia – leitura, análise de textos, de filmes, conversa em sala de aula, debates, entre outras atividades reconhecidas e trabalhadas pelo professor para dar suporte à prática de produção textual do aluno; 2- Sensibilização sobre o ato de redigir; 3- Atividades de produção de textos pelos alunos; 4- Análise, correção e intervenções do professor; 5- Reestruturação e reescrita do texto pelo aluno; Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 106 6- Trabalho, em sala de aula, para esclarecer as dificuldades apresentadas em relação à coesão e coerência textual; 7- A análise linguística com base na produção textual do aluno; 8- Circulação, no ambiente escolar e/ou na comunidade, do texto reescrito pelo aluno. Na perspectiva do trabalho realizado pelos professores em sala de aula, segue a síntese dos resultados da proposta por meio da análise de fragmentos de dez textos, construídos pelos alunos, sobre diversos assuntos. São analisados fragmentos da versão do texto após as atividades de reestruturação. A análise se detém nos aspectos formais que dizem respeito ao mecanismo de coesão textual e as ocorrências que permitem ao texto tornar-se coerente. A seguir, fragmentos dos textos que foram selecionados para estudo neste trabalho, bem como as respectivas análises, conforme as relações textuais da reiteração e da conexão. [...] A água é muito importante para nossa vida, porque a gente utiliza a água para lavar as mãos, lavar louças, lavar roupas, fazer comida, fazer higiene corporal, lavar calçadas, etc. [...] Vamos economizar água, pois 97% da água do nosso Planeta são salgadas, apenas 3% são doces. (ALUNO A). O aluno faz uma afirmação para iniciar a argumentação, a seguir utiliza corretamente os conectivos porque e para, indicando a explicação e a finalidade respectivamente, do assunto em questão, dando, assim, consistência aos seus argumentos. Além disso, no aspecto da coerência, pôde-se observar que as ideias progridem, pela colocação em forma gradativa, das utilidades da água. Também, dando continuidade ao desenvolvimento do texto, o aluno faz um pedido aos habitantes do Planeta, a argumentação introduzida pelo conectivo, pois, com o intuito de sustentar o seu pedido. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 107 [...] por isso ao redor das minas de água não pode desmatar, porque se um dia a água acabar, ninguém poderá reclamar. [...] Ela é um elemento da natureza indispensável a todos os seres vivos. (ALUNO B). A partir dos fragmentos acima, é possível verificar a importância do trabalho com a reescrita do texto do aluno, uma vez que a ideia desenvolvida, embora simples, torna-se significante, tanto no aspecto coesivo como no que diz respeito à continuidade, repetição, progressão e articulação. Coerência e coesão textual são objetos de estudo pertinentes para a escola em geral, não se deve limitar apenas à disciplina de Língua Portuguesa. [...] Um dia Mônica estava andando e de repente ela escorregou numa casca de banana. A Mônica foi para o hospital para fazer curativo. E Cebolinha foi até o hospital para ver a Mônica levar agulhada. __Se você der risada, Cebolinha, vai apanhar! __HA, HA,HA!!!!!!!!!!!! E ele apanhou da Mônica!!!!!!!!!!!! (ALUNO C). [...] Um dia Cebolinha estava dormindo e de repente ele acordou, saiu da casa dele e foi para casa da Mônica e ela também estava dormindo (ALUNO D). Observando a produção dos alunos, é possível perceber o emprego dos pronomes pessoais do caso reto em posição anafórica, amarrando as ideias, identificando e retomando os personagens envolvidos na história. Isso permite progressão ao discurso, eliminando, dessa forma, as repetições desnecessárias. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 108 Também a preposição até, utilizada no discurso, contribui para confirmar a noção de espaço apropriada pelo narrador. Percebe-se, também, a recorrência temporal por meio da expressão Um dia, utilizada pelos alunos no início de cada fragmento acima. Já nos fragmentos abaixo, podem ser notadas ocorrências dos recursos de relação textual, responsáveis pela conexão sintático-semânticas entre termos, orações e períodos. Percebe-se o uso de conjunções em todos os textos que compõem o corpus deste trabalho. Também não se pode negar o correto uso da substituição gramatical por meio de pronomes, em posição anafórica na maioria dos fragmentos. Que a educação é indispensável na vida de um ser humano é fato, mas será que ela vem alcançando seus verdadeiros objetivos? (ALUNO E) Gostaríamos que tudo fosse do jeito que planejamos, porém entre o que pensamos e o que realmente é, há uma grande lacuna. (ALUNO F) Embora o Brasil tenha avançado no campo da educação nas últimas décadas, ainda há muito para ser feito. (ALUNO G) Percebe-se nos fragmentos acima a relação de oposição por meio do emprego das conjunções mas, porém e embora. O correto uso desses conectores leva o leitor a visualizar uma argumentação contrária àquela que estava sendo apresentada pelo autor. Essas marcas orientam o interlocutor sobre o caminho seguido durante a produção do texto, além de garantir a compreensão do discurso, uma vez que a coesão existe em função da coerência. Essas propriedades mantêm íntimas relações. Também foi possível registrar, no fragmento do aluno E, o recurso da substituição quando o pronome pessoal do caso reto foi utilizado para Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 109 retomar a palavra educação. Isso assegura a continuidade do texto pela articulação e encadeamento dos diferentes segmentos quando o educando faz as escolhas adequadas para referenciar ideias relatadas anteriormente. A educação se faz importante, tanto para o desenvolvimento do país, quanto para o nosso próprio desenvolvimento. (ALUNO H) Observa-se, no fragmento acima, a relação de comparação entre os segmentos da argumentação pelo uso dos conectores tanto [...] quanto, contribuindo para a manutenção da textualidade. Katiane era uma pessoa muito revoltada, pois na sua infância passara por sérios problemas. (ALUNO I) A educação é fundamental no desenvolvimento de um país, pois é por meio dela que se tem o desenvolvimento tecnológico, o científico e o econômico. (ALUNO J) Nos fragmentos acima, é possível analisar a relação de justificação ou explicação, por meio do uso do conectivo pois, esclarecendo o relatado no segmento anterior para garantir a interpretabilidade do texto. Sabe-se que há muita dificuldade por parte dos alunos quanto ao uso adequado dos conectores nos textos, porém com o trabalho de reestruturação, percebe-se que esses conectores ganham significados coerentes com o sentido que o educando realmente quer dar ao seu texto. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 110 Enfim, as atividades discutidas e realizadas pelo coletivo dos professores enfocam de forma inovadora as práticas de leitura, produção, correção e análise de textos, mobilizando o fazer no cotidiano escolar. Para Sercundes (2004, p. 95), “o próprio texto fornece os conteúdos que serão estudados. Cabe ao professor, nesse caso, indicar os itens a serem trabalhados a fim de que os alunos assimilem novos conceitos, e a cada reescrita novos tópicos surgirão”. A atividade de leitura/escrita/reescrita é o fator primordial para o aprimoramento do texto do aluno. Não há como melhorar a escrita por “decreto”, como também não é possível ensinar a leitura e a escrita sem ler e escrever. É só o trabalho comprometido com a linguagem que terá condições de dar conta do ato de redigir. Isso é o que se comprovou com a implementação desta proposta. 5 CONCLUSÃO Por tudo o que foi exposto neste estudo, fica claro que a forma de conduzir o trabalho com a escrita é significativa e fundamental no desenvolvimento da capacidade de o aluno produzir textos coesos e coerentes. Após a leitura e análise do texto do aluno, o professor tem elementos para identificar os problemas remanescentes e que precisam ser abordados de forma mais sistemática, inclusive as questões gramaticais que devem ser estudadas em sala de aula, pois não há como construir texto sem gramática e não há gramática se não for para a construção de textos. Os problemas identificados ao longo do processo de reescrita do texto do aluno orientam o professor na elaboração de um diagnóstico mais confiável daquilo que o aluno já sabe e do que ainda precisa aprender. Não se encontra e trabalha todos os recursos coesivos em um texto. A atenção dada a um recurso em cada texto pode ser suficiente. A forma como se trabalha a produção e a correção do texto do aluno é basilar, pois é ela a responsável pelo êxito do trabalho em sala de aula. Se essa produção/correção for bem direcionada, as intervenções realizadas pelo professor podem levar o aluno a refletir Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 111 sobre os significados do texto que produziu, não perdendo de vista, porém, o processo interativo por meio do qual o texto ganha sentido. Além disso, as intervenções do professor funcionam como elementos motivadores para o aluno realizar as ligações no interior do texto. Muitas vezes, os problemas de coerência ocorrem pela dificuldade do aluno identificar o referente textual. O diálogo sobre o conteúdo do texto é fundamental para levar o aluno a tornar seu texto coerente para a situação comunicativa concreta a qual se destina. O texto produzido na sala de aula, desde que não se resuma a uma página para se atribuir notas e/ou conceitos, permite esse movimento em busca da aprendizagem, tanto em relação a um possível replanejamento dos conteúdos gramaticais, visando às necessidades dos aprendizes em relação ao aspecto formal da língua quanto aos processos de reelaboração que demandam raciocínio e reflexão, tornando-os sujeitos sociais da escrita coesa e coerente. REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Bernadete Marques; FIAD, Raquel Salek; MAYRINK-SABINSON, Maria Laura Trindade. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas, SP: Associação de Leitura do Brasil (ALB): Mercado de Letras, 1997. ANTUNES, Irandé Costa. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. AZEVEDO, Claudinéia B. e TARDELLI, Marlete C. Escrevendo e falando na sala de aula. In CHIAPPINI, Lígia. Aprender e ensinar com textos de alunos. GERALDI, João Wanderley e CITELLI, Beatriz (Orgs). 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Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 113 NO RASTRO DOS IMIGRANTES: A ESPERANÇA DE UM MUNDO NOVO, O BRASIL PARA OS HAITIANOS Prof. Luciano Ferreira Rodrigues Filho Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Dionecleu de Oliveira Kawata Acadêmica do Curso de Direitos da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. Stephanie Alves Acadêmica do curso de Direitos da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. 1 INTRODUÇÃO “O cisnes brancos, dolorida Minh’alma sente dores novas. Cheguei à terra prometida: É um deserto cheio de covas”. Alphonsus de Guimarães Neste crescimento econômico das nações ditas subdesenvolvidas, o Brasil se destaca pela sua ascendência econômica, revelando uma imagem do país das oportunidades, com oferta de trabalho, de um povo receptível e belas paisagens. O país, mostrando todas as suas “qualidades”, se torna uma fonte de esperança para o imigrante que deixa em sua terra natal toda uma vida, se desprende de amigos, familiares e de uma terra que lhe trazia segurança para encontrar seus desejos e sonhos. Na busca pelos seus desejos, o imigrante vislumbra a sua chance de mudança num outro país muitas vezes desconhecido e, de forma clandestina, adentra num território perigoso, ríspido, sem praias e sem sombras. No anseio de se conservar, se subestima a trabalhos escravos, se alimenta de pequenos restos, quase não dorme, passa largos períodos atrás de máquinas de costura, de pouca iluminação, mas, nada destas aventuras lhe tira a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 114 imagem, o sonho do sucesso, de vitórias e glórias, de regressar e ser reconhecido pelo aventureiro que fora cheio de tesouros. Esta é a labuta de um imigrante, sujeito incapaz de mostrar seu valor produtivo, sem conquistas, sem perspectivas, e principalmente, sem um futuro próspero em sua terra, vislumbra a terra que emana leite e mel. Dessa maneira, acredita numa terra diferente, cheio de esperança, assim, sai do vazio para se encher de confiança. Se nos dias de hoje, muito se fala sobre a complexidade da sociedade em colapso, ocasionado por um “capitalismo selvagem”, em que a ganância faz com que o homem desprovido de “capacidades” seja lançado à marginalidade, como então, juntar forças, agarrado em sua esperança, para corromper esta camada grossa de injustiças. Sabendo do valor da esperança, é possível criar projetos onde o sujeito, agora não unicamente o imigrante, possa elaborar um novo estilo de vida e buscar na confiança e na coragem, a energia necessária para transformar o seu lugar de convivência. O presente artigo buscou pelo estudo sobre o colapso da imigração, seus fundamentos na Teoria Histórico-estruturalista, os defensores desta corrente em especial Charles Wood, Gino Germani, Paul Singer e Michael Piore, ao estudarem o processo migratório, adentram em vários processos para fim de chegar a um entendimento dentro de um dado sistema, para essa teoria o fator imigratório é interdependente, sendo assim não seria aconselhável, estudar apenas um aspecto de forma isolada. 2 REVISÃO DE LITERATURA O ato de migrar ultrapassa as fronteiras físicas de abandonar uma região para se estabelecer em outra. Existe uma reconstrução de significados para o sujeito que migra, pois se trata de uma nova cultura, com hábitos, línguas e regras, diferente do que se conhece. A saída da terra natal para um novo espaço deve-se a uma busca de melhores condições de vida que, para Singer (2008), as mudanças devem ser analisadas distintamente, sem que haja a separação das decorrências globais. Desta forma, as migrações de africanos para a Europa não devem ser vistos com os mesmos olhares para com as migrações de Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 115 japoneses para o Brasil durante a Segunda Grande Guerra. Isto porque, as migrações ocorrem em diferentes contextos, mas que segue o mesmo princípio: “quem migra leva consigo sonhos de uma vida melhor para si e suas famílias, de obter sucesso econômico rápido e de regressar vitorioso, o quanto antes, à sua terra natal” (SILVA, 2006, p. 157). Jerusalinsky (2000) atribui ao desenvolvimento industrial como um dispositivo para a imigração. Ou seja, com o avanço das tecnologias, o sujeito artesão, antes detentor do saber sobre o seu produto perde seu espaço. Não é mais necessário este sujeito artesão transmitir o seu conhecimento, pois as novas ferramentas tecnológicas dão conta de produzir. Com isto, o sujeito artesão, o trabalhador, perde seu significado, perde seu valor. Quer dizer, o sujeito vê-se na necessidade de migrar. Já não pode ficar em sua cidade, tem que ir estudar e trabalhar em outro lugar. Para não ficar fora do circuito produtivo e sofrer uma perda de valor de seu trabalho vê-se obrigado a deslocar-se para aquele lugar onde o objeto é produzido tal e como a sociedade industrial o concebe. O lugar passa a ser pólo, tanto de saber como de força, para a determinação dos agrupamentos humanos. Assim de produzem as macrópolis (JERUSALINSKY, 2000, p. 42). Macrópolis como a cidade de São Paulo recebem inúmeros imigrantes vindos de vários países, principalmente dos países de baixo índice de desenvolvimento na América Latina. Eles vêem na cidade o “coração da economia nacional” (BAENINGER, 2005, p. 87), criam o imaginário da cidade das oportunidades, principalmente pela atual colocação do país no cenário econômico mundial, ostentando grande prestígio e importância para a América Latina. Mas, sua chegada cheia de esperança, não se torna um “caminho sem espinhos”: ela é turbulenta, cruel, sem um pouso e sem alimentação. O imigrante encontra no trabalho ilegal, como escravo, um meio de conquistar algum dinheiro para se sustentar e pagar a sua viagem. Se antes a vida árdua o fez encher-se de energia para buscar uma nova vida, porque então se manter num mundo penoso? Podem-se entender as distintas dificuldades enfrentadas por um imigrante, começando pela língua, mas, por outro lado, vale se apossar de seu histórico de vida e dos Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 116 valores enraizados, naturalizados. Para uma ruptura dos valores antigos exige-se coragem e esperança, embasando no passado triste e doloroso. Para Freud (1996 [1927-1931], p. 15): [...] faz-se sentir o fato curioso de que, em geral, as pessoas experimentam seu presente de forma ingênua, por assim dizer, sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre seu conteúdo; têm primeiro de se colocar a certa distância dele: isto é, o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir pontos de observação a partir dos quais elas julguem o futuro. Portanto, o sujeito se submete a estas formas de atividade - trabalho escravo - pois fazem parte de seu referencial vivenciado no passado. Assim, toda angústia, todo sofrimento vivido em sua terra natal, de alguma forma, é novamente repetida, de tal modo que, o imigrante pode construir esta nova concepção de vida por ele desejada. Este fato pode ser visto na pesquisa elaborada por Rizek, Georges e Silva (2010, p. 125), onde “os fluxos migratórios de populações acostumadas a condições precárias de vida, contribuíram para a naturalização das formas de trabalho precário”. Estes eventos - reviver o passado - nos remete a algo importante dentro dos estudos de Simone Weil, o enraizamento. Para Weil (1996, p. 347) “o ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”. Dentro desta coletividade o imigrante é desenraizado (BOSI, 2003), adota uma nova cultura, sem perder sua esperança amarrada nas vivências do passado. Elaborar uma nova cultura - interiorizar, exteriorizar e objetivar - fazendo parte da dialética da sociedade (BERGER, 1985). Nesta nova civilização, o sujeito imigrante é o estranho com formas indígenas, com hábitos rudimentares, da fala torta, de pouca verba, sem abrigo, sem nada, apenas com sua esperança de uma vida melhor. Elaborar uma vida de luto que, “só será feita quando todos os laços tiverem sido soltos e os fios estiverem novamente em condição de poderem ser usados para fazer novos laços e para dar novos nós” (ROCHA, 2007, p. 268). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 117 Porém, a dialética da sociedade é complexa. Não basta refazer os nós, é necessário refazer esses nós dentro de uma sociedade onde o estranho é o próprio imigrante, lidar com suas forças internas dentro de uma sociedade desconhecida e capciosa. O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições locais – e, desse modo, ‘torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado. Ele ‘tem de’ cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe ‘natural’, e porque, mesmo se tentasse dar o melhor de si, e fosse bem-sucedido, para se comportar exteriormente da maneira exigida pelo padrão, o grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista (BAUMAN, 1998, p. 19). O estranho imigrante haitiano sem aparato é conduzido até a marginalidade do plano social, e lá, é submetido ao mundo dissoluto. O Estranho não é mais ameaça, não representa mais o perigo. Ele é tentador e, aproveitando-se de suas emoções, de suas necessidades e de sua esperança, a sociedade opressora o leva para a escuridão do submundo e o faz escravo, um retorno à horda primeva – vida em comunidade - dos tempos modernos. 3 PROCESSO MIGRATÓRIO DERIVADO DE SUA HISTÓRIA Germani (1974) salienta que para obter um estudo eficaz sobre o fenômeno migratório é preciso não apenas entender os fatos que fizeram o imigrante deixar sua terra mãe, e sim estudar toda a trajetória, avaliar as condições culturais, sociais, subjetivas e objetivas tanto no país de origem quanto no país que pretende migrar, isto é, em todo o sistema. O estudo buscou analisar a imigração haitiana para o Brasil em três níveis: ambiental, normativo e psicossocial. Se tratando do nível ambiental ele fica caracterizado pelos fatores de expulsão do seu país de origem, pela atração por outra terra e pelas ações comunicacionais e de acesso dentro desse sistema analisado. O nível normativo é formado Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 118 pelos padrões comportamentais e sociais, papeis importantes no entendimento do ciclo migratório, uma referência para esses indivíduos calcular a sua existência dentro de uma nova terra. O nível psicossocial vem observar as ações e as expectativas concretas dos indivíduos, ou seja, a esperança de um mundo melhor. Singer resalta que os processos migratórios são sempre condicionados a história. Essa recente imigração de haitianos para Brasil, deve ser analisado a partir dos processos sofridos pelos dois países, pois como Germani salienta, é preciso entender, analisar e compreender as conjecturas dentro dos dois atores, de ambos os países, isto é, Haiti e Brasil. Portanto, a primeira república negra do mundo não pode ser analisada de forma pontual e simplória, é necessário um estudo de sua história, marcada por intervenções, regimes ditatoriais, corrupções e desastres ambientais, originando a atual realidade socioeconômica e política do Haiti. A princípio a ex-colônia francesa sofreu treze anos de lutas, das quais muitos derramaram sangue para conseguir a liberdade. Em 1804 se tornou a primeira republica negra do mundo, nada fácil para a ex-colônia francesa que, de 1915 a 1934, foi ocupada por tropas dos EUA que alegaram a ocupação no território haitiano para garantir os interesses estadunidenses no período da primeira guerra mundial. Em janeiro de 2010 o Haiti sofreu um terremoto de magnitude sísmica de 7,3 na escala Richter, o país estava se recuperando de três furacões que havia lhe atingido em 2009, com esse terremoto aprofundou a pobreza no Haiti, a situação socioeconômica estava totalmente abalada. Porto Príncipe foi duramente destruído, a relatos que 80% das construções foram destruídas, entre elas o próprio palácio presidencial, o número de mortos chegou a 300 mil pessoas, 1,5 milhões ficaram desabrigados em razão desse tremor, o país ficou desolado e tamanha precariedade, totalmente destroçado. 4 DESTINO BRASIL Após o tremor de 2010 que ocasionou um desastre imenso no Haiti deixando o país desolado, sem meras expectativas de vida em sua terra mãe, os haitianos começam a refugir Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 119 em outras terras, umas delas é o Brasil. Eles escolhem o país para se refugir da pobreza do Haiti, sonha nesse país começar novamente, com esperança de uma vida melhor, eles começam a entrar no Brasil de maneira tímida, mas logo após os primeiros imigrantes se estabelecerem na nova terra e ser na maioria das vezes bem recebidas, isso faz com quem mais imigrantes haitianos deixem seu país e adentre em outro território, sendo a maior parte no Brasil, que se intensificou no final de 2011 e começo de 2012, onde no começo entravam no país cerca de dez imigrantes ilegal por dia. Porém, nos dias atuais fica difícil à contagem desses imigrantes, entram por várias cidades brasileiras, mas a relatos que o número chega ser de oitenta a cem pessoas por dia entrando ilegalmente no país, segundo o Ministério das Relações Exteriores o montante de haitianos em solo brasileiro já supera 50 mil haitianos, sendo que só em 2015 a relatos de que 7 mil haitianos entraram no país. Conforme o Ministério da Justiça, o Brasil libera 100 vistos por mês para cidadãos haitianos. Como o Brasil é liderança na Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti – MINUSTAH, isso faz do Brasil ainda mais atrativo para os haitianos, pois eles observam a quantidade de organizações não governamentais brasileiras atuando e que atuaram após o terremoto de 2010, isso aos olhos dos haitianos torna o Brasil um país acolhedor, um bom local para se refugir e começar novamente. A princípio, os imigrantes solicitam refúgio, embasam-se no Direito Internacional dos Refugiados e na Legislação Brasileira, o Conselho Nacional de Refugiados - CONARE, porém os motivos deles (desastre natural, socioeconômico) não se enquadram na perseguição atribuída ao direito internacional, muito menos a legislação vigente do Brasil, porém como eles já estavam em solo brasileiro, o CONARE passou o caso ao Conselho Nacional de Imigração - CNIg que concedeu o visto humanitário para que o imigrante haitiano posso trabalhar e estudar no Brasil, o CONARE outorgou um protocolo que possibilita ao imigrante haitiano cadastrar como pessoa física, ou seja, possuir o Cadastro de Pessoa Física - CPF, a carteira de trabalho e Previdência Social . Assim, o imigrante passa a ter direitos, e esses direitos visa assegurar os direitos dos imigrantes no país, pois muitas vezes por estarem ilegalmente no país eles são explorados, mão de obra barata, horas de trabalhos excessivos dentre outras situações precárias. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 120 Deve se observar que a Policia Federal não tem capacidade de tomar conta, atender sozinha essa demanda imensa de imigrantes ilegais que entram no país todos os dias, pois a polícia está empenhada em combater o tráfico de drogas, o tráfico de animais silvestres, o crime de "colarinho branco", o contrabando, entre outros. Portanto é insatisfatória a capacidade de deixar todos os demais deveres para apenas tomar conta desses imigrantes que entram e estão no país. Seria mais eficaz se existisse um órgão/agência federal determinado para visar esses imigrantes. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Brasil não possui recurso técnico para receber essa quantia de imigrantes haitianos em massa, tão pouco recurso para os entes competente, ou seja, os policiais federais deixarem seu serviço e ficar visando estabelecer os cuidados a serem tomados com os imigrantes que entram no país, a polícia federal não tem possibilidades de atender de forma ampla os imigrantes que entram e o que estão em território brasileiro. Porém, deve-se observar que conforme os autores da Teoria Histórico-estruturalista, esse movimento migratório esta relacionado ao desenvolvimento do país, pois se esses imigrantes tem essa visão lá fora, é por que o país escolhido tem essa ampla economia diversificada dando ênfase à esperança de um mundo melhor. Partindo num contraposto a Bauman (1998, p. 10), de que “qualquer valor só é um valor graças à perda de outros valores, que se tem de sofrer a fim de obtê-lo”, talvez isso represente uma verdade, mas, não precisa ser normalmente assim. Pois assim, a afirmação pode ser usada para responder questões de injustiças sociais, sofrer para dar valor, retornando ao dogma do sofrimento como forma de obter um lugar no paraíso. As relações sociais não precisam existir no sofrimento, seus membros podem caminhar juntos, mesmo que haja pedras e espinhos no caminho, esta é a minha esperança, e porque não confiá-la, já que é a última que morre. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 121 REFERÊNCIAS BAENINGER, R. São Paulo e suas migrações no final do século 20. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 84-96, jul./set. 2005. BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BERGER, P. L.; LUCKMANN, T. 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Jeferson de Campos Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. 1 INTRODUÇÃO O Estado Autonômico é o modelo de estado mais novo no mundo, criado pela Constituição Espanhola de 1978, se mostra um modelo de Estado muito complexo e de pouco estudado e conhecido pelos operadores do Direito e pelos apreciadores da Ciência Política. Por se tratar de um modelo relativamente novo e assim pouco estudado, tal trabalho se mostrar de fundamental importância na tentativa de fornecer a sociedade de modo geral uma compreensão e um estudo sobre o Estado Autonômico, visto que as principais literaturas sobre o tema se encontram dentro do Direito Espanhol, logo, em outro idioma, o que torna o estudo do tema ainda mais complexo, assim tal artigo tem como um dos objetivos sanar parte dessa escassez acerca do tema. O tema quando é posto como um problema ou objeto de pesquisa se torna algo de difícil analise, justamente pela falta de literatura sobre o tema. Dentro da literatura brasileira, mais especificamente dentro da área das Ciências Jurídicas, os textos são raridade, escassos, o que torna a análise do Estado Autonômico muito mais complexa. A literatura que comporta de modo quase satisfatório o tema é encontrada dentro do Direito Constitucional Espanhol com alguns doutrinadores e no Direito Constitucional Português. O problema do tema dentro das Ciências Sociais Brasileira, mais precisamente dentro do Direito e da Ciência Política, é justamente a falta de material e de análises sobre o Estado Regional Autonômico, assim, o referente trabalho tem como um dos objetivos, Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 123 fornecer algum tipo de informação útil para o entendimento desse novo tipo de Estado, fundamentado nos trabalhos realizados por estudiosos europeus, buscando, assim chegar a um estudo satisfatório sobre o tema. 2 CONCEITUAÇÃO HISTÓRICA DO ESTADO Para Silva Junior (2009), Estado seria uma figura abstrata criada pela sociedade. O mesmo ainda diz que podemos entender o Estado como sendo uma sociedade política fundada pela vontade de unificação e desenvolvimento do homem, com a intenção de regularizar e manter o interesse público. O conceito de Estado vária com certa frequência, sempre acompanhando o tempo e o espaço, assim, conforme a época o entendimento sobre o que é o Estado muda. Para o professor Cristiano Menezes (2010), Estado é uma sociedade política dotada de algumas características próprias, ou dos elementos essenciais que a distinguem das demais, como: povo, território e soberania. 3 DAS FORMAS DE ESTADO: CONCEITUAÇÃO As formas de Estado são os modos pelo qual o Estado organiza seu povo, sua soberania e seu território. Sobre as formas de Estado, Silva (2008) ensina: As “formas de Estado” se referem a uma noção estruturante do poder político dentro de determinado território, além de ser uma forma didática de se caracterizar a maneira em que se dá a distribuição irradiante deste poder, dentro desse território. Trata-se também das formas em que os Estados se organizam para a realização de suas tarefas e o desenvolvimento de suas atribuições, dentro das competências definidas no texto organizatório básico – Constituição -, sejam tarefas políticas ou administrativas. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 124 Logo, as “formas de Estado” dizem respeito à projeção do poder no interior de uma base territorial, absorvendo como critério a “existência, a intensidade e o conteúdo de descentralização políticoadministrativa de cada um”. (SILVA, 2008, p. 150). Assim, a partir do entendimento de Silva (2008), as formas de Estado são algo meio abstrato que diz respeito apenas à forma da estrutura política do território, além de ser algo que demonstra o modo de distribuição do poder dentro desse território. 4 ESTADO FEDERAL O Estado Federal é um Ente Soberano circunspeto por diversos entes territoriais dotadas de um governo próprio em cada um deles. Geralmente, os estados, conhecidos também como estados federados ou entes federativos, possuem autonomia, ou seja, possuem um grudo de competências que são garantidas pela Constituição ou Lei Maior do Estado como um todo. Essa autonomia não pode ser abolida ou modificada de modo unilateral pela união. Porém, nesse sistema, apenas o Estado Federal é tido como Soberano, tanto para o Direito Local (no caso o Direito Brasileiro) como para fins que versam sobre Direito Internacional. Segundo o entendimento do Direito Internacional, apenas o Estado Federal (União) possui personalidade internacional, ou seja, é considerado sujeito de Direito Internacional, pois é capaz de adquirir direitos e contrair obrigações no plano internacional, bem como de reivindicar os seus direitos na esfera internacional. Sobre o Estado Federal Silva diz: A característica marcante da forma de Estado federal, diz respeito à descentralização política existente. É a própria Constituição quem estabelece núcleos de poder político, conferindo autonomia aos entes federados, mas retirando-lhes a soberania, que é própria do ente federal (poder central). (SILVA, 2008, p. 150). 5 ESTADO UNITÁRIO Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 125 No Estado Unitário, qualquer unidade subgovernamental pode ser criada ou extinta e ter seus poderes alterados pelo governo central. Sobre o Estado Unitário, explana Barros: O Estado unitário não se constitui de estados-membros: é um estado só, uno, ainda que se possa subdividir em regiões (como a Itália), ou em províncias (como o Brasil na época do Império), ou em departamentos (como a França). Pelo que, no estão unitário, apenas há uma constituição: a constituição nacional. (BARROS, p. 1) Silva (2008) ensina: No que tange ao Estado Unitário, esta forma de Estado é caracterizada essencialmente pela absoluta centralização do poder político, levando-se em conta o território do Estado, onde não há fontes simultâneas de irradiação desse poder, como ocorre nos Estados Federais. É de se dizer que há um “único suporte para a estatalidade”, no sentido de que há uma única organização jurídica de Direito Público detentor das competências políticas típicas de um estado, como a defesa, produção legislativa, etc. Esse modelo de Estado é considerado um modelo simples, que pode ter duas vertentes: Um Estado Unitário Centralizado e um Descentralizado, conhecido também como Estado Regional. 6 ESTADO UNITÁRIO CENTRALIZADO O Estado Unitário Centralizado é caracterizado pelo modo simples de sua estrutura política. Nesse modelo de Estado Unitário, existe apenas uma ordem jurídica, política e administrativa. No que tange a centralização Bonavides (1967) relata: Referida ao Estão unitário, a centralização abrange as seguintes formas: centralização política e centralização administrativa, segundo Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 126 BURDEAU; centralização territorial e centralização material, no dizer de DABIN; centralização concentrada e centralização desconcentrada, na terminologia mais usual dos modernos publicistas. (BONAVIDES, 1967, p. 105). Assim, o Estado Unitário Centralizado, é considerado um Estado Unitário Puro. 7 DO ESTADO REGIONAL AUTONÔMICO: O ESTADO UNITÁRIO DESCENTRALIZADO No Estado Unitário Descentralizado, conhecido também como Estado Regional Autonômico, ocorre a descentralização do exercício das competências. A descentralização política leva a formação de regiões tidas como autônomas assim, elas são descentralizadas politicamente e administrativamente, desde modo, elas podem elaborar leis, se for o caso. Quando Bonavides escreveu a primeira edição de seu livro “Ciência Política”, no ano de 1967, o entendimento de Estado Regional Autonômico era limitado, assim, ao analisarmos o referente livro, não teremos um entendimento adequado sobre o tema. Quando se fala em apenas regionalização, ou Descentralização Administrativa, ocorre apenas no âmbito administrativo, porém, quando se tange sobre Regiões Autônomas, compreende-se a descentralização tanto política, quanto administrativa. No que tange a Regionalização, Silva (2008) ensina. Esta descentralização gradual é responsável pelo surgimento do fenômeno da “regionalização” do Estado unitário, que conforme sua intensidade se consubstancia em estados totalmente descentralizados – como em Espanha - , ou parcialmente – como em Portugal. A este modelo convencionou-se chamá-lo por “Estado regional” ou Estão autonômico”. (SILVA, 2008, p. 152). Sobre o Estado Unitário Regional Autonômico, A Felizes (2007) explica: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 127 O modelo de Estado Unitário Regional foi introduzido pela primeira vez em 1931 em Espanha, influenciando a Constituição Portuguesa, a segunda vez foi em Itália em 1948 e só depois em Portugal em 1971, sob revisão de 1933 e em 1976. Há 3 modelos de Estado Regional: o modelo que separa o Estado Parcial (ex: Açores e Madeira) e integral (todo dividido: Itália e Espanha) e o Estado Regional Homogêneo ( se todas as regiões têm os mesmos poderes, como o caso de Portugal) e o heterogêneo (regiões tem mais poderes que outros) – por ex: Espanha, Bascos e Baliza tem mais poderes e Itália. (A FELIZES, 2007, p. 1). 8 DO ESTADO REGIONAL AUTONÔMICO ESPANHOL No caso da Espanha, a descentralização administrativa e legislativa é desenvolvida de baixo para cima. As províncias se unem em regiões que constroem seu estatuto de autonomia e avocam competências na Constituição. A Espanha é uma monarquia parlamentar, com um monarca hereditário que exerce como Chefe de Estado – o Rei da Espanha, e um parlamento bi-cameral (Deputados e Senadores), as Cortes Generales. Desde a Constituição Espanhola de 1978, a Espanha está dividida em 17 Comunidades Autônomas e duas cidades autônomas (Ceuta e Melilla). Essas duas cidades tem capacidade administrativa superior à de um município, mas são inferiores as comunidades autônomas espanhola, pois não possuem câmaras legislativas propriamente ditas. Das comunidades autônomas, as de Galiza, País Basco, Andaluzia e Catalunha, possuem condições de “Nacionalidades Históricas”, ou seja, são comunidades autônomas que possuem identidade cultural coletiva e linguística diferente das demais comunidades da Espanha. Essa “Nacionalidade Histórica” é reconhecida na Constituição, juntamente com um “Estatuto de autonomia”. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 128 No que tange as Comunidades Autônomas, a Constituição Espanhola de 1978 regula: Art. 2: A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação Espanhola pátria comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas. (CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA DE 1978). O artigo 148 da mesma constituição regula as concorrências das Comunidades Autônomas na questão das matérias: Art. 148: As comunidades Autônomas poderão assumir concorrência nas seguintes matérias: Organização das instituições de autogoverno; As alterações dos termos autárquicos compreendidos em seu território; Ordenação do território, urbanismo e morada; O fomento do desenvolvimento econômico, Proteção do Meio Ambiente; Patrimônio monumental; Promoção do desporto, Assistência social, Previdência; Higiene; Portos e Aeroportos; entre outros. Segundo a Constituição Espanhola e o Estatuto de Autonomia, a Espanha é dividida entre as seguintes Comunidades e Cidades Autônomas: Andaluzia, Aragão, Principado das Astúrias, Ilhas Baleares, País Basco, Ilhas Canárias, Cantábria, Castela-La Mancha, Castela e Leão, Catalunha, Ceuta, Estremadura, Galiza, Comunidade de Madrid, Meliha, Região de Múrcia, Comunidade Foral de Navarra, La Rioja, Comunidade Valenciana. Atualmente, a Espanha é considerada um dos países mais descentralizados no mundo. Todos os seus territórios administram de forma local seus sistemas de saúde e educação, concomitantemente aspectos do orçamento público; alguns deles, como é o caso do País Basco, administra seu orçamento sem a supervisão do governo central da Espanha. Navarra, País Basco e a Catalunha, possuem suas próprias policias, completamente autônomas. Excluindo Navarra; a policia da Catalunha e do País Basco substituem em seus territórios a Policia Federal Espanhola. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 129 9 ESTADO PORTUGUÊS A República Portuguesa é um país que possui soberania e é caracterizado como um Estado Unitário. A lei fundamental que rege a nação portuguesa é a Constituição de 1976. Essa Constituição prevê a realização de referendos de consultado popular, entretanto, o resultado pode ser anulado politicamente. O Estado Português é dividido em 18 distritos continentais e duas Regiões Autônomas que correspondem aos Arquipélagos de Açores e Madeira. Antes da Constituição de 1976, os arquipélagos estavam vinculados à estrutura geral dos distritos, porém, possuíam uma estrutura de administração diferente. Com a nova Constituição, Açores e Madeira passaram a ter o Estatuto de Região Autônoma, deixando assim de serem distrito, passando a ter autonomia e assim, um estatuto político e administrativo, além de órgãos de governo próprio como no Estado Espanhol. Até o ano de 2011, a divisão portuguesa era a seguinte: Lisboa, Leiria, Santarém, Setúbal, Beja, Faro, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Coimbra, Aveiro, Viseu, Bragança, Vila Real, Porto, Braga, Viana do Castelo. Além das Regiões Autonômicas de Açores e Madeira. Com base na divisão, Portugal é composto por três regiões: Portugal Continental (que corresponde a todo o território português), Região Autônoma dos Açores (que corresponde à região autonômica do arquipélago de Açores) e Região Autônoma de Madeira (que corresponde à região autonômica do arquipélago de Madeira). Ao analisar a Constituição Portuguesa vigente, encontramos em seu artigo sexto: Artigo 6.º Estado Unitário Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 130 1. O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública. 2. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio. A Felizes (2007) defende a idéia de que apenas a Itália e a Espanha são realmente Estados Regionais Autonômicos; Portugal é apenas um Estado Unitário, visto que possui apenas duas Regiões Autonômicas e as mesmas tem a qualidade primaria de Arquipélago. 10 ESTATUTOS POLÍTICO-ADMINISTRATIVOS DAS REGIÕES AUTONOMICAS PORTUGUESAS O Estatuto Político-Administrativo da Região Autônoma dos Açores e da Madeira são diplomas legais de natureza para-constitucional que enquadra o regime de autonomia de cada região, definindo as competências de cada uma delas e o funcionamento dos órgãos políticos. Cada uma das duas regiões autonômicas possui um Estatuto, o da Região dos Açores é conhecido como EPARAA e o da Madeira como EPARAM. Cada estatuto é na sua essência uma Constituição Regional que forma o regime autonômico autorizado pela Constituição da República. No artigo 161 da Constituição da República Portuguesa, esta prevista a competência de aprovação dos estatutos político-administrativos das regiões autônomas. Artigo 161.º Competência Política e Legislativa Compete à Assembléia da República: a)... b) Aprovar os estatutos político-administrativos das regiões autônomas; c)... Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 131 d)... e) Conferir às assembléias legislativas regionais as autorizações previstas na alínea b) do nº 1 do artigo 227º da Constituição. O artigo 226 da Constituição da República Portuguesa regula o rito de aprovação dos Estatutos das Regiões Autonômicas: Artigo 226.º Estatutos 1. Os projectos de estatutos político-administrativos das regiões autónomas serão elaborados pelas assembleias legislativas regionais e enviados para discussão e aprovação à Assembleia da República. 2. Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva assembleia legislativa regional para apreciação e emissão de parecer. 3. Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à discussão e deliberação final. 4. O regime previsto nos números anteriores é aplicável às alterações dos estatutos. 11 STATUS DA “CONSTITUIÇÃO REGIONAL” Apesar do status de Constituição Regional, Canotilho (2013) entende que tanto Açores quanto Madeira não pode recusar a aplicação das 40 horas semanais aos funcionários públicos como prevê lei Nacional. Sobre o caso em questão, houve recentemente discussões sobre as horas semanais de trabalho do servidor público, assim, o Governo Regional de Açores solicitou ao Constitucionalista da Universidade de Coimbra, José Gomes Canotilho, um parecer sobre o caso. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 132 Em matérias do mesmo âmbito e provavelmente mais problemáticas do ponto de vista jurídico-constitucional", a jurisprudência do TC "não apoia, no caso, uma posição favorável à defesa da autonomia legislativa regional para o estabelecimento de um horário normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas diferente do definido" no referido decreto da Assembleia da República (AR). (CANOTILHO, 2010, JusJornal p.1) Para Canotilho, a Constituição Portuguesa permite que as Regiões Autonômicas de Açores e da Madeira legislem sobre matérias enunciadas nos Estatutos, e também podem legislar em matérias reservadas apenas à Assembléia da República, porém, nesse caso, necessitam de uma autorização da Assembléia Republicada para que possam legislar sobre tais matérias. Sobre os Estatutos, Silva (2008) concretiza: Pode-se assim, verificar algumas características em que o modelo de Estado Regional se aproxima do modelo federal: a competência política das regiões na elaboração de diplomas legislativos próprios e a capacidade tributária atribuída a tais entes regionalizados. Também os entes regionais possuem um documento organizatório básico – à semelhança das constituições estaduais – que são os denominados “estatutos de autonomia”. Há referencias na doutrina de que os estatutos de autonomia estão a cumprir os mesmo papel institucional das constituições estaduais, além de possuírem a mesma proteção jurídico-constitucional. Em razão destas semelhanças e por outros aspectos, mais há quem diga que a diferenciação entre Estado federal e regional não é “cientificamente consistente”, ao passo de tratar-se de uma distinção meramente formal-normalista. (SILVA, 2008, p. 153). No que tange o Estado Português, no qual Silva (2008) estudou com afinco, sendo conduzido por Canotilho; firma: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 133 Tomando-se por base o modelo português, facilmente se verifica que, em razão do modelo e do estágio da autonomia das regiões dos Açores e da Madeira, não há que se falar em uma federalização do Estado Unitário português. Este continua mantendo suas características unitaristas, posto que ainda a tomada das decisões encontram-se em sede de órgãos de soberania da República, e tampouco a tendência que se nota é a da concessão de autonomia a uma parcela maior do território português, que encontra-se apenas conferida aos arquipélagos. Deferentemente do que ocorre em Espanha, onde o modelo de regionalização acomoda-se mais facilmente ao lado de um modelo federalizado, em face da própria regionalização total do Estado e do crescente nível da autonomia dos entes regionais. (SILVA, 2008, p. 153). 12 CONCLUSÃO Levando em consideração os aspectos aqui analisados, não podemos falar em um Estado Unitário concretizado de maneira satisfatória, pois como visto, tal Forma de Estado possui suas ramificações e apesar do Estado Português e Espanhol (analisados aqui com mais afinco) estarem vigorando há algumas décadas, ainda estão jovens quando analisados pelo panorâmico histórico e desta forma é necessário à realização de estudos detalhados no que tange o Estado Regional Espanhol e Português para entendermos de modo satisfatório a verdadeira filosofia e o cerne de tal modo de Estado. Entretanto, podemos concluir que no que tange o Estado Regional Autonômico, o Espanhol esta melhor organizado e caracterizado, visto que o Estado Português é apenas um Estado Unitário de modo centralizado, permitindo apenas a autonomia regional a Açores e Madeira; tal permissão é concedida a essas duas regiões apenas pelo fato de serem arquipélago, pois se estivessem em território português como os distritos, certamente Açores e Madeira não gozariam de Autonomia Regional. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 134 O Estado Regional Autonômico seria provavelmente uma saída interessante para países pequenos territorialmente, pois permitira com que cada região/estado desse país fossem independentes, podendo assim adotar políticas próprias sem uma intervenção massiva do governo maior. Entretanto, países com uma faixa territorial maior, como é o caso do Brasil e da Rússia, tal forma de Estado não se mostra tão satisfatória, pois devido à extensão, existem estados/regiões isoladas que dificultam o crescimento político-economico de tais, tornando um Estado Regional Autonômico uma espécie de suicídio para países continentais que por ventura venham adotar tal forma em sua plena totalidade. REFERÊNCIAS BARROS, Sérgio Resende de. Estado Unitário, Estado Regional, Estado Federal. Disponível em: < http://www.srbarros.com.br/pt/estado-unitario-estado-regional-estado-federal.cont >. Acesso em abr. 2015. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Rio de Janeiro: Fgv, 1967. 339 p. ESPANHA. CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA de 1978. FELIZES, Antonio. Estado Unitário Regional. 2007. Disponível em: <http://regioes.blogspot.com.br/2007/11/estado-unitrio-regional.html>. Acesso em: 11 abr. 2015. JUNIOR, Nilson Nunes da Silva. O Conceito de Estado. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 68, set 2009. 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Regra geral, temos sempre a ideia de que o Direito Processual Penal serve para concretizar as penas contidas no direito material, efetivando sanções acaso alguém venha a ser condenado pela prática de um crime. O Processo Penal, assim, é utilizado como instrumento para a aplicação do Direito Penal, servindo como meio para a correta aplicação das normas penais ao caso concreto, ordenando como será solucionado o embate entre o poder/dever de punir do Estado e os direitos fundamentais do particular, no caso a sua liberdade, regulando assim um procedimento nos casos em que o direito do Estado e o Direito do cidadão entram em colisão. Neste sentido, é a definição de Processo Penal exteriorizada por Luís Gustavo Grandenet Castanho de Carvalho (p. 31), vejamos: O direito processual é o ramo do direito que sintetiza, de maneira mais marcada, o conflito entre o ius puniend do Estado e o ius libertates do particular. Não se trata, pois, de mero ordenamento acerca da marcha processual, mas antes de tudo a exteriorização do modo pelo qual o sistema jurídico-político resolve aquele conflito. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 137 A nossa Constituição Federal aponta o sistema acusatório no Direito Processual Penal brasileiro, sendo que uma das características deste sistema é a nítida separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Cabe ao Ministério Público a titularidade da Ação Penal Pública (Artigo 129, inciso I, da CF), e, ao particular, na Ação Penal Privada, neste último caso, nas hipóteses em que nosso Código Penal assim ordena. A função de realizar a defesa é atribuída ao advogado constituído, ao defensor nomeado, ou então, ao Defensor Público, nas Comarcas onde a Defensoria Pública esteja instalada. O reconhecimento do advogado e do defensor estão descritos nos artigos 133 e 134 da Constituição Federal. Por fim, cabe ao Magistrado o julgamento do réu, sendo que em regra devem ser obedecidos o princípio da persuasão racional, respeitando no decorrer do processo, os princípios da ampla defesa, do contraditório e da publicidade, com vistas a um processo penal justo. Vislumbra-se, portanto, a distinção dos autores da função de acusar, quer seja o Ministério Público, quer seja o ofendido, este último, como já falado, nas ações penais privadas e, ainda, na ação penal privada subsidiária da ação pública condicionada à representação, nos casos de inercia do titular originário (Ministério Público). O réu portador de direitos intransigíveis, devendo ser observadas todas as garantias que constitucionalmente estão descritas em nossa Carta Maior, a qual determina que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, ou seja, aquele processo onde todas as garantias previstas na lei são devidamente observadas. Particularmente, acredito que no Brasil utilizamos o sistema acusatório, não em sua forma pura, mas com alguns nuances contidos em todo o ordenamento jurídico processual penal. Dentro do sistema acusatório o magistrado deverá utilizar o sistema do livre convencimento motivado ou da persuasão, sendo este “o sistema reitor no Brasil, estando o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 138 juiz livre para decidir e apreciar as provas que lhe são apresentadas, desde que o faça de forma motivada (art. 93, IX, CF)”. (TÁVORA, 2014. p. 533). Acredita-se, desta forma, que a liberdade para o Juiz julgar é plena, desde que o faça de forma fundamentada nos elementos que se transformaram em prova durante a ação penal. Neste caso, causa estranheza o que está contido no artigo 156, do Código de Processo Penal, o qual autoriza o juiz, de oficio, a ordenar e determinar, mesmo antes de iniciada a ação penal e no curso da instrução, a realização de provas e outras diligências, realizando atos investigatórios que comprometem a imparcialidade do Magistrado. A realização de atos investigatórios pelo juiz acarreta ofensa ao Sistema Acusatório, até porque não cabe ao magistrado a incumbência de provar algo, uma vez que está em condição “suprapartes”. Toda a proatividade do magistrado, quer seja no decorrer do inquérito policial quer seja na ação penal deve ser vista com ressalvas e com muito cuidado para eu não seja ferida a imparcialidade do juiz, que é o maior dom do julgador. Neste sentido, é a brilhante lição processual de Norberto Avena (p. 7) Considerando que este sistema rege-se pela imparcialidade do magistrado, relegando-se a polícia judiciária a atividade investigatória sob o controle externo do Ministério Público (artigo 129, II, da CF) divergem a doutrina acerca da constitucionalidade da produção de provas ex ofício pelo juiz. No intuito de reconhecer a existência do sistema acusatório, o qual, por sua natureza, é o que mais apresenta segurança jurídica, pois que oferece a oportunidade de manifestação a ambas as partes, e com a intuição de que se mantenha a necessária distinção entre as funções de acusar, defender e julgar, para que seja mantido o processo sob o sistema do contraditório, é a lição AURY LOPES JUNIOR citado por EDUARDO AIDÊ DE CAMARGO (2015, p. 30): Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 139 “É necessário que se mantenha a separação para que a estrutura não se rompa, e, portanto, é decorrência lógica e inafastável que a iniciativa probatória esteja (sempre) nas mãos das partes. Somente isso permite a imparcialidade do juiz” Em que pese parte da doutrina entender que o direito criminal brasileiro, mesmo com o advento da Constituição Federal ainda possui resquícios do sistema inquisitivo, milito na doutrina que entende que qualquer fragmento inquisitivo por parte do magistrado deve ser repelido, pois afeta a imparcialidade do julgador, acarretando, portanto, em ofensa às garantias constitucionais prevista para um processo legal e justo. Corroborando a tese, importante a diferenciação que o doutrinador Renato Brasileiro de Lima faz entre o sistema inquisitorial e o sistema acusatório, vejamos: Como se percebe, o que efetivamente diferencia o sistema inquisitorial do acusatório é a posição dos sujeitos processuais e a gestão da prova. O modelo acusatório reflete a posição dos sujeitos processuais, cabendo exclusivamente às partes a produção do material probatório e sempre observando os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Portanto, além da separação das funções de acusar, defender e julgar, o traço peculiar mais importante do sistema acusatório é que o juiz não é, por excelência, o gestor da prova. (CAMARGO, 2015, p. 31). Contudo, por muitas e muitas vezes verifica-se na prática criminal, ou seja, no transcorrer das ações penais, que há, nas sentenças proferidas pelos juízes, independente do grau de jurisdição, quase sempre uma mera repetição das alegações contidas no inquérito policial, com o intuito de, e diga-se, de forma disfarçada, trazer para dentro do processo penal, que deveria ser regido pela forma do contraditório, elementos colhidos no inquérito policial, o qual, por sua própria natureza investigativa preliminar é regido pelo sistema inquisitivo, maculando assim, com as garantias do contraditório e ampla defesa. Nesse sentido (CAMARGO, 2015 p. 31): Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 140 A fraude (do sistema bifásico repartido em fase inquisitorial e processual) reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Este discurso vem mascarado com as mais variadas formas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira fase. Ora, entende-se que se o processo penal brasileiro migrar para o sistema acusatório puro, os direitos e garantias individuais do cidadão serão otimizados, até porque caberá exclusivamente à parte acusatória o ônus de comprovar que alguém é culpado pela prática de um delito e acabaria a possibilidade do magistrado, de forma camuflada, vestir-se como acusador quando, na verdade, teria apenas o papel de julgador. CONCLUSÃO Concluindo entendo, portanto, pela inconstitucionalidade do artigo 156, do Código de Processo Penal, uma vez que tal dispositivo legal aponta na existência da figura de um juiz inquisitor, ferindo, de morte, o Sistema Acusatório. Ressalte-se ainda, que a função inquisitiva do magistrado afeta a sua imparcialidade, que seria o maior dom que um juiz pode ter. Por fim, entendo, que o julgamento da causa deve estar alicerçado sempre no princípio do livre convencimento motivado, mas que se deve buscar algo novo e não nas meras repetições do que foi colhido no Inquérito Policial, o que muitas vezes distorce a função tão nobre do magistrado de ser apenas um julgador não se transformando em um juiz inquisitor. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 141 REFERÊNCIAS ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Processo Penal: parte geral. Bahia, JusPODIVM, 2014. AVENA, Norberto. Processo Penal: Esquematizado. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009. 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Tal questão se sobressai em meios a tantas outras possíveis de se averiguar conforme a organização do trabalho. Mas que lugar é este na qual o pai quer ver o seu filho com tanta aspiração? Este lugar ultrapassa a fronteira do lugar quanto estrutura física, ele é mais amplo e complexo. Este lugar traz consigo um sentimento de ser contratado e assim ter seus direitos, seu salário, com isto, poder seguir sua vida: trabalhando e ganhando no final do mês. A oficina tem um sentido de felicidade, sendo este lugar “construído e produzido num dado processo socioeconômico” (SPINK, 2001, p. 15). A oficina evita os riscos de ser um desempregado. O trabalho é feito com peças, parafusos, óleos, entre outros instrumentos que, no início, trás certa dificuldade, mas com o tempo, a atividade se torna uma rotina. ROTINA, s.f. Caminho já trilhado e sabido; costume; hábito; prática constante; uso geral. (BUENO, 1996, p. 584) A prática constante de um trabalhador dentro de uma oficina, uma vida toda dedicada a uma oficina. Uma prática de tantos significados que faz o próprio sujeito deseje o seu filho neste mesmo ofício, a rotina cria o hábito e também a acomodação. O trabalho Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 143 ganha um maior sentido de sobrevivência, do que outros fatores como: crescimento, aprendizagem, autonomia, na qual foram apontados por Morin; Tonelli; Pliopas, (2007). A sobrevivência faz a acomodação e, talvez este o ponto a ser pensado: a acomodação dentro de uma sociedade de grandes conquistas, de liberdade, desejos, aspirações. Assim, qual é o lugar das perspectivas para estes jovens? Não são incitados a procurar um lugar no mundo desconhecido ou preferem buscar a felicidade evitando o desprazer num lugar palpável? Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão... Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua convivência com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associado a sério empenho de reflexão, para que seja práxis. [...] Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem. (FREIRE, 1987, p.52). O mesmo ocorre com a perspectiva dentro da escola. Ela e o objetivo da educação vêm se transformando ao longo da história da humanidade (escolas gregas, romanas, medievais). Conforme a sociedade se modifica a educação também se diferencia. Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo vive uma era de capitalismo, do consumo desenfreado, uma sociedade que se torna cada vez mais tecnológica em que o mais importante não é o ser em si, mas o que ele possui. Assim a economia que era voltada para o campo passa a ser das cidades, e a escola nesse contexto “passa a ser o instrumento por excelência para viabilizar o acesso a este tipo de cultura” (SAVIANI, 2007), ou seja, a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 144 sociedade vê na escola a responsável pela adequação das pessoas no novo modelo de sociedade que estava surgindo. Com isso, a ideia de escola pregada passou de um lugar de absorção de conhecimento para um lugar que possibilitará ter uma profissão e, com isso, ter uma ascensão econômica. Nessa perspectiva, as crianças, hoje, chegam às escolas apenas para “passar de ano”, caso contrário, no futuro, elas não terão um bom emprego, isso é o que espera tanto dos alunos como de seus pais. Nesse mesmo ponto de vista, crescem cada vez mais a procura por cursos profissionalizantes, como veremos mais a frente, onde o aluno se forma rapidamente e “está apto para o mercado de trabalho”. 2 O LUGAR DA PERSPECTIVA O texto abaixo é de autoria de Machado de Assis, chamado “Idéias de um canário”, na qual apresenta um diálogo entre um canário preso em uma gaiola dentro de uma loja de belchior e um homem: [...] — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado. — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagarlhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 145 mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito. — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito? — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo? O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. No diálogo entre o canário e o homem, corrente em todo o texto, Machado de Assis busca esclarecer o que vem a ser o mundo. De forma precisa, o mundo acaba sendo o espaço que se convive, na qual tem conhecimento e profundidade sobre o cotidiano, sendo o desconhecido uma ilusão. O medo da perda do controle de si e do meio circundante, marcará a divisão profunda a que o sujeito é submetido. O meio advém inapreensível, o contexto torna-se incompreensível, surpreendente e fora de controle (ZUGUEIB NETO, 2007). Fora do campo de convivência, esta a oficina, o mundo se torna obscuro e cheio de artimanhas capazes de engolir a si e aos filhos. Desta forma, o homem se vê preso na “armadilha da estrutura estratégica” (ENRIQUEZ, 1997). Em suma, o homem tem liberdade e autonomia para fazer o que bem entender, ele pode apresentar a sua criatividade como também expor a sua arte, ele tem a possibilidade de conhecer este mundo desconhecido, mas não o faz. Ele está preso às condições atraentes Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 146 da organização. Aqui é bom estar, se o lugar não lhe trás felicidade, as causas são do próprio trabalhador. Tendo a organização o principal propósito o de agregar os valores capitalistas a fim de obter maiores lucros. Para isto, a organização inventa mecanismos da pior espécie a fim de cumprir o esperado: o lucro. Visto isto nas empresas hipermodernas de Pagès et al (2008), que tem por característica criar um pensamento que a empresa é tão boa e propicia vários ganhos que o próprio trabalhador não pode se voltar contra ela. Assim, qual o lugar da perspectiva? Quase não existe, se não existe. O trabalhador não observa nada melhor do que a organização em que se está e deseja este lado “bom” da organização para o filho e que ele encontre a felicidade ali como o próprio pai. Não existindo assim, um homem de vivências, de experiências. A perspectiva apenas é alimentada pelas técnicas para uma melhor produção, sem um questionamento, uma crítica, ou mesmo, um trabalho na qual o trabalhador possa expor a sua subjetividade. Percebemos então uma nova forma de alienar o trabalhador, tendo o consentimento do mesmo, incapaz de pensar em novas perspectivas e não conseguindo sair das amarras da organização. Esta formação tecnicista da qual virou uma especialidade da educação contemporânea, esta vinculada no crescente aumento de escolas destinadas a esse fim (EDUCAÇÃO, 2010). Perceptível cada vez mais a criação de cursos técnicos, de laboratórios técnicos, sendo a sociedade fundada em valores técnicos e não humanos. A perspectiva, então, é técnica. Esta tecnicidade agrava problemáticas, como Rubem Alves ([2002] 2012) afirmou, a educação deve ser para a cidadania, de que importa ao aluno sobre as somas dos ângulos internos de um triângulo ou sobre enzimas, procariontes, eucariontes, de que vale estas informações aos alunos, isto traz a revolta dos alunos e com razão. A criança quer saber sobre coisas do mundo que a encante, que as preencha, que lhe traga algum interesse, que a motive a conhecer e a transformar o seu ambiente, a sua sociedade. Criança não quer saber Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 147 sobre plantas rastejantes ou subaquáticas, criança quer enfiar a mão na terra, se sujar, molhar, quer ver aquela pequena semente se tornar uma linda flor roxa. O Amyr Klink deu uma entrevista há pouco tempo e eu recebi a entrevista dele por e-mail e ele fala uma coisa que eu achei muito legal. Perguntaram a ele qual era o projeto que ele tinha de educação para os filhos dele e ele contou que ele colocou os filhos dele em escolas comuns e que tinha problemas com as escolas, que as coisas não tinham a ver com a vida, tantas coisas que as crianças têm que aprender que não têm nada a ver. Aí ele disse que gostaria que as crianças dele aprendessem do jeito que ele viu acontecer numa ilha na costa, se não me engano, da Noruega. Ele disse que lá nessa ilha que ele citou, o nome eu não sei, as crianças aprendem construindo uma casa viking. Enquanto elas constroem a casa viking, elas vão aprendendo tudo o que é necessário sobre a ciência. (ALVES, [2002] 2012). Educação para a cidadania e não para reproduções alienantes de fórmulas, teorias, sistemas. Educação para libertar o pássaro preso em sua gaiola. Libertar o aluno preso nas salas de aula. Libertar para transformar, e não reproduzir. Dando novos valores à educação, deixando de ser apenas instituições que legitimam o poder, conforme descrita por Michel Foucault (1984). A educação deve pautar-se na relação do sujeito para com o seu mundo, e não fundamentada e descrita pelas técnicas. A educação prepara o homem a conhecer o seu eu e o seu valor. 3 A PERSPECTIVA TECNICISTA/CAPITAL Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 148 Como fica a sociedade se todos os nossos alunos forem estudar na Harvard ou no M.I.T. (Massachusetts Institute of Technology)? Onde estarão os encanadores, cabeleireiros, eletricistas, mecânicos, pedicures? Tal questão foi levantada por um educador coreano em um documentário sobre a Educação na Coréia do Sul, desejando expor o interesse quase que supremo dos alunos de saírem do país e irem ter uma formação nas renomadas universidades americanas. Isto para que possam conseguir competir em um mercado competitivo que exige profissionais de excelência. Esta realidade não é apresentada apenas pelos coreanos, ela é global. No Brasil a estimativa é que houve um aumento de 14% de alunos que foram estudar no exterior, segundo relatório da "Education at a glance", de 2010 (RIBEIRO, 2011). Uma das possíveis razões fora esclarecida por Lia Faria: O mundo de hoje é plural. O próprio mercado de trabalho é mais competitivo e acaba levando as pessoas a buscar garantir um diferencial em relação aos que permanecem no país. Quem não tem curso no exterior fica em desvantagem. (FARIA, 2011 apud RIBEIRO, 2011, p. 1). Nesta perspectiva, como podemos compreender o sentido da educação? De acordo com Rothberg (2006) a educação passa a ser um meio de enfrentar os problemas econômicos da atualidade. Ou seja, a educação tem a responsabilidade de preparar o aluno para as adaptações das crescentes mudanças para a produção. Esta concepção elege como contexto preponderante o fato de que as tecnologias do sistema produtivo transformam-se rapidamente na atualidade e requerem sujeitos sempre dispostos a adquirir novas habilidades, correspondentes a diferentes processos industriais e Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 149 comerciais. Daí a necessidade de formar pessoas versáteis, capazes de aprender novas tarefas tão rapidamente quanto mudam as características dos recursos tecnológicos e das interfaces com os quais elas devem lidar diariamente. (ROTHBERG, 2006, p. 86). Ao contrário da educação grega que consistia em preparar o jovem para ser um bom cidadão, privilegiando a ética, a política, o corpo, a filosofia. Ensinando o jovem a conhecer a si próprio. Conhece-se te a ti mesmo. Podemos pensar como fez Edgar Morin (2002, p. 2): "a relação educação-cultura é inseparável da relação com a história, com a política, com a sociedade, com o planeta". A Grécia vivenciava outro cotidiano, outras relações se estabeleciam. Paulo Freire em seu livro “Pedagogia libertadora” defende uma educação de conscientização, desalienação e problematização, uma educação de diálogo crítica, na qual, se tenha uma consciência de sua condição existencial, esse, então, seria o verdadeiro objetivo da educação, conscientizar os seus alunos para que eles sejam críticos, que tenham opinião e lute pelos seus direitos. Hoje os tempos são outros, uma era envolvida por tecnologias, de guerras de precisão, de redes sociais virtuais, do fim das grandes fronteiras, das longas viagens em curto tempo, do "santo" Google e suas informações, do fast food; hoje os tempos são outros, e a educação deve ser outra; a educação acompanha a cultura. Então, porque não discutirmos a atual conjuntura de nossa cultura? Esta sociedade com sua cultura pautada nos modelos econômicos capitalistas. Esta sociedade que para Morin (2002) é tão catastrófica, para Bauman (2001) uma sociedade líquida, para Freud ([1927-1931] 1996) um mal-estar, e tantos outros que questionam a legalidade deste sistema na qual estamos inseridos. A sociedade e sua cultura devem ser repensadas. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 150 Mas o simples fracasso deste modelo moderno de sociedade, que nos prometeu um futuro ordenado pela ciência, não significa que resultará uma sociedade menos desigual e mais justa. Mas, como a tecnologia produziu rachaduras irreversíveis no modo como a sociedade se organizava, uma brecha sem dúvida se abriu, um ponto de vazão, capaz de fazer ruir relações e conceitos opressivos, permitindo uma nova configuração de forças, e gerando novos acordos. Mas, para isso, precisamos ter coragem de rever valores e modelos, e o mais difícil talvez seja encarar o quanto obsoletos estão nossos saberes. Precisamos rever o modo como estruturamos nosso conhecimento, nosso pensamento, nossa educação. (MOSÉ, 2012, p. 1). A autora ainda explica que os projetos da sociedade moderna não beneficiaram ninguém, pelo contrário, acarretou maiores problemas: a desigualdade africana, guerras afegãs, catástrofes ecológicas, violência em grande escala, individualismo. E a educação contribui para estes acontecimentos. A educação, ou as instituições, ensina desde criança o individualismo, a concorrência, a falsa história (de mocinhos vs. bandidos), do poder pelo saber, da soberania científica, a desigualdade. O ensino, desta forma, não ensina, são apenas palavras soltas sem reflexão. Introduzidas. Não é filosofia, é imposição tendo como lema o desenvolvimento. As áreas em que isso ocorre vão da oferta direta de cursos, presenciais e a distância, à produção de materiais instrucionais, na forma de livros, apostilas e softwares, às empresas de avaliação, ou, mais precisamente, de medida em larga escala, às consultorias empresariais na área e até mesmo à ação de consultores do meio empresarial que assessoram tanto a inserção de empresas educacionais no mercado financeiro, quanto direcionam investimentos de recursos para a educação. São facetas de acentuada transformação do panorama educacional em escala mundial (OLIVEIRA, 2009). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 151 Conforme o artigo de Oliveira (2009), este crescimento de "investimento" na área educacional, nada mais significa que, na educação, encontrou-se um meio de se obter lucros, aproveitando as péssimas condições da educação ofertadas pelo Estado. Com isto, neste discurso de que para se desenvolver, conseguir um lugar ao sol, instituições que visam o capital utilizam todo o seu arsenal para capturar um aluno, aproveitando-se de um discurso "para você se preparar para o mercado de trabalho"13 ou para "entrar mais rápido no mercado de trabalho"14. Enfim, nos deparamos em uma educação dedicada aos cursos técnicos prometendo benefícios ilusórios. Se antes a pergunta estava direcionada em onde encontrar os encanadores, pedicures, eletricistas. Agora me pergunto, onde iremos colocar tantos técnicos alienados em um discurso capitalista? 4 CONCLUSÃO Se, iniciamos este artigo nos referindo diretamente as escolhas do trabalhar e sua relação com o trabalho. No discorrer, invertemos a análise direcionando para a educação, esta que, direta ou indiretamente, está dando moldes à relação inicial, entre homem e o trabalho. Nesta união entre educação e trabalho, podemos dizer que existem objetivos. Vinculados aos desígnios sociais que, claramente, pauta-se do capitalismo, não seria tolice dizer que estas instituições, e muitas outras, não seguiria para esta vertente. Sendo assim, podemos analisar sobre dois pontos. Primeiro, o homem com o seu trabalho. Quais são os seus anseios? O seu futuro. Tem-se uma tendência em se acalmar em 13 Discurso do SENAC-PR, em seu site. 14 Discurso da TecPUC, em seu site. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 152 águas amenas evitando assim, os riscos das águas profundas, que trará instabilidade, insegurança e, o mais tenebroso, o risco de se estar desempregado. Segundo, homem com a educação. Na busca incessante por um trabalho seguro que lhe traga benefícios, o sujeito se apega cada vez mais em diferentes cursos e formações. Sem objetivo, sem foco, a quantidade se torna alheio a suas escolhas, quanto mais curso, maior é a chance de ser chamada a uma entrevista de trabalho. Existe a idéia errônea de quanto mais cursos em meu currículo, mais estou preparado para o mercado de trabalho. Nisto a educação é apenas para o preparo ao mercado de trabalho e suas concorrências. Por fim, porque não um terceiro ponto que surge nesta conclusão. O sujeito mergulhado nestas instituições capitalistas. Na ânsia de obter um lugar ao sol, o sujeito abraça a idéia ilusória e alienista do discurso capitalista. De que, para ser alguém, o sujeito deve estar trabalhando, por contrário é vagabundo e sem-vergonha. E ainda, pela sobrevivência, o sujeito deve estar abarrotado de dinheiro, para isto, não importa os sacrifícios, o sujeito deve fazer. Para que haja uma modificação destes paradigmas, devemos modificar uma cultura pautada no capital. É preciso construir uma nova forma de apresentação na sociedade. Assim, por onde iremos começar? Deveria ser dentro da própria educação. Suponhamos que alguém o traga para o outro lado do muro. Primeiramente ele ficaria ofuscado e amedrontado pelo excesso de luz; depois, habituando-se, veria as várias coisas em si mesmas; e, por último, veria a própria luz do sol refletida em todas as coisas. Compreenderia, então, que estas e somente estas coisas seriam a realidade e que o sol seria a causa de todas as outras coisas (PLATÃO, 2000, p. 298). Esse pequeno trecho pertence ao Mito da Caverna escrito por Platão entre os anos 385-380 a.C., apesar desse texto ter sido escrito há tanto tempo em outras realidades, ele se encaixa perfeitamente na nossa realidade, onde a intensificação do capitalismo tornou o homem alienado, incapaz de compreender o sistema que está inserido. Onde ter um Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 153 emprego com carteira assinada, possuir essa “segurança” passa a ocupar o lugar de maior importância na sua vida. O papel do educador como mediador é o de levar para o outro lado do muro e mostrar a luz do sol que é o verdadeiro conhecimento. Assim o homem por si só conseguirá sair da escuridão e visualizar a sua realidade. Eu estava olhando para vocês e para todo mundo lá fora, naquela farra da música, aquela felicidade, e a gente pergunta para que a gente vive, a gente vive para aquilo, gente, o objetivo da vida é brinquedo (ALVES, 2012). REFERÊNCIAS ALVES, R. [2002]. Educação para a cidadania. Palestra. Congresso Educação e Transformação Social. SESC-SP. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/. Acessado em: 04 fev, 2012. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.4 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FREUD, S. [1927-1931]. O Futuro de uma Ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos - XXI. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. BUENO, S. 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Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 155 TRABALHOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 156 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO E DIREITO COMPARADO Aparecido Arnaldo da Silva Flavio de Jesus Maciel Paulo Donizeti Jansen Romaniuk Sâmela Marcielle Sene Bueno Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti 1 INTRODUÇÃO Grande contribuição deu o Doutor Mauro Cappelletti no Direito Constitucional, através do seu trabalho e conhecimento, no que tange a Constitucionalidade das leis e sua aplicação no direito comparado. O Brasil viveu um grande momento de superioridade por parte da classe dos mais abastados e dos poderosos, enquanto a ampla massa dos hipossuficientes padecia com a forma de governo, sem compartilhar do poder e da seleção de quem governaria os entes formadores da Federação. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, advieram transformações expressivas na maneira de governar o país, principalmente quanto à participação do povo. A Constituição Federal ocasionou diversos direitos ao povo para que pudesse partilhar efetivamente da democracia e ratificar ser o legítimo detentor do poder. Isso assenta o surgimento de movimentos e organizações sociais, sobretudo das categorias menos defendidas e até então dominadas e sem voz ativa para lutar pelos seus direitos, consolidando a cidadania. Entretanto é necessário que se busque cada vez mais melhorias para o cidadão e que o Estado nunca retroceda diminuindo os direitos alcançados. Para isso é primordial que a Constituição seja vigiada e resguardada, servindo como verdadeira base do ordenamento jurídico, para que não surjam leis ou decisões de encontro com a Lei Máxima. O Brasil é um país ainda muito jovem e precisa se espelhar e buscar modelos controladores empregados no plano exterior, principalmente em países do velho mundo que já vivenciaram muitas lutas de classes no intuito de conquistar uma justiça social verdadeira, protegendo os mais fragilizados e os direitos humanos. Nesta linha, faz-se imprescindível o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 157 controle de constitucionalidade, principalmente no tocante à comparação às formas efetivadas no cenário internacional, o qual será demonstrado a seguir. 2 O QUE É CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE Compreende-se por controle de constitucionalidade a constatação da concordância ou ajustamento entre um ato jurídico, sejam atos normativos ou leis e a Constituição Federal, no que tange à formalidade e a materialidade dessa norma. A Constituição, como norma fundamental do sistema jurídico, regula o modo de produção das leis e demais atos normativos e impõe balizamentos a seu conteúdo. A contrariedade a esses mandamentos deflagra os mecanismos de controle de constitucionalidade aqui estudados. Cabe indagar: um ato inconstitucional é inexistente, inválido ou ineficaz? Ou é tudo isso, simultaneamente? O domínio adequado desses conceitos e a uniformização da terminologia, nem que seja por mera convenção, ajudam a superar dificuldades aparentes e reduzem os problemas a sua dimensão real. (BARROSO, 2012, p. 24). A Carta Magna com seus mandamentos tem como objetivo impor um parâmetro de base de como interpretar e aplicar as demais leis e princípios, isto é, a Constituição tem supremacia sobre qualquer conteúdo jurídico inferior. Para tanto deixa espaço para que os legisladores possam atuar em áreas específicas, tais como Direito Penal, Direito Civil, Direito do Trabalho, Direito Tributário entre outros, porém estas normas devem seguir o que rege a Carta Magna, e toda vez que há um desaparelhamento (a lei ou norma é inconstitucional) deve entrar em ação o controle de constitucionalidade, o qual é entendido como o poder de controlar uma norma mediante uma atividade de fiscalização de sua validade e da conformidade das leis e atos normativos do poder público, sempre tendo em vista uma Lei Suprema. Este instituto surgiu no Brasil em 1890, com influência Norte-americana, devidamente abaixo mencionada por Mendes e Branco (2012, p.1.472): O regime republicano inaugura uma nova concepção. A influência do direito norte-americano sobre personalidades marcantes, como a de Rui Barbosa, parece ter sido decisiva para a consolidação do modelo difuso, consagrado já na chamada Constituição provisória de 1890 (art. 58, § 1º, a e b). O Decreto n. 848, de 11-10-1890, estabeleceu, Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 158 no seu art. 3º, que, na guarda e aplicação da Constituição e das leis nacionais, a magistratura federal só intervirá em espécie e por provocação da parte. “Esse dispositivo (...) consagra o sistema de controle por via de exceção, ao determinar que a intervenção da magistratura só se fizesse em espécie e por provocação de parte”. Estabelecia-se, assim, o julgamento incidental da inconstitucionalidade, mediante provocação dos litigantes. E, tal qual prescrito na Constituição provisória, o art. 9º, parágrafo único, a e b, do Decreto n. 848, de 1890, assentava o controle de constitucionalidade das leis estaduais ou federais. E tem maior aprimoramento com a Constituição Republicana de 1891, com o controle Difuso: A Constituição de 1891 incorporou essas disposições, reconhecendo a competência do Supremo Tribunal Federal para rever as sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, quando se questionasse a validade ou a aplicação de tratados e leis federais e a decisão do Tribunal fosse contra ela, ou quando se contestasse a validade de leis ou de atos dos governos locais, em face da Constituição ou das leis federais, e a decisão do Tribunal considerasse válidos esses atos ou leis impugnadas (art. 59, § 1º, a e b). (MENDES e BRANCO, 2012, p.1.472). Assim, fica claro que a norma jurídica deve estar embasada e constituída em outra hierarquicamente superior, sobre pressuposto de ser considerado um ato írrito sua flagrante desconformidade, e, portanto consolidando o sistema de compatibilidade vertical do ordenamento jurídico. 3 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO DIREITO COMPARADO O controle judicial é efetuado de forma a garantir uma justiça constitucional, como um guardião dos preceitos fundamentais que regem a Constituição. Ressalta-se, contudo que em alguns países o controle é efetuado por outros órgãos que não o judiciário, judicial review, assim denominados controle político. Desta forma, o direito comparado estuda as partes que diferem e se assemelham entre as leis dos países, fazendo uma análise completa no sistema jurídico político da nação a ser estudada. E atualmente, com o avanço da globalização, é de suma importância este estudo para os operadores do direito. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 159 A seguir, estão descritas de maneira concisa, como é executado o controle de constitucionalidade em treze países: Espanha, Itália, Argentina, Áustria, Chile, Alemanha, Paraguai, França, Portugal, Uruguai, Estados Unidos, Venezuela e Peru. Na Espanha, o controle é o concentrado. A Constituição Espanhola, de 1978, que [...] adota o modelo concentrado de controle, declara em seu art. 164, ser o Tribunal Constitucional intérprete supremo da Constituição e órgão jurisdicional superior, em todo o território espanhol, em matéria de garantias constitucionais. O Tribunal Constitucional, que não integra formalmente o Poder Judiciário, é composto de doze magistrados, nomeados pelo Rei da Espanha, sendo que quatro deles são indicados pelo Congresso, quatro pelo Senado, dois pelo Governo e dois pelo Conselho Geral do Poder Judiciário. Exige-se para o cargo formação jurídica, reconhecida competência e quinze anos de exercício profissional. O mandato é de nove anos, renovando-se em um terço, a cada três anos. É vedada a recondução, salvo se o juiz tiver exercido menos de três anos de mandato. [...] As sentenças proferidas pelo Tribunal Constitucional, que declaram a inconstitucionalidade, produzem efeitos contra todos (devem ser seguidas por todos os órgãos públicos, pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário). (CARVALHO, 2008, p. 388-389). Este controle de constitucionalidade espanhol seria uma contrariedade ao que executa o legislador, operando como se fosse um legislador contraproducente, tendo como resultado a possível invalidação das normas, sempre que avistar a forma infiel da Constituição, que é o alicerce de sua legitimidade. O controle espanhol, conforme aqueles que o defendem, impulsiona a segurança do sistema jurídico. Já na Itália tem-se o seguinte: [...] a Constituição de 1947 criou a Corte Constitucional, competente para julgar controvérsias relativas à legitimidade das leis, e dos atos com força de lei, do Estado e das regiões; os conflitos de atribuições entre os diversos poderes do Estado, entre os Estados e as regiões; as acusações contra o Presidente da República e os Ministros (art. 134). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 160 A Corte Constitucional, órgão colegiado, especial, autônomo e independente dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, possui autonomia normativa, administrativa, financeira e contábil, além de auto-organização. [...] Cabe também ao Ministério Público e às partes suscitar a questão de inconstitucionalidade. (CARVALHO, 2008, p. 387-388). Nesta nação, ao aparecer casual investigação a respeito da constitucionalidade de uma norma jurídica, em uma situação concreta, compete ao juiz responsável pela causa o dever de suspensão do processo e repasse da incompatibilidade encontrada para análise da Corte Constitucional. Em relação ao controle político na Itália, Cappelletti (1999, p. 30-31) destaca que: [...] típico exemplo de controle político – não judicial – pode ser oferecido de resto, pela própria Constituição italiana, a qual prevê, contudo, [...] um controle propriamente judicial, confiado à Corte Constitucional. Tal controle político compete, na Itália, ao Presidente da República que tem, é certo, o dever de promulgar as leis aprovadas pelo Parlamento, mas que pode, quando o julgue oportuno, suspender esta promulgação, pedindo às Câmaras, com mensagem motivada, que submetam o texto legislativo a uma nova deliberação. Na Itália, o Presidente da República torna aplicável uma lei que foi antes aprovada no Parlamento e pode também se achar cabível tornar suspensa esta lei, repassando para as Câmaras e assim um novo texto para a lei passará a ser determinado. Já na Argentina é cumprido o controle difuso ou aberto. A Corte Suprema de Justiça se responsabiliza por ele e entre seus membros, há juristas reconhecidos e com exercício de profissão de no mínimo oito anos, sendo os mesmos escolhidos pelo Presidente da República e esta determinação tem que ser aprovada por 2/3 (dois terços) dos senadores argentinos. O controle de constitucionalidade, no sistema constitucional argentino, é jurisdicional difuso ou aberto [...] cabendo a todos os juízes exercitá-lo, a despeito de o art. 116 dizer que cabe à Suprema Corte e aos tribunais inferiores o conhecimento e a decisão de todas as causas que versarem matéria constitucional ou de legislação federal. A previsão do controle de constitucionalidade, no texto constitucional argentino, é apenas indireta, e não direta ou específica. [...] Não existe na Argentina o controle concentrado, como existente no Brasil, por meio da ação direta de inconstitucionalidade. (CARVALHO, 2008, p. 390) Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 161 No entanto, na Áustria, é apontado um novo conceito, conferindo ao Tribunal Constitucional a aptidão para determinar temas da ordem, através de petição feita pelo Governo, com alusão às leis dos estados, ou as mesmas em relação às leis federais. Afirma Oliveira (2008, p.38), “[...] No modelo austríaco, o magistrado é proibido de se pronunciar no que tange à constitucionalidade da lei, cabendo esta função tão-somente à Corte Constitucional”. Segundo o doutrinador Cappelletti (1999, p. 104), a respeito do modelo austríaco: De fato, esta Constituição não só criou uma especial Corte Constitucional – o Verfassungsgerichtshof – na qual “concentrou” a competência exclusiva para decidir as questões de constitucionalidade, mas, além disso, a Constituição austríaca confiou a esta Corte um poder de controle que, para ser exercido, necessitava de um pedido especial (“Antrag”), isto é, do exercício de uma ação especial por parte de alguns órgãos políticos. O controle de constitucionalidade na Áustria tem efeito erga omnes, ou seja, quando uma lei é declarada ineficaz, o efeito atinge a todos os cidadãos. No país sul-americano, Chile, o controle é misto e de maneira facultativa poderá ser preventivo, como citado abaixo: No Chile [...] predomina o sistema de controle de constitucionalidade misto, ou seja, concreto e abstrato, com a presença de um Tribunal Constitucional e de uma Suprema Corte. Os processos para a inaplicabilidade das normas inconstitucionais e atuações em casos individuais correspondem à Suprema Corte. [...] As decisões dessa Corte têm efeitos inter partes e não levam à nulidade da norma impugnada, mas simplesmente à sua inaplicabilidade ao caso concreto. Já as decisões do Tribunal Constitucional, que exerce, sobretudo, um controle preventivo sobre os projetos de reformas constitucionais, cuja iniciativa se restringe a alguns órgãos políticos (Presidente da República, qualquer das Câmaras, ou minorias parlamentares mais significativas), têm efeitos erga omnes. Esse controle preventivo incide também sobre os tratados ou convenções internacionais submetidos à aprovação do Congresso. [...] O controle preventivo da constitucionalidade é facultativo dos projetos de lei durante sua tramitação legislativa e das reclamações, no caso de o Presidente da República não promulgar uma lei quando deva fazê-lo. (CARVALHO, 2008, p. 391). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 162 Nesta nação o controle do Tribunal de Justiça se cumpre anteriormente à criação das leis, de maneira preventiva. É executado pelo Presidente da República, Câmaras ou parlamentares, em relação ao trâmite dos projetos de lei, tratados e decretos com eficácia legislativa. Com referência ao controle alemão tem-se o seguinte: O Tribunal Constitucional Federal, da Alemanha, decide recursos constitucionais interpostos por cidadãos, com base em terem sido lesados, pelo Poder Público, nos seus direitos fundamentais ou em direitos que a Lei Fundamental enuncia e por distritos e comunas, com base em seu direito de autoadministração. [...] O Tribunal Constitucional Federal é chamado a decidir quando um direito do Estado federado violar a Lei Fundamental e quando o Tribunal constitucional de um Estado federado julgar diversamente de uma decisão do Tribunal Constitucional Federal ou do Tribunal constitucional de outro Estado. (MELO, 2008, p. 155). A respeito desse controle Cappelletti (1999, p. 109) compara-o ao italiano, diferenciando ambos do austríaco. Contudo, na Itália como na Alemanha, diferentemente da Áustria, todos os juízes comuns, mesmo aqueles inferiores, encontrando-se diante de uma lei que eles considerem contrária à Constituição, em vez de serem passivamente obrigados a aplicá-la, têm, ao contrário, o poder (e o dever) de submeter a questão de constitucionalidade à Corte Constitucional, a fim de que seja decidida por esta, com eficácia vinculatória. A questão da constitucionalidade na Alemanha não é somente poder dos juízes superiores, como também àqueles de níveis inferiores, que podem transmitir à Corte Constitucional, para que a mesma decida sobre o caso. O efeito decisivo é erga omnes e com efetividade ex nunc. E esta decisão tem capacidade legislativa e acopla todos os órgãos do país e dos estados e também os tribunais e autoridades, sem exceção. No país vizinho ao Brasil, o Paraguai, há o controle concentrado, que é de competência da Suprema Corte de Justiça. O controle de constitucionalidade no sistema constitucional do Paraguai [...] caracteriza-se como judicial concentrado na Suprema Corte de Justiça e na sua Sala Constitucional. Não se trata de sistema difuso-incidental propriamente dito, pois cabe apenas à Sala Constitucional da Suprema Corte exercer esse controle, em sistema direto-concentrado, ressaltando-se que eventualmente um membro Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 163 de outra Sala pode requerer que um julgamento se faça não só pela Sala Constitucional, mas pelo Plenário da Corte. (CARVALHO, 2008, p. 392). O modelo paraguaio tem efeito inter partes. O único conflito entre os efeitos inter partes e erga omnes surge somente em situações relacionadas com os atos normativos. Na França, o controle é efetivado de forma preventiva através de um órgão exclusivo chamado de Conselho Constitucional ou Conseil Constitutionnel, não se tratando de um controle jurídico, mas sim político, que o exerce da promulgação de uma lei, sendo que sua pronúncia é obrigatória como explica Cappelletti (1999, p. 28): [...] Quando um texto legislativo ou um tratado internacional já está definitivamente elaborado, mas ainda não promulgado, o Presidente da República, o Primeiro Ministro ou o Presidente de uma ou de outra Câmara do Parlamento (isto é, da Assemblée Nationale ou Sénat) pode remeter o próprio texto legislativo ao tratado ao Conseil Constitutionnel, a fim de que este se pronuncie sobre sua conformidade à Constituição. Para algumas leis, ditas “orgânicas (“lois organiques” de que se pode dizer grosso modo, que concernem especialmente a organização dos poderes públicos), o pronunciamento do Conseil Constitutionnel é, ao contrário, sempre obrigatório. O Conseil Constitutionnel deve decidir dentro de um mês ou, em certos casos, dentro de oito dias; neste interim, a promulgação da lei fica suspensa. Sobre o controle francês, Moraes (2003, p. 584) destaca: O modelo francês prevê um controle de constitucionalidade preventivo a ser realizado pelo Conselho Constitucional, que, no transcurso do processo legislativo, poderá, desde que provocado pelo Governo, ou pelo presidente de qualquer das Casas legislativas, analisar a constitucionalidade de uma proposição ou de uma emenda, antes de sua promulgação, devendo pronunciar-se no prazo de oito dias. [...] A excepcionalidade prevista no art. 37.2 da Constituição francesa [...] previu uma forma de controle repressivo de constitucionalidade. Trata-se da possibilidade de o Conselho Constitucional francês analisar abstratamente a repartição constitucional de competências entre o Governo e o Parlamento. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 164 Salienta-se que anteriormente à promulgação, enviam-se as leis para o Conselho, que irá determinar a constitucionalidade. E a decisão tomada atinge as autoridades do âmbito administrativo e judiciário. No também país europeu, Portugal, o controle pode ser de aptidão do Tribunal Constitucional, conforme as palavras de Melo (2008, p. 155): A Constituição de Portugal [...] dispõe que a declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que haja revogado. [...] Por motivo de segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo e devidamente fundamentado, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito. Nota-se o controle de forma abstrata, concreta e preventiva da constitucionalidade e também a inconstitucionalidade de maneira omissiva. Já no Uruguai, o controle é concentrado, conforme elucida Carvalho (2008, p. 392): Pelo art. 239, 1º, da Constituição do Uruguai, de 1967, cabe à Suprema Corte de Justiça julgar originariamente os delitos contra a Constituição e contra o Direito das Gentes, podendo a lei dispor sobre instâncias a serem percorridas nos diversos Juízos, conforme cada caso. O sistema de controle de constitucionalidade adotado no Uruguai é o concentrado. No Uruguai o controle é o concentrado, sendo realizado um estabelecimento de inconstitucionalidade das normas, tendo como objetivo o alcance da invalidação da lei para estabilizar a segurança da ordem jurídica. O sistema norte-americano criou às Constituições rígidas em contraposição das constituições flexíveis, ressalta-se que até então, nos estados europeus não existia algo semelhante. O controle do tipo norte-americano tem função declaratória e efeitos restritos às partes do processo. Admite-se que a lei nasceu inconstitucional e o ato judiciário apenas o reconhece. [...] A declaração de inconstitucionalidade tem repercussão ex tunc, ou seja, projeta-se para o passado e, por consequência, nulifica as leis, os atos administrativos e civis praticados contra a Constituição. (MELO, 2008, p. 152). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 165 Nos Estados Unidos o controle é difuso, onde todos os órgãos do sistema judiciário têm esse poder controlador. É denominado por alguns juristas como "sistema americano", pois para alguns, esse modelo de controle iniciou nos Estados Unidos, em 1803. Há também o instituto stare decisis, em que uma decisão da Suprema Corte é relacionada a todos os Tribunais, inferiores e superiores. Antes das eleições presidenciais, realizadas no final de 1800, nos Estados Unidos, o Presidente John Adams e seus aliados derrotados, tanto no legislativo como no executivo, em um de seus últimos atos como Presidente, John Adams, fez aprovar uma lei reorganizando o Poder Judiciário, pois ainda detinham a maioria no Congresso, para poder manter sua influência. Indicando John Marshall para Presidente da Suprema Corte. Logo à frente, em 27 de fevereiro de 1801, uma nova lei (the Organic Act of the District of Columbia) autorizou o Presidente a nomear quarenta e dois juízes de paz, tendo os nomes indicados sido confirmados pelo Senado em 3 de março, véspera da posse de Thomas Jefferson. John Adams, assim, assinou os atos de investidura (commissions) dos novos juízes no último dia de governo, ficando seu Secretário de Estado, John Marshall, encarregado de entregá-los aos nomeados. Pois bem: tendo um único dia para entregar os atos de investidura a todos os novos juízes de paz, Marshall não teve tempo de concluir a tarefa antes de se encerrar o governo, e alguns dos nomeados ficaram sem recebê-los. Thomas Jefferson tomou posse, e seu Secretário de Estado, James Madison, seguindo orientação do Presidente, recusou-se a entregar os atos de investidura àqueles que não os haviam recebido. Entre os juízes de paz nomeados e não empossados estava William Marbury, que propôs ação judicial (writ of mandamus), em dezembro de 1801, para ver reconhecido seu direito ao cargo. O pedido foi formulado com base em uma lei de 1789 (the Judiciary Act), que havia atribuído à Suprema Corte competência originária para processar e julgar ações daquela natureza. A Corte designou a sessão de 1802 (1802 term) para apreciar o caso. Sucede, contudo, que o Congresso, já agora de maioria republicana, veio a revogar a lei de reorganização do Judiciário federal (the Circuit Court Act, de 1801), extinguindo os cargos que haviam sido criados e destituindo seus ocupantes. Para impedir questionamentos Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 166 a essa decisão perante a Suprema Corte, o Congresso suprimiu a sessão da Corte em 1802, deixando-a sem se reunir de dezembro de 1801 até fevereiro de 1803. Esse quadro era agravado por outros elementos de tensão, dentre os quais é possível destacar dois: Thomas Jefferson não considerava legítima qualquer decisão da Corte que ordenasse ao governo a entrega dos atos de investidura, e sinalizava que não iria cumpri-la; b) a partir do início de 1802, a Câmara deflagrou processo de impeachment de um juiz federalista, em uma ação que ameaçava estender-se até os Ministros da Suprema Corte. Foi nesse ambiente politicamente hostil e de paixões exacerbadas que a Suprema Corte se reuniu em 1803 para julgar Marbury v. Madison, sem antever que faria história e que este se tornaria o mais célebre caso constitucional de todos os tempos. Marbury v. Madison foi a primeira decisão na qual a Suprema Corte afirmou seu poder de exercer o controle de constitucionalidade, negando aplicação a leis que, de acordo com sua interpretação, fossem inconstitucionais. Assinale-se, por relevante, que a Constituição não conferia a ela ou a qualquer outro órgão judicial, de modo explícito, competência dessa natureza. Ao julgar o caso, a Corte procurou exibir que a atribuição decorreria do sistema. A argumentação de Marshall acerca da supremacia da Constituição, da necessidade do judicial review e da competência do Judiciário na matéria é primorosa. Marbury v. Madison, portanto, foi a decisão que inaugurou o controle de constitucionalidade no constitucionalismo moderno, deixando assentado o princípio da supremacia da Constituição, da subordinação a ela de todos os Poderes estatais e da competência do Judiciário como seu intérprete final, podendo invalidar os atos que lhe contravenham. Na medida em que se distanciou no tempo da conjuntura turbulenta em que foi proferida e das circunstâncias específicas do caso concreto, ganhou maior dimensão, passando a ser celebrada universalmente como o precedente que assentou a prevalência dos valores permanentes da Constituição sobre a vontade circunstancial das maiorias legislativas. Vislumbra-se que posteriormente a decisão no caso Marbury v. Madison (1803), o controle de constitucionalidade Americano passou a ser considerado difuso. Vez que todos os juízes e tribunais são capazes de analisar a constitucionalidade das leis. A lei passou a ser Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 167 considerada nula e não anulada. Destarte o Congresso Nacional Americano não se declarava em relação a esta lei apontada como nula, por inferir que esta nunca existiu. Semelhantemente segue o modelo Venezuelano de controle: O controle de constitucionalidade, na Venezuela, é misto, pois todos os juízes podem manifestar-se sobre a constitucionalidade (controle difuso), sendo ainda de competência da Sala Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça exercer o controle concentrado (arts. 333 a 336 da Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 2000). [...] Também prevê um controle preventivo, em que o Presidente da República, ao receber um projeto de lei, tem o prazo de dez dias para promulgação. (CARVALHO, 2008, p. 393). O controle utilizado na Venezuela é de caráter misto, onde todos os juízes dos tribunais se manifestam em relação à constitucionalidade, com um controle difuso e concentrado de responsabilidade da Sala Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça. Sucede, além disso, um controle preventivo praticado sobre os projetos de lei do país. Diferentemente visualiza-se o modelo peruano de controle político e não judiciário: No Peru, o controle de constitucionalidade é denominado de dual ou duplo, pois compreende um sistema difuso, a cargo de juízes e tribunais, e um sistema abstrato e concentrado em um Tribunal Constitucional, criado pela Constituição de 1993, que não integra o Judiciário. Pela Constituição de 1980, o controle concentrado era exercido pelo Tribunal de Garantias Institucionais, extinto pelo golpe do então Presidente Fujimori, em abril de 1992. (CARVALHO, 2008, p. 393) No Peru, a Constituição define que não há finalidade retroativa na sentença do Tribunal que expressar inconstitucionalidade, totalmente ou parcialmente, no que concerne às normas legais. 3.1 O Controle de Constitucionalidade no Direito Comparado segundo Mauro Cappelletti Garantir a supremacia da Carta Magna por meio de um controle é uma das formas mantenedoras da vontade dos constituintes, limitando as modificações pela “justiça constitucional”. Esse instituto em alguns países é cumprido por órgãos políticos, não Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 168 pertencentes à esfera judiciária, realizando o controle preventivo. Como exemplo pode-se citar a própria história das instituições legais mexicanas, ou seja, no Supremo Poder Conservador, criado pela “Siete Leyes Constitucionales de 1836, inspirado no Senat Conservateur da Constituição francesa de 1799”. A nação francesa é a que mais apresenta exemplos de controle político, pois por motivos históricos e ideológicos defende a eliminação de um controle judicial, não aceitando a intervenção judiciária na atividade legislativa. Porém a Constituição de 1958 prevê o poder “difuso” dos juízes de controlar a consonância das leis à Constituição, mas também assegura que uma norma legislativa ou um tratado internacional ainda não promulgado, poderá ser remetido, pelo Presidente da República, Primeiro Ministro ou Presidente de Câmara do Parlamento, ao Conseil Constitutionnel, que os analisará e pronunciará sobre sua constitucionalidade, sendo que para leis orgânicas o pronunciamento será obrigatório. Para alguns os EUA foi o pioneiro desse instrumento controlador com o caso Marbury versus Madison de 1803. Realmente antes do sistema norte americano de judicial review, os Estados europeus não criaram nada similar. A Constituição norte americana apresentou uma rigidez que não pode ser modificada por lei ordinária, mas somente pelo processo revisional. Já a inglesa é em grande parte não escrita, tendo caráter flexível. Na Itália o Estatuto Albertino possuía essa característica, que foi inteiramente ab-rogado e suprimido a partir da republicana (rígida) de 1948. A americana de 1787 fixou sua supremacia, impondo aos juízes o poder e o dever de não aplicar leis contrárias à Constituição. A supremacia constitucional quanto às leis ordinárias não teve como primeiro caso o Marbury versus Madison, existiram mais antigos sistemas jurídicos como o Direito ateniense, em que o nómos, lei em sentido estrito e se aproximando das constitucionais, e o pséfisma, decreto, só podiam ser alterados pela revisão constitucional. Também temos segundo Platão que, a lei precisa reproduzir a ordem divina, superior e imutável, e não os interesses mutáveis das classes humanas; Aristóteles afirmava que a lei era uma norma superior às paixões do homem, formulando a doutrina da supremacia da lei. Na Idade Média o direito natural era taxado como norma superior, emanada de Deus, servindo de base para todas as outras normas, sendo que John Lock afirmava o supreme Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 169 power do legislativo, mas também que este poder era limitado pelo direito natural. Entretanto, a positivação desse direito ocorrerá apenas com a rigidez constitucional, iniciado com a Constituição dos Estados Unidos. No tocante ao aspecto subjetivo existem dois tipos de controle: o difuso, também chamado de sistema americano, em que o poder controlador compete a qualquer órgão do poder judiciário; e o concentrado, analogamente designado de tipo austríaco, no qual o poder será de um único órgão judiciário. Eles se impuseram recentemente em mais de um país, demonstrando evidente força de ampliação. A doutrina basilar do organismo do controle judicial difuso é muito coerente e de extrema simplicidade, raciocinando-se que a competência dos juízes é a interpretação das leis, com o intuito de aplicá-las a casos reais quando impostos a julgamentos, sendo que a regra mais evidente é que ocorrendo contraste entre duas normas, deverá ser aplicada a prevalente. Quando ocorrer divergência entre disposições de análoga força normativa, prevalecerá a que satisfizer princípios jurídicos, como o da especialidade, por exemplo. Porém, se o contraste se der entre leis de força normativa diversa, o juiz deverá aplicar a norma constitucional. A simplicidade deste raciocínio faz brotar uma dúvida sobre a estranha razão de a Áustria preferir o controle concentrado, e isso ter repercutido em outras Constituições recentes de países do civil law, como na Espanha, Itália, Iugoslávia, etc. Ocorre que no controle difuso todos os órgãos judiciários possuem o poder e o dever de não aplicar leis inconstitucionais, sendo assim, a entrada, nos sistemas de civil law, do processo americano de controle, resultaria a não aplicação de uma lei julgada inconstitucional por alguns juízes, e talvez a aplicação por outros que não vislumbrassem o contraste com a Constituição. Também poderia ocorrer que o mesmo órgão judiciário mudasse de opinião sobre a desconformidade da lei que não estava sendo aplicada e passasse a aplicá-la. Tudo isso poderia resultar em um grave conflito entre órgãos e uma instabilidade jurídica. No Japão se manifesta o inconveniente quando após uma primeira ou uma série de não aplicações de certa norma por parte das Cortes, qualquer cidadão interessado na não aplicação da mesma lei propõe uma nova ação em juízo, sobrecarregando o sistema Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 170 judiciário. Esses problemas de incerteza e conflito poderiam ser evitados, como na Suíça, que possui um órgão supremo da justiça que traz decisões para o caso concreto, as quais se estendem com eficácia erga omnes da norma taxada inconstitucional. Estes fatos foram evitados nos Estados Unidos, como em outros países de commom law, com o controle difuso, em que vigora o princípio do stare decisis, quando uma decisão do mais alto tribunal vincula todos os tribunais inferiores na mesma jurisdição. A questão é que embora surjam divergências entre as Cortes (estaduais e federais), elas serão decididas pela Suprema Corte que trará uma decisão vinculatória para os demais órgãos judiciários com eficácia erga omnes, não se limitando apenas ao fim da não aplicação da lei a um caso concreto, mas em outros casos iguais, gerando, em regra, um efeito retroativo. Se uma lei é declarada inconstitucional pela Suprema Corte, permanece no ordenamento, mas é tornada uma lei morta, que não produz efeitos. Para alcançar um resultado semelhante, os países sem o princípio do stare decisis, precisavam confiar as decisões de constitucionalidade das leis, com eficácia erga omnes, a um órgão como a Suprema Corte dos EUA, evitando os conflitos e a incerteza jurídica. Assim, a Áustria julgou necessário criar uma Corte Constitucional, sendo adotada a mesma medida pela Tchecoslováquia e, depois pela Espanha, Itália e Alemanha, os quais contemporaneamente adotaram o controle concentrado. Neste sistema a norma não poder ser declarada inconstitucional por qualquer juiz, demonstrando o poder de interpretar e aplicar o direito no caso concreto. Eles devem taxar como boas as leis existentes, mas na Itália e na Alemanha possuem a competência de suspender o processo diante de pendência, arguindo a constitucionalidade perante o Tribunal Especial. Na França a supressão de um controle propriamente judicial de constitucionalidade foi imposta vagarosamente em suas Constituições, taxadas como rígidas. Isso se deu por razões históricas, pois antes da Revolução, era muito comum o adentramento do judiciário na esfera dos outros poderes, revelando um abuso na aplicação da norma. Acrescente-se a isso a incompatibilidade da intervenção dos juízes no legislativo, contrariando a ideia de Montesquieu da separação dos poderes. Em contradição a esta concepção francesa, a norteamericana utiliza a ideia de um controle e equilíbrio recíproco entre os poderes, sendo que o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 171 judiciário controla a validade constitucional das leis e atos administrativos, e o legislativo e o executivo escolhe e nomeia os componentes da Suprema Corte. Após analisada a aparência “subjetiva”, faz-se válido o exame do aspecto “modal” (como os temas de constitucionalidade podem ser arguidos diante dos magistrados donos da decisão), sendo muito clara a diferença entre o sistema norte-americano, que subjetivamente é difuso e no modal se exerce em via incidental, ou seja, no caso de processo comum e na proporção em que a decisão seja relevante para o caso concreto; e o austríaco, que é concentrado e exercido em via principal, em que os juízes não possuíam poder de controle e nem aplicação de leis consideradas inconstitucionais, mas apenas a Corte Constitucional. Contudo, devido a este sistema ter se mostrado insuficiente, a Constituição austríaca de 1929 modificou-o, sendo que atualmente sob o modal apresenta um caráter híbrido, no qual os órgãos judiciários ainda não realizam o controle das leis, mas estão legitimados a solicitar à Corte que o efetue, porém limitando-se ao caso concreto submetido a seu julgamento. Assim como na Áustria, na Itália e na Alemanha, os juízes comuns são proibidos de efetuar tal controle, o qual é de competência especial das Cortes Constitucionais. Resta analisar ainda o fenômeno do controle sob um terceiro e importantíssimo aspecto, o dos efeitos emanados da decisão judicial, seja de órgãos judiciários comuns, no controle difuso, ou então de órgãos especiais, as Cortes Constitucionais europeias. Novamente aparece o contraste entre o sistema austríaco e o norte americano. Neste, a lei inconstitucional é avaliada definitivamente nula, assumindo o caráter de um controle simplesmente declarativo, com eficácia especial, ou seja, inter partes e, em regra, com efeito, ex tunc; já naquele, a Corte não declara a nulidade, mas a anulabilidade da lei que, é válida e eficaz até a publicação do pronunciamento do órgão, apresentado um caráter de controle constitutivo de invalidade e de ineficácia de normas contra a Constituição, com eficácia geral, ou seja, erga omnes e, com efeito, ex nunc. Na Itália e na Alemanha, da mesma maneira que na Áustria, a sentença declaratória de inconstitucionalidade pelas Cortes possui eficácia erga omnes; tornando a lei para todos e para sempre. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 172 Pode ocorrer que uma lei tenha sido aplicada pelos órgãos públicos e sujeitos privados por muito tempo e gerado todos os efeitos possíveis, mas que posteriormente seja declarada inconstitucional, então como fica a situação dos efeitos já produzidos? Acontece que a Constituição é um documento vivo e, portanto está sujeita a constante mudança de suas normas, acompanhando a evolução da sociedade. Portanto, em matéria penal, as Cortes americanas consideram que, antes de transitado em julgado a sentença condenatória, nenhuma pessoa será forçada a cumprir uma pena atribuída com base em uma lei posteriormente declarada inconstitucional, também assim dispõe expressamente a lei alemã e a italiana. Em assunto civil e, às vezes, administrativo tem-se respeitado alguns efeitos concretizados, determinados através de lei depois afirmada oposta à Constituição. Isso em razão de que ocorreriam repercussões mais graves sobre a paz social se a decisão foi outra. 4 O CONTROLE CONSTITUCIONAL NO DIREITO BRASILEIRO A norma jurídica deve estar embasada e constituída em outra hierarquicamente superior, sobre pressuposto de ser considerado um ato írrito sua flagrante desconformidade, assim consolidando o sistema de compatibilidade vertical do ordenamento jurídico. São reconhecidos três pressupostos classicamente apontados pela doutrina para existência do Controle de Constitucionalidade: A existência de uma Constituição formal, ou seja, em sua elaboração preocupa-se muito mais com a forma, necessariamente sendo escrita e unitária, pois seus preceitos devem estar consagrados formal e solenemente em um único documento. A existência de uma Constituição rígida, assim é dotada de supremacia formal, pois seu processo de alteração é mais dificultoso, solene, complexo que as alterações das demais normas infraconstitucionais. Um órgão com competência para exercer o controle concentrado, que no Brasil é o Supremo Tribunal Federal. A inconstitucionalidade pode existir por ação ou omissão, enquanto esta é sustentada pela inexistência de uma norma, pois a incompatibilidade reside exatamente na inércia “deliberandi”, ou de não deliberar no silêncio legislativo, ou seja, é a situação em que o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 173 legislador tem o dever de elaborar uma norma, mas silencia, fica inerte e não produz os atos normativos indispensáveis a regular as normas de eficácia limitada; aquela é também conhecida por positiva ou por atuação e pressupõe a existência de uma norma inconstitucional, ou seja, uma norma que vai de encontro à Constituição. A inconstitucionalidade por ação pode ser dividida em formal e material como explica Paulo e Alexandrino (2008, p. 695): Inconstitucionalidade formal ocorre quando há um desrespeito à Constituição no tocante ao processo de elaboração da norma, podendo alcançar tanto o requisito competência, quanto o procedimento legislativo em si. O conteúdo da norma pode ser plenamente compatível com a Carta Magna, mas alguma formalidade exigida pela Constituição, no tocante ao trâmite legislativo ou às regras de competência, foi desobedecida. [...] Inconstitucionalidade material ocorre, portanto, quando o conteúdo da lei contraria a Constituição. O processo legislativo pode ter sido fielmente obedecido, mas a matéria tratada é incompatível com a Carta Política. Seria o caso, por exemplo, de uma lei que introduzisse no Brasil a pena de morte em circunstâncias normais, que padeceria de inconstitucionalidade material, por afrontar o art. 5º, XLVII, da Lei Maior. Para melhor entendimento didático as inconstitucionalidades Formal e Material serão abaixo exemplificadas, sendo também abordada ainda a inconstitucionalidade de uma lei por quebra de decoro parlamentar que surge como uma nova modalidade doutrinária: Formal: também conhecida como nomodinâmica, é um vício que repousa sobre a forma de se elaborar a norma, o trâmite formal e processual de formação não é respeitado. Podendo assim ser dividido em três: a.1) Vício Formal Orgânico: é um vício relacionado ao ente federativo que legisla, por exemplo: legislar sobre Bingos e Loterias, neste caso o Supremo Tribunal Federal, mediante a Súmula Vinculante de número dois, diz que esta competência é da União, se o Estado legisla surge o vício formal orgânico. a.2) Vício Formal Propriamente Dito: se divide em objetivo ou subjetivo, enquanto este é o vício que está relacionado à fase de iniciativa, de forma que se um deputado encaminha um projeto que é de iniciativa reservada do Presidente como, por exemplo, fixar ou modificar os efetivos das Forças Armadas, esse projeto é um ato natimorto pois tem vício Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 174 formal subjetivo; aquele é um vício nas demais fases, por exemplo, um projeto de lei complementar sendo aprovado por maioria simples tem vício formal objetivo, pois a legislação exige maioria absoluta para aprovação. a.3) Vicio Formal por violação a Pressupostos Objetivos do ato. Para melhor entendimento convém lembrar os pressupostos para a criação de municípios, haja vista que o município deve ser criado mediante Lei Estadual, porém desde que observados os requisitos objetivos, quais sejam, art. 18, parágrafo IV, uma Lei Complementar Federal que estabelece o procedimento de plebiscito e estudo de viabilidade, havendo a criação sem observar esses pressupostos objetivos, há um vício formal por violação a pressuposto objetivo. b) Material: também conhecida como nomoestática, é um vício que se repousa sobre o conteúdo ou ato normativo. Desta forma, ocorre quando é desacatado o teor de uma norma constitucional com o mesmo assunto, de maneira parcial ou completa. c) Quebra de Decoro Parlamentar: cumpre aqui também citar este vício, uma espécie que está sendo ventilada na doutrina, pois ainda não é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Nada mais é que a possibilidade de ser declarado inconstitucional por vício de quebra de decoro parlamentar, ato normativo aprovado mediante propina. Tendo por baluarte o Professor Pedro Lenza, Mestre e Doutor pela USP: O grande questionamento que se faz, contudo, é se, uma vez comprovada à existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade. Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício de decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, § 1.º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. (LENZA, 2012, p. 255). Para Lenza, a aplicabilidade da norma é legítima desde que haja em sua elaboração imparcialidade do legislador, desta forma subentende-se que em uma lógica proporcional inversa que qualquer ato normativo terá sua invalidade quando constatado interesse diverso em sua elaboração, assim com a cassação do legislador em caso de sentença transitada em julgado, uma lei viciada também deverá perder sua legitimidade. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 175 Desta maneira o doutrinador defende que sejam consideradas inconstitucionais as normas legisladas mediante influências pecuniárias, assim, uma vez julgados e condenados os legisladores, as propostas objetos do interesse pessoal das partes envolvidas no processo deverão também perder sua eficácia, sob a ótica de que a aceitabilidade e aplicabilidade dos efeitos contínuos das normas absolvem a conduta de seu legislador. 5 MOMENTOS DO CONTROLE NO BRASIL O controle pode ser realizado de forma preventiva, ou seja, será analisado antes da introdução da lei no sistema jurídico, ou de maneira repressiva, depois que já foi aprovada e introduzida no ordenamento. 5.1 Controle preventivo Este instituto é utilizado antes da promulgação de lei ou emenda constitucional, podendo ser praticado pelo Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário. Conforme as palavras de Mascarenhas (2010, p. 166), “o controle é preventivo quando ocorre antes ou durante o processo legislativo, ou seja, quando busca impedir a entrada em vigor do ato inconstitucional”. - Poder Legislativo: realizado através das CCJ, Comissão de Constituição e Justiça. Estão presentes em todas as casas legislativas e o objetivo principal é analisar a constitucionalidade dos projetos de lei; - Poder Executivo: é feito através do veto jurídico. Sendo aprovado o projeto de lei pelo legislativo, o executivo poderá vetá-lo por inconstitucionalidade, em que teremos o veto jurídico. Já o veto político ocorre quando a situação é contrária ao interesse público; - Poder Judiciário: acontece no momento em que um parlamentar impetra mandado de segurança para obstar o prosseguimento de um projeto de lei inconstitucional. Ex: Cláusula de Barreira, os partidos políticos para terem acesso aos recursos do fundo partidário e ao horário político de rádio e televisão, precisam ter um número mínimo de parlamentares. Isso fere o direito da minoria, portanto é inconstitucional. 5.2 Controle repressivo Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 176 Em regra é realizado pelo judiciário através do controle difuso ou concentrado, mas excepcionalmente poderá ser feito pelo legislativo em duas situações: o Congresso Nacional rejeita uma Medida Provisória inconstitucional expedida pelo Presidente da República, ou susta um Decreto ou uma Lei Delegada. Mascarenhas (2010, p. 166) destaca acerca do controle repressivo: Excepcionalmente, a Constituição Federal adotou duas hipóteses de controle de constitucionalidade repressivo a ser desenvolvido pelo próprio Poder Legislativo, quando as normas jurídicas aprovadas, em vigor e dotadas de eficácia, são retiradas do ordenamento jurídico por apresentarem um vício que as inquina de inconstitucional. Portanto, este controle não ocorre sobre o projeto de lei, mas sim sobre a própria lei em vigência. Sendo que Riccitelli (2007, p. 81) aponta ainda uma excepcionalidade do controle repressivo que pode ser realizado pelo poder executivo: O caput. e o respectivo inciso I do art. 23 da CF/88 estabelecem ser de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios a responsabilidade de zelar pela Constituição. Referida determinação é corolário legal da atribuição exclusiva ao Presidente da República, aos governados e aos prefeitos sobre a possibilidade de estes e apenas estes, por meio de ato administrativo expresso e formal, negarem o cumprimento de uma lei ou de um ato normativo considerados flagrantemente inconstitucionais, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, RTJ 151/331). Como no preventivo, nota-se também o poder controlador repressivo dos três poderes, trabalhando de forma independente e harmônica, realizando a fiscalização dos atos de outra esfera e garantindo a supremacia da Constituição Federal. 6 CONTROLE DIFUSO É aquele em que a lei pode ser declarada inconstitucional por qualquer juiz, desde que seja analisado um caso concreto e que a inconstitucionalidade seja matéria incidente. Os Tribunais só podem declarar uma lei inconstitucional pela maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do órgão especial. Assim reza a Constituição Federal em seu Art. 97. “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 177 respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 10, “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”. Sendo assim, quando vislumbrar uma situação inconstitucional, o órgão fracionário deverá submeter à apreciação de todo o Tribunal, para que pelo voto da maioria absoluta declare ou não a situação irregular, ficando os membros vinculados a agirem conforme a decisão proferida. 7 CONTROLE CONCENTRADO Esta denominação é recebida pelo fato do controle estar concentrado em um único tribunal. Podendo ser averiguado em cinco circunstâncias: ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade Genérica), IF (Representação Interventiva – ADI interventiva), ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade) e ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). 8 A NOMEAÇÃO DO TRIBUNAL RESPONSÁVEL PELO CONTROLE CONCENTRADO NO ÂMBITO FEDERAL A nossa Carta Magna traz em seu Capítulo III, na Seção II do Poder Judiciário, a maneira como é formado o Supremo Tribunal Federal: Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Este tema foi bem explanado em recente artigo publicado por Leite (2015, p. 02) no jornal Panorama Regional: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 178 Desde a Constituição de 1946 os ministros do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo Presidente da República dentre os brasileiros maiores de 35 anos, com notável saber jurídico e reputação ilibada, após a aprovação pelo Senado Federal. Nos dias atuais, infelizmente, verificou-se que esse processo nem sempre levou a sério o necessário saber jurídico, bem como prevaleceu como principal critério a sintonia do escolhido com o grupo político que está no poder. Compete ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição, entretanto nota-se uma ofensa até à cláusula pétrea da Separação dos Poderes no momento da nomeação dos onze ministros, pois se percebe o executivo influenciando em muito no órgão máximo do poder judiciário de nosso país. Leite (2015, p.02) afirma ainda que: Chegou-se ao extremo de indicar para a Suprema Corte do país um ministro bastante jovem que havia prestado concurso para ingresso na magistratura de São Paulo e foi reprovado. Incrível, o não saber jurídico não foi nenhum obstáculo para a sua nomeação, porque outra credencial havia para lhe garantir a vaga: tratava-se do fato de ele ter sido advogado do PT. A separação dos poderes idealizada por Montesquieu afirmava que os três poderes deveriam ser independentes e harmônicos entre si, porém chegou-se a um ponto em que esta harmonia está muito próxima e causando dúvidas, pois se alcançou a situação de ser nomeado um ministro que não detém um notável saber jurídico para o órgão Supremo do Judiciário. É notável o interesse político do poder executivo no momento da escolha, inclusive que foi aprovada pelo Senado Federal, ou seja, o legislativo também está influenciado. É importantíssimo que os três poderes trabalhem sintonizados em prol da sociedade, mas nomear alguém para um cargo tão importante somente pelo interesse político chega a ser uma afronta à Constituição da República e ao Estado Democrático de Direito, pois não se preencheu os requisitos que a Lei Máxima trouxe elencado no artigo 101, devendo tal nomeação ser taxada como inconstitucional por não ter seguido à norma constitucional, deixando assim a Corte Suprema em uma situação de estranheza perante os cidadãos brasileiros. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 179 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS As argumentações exemplos e a dinâmica colocada em relação à Constitucionalidade no Direito Comparado mostrou a importância de seu estudo e aplicação em vários países, bem como deixou claro a autoridade da supremacia das normas fundamentais, limitando as transformações através da justiça constitucional, seja ela difusa ou concentrada. A sociedade é disciplinada pelo direito, que tem função primordial de considerar os valores humanitários como alicerces da construção social, no qual o valor jurídico supremo é a dignidade da pessoa humana. Contudo, a constante mutação dos valores culturais, políticos, sociológicos e econômicos devem ser atualizados e implantados de forma harmônica no ordenamento jurídico, ou seja, compatível com o conteúdo da Constituição Federal. É pressuposto da Carta Magna o controle e elaboração de normas, no que tange sua constitucionalidade, vez que o os atos normativos a luz da norma essencial necessitam passar pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça que deverá usar da máxima rigidez no intuito de preservar os basilares princípios que a norteiam, pois sem esse rigoroso controle as normas infraconstitucionais seriam taxadas como constitucionais, inexistindo assim a distinção formal entre as espécies. Dessa forma o controle é o óbice do imperfeito, no que concerne a disciplinar os erros formais e materiais. Este sistema pode ser preventivo ou repressivo, difuso ou concentrado, estando intimamente ligado à escola doutrinária em que se baseia a estrutura e organização jurídica, buscando-se resguardar os elementos legais primados na obediência aos preceitos fundamentais, a fim de instituir um Estado Democrático destinado a assegurar os direitos sociais e individuais como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. O maior problema encontrado foi no tocante à nomeação dos Ministros do STF, haja vista que causa certa desconfiança por parte da população quando um Chefe do Executivo Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 180 realiza um ato sem observar os requisitos previstos na Constituição, principalmente quando esta ação preenche um cargo de guardião da própria Lei Máxima. REFERÊNCIAS ALEXANDRINO, Marcelo; e PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 19. ed. rev. e atual – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil. 1988. CAPPELLETTI, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Dirieto Comparado. 2ª ed – Reimpressão, Porto Alegre/1992 – Reimpresso 1999. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição Direito Constitucional Positivo. 14. ed. rev. atual. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira; e Branco, Paulo Gustavo Gonet, Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. rev. Atual - São Paulo: Saraiva, 2012 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. LEITE, E. G. Por um Supremo melhor. Panorama Regional, Ibaiti -PR, Edição 404, p. 02, 21 abr. 2015. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. MASCARENHAS, Paulo. Manual de Direito Constitucional. 1. ed. Salvador: [s.n.], 2010. MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional do Brasil. 1. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. OLIVEIRA, Aline Lima de. A Limitação dos Efeitos Temporais da Declaração de Inconstitucionalidade no Brasil: uma análise da influência dos modelos norte-americano, austríaco e alemão. 1. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 181 RICCITELLI, Antonio. Direito Constitucional: teoria do Estado e da Constituição. 4 ed. rev. – Barueri, SP: Manole, 2007. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 182 A EXECUÇÃO DA PENA E O CUMPRIMENTO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Junior Evaldo Goltz Luciano Bruno Figueredo Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti 1 INTRODUÇÃO É alarmante a situação prisional de nosso país, falta estrutura física e até mesmo política para a correta manutenção da população carcerária brasileira. Nosso ordenamento jurídico, e, principalmente o ordenamento penal, se mostra evidentemente repressivo no tocante às formas de punição, prescrevendo aos crimes quase sempre a pena de privação da liberdade. Durante anos, a ideia de melhor forma de punir era a da pena mais grave, infelizmente nossos legisladores não estavam atentos às correntes doutrinárias que se posicionam no sentido de que a forma mais propícia a impelir a formação de criminosos é a certeza da pena, e não a sua maior severidade. Talvez seja este o motivo de nosso sistema repressivo se pautar tanto para a pena privativa de liberdade, basta observar que no Código Penal as substituições de pena desta espécie por penas restritivas de direitos se mostram muito escassas, abrangendo poucos casos. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 183 Como se não bastasse, nosso sistema carcerário se mostra falido, existem poucos lugares para tantos detentos, o Estado que tanto se preocupa em prender os criminosos, pouco esforço dispensa para oferecer a eles vida digna durante seu período de sanção. Não é difícil ver nos noticiários notas sobre a superpopulação dos presídios, nem tão pouco sobre o descaso em que se encontram os presos. Nesta situação que se afirma o presente trabalho, mostrar que deve ser exercido a execução da pena respeitando os direitos fundamentais precípuos da pessoa, deve ser garantido, sem sombra de dúvidas, a obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana a aqueles que estão em processo de cumprimento de pena. 2 EXECUÇÃO DA PENA E SUA REGULAMENTAÇÃO Antes de se adentrar ao assunto de execução da pena, necessário se faz tecer alguns comentários sobre as infrações penais e suas sanções previstas por nosso código repressivo. Desta feita, importante classificação nos é dada por Kuehne (2010, p. 12): “O Sistema Punitivo Brasileiro apresenta-se, de certa forma, hierarquizado, posto que as infrações penais são classificadas em 5 (cinco) aspectos distintos, quais sejam: infrações de bagatela ou insignificantes; infrações de menor potencial ofensivo; infrações de médio potencial ofensivo; infrações graves e infrações etiquetadas como hediondas, com hipóteses, neste último caso, assemelhadas, quais sejam: o tráfico ilícito de entorpecentes, a tortura e o terrorismo. ” Com exceção da primeira infração, onde são consideradas não culpáveis, pois, o Direito Penal deve se preocupar com infrações que ofendam ao menos um bem jurídico razoável, as demais classificações, em regra, apresentam cada uma um certo tipo de se executar a pena, algumas de forma mais rigorosa, outras de forma menos severa. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 184 Como exemplo, veja-se os crimes hediondos, estes por serem tidos como mais graves, possuem uma forma mais rigorosa de punição, uma vez que o regime inicial de cumprimento de pena será sempre o fechado, a progressão de regime é mais demorada (2/5 se primário e 3/5 se reincidente), além do fato de não serem atingidos por graça, indulto ou anistia. A Lei que trata de todo o processo de execução penal é a Lei n. 7.210 de 11 de julho de 1984, a qual disciplina a execução em consonância com os direitos do preso, e, acima de tudo, com sua ressocialização. Mencionado dispositivo não apenas regula como será executada a pena, mas, sim, regulamenta todas as etapas desta, como deverão as autoridades públicas agirem em relação aos presos, quais direitos estes possuem, como serão tratados, suas classificações para individualização da pena, suas punições administrativas, a progressão de regime, a oferta de recursos básicos do ser humanos a estes, como por exemplo, educação, assistência religiosa, entre outros. É, pois, e acima de tudo, uma importante fonte de aprendizagem sobre o correto tratamento penitenciário, apresentando, na teoria, perfeita sintonia com os direitos fundamentais, mas o que se vê na prática é totalmente o contrário, apenas se tem notícia da desumana situação prisional e o descaso das autoridades públicas e da sociedade com aqueles que estão em processo de recuperação social. 3 DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA No centro do direito encontra-se o ser humano, o fundamento e o fim de todo o direito é o homem, em qualquer de suas representações, vale dizer, todo o direito é feito pelo homem e para o homem, que constitui o valor mais alto de todo o ordenamento jurídico. O homem é sujeito primário e indefectível do direito, ele é o destinatário final tanto da menor quanto da mais elevada norma jurídica. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 185 Constitui lugar comum a afirmação de que o interesse público ou social deve prevalecer sobre o individual. Mas isso é apenas pensar no homem de forma coletiva. Quando se prioriza um interesse público ou social em detrimento de um interesse individual, supõe-se estar a tutelar, ainda que de forma indireta, o interesse de um número maior de pessoas, ainda que não individualizadas. Assim, seja por que ângulo for, o ser humano está no centro de toda e qualquer reflexão jus-filosófica. Portanto, todos os princípios constitucionais encontram sua razão e origem no homem, fundamento de todo o dever ser. E, justamente por ser fundamento, o homem não constitui, em si, um princípio, pois o fundamento não é um princípio, mas a justificação radical dos próprios princípios. No plano jurídico, como em tudo mais, o homem é a medida de todas as coisas. A finalidade última do direito é a realização dos valores do ser humano. Pode-se, pois, dizer que o direito mais se aproxima de sua finalidade quanto mais considere o homem, em todas as suas dimensões, realizando os valores que lhe são mais caro. Um indivíduo, pelo só fato de integrar o gênero humano, já é detentor de dignidade. Esta é qualidade ou atributo inerente a todos os homens, decorrente da própria condição humana, que o torna credor de igual consideração e respeito por parte de seus semelhantes, analiticamente, define-se a dignidade da pessoa humana como: a qualidade exata e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração. A despeito de todas as suas diferenças físicas, intelectuais e psicológicas, as pessoas são detentoras de igual dignidade. Embora diferentes em sua individualidade, apresentam, pela sua humana condição, as mesmas necessidades e faculdades vitais. A dignidade é composta por um conjunto de direitos existenciais compartilhados por todos os homens, em igual proporção, contesta-se aqui toda e qualquer ideia de que a dignidade humana encontra seu fundamento na autonomia da vontade, decorre da própria condição humana, independe até da capacidade da pessoa de se relacionar, expressar, comunicar, criar, sentir. Dispensa a autoconsciência ou a compreensão da própria existência Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 186 do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada. Dentro dessa linha de pensamento, há que reconhecer que o conjunto de direitos existenciais que compõem a dignidade pertence aos homens em igual proporção. Daí não ser possível falar em maior ou menor dignidade, pelo menos no sentido aqui atribuído à expressão, de conjunto aberto de direitos existenciais. O homem apenas por ser homem não perde a sua dignidade, por mais indigna ou infame que seja a sua conduta. Quando se atribui a alguém a imagem de indigno ou quando se afirmar que alguém não tem ou perdeu a dignidade a expressão está sendo utilizada com sentido diverso, para fazer referência ao conceito desfrutado por alguém no meio social, à sua respeitabilidade. A qualificação de indigno não pode, portanto, ser tomada como referente a alguém privado de direitos existenciais, mas a alguém merecedor de censura, castigo ou pena, em razão de algum comportamento contrário às regras de decoro, moral ou direito. A dignidade pressupõe, portanto, a igualdade entre os seres humanos. Este é um de seus pilares. É da ética que se extrai o princípio de que os homens devem ter os seus interesses igualmente considerados, independentemente de raça, gênero, capacidade ou outras características individuais. 3.1. Igualdade de indivíduos e de interesses O princípio da igual consideração de interesses consiste em atribuir aos interesses alheios peso igual ao que atribuímos ao nosso interesse. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 187 Não por generosidade que consiste em doar, em atender ao interesse alheio, sem o sentimento de que, com isso, se esteja a atender a algum interesse próprio, mas por solidariedade, imposta pela própria vida em sociedade. O solidário é aquele que defende os interesses alheios porque, direta ou indiretamente, eles são interesses próprios. A igual consideração de interesses, é importante frisar, constitui não um princípio de igualdade absoluta, já que esta é impossível alcançar, mas um “princípio mínimo de igualdade”, que pode impor até um tratamento desigual entre as pessoas, se necessário for para a diminuição de uma desigualdade. O outro ponto da dignidade é a liberdade em sua concepção mais ampla, que permite ao homem exercer plenamente os seus direitos existenciais, pois este necessita de liberdade interior, para sonhar, realizar suas escolhas, elaborar planos e projetos de vida, refletir, ponderar, manifestar suas opiniões. Isso não quer dizer que o homem seja livre para ofender a honra alheia, expor a vida privada de outrem ou para incitar abertamente à prática de crime. A liberdade encontra limites em outros direitos integrantes da personalidade humana, tais como a honra, a intimidade, a imagem. Liberdade exige responsabilidade social, porque sem ela constitui simples capricho, o exercício da liberdade em toda a sua plenitude pressupõe a existência de condições materiais mínimas. Não é verdadeiramente livre aquele que não tem acesso à educação e à informação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, ao lazer. 3.2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos Já em seu art.1º, põe em destaque os dois pilares da dignidade humana: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas das outras com espírito de fraternidade. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 188 Sempre que se cuida do tema da dignidade humana é lembrada a afirmação Kantiana de que, o homem de uma maneira geral, todo o ser racional existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade, daí que extraiu o princípio fundamental de sua ética que age de tal maneira que pode usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente, como fim e nunca simplesmente como meio. Tratar o outro como fim significa reconhecer a sua inerente humanidade, pois o homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples meio, mas, pelo contrário, deve ser considerado sempre e em todas as suas ações como fim em si mesmo. A dignidade constitui, um valor incondicional e incomparável, em relação ao qual só a palavra respeito constitui a expressão conveniente da estima que um ser racional lhe deve prestar. A existência de uma dignidade inerte a todo homem não significa, em absoluto, afirmar que ele seja bom por natureza. A motivação principal e fundamental, tanto no homem, como no animal, é o egoísmo, quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem. Diferentemente de Kant, que fundamenta sua ética, outras coisas, é a circunstância de que o homem é capaz de guiar o seu egoísmo pela razão e pelo cálculo, perseguindo seus objetivos de modo planejado. Daí porque os animais podem ser chamados de egoístas, mas apenas o homem pode ser chamado de interesseiro. 4. REALIDADE PRISIONAL BRASILEIRA Há muito tempo que se tem a notícia de que a situação prisional brasileira se apresenta de forma extremamente precária, fato este que vem sendo ignorado pela sociedade, pois ninguém dá aos presídios a importância que deveria. A realidade é que, a forma como são aplicadas as penas, sem o mínimo de respeito aos presos, colocando-os em lugares superlotados (lugares onde caberiam um certo número de presos apresenta-se com o dobro, ou mais), com a falta de alimentação adequada, com a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 189 ausência de apoio educacional, religioso, de saúde, jurídico, tudo isto viola a dignidade da pessoa. Apesar da lei de Execução Penal prever que um de seus objetivos é a ressocialização do preso, tal fato não se vê no dia-a-dia prisional, a repreensão como é aplicada hoje, longe está de conseguir ressocializar alguém. Com efeito, importante a seguinte passagem de uma revista jurídica: “Vários fatores culminaram para que chegássemos a um precário sistema prisional. Entretanto, o abandono, a falta de investimento e o descaso do poder público ao longo dos anos vieram por agravar ainda mais o caos chamado sistema prisional brasileiro. Sendo assim, a prisão que outrora surgiu como um instrumento substitutivo da pena de morte, das torturas públicas e cruéis, atualmente não consegue efetivar o fim correcional da pena, passando a ser apenas uma escola de aperfeiçoamento do crime, além de ter como característica um ambiente degradante e pernicioso, acometido dos mais degenerados vícios, sendo impossível a ressocialização de qualquer ser humano. “15 E não para por aí, as notícias de que a situação prisional se mostra de forma extremamente precária é cotidiana na vida dos jornais, veja-se: “Com pouco mais de seis mil presos, o RN tem déficit de pelo menos 2,1 mil vagas nas suas prisões. Exemplos do quadro estão no Complexo João Chaves, em Natal: os presos “amontoados” da unidade masculina de regime fechado não têm banho de sol; e a unidade semiaberta “mais parece um lixão”, diz o CNJ, que visitou o estado em abril e maio. Na maior unidade do RN, a Penitenciária de Alcaçuz, em Nísia Floresta, há, além da superlotação (705 presos para 15 Sande Nascimento de Arruda. A ineficiência, as mazelas e o descaso presentes nos presídios superlotados e esquecidos pelo poder público. In: << http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/59/sistema-carcerariobrasileiro-a-ineficiencia-as-mazelas-e-o-213019-1.asp >> acessado em 17 de maio de 2015, às 09h34. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 190 420 vagas), esgoto a céu aberto e pavilhões depredados — “não há mais grades de contenção ou que isolem os andares”. Desde 2007, foram 20 mortes violentas de presos na unidade: “quem matar o outro preso com maiores requintes de crueldade ganha prestígio e se torna líder. Houve uma morte (em 2011) em que um preso, que já matou cinco na unidade, esfaqueou outro, decapitou-o e o estripou, espalhando suas vísceras pela cela e ainda comeu parte do fígado da vítima. Uma total selvageria”, afirma o relatório. ”16 Diante destas atrocidades e infelizmente realidades retratadas pelas notícias acima, é de se convir, sem sombra de dúvidas, que os presídios brasileiros se encontram falidos, não proporcionam sequer o mínimo de dignidade aos detentos, tratam estes como seres excluídos, deixou-se de pensar no caráter educativo da pena, de sua finalidade de ressocialização, tudo o que se faz é “jogar” o criminoso em uma sela e literalmente o abandonar. Como se viu, a realidade dos presídios é realmente problemática, como se pode convir que em um estabelecimento público possam existir tantas barbáries, como admitir que aqueles a quem incube cuidar dos detentos são os mesmo que o abandonam? Trata-se de uma triste realidade brasileira, e que deve ser mudada. Conforme brilhantemente exposto por Mauricio Kuehne, não é tarefa que cabe apenas ao Poder Público, mas também à sociedade como um todo: “Não se pense, como erroneamente alguns setores procuram proclamar, que os problemas devem ser resolvidos pelo Judiciário ou pelo Poder Executivo. Ledo engano. Todos os Poderes e toda a sociedade, por seus diversos segmentos deve ser mobilizada, pois o retorno do homem, após o cumprimento da pena, se dará exatamente, dentro da sociedade que temporariamente o alijou. ” 16 Alessandra Duarte e Flávia Ilha. Presídios brasileiros têm cotidiano de atrocidades e barbáries. In: << http://oglobo.globo.com/brasil/presidios-brasileiros-tem-cotidiano-de-atrocidades-barbarie11275493 >> acessado em 17 de maio de 2015 às 09h48. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 191 Com efeito, a fim de mudar esta triste realidade, o Poder Judiciário vem procurando soluções para o problema, tentando, por sua parte, fazer com que reduza o nível de descaso com os condenados nos presídios. O Conselho Nacional de Justiça, nos últimos anos, vem aprovando várias resoluções com o intuito de melhorar a fiscalização sobre os presídios, procurando manter a boa condição e o respeito aos direitos fundamentais do preso. Entres elas, peço licença para citar alguns trechos, que seguem abaixo: “RECOMENDAÇÃO 20, de 16.12.2008 Art. 1º. RECOMENDAR aos Tribunais que: I – Proporcionem aos juízes e servidores das varas com competência em matéria de execução penal, no mínimo anualmente, como atividade de capacitação, a participação em seminários e cursos em matéria criminal, execução criminal e de administração das varas de execução penal, visando à maior integração, à difusão das boas práticas e ao aprimoramento da execução penal; II – Forneçam a estrutura necessária aos juízes para a realização de inspeções a unidades prisionais, em cumprimento às normas contidas no art. 66, inciso VII, da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84); [...] RECOMENDAÇÃO 21, de 16.12.2008. RESOLVE RECOMENDAR aos Tribunais: I – A implementação do termo de cooperação técnica celebrado entre o Conselho Nacional de Justiça e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, com a interveniência da Confederação Nacional da Industria, notadamente com relação à qualificação profissional de presos e egressos do sistema prisional; II – A adoção de programas de recuperação e reinserção social do preso e do egresso do sistema prisional, inclusive com o aproveitamento de mão-de-obra para serviços de apoio administrativo no âmbito da administração do Poder Judiciário, tendo como fundamento o disposto no artigo 24, XIII, da Lei 8.666/93; [...] Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 192 Como visto, o Poder Judiciário está trabalhando para oferecer sua contribuição à recuperação dos presídios brasileiros, implementando medidas que possam diminuir o descaso com os detentos. Contudo, como já falado acima, não é responsabilidade apenas do Poder Judiciário, mas sim de todos os demais Poderes, inclusive a sociedade como um todo, em oferecer meios para a mudança desta triste realidade, pois somente assim haverá realmente a recuperação do criminoso, diminuindo o índice de criminalidade no país. 5 DIREITOS ASSEGURADOS AOS PRESOS O Legislador, principalmente o constituinte, ao prever que poderiam surgir exageros do Estado na aplicação da pena, bem como, de outro lado, poderia haver descaso, garantiu às pessoas em geral direitos considerados fundamentais, que de forma alguma podem ser retirados da pessoa, e outros ditos como protetores da população carcerária. Veja-se a finalidade dos direitos fundamentais, apontadas por Ferreira Filho, citado por MORAIS (2010, p. 30): “A função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). Os direitos fundamentais, amplamente defendido por nossa atual Constituição, prevê um rol exemplificativo de garantias, dispostas em sua maioria no artigo 5º, que devem ser obedecidas, e proporcionados aos cidadãos pelo Estado. Dentre alguns, temos, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, que assegura vida digna, ou seja, que apresente ao menos o mínimo necessário para sua perfeita Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 193 fruição, há também o direito à educação, direito à saúde, à igualdade, direito à imagem, direito à livre manifestação de pensamentos, direito à segurança, direito ao trabalho, direito à livre escolha de religião entre outros. A Constituição Federal assegura ao processado o direito à ampla defesa, ao contraditório, à presunção de inocência, à não autoincriminação, enfim, assegura o devido processo legal, não permitindo que alguém seja privado de seus bens ou de sua liberdade senão em virtude de um processo que siga todos os ditames legais. Por sua vez, ao ser condenado, a pessoa não perde seus direitos fundamentais, e, por consequência, todos devem ser respeitados. É certo que alguns direitos sofrerão restrições em virtude da própria pena ou de seus efeitos, como é o caso do direito de ir e vir, de intimidade, direito de votar, de exercer cargo ou função pública, mas aqueles que não forem atingidos pela pena devem ser propiciados ao preso, pois é de lei, que ao apenado é assegurado todos os direitos não atingidos pela condenação. Desta forma, todos os demais direitos que a pena não restringe devem ser proporcionados aos presos, como o caso do direito de saúde, educação, auxílio moral, direito ao trabalho, direito a ter sua integridade física e moral preservada, direito à alimentação adequada, enfim, mesmo em cumprimento de pena é, por lei, o Estado obrigado a proporcionar vida digna aos Apenados. 6. CONCLUSÃO Pelo todo acima explanado, é de se notar que ainda hoje não houve uma perfeita combinação entre o poder/dever de punir do Estado e o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo apenado. Com efeito, basta lembrar que estão em jogo direitos fundamentais, de um lado o direito à segurança, amplamente almejado pela sociedade, de outro, os próprios direitos Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 194 fundamentais da pessoa humana, que, de igual forma, também são desejados pela comunidade geral. O princípio da dignidade humana, por ser fundamental, e, por via de regra não ser atingido pela condenação, sempre deve ser propiciado ao preso, não é porque a pessoa foi considerada culpada e está durante o processo de cumprimento de pena que deixa de ser considerada humana, e, por consequência, deve ser-lhe proporcionado pelo Estado o respeito à sua dignidade, veja-se importantes palavras de Rogério Greco (2008, p. 9) discorrendo sobre tal princípio: “Uma qualidade irrenunciável e inalienável, que integra a própria condição humana. É algo inerente ao ser humano, um valor que não pode ser suprimido, em virtude da sua própria natureza. Até o mais vil, o homem mais detestável, o criminoso mais frio e cruel, é portador deste valor. “ Desta forma, para que a pena seja executada de forma correta, deve haver uma proporcionalidade entre tais direitos, haja vista ambos serem fundamentais. Assim, deve-se “pesar” um e outro, ora aumentando o respeito a um, ora a outro, mas nunca lhe diminuindo tanto a ponto que cheguem a se extinguir. Os direitos e garantias não são absolutos, mas não podem ser negados ou extintos, devem ser balanceados e adequados à pena. Portanto, é notório que a forma como hoje se aplica a execução penal não é adequada, não respeita o mínimo dos direitos dos presos, todos os dias nos presídios a convivência se dá em meio a atos bárbaros, crimes cruéis, drogas, falta de alimentação, falta de higiene, descaso, tudo isso faz parte do cotidiano dos presídios. É necessário, portanto, uma ampla atuação conjunta de todos os poderes públicos para que seja mudado esta situação, de forma principal a atuação do Poder Executivo, em oferecer maiores verbas públicas aos presídios para que possam assegurar maior dignidade aos detentos. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 195 Contudo, esta não é uma luta isolada dos Poderes, a sociedade como um todo também deve tomar partido nesta luta, é a sociedade quem deve ficar, por sua parte, cobrando atitudes dos Poderes responsáveis. A sociedade não deve excluir os presidiários, tendo-os como pessoas sem importância, afinal, após o período do cumprimento da pena o condenado volta aos seios da sociedade, é nela que continuará sua vida. Assim, somente com a responsabilização social e com o trabalho conjunto dos Poderes de nosso país é que começará a mudar esta triste realidade, somente após criar-se a consciência de que a punição deve ser balanceada com os direitos fundamentais da pessoa, principalmente o direito da dignidade da pessoa humana, é que a execução da pena será de forma digna e proporcionará maiores e melhores resultados. REFERÊNCIAS MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 25ª. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Atlas, 2010. KUEHNE, Maurício. Lei de Execução Penal: anotada. Curitiba: Juruá, 2010. GRECO, Rogério. Código Penal: comentado. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret. 2003. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. V. 1. AVENA, Norberto. Execução Penal: esquematizado. 1. ed. São Paulo: Forense, 2014. Referencias - Notícias DUARTE Alessandra; ILHA, Flávia. Presídios brasileiros têm cotidiano de atrocidades e barbáries. In: << http://oglobo.globo.com/brasil/presidios-brasileiros-tem-cotidiano-deatrocidades-barbarie-11275493 >> acessado em 17 de maio de 2015 às 09h48. ARRUDA, Sande Nascimento de. A ineficiência, as mazelas e o descaso presentes nos presídios superlotados e esquecidos pelo poder público. In: << Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 196 http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/59/sistema-carcerariobrasileiro-a-ineficiencia-as-mazelas-e-o-213019-1.asp >> acessado em 17 de maio de 2015, às 09h34 Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 197 O FENÔMENO DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS André de Oliveira da Cruz Waldemar de Moura Bueno Neto Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti. 1 INTRODUÇÃO Nesse artigo apresentar-se-á a sociedade não somente como parte de um sistema positivo jurídico, mas como um fenômeno a ser analisado, aplicando a esse a pergunta filosófica por excelência; Quid Est? Buscando, assim, extrair sua essência, criando uma relação entre outras áreas do saber para usá-las como fonte do direito. Após analisado o problema em lato sensu, desde a sua evolução histórica, será então exposto quais seriam as atitudes ideais do ordenamento jurídico frente a esse fenômeno - as sociedades anônimas. 2 HISTÓRIA DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS No decurso do tempo é possível delinear três fases pelas quais a sociedade anônima passou: a de privilégio, autorização e liberdade. A nominada “fase de privilégio” diz respeito à etapa em que as sociedades anônimas eram constituídas como um privilégio concedido pelo governo - Estado - a determinadas pessoas. Era, na verdade, como que uma descentralização do poder do Estado. Essas primeiras sociedades anônimas surgiram à época das grandes navegações, em meados do século XVII; e um grande exemplo é a Companhia das Índias Ocidentais constituída nos países baixos em 1621, sendo que essa, inclusive, teve grande participação na história colonial pátria, tal como relata Rubens Requião: Seu escopo (diz em relação à Companhia das Índias Ocidentais) era patrocinar a conquista do Brasil, tanto que enviou expedição armada, Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 198 ocupando o Nordeste e nomeando seu administrador o Príncipe de Nassau, conhecido personagem histórico. (REQUIÃO: 2000) Nota-se, portanto, que a supracitada companhia tinha poderes políticos, privilégio de um Estado - em lato sensu, sendo capaz de nomear um Príncipe para governar a referida área. No caso específico, os poderes foram delegados pelo soberano Holandês por meio de uma carta real, a qual outorgava à Companhia o poder de efetuar pactos e alianças, de construir fortalezas, de armar exércitos, entre outros poderes, de modo a proteger o local governado. Fica claro, portanto, que esse privilégio é uma forma de descentralização do poder do governante, concedendo a uma companhia privada o poder de praticar atos que, até então, eram uma prerrogativa real. Com o advento da revolução francesa e, logo após, a ascensão de Napoleão I; foi, em 1807, através do Code de Commerce (código comercial) em seu artigo 37, declarado que as sociedades anônimas não poderiam existir sem a autorização do governo. Chega-se, então, à segunda fase das sociedades anônimas. O código revolucionário acima citado institui o sistema autorizativo; e, levando em conta a influência que as codificações napoleônicas tiveram em vários outros países, ela é, sem dúvida, a precursora dessa segunda fase. Nessa fase destaca-se a atuação do estado não mais como outorgante, que concede a constituição dessa sociedade por meio de privilégios reais, mas agora como um regulador, intervindo na sua formação, i.e, podendo aceitar ou não seu nascimento. Em 1862, século XIX, a França e a Inglaterra firmaram um acordo que autorizava a Inglaterra a ter suas sociedades funcionando livremente em território francês, entretanto, na Inglaterra o regime era liberal, i.e, não havia intervencionismo estatal. Lá as sociedades se formavam e operavam sem o controle do Estado. Visto que as sociedades anônimas de origem inglesa tinham o privilégio de não serem controladas pelo Estado, e que na França atuariam de forma livre, conforme disposto em convenção - levando em conta que as sociedades francesas viviam o regime autorizativo - as sociedades inglesas tinham muito Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 199 mais vantagens no território francês que os próprios franceses. A situação supracitada levou os empresários franceses a formarem suas companhias na Inglaterra para que, voltando à França, tivessem plena liberdade, tal qual as inglesas por natureza a tinham. Essa reação foi espontânea, foi a única possível no momento para poder garantir o equilíbrio econômico. A França, levando em conta o “exílio” de suas sociedades empresárias e os reclamos das mesmas - pedindo para serem livres das amarras estatais, em 1863 promulgou uma lei de transição, na qual as sociedades anônimas ganharam liberdade parcial, visto que a lei só concedia tal liberdade às sociedades que o capital não ultrapassasse vinte milhões de francos. O período de liberdade plena veio, para os franceses, em 1867, com a promulgação de uma lei que concedeu plena liberdade para as sociedades comerciais, incluem-se as sociedades anônimas. Plena liberdade de constituição e de atuação, esse é o período de liberdade das sociedades anônimas, é a terceira etapa do desenvolvimento dessas mesmas. No Brasil as sociedades anônimas se libertaram por meio do Decreto n°8.821 de 30 de dezembro de 1882. Eis, portanto, as três etapas pelas quais passou a sociedade anônima. É interessante notar que, embora tecnicamente esteja-se vivendo hoje o período de plena liberdade, ainda ocorre de essas sociedades serem limitadas pela legislação estatal, tal como ocorre no Brasil, isto porque o Estado moderno tem uma tendência socializante; isto ocorre, principalmente, nos países subdesenvolvidos. Portanto, embora seja possível traçar uma linha histórica do desenvolvimento das sociedades anônimas em etapas, nota-se que ela não fica vinculada a tal evolução, pois, como dito anteriormente, as sociedades anônimas, no Estado moderno, encontram as mesmas dificuldades que encontravam nas codificações revolucionárias de Napoleão, e isto ao mesmo tempo em que existem sociedades que são concedidas por meio de privilégio Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 200 estatal - tal qual o caso da Companhia das Índias Ocidentais - (exemplos: Petrobrás S.A e Eletrobrás S.A), e isso ocorre em um período que, segundo a história, deveria ser de plena liberdade. 3 NATUREZA A análise das sociedades anônimas não pode se limitar a uma análise positiva legalista - mas deve ser tão ampla quanto for possível. Toda a norma jurídica deve ter o seu respaldo na realidade, i.e, nos fatos, portanto, ao se regulamentar determinado assunto o legislador deverá buscar auxílio em outras ciências correlativas. Portanto, existe uma relação intrínseca entre a ciência econômica e o direito comercial, que estuda as sociedades anônimas do ponto de vista jurídico, sendo que o direito comercial é, em parte, dependente da ciência comercial. O doutrinador “Carvalho de Mendonça” explicou magistralmente a relação do direito comercial e as ciências econômicas: Sabemos como nos tempos atuais se desenvolve o crédito. A maior parte da riqueza acha-se concentrada em títulos entregues à circulação. Como será possível fixar a noção científica dos títulos e documentos representativos dessa riqueza, como letras de câmbio, títulos ao portador, cheques, conhecimentos de depósito e warrants, debêntures, ações, de companhias e etc., sem o estudo da teoria econômica do crédito? Como explicar a estrutura e a finalidade das sociedades e companhias, especialmente cooperativas hoje tão em voga, sem estudar previamente as relações entre o capital e o trabalho? Cego ficará quem se limitar ao estudo material dos textos das leis comerciais sem a luz da economia política. O direito vive e floresce com a evolução desta ciência, e o comercial, sobretudo, não se compreende sem ela, sua base fundamental (CARVALHO DE MENDONÇA: 1953). As sociedades anônimas - anônima, pois os seus sócios não são claramente dispostos - são pessoas jurídicas de direito privado, sendo um poderoso mecanismo de captação de recursos com a finalidade de formar um grande capital; usando-o para a exploração de atividade econômica. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 201 Esse tipo de sociedade tem o seu capital dividido em ações que são vendidas ao público para a captação de recursos, e tem como chamariz a sua responsabilidade limitada, por meio de proteção do ordenamento jurídico ao valor da emissão das ações, i.e, cada acionista responderá apenas à parcela equivalente ao valor de suas ações (em nossa legislação se encontra tal proteção no artigo 1° da lei 6.404 de 1976). Isso acaba por tornar a sociedade anônima uma espécie popular de poupança, extremamente eficaz ao capitalismo, pois o capitalismo nada é sem a existência da poupança, tal como explica Alceu Garcia em um artigo de sua autoria: A pobreza é o estado natural da humanidade. Para sobreviver o homem precisa satisfazer suas necessidades e desejos, i.e, precisa consumir. Para consumir é necessário antes produzir, e a produções pressupõe meios de produção. Originariamente a natureza põe à nossa disposição apenas dois meios, ou fatores, de produção: o trabalho e a terra. O esforço humano combina e desloca os recursos naturais de modo a torná-los aptos para o consumo. Para aumentar a produtividade do trabalho, e ipso facto o consumo, contudo, um terceiro fator de produção é fundamental: o capital. A condição sine qua non para a existência de capital é a poupança, ou seja, a restrição do consumo corrente, e investimento, isto é, o posterior emprego do trabalho e terra (e tempo) economizados na fabricação de ferramentas que por sua vez se traduzirão em maior consumo futuro (GARCIA: 2002). Com essa grande capacidade de produzir poupança a Sociedade anônima elevou o capitalismo ao que ele é hoje, pois sem ela não seria possível o acumulo de capital suficiente para, por exemplo, promover a revolução industrial. Em vista a isso a sociedade anônima se tornou a representação mesma do poder econômico. E, em vista de todo este poder acumulado, ela tem hoje extrema influência, e suscita preocupação em vários setores - juristas, economistas, teólogos e etc., pois, dada a sua enorme importância, a sua gerência tem grande impacto na política e na sociedade em geral. A falência de uma grande sociedade pode levar até mesmo um estado à falência e a uma grande crise econômica cujo tamanho será relativo ao tamanho e importância que essa Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 202 sociedade possui. E desse aspecto surge discussões a respeito do intervencionismo estatal ou liberalismo econômico. Especialmente no Brasil, vemos um quadro legal em que o Estado tem amplos controles sobre a economia, por meio de agências reguladoras e outras políticas econômicas. 4 ASPECTO JURÍDICO Para que a poupança de capital de uma sociedade anônima seja eficaz é necessário que haja segurança jurídica capaz de fornecer àqueles que poupam, através da compra de ações, a proteção do ordenamento jurídico. Como fundamentos sine qua non para poupança, é necessário: a garantia à propriedade privada; estabilidade jurídica e livre mercado; e a propensão individual para poupar. Portanto, cabe ao ordenamento jurídico a proteção do instituto da propriedade privada, pois, sem a existência dessa ninguém se verá disposto a poupar, tendo em vista que seu capital pode ser constantemente roubado por bandidos ou pelo próprio Estado. Nesse sentido disse Alceu Garcia o seguinte: A estabilidade das normas jurídicas e o respeito ao direito de propriedade criam um clima favorável, sobretudo para investimentos pesados e de retorno a longo prazo, minimizando-se os riscos políticos e jurídicos, pois para os empresários os riscos de mercado já são uma preocupação suficiente. A cooperação voluntária e mutuamente benéfica vigente no livre mercado assegura a soberania dos consumidores, fazendo com que a poupança formada seja investida em linhas de produção que resultem em bens de consumo desejado pelos “soberanos”, segundo suas escalas de valores e a utilidade que atribuem aos bens e serviços. Os empresários, por não terem meios de forçar os consumidores a adquirirem seus produtos, não têm alternativa senão combinarem os fatores de produção de maneira a satisfazer a demanda futura estimada a um dado preço, correndo os riscos de falhas de previsão (GARCIA: 2002). Como foi visto acima a atuação do direito deve ser no sentido de proteger a Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 203 propriedade privada, garantia de livre mercado - sem embaraços estatais, para que isso desperte o desejo, propensão, de poupar. 4.1 NO BRASIL No Brasil as Sociedades Anônimas estão sob a égide da lei n° 6.404 de 1976, que dispõe sobre a organização, formação, fiscalização e outros aspectos relativos às S.A, e quem se encarrega de tal fiscalização e controle é a C.V.M - Comissão de Valores Mobiliários - que é uma autarquia federal destinada ao controle do mercado de ações. Como fora citado no final da parte histórica a atual tendência em relação à constituição das sociedades anônimas é de voltarem para os dois primeiros estágios privilégio e autorização - e no Brasil isso não é diferente, nesse reina uma tendência socializante e intervencionista, de cunho Keynesiano (Keynesiano diz respeito ao famigerado Estado do Bem Estar Social). Quanto à constituição de sociedade por ações é importante destacar que ela pode ser de dois tipos: capital aberto e capital fechado. A de capital fechado não está sujeita às mesmas condições burocráticas para sua formação, visto que suas ações são vendidas somente em um círculo fechado. Interessa aqui analisar-se as sociedades abertas (compreende as sociedades que vendem as suas ações ao público por meio da bolsa de valores e mercado de balcão) que necessitam passar por um processo moroso para sua constituição. Em vista do grande poder econômico que uma sociedade anônima acumula, o Estado, de tendência Keynesiana, cria uma série de regras burocráticas para que a sociedade anônima atue. Segundo o artigo 116 da lei das Sociedades Anônimas (Lei n° 6404/76), que trata a respeito do acionista controlador - administrador, o controlador deve usar o poder a fim de, além de realizar aos interesses internos da sociedade, servir a interesses externos ao da sociedade, caracterizando isso o princípio da função social da propriedade, não sendo nada mais que uma espécie de gerência do Estado sobre a propriedade privada, que não é Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 204 absoluta, a fim de garantir o bem estar social acima citado. O doutrinador Marcelo M Bertoldi disse o seguinte a respeito do artigo 116: Entre os primeiros encontramos tudo aquilo que traga satisfação dos participantes da empresa, tais como os acionistas, os titulares de valores mobiliários outros, seus empregados e administradores. No que diz respeito aos interesses extra-empresariais, são eles relacionados à comunidade da qual a sociedade faz parte. Essas duas ordens de interesses ou objetivos acabam por consagrar o primado da função social da propriedade, abandonando a “teoria do exclusivo atendimento dos interesses acionários e, até mesmo, dos interesses intra-empresariais em seu conjunto, como objetivo da atuação de controladores e administradores” (BERTOLDI: 2009). Portanto, como foi exposto pelo doutrinador agora citado, os interesses do empresário devem-se subjugar à nebulosa função social da propriedade, isso, por sua vez, causa notórios embaraços à atuação da vontade empresarial, ou seja, aos seus interesses econômicos. Ora, há quem diga que dar ao empresário o poder absoluto de controle da sociedade pode colocar em risco a comunidade na qual ele está inserida ou à comunidade em geral, pois uma má administração pode levar aquela sociedade à falência e, por consequente, a uma crise econômica local ou nacional. E isso - em relação à má administração - é verdade, porém, não é o Estado a entidade indicada à tutelar essas sociedades, a sua atuação - no sentido de proteger a função social da propriedade - em vez de ajudar a comunidade dependente dessa sociedade acaba por ofendê-la, isto, pois, a sua atuação nesse sentido acaba por ferir o princípio da propriedade privada e o do livre mercado (livre ação) que por sua vez inibi a possibilidade de existência de um clima favorável ao empreendedorismo, tal como relata Alceu Garcia citado anteriormente. No caso acima citado se a C.V.M entendesse que houve uma má administração no sentido de ferir a função social da propriedade, poderá ela impor sanções administrativas e até mesmo suspender o controlador do comando da sociedade. Tal como relata o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 205 doutrinador Marcelo Bertoldi: Aquela autarquia exerce efetivo controle externo da sociedade, com vistas a reprimir o abuso de poder de controle, podendo, inclusive, suspender o controlador de suas atividades na companhia. As sanções aplicáveis pela C.V.M às sociedades anônimas se encontram dispostas na Lei 6.385, de 7 de Dezembro de 1976, especialmente nos seus artigos 9 e 11. Toda essa atuação Estatal, embora tenha as melhores intenções, acabam por inibir a livre iniciativa, e, por conseqüente, a existência de um mercado saudável e de sociedades saudáveis. Ludwig Von Mises, um dos mais brilhantes economistas que já passaram por este mundo, pertencente à escola de economia austríaca, nos deixou inúmeros livros tratando do livre mercado e da economia socialista, dentre suas obras é interessante destacar a seguinte lição em relação ao controlador da sociedade: É do interesse do administrador sério, que deseja uma carreira sólida — e que não está meramente empenhado em obter um lucro passageiro —, representar os interesses de seus acionistas em todas as situações e evitar manipulações que possam trazer-lhes prejuízos. Logo, o sucesso de uma empresa não depende meramente da adoção de motivos éticos. Os interesses econômicos são também essenciais (VON MISES: 2012). Portanto, o tão vituperado interesse econômico é, em si, um fator importantíssimo para o bom desenvolvimento da economia e o desenvolvimento da nação, o oposto do simulacro que é apresentado nos centros acadêmicos brasileiros e pelo mundo a fora. Não basta somente haver moral e ética nas relações econômicas, mas é importante também o interesse econômico, que age como combustível para que tal desenvolvimento ascenda. 5 CONCLUSÃO Após analisada toda a sua questão histórica e as suas três fases notar-se-á que a época de ouro das Sociedades Anônimas é a época em que sua formação era livre, sem Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 206 embaraços, isso, pois, como foi visto nesse artigo, a Sociedade Anônima é uma espécie de poupança, e, para que haja poupança de forma saudável é necessário cumprir aqueles requisitos que em um sistema de autorização ou de privilégio não seriam alcançados. Frente a isso o ordenamento jurídico deve ser capaz de proporcionar segurança jurídica aos empreendedores sem causar embaraços à livre ação, pois, se o Estado intervir diretamente nas decisões dos administradores acaba por retira-lhes a discricionariedade de atuação, a sua capacidade de ser livre enquanto controlador de uma sociedade anônima e, por consequente, o interesse econômico tão vital para o bom desenvolvimento econômico de uma nação. BIBLIOGRAFIA REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial - Volume 2. São paulo: Saraiva, 2000. MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Direito Comercial Brasileiro - Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1953. BERTOLDI, Marcelo M. Curso Avançado de Direito Comercial / Marcelo M. Bertoldi, Marcia Carla Pereira Ribeiro. -5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. VON MISES, Ludwig. O Cálculo Econômico Sob o Socialismo. Brasil: Instituto Ludwig Von Mises, 2012. GARCIA, Alceu. Estado Poupança e Miséria. Abr. 2002. Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/convidados/0144.htm. Acesso em: 20 de Maio de 2015. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 207 APLICAÇÃO DA PENA DE MORTE NO BRASIL Aparecido Arnaldo da Silva Flavio de Jesus Maciel Paulo Donizeti Jansen Romaniuk Sâmela Marcielle Sene Bueno Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade de Educação, Administração e Tecnologia de Ibaiti 1 INTRODUÇÃO Muito embora na antiguidade para que aqueles que se sentiam ofendidos sendo esses os sujeitos passivos no crime ou parentes, aplicava-se a pena de morte, ou aplicar o mesmo castigo ao sujeito ativo para que houvesse um sentimento de que se fez justiça. Vislumbram-se no código de Hamurabe por volta de 1780 AC, no reino de Babilônia, os primeiros indícios da Lei de Talião, conhecida como “olho por olho, dente por dente”, onde o autor do delito deveria sofrer castigo idêntico ao crime por este praticado. Muito embora para nossa época seja computada como esdrúxula, absurda, para os tempos em que foi utilizada parecia a mais adequada. Houve uma mudança de pensamento na maioria dos países após o início da implantação das Constituições, notadamente após a eclosão da Revolução Francesa, que pregava a “liberdade, igualdade e fraternidade”, passou-se a valorizar os direitos humanos. 2 A PENA DE MORTE NA ANTIGUIDADE Já na Grécia antiga Platão falava em pena de morte (... em parte porque aí se lida com assuntos sagrados e em parte por que são as sedes dos deuses sagrados; e nesses serão realizados apropriadamente os julgamentos por homicídio e de todos os crimes passíveis de serem punidos com a morte...). As penas a serem aplicadas em tais casos serão a morte, a prisão, os açoites, determinadas posturas humilhantes, sentado, de pé, exposto à porta de um templo nas fronteiras do território, ou multas em dinheiro às quais já nos referimos antes. Nas situações em que a pena Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 208 é a morte, os juízes serão os guardiões das leis associados à corte dos magistrados do último ano, selecionados pelo mérito. (Platão, 1999, p 359). Verifica-se que a pena de morte era uma variante das penas impostas, sendo todas elas de certo modo degradantes e humilhantes, buscava não fazer o infrator sentir-se punido, mas sim mostrar a sociedade que ao cometer uma infração seriam penitenciados de maneira exemplar. Frente à pressão exercida por parte da sociedade para implantar a pena de morte no Brasil, esse seria um retrocesso aos ganhos relativos aos direitos humanos, entretanto não se pode deixar que a opressão imposta pelo crime, seja uma determinante dos rumos tomados na nação, deve-se buscar para tanto alívios ainda que amargos, mas, sobremaneira constitucionais. Não se pode pôr em discussão o problema da licitude ou oportunidade da pena de morte sem levar em conta o fato de que não se trata do único remédio para o delito e que existem penas alternativas. (BOBBIO, 1909, p. 173). Desta forma, deve-se primeiramente buscar a função social da pena, com base na dignidade da pessoa humana, respeitando os princípios constitucionais e penais que regem e protegem a sociedade, sempre a aplicando de forma gradativa e proporcional, pois se feita indiscriminadamente chegar-se-á o dia em que nenhuma sanção será mais eficaz para o controle social. 3 PRINCÍPIO DA PENA E A CONSTITUCIONALIDADE DA PENA DE MORTE Para discorrer sobre a mais severa das penas, a de morte, é necessário primeiramente entender a função e a aplicabilidade. Conforme o Código Penal Brasileiro, em seu art. 59: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário o suficiente para reprovação e prevenção do crime. (grifo nosso). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 209 Em meias palavras, pena é uma espécie de sanção dada ao cometimento de condutas delituosas que tem como função primeiramente de reprovar e prevenir novas condutas, inibir o corpo social pelo grau de severidade imposta, e reeducar o condenado evitando a reincidência. Capez assim define o conceito de pena: [...] sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinquente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade. (CAPEZ, 2011, p. 386) Para melhor compreensão da finalidade da aplicabilidade a pena apresenta três teorias: a) Teoria absoluta ou da retribuição: cuja funcionalidade é a punição do agente que comete a infração penal. A pena, assim nada mais é que a retribuição do mal injusto, por outro mal justo, não garantindo uma finalidade socialmente útil. b) Teoria relativa, finalista, utilitária ou da prevenção: a pena parte de uma premissa prática e imediata prevenindo o crime de forma especial ou geral. A prevenção é especial quando tem por objeto a readaptação e adequação do egresso a impedir novas práticas criminosas e de prevenção geral quando atinge o corpo social, assim as pessoas não cometem crimes pelo medo da punição. - Prevenção geral: Negativa – [...]. A pena aplicada ao autor da infração penal tende a refletir junto à sociedade, evitando-se, assim, que as demais pessoas, que se encontram com os olhos voltados na condenação de um de seus pares, reflitam antes de praticar a infração penal; Positiva – [...] infundir, na consciência geral, a necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito, promovendo a integração social. - Prevenção especial: Negativa – neutraliza-se aquele que praticou a infração penal, com sua segregação no cárcere; Positiva – a finalidade da pena é unicamente em fazer com que o autor desista de cometer futuros delitos. Tem um caráter eminentemente ressocializador. (Greco, 2011, p.126). Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 210 c) Teoria mista, eclética, intermediária ou conciliatória: nada mais é que a função dupla da pena em primeiramente prevenir o crime e secundariamente em punir o delito. Afirma Greco (2011, p. 127) que: Pela redação do artigo 59, do CP, podemos concluir que adotou-se, no Brasil, a TEORIA MISTA ou UNIFICADORA DA PENA, visto que há a conjugação da necessidade de reprovação com a prevenção do crime, unificando as teorias absoluta e relativa da pena. Contudo, a pena deve primordialmente respeitar os princípios fundamentais, quer sejam: o princípio da legalidade ou da reserva legal que prediz que não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia cominação legal; e o princípio da anterioridade onde a lei não retroagirá, salvo em benefício do réu. Assim, apresentados os fundamentos acima, previamente nota-se que a adoção da pena de morte torna-se não tão somente inconstitucional, mas também incompatível com os princípios apresentados dada que a premissa da pena é a ressocialização do apenado. No Brasil a pena de morte ou pena capital que nada mais é que uma sentença aplicada pelo poder judiciário que consiste em retirar legalmente a vida de uma pessoa julgada culpada de ter cometido um crime considerado pelo Estado como suficientemente grave e justo de ser punido com a morte, é admitida tão somente em caso de guerra declarada e sua execução dar-se-á mediante fuzilamento, em outras circunstâncias é taxada como inconstitucional devido ao princípio do não retrocesso dos direitos e garantias já alcançados, assim nos reza a Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 5º Todos são iguais perante a lei [...] XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; [...] Nesta linha, existe o princípio da humanidade que veda a tortura e o tratamento desumano ou degradante a qualquer pessoa, proibindo então a pena capital. Salientando-se ainda o direito à vida: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 211 [...] é o direito de não ter interrompido o processo vital, senão pela morte espontânea e inevitável. A Constituição tutela a vida como o mais importante bem do homem, proibindo a pena de morte, salvo em casos de guerra declarada. A proibição à pena capital constitui limitação material explícita ao poder de emenda (cláusula pétrea — núcleo constitucional intangível), nos termos do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal. Se a Constituição proíbe a imposição da pena de morte ao condenado, mesmo após o devido processo legal, o Estado deve garantir a vida do preso durante a execução da pena. (CAPEZ, 2011, p. 421-422) Aprofundando um pouco mais, indica Greco (2011, p. 22): A vida é um dos direitos fundamentais defendidos pelo Estado e se encontra protegido contra proposta de Emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Existem alguns autores que não admitem que a pena de morte seja restabelecida sequer por meio de uma nova ordem constitucional. De acordo com estes autores, embora o poder constituinte originário não encontre limites no poder constituinte anterior, em matéria de direitos humanos, não se admitem regressões. Na realidade este instituto constitucional proibitivo protege mais o Estado do que a própria sociedade, entretanto resguardando a nação estará abrigando os cidadãos e garantindo a liberdade de cada um, assim nos indicou Beccaria (1764, p.52): A morte de um cidadão apenas pode ser considerada necessária por duas razões: nos instantes confusos em que a nação está na dependência de recuperar ou perder sua liberdade, nos períodos de confusão quando se substituem as leis pela desordem; e quando um cidadão, embora sem a sua liberdade, pode ainda, graças às suas relações e ao seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo a sua existência acarretar uma revolução perigosa no governo estabelecido. Nota-se que este tipo de punição deve ser aplicado apenas em situações em que os direitos da coletividade possam estar correndo riscos, mas não quando se tratar do direito de apenas um indivíduo ou de certa classe, sendo que assim apenas estaria caracterizada uma vingança pelo delito cometido e não uma situação de proteção social. Porém, o autor afirma que em períodos normais, quando o governo esteja aceito por toda nação e o Estado bem Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 212 defendido externa e internamente, a morte deverá ser aplicada quando for o único meio que possa impedir novos crimes. 4 RETROCESSO NA HISTÓRIA EVOLUTIVA DO DIREITO A pena de morte leva a uma proximidade extrema com os momentos mais sangrentos da história. Tudo o que a evolução do Direito conquistou, é tratado de forma desprezível. Nunes (2013, p. 343) destaca que: O Direito postula pela vida, luta pela sua manutenção e dignidade. Onde não há vida não há Direito. Foram séculos de evolução – bem verdade que aos trancos e solavancos – para que o Direito se fosse depurando de mazelas que não lhe poderiam ser inerentes. Foram extirpados os castigos físicos, a escravidão, a tortura, o racismo, dentre outras iniquidades. Logo, [...] Direito é, desde logo, a priori conhecer certos princípios, e dentre estes está o da necessária garantia da vida humana, como condição básica da própria existência social. A vida é um princípio de extrema importância ao Direito, sendo ela um bem maior e a função essencial do Direito é protegê-la. Acabar com a vida de outrem é um ato de bestialidade, é um desrespeito a todos os princípios de direitos humanos, jogando na latrina tudo aquilo que contribuiu para o Direito ser o que é hoje. O Estado que apóia este retrocesso na evolução do Direito não faz nenhum bem à sociedade, ele simplesmente torna-se equiparado ao assassino, ele acaba com a vida de um indivíduo. Nunes (2013, p. 349) ressalta que, “Estado e homicida passam a se equivaler. O Direito fica rebaixado ao nível do assassino. Ambos passam a ter, como ponto comum, o desprezo pela vida humana”. O Direito e o Estado, que tem como função serem bons modelos para a sociedade, estimulam a ira, a raiva a vingança e a insensatez ao se efetivar a pena de morte. Há situações em que esta pena é praticada, onde o indivíduo que recebê-la, além de estar prestes a perder o seu bem maior que é a vida, recebe como um ato de covardia do Estado, antes de sua execução, tratamentos de natureza humilhante, como por exemplo, o condenado ter seus olhos vendados, ser amarrado e receber mais de dez tiros na sua execução. Nunes (2013, p. 349) argumenta que, “A pena de morte é a instituição da vingança pública, é pura irracionalidade”. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 213 O Estado, sendo garantidor dos direitos da sociedade, jamais deve trazer um ananismo aos direitos adquiridos. Pena de morte: praticá-la é constituir o Código de Hamurabi aos dias atuais, com a Lei de Talião (olho por olho e dente por dente). 5 A INEFICÁCIA DA APLICAÇÃO DA PENA DE MORTE A história da humanidade demonstra a falência de tal punição, sendo que as experiências realizadas por todos os séculos não conseguiram alcançar o objetivo desejado, que seria a diminuição da criminalidade. Afirma Beccaria (1764, p. 52) que: [...] essa verdade está assente no exemplo dos romanos e nos vinte anos em que reinou a imperatriz da Rússia, a benfeitora Isabel, que forneceu aos chefes dos povos uma lição mais ilustre do que todas as brilhantes conquistas que a nação apenas alcança ao preço do sangue de seus filhos. Modernamente nos indica Zaffaroni (2003, p. 118-119): No plano político e teórico essa teoria permite legitimar a imposição de penas sempre mais graves, por que não se consegue nunca a dissuasão total, como demonstra a circunstância de que os crimes continuam sendo praticados. Assim, o destino final desse caminho é a pena de morte para todos os delitos, mas não por que com ela obtenha a dissuasão, mas sim por que esgota o catálogo de males crescentes com os quais se pode ameaçar uma pessoa. A aplicação de tal penalidade demonstrará a falência do direito, o qual serve para regular a vida em sociedade, e do sistema, principalmente no tocante à organização do sistema prisional brasileiro que tem por finalidade a reintegração do preso, após cumprimento da punição, em meio à sociedade de forma efetiva, aceitando as regras e respeitando o convívio de forma harmônica. O cientista político Maurício Santoro declarou em artigo publicado pela revista eletrônica superinteressante que: “Em todos os lugares onde a pena de morte é aplicada, inclusive em democracias como os EUA e a Indonésia, ela é usada de maneira desproporcional contra minorias étnicas e religiosas, pobres e grupos marginalizados, com poucos recursos econômicos e sem boas conexões políticas”. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 214 Afirmou ainda que: “Não existem soluções mágicas para resolver problemas ligados aos crimes. Elas passam pela construção de relações de confiança entre Estado e sociedade, por policiais bem treinados e equipados, um sistema judiciário eficaz”. No mesmo artigo afirmou o jornalista Carlos Marchi que: “As leis e os sistemas judiciários são estruturados para proteger e favorecer os poderosos. Um pouco mais num país, um pouco menos num outro, desde que o mundo é mundo”. O principal problema encontrado é a manutenção de um sistema que consiga efetivamente realizar sua função e readequar o infrator para a vida social, mas infelizmente não é o que se nota em nossa nação, primordialmente devido aos grandes escândalos de corrupções envolvendo pessoas do alto escalão político, que vendem sua honra e desviam quantidades exorbitantes de verbas públicas que poderiam ser destinadas a resolução dos problemas carcerários e da educação. Muitas vezes são estes sujeitos que estão incumbidos da elaboração de nossas leis que se tem que respeitar e que colocam enorme distância entre as classes sociais. Beccaria (1967, p. 55) narra sobre o assunto em sua época “[...] Essas leis foram feitas por quem? Homens opulentos e donos do poder, que nunca deram ao trabalho de visitar a miserável cabana do pobre, que não viram dividir um pão grosseiro entre os filhos famintos e a mãe aflita”. É bem verdade que na época de Beccaria o regime político era tirânico e as injustiças eram bem maiores, mas vive-se atualmente uma democracia aparente, que na realidade se assemelha em muito com a monarquia, pois filhos de deputados federais se transformam em deputados estaduais, amigos de políticos assumem função de confiança, como na antiga nobreza. Existe uma troca de comando, entretanto os grupos e os nomes são sempre os mesmos. Há que se analisar que a pena de morte não deveria nem sequer ser matéria de discussão do povo, mas sim de quem está no poder e recebe para legislar e administrar, principalmente por se tratar de uma sanção irreversível, ninguém pode devolver a vida extinguida, reparando o erro cometido durante julgamentos de uma justiça precária e cheia de falhas. Nunes (2013, p. 350) destaca que: Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 215 O senso comum não é apto para pensar técnica, ética e racionalmente essa questão [...] Para reforçar esse aspecto de que há questões que não podem ser submetidas a plebiscito, cite-se o exemplo dado por Evandro Lins e Silva: “Ninguém indagará se o povo quer ou não quer determinado tipo de vacina, cuja aplicação a ciência demonstrou ser a maneira de prevenir doenças e epidemias”. Assim afirma também Greco (2011, p. 22): A população, revoltada com o aumento da criminalidade, entende que tais penas poderiam ser adotadas para que se tentasse inibir a prática de infrações penais graves. Estudos indicam, contudo, que a aplicação da pena de morte ou de caráter perpétuo não parece ter efeito algum sobre as taxas de homicídios. Na realidade acontece uma inércia do Estado em dar uma resposta condizente para a sociedade, fazendo o sistema realmente funcionar e punindo de forma severa àqueles que atentam contra as liberdades do povo. O maior problema encontrado é que normalmente quem está no poder acaba por esquecer de que é um representante do povo, e desta forma deve tomar decisões como o real detentor do poder quer e não baseado em troca de favores e apoio político. O legislador deve observar inclusive que uma das funções do princípio da legalidade é proibir a criação de crimes e penas pelos costumes, sendo que somente mediante a elaboração e promulgação de uma lei é que se pode criá-los. Assim, não se podem invocar normas consuetudinárias para fundamentar uma punição ou agravar a pena, portanto a vontade do povo deve ser analisada, mas não é o pressuposto primordial para a criação de normas penais. Nota-se ainda, que mesmo punições severas não realizam o controle social, diminuindo a criminalidade. Muitos seres humanos não cometem brutalidades por respeitarem o próximo e seguirem uma religião e uma doutrina que busca a felicidade e o bem do seu semelhante. 6 O CONTROLE SOCIAL ATRAVÉS DA RELIGIÃO Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 216 Religião: principal meio de controle social. É o conjunto de sistemas de crenças que estipula o que cada um deve fazer e quais atitudes devem tomar para através da espiritualidade e dos valores morais sempre fazer o bem para o próximo, buscando a harmonia e o respeito de todos os indivíduos que convivem em sociedade e buscam o bem de toda raça humana. As pessoas que frequentam a igreja, independente de qual doutrina é seguida, sempre aprendem ensinamentos bons, que trazem situações de respeito, paz e amor. Este fato é o que transforma tal instituição na maior controladora da sociedade. De alguma forma, todos os seres humanos têm conhecimentos sobre a existência de alguma religião como meio de ligação que estabelece um vínculo com uma autoridade espiritual suprema, sendo que a origem desta não se dá pela necessidade material e sim pela espiritual. Cada povo tem como fator de equilíbrio social e de seguimento aos preceitos sociais, as crenças religiosas. O fato é que muitas religiões sofreram mudanças ao longo do tempo, devido ao processo de desenvolvimento econômico, do domínio do capitalismo, o avanço científico, dentre outros fatores. Tudo isso proporcionou ao homem uma nova visão da vida, e com isso as religiões passaram a conciliar suas doutrinas com o conhecimento científico e com o avanço constante da humanidade. Percebe-se que a crença em um Deus e a fé, é o que inibe ou impulsiona a maior parte dos homens de fazerem o mal. O temor de uma punição divina pela ação ou omissão é muito maior do que a da penalidade jurídica, neste caso, portanto, a paz social ou a guerra se dão muito mais pelo seguimento das doutrinas religiosas, a que questões políticas e econômicas, funcionando a religião como uma parceira do sistema jurídico como controlador e regulador da sociedade. 7 A PRISÃO PERPÉTUA E COM TRABALHOS FORÇADOS COMO OPÇÃO SUBSTITUTIVA A PENA DE MORTE O medo não pode servir como parâmetro para a aplicação de uma punição em uma sociedade democrática de direito, sendo que a pena capital precisa ser substituída pela restrição à liberdade no âmbito global. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 217 Tendo em vista a agressividade aos direitos universais do homem e a dignidade da pessoa humana pela aplicabilidade da pena de morte, dois institutos: a prisão perpétua e a pena de trabalhos forçados, não menos polêmicos, mas de menor grau ofensivo surgem como opção discussão para substituir a pena capital em uma alternativa remota de normatização a fim de dar uma melhor resposta à sociedade quanto ao cumprimento de uma sanção eficaz, porém ressalta-se que tais institutos são rejeitados pela comunidade internacional sendo ainda, sua implementação proibida em nosso sistema jurídico como será demonstrado abaixo. Embora o Art. 5º, XLVII, alíneas a e b proíbam as penas de caráter perpétuo e de trabalhos forçados, os quais já estão previstos nas convenções da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas e ainda como meio de coerção como expressamente demonstrado pela convenção 29: Artigo 1º. Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no mais breve espaço de tempo possível. Artigo 2º 1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. (OIT, 1930, p.1). A ainda a convenção 105: Artigo 1º. Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir toda forma de trabalho forçado ou obrigatório e dele não fazer uso. Artigo 2º. Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a adotar medidas para assegurar a imediata e completa abolição do trabalho forçado ou obrigatório, conforme estabelecido no Artigo 1º desta Convenção. (OIT, 1959, p.1) Desta forma a normatização da prisão com exercício de trabalhos forçados ainda que destituídos de eficácia constitucional e de norma supranacional, não diferentemente da pena de prisão perpétua, surgem como opções mais humanas, ou menos cruéis, de punir o Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 218 infrator, se comparadas a pena de morte como demonstra Beccaria (1764, p.53) na seguinte afirmação: O espetáculo atroz, porém momentâneo, da morte de um criminoso, é um feito menos poderoso para o crime, do que o exemplo de um homem a quem se tira liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e que paga com trabalhos penosos o prejuízo que causou à sociedade. [...] essa ideia terrível assombraria mais vivamente os espíritos do que o temor da morte, que se vê entrevê apenas um momento numa obscura distância que diminui o horror. Nesta linha, vislumbra-se que a forma de fazer com que o infrator realmente pague pelos seus delitos é a substituição da pena de morte pela prisão perpétua, pois indivíduos capazes de cometer atrocidades cobertas de hediondez que mereça a morte, normalmente nem ao menos creem na existência de um “Deus” que irá puni-lo após o final da vida humana. Portanto, esta penalidade não causaria sofrimento algum devido à falta de crença em uma vida espiritual, sendo que o período do processo e da possível condenação seria o pequeno instante de angustia sofrida pelo delituoso. Uma pena para ser justa precisa ter apenas o grau de rigor suficiente para afastar os homens da senda do crime. Ora, não existe homem que hesite entre o crime, apenas das vantagens que este enseje, e o risco de perder para sempre sua liberdade. Deste modo, portanto, a escravidão perpétua, que substitui a pena de morte, tem todo o rigor necessário para afastar do crime o espírito mais propenso a ele. (BECCARIA, 1764, p. 54). Sendo assim, enquanto a execução do preso ocorre de uma maneira rápida em que o povo irá esquecer, a prisão perpétua se prolonga no tempo e estará constantemente servindo de exemplo do que irá acontecer com aquela pessoa que cometer o mesmo delito que empreendeu quem está cumprindo tal pena. Enquanto aquela desempenha todas as suas forças em um só tempo, esta fica alastrada por todo o curso da vivência do delinquente. 8 ECONOMICIDADE ESTATAL DAS PENAS A pena de morte é uma maneira mais econômica de o Estado conseguir punir o infrator, pois não precisará realizar gastos com alimentação, segurança, água, luz, entre Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 219 outros tantos serviços utilizados na manutenção de um preso em regime fechado. No tangente aos trabalhos forçados nos indica Greco (2011, p. 22), “O que a Constituição quis proibir, na verdade, foi o trabalho que humilha o condenado pelas condições como é executado. Não pode ser espancado para trabalhar nem ter sua refeição suspensa”. A aplicação de uma penalidade de prisão combinado com trabalhos forçados seria uma maneira de demonstrar a sociedade que o infrator está sendo acoimado, e a ele caberia pagar por seu desacerto. O suplício é, por assim dizer, a multiplicação da pena de morte: como se a pena de morte não bastasse, o suplício mata uma pessoa várias vezes. O suplício responde a duas exigências: deve ser infamante (seja pelas cicatrizes que deixa no corpo, seja pela ressonância de que é acompanhado) e clamoroso, ou seja, deve ser constatado por todos. (BOBBOIO, 1909, p. 153). Essa manifestação da paga do crime com a pena em que o Estado deixaria de arcar com todas as despesas feitas frente à manutenção do infrator em cárcere, revelaria de tal maneira àqueles que estejam ou tendam a estar à beira da marginalização, refletir e apurar que o crime não teria uma recompensa, se capturado, falando na pena capital, porém estaria evidente uma punição severa que alcançaria os crimes considerados hediondos. Essa modalidade de repreensão proposta aliviaria sobremaneira o já superlotado sistema carcerário do país, onde os presos ficam em cadeias por falta de espaço nas penitenciárias, e não há uma separação adequada desses presos, com características e delitos diferenciados. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto conclui-se que a pena capital, pena de prisão perpétua ou de trabalhos forçados, encontra barreiras legais, morais e religiosas para sua implementação. Sugerir a adoção de tais institutos não poucos polêmicos, a priori vem ao encontro das respostas eficazes aos anseios vingativos dos entes das inúmeras vítimas das barbáries quotidianas. Em segundo plano seria uma forma de aplicar uma pena condizente ao fato praticado pelo indivíduo que insiste em não se adequar a convívio harmônico social. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 220 Portanto, conclui-se que a admissão dos referidos institutos em nosso ordenamento pátrio, de fato trata-se de um retrocesso, uma incapacidade não tão somente do Estado, mas de toda a sociedade de gerir as dificuldades que permeiam o convívio social: ideias, comportamentos, culturas, desigualdades econômicas, e por fim juridicamente é o reconhecimento da falência das demais normas, ou seja, falência do direito na proteção do bem jurídico tutelado, ou seja, a vida. REFERÊNCIAS BECCARIA, Cesare. Dei Delitti e Delle Pene (1764). Tradução: Editora Martin Claret, São Paulo 2003. BOBBIO, Norberto, L'etd dei Diritt (1909). Tradução: Carlos Nelson Coutinho, Nova Edição. Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 2004. 7ª Reimpressão BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil. 1988. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. CAPEZ, Fernando. Direito Penal Parte Geral. 15º ed. São Paulo, Saraiva, 2011. GRECO, Rogério, Curso de Direito Penal-Parte Geral, 13ª Edição, Niterói- RJ, editora Impetus, 2011. NUNES, Rizzatto. Manual de Filosofia do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Pena de morte. Disponível em: <http://super.abril.com.br/pena-de-morte>. Acesso em 26 maio 15, às 16h40min. Platão. As Leis (Tradução de Edson Bini). São Paulo. Edipro, 1999. Religião, disponível em: <http://www.xr.pro.br/religiao.html> Acesso em 03 de maio 2014, às 17h 30 min. Religião no controle social, disponível em: <http//renatim.wordpress.com> Acesso em 28 abr. 14, às 15h10min. Religião no controle social, disponível em: <http//osnildosociologia.blogspot.com> Acesso em 28 abr. 14, às 15h15min. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 221 Trabalhos forçados e a Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: <ttp://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/convencoes/convencoes.php>. Acesso em 25 maio 15, às 00h00min. ZAFFARONI, E. Rául; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Revista Eletrônica da FEATI – nº 11 – Julho/2015 – ISSN 2179-1880 222