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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole cidade, cidadania governança democrática Cadernos Metrópole n. 21 pp. 1-283 1º semestre 2009 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999 Semestral ISSN 1517-2422 1. Áreas Metropolitanas - Periódicos. 2. Sociologia urbana - Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. II. Grupo Pronex “Metrópole: Desigualdades Socioespaciais e Governança Urbana” CDD300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington cidade, cidadania governança democrática PUC-SP Reitor Dirceu de Mello Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi Bader Burihan Sawaia (Presidente) Bernardete A. Gatti Cibele Isaac Saad Rodrigues Dino Preti Marcelo Figueiredo Maria do Carmo Guedes Maria Eliza Mazzilli Pereira Maura Pardini Bicudo Véras Onésimo de Oliveira Cardoso Scipione Di Pierro Netto (in memoriam) Vladimir O. Silveira Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Sonia Rangel Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Revisão de espanhol Vivian Motta Pires Capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA 05015-001 São Paulo - SP Tel/Fax: (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus Luiz César de Q. Ribeiro CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ) Aldo Paviani (UnB) Alfonso X. Iracheta (El Colegio Mexiquense) José Antônio Fialho Alonso (FEE) Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ) José Machado Pais (Univ. de Lisboa-POR) Ana Fani Alessandri Carlos (USP) José Marcos P. da Cunha (Unicamp) Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ) José Maria C. Ferreira (Univ. Téc. de Lisboa-POR) Ana Maria Fernandes (UFBA) José Tavares Correia Lira (USP) Andréa Catenazzi (Univ.Nac.de General Sarmiento-ARG) Leila Christina Duarte Dias (UFSC) Anna Alabart Villà (Universidad de Barcelona-ESP) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ) Arlete Moysés Rodrigues (Unicamp) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj/Ucam) Brasilmar Ferreira Nunes (UnB) Luís Renato Bezerra Pequeno (UFCE) Carlos Antonio de Mattos (PUC/CHI) Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (UFBA) Carlos José C. G. Fortuna (Univ.de Coimbra-POR) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN) Cristina Lópes Villanueva (Univ. de Barcelona-ESP) Marília Steinberger (UnB) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA) Nádia Somekh (Univ.Presbiteriana Mackenzie) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA) Nelson Baltrusis (Univ. Católica do Salvador) Erminia T. M. Maricato (USP) Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ) Félix Ramon Ruiz Sánchéz (PUC/SP) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG) Fernando Nunes da Silva (Inst. Sup. Técnico/POR) Ricardo Toledo Silva (USP) Geraldo Magela Costa (UFMG) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC/SP) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes) Heliana Comin Vargas (USP) Rosana Baeninger (Unicamp) Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG) Sarah Feldman (USP) Jesús Leal (Univ. Complutense de Madri-ESP) Sérgio de Azevedo (UENF) Suzana Pasternak (USP) Tamara Benakouche (UFSC) Vera Lucia Michalany Chaia (PUC/SP) Secretaria Raquel Cerqueira Projeto gráfico e Editoração eletrônica Raquel Cerqueira Wrana Maria Panizzi (UFRGS) Colaboradores deste número Ilza Leão – UFRN Marcelo J. P. Paixão – UFRJ sumário 9 Apresentação dossiê: cidade, cidadania governança democrática Elements for the sociology of constructed spaces in cities: the “Conic” in Brasília’s Pilot Plan 13 Elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades: o “Conic” no Plano Piloto de Brasília Brasilmar Ferreira Nunes Defending a new theoretical 33 Por um novo enfoque teórico framework in housing research na pesquisa sobre habitação Ermínia Maricato Metropolitics: an analysis of some 53 Metropolítica: una análisis de algunas global metropolitan experience experiencias metropolitanas globales Óscar A. Alfonso R. Social demands and urban space occupation. 75 Demandas sociais e ocupação do espaço The case of Brasília, Federal District urbano. O caso de Brasília, DF Aldo Paviani Cultural heritage urban policies 93 Políticas urbanas de patrimonialização and counter-revanchism: Old Recife e contrarrevanchismo: o Recife Antigo and the Historic Area of the City of Porto e a Zona Histórica da Cidade do Porto Rogério Proença Leite Paulo Peixoto Housing policy in central areas: 105 Política de habitação nas áreas centrais: rhetoric versus practice retórica versus prática Mariana Fialho Bonates cadernos metrópole 21 pp. 1-283 1º sem. 2009 Public spaces: new 131 Espaços públicos: novas sociabilities, new controls sociabilidades, novos controles Luciana Teixeira de Andrade Juliana Gonzaga Jayme Rachel de Castro Almeida The foundations of trust: civic engagement, 155 Fundamentos da confiança: associativismo, political-administrative institutions and social instituições político-administrativas e capital capital in the Metropolitan Region of Porto Alegre social na Região Metropolitana de Porto Alegre Marcelo Kunrath Silva Soraya Vargas Côrtes The confrontation between Participatory 173 O confronto do Orçamento Participativo com as tradições representativas em São Paulo Budget and representative traditions in São Paulo Paulo Edgar da Rocha Resende Participation and territory management: 197 Participação e gestão territorial: onde where are the favorable conditions? se encontram as condições favoráveis? Cátia Wanderley Lubambo Flavio Cireno Fernandes Regularization of urban settlements 219 Regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade and sustainability Manoel Teixeira Azevedo Jr. Public sphere construction 233 A construção da esfera pública no planejamento urbano. Um percurso in urban planning. A historical histórico na cidade de Santos path in the city of Santos Luiz Antonio de Paula Nunes The construction of public power as private 247 A construção do poder público como espaço space in the city of Diadema (1983 to 1996) privado na cidade de Diadema (1983 a 1996) Joana Darc Virgínia dos Santos Groups of independent scavengers in the 261 Grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de São Paulo selective collection of the city of São Paulo Marina Pacheco e Silva Helena Ribeiro cadernos metrópole 21 pp. 1-283 1º sem. 2009 Apresentação O Cadernos Metrópole n. 21 reafirma o caráter interdisciplinar do periódico, reunindo trabalhos de cientistas sociais e planejadores urbanos num debate sobre os temas da cidadania e da gestão democrática da cidade. Esses temas, cada vez mais caros às discussões contemporâneas sobre as cidades, envolvem, por sua vez, a análise das formas de sociabilidade e das relações de conflito que se estabelecem e se reproduzem com as transformações do território e das relações de poder. No contexto dessas preocupações, o texto de Brasilmar Ferreira Nunes busca compreender a relação entre o espaço construído e a sociedade na cidade de Brasília, mostrando como a capital federal moldou-se às necessidades de seus habitantes e como os espaços edificados – e sua transformação – interferem nos padrões de sociabilidade, alterando o uso dos espaços e resignificando territórios. Tomando como referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul – SDS/Conic, o autor discute a relação espaço construído-sociedade, demonstrando que a cidade, em sua dinâmica, altera as propostas originais do planejamento, adaptando-se às necessidades de seus habitantes e às formas de sociabilidade cotidianamente estabelecidas. Ainda sobre o caso de Brasília recaem as preocupações de Aldo Paviani, cujo texto analisa as demandas não atendidas de moradores de certas áreas do Distrito Federal por serviços de saúde pública, educação, transporte e habitação. Segundo o autor, alguns encaminhamentos se fazem necessários para que o poder público adote políticas globalizantes, superando ações isoladas, paternalistas ou clientelistas, pois somente “a visão da totalidade ampliará o acesso democrático ao espaço da cidade por parte dos urbanistas, cidadãos e construtores da vida urbana”. cadernos metrópole 21 pp. 9-12 1º sem. 2009 apresentação 10 Outra questão central no debate sobre a gestão da cidade e da cidadania refere-se ao déficit habitacional e às pesquisas sobre habitação. Contribuindo para esclarecer pontos importantes da discussão, o texto de Ermínia Maricato aponta – a partir de cuidadosa revisão bibliográfica – que a maior parte das pesquisas sobre habitação, embora forneça um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação, a exclusão social e as políticas institucionais, aborda prioritariamente a esfera do consumo “ignorando a centralidade da produção na determinação do ambiente construído”. Maricato discute, ainda, o impacto da globalização na provisão de moradias e incentiva os pesquisadores brasileiros a enfrentarem o desafio de realizar estudos que venham suprir as lacunas apontadas. Ampliando o debate para o caráter e a dimensão internacionais da metropolização, Óscar Alfonso destaca que a maior parte da literatura recente se concentra mais na necessidade de atuar sobre o fenômeno metropolitano do que de compreendê-lo. A partir de um exame crítico de alguns casos concretos, seu artigo analisa, de modo comparativo, os desafios enfrentados por aglomerações metropolitanas da Europa, da América Latina e da América do Norte – na busca por alternativas que favoreçam a adoção de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento metropolitano. Os resultados de outro estudo comparativo entre áreas metropolitanas são apresentados no trabalho de Rogério Proença Leite e Paulo Peixoto, questionando os processos de patrimonialização de centros históricos implantados em áreas degradadas do Recife Antigo, no Brasil, e na Zona Histórica da Cidade do Porto, em Portugal. O argumento central do trabalho apoia-se na constatação de que “após o período de apogeu das intervenções urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade decadente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista do espaço que aniquila as perspectivas depuradoras dessas operações” e contribui para a avaliação das políticas urbanas de enobrecimento. Trata-se de trabalho instigante que convida à reflexão acerca das consequências de algumas políticas de intervenção que, mais do que revitalizar, propõem a mudança do uso dos espaços enobrecidos. Mariana Fialho Bonates também contribui para a discussão sobre a reabilitação de áreas centrais analisando programas de intervenção habitacional nos centros de cidades brasileiras de médio e grande porte. A partir do estudo de situações concretas, a autora lembra que a ideia de conjugar a política habitacional com a política de preservação dos sítios históricos de áreas centrais não é recente e levanta hipóteses que explicariam por que os recursos do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) têm sido aplicados, em sua grande maioria, em obras de construção de novos conjuntos habitacionais e não na reabilitação de edifícios abandonados ou degradados. O texto de Luciana Teixeira de Andrade, Juliana Gonzaga Jayme e Rachel de Castro Almeida aborda o tema das mudanças no uso e o declíneo dos espaços públicos das grandes cidades, em detrimento dos espaços semipúblicos ou privatizados. Partindo do estudo das formas de sociabilidade observadas em algumas praças de Belo Horizonte, as autoras demonstram que, apesar de ainda serem bastante utilizadas como espaços cadernos metrópole 21 pp. 9-12 1º sem. 2009 apresentação públicos, seus frequentadores buscam, preferencialmente, a relação entre iguais, reproduzindo nos espaços públicos a segregação socioespacial observada na cidade. Problematizando o argumento de que a proliferação de organizações sociais seria uma condição necessária para a geração de confiança e, consequentemente, de capital social, o texto de Marcelo Kunrath Silva e Soraya Vargas Côrtes estabelece um diálogo crítico com a obra de Robert Putnam. A partir dos resultados de survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Alegre, procuram demonstrar que tal argumento não tem sustentação e ressaltam a necessidade de incorporar a dimensão políticoinstitucional às análises do associativismo, mostrando que não existe uma relação direta entre o associativismo e a confiança em instituições políticas. A análise de instrumentos de participação direta da cidadania, como o Orçamento Participativo, podem representar, segundo Paulo Edgar da Rocha Resende, uma grande inovação no processo de tomada de decisões de governos locais, ampliando a inclusão de sujeitos políticos e a justiça na distribuição territorial/social dos investimentos públicos. A partir da avaliação do funcionamento do Orçamento Participativo do Município de São Paulo, entre 2001 e 2004, o autor discute as razões pelas quais o Orçamento Participativo, muitas vezes um eficaz mecanismo de participação cidadã nos rumos das cidades, sofreu contingenciamentos e, consequentemente, perdeu peso no cenário decisório da maior metrópole brasileira. Na mesma linha de reflexão proposta por Resende, o texto de Cátia Wanderley Lubambo e Flavio Cireno Fernandes aborda a questão da participação e da gestão territorial focalizando, mais especificamente, a capacidade de atuação de Conselhos e Fóruns no sentido de influenciar decisões e ações públicas. A partir de estudo comparativo de dois Programas de Governo – em municípios localizados em Pernambuco e Santa Catarina –, discutem as condições, expectativas e limitações da implantação de estruturas de gestão territorial, destacando a influência dos atores políticos locais e de suas bases eleitorais. Manoel Teixeira Azevedo Junior, arquiteto e urbanista, apresenta, na sequência, outra discussão de extrema relevância para todos os que pensam e exercem a gestão do território em centros urbanos. O autor discute os programas de regularização de assentamentos informais ou de loteamentos irregulares apontando a importância dos instrumentos de política urbana do Estatuto das Cidades para a reversão das várias formas de ilegalidade urbana e a universalização do direito à cidade. Analisar as formas de participação da sociedade civil no planejamento urbano da cidade de Santos, no período compreendido entre os anos de 1945 e 2009, é o objetivo do artigo de Luiz Antonio de Paula Nunes. Seu estudo revela como a construção e institucionalização de espaços políticos e a criação de comissões e conselhos conduziu à ampliação da participação popular no planejamento urbano no transcorrer do período estudado, mudando de acordo com o pensamento urbanístico as ferramentas e os cenários políticos. cadernos metrópole 21 pp. 9-12 1º sem. 2009 11 apresentação 12 A participação popular, agora no Município de Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo, é também o objeto do estudo da historiadora Joana Darc Virginia dos Santos. A mobilização da população por melhores condições de vida, em especial no que se refere à infraestrutura, ocupou lugar de destaque ao longo de três mandatos consecutivos de prefeitos do Partido dos Trabalhadores (1982-1996), reunindo experiências com resultados bastante heterogêneos e que são analisados pela autora em sua investigação sobre os atores envolvidos. Em complementação aos textos do dossiê, a cidade de São Paulo volta à cena com o texto de Marina Pacheco e Silva e Helena Ribeiro sobre os catadores autônomos de materiais recicláveis. Após a apresentação de informações sobre a importância da coleta seletiva e a dimensão do problema do lixo na cidade de São Paulo, as autoras elaboram algumas hipóteses explicativas para a não inclusão de parcela significativa dos catadores no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura Municipal de São Paulo. Essas hipóteses apontam, entre outros fatores, para as dificuldades de organização e gestão dos grupos de catadores e para a ausência de uma ação sistematizada da Prefeitura Municipal de São Paulo no sentido de incentivar a participação dos catadores no Programa de Coleta Seletiva oficial. A questão da gestão urbana é novamente colocada, aliando-se à da sustentabilidade urbana e aos desafios que se colocam para a conquista da cidadania. Ainda que se considerem as especificidades das abordagens, o caráter interdisciplinar das discussões propostas e as peculiaridades dos estudos de caso, os artigos reunidos neste número apontam, de modo inequívoco, para as conquistas obtidas pelas novas formas de participação e para as mudanças geradas pelos novos instrumentos de gestão no âmbito dos processos de governança democrática. Lucia Bógus Luiz César de Q. Ribeiro Editores científicos cadernos metrópole 21 pp. 9-12 1º sem. 2009 Elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades: o “Conic” no Plano Piloto de Brasília Brasilmar Ferreira Nunes Resumo O presente artigo procura discutir a relação do espaço construído e sociedade tomando como referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul – SDS/Conic. Partindo da existência de múltiplas determinações na dinâmica da cidade, procura analisar a relação entre os usos de um centro comercial na área tombada de Brasília, o perfil dos seus usuários que em princípio se chocam com a proposta original de um ambiente mais sofisticado. Procura mostrar que a cidade, enquanto um fenômeno dinâmico, modifica propostas originais do planejamento e se adapta às necessidades de seus habitantes, numa estreita relação espaço e sociedade, de tal maneira que sociabilidades heterogêneas se articulam com espaços construídos heterogêneos. Mostra ainda que o Conic contribui para tornar a área tombada do Plano Piloto uma área urbana, na perspectiva sociológica: variada, densa e socialmente heterogênea. Abstract This paper tries to discuss the relationship between constructed space and society, using as reference the Pilot Plan for Brasília and its Setor de Diversões Sul (SDS-Conic – South Entertainment Sector). Starting from the existence of multiple determinations in the city’s dynamics, we try to analyze the relations between the uses of a commercial center in the listed area of Brasilia and the characteristics of its users which, in principle, collide with the original proposal for a more sophisticated environment. Also, we try to show that the city, as a dynamic phenomenon, modifies the original planning proposals and adapts to its inhabitants’ needs, in a narrow space/society relation, in such a way that heterogeneous sociabilities articulate with heterogeneous constructed spaces. Finally, we try to show that the Conic contributes to make the listed area of the Pilot Plan an urban area, in the sociologic perspective: varied, dense and socially heterogeneous. Palavras-chave: Brasília; Conic; edifícios urbanos; sociabilidades urbanas; espaço construído e sociedade. Keywords: Brasília; Conic; urban constructions; urban sociability; constructed space and society. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 brasilmar ferreira nunes Apresentação 14 A sociologia urbana que se produz no Brasil vem se debruçado com insistência sobre processos sociais que ocorrem nos espaços das cidades, chamando atenção para aspectos os mais diversos e variados. Entretanto, curiosamente e com raras exceções, o estudo de vínculos sociais determinados pelo espaço construído – praças, imóveis residenciais, industriais, comerciais, áreas de circulação, etc. – não prioriza o projeto em si, mas o considera como um suporte onde as práticas sociais ocorrem. Particularmente os imóveis, os edifícios, são vistos como cenários e não tratados como artefatos que interferem nas interações que neles possam ocorrer. Podemos lembrar alguns títulos que mais se aproximam desse recorte: o de Gilberto Velho (1989), analisando um edifício em Copacabana no Rio de Janeiro, ainda na década de 1980, ou ainda, o excelente estudo de Paola Berenstein-Jacques sobre a arquitetura das favelas nos morros cariocas. Nesses trabalhos, observamos com detalhes como o ambiente construído é não apenas o cenário, mas muito mais do que isso, interfere diretamente nas modalidades de vínculos e práticas sociais que aí ocorrem. Curiosamente, a sociologia urbana pouco tem contribuído para esse debate, pois somos os que menos se interessam pelo desenho do ambiente construído ou pela proposta de intervenção no espaço oriunda dos escritórios de arquitetura. Essa assertiva é mais instigante ainda se nos dermos conta de que os profissionais da arquitetura e até mesmo os que, por razões diversas, impro- cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 visam suas habitações prescindindo de um projeto, sempre levam em conta o elemento humano que dele irá usufruir. Entretanto, as questões associadas à prática de construção, especialmente a arquitetura, é complexa e de difícil discernimento, evoluindo permanentemente em função de vários fatores, mesmo se o resultado dessas práticas tenha implicações diretas em nossos ambientes de vida. Aspecto corriqueiro, pois a arquitetura é expressão da própria cultura, além do que, toda ela, mesmo as privadas, tem implicações na qualidade dos espaços públicos. Pressupomos que essa relativa ausência de interesse advém do lugar que o “território” e o “espaço” ocupam nas análises sociais, embora sua presença na esfera teórica seja uma constante entre autores consagrados do campo sociológico.1 De fato e apesar de tudo, os tratamos (o território e o espaço) invariavelmente como cenário, raras vezes como agente. A discussão é extensa e profícua; dificilmente se esgotaria nos quadros de um artigo. Porém, vale lembrar alguns aspectos que podem contribuir para esse debate e introduzir o nosso caso em análise neste texto que se propõe uma avaliação dos usos que se faz de um edifício em pleno Plano Piloto de Brasília, cidade ícone da arquitetura moderna no século XX. Algumas considerações teóricas como apoio A sociologia parte do pressuposto de que sociedade é interação social por meio da qual os seres humanos se ligam uns aos elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades outros; através desses elos transformam coletivamente o meio natural, dando-lhe uma função e um sentido. Dessa maneira, o meio natural se transforma e reflete diretamente a estrutura social da qual ele é o suporte. Assim, todo e qualquer território explorado ou habitado traz em si as marcas das atividades humanas que nele se desenvolvem. Se levarmos esse argumento para o espaço da cidade, podemos constatar as diferentes formas que assumem os ambientes construídos em razão das modalidades e atividades humanas que neles se implantam. Durkheim (1987) argumenta que os substratos físicos da vida social devem ser considerados como maneiras de ser que “são maneiras de fazer consolidadas” que refletem níveis diferenciados de cristalização da vida social. Ambientes residenciais, industriais, comerciais, de lazer e de circulação trazem em si valores funcionais, estéticos e econômicos inerentes aos seus interessados. Portanto, “cada unidade arquitetônica integra um sistema que não é nunca neutro, já que carregado de funcionalidades, métodos estruturais e a própria fisicidade das formas distribuídas no espaço” (Coulquhon, 1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Estamos então em pleno contexto da multidisciplinaridade, pois esse sistema é tratado por Durkheim como parte da morfologia social, tal qual a população, as estruturas políticas e jurídicas, todas elas mais do que reflexos, são sintomas da realidade social, um fator ativo que pesa sobre o movimento dos processos sociais. Assim, embora Durkheim se interesse mais pelas instituições sociais do que propriamente a cidade, suas análises trazem subentendida uma problemática do espaço, o que nos leva a deduzir que quando pensamos, portanto, a cidade estamos nos referindo a um ambiente ao mesmo tempo material e humano.2 Essa discussão, que, aliás, avança muito além do que aqui se apresenta, foi tratada por diferentes correntes do pensamento, especialmente os arquitetos, uma categoria socioprofissional diretamente envolvida com a produção física/funcional da cidade. Os modernistas, por exemplo, chegaram à radical imagem da cidade como “instrumento de trabalho” e as casas como “máquinas de morar”, ao ponto de Le Corbusieur argumentar que os projetos de uma colher ou de uma cidade partiam de um mesmo problema de design industrial.3 Daí a se chegar à ideia de que a heterogeneidade que caracteriza sociológica e fisicamente a cidade pode ser sintoma do caos urbano seria um passo. As polêmicas que caracterizam esse debate é de difícil síntese. Podemos, entretanto lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991) que criticando a visão dos modernistas, considera a cidade um laboratório (aliás, tal qual a produção de Chicago já o fazia, estudando as relações sociais urbanas) e que muitas vezes as soluções para problemas urbanos podem estar sendo apontadas pelas próprias características de tais sítios e não necessariamente em debates intelectuais. Segundo a autora, não é exatamente “caos” o que explicaria a complexa diversidade de ambientes que se encontram em uma metrópole; ao contrário, estaria aí o seu maior potencial. Aliás, argumento que vai encontrar respaldo em Durkheim, para quem a divisão do trabalho é tanto mais complexa quanto maior for a densidade populacional de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu). cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 15 brasilmar ferreira nunes Duarte (2002, p. 150) sintetiza com justeza esse fenômeno quando escreve: De uma forma ou de outra as cidades vão se destruindo e se reconstruindo, de acordo com valores culturais, econômicos e tecnológicos. Essas destruições e reconstruções respondem ao que aqui se tem chamado de matrizes espaciais, isto é, há uma interrelação dos sistemas que ativam a sociedade e formam uma matriz que, boa parte das vezes em silêncio, transfigura a cidade.5 16 De imediato, fica patente que a cidade – a sua estrutura física e social – é um fenômeno dinâmico que se modifica continuamente em função de modificações nos elementos que compõem a sua matriz constitutiva. Aos efeitos sobre o espaço construído de variações nas dimensões sociais, políticas, econômicas, culturais e tecnológicas se somam a própria determinação do espaço, suas restrições e seus potenciais. Além do mais, as características do lugar se agrega às identidades de seus usuários, de tal forma que podemos falar numa simbiose entre o ser e o estar em algum lugar. Ser carioca ou ser candango, por exemplo, remete a uma representação não só cultural mas também territorial. Essas questões são pertinentes à nossa intenção de refletir sobre um edifício construído no Plano Piloto de Brasília, a partir de uma concepção de espaço urbano presente nos autores, tanto do plano urbanístico da cidade (Lúcio Costa) quanto de seus monumentos mais importantes (Oscar Niemeyer). Referimos-nos ao Conic, um complexo de lojas e escritórios situado na confluência das Asas com o Eixo Monumental em Brasília. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 Algumas características de Brasília e do Conic O exemplo escolhido aqui é interessante por várias razões, inclusive pelo fato de estarmos tratando de uma área do Plano Piloto que foi priorizado com destaque no projeto original da capital do país, aquela que na concepção de seu idealizador deveria se consolidar como um boulevard nos moldes de cidades europeias. Já se discutiu bastante sobre a elevada dose de utopia que estava presente na proposta vencedora para a nova capital. Claro que, sendo na época um território praticamente vazio, os arquitetos (tanto Lúcio Costa como os demais concorrentes no concurso para o projeto para a nova capital) puderam expor muito de suas concepções sobre urbanismo e cidades. A ausência de resistências sociais à implantação de qualquer um dos projetos – inclusive aquele vencedor – favorecia a livre imaginação.6 A racionalidade do projeto de Lúcio Costa tinha pressupostos curiosos, no sentido de que imaginava a possibilidade de um novo homem naquele espaço novo, portanto a relação espaço e sociedade claramente demarcada. Além disso, Brasília, sendo capital político-administrativa da nação, iria ser habitada sobretudo pela burocracia estatal que, no Brasil, goza de certas condições privilegiadas ante os percalços da conjuntura econômica: emprego estável e salários relativamente compensadores, além, é claro, das vantagens que advêm da condição de funcionário público. Poder-se-ia, portanto, imaginar esse novo homem, na medida em que as condições de sua existência material estariam garantidas de antemão. elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades Entretanto, é impossível supor um espaço urbano socialmente homogêneo, mesmo se o seu desenho e a sua arquitetura possam ser padronizados. A dimensão cultural daquilo que chamamos de matrizes espaciais não cabem num modelo único de homem, tendo que se adequar às heterogêneas modalidades de existência social. De fato, foi o que ocorreu no Distrito Federal: um crescimento populacional acima de qualquer previsão, composto por migrantes de diferentes origens socioeconômicas e culturais, polarizados por um Plano Piloto (Brasília) que se apresenta hoje como uma exceção numa área urbana com elevada dose de heterogeneidade. De um lado, um território planejado segundo critérios racionais e, de outro, um universo onde imperam as leis do mercado, com aquele ar caótico que caracteriza as periferias urbanas brasileiras. Interessa-nos nessa discussão ressaltar o elevado peso simbólico que Brasília detém, praticamente absorvendo toda e qualquer representação do universo urbano do Distrito Federal externa ao seu Plano Piloto. Ali se implantaram as representações governamentais, seus edifícios e monumentos, além de concentrar a maciça oferta de trabalha formal no Distrito Federal. O cruzamento das Asas Norte e Sul com o Eixo Monumental é a área onde circula diariamente a população oriunda das cidades satélites que trabalha no Plano Piloto. O Conic, portanto, é um lugar privilegiado pela sua acessibilidade, justamente porque a implantação da rodoviária urbana na área contribui para a paulatina mudança do padrão de usuário desse espaço, particularmente nos chamados “Setores de Diversão”. Temos então um cenário peculiar: área de moradia de famílias de altas rendas que lhe dá um caráter socialmente homogêneo, o Plano Piloto é também local de trabalho de diversas categorias socioprofissionais, além é claro do funcionalismo de baixo escalão, moradores das cidades satélites. Essa mistura faz desse cruzamento onde se situa o Conic uma das áreas “urbanas” de Brasília, justamente pela heterogênea composição de atividades e grupos sociais que ali transitam. O boulevard imaginado por Lúcio Costa é, portanto, o principal centro comercial do Plano Piloto. Trabalha nos edifícios do Conic uma população aproximada de 10.000 pessoas e circulam pela sua área cerca de 150.000 pessoas por dia. De fato, o Conic disputa com o Conjunto Nacional (aproximadamente 500.000 pessoas/dia) o maior número de pessoas diárias nas suas dependências. Evidentemente, esse afluxo nesse espaço está diretamente ligado à presença da rodoviária urbana com ônibus e outros tipos de transportes coletivos que unem a Esplanada a todo o Distrito Federal. Mesmo se a classe média do Plano e dos Lagos não tem o hábito de circular pelo Conic, não se deve menosprezar o seu potencial de atração de pessoas. Ora, a presença de atividades de prestação de serviços no edifício é exclusivamente pela sua localização privilegiada, que é o grande trunfo do Conic. O desenho a seguir permite visualizar esse núcleo central a que estamos nos referindo. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 17 brasilmar ferreira nunes 23 18 17 15 16 14 16 13 11 12 10 32 45 18 9 5 Funarte 1 7 2 Fonte: Iara Martorelli: O projeto “Artes Visuais” da Funarte – CEAD/UNB – Brasília – 2008. LEGENDA 1- Praça dos Três Poderes 2- Marco da Bandeira 7- Panteão da Liberdade e da Democracia 5- Palácio do Itamarati 9- Catedral 45- Museu Nacional de Brasília 32- Biblioteca Nacional de Brasília 10- Teatro Nacional cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 1211131415161718- Torre de TV Funarte Planetário (desativado) Clube do Choro Centro de Convenções Complexo Esportivo do DF Memorial dos Povos Indígenas Memorial JK elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades Cidade ainda em fase de consolidação, Brasília vive ainda um surto de construção na sua área central, onde estão se implantando edifícios comerciais de alto luxo, hotéis e shoppings centers justamente nesse polo central. A área vem se transformando paulatinamente numa área de alto padrão de consumo e do terciário sofisticado (consultorias, comércio, clínicas médicas, etc.) afastando para mais distante atividades menos “nobres”. Os primeiros centros comerciais (Setor de Diversão Sul – Conic e Setor de Diversões Norte – Conjunto Nacional) vão perdendo status perante os novos que se implantam nos arredores. Há, portanto, um movimento de valorização de novos espaços da cidade e desvalorização de outros, manifestos no perfil do consumidor médio que os frequenta. A inauguração do Conic se deu por volta de 1967, ou seja, sete anos após a inauguração da nova capital, sendo o primeiro edifício voltado para a Esplanada dos Ministérios. Foi batizado informalmente de Conic a partir do nome da construtora pernambucana que o edificou, com seu nome numa enorme placa durante a obra, terminando por se fixar na memória dos passantes como uma das referências da área. Na época, Brasília contava com poucos habitantes, a maioria moradores do Plano Piloto (ainda em fase de implantação) e algumas poucas cidades satélites (eram quatro: Taquatinga, Ceilândia, Sobradinho, Núcleo Bandeirantes e atualmente são vinte e duas). De fato, a burocracia do Estado que vinha se instalando em Brasília ainda era em pequeno número: os órgãos públicos e as embaixadas foram chegando devagar, alguns deles resistindo à mudança, enquanto outros permanecem até hoje na antiga capital, Rio de Janeiro. As superquadras mais antigas, da Asa Sul (108, 308, 208, 408 e as vizinhas), além de algumas outras esporádicas, não conseguiam tirar o sentimento de um grande canteiro de obras que ainda hoje surpreende o mais desprevenido visitante da cidade. Assim, na época, o Conic era de fato longe e de difícil acesso, não exercendo um papel de centro de diversões cotidianas e rotineiras tal qual havia imaginado o seu idealizador. Como iremos observar mais à frente, o edifício vai assumindo funções que se alternam com a consolidação do projeto da nova capital, em cada momento funcionando de forma integrada à vida da cidade. Mesmo assim, apesar de nunca ter se transformado naquilo que foi planejado, logo após sua inauguração, o Conic atraiu embaixadas ainda em fase de implantação na cidade com suas sedes em construção. Essa presença atraía restaurantes e lojas mais sofisticadas, quase que concretizando a proposta original para o edifício. A história mostra que, na medida em que as embaixadas constroem suas sedes e transfere dali todas as atividades de rotina, o Conic experimenta rapidamente um processo de esvaziamento de suas funções e muda devagar o uso de suas instalações. Começam a aparecer clubes noturnos, bares pouco sofisticados, dando início à degradação da área, na medida em que afasta a classe média do Plano e é esquecido pelas autoridades locais. Etnografia do Conic7 Chegamos ao Conic no período da manhã para dar uma explorada no prédio, cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 19 brasilmar ferreira nunes 20 caminhando pelas suas galerias comerciais procurando observar o ritmo de pessoas da área. Sábado, dia de nossa visita, de fato é um dia de menor movimento. O comércio funcionava, mas se sentia que o ritmo era um pouco mais lento, diferente dos demais dias da semana, de segunda às sextas-feiras, quando funcionam as empresas e os escritórios nos andares superiores. O desenho da área térrea, pela entrada da luz do sol no seu interior, aproxima-se daquele que se imagina para pequenas e antigas cidades: passagens, algumas amplas, outras estreitas, que dão em pequenas praças a céu aberto, pequenos becos, esquinas, portanto onde o cruzamento pode dar origem ao inesperado. O lugar, apesar de não apresentar lixos ou detritos espalhados pelas vias, não transmite aquele ar acético típico dos shoppings centers do Plano Piloto. Há projetos para transformar as pistas de pedestres mais parecidas àquelas dos shoppings, com a colocação de pisos em cerâmica ou granitos, talvez procurando atrair uma clientela de gosto mais dentro dos clichês típicos da classe média brasiliense. Uma primeira sensação que vem quando se caminha por suas ruelas é a diversidade de comércio, com a presença marcante de algumas atividades em particular. Assim, entrando pela ala norte do Conic, no nível da rua, são inúmeros os comércios de óculos, tanto para venda como para reparação. Entre uma e outra, esporadicamente, encontrase um bar ou um boteco sem muita sofisticação, com suas mesas e cadeiras de fórmica ou plástico, sem uma harmonia aparente. Observa-se também um número importante de salões de cabeleireiros, manicuras ou de estética em geral. Estes eram os mais procurados naquela hora da manhã, entre nove e onze horas, com clientelas em todos eles. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 Além dessas atividades comerciais, o térreo do Conic apresenta, ao longo de suas ruelas e caminhos, ares de um verdadeiro centro comercial, com atividades as mais variadas, tais como lojas de discos, roupas, sapatos, instrumentos musicais, fotos, fotocópias, papelaria, etc. Cabe destaque a simplicidade das lojas, sem nenhuma preocupação em parecerem sofisticadas, numa clara indicação de que a clientela que para lá se dirige está procurando mercadorias cuja necessidade vem antes de um status ou prestígio oferecido por comércios que trabalham com marcas ou grifes. Chama a atenção, ainda, a existência de livrarias especializadas em ciências sociais, medicina e direito na ala sul do imóvel, além de um cinema com shows de strip tease e filmes pornográficos (funcionando a partir do meio dia indo até altas horas da noite) ao lado de centros religiosos de cultos evangélicos. As livrarias são de excelente qualidade, com obras representativas de cada área acadêmica que trabalham. Visitei com mais cuidado a que oferece obras de ciências sociais e pude comprovar a excelente qualidade do acervo disponível, além do elevado domínio dos últimos lançamentos pelo seu proprietário. Destaca-se, inclusive, a erudição do mesmo, que não só está ciente dos últimos títulos no mercado como emite opiniões de obras e autores com bastante conhecimento de causa. A distribuição do comércio pela área do imóvel obedece à lógica de localização de atividades comerciais em sítios urbanos tradicionais. Assim, há uma concentração de atividades em áreas próximas segundo a natureza do serviço ou do produto ofertado: lojas de materiais óticos situam-se na entrada norte do imóvel, as livrarias, na entrada elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades sul, no centro espalham-se as roupas, discos, calçados, etc. num diversificado ambiente comercial que indica uma lógica locacional no prédio. Os restaurantes se concentram mais aos fundos, onde também podem ser encontrados alguns estabelecimentos especializados, tais como instrumentos musicais, livrarias religiosas, sedes de partidos políticos e fotocopiadoras. A frente para a praça externa aparece como uma espécie de vitrine daquilo que está espalhado pelo interior do imóvel, ou seja, materiais fotográficos, óticas, roupas, livros e os bares um pouco mais sofisticados. Essa calçada faz claramente o papel de uma rua tradicional de cidade, talvez uma das poucas do Plano Piloto. O subsolo do edifício tem ar de espaço semiabandonado: muitas lojas fechadas, vazias, algumas situadas em becos com pouca luminosidade, aliás, uma das particularidades de inúmeros edifícios da primeira fase da cidade. No geral, o subsolo transmite uma sensação de difícil acessibilidade e em outros momentos foi o lugar preferido por marginais. O mesmo pode ser deduzido quando se olha para a lateral sul do prédio ou a parte detrás do imóvel. Nesta há um estacionamento e serve também para cargas e descargas de mercadorias. Essa parte detrás é, curiosamente, a de maior visibilidade para quem olha o Conic a partir do Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional, ou mesmo descendo o eixo monumental em direção à Esplanada dos Ministérios. Uma visibilidade esteticamente comprometedora pois o bric-a-brac dos anúncios comerciais transmite a impressão de um imóvel sujo, sem regras ou administração. Claro que essa impressão é reforçada pela arquitetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou mesmo pela perspectiva da plataforma da rodoviária, vista por quem desce o eixo em automóveis ou ônibus. O comércio que se encontra no Conic atende a uma clientela absolutamente heterogênea. Nota-se perfeitamente a convivência de indivíduos de diferentes estratos sociais, fato de rara constatação no Plano Piloto, onde vive uma classe média padronizada no estilo de ser, vestir e se comportar em áreas coletivas. O que se percebe é que ali os moradores das satélites se sentem familiarizados com a disposição e padrão das lojas, e a possibilidade de se apropriarem do espaço sem a sensação de estarem invadindo um território privado. Essa sensação, visível nos shopping centers mais sofisticados da cidade (Pátio Brasil, Brasília Shopping, Liberty Mall e em menor escala no próprio Conjunto Nacional) fica completamente diluído no Conic, que transmite uma imagem de área multisocial onde um indivíduo morador do Plano Piloto convive com aquele das satélites, frequentando ambientes comuns. A frequência de certos estabelecimentos do edifício é, no entanto, claramente, determinada pelo status social. Por exemplo, nos cabeleireiros, o que se percebe é uma clientela mais popular, o mesmo pode também ser observado em alguns bares, restaurantes ou igrejas ali existentes. Porém, nas lojas de tênis, materiais de esportes radicais (skates, rollers, discos, etc.), a clientela é mais heterogênea, com indivíduos de aspecto típico dos frequentadores dos shoppings mais sofisticados. Nestes, as rodas de jovens na porta ou alguns transeuntes que param nas vitrines indicam um território particular de “tribos” urbanas que se autoidentificam por um padrão similar de consumo, de vestimenta, de gosto, enfim, de estética no seu sentido mais amplo. É um território cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 21 brasilmar ferreira nunes 22 aparentemente democrático, onde o que une os que ali estão é o interesse comum por certos produtos e marcas vendidas nas lojas, definindo certos espaços do Conic pelas características de seus frequentadores. As livrarias especializadas e a loja de partituras musicais – “uma das mais completas do país”, segundo o seu proprietário – têm uma clientela exclusiva: um ambiente calmo, tranquilo como deve ser um lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A loja de instrumentos e partituras musicais já apresenta uma clientela maior, mas o ambiente é peculiar, com pessoas conversando em voz baixa, vestidos de maneira tradicional sem ostentação, com gestos contidos, traduzindo uma clientela com certo grau de sofisticação, habituados talvez a frequentar ambientes similares em outros centros. Circulando pelo Conic, pudemos observar a presença de pessoas notáveis de Brasília, entre profissionais liberais, professores universitários e indivíduos com seleto gosto musical procurando material original nas livrarias e nas lojas especializadas (disco e de instrumentos e partituras musicais). Para os boêmios, pessoas ligadas direta ou indiretamente à atividade artística, funciona ali um teatro e uma escola de arte dramática. Este é, sem dúvida, um aspecto particular de um edifício urbano que foge aos padrões tradicionais dos edifícios da administração federal na Esplanada ou mesmo de shoppings centers de Brasília, frequentados quase exclusivamente pela classe média. Se agregarmos ainda a possibilidade de convivência com diferentes perfis de pessoas atraídas ainda pela diversidade de seu comércio, o Conic cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 não deixa de ter o seu charme garantido. Isso, sobretudo, porque os frequentadores do Conic fazem dali um lugar para estar e não apenas para passar, como é usual em shoppings. Um acontecimento curioso foi a chegada dos evangélicos na área. Inicialmente, houve uma proposta do Bispo Macedo para comprar o Cine Atlântida, uma das melhores salas de cinema da cidade. De fato, o cinema, como todo o conjunto, é tombado pelo IPHAN, mas o espaço estava ficando ocioso justamente pela fuga dos espectadores. O governo do DF encaminhou então à Câmara Legislativa uma consulta sobre as possibilidades de a Igreja Universal adquirir o Cine Atlântida numa área do Plano projetada pelo Lúcio Costa. O parecer da Câmara Legislativa foi positivo, sob o argumento de que atividades religiosas podem ser entendidas como teatro, uma diversão do povo, não ferindo as recomendações do projeto original do Plano Piloto e do edifício. Mesmo se não concordássemos com a designação de arte às cerimônias religiosas, do ponto de vista formal, é diversão, é encontro, é interação. Não há, portanto, incompatibilidade com o projeto de Lúcio Costa.8 Por outro lado, a presença dos fiéis no Conic praticamente não interfere em nada na rotina do edifício: chegam, oram e partem sem olhar para o lado. É um público que não consome, não se diverte, não se envolvendo com a vida do imóvel. Mas acaba sendo a única razão para o Conic estar nas residências de milhões de brasileiros diariamente, pois as cerimônias que ali acontecem são televisionadas em cadeia nacional. elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades A invisibilidade do concreto Compreender essa diversidade de tipos sociais que aí circulam pode ser um exercício interessante para analisar os efeitos do projeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de Brasília. Saindo do Conic na pequena praça que se situa à sua frente, nos damos conta de que, enquanto morador do Plano Piloto, que passa em automóveis algumas vezes por semana vindo da Asa Norte em direção à Asa Sul, o prédio parece invisível. Curioso que, enquanto o Conjunto Nacional chama a atenção pelo movimento diurno ou pelos néons noturnos, o Conic não tem registro nenhum na nossa memória. Sinto-me incapaz de descrevê-lo enquanto transeunte rotineiro do lugar. Tudo se passa como se olhássemos sem vê-lo. É um edifício que, situado na área mais privilegiada do desenho da Esplanada – com exceção é claro dos monumentos do Estado –, consegue ser completamente invisível ao olhar dos transeuntes, motorizados ou pedestres. Só muito recentemente foram instalados anúncios em néon que se destacam, sobretudo para quem vem do Congresso Nacional, pela Esplanada dos Ministérios em direção ao cruzamento dos eixos. Podemos supor dois aspectos que podem estar na base de compreensão daquela sensação de invisibilidade que o edifício transmite. Por um lado, um senso estético hegemônico no Plano que não consegue incorporar nos seus parâmetros alguns princípios de uso do espaço, sobretudo quando vem expresso por indivíduos ou grupos considerados “exteriores” ao que se toma por bom-gosto. Certamente, o submundo que o Conic representou passou a ser a ferida exposta da cultura asséptica que prevalece no Plano Piloto, que, fora esse edifício, talvez só possa ser encontrada em alguns bares tradicionais redutos da boemia da cidade. Mesmo naqueles onde uma vanguarda da cidade faz ponto, o Conic sempre foi visto como “muito mais maldito”, muito mais transgressor. E isso, mesmo hoje, quando, com a chegada das igrejas evangélicas, o lugar passou de profano a sagrado, com requintes de bom comportamento por parte dos fiéis frequentadores dos templos aí localizados. Por outro lado, é a própria localização do edifício, uma extensão do Setor Comercial Sul, que como tudo no Plano Piloto parece tão longe, mesmo quando está “logo ali”. O Conic só se torna uma exceção quando olhado ou da Esplanada, ou do Tea tro Nacional, ou até mesmo do Conjunto Nacional. Do contrário, ele é apenas uma prolongação do Setor Comercial Sul em direção à rodoviária, beneficiando-se de uma quantidade enorme de pedestres, consumidores em potenciais, que fazem o trajeto cotidiano de ida e volta ao Setor Comercial Sul nas suas rotinas de trabalho. A maioria habitante das cidades satélites, comerciantes, profissionais liberais, bancários, camelôs, jornaleiros, flanelinhas, auxiliares de escritórios, office boys , enfim, uma multiplicidade de tipos humanos e atividades que terminam por serem os verdadeiros responsáveis para que o Plano Piloto adquira um ar de espaço urbano, que aliás causou admiração a Lúcio Costa quando visitou Brasília em fi ns dos anos 80. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 23 brasilmar ferreira nunes O imaginado e o acontecido com o Conic 24 É interessante ressaltar que, com todas as restrições que porventura se possa fazer ao edifício, ele é patrimônio da humanidade, tanto quanto os demais imóveis de porte que aparecem no projeto original da cidade. Nesse aspecto, talvez seja essa a única razão pela qual não tenha ainda sido demolido, como de tempos em tempos se cogita. Na proposta original de Lúcio Costa, este “Setor de Diversões Sul” estaria selecionado para abrigar livrarias, cafés, boates e outras atividades que pudessem vir a preencher as necessidades de lazer da futura população do Plano. É interessante esse aspecto pois, embora se tenha tido a intenção de diversificar os grupos sociais que viriam habitar a cidade planejada, os equipamentos de lazer propostos se dirigiam, em tese, para padrões sofisticados de consumo, numa clara ambivalência daquilo que a proposta continha. De fato, esse Setor de Diversões é imaginado como algo sofisticado, para atender padrões também sofisticados de consumo. A tentativa de se reproduzir um padrão de uso do espaço próximo de um Quartier Latin, onde diferentes grupos de funcionários, estudantes, comerciantes, profissionais liberais se encontram denota uma intenção de reproduzir algo sofisticado que, fora a democracia dos espaços das praias urbanas do Rio de Janeiro, não corresponde à cultura de lazer da classe média urbana do país. De qualquer forma, a existência de um teatro, de uma escola de arte dramática, de livrarias de diferentes especialidades – científicas, religiosas, etc. – de cinemas (hoje cedendo lugar a templos evangélicos), dentre outras cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 modalidades de comércio, que poderia ser privilégio de consumidores mais exigentes, não foi suficiente para evitar que, devagar, o uso do imóvel fosse cada vez mais se popularizando. A esse discurso inicial que planeja uma área com um certo uso para um grupo com um certo padrão de exigência e de estética se impregnou a imagem estigmatizada que o Conic apresenta hoje perante os moradores do Plano Piloto. Essa imagem estigmatizada se apresenta em duas dimensões: por um lado, pelo estado de conservação do imóvel, abaixo dos padrões dos shoppings da cidade; por outro, pelo perfil médio dos frequentadores do lugar, no geral. Curioso que o Setor Comercial Sul (SCS), ao lado, não provoca tanto mal-estar, mesmo porque, compondo-se de diferentes edifícios, o uso e o porte é muito superior ao do Conic e a sua apropriação é absolutamente absorvida pelos moradores do Distrito Federal. Certamente essa absorção se dá também pelo próprio desenho das ruas e dos imóveis que compõem o SCS que integra também aqueles espaços “invisíveis” do Plano Piloto, em torno do qual passamos quotidianamente ser vê-lo, ao contrário, portanto, do Conic este sim, situado num lugar de passagem obrigatório para quem circula no Plano Piloto, detentor de uma visibilidade evidente. O processo de degradação do edifício e arredores Num primeiro momento, o fato de se ter um edifício estigmatizado no centro do elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades Plano Piloto de Brasília, em si, não é uma questão original. Todas as grandes cidades do mundo apresentam áreas desvalorizadas, justamente em locais que, pela sua antiguidade, já contam com infraestrutura urbana praticamente completa. É, aliás, essa a razão pela qual a onda de renovação urbana tem sido observada em praticamente todas as grandes cidades do mundo ocidental nestas últimas décadas. Paris, Nova York, Barcelona, São Paulo, Salvador, Recife, dentre outras, passam por processos de gentrificação de seus espaços degradados, atraindo uma classe média endinheirada e intelectualizada que valoriza justamente a estética e o conforto dos velhos imóveis de outros tempos. Apesar de tímida, a tentativa de renovação do Conic vai na mesma direção, Entretanto, fica sempre uma questão inquietante: por que edifícios ainda recentes, situados em áreas privilegiadas da cidade, gozando de facilidade de acesso e de uma infraestrutura completa e adequada se deterioram com tanta rapidez? É verdade que o Plano Piloto tem alguns edifícios com características de degradação precoce, mas todos eles nunca antes ocupados efetivamente. São muitos deles projetos inacabados, que se transformam em ruínas antes mesmo de terem sido inaugurados. Mas o Conic é diferente. Aqui é, de fato, um imóvel em pleno uso, com uma inserção específica na vida da cidade e que pode ser considerado como um dos mais ecléticos imóveis do Plano Piloto, pela diversidade de usos e de frequência. Se rompermos com a imagem de shopping center como aquele lugar superprotegido, fechado, sem visibilidade externa, o Conic pode ser considerado um shopping center tal e qual os demais. Talvez até mesmo uma proposta de centro comercial e de diversões que foge aos padrões similares oriundos dos modelos norte-americanos, além de sua originalidade arquitetônica, dada as características climáticas do Planalto. Poderíamos também formular uma outra questão: por que o Conic se deteriora, enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e com várias semelhanças de usos, guarda sua imagem? Mesmo se levarmos em conta que o público que frequenta o Conjunto Nacional seja também diversificado por origem e renda (característica, aliás, inevitável, pois a localização no cruzamento dos eixos e sobre a rodoviária urbana induz a isso), o edifício tem muito dos princípios arquitetônicos padronizados para shopping centers. A exceção são lojas com abertura para as calçadas externas, mas que, por arranjos de fácil execução, voltaram-se para o interior do prédio. Fora isso, é um shopping com diversidade de usos e de frequência dos mais movimentados da cidade com condições semelhantes ao Conic. Não deixa de ser, portanto, uma questão que se coloca quando se pensa nos caminhos que seguiram um e outro edifício. Uma das causas dessa diferença pode ser atribuída ao modelo de gestão adotado em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional foi adquirido por um grande grupo que o transforma naquilo que ele é hoje, submetendo-o a uma única administração, o Conic é formado por 13 edifícios, logo, 13 condomínios, com 1.700 proprietários, cada qual com sua parcela de poder na definição dos rumos do imóvel. Há cerca de dez anos atrás foi criada uma Prefeitura do conjunto para centralizar a administração do prédio, com a função prioritária de acabar com o estigma de área perigosa e para normatizar as áreas degradadas. A primeira função foi cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 25 brasilmar ferreira nunes 26 praticamente cumprida: cria-se uma delegacia de polícia dentro do edifício e restringese o tráfico de drogas e prostituição. Podemos, mesmo sem parecer enfáticos, considerar que hoje o Conic é uma das áreas mais seguras dentro do Plano Piloto.9 Entretanto, o estigma permanece. As razões disso só poderiam ser encontradas na lógica de fixação de pré-conceitos no imaginário dos habitantes da cidade que se enraízam e se espacializam. O espaço urbano é a concretização do imaginário social que se constrói no histórico cotidiano e o Conic permanece ainda como lugar pouco nobre. De qualquer forma, com a retirada de marginais que ali tinham suas bases, devagar o Conic vem se transformando através de remodelação de aspectos do projeto original,10 numa procura de resgate de sua primeira proposta. Isso significa que enquanto o Conic não for transformado esteticamente segundo padrões usuais dos shoppings vizinhos ele permanecerá um “corpo estranho”, separado, mas funcionalmente necessário, limitado que está àquela racionalidade do Plano Piloto. Por outro lado, é essa diferenciação no uso ante os demais imóveis da área que parece constituir o ponto de apoio mais importante do argumento segundo o qual não se pode considerar a área da Esplanada dos Ministérios esteticamente unificada. Entretanto, vale ressaltar ainda o potencial de área alternativa que o Conic contém. Se, por um lado, conforme destacado acima, a multiplicidade de proprietários dificulta a gestão do imóvel nos moldes que ocorrem em outros shoppings centers, por outro, essa condição pode ser um trunfo que o diferencia das experiências similares no Plano. Sim, porque o Conic vem, devagar, se tornando uma área alternativa dentro do Plano Piloto, numa cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 clara diferenciação entre o organizado e o racional cartesiano que é o Projeto de Lúcio Costa; de fato, por se tratar de uma área anárquica, caótica, enfim urbana, e graças a essa indefinição, uma área com maior liberdade de uso, o edifício começa a seduzir uma gama de artistas, arquitetos, poetas, cineastas, etc., atraídos justamente por esta “irracionalidade” e este ar de pretensa “marginalidade”. Na verdade, uma área que aparece quase que como um gueto dentro do Plano Piloto. Um “gueto” ao inverso no Plano Piloto A ideia de “gueto” urbano vem da obra de Wirth, quando trata das características socioculturais do bairro judeu de Chicago na primeira metade do século XX. Conforme o próprio Wirth destaca, o gueto foi, na origem, um lugar de Veneza, um de seus bairros, onde se estabeleceu a primeira comunidade judaica. Transformou-se, ao longo do tempo, numa instituição reconhecida pelo costume e definida pela lei. Os dicionários da língua portuguesa definem gueto como “bairro em qualquer cidade, onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais”. Tanto a definição de Wirth como aquela do dicionário não poderiam se adequar à caracterização do Conic como um gueto. Um olhar mais apressado diria mesmo que é o oposto, dada a diversidade de tipos urbanos que o frequenta e que terminam por dar-lhe sua identidade. Entretanto, visto no contexto do Plano Piloto, especialmente na Esplanada dos Ministérios, no qual ele se insere, elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades ele aparece justamente como uma exceção ao padrão estético e funcional da área. Neste sentido, e apenas neste, ele aparece como um espaço singular que abrange não apenas os tipos sociais, mas também a sua própria arquitetura interna que vai sendo criada e recriada sem a rigidez legal da Esplanada. Aí sim ele é singular; uma singularidade que se acentua dada a “distância” do Setor Comercial Sul. Aí ele pode ser visto como um gueto, um corpo estranho a uma classe média moradora do Plano Piloto, com a diferenciação nos tipos sociais e no uso ante os demais imóveis da área. Permanece sempre a pergunta do porque numa área tão privilegiada o “povo brasileiro”11 tomou conta daquele espaço. Uma das possíveis explicações pode estar no grupo que está por detrás da construção dos prédios do Conic. Brasília foi um eldorado para as construtoras quando da edificação da cidade nos anos 50. Além das grandes empresas nacionais que se responsabilizaram pelas obras dos edifícios públicos, pelo sistema viário e mesmo pelos blocos dos apartamentos funcionais, outras empresas regionais também fizeram fortuna naquele momento.12 Talvez por razões de economia ou por valores culturais e estéticos, ou mesmo porque a cidade que se construía naquele momento, não tinha ainda como exigência a ostentação de luxo e sofisticação como atualmente ocorre, o fato é que o visual do prédio é simples, sem ostentação. Fica evidente quando o olhamos que seus idealizadores não tiveram a estética como diretriz. Aliás, se olharmos os prédios por eles construídos no Plano Piloto, certamente, eles estariam classificados entre os que apresentam uma arquitetura sem estilo, numa caricatura de um modernismo caboclo: construções que envelheceram e perderam o charme muito rapidamente. A dinâmica social do edifício Há um consenso entre os frequentadores usuais do Conic, mais particularmente entre os comerciantes que têm lojas no edifício, de que se trata de um dos lugares mais seguros do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial Sul e o próprio complexo Gilberto Salomão no Lago Sul área nobre da cidade. Esse argumento pode encontrar princípio de realidade, sobretudo se levarmos em conta a presença de um batalhão da polícia militar com uma delegacia dentro do próprio conjunto edificado: fala-se num efetivo de 500 homens que se revezam dia e noite na vigília do prédio e arredores, o que inviabiliza qualquer convívio com criminosos de qualquer estirpe. Claro que não estamos aqui considerando o trabalho das prostitutas que ali fazem ponto noturno, não causando nenhum transtorno maior aos frequentadores do lugar, inclusive os evangélicos e suas famílias. Entretanto, o Conic hoje tem uma imagem estigmatizada, principalmente junto à classe média tradicional do Plano Piloto, resquício de um período em que a situação beirava o descontrole. Podemos considerar três fases na vida do edifício a partir de sua inauguração. Numa primeira fase, o edifício atraía as embaixadas estrangeiras que tinham ali seus escritórios de representação, os profissionais liberais, partidos políticos, etc. A localização privilegiada facilitava a preferência, que se manteve enquanto as sedes oficiais das representações diplomáticas foram cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 27 brasilmar ferreira nunes 28 sendo construídas. Naquele momento, o local era frequentado pela alta burocracia do Estado, tinha lojas e restaurantes condizentes com os frequentadores, um retrato que se aproximava muito daquele imaginado por Lúcio Costa. Esse público com poder de compra estável e de elevado padrão certamente atrai diferentes atividades para a área, particularmente aquela que se instala na segunda fase do edifício. Nessa fase segunda, o local é invadido pela prostituição, pelo crime, tráfego de drogas, num período de decadência, responsável pela imagem que o edifício carrega até os dias atuais. Essa imagem se alastra com uma certa facilidade, talvez pela situação do imóvel dentro do Plano Piloto e a sensação de invisibilidade que ele transmite aos passantes pelas suas calçadas e ruas que o circundam. É essa ambivalente situação espacial – visibilidade e invisibilidade – aliada a um desenho interno que, tentando reproduzir ruas e becos de sítios urbanos tradicionais, termina por ser funcional às transgressões que ali se desenrolavam. Se considerarmos que a sociedade não deixa de ser um mecanismo de introjeção de valores e comportamentos, muitos deles restringindo a própria natureza humana, podemos também assumir que espaços de transgressão sempre existiram nas cidades na história. A funcionalidade da prostituição – “a mais antiga profissão do mundo” –, as drogas, que funcionam como mecanismos de escape, ou de vícios, enfim uma série de práticas que são reprimidas socialmente, mas que a sociedade arruma sempre uma forma de permitir a sua existência é regra geral em áreas de elevada densidade populacional. Claro que os espaços urbanos para práticas transgressoras nunca são definidos de forma cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 legal ou tranquila, mesmo se em passado recente era comum nas cidades brasileiras reservar uma de suas áreas onde se concentravam as prostitutas (a zona); hoje essas zonas estão praticamente desaparecidas. É de se supor que nos anos sessenta e setenta a cidade tinha um mercado razoável para o sexo, na medida em que as pessoas chegavam, desenraizadas, descoladas de vínculos mais estreitos e, sobretudo, com salários fixos que permitiam alguns “excessos”. Uma parcela da burocracia vai encontrar na oferta das prostitutas do Conic uma facilidade enorme para se satisfazer e, em sendo um negócio, pode-se argumentar que há uma racionalidade econômica na opção por aquele território.13 Atualmente, podemos considerar como sendo a terceira fase do Conic. Cria-se a sua prefeitura atendendo demanda dos comerciantes e profissionais que ali trabalham, instala-se uma delegacia, há uma debandada do crime e do tráfego. Essa terceira fase pode ser considerada a “onda política” com a presença da sede de diferentes partidos e, portanto, frequentado rotineiramente pelos dirigentes e militantes. Alguns estabelecimentos comerciais (livrarias, teatro, lojas especializadas, alguns bares) atraem professores universitários, aposentados (no Plano Piloto é importante a presença de aposentados), profissionais liberais que, ao lado dos candangos das satélites, fazem do lugar um ponto de referência, de encontro. De forma que, hoje, entre o estigma de lugar decadente e a procura de um charme de vida urbana que raramente se encontra no Plano Piloto, o Conic vive sua nova fase. Poderia estar aí um dos trunfos da reabilitação ou da inserção do Conic no Plano Piloto nos moldes que foi pensado por elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades Lúcio Costa. Para os moradores da cidade, uma das maiores carências são as áreas de convívio coletivo que escape aos jardins e áreas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas grandes cidades brasileiras, Brasília tem em quantidade, porém não dispõe, por exemplo, de “botecos” um velho hábito urbano do país, que foi completamente esquecido, talvez pela trivialidade do fato. Áreas onde seja possível tomar um cafezinho, utilizar um banheiro, sentar numa mesa para um aperitivo, uma conversa. Lazer em Brasília são bares e restaurantes, a maioria deles formais o suficiente para exigir um certo ritual de frequência. Dificilmente são lugares onde se vai espontaneamente. Pois o Conic é justamente isso. Com uma localização privilegiada, pensado justamente para ter estas características de uso, sem a assepsia de shoppings com seus insistentes apelos de consumo. Aqui se vê que a parcela criativa do urbanista foi pensada, o que faltou foi a criatividade das pessoas que para cá vieram, obviamente com as exceções de praxe. Espaço de exceção, espaço de outras sociabilidades Toda a discussão sobre o estigma que caracteriza o Conic é no fundo um olhar de fora sobre o edifício. Há na cidade indivíduos que frequentam rotineiramente o lugar, fazem dali um ponto de encontro entre amigos, de conversas, compras, enfim, fazem dele um lugar urbano de multiusos. Para a rotina de Brasília, onde o ato de andar à pé só se faz nos fins de semana, quando se caminha pelas superquadras ou pelos parques, ficou uma sensação curiosa e familiar ao mesmo tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um movimento. No fundo, é ali que a Esplanada é mais cidade. Na verdade, podemos nos perguntar se seria o caso de intervir para alterar ou ordenar o espaço coletivo do edifício? Claro que se olharmos pelo lado da arquitetura não oficial do Plano Piloto, especialmente da Esplanada, o Conic é sem dúvida o maior monumento histórico da cidade. O fato de os arquitetos da nova capital não terem tido nenhuma preocupação com populações fora do núcleo do poder, do governo, fez do Conic o contraponto entre o oficial e o não oficial na estética do Plano Piloto: a antítese daquilo que é a regra geral para o Plano Piloto. Talvez seja o único edifício de uma área tombada pela Unesco que, de tempos em tempos, alguém propõe demolir. Causam pouca reação propostas dessa natureza, mas servem para reunir um grupo de intelectuais, arquitetos, artistas, comerciantes e frequentadores do Conic num grupo de reflexão para traçar o futuro do edifício e protegê-lo das ameaças de destruição. Tudo está indicando que intervenções seriam simplesmente para consolidar o papel atual do Conic construído em décadas de existência que se confunde com a própria história da cidade. Será nesse confronto entre o “ódio” que o Conic provoca em uns e o “amor” que desperta em outros que o futuro do edifício está sendo tratado. Os clássicos da sociologia, Simmel à frente, trataram a metrópole como um “fato civilizatório” na medida em que ela simbolizava a forma geral da modernidade. Nisbet (1984, p. 381) argumenta que a metrópole joga no pensamento de Simmel o mesmo papel que a democracia para Tocqueville, o cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 29 brasilmar ferreira nunes 30 capitalismo para Marx e a burocracia para Weber. Foi ele o primeiro que fez da grande cidade o lugar por excelência no qual se exprime a lógica social da sua época. Com os avanços do capitalismo e com a globalização, podemos afirmar que essa é uma assertiva cada vez mais evidente. Não se pode perder de foco o fato que a heterogeneidade da metrópole termina encontrando nela um ambiente adequado à existência de grupos e tipos urbanos singulares e com menores possibilidades de controle. Garantindo a unidade na diversidade, a metrópole termina por se constituir como a síntese civilizatória dos tempos modernos, ambiente propício ao aparecimento de formas originais de socialização. Mais uma vez temos que recorrer a Simmel para recuperar o seu argumento de generalização da moeda na metrópole, fenômeno que permite o aparecimento de tipos originais no ambiente da grande cidade (o indivíduo blasé, o estrangeiro, o reservado), resultando na diferenciação social típica da modernidade. É interessante essa tipologia simmeliana, pois não se trata aqui de classificar os indivíduos que frequentam o Conic como excluídos ou algo parecido. A diversidade de tipos humanos e de atividades econômicas poderia dar margens a tensões no convívio diário. Mas tudo está indicando que há códigos informais de convívio e as pessoas terminam por não interferir no espaço uma das outras. Certamente, a imagem de uma área caótica que se sente quando ali estamos tem muito da programação visual do comércio ali existente e do contraste com o desenho racional da maioria dos edifícios do Plano Piloto. Assim, não se trata de um recorte econômico simplesmente, mas sim de formas de sociabilidade distintas. O que procuramos cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 mostrar para o caso do Conic é que sociabilidades heterogêneas induzem ao aparecimento de ambientes (estéticas) também heterogêneos, mesmo em espaços pensados para serem homogêneos, como é o Plano Piloto. A área escolhida pode ser lida então como um espaço de possibilidades de novas modalidades de uso da cidade por indivíduos e grupos que não estavam contemplados no seu projeto original, apontando fissuras no seu espaço físico.14 Há aqui estreita relação entre ambiente construído e seus usos: frequentar o Conic é elemento identificatório do lugar social do indivíduo, exigindo na sua análise elementos científicos e metodológicos que dialoguem com um certo número de disciplinas, tais como a arquitetura, a economia, o urbanismo em torno de questões sobre a racionalização, a concentração, a divisão do trabalho. Já é consensual entre os estudiosos do urbanismo modernista no Brasil da segunda metade do século XX que a cidade era a síntese de um projeto de sociedade. Brasília, sob essa perspectiva, aparece como a unidade central (a city) física e social, cujo espaço construído é denso, com funções econômicas (terciárias) vitais. Ela se liga às cidades satélites, relativamente autônomas, mas se mantém como sede das atividades econômicas, do emprego formal, com uma autonomia interna. Essa centralidade física e social polariza os seus arredores e deve, portanto, garantir espaços de sociabilidades que escapam àquela hegemônica oriunda da cultura burocrática de uma cidade-Estado. Na verdade, ela cumpre assim seu papel de metrópole, na medida em que garante a existência de tipos urbanos peculiares da grande cidade: em outras palavras, o “estrangeiro” tem seu território de existência garantido no Conic. elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades Brasilmar Ferreira Nunes Doutor em Sociologia pela Université de Picardie – França. Professor Ttitular de Sociologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Notas (1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para ficar apenas entre os considerados referências em nosso campo de trabalho. Isso para não falar no geógrafo, Prof. Milton Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importância do espaço na construção das relações sociais. (2) O que, aliás, foi a perspectiva dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do século XX que tratavam a cidade e suas áreas como “zonas morais”. Park (1976), Chapoulie (2001). (3) Com a evolução da tecnologia e a expansão do setor terciário da economia onde hoje o lugar de trabalho é cada vez menos dependente da localização da unidade produtiva e onde o trabalho em casa ganha cada vez mais importância, não se pode negar que o debate sobre os argumentos dos modernistas ganham novos elementos. (4) É em razão disso que ele introduz a noção de “ambiente” e faz das variações do ambiente um fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecânica se torna ultrapassada e deve ser substituída pela solidariedade orgânica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995). (5) A ideia de matriz utilizada pelo autor é “a organização de paradigmas de várias disciplinas que formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo” (Duarte, 2002, p. 23). (6) Não iremos aqui reproduzir essa discussão, de resto inútil, pois a cidade de Brasília se implantou e se consolidou com todas as limitações que porventura possa se constatar no projeto apresentado. (7) Na elaboração desse tópico, tive a companhia de Naraina Kujimian, então bolsista de PIBIC. Em certa medida, procuramos seguir as orientações de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fazendo uma leitura minuciosa do cotidiano do edifício para situar o leitor no contexto do objeto analisado. (8) Nas palavras de um de nossos entrevistados: “É polêmico, mas se respeitarmos a liberdade de culto e de crença, a Igreja Universal é hoje o teatro do absurdo mais importante do mundo”. (9) Após o período de auge, quando de sua inauguração, o Conic sofre um processo de decadência que transforma o lugar num ponto de tráfico de drogas, prostituição e mendicância. A Prefeitura trouxe então o Batalhão da Polícia Militar, afugentando os indesejáveis. Hoje não se fala mais em quadrilhas de traficantes agindo no Conic e a área é uma das mais seguras do Plano Piloto. (10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e propõe várias intervenções no seu desenho físico. (11) Expressão de Lúcio Costa referindo-se à população que tomou conta da rodoviária e arredores de Brasília. Ver Costa (1987). (12) Na construção do Conic estão três dos grandes empresários pioneiros construtores de Brasília: Venâncio, Baracá e o Karim Narrote. cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009 31 brasilmar ferreira nunes (13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o tráfego de drogas, que se beneficia do mercado consumidor do Plano Piloto. (14) É interessante isso, pois hoje já se pode constatar que essas “fissuras” no projeto original estão ampliando seus territórios dentro da área, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupação dos imóveis por pessoas e atividades que fogem ao padrão hegemônico no Plano está cada vez mais evidente, num claro sinal de que a cidade é um produto coletivo em movimento. Ver Luis Felipe Castelo (2007). Referências BECKER, H. (2008). Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro, Zahar. CASTELO, L. F. (2007). Fissuras urbanas. Dissertação de Mestrado do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Brasília, UNB. CHAMPY, F. (2001). Sociologie de l´architecture. 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Embora eles forneçam um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação territorial, a exclusão social e as políticas institucionais ignoram, frequentemente, a centralidade da produção na determinação do ambiente construído. Em especial, chamam a atenção a produção acadêmica sobre arquitetura e urbanismo que ignora a construção e a produção sobre tecnologia que ignora o trabalho. Essas características estão nas raízes da formação da sociedade brasileira – desprezo pelo trabalho, distanciamento entre discurso e prática. É preciso reorientar o enfoque teórico da pesquisa sobre habitação. Abstract This paper shows that most studies on housing are carried out in the context of consumption, by dimensioning and qualifying it. The State and public policies play a central role in these studies. Although they provide an important picture of the lack of housing, territorial segregation, social exclusion, and institutional policies, they often ignore the central role played by production in defining the constructed environment. In particular, attention is drawn to the academic production on architecture and urbanism that ignores construction and the technology production that ignores labor. These features are at the very roots of Brazilian society – disdain for work, and a gap between discourse and practice. It is imperative to change the theoretical framework of housing research. Palavras-chave: ção; trabalho. Keywords: work. habitação; teoria; constru- housing; theory; construction; cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 ermínia maricato Teoria aos pedaços: a ausência das determinações gerais1 34 No início deste trabalho, queremos chamar a atenção para uma questão de ordem teórico-metodológica: o estreitamento do campo das pesquisas e da produção acadêmica sobre o tema da habitação no Brasil, dominadas principalmente pelas abordagens do consumo – déficit, carência, má qualidade, tipologia, formas de ocupação do domicílio e do espaço – e da política habitacional praticada pelo Estado. Deve-se reconhecer que tal produção intelectual contribuiu para o conhecimento da situação de precariedade habitacional existente e dos desvios nas políticas públicas, que se revelaram incapazes de sanar a carência das camadas mais pobres da população. No entanto, ela não contribuiu para desvendar uma leitura mais ampla sobre a produção da habitação ou mais propriamente da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e dos agentes envolvidos.2 A relação de estudos e autores utilizados para representar essas tendências dominantes na produção técnica e acadêmica não pretende ser exaustiva mas apontar alguns pioneiros nos temas abordados. 3 Não se pretende ainda fazer uma crítica a essa produção intelectual que compõe os autores citados na relação inicial (ao contrário, reconhecemos a importância desses estudos), mas sim destacar a predominância da esfera do consumo e do Estado como temas dessa produção acadêmica e a ausência de abordagens histórico-estruturais que permitam reconhecer a permanência ou a inovação nas determinações dessa parcela do ambiente construído. cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 De fato, o foco nas carências habitacionais e nos déficits de moradia tem sido a forma predominante dos órgãos públicos tratarem a questão da habitação, por meio de consultores contratados, como um problema quantitativo e mais recentemente, nos anos 90, também qualitativo.4 Os levantamentos promovidos pela Finep, em "Inventário da ação governamental no campo da habitação popular”, finalizado em 1979, e a posterior publicação de Habitação popular: inventário da ação governamental (Finep, 1985), constituem um importante cadastro de documentos e bibliografia que comprovam o que afirmamos aqui. Carência habitacional, periferização, segregação urbana são temas recorrentes que têm sido bem desenvolvidos, tanto nas análises dos planos urbanísticos que têm início com as “reformas urbanas” implementadas no começo do século XX quanto nas análises da moradia e condições de vida da classe trabalhadora no Brasil industrial, incluindo ainda a abordagem das dramáticas e generalizadas condições de periferização, “guetização”, ilegalidade e favelização característicos da chamada era da globalização. As reformas urbanas que pretenderam dar às cidades brasileiras, na República recém-proclamada, a imagem de progresso e modernidade visavam afastar o fantasma da presença da escravidão recente, deslocando populações pobres de áreas centrais, e recuperar espaços para o mercado imobiliário. Estudos com esse sentido foram desenvolvidos, dentre outros autores, por Sevcenko (1984), Andrade (1992), Leme e outros (1999). Os cortiços, como forma prioritária (e privada) de moradia da massa trabalhadora pobre no início do século XX, foram por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação analisados por PMSP-Sebes (1975), Vaz (1986), Villaça (1986 e 1999), Ribeiro (1991), Reis Filho (1994), Bonduki (1994), Piccini (1999), Kohara e Caricari (2006), entre outros. Importantes estudos sobre a reprodução da classe operária ou proletariado urbano que incluíram a formação da periferia com a predominância do transporte sobre rodas, a autoconstrução, os loteamentos ilegais, a partir dos anos 1930 e 1940, foram feitos por Sampaio (1972), Ferro (1972), Lemos e Sampaio (1976), Maricato (1976 e 1979), Bonduki e Rolnik (1979), Valladares (1980), Santos (1980), Bogus (1981), Mautner (1991) e Souza (1999). A terra tem sido reconhecida como elemento central do processo de exclusão e segregação urbana, mas também tem sido frequentemente abordada segundo o enfoque da carência e fortemente relacionada à legislação.5 As favelas, uma forma variante daquela referida acima, mereceram atenção especial dos pesquisadores cujas cidades convivem com o fenômeno há mais tempo. Talvez o pioneiro e paradigmático estudo sobre favela seja o clássico Sobrados e mocambos, de Gilberto Freyre; no entanto, a produção de autores cariocas destaca-se pela abundância. Desde meados do século XX, os estudiosos da cidade do Rio de Janeiro dedicam importantes estudos às favelas cariocas, como mostra Lícia do Prado Valladares em seu livro Repensando a habitação no Brasil (Valladares, 1982). Ver ainda a síntese feita por Suzana Pasternak em sua tese Favelas e cortiços no Brasil: 20 anos de pesquisas e políticas (Pasternak, 1993). Estudos mais recentes abordam novas formas de segregação socioespacial da população. Eles se referem tanto aos crescen- tes núcleos de pobreza nas áreas centrais abandonadas pelo capital imobiliário, e que são objeto de planos oficiais de “renovação”, “reforma” ou “reabilitação” (ver Silva, 2000 e 2007) quanto à heterogeneidade trazida à periferia ampliada por uma nova forma de ocupação do solo, pelos condomínios fechados de alta renda (ver, por exemplo, Caldeira, 2000; Marques e Torres, 2005). O impacto da reestruturação produtiva capitalista e das políticas neoliberais é reconhecido como determinante desse espraiamento que “dilui” a cidade ou a metrópole na região, mas esse impacto pode ser visto também como determinante do aumento da precariedade habitacional e urbana pelos autores Observatório das Metrópoles (2005) e Davis (2006). As análises das políticas públicas de habitação engendradas pelo Estado permitiram o desvendamento do seu caráter de agente ativo do processo de segregação territorial, estruturação e consolidação do mercado imobiliário privado, aprofundamento da concentração da renda e, portanto, da desigualdade social. Tais análises foram desenvolvidas por Bollafi (1975), Serran (1976), Azevedo e Andrade (1982), Maricato (1987), Arretche (1994), Draibe (1994), entre outros. Na extensa produção de livros, documentos e relatórios contratados pelo Ministério das Cidades, a partir de sua criação em 2003, é possível encontrar dados atualizados sobre todos esses assuntos, incluindo o tema recém-adotado na esfera governamental federal: regularização fundiária de habitação de interesse social. Apesar do número significativo de estudos críticos sobre o assunto, é notável o desconhecimento do quadro geral da produção e distribuição da habitação, que estamos cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 35 ermínia maricato 36 aqui denominando provisão da habitação, formado pelas diversas tipologias resultantes de diferentes arranjos entre: o financiamento, a construção, a promoção, a comercialização, a participação da força de trabalho e o lugar ocupado pela propriedade da terra no contexto da regulação instituída (e praticada de forma discriminatória no Brasil e em toda América Latina) pela legislação de uso e ocupação do solo. O arranjo resultante do encontro desses agentes envolve, evidentemente, muitos conflitos. Como conflito básico, podemos citar o interesse daqueles que precisam de uma moradia para viver e aqueles que lucram com sua provisão. Mas outros conflitos internos e externos a esse arranjo ou a esses agentes podem aparecer. Por exemplo: conflitos entre promotores e construtores, conflitos entre a força de trabalho e os construtores, conflitos entre todos os agentes que compõem o capital imobiliário e a política macroeconômica. Enfim, estamos tratando de antagonismos que podem acontecer ou não, dependendo de uma dada correlação de forças definida historicamente e dos arranjos que podem ocorrer entre esses agentes (Harvey,1982).6 Num dos poucos momentos em que constatamos a mobilização dos trabalhadores da construção civil contra os baixos salários e as péssimas condições de trabalho, em diversas capitais brasileiras, o que aconteceu no final dos anos 70 e início dos 80 (quando a construção civil estava a todo o vapor), foi possível acompanhar as mudanças significativas na organização do trabalho no canteiro de obras, além do atendimento das reivindicações (Valladares, 1982). Infelizmente, esse movimento de mudança não se sustentou devido ao drástico recuo nos investimentos públicos a partir de 1983. cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 Iniciava-se um longo período de ajuste fiscal e corte nos gastos públicos com aumento do desemprego (Maricato, 1988). Toda família precisa de uma moradia. Todos moram em algum lugar, ainda que seja numa mansão em condomínio fechado ou num barraco sob um viaduto. O estoque de moradias é resultante dos diferentes arranjos existentes no interior do conjunto formado pelo mercado privado, pela promoção pública e pela promoção informal (o que inclui ainda arranjos mistos) em diferentes situações históricas de uma dada sociedade. A estrutura de provisão de moradias se refere à construção, manutenção e distribuição de um estoque, que se forma a partir de diversas formas de provisão de habitação: promoção privada de casas, apartamentos ou loteamentos, promoção pública de casas ou apartamentos, autoconstrução no lote irregular ou na favela, autopromoção da casa unifamiliar de classe média ou média alta, loteamento irregular, entre outros. Apenas essa abordagem ampla, que toma a moradia como um produto social e histórico, pode explicar o desaparecimento de certas formas de provisão em algumas cidades. É o caso das vilas populares ou carreiras de pequenos sobrados resultantes da ação de um pequeno promotor, nas primeiras décadas do século XX, nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, que desapareceriam na segunda metade do século (Ribeiro, 1996). Produtos semelhantes podem resultar de diferentes formas de provisão da moradia. Uma casa de alvenaria em uma favela pode parecer idêntica, visualmente, a uma casa de alvenaria em um loteamento regular, mas a participação do componente terra é, em geral, muito diferente: num caso, a terra por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação é invadida (embora a partir dessa primeira ação ela possa ser vendida informalmente) e no outro ela é comprada, sendo objeto de um contrato de compra e venda registrado em cartório. A condição jurídica é diferente, embora possa apresentar muitas variantes, dependendo da condição de propriedade da terra que é vendida ou invadida. As diversas formas de provisão da moradia (o que inclui a moradia de aluguel, obviamente) constituem um conjunto contínuo e interdependente: se o mercado é muito restrito às camadas de mais altas rendas, como acontece no Brasil, e o investimento público é escasso, a produção informal fatalmente se amplia, pois, como já foi destacado, todos moram em algum lugar. A abordagem da promoção pública ou das políticas públicas, isoladamente, como é tradição em nosso meio acadêmico, impede a compreensão sobre sua inserção nessa estrutura geral de provisão das moradias, prejudicando o entendimento da realidade e a formulação de propostas. Não há como responder às demandas de moradia da população de baixa renda (ainda que hipoteticamente exista interesse governamental) se o mercado não responde às necessidades da classe média.7 No Brasil, a classe média não tem sido atendida pelo mercado privado, especialmente a partir do recuo dos investimentos do Sistema Financeiro da Habitação, a partir de 1980. A consequência da falta de resposta à necessidade de moradia da classe média, a partir dessa data, é o acirramento da disputa com as camadas de baixa renda pelo acesso aos subsídios públicos. Considerando-se que esses subsídios tiveram uma queda drástica, tornou-se lugar comum encontrar domicílios com famílias de classe média em favelas. Tecnologia que ignora o trabalho, arquitetura e urbanismo que ignoram a construção A precariedade das pesquisas na área de habitação não se esgota nessa ausência de uma visão de conjunto; na medida em que ignoram a provisão (produção e distribuição), ainda que de uma forma específica de moradia, incorrem também em equívocos. Vamos lembrar algumas ausências no escopo de trabalhos que terminam por comprometer sua cientificidade. O estudo da técnica e da tecnologia da construção frequentemente ignora a organização e o processo de trabalho, como se estes fossem irrelevantes para o nível de produtividade. Nos estudos sobre tecnologia da construção ignora-se, frequentemente, o papel da terra e da renda fundiária na determinação do atraso na construção civil. Faz parte do senso comum a ideia mistificada, também presente em grande parte da produção acadêmica, de que materiais de construção “milagrosos” tornarão a construção de casas muito mais barata e eficiente. Nilton Vargas tem desenvolvido experimentos paradigmáticos em canteiro de obras desde início dos anos 80, reafirmando a centralidade do processo de trabalho e da condição urbana ou mais propriamente da renda fundiária e do acesso a um pedaço de terra urbanizada, para definir os patamares da produtividade na construção.8 É de 1983 a primeira formulação dessas ideias publicadas em livro (Vargas, 1983). Porém, como se constata em grande parte dos estudos financiados pela Finep sobre tecnologia de construção, esse autor permanece bastante cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 37 ermínia maricato 38 ignorado. As forças produtivas não incluem apenas máquinas, equipamentos, novas fontes de energia, novos materiais, novos processos químicos ou eletrônicos, mas também a organização do trabalho. Apenas para dar um exemplo, o taylorismo promoveu um avanço significativo na produtividade industrial americana a partir da reorganização do processo de trabalho baseado no estudo de “tempos e movimentos”. A especialização que permitiu avanços significativos na indústria manufatureira se baseou na divisão do trabalho. Lembremos que boa parte dos canteiros de obras ignoram, no Brasil e no princípio do século XXI, grande parte dessas conquistas que datam do início do século XX. A tradição marxista explica como a produção material da vida parece ser orientada – por meio da ideologia – pela esfera do consumo, das necessidades, das ideias. Um universo de símbolos cumpre a função de mascarar as relações sociais baseadas na exploração e apropriação do excedente de riqueza criado na produção. Mas, no Brasil, é preciso reconhecer algumas especificidades que tornam essa constatação ainda mais radical. A tradição escravista que marca a história do país, e de profundo desrespeito com o trabalho manual, também explica por que o ensino e as pesquisas na área de engenharia abstraem as relações de trabalho dos estudos sobre tecnologia. Há muito de ideológico e pouco de científico em boa parte dessa produção acadêmica marcada pelo preconceito. Não raramente, o canteiro de obras, com todos os desencontros e as tensões decorrentes das relações de trabalho (cujo paradigma está na parceria mestre de obras e engenheiro), é pouco conhecido por pesquisadores que escrevem sobre tecnologia de construção habitacional. cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 Além disso, os estudos que têm como objeto o urbano, a habitação, o financiamento e a terra, raramente incorporam o tema da construção em seu escopo. É muito comum, nos estudos sobre o urbano, ignorar-se a construção, abstraindo-se assim as relações entre capital (fixo e variável) e o processo de trabalho. A desconsideração da construção como eixo da realização da arquitetura e da cidade foi criticada por diversos estudiosos no Projeto de Pesquisa “A crise na produção da habitação popular – tendências de rearticulação do processo produtivo”.9 Essa também foi a polêmica que alimentou a interlocução de Sérgio Ferro10 em relação ao texto de Vilanova Artigas, “O Desenho”.11 Portanto, a crítica materialista, de inspiração marxista, à abordagem da arquitetura como produto de ideias ou do desenho não é nova entre nós. Embora ambos os textos sejam bastante festejados, a centralidade da polêmica é bastante ignorada pela produção acadêmica e profissional. O papel ideológico do projeto como ferramenta para a exploração e a dominação desse modo de produção, e sua capacidade de encobrir essas relações de classe são destacados por Ferro, que vai ao canteiro de obras para encontrar a lógica do processo – do produto e de sua distribuição – e também, portanto, do projeto ou desenho. Outro equívoco digno de figurar nessa lista, pela constância com que é repetido, refere-se aos estudos ou à prática do planejamento urbano que tem a pretensão de controlar as cidades pela regulação legal, ignorando as determinações presentes na produção social ou material do espaço e na disputa pelos lucros, juros, rendas e salários que ela engendra. A prática do urbanismo é profundamente ideológica – e vale dizer, pouco científica e mistificadora por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação da realidade – e frequentemente ignora os conflitos presentes na produção da cidade, tomando-a como um palco ou arena que apenas dá suporte às relações sociais, ainda que elas possam ser tomadas como conflituosas (Arantes et al., 2000). A dispersão do conhecimento já produzido no Brasil, constantemente suplantado por supervalorizadas referências estrangeiras, já foi constatada por conhecidos estudiosos da sociedade brasileira, como Celso Furtado, Florestan Fernandes e Roberto Schwarz, entre outros. Somos estrangeiros em nossa própria pátria e frequentemente nos vemos diante de uma história virtual. Estamos sempre recomeçando. Para resumir, é realmente surpreen den te que um setor que absorve historicamente 6% da PEA e que é responsável por 13,5% do PIB nacional (relativo ao setor de construbusiness, sendo 8% da construção propriamente dita) esteja ausente da maior parte dos trabalhos sobre o urbano e a habitação. Em particular, é notável a ausência do tema do trabalho, nos estudos sobre tecnologia, como já foi mencionado.12 O lugar da construção nas pesquisas sobre moradia A ideia de que novos materiais ou novos métodos construtivos possam resolver ou constituir a principal alavanca para a solução de problemas habitacionais é dominante há décadas, tanto nas instituições promotoras de políticas públicas quanto nas pesquisas sobre a construção civil ligada à produção de moradias. Essa ideia é dominante também na mídia, que de tempos em tempos apresenta experiências de casas construídas com materiais reciclados, como garrafas de plástico, ou renováveis, como bambu, que prometem um barateamento definitivo e sustentabilidade. Não se pretende negar a importância das pesquisas com novos materiais ou novos usos para velhos materiais, especialmente em se tratando da reutilização de rejeitos industriais, fundamental para diminuir seu descarte e os impactos sobre o meio ambiente. A Antac – Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído – tem se detido nesse tema. O que se critica aqui, entretanto, é a ignorância dos demais fatores que são determinantes na produção da carência habitacional. Por diversas vezes o Banco Nacional de Habitação (BNH) promoveu a construção de canteiros de obras com protótipos de edifícios destinados à habitação apresentando novos materiais de construção, novas tecnologias, novos equipamentos ou novas máquinas. O primeiro grande seminário que apresentou uma extensa mostra de protótipos se deu em Salvador, em 1978, que levou o título de “Simpósio sobre o Barateamento da Construção Habitacional”. O Brasil estava no momento de maior investimento em habitação de toda sua história e era notável a pressão das empresas de construção pesada e das empresas estrangeiras, detentoras de patentes sobre novas tecnologias e processos construtivos, para entrar no setor de edificação residencial nacional de promoção pública.13 Vale lembrar que os anos 70 ficaram conhecidos como do “milagre brasileiro”, em que as altas taxas de crescimento do PIB contribuíram muito com a manutenção do Regime Militar, fortemente apoiado pela cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 39 ermínia maricato 40 classe média. Entre 1968 e 1973, o PIB cresceu 11,5 % ao ano impulsionado principalmente pela construção civil (Maricato, 1987). Outros dois seminários, acompanhados da apresentação de protótipos subsidiados pelo BNH, deram-se na cidade de São Paulo: um no Jardim São Paulo (1985) e o outro em Heliópolis (1987). Após 1980, entretanto, com o impacto do ajuste fiscal sobre a economia nacional, os contratos do BNH para o financiamento de moradias têm uma queda drástica. Até 1983, constata-se um movimento de construção de moradias sob promoção pública ainda significativo graças aos contratos assinados em anos anteriores. A maior parte dessa produção seguiu modelos muito criticados em trabalhos acadêmicos: a localização sempre distante das áreas já urbanizadas alimentou um mercado fundiário desorganizador do uso sustentável do solo urbano e as construções frequentemente deixaram a desejar do ponto de vista de conforto ambiental. Durante vários anos, portanto, o paradigma de avanço tecnológico esteve relacionado a novos processos, novos materiais ou novos componentes. Foram fomentadas tentativas de industrialização de componentes, experiências de moldagem de concreto armado in loco, propostas de utilização de novos materiais como solo cimento, madeira mineralizada, palha de arroz prensada, resíduos de processos industriais, estrutura metálica, entre outros. Segundo Vargas, após todas essas experiências, podemos afirmar que, entre nós, a alvenaria armada tem se mostrado ainda como tecnologia construtiva de melhor desempenho – no que se refere a custo, qualidade e produtividade – e que, portanto, cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 as barreiras ao aumento de produtividade, diminuição de custos e ampliação de acesso não estariam aí.14 Além de apontar as dificuldades que persistem no planejamento e gestão do processo de trabalho e nos demais fatores que disputam a renda fundiária urbana, Vargas lembra que a indústria da construção tem características específicas em relação às demais indústrias e nela a imponderabilidade é muito alta. Em seu mestrado, desenvolvido na Coppe/ UFRJ em 1979, e depois reeditado como capítulo de livro já citado, Nilton Vargas explicita, em primeiro lugar, as características específicas da indústria da construção, que a diferenciam das demais indústrias: é manufatura, mas também tem máquinas pesadas características da grande indústria. Além disso, os lucros da atividade de construção ligada à indústria imobiliária não são apropriados apenas pelo capital produtivo, mas também por outros capitais, em especial os financiadores, os promotores imobiliários e os proprietários da terra ou imóveis. Na medida em que os lucros não provêm apenas das atividades produtivas, mas também de atividades fortemente especulativas, a produtividade no processo de produção passa a não ser central para ampliar os ganhos. A partir dessas considerações e tendo em vista características que embasam o poder na sociedade brasileira, como o patrimonialismo e a captação de rendas imobiliárias, conclui-se facilmente o porquê de o mercado privado no Brasil ser tão elitista e restrito ao produto de luxo (Instituto Cidadania, 2000). Agregando às argumentações expostas algumas formulações de outros autores, podemos, muito resumidamente, definir essa tese da seguinte forma:15 por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação 1) A indústria da construção tem características diferenciadas do conjunto das indústrias. Cada projeto é único (mesmo quando padronizado) porque cada terreno é único, o que dificulta a reprodutibilidade. ● O processo de produção é marcado pela sucessão e não pela simultaneidade. A cada obra, as equipes que se sucedem são desmontadas. Há dificuldade para a capacitação contínua do trabalhador e a rotatividade no emprego é alta. ● ● No fim de cada empreendimento, a unidade de produção é desmontada ou, na melhor das hipóteses, deslocada. ● O processo de produção depende das condições climáticas. As chuvas, por exemplo, podem paralisar a produção. Em que pese o avanço das análises geotécnicas, o subsolo pode apresentar ocorrências inesperadas, exigindo a interrupção da produção e representando despesas não previstas. ● 2) Os ganhos não são provenientes apenas da atividade produtiva, portanto, não existe um apelo para a racionalidade industrial. Na provisão habitacional, o capital produtivo não ocupa o lugar central, como no restante das indústrias. A moradia é uma mercadoria especial. Além do capital de construção, o processo produtivo inclui um financiamento ao consumo (habitação é um dos bens mais caros de consumo privado e como uma mercadoria especial exige um financiamento específico), um capital de incorporação e um agente especial – o proprietário de terra – de quem depende uma condição básica para produção. Cada novo ● empreendimento exige que uma nova parcela de terreno seja assegurada. Os proprietários têm uma espécie de monopólio sobre a terra e a liberam para a construção após cobrar um preço para isso, e esse preço depende da localização. A legislação urbanística também influi no preço da terra. A propriedade fundiária e imobiliária constitui um objeto de valorização. Fortunas podem ser amealhadas sem que, necessariamente, haja envolvimento de um capital produtivo no terreno objeto de valorização. Uma malha de expedientes jurídicos e de registros cerca a propriedade da terra, que pode, dessa forma, funcionar como objeto de disputa de rendas, oferecendo obstáculo à produtividade na construção. O acesso à terra urbana é profundamente excludente a grande parte da sociedade e constitui freio ao aumento da produção.16 ● ● Outra barreira à provisão de moradias está na legislação urbanística excessivamente detalhista e na legislação ambiental, que tornam lentos os processos de aprovação dos projetos, característica reforçada pela fragmentação presente na gestão urbana e pelas características cartoriais do patrimonialismo brasileiro. Habitação, conflitos e Estado Ainda que reconhecendo as carências apontadas anteriormente, é notória a centralidade do papel do Estado no processo de produção e distribuição da moradia, e é nele que se concentra a maior parte dos estudos cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 41 ermínia maricato 42 e pesquisas. O Estado pode participar diretamente na produção, como também pode financiar e contratar a construção. Ele é ainda, em geral, o agente regulador da terra, das relações trabalhistas, das regras do financiamento privado, além de poder promover a implantação da infraestrutura e abrir novos espaços para o investimento imobiliário privado em acordo com proprietários de terra. A construção de novas centralidades urbanas, como resultado de um pacto entre o capital imobiliário e a aplicação dos fundos públicos, tem também sua face simbólica, marcada pelo luxo e distinção, e ocorre em praticamente todas as grandes cidades. A atuação do Estado responde ao nível dos conflitos entre os diversos interesses em jogo na disputa pelos ganhos já citados: salários, rendas, juros e lucros. De tal disputa participam inclusive os usuários de classe média ou até de baixa renda, enquanto proprietários privados que também se apropriam de alguma renda com a valorização de seus imóveis. Essas lutas e conflitos definirão as mudanças ou não na estrutura de provisão da habitação.17 Além de Michael Ball (1978, 1981 e 1986), outro autor que adota uma visão menos determinista e economicista sobre a produção do espaço, ao enfatizar a esfera da política, é David Harvey, para quem a produção do espaço é consequência de fortes conflitos e do confronto de tendências, resultantes de tensões e contradições inerentes ao sistema (Harvey, 1982). Para o autor, os principais conflitos que emergem nesse processo envolvem: [...] 1) uma facção do capital que procura a apropriação da renda, quer diretamente (como os proprietários de cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 terra, as empresas imobiliárias, etc.) ou indiretamente (como os intermediários financeiros ou outros que investem em propriedades simplesmente visando uma taxa de retorno); 2) uma facção do capital procurando juros e lucro através da construção de novos elementos no meio construído (os interesses da construção); 3) o capital "em geral" que encara o ambiente construído como um dreno para o capital excedente e como pacote de valores de uso e com vistas ao estímulo da produção e acumulação de capital; 4) a força de trabalho que se utiliza do ambiente construído como um meio de consumo e como meio de sua própria reprodução. (Harvey, 1982, p. 6)18 Modernização conservadora: a informalidade como ardil No Brasil, como nos demais países periféricos, os conflitos em torno da provisão da moradia foram relativamente esvaziados graças a um ardil responsável por grande impacto social e territorial: a provisão informal da moradia. A maior parte da população urbana “se vira” para garantir moradia e um pedaço de cidade, combinando o loteamento irregular ou a pura e simples invasão de terra, com a autoconstrução.19 Essa forma ilegal e pré-moderna de provisão da moradia esvaziou o conflito e contribuiu para o barateamento da força de trabalho, especialmente durante o período de maior crescimento industrial. Sabemos todos as consequências predatórias dessa produção de grande parte do espaço urbano, seja para essa população, por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação para o meio ambiente, ou para a cidade como um todo. O exemplo mais dramático e gigantesco de ocupação pobre, ilegal e ambiental/socialmente predatória, está na ocupação das áreas de preservação dos mananciais ao sul da maior metrópole paulista, onde aproximadamente 1milhão e 700 mil de pessoas vivem nas bacias dos reservatórios de água Billings e Guarapiranga. Mas os governos, e seus diversos órgãos com poder de polícia sobre o uso e a ocupação do solo, simplesmente ignoraram esse processo durante muitos anos. O conflito sobre a provisão da moradia foi, portanto, deslocado: a cidade hegemônica continua sendo construída sob regras do urbanismo e do mercado modernos, para uma população restrita. Resta para grande parte da população o deslocamento para fora da cidade (legal ou formal), a ocupação de áreas inadequadas, e, frequentemente, ambientalmente frágeis. Não são apenas as leis de uso e ocupação do solo ou os planos urbanísticos que não são observados nos bairros ilegais. Nenhuma legislação aí é aplicada e a resolução de conflitos obedece à “lei” do mais forte. A presença do Estado pode se restringir à troca de favores pontuais com finalidade eleitoral. De um modo geral, o Estado está ausente e esse vazio é ocupado por um poder paralelo (Maricato, 1996). Mesmo contando com um mercado privado excludente, por meio do qual a mercadoria moradia é acessível a apenas 30% da população, é preciso reconhecer sua significativa dimensão, equivalente à população da Itália (aproximadamente 56 milhões de pessoas). O significativo crescimento econômico (7% ao ano entre 1940 e 1979) e a industrialização do país, sem distribuição de renda, durante décadas de intensa migração para as cidades, geraram vários paradoxos, como a imposição do consumo de bens modernos antes que as necessidades básicas (alimentação, saúde, higiene, educação, habitação) fossem atendidas.20 A urbanização em países periféricos como o Brasil, que acompanha o processo de industrialização com baixos salários, apresenta várias características que a diferencia da urbanização nos países capitalistas centrais. Francisco de Oliveira considera o terciário extensivo e descapitalizado, que muitos autores entenderam como “inchado” na comparação com o chamado primeiro mundo, uma parte intrínseca desse processo de acumulação que combina o arcaico com o moderno (Oliveira, 1972). A evolução da provisão da habitação popular desde o final do século XIX, com a emergência do trabalhador livre, mostra a tendência de eliminar dos salários a parcela referente ao pagamento da moradia. É evidente que essa condição é predatória à força de trabalho. A construção da casa nos fins de semana durante horário de descanso, o longo tempo despendido nos transportes deficientes (que está relacionado à ocupação precária da periferia) e a ausência de serviços urbanos fundamentais contribuem para desgastar a força de trabalho. A queda do crescimento econômico, verificada a partir dos anos 80, o aumento do desemprego, o recuo das políticas públicas, foram alguns dos fatores que radicalizaram o quadro aqui descrito, como veremos adiante. A importância da propriedade fundiária numa sociedade patrimonialista como a nossa explica, em boa parte, essa gigantesca exclusão territorial ou segregação. Como é sabido, há uma estreita relação cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 43 ermínia maricato 44 entre propriedade patrimonial e poder econômico, político e social na história do Brasil. A elite brasileira se apropriou de vastas áreas de terras devolutas por todo território nacional, recorrendo a um sem número de ardis relacionados a fraudes nos registros de terra (Costa Neto, 2006). Além disso, essa mesma elite cercou-se de uma imensa teia de organismos e burocracia (além da ajuda do judiciário) para impedir que a maior parte da população, especialmente os trabalhadores pobres, tivesse acesso à propriedade fundiária. O latifúndio permanece intocável durante todo o período de modernização e industrialização do país, apesar das polêmicas alimentadas pela proposta liberal de substituição dos escravos pela colonização branca durante o século XIX. A privatização de terras devolutas ainda é uma prática vigente em pleno início do século XXI. Como aconteceu em outros momentos da história do país, o Brasil conta, a partir da promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, com uma legislação bastante avançada, que regulamenta a função social da cidade e da propriedade. O Estatuto da Cidade restringe, objetivamente, o direito de propriedade. Pode-se dizer que o direito à moradia é absoluto, já que previsto na Constituição Federal, e o direito à propriedade não o é. No entanto, a implementação da lei está enfrentando muita dificuldade, reafirmando uma característica da sociedade brasileira: de que a lei se aplica de acordo com as circunstâncias (Maricato, 1996). Aqui também constatamos nossas diferenças em relação ao capitalismo central, em que as reformas sobre a terra urbana foram feitas no final do século XIX ou começo do século XX para fortalecer a atividade cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 produtiva de construção, em detrimento dos ganhos rentistas. O impacto da globalização na provisão de moradias Com o fim do welfare state houve um recuo generalizado dos investimentos em habitação, revelando um colapso no volume de moradias produzidas. Nos países capitalistas centrais, o espetacular movimento de construção que se seguiu à segunda guerra mundial minimizou fortemente a carência habitacional. Apesar das características específicas desse processo em cada país, alguns aspectos podem ser generalizados:21 Período pós-guerra – produção fordista: produção em massa, grande volume de unidades habitacionais; ● investimento público garante mercado solvável, com forte subsídios; ● ● investimento em infraestrutura, grandes projetos de renovação urbana ou construção de cidades novas; Estado intervém no mercado de terras ou cria uma agência de terra; ● ● promoção da habitação de aluguel social; ● modernização da produção – pré-fabricação, investimentos em capital fixo, grandes canteiros; grandes sindicatos conferem poder à força de trabalho nos conflitos; ● queda na especialização da força de trabalho, imigração visando o barateamento. ● por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação Com a reestruturação produtiva e o início das políticas de cunho neoliberal, a produção subsidiada de moradias pelo Estado teve uma queda drástica. O patrimônio público formado por extensos conjuntos habitacionais foi transformado com a venda em patrimônio privado. E novas regras, mais adaptadas a uma solução de mercado, foram impostas. Apesar dos movimentos sindicais, que com prolongadas greves tentaram se opor aos ganhos conquistados com o Welfare State, as reformas foram implementadas, atingindo inclusive o mundo do trabalho e com isso enfraquecendo o poder sindical. Um resumo das características que provisão de moradias assumiu na Europa e nos Estados Unidos com a reestruturação produtiva já pode ser diagnosticado nos anos 70: Período pós-1970 – reestruturação capitalista global: queda nos investimentos públicos, queda no volume de construção; ● dificuldades com financiamentos, dificuldades com terra; ● ● aumento da taxa de juros; ● fl exibilização na produção, terceirização, queda no investimento de capital fixo, fortalecimento do planejamento do canteiro, gerenciamento de fluxos e controle contábil; ● ênfase nos componentes leves para montagem; ● enfraquecimento do poder sindical, desemprego, contrato por tarefas; ● projetos de menor porte, perdas da economia de escala; ● flexibilização na provisão – diversidade de tipologias, fragmentação da demanda e da localização, ênfase nos aspectos especulativos; novos mercados priorizam reformas, renovação e manutenção; ● ● fortalecimento da casa própria ; flexibilização do trabalho, formas indiretas de emprego. ● No Brasil, como nos demais países do capitalismo periférico, com seus diversos graus ou características de evolução ou involução, o recuo nas políticas públicas e o baixo crescimento econômico, a partir dos anos 80, tiveram consequências dramáticas devido à herança histórica de desigualdade e informalidade. Apesar de não contarmos com estudos sobre o impacto detalhado da globalização na produção do ambiente construído, podemos afirmar que o aumento de favelas cresceu radicalmente a partir da queda do financiamento habitacional, por volta de 1981. O IBGE mostra que enquanto a população brasileira cresceu 1,9% ao ano entre 1980 e 1991, e 1,6% ao ano entre 1991 e 2000, a população moradora de favelas cresceu, respectivamente, 7,65% e 4,18%. O município de São Paulo tinha apenas 1,2% da população morando em favelas em 1970. Em 2005, São Paulo registra 11% da população em favelas, ambos dados da Prefeitura Municipal. Com a débâcle do BNH e aumento do desemprego, o mercado privado formal também apresentou queda significativa (Castro, 1999). Além da constatação do impacto negativo da chamada globalização e das políticas neoliberais na piora na qualidade da moradia urbana no Brasil, pouco podemos avançar no detalhamento sobre suas cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 45 ermínia maricato 46 consequências nos processos produtivos, como mostra o estudo de Ball e outros (1988) para a Europa e Estados Unidos. Esse exemplo mostra como a orientação adequada da pesquisa acadêmica pode nos conduzir para uma compreensão mais ampla e científica da realidade. Não dispomos de conhecimento que permita caracterizar as mudanças na estrutura de provisão da moradia, sua evolução e adaptação à nova (des)ordem internacional. Esse desconhecimento fragiliza o esforço na definição de políticas para o enfrentamento de problemas tão graves como, por exemplo, os que as nossas metrópoles apresentam. Se insistimos em fazer essa abordagem teórica e metodológica, é para incentivar os pesquisadores brasileiros a esse desafio. E, apesar de parte da reflexão aqui feita ter se inspirado em autores que pensaram o capitalismo central, nossa convicção é de que as assimetrias entre os países centrais e periféricos são essenciais, acentuaram-se com a globalização e não podem ser ignoradas quando se buscam alternativas de solução para a nossa realidade. Por fim, um alerta necessário. A partir de 2005, os investimentos na área de habitação foram ampliados, tanto para o mercado privado quanto para a promoção pública. Com o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento –, lançado pelo Governo Federal em 2007, essa tendência será reforçada pela previsão de investimento de R$106 bilhões. Considerando-se que as principais fontes de recursos são onerosas – aliás, as mesmas que alimentaram o Sistema Financeiro da Habitação: SBPE e FGTS – e que os recursos para subsídios são diminutos, é previsível que as camadas de mais baixa renda dificilmente sejam atendidas na proporção necessária. Entretanto, o movimento na produção de moradias tende a aumentar, o que já é visível, na segunda metade da década iniciada em 2000, com repercussões na estrutura de provisão de moradias. Esse é mais um motivo para adotar um novo enfoque na pesquisa sobre habitação no Brasil. Ermínia Maricato Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professora Titular da área de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Comissão de Pesquisa e Membro do Conselho de Pesquisa da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil). [email protected] cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação Notas (1) Este trabalho foi inspirado no texto de Michael Ball, Housing analisys: time for a theoretical refocus. Apesar do lapso de tempo que nos separa da redação do artigo citado, que é de 1986, sua crítica à produção acadêmica sobre o tema da habitação ganhou mais importância com o passar do tempo. (2) "A estrutura de provisão de habitação descreve um processo histórico dado destinado a prover e reproduzir a entidade física casa, focalizando os agentes sociais essenciais a esse processo e a relação entre eles" (Ball, 1986, p. 158). (3) Para uma bibliografia extensiva dos pioneiros no estudo da habitação no Brasil urbanizado, ver Valladares, 1982. (4) Os conceitos de Déficit Habitacional Quantitativo e Déficit Habitacional Qualitativo envolveram vários pesquisadores durante a década de 1990. Tais definições estão explicitadas nos estudos sobre o Déficit Habitacional no Brasil elaborados pela Fundação João Pinheiro, a pedido do governo Federal, a partir de 1995 (Fundação João Pinheiro, 2004). (5) Do Congresso do IAB de 1963, quando a proposta de Reforma Urbana foi aprovada no documento final, até o Estatuto da Cidade em 2001 e a Campanha de Planos Diretores Participativos, promovida pelo Ministério das Cidades em 2006, o tema da terra tem sido recorrente e a bibliografia por demais extensa para ser tratada aqui. Dentre os pioneiros que relacionaram a terra com a esfera da produção e do mercado ver Brandão (1980) e Lefèvre (1979). Uma parte da produção do Lincoln Institute of Land Policy também segue essa orientação. (6) Não trataremos aqui do tema dos movimentos sociais urbanos e de sua bibliografia, pois nos interessa concentrar a atenção nos conflitos presentes na esfera da produção stricto sensu. Não se desconhece a relação entre a “práxis espacial”, conceito lefevriano, e a produção da cidade em seu conjunto, mas entendemos que esses conflitos têm sido mais constantemente abordados do que aqueles que queremos destacar aqui. (7) Vamos convencionar como classe média as famílias cujos rendimentos mensais estão situados entre 5 e 12 salários mínimos. O déficit habitacional está concentrado fortemente entre 0 e menos de 5 s.m., perfazendo um total de 92% (Fundação João Pinheiro, 2004). (8) Até mesmo a endêmica corrupção presente nas obras públicas, fato ligado especialmente ao financiamento de campanhas eleitorais, não pode ser aspecto desprezado nas pesquisas acadêmicas no Brasil quando se estudam produtividade e custo da habitação. Essa observação foi feita por Vargas em encontro internacional da BISS – Barttlet International Summer School – na cidade do México em 1987. (9) O projeto citado foi apresentado ao BNH em 1986, exatamente no ano de sua mal explicada extinção, que o inviabilizou. Participaram dele os professores Jorge Oseki, Nilton Vargas, Paulo César Xavier Pereira, Suzana Pasternak, Yvonne Mautner sob a coordenação de Ermínia Maricato. (10) Iniciado entre 1968 e 1969, “O canteiro e o desenho” seria concluído em 1975 e finalmente publicado em 1979. (11) O texto citado (Artigas, 1975), publicado originalmente pelo GFAU, foi apresentado pelo professor em março de 1967 como Aula Inaugural da FAU-USP. cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 47 ermínia maricato (12) O processo de trabalho, grande ausente na produção intelectual brasileira sobre habitação, tem sido considerado como elemento-chave para a compreensão da produção do ambiente construído pela BISS – Barttlet International Summer School – sediada na University College London. Ver a respeito seus Proceedings. (13) Na primeira metade dos anos 70, os recursos do BNH destinados a obras de infraestrutura urbana foram ampliados, enquanto que a construção de moradias perdeu espaço no orçamento. Esse movimento deveu-se, provavelmente, ao poder de influência das empresas de construção pesada. A partir de 1976, o movimento se inverte. Ver a respeito Maricato (1987). (14) Palestra proferida na FAU-USP, dia 29/3/2007. (15) Os autores consultados para a construção desse quadro, além de Nilton Vargas, foram Lojkine (1977), Topalov (1974), Lipietz (1988), Harvey (1982), Ball (1986), Ball e outros (1988). Dentre os autores nacionais que abordaram a produção e ou a provisão da moradia levando em consideração a construção, além de Vargas, estão: Ferro (1972), Oseki (1982), Maricato (1984), Pereira (1984), Tavares (1989), Mautner (1991), Ribeiro (1996) e Castro (1999). O professor Celso M. Lamparelli introduziu essa abordagem teórica no Curso de Pós-Graduação da Escola de Engenharia de São Carlos ainda na década de 70. (16) Não podemos esquecer que mesmo atuando como freio ao aumento da produção devido à disputa por rendas imobiliárias a propriedade da terra não constitui uma irracionalidade ao modo de produção capitalista como argumentaram alguns autores. É ela que permite a apropriação dos lucros na produção da moradia assim como a propriedade dos meios de produção permitem a apropriação dos lucros industriais (Martins, 1983). 48 (17) Segundo Ball, a predominância de um agente sobre os outros no processo de produção somente será identificada a partir de análises específicas sobre realidades concretas. Nesse sentido, Ball discorda das teses defendidas por intelectuais franceses, como Topalov (1974) e Lojkine (1977), sobre a supremacia determinante do promotor imobiliário ou do capital financeiro sobre a provisão das edificações (moradias, comércios, serviços). No Brasil, o papel dos ganhos rentistas fundiários e imobiliários (proprietários de terra e incorporadores) têm uma predominância significativa, como veremos adiante. (18) No mesmo texto Harvey lembra que a propriedade da moradia pode dividir e opor trabalhadores, pois aqueles que a possuem interessam-se pela valorização do seu imóvel e os que não a possuem interessam-se pelo seu barateamento. (19) Não temos os dados rigorosos sobre a produção informal da moradia (favelas, loteamentos ilegais e cortiços) nas cidades brasileiras e sabemos que o IBGE subdimensiona a medição da moradia “subnormal”. Alguns estudos, entretanto, permitem afirmar que estamos diante da maioria ou de aproximadamente metade dos domicílios nas grandes cidades: Andrade (1998); Castro e Silva (1997), Souza (1999). (20) Maricato e Pamplona, 1977 (21) Ver a respeito Ball et al. (1988). cadernos metrópole 21 pp. 33-52 10 sem. 2009 por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação Referências ANDRADE, C. F. de S. L. (1998). Parâmetros urbanísticos de loteamentos irregulares e clandestinos na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAUUFRJ. ANDRADE, C. R. M. de (1992). 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En éste trabajo se realiza un examen crítico de estas tres experiencias en materia de metropolítica, esto es, de una institucionalidad que facilite la coordinación interjurisdiccional de políticas para afrontar los problemas y proponer nuevas alternativas de desarrollo metropolitano. Palabras Clave: metropolización; gobernabilidad metropolitana; segregación metropolitana. Abstract The challenges that metropolitan agglomerations face are not limited to an attempt to obtain a position in the ranking of global cities. Most of the metropolitan areas of Europe, Latin America and North America search for an institutional framework to address these challenges, taking into account that the autonomies inherited from the administrative and fiscal decentralization usually interfere in such purposes. This work examines critically these three experiences in light of metropolitics, that is, an institutional framework that facilitates inter-jurisdictional coordination of policies to tackle the problems and propose new alternatives for metropolitan development. Keywords: metropolization; metropolitan governance; metropolitan segregation. cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 óscar a. alfonso r. Salvo contadas excepciones, la mayor parte de la literatura reciente sobre metropolización en el mundo gira en torno de la necesidad de actuar, más que de la necesidad de comprender el fenómeno. Por regla general, el fenómeno se conecta con el discurso sobre las ciudades-región globales que, a la manera de un nuevo paradigma, propició desde comienzos de la década de 1990 una avalancha de investigaciones que intentaba descifrar localmente – cuando no ajustar – el contenido teórico propuesto por Saskia Sassen, de manera que a la lista original de tres ciudades (Tokio, Londres y Nueva York), se fueron incorporando paulatinamente otras ciudades occidentales hasta el punto de que los geógrafos más prestantes propusieron los “ranking” de ciudades a la manera del fút bol rentado (Cuadro 1): París y Frankfurt entraron a la “primera división”, mientras que Chicago, Los Ángeles, Milán, Hong Kong y Singapur “cayeron” a la “segunda división” por fuerza de la mayor capacidad anotadora de las primeras, es decir, la acumulación de funciones globales. La tercera y la cuarta división aparecen más densamente pobladas de ciudades que compiten entre sí para ascender en el rentado de las ciudades globales, mientras que en las de más baja jerarquía al parecer todo está por hacer. Cuadro 1 – Ranking de ciudades globales – 2002 54 Por funciones globales y puntuación Primera división 1) Londres, 2) París, 3) Nueva York, 4) Tokio, 5) Frankfurt Segunda división 6) Chicago, 7) Hong Kong, 8) Los Ángeles, 9) Milán, 10) Singapur Tercera división 11) San Francisco, 12) Sydney, (13) Toronto, 14) Zurich, 15) Bruselas, 16) Madrid, 17) Ciudad de México, 18) São Paulo, 19) Moscú, 20) Seúl Cuarta división 21) Ámsterdam, 22) Boston, 23) Caracas, 24) Dallas, 25) Dusseldorf, 26) Ginebra, 27) Houston, 28) Yakarta, 29) Johannesburgo, 30) Melbourne, 31) Osaka, 32) Praga, 33) Santiago de Chile, 34) Taipei, 35) Washington, 36) Bangkok, 37) Beijing, 38) Roma, 39) Estocolmo, 40) Varsovia, 41) Atlanta, 42) Barcelona, 43) Berlin, 44) Buenos Aires, 45) Budapest, 46) Copenhague, 47) Hamburgo, 48) Estambul, 49) Kuala Lumpur, 50) Manila, 51) Miami, 52) Minneapolis, 53) Montreal, 54) Munich, 55) Shangai Candidatas a ciudades globales (por evidencia de funciones globales y orden alfabético) Fuerte evidencia Auckland, Dublín, Filadelfia, Helsinki, Luxemburgo, Lyon, Mumbai (Bombay), Nueva Delhi, Rio de Janeiro, Tel Aviv y viena Alguna evidencia Abú Dhabi, Atenas, Birmingham, Bogotá, Bratislava, Brisbane, Bucarest, Stuttgart, Ciudad Ho Chi Minh, Cleveland, Colonia, Detroit, Dubai, El Cairo, Kiev, La Haya, Lima, Lisboa, Manchester, Montevideo, Oslo, Rótterdam, Ryad, Seattle y Vancouver Fuente: Globalization and World Cities (GaWC), Loughborough University, Leicestershire, UK, 2002. Tomado de Alfonso (2006, 55). cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales Durante los seis años subsiguientes se publicitaron otros rankings que, aunque no decían mayor cosa sobre el desarrollo, continuaron erigiéndose en pauta publicitaria de los nuevos modelos de organización de la geo grafía global. Los criterios y las metodologías para su elaboración se modificaron a merced de la voluntad del promotor, mediando en ocasiones las opiniones de connotados académicos pero, al fin y al cabo, sólo opiniones desprovistas de una teoría que de cuenta sistemáticamente del fenómeno y de sus vinculaciones internas. El más reciente de estos se presenta en la Cuadro 2, para cuya elaboración fueron consultados, según la fuente, varios académicos, entre ellos la promotora de la idea pionera. Lo cierto es que tal idea tiende a banalizarse al punto de dejar de lado aspectos centrales de la reflexión de la autora como la tendencia a la desvalorización del trabajo en el mundo globalizado. Según Foreign Policy, el ranking consideró 24 indicadores distribuidos en cinco áreas: actividad de negocios, capital humano, el intercambio de información, actividad cultural y el compromiso político. Por fuerza de los nuevos criterios, Frankfurt es relegada al lugar 21º que en el ranking de 2002 era ocupado por Ámsterdam que ahora ocupa el lugar 23º, y su 5º lugar es ahora ocupado por Hong Kong, mientras que las cuatro ciudades en el tope se han mantenido allí rotando los tres primeros lugares entre ellas ante el ascenso de Nueva York. No obstante la variabilidad de criterios empleados para la elaboración de los ranking, el hecho de que las jerarquías de Nueva York, Londres, París y Tokio no sufran mayores alteraciones mientras que del quinto lugar hacia bajo ocurra un gran flujo de entrada y salida de ciudades indica, de una parte, la descomunal amplitud alcanzada por la jerarquía funcional de las primeras y, además, las dificultades para que otras alcancen su nivel reconocidas los rasgos concentrativos del orden global en curso. Según estos criterios, no todas las aglomeraciones metropolitanas poseen los atributos para erigirse como ciudadesregión globales, de manera que populosas zonas metropolitanas ni siquiera son consideradas en el ranking por su actividad cultural o por el compromiso político. Esto ocurre en los Estados Unidos con Filadelfia (8,5 millones de habitantes), Dallas (5,8), Detroit (5,8), Houston (5,1), la conurbación binacional San Diego-Tijuana (4,6) y Phoenix (3,7), por ejemplo, mientras que en América Latina ocurre algo semejante con Lima-El Callao (8,5), Santiago de Chile (6,2), Belo Horizonte (4,6), Guadalajara (4,0), Monterrey (3,6), Medellín (3,4) y Montevideo (1,7). Zonas metropolitanas igualmente populosas e inclusive algunas de menor tamaño poblacional que las anteriormente mencionadas, han acumulado un conjunto de atributos globales como para escalarse en el ranking. En los Estados Unidos son Washington, San Francisco, Toronto, Boston, Atlanta y Miami, mientras que en América Latina ocurre con Bogotá y Caracas. La necesidad de actuar viene tomando cuerpo en el discurso de la gobernanza metropolitana, desde donde se proclama que su quehacer es el diseño de políticas públicas orientadas a resolver los problemas de las zonas metropolitanas y a promover el desarrollo, proviniendo la mayor parte de los problemas de la denominada “fragmentación cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 55 óscar a. alfonso r. Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008 Posición según dimensión Posición general 56 Ciudad 1 Nueva York 2 Londres 3 4 5 Población Centro de negocios Capital humano Centro de información Centro cultural Compromiso político 18,7 1 1 4 3 2 7,6 4 2 3 1 5 París 9,9 3 11 1 2 4 Tokio 35,5 2 6 7 7 6 Hong Kong 7,3 5 5 6 26 40 6 Los Ángeles 12,2 15 4 11 5 17 7 Singapur 4,5 6 7 15 37 16 8 Chicago 8,8 12 3 24 20 20 9 Seúl 9,5 7 35 5 10 19 10 Toronto 5,2 26 10 18 4 24 11 Washington 4,3 35 17 10 14 1 12 Beijing 10,9 9 22 28 19 7 13 Bruselas n.d. 19 34 2 32 3 14 Madrid 5,2 14 18 9 24 33 15 San Francisco 3,4 27 12 22 23 29 16 Sydney 4,5 17 8 27 36 43 17 Berlín 3,3 28 29 12 8 14 18 Viena 2,2 13 31 29 11 9 19 Moscú 10,8 23 15 33 6 39 20 Shangai 12,6 8 25 42 35 18 21 Frankfurt 3,7 11 43 19 13 34 22 Bangkok 6,7 18 14 23 41 13 23 Ámsterdam 1,2 10 38 25 12 56 24 Estocolmo 1,8 25 33 13 16 27 25 México D. F. 19,2 34 23 32 9 11 26 Zurich n.d 30 20 8 31 54 27 Dubai n.d. 21 19 14 44 44 28 Estambul 10,0 32 13 34 43 8 29 Boston 4,4 37 9 35 33 50 30 Roma 31 São Paulo 32 Miami 33 Buenos Aires 34 2,6 31 30 30 15 22 18,6 16 36 31 27 23 5,5 33 21 26 39 21 13,5 40 16 43 25 12 Taipei 2,5 20 49 21 30 15 35 Munich 2,3 29 27 49 18 36 36 Copenhague 1,1 36 41 16 42 28 37 Atlanta 4,5 38 24 39 21 32 38 El Cairo n.d. 48 28 17 45 10 39 Milán 4,0 24 42 41 28 37 40 Kuala Lumpur 1,4 22 46 40 49 38 41 Nueva Delhi n.d. 47 50 20 46 35 42 Tel Aviv 3,1 51 45 38 17 31 43 Bogotá 7,8 46 26 51 34 25 44 Dublín n.d. 41 39 48 30 48 cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008 Posición general Posición según dimensión Ciudad Población Centro de negocios Capital humano Centro de información Centro cultural Compromiso político 45 Osaka 11,3 54 32 45 29 51 46 Manila – 43 48 47 38 26 47 Rio de Janeiro 11,6 44 47 50 22 46 48 Yakarta – 42 40 36 51 41 49 Bombay 18,8 39 37 53 52 52 50 Johannesburgo 3,4 45 55 37 48 45 51 Caracas 3,3 52 54 44 55 42 52 Guangzhou 53 Lagos 54 55 56 3,9 49 53 54 50 30 11,7 58 56 46 60 53 Shenzhen 1,3 50 59 57 56 47 Cd. Ho Chi Minh 5,1 55 52 58 53 58 Dacca 13,1 59 51 55 54 49 57 Karachi 12,2 56 57 52 59 55 58 Bangalore 6,8 53 44 60 57 60 59 Chongqing 5,1 60 60 56 47 57 60 Calcuta 14,6 57 58 59 58 59 Fuente:Revista Foreign Policy, november/december 2008 y www.citymayors.com 57 de intereses y de actores dentro de la metrópoli” (Lefebvre 2004, p. 6), algo común a todas las grandes ciudades. Tal vez lo común en medio de tal fragmentación sean ciertas pretensiones de políticos e investigadores casuales que imaginan un mundo compuesto por individuos que han perdido su ideología, sus relaciones de pertenencia a las que se denomina como cultura y, especialmente, sus pasiones. Los enfoques unificadores de los proyectos metropolitanos no están en capacidad de lidiar con la diversidad y, por esa misma razón, la premisa homogeneizante de partida que generalmente se impone como la visión compartida de futuro es, en el fondo, una imposición de la visión de algún grupo de interés mimetizado en las sugestivas metodologías de la planeación estratégica que se adoptan de acuerdo a la ocasión y que conllevan, en ocasiones, la socialización con los actores metropolitanos. Es notable la popularidad que han adquirido los ranking de las ciudades globales como también lo es su escasa utilidad para orientar iniciativas de desarrollo metropolitano. Los exámenes cualitativos están a la orden del día, siendo la pretensión de este trabajo sólo la de indicar algunas pautas de análisis que no compiten con ningún ranking, sino que alientan otro tipo de búsquedas como, por ejemplo, la de las formas que adopta la institucionalidad metropolitana en medio de la variedad de problemas y desafíos de dichas aglomeraciones. cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 óscar a. alfonso r. La cuestión europea 58 Las investigaciones recientes sobre metropolización en Europa se han enfocado fundamentalmente al estudio y a las propuestas de gobernanza para las zonas circundantes a las capitales nacionales, en el entendido que de esa característica se desprenden otras como la primacía poblacional y política que ejercen sobre el resto de la configuración social e, inclusive, sobre otras zonas del mundo occidental; adicionalmente, el núcleo metropolitano dispone de una estructura políticoadministrativa de notable complejidad en relación con el resto de ciudades que en determinado momento favorece su liderazgo administrativo metropolitano (Lefebvre, 2004, p. 8). La noción del proyecto metropolitano en Europa y en Canadá se ha arraigado entre los proponentes de las reformas institucionales territoriales que buscan transformar la organización del sistema de actores como en el caso de Greater London Authority, de la Communauté Métropolitaine de Montréal, del Área Metropolitana de Lisboa, de la Comunidad Autónoma de Madrid, de la VRS de Sttutgart, mientras que hacia 2002 estaban en proyecto la Cittá Metropolitana de Milán, Roma Capitale, el fortalecimiento de la CRIF de París y la fusión de dos entes con Berlín, mientras que ni en Barcelona, Toronto y Manchester se detectaron algún tipo de iniciativas en curso (Lefebvre, 2004, pp. 13-14). De manera que en Europa y en Canadá la cuestión es la configuración del “proyecto metropolitano” que, en síntesis, recoge las siguientes características: cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 • El promotor del proyecto debe ser identificable . Puede ser el líder político (Londres) de la metrópoli o de un grupo político. Este elemento es importante, puesto que la dimensión de un proyecto metropolitano requiere de liderazgo para avanzar, esto es, el proyecto metropolitano necesidad de alguien que de la dirección, la orientación, la visión. • El proyecto metropolitano debe disponer del apoyo de una estructura política. Para avanzar, para materializarse, para que las decisiones se tomen, se requiere de un soporte institucional. Tal apoyo puede provenir de diferentes lugares dependiendo de la naturaleza del proyecto metropolitano (reforma institucional y/o plan estratégico), de la ciudad central, del organismo gubernamental metropolitano cuando exista (Londres) o de una estructura creada para este fin (Barcelona). • El proyecto metropolitano necesita una estructura técnico-administrativa para proveer las necesidades materiales y de personal para dar forma a las ideas y la visión del proyecto. Esta estructura puede estar en el órgano de gobierno metropolitano (Londres), en la ciudad central (Roma) o en una estructura ad hoc (Barcelona). La movilización de la sociedad civil es fundamental ya que da legitimidad al proyecto metropolitano (lo que deja de ser un proyecto tecnocrático) y crea una imagen (que es un proyecto de todo el territorio). Esta movilización puede tomar diversas formas, de una actividad de movilización general (Barcelona) a las formas más institucionalizadas (Montreal). • metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales • La existencia de un documento palpable que sintetice el proyecto metropolitano, constituye el símbolo y la prueba de su existencia. Su existencia hace que el proyecto metropolitano sea tangible . Este documen to puede adoptar diversas formas, un documento único (Manchester), un conjunto de documentos estratégicos (Londres), una sucesión de documentos y actividades (Barcelona). • Por último, el Metropolitano debe en algún momento producir medidas concretas para ponerla en práctica. En el caso de las ciudades estudiadas se encontró que en raras ocasiones el proyecto metropolitano puede avanzar sin tales medidas, en algunos casos porque este tipo de acciones son demasiado recientes, pero esas premisas son un buen comienzo (Lefebvre, 2004, p. 15: traducción libre del autor). La cuestión del modelo Barcelona amerita una reflexión más precisa; aún está en ciernes un debate a fondo. Mientras que para Capel (2006, p. 1) [...] plantear el problema del modelo Barcelona es debatir la forma como se ha de realizar el urbanismo y los mecanismos que se ponen a punto para organizar la participación de los ciudadanos, para Bohigas el modelo existe como metodología, esto es, como “método de utilizar los instrumentos urbanísticos y de planificación” (Bohigas, citado por Capel 2006, p. 3) que, en el plano metropolitano, se han concretado en dos principios: el de la reconstrucción de la ciudad existente en lugar de la expansión y el de la compacidad y continuidad urbana en ligar de la suburbialización; que, no obstante de ser compartidos por los agentes de la estructuración metropolitana, han tenido alcances limitados, pues la expansión, además de no haber logrado contenerse, por el contrario, se ha intensificado (Capel, 2006, p. 4). En la tradición europea parece darse por hecho que el proyecto metropolitano por sí mismo goza de la capacidad aglutinadora y la legitimidad que derivaría de la gobernanza. De hecho, el empleo recurrente de la palabra actor es consistente con una visión de esta naturaleza, en la que el proyecto metropolitano aparece como el guión a representar por los personajes puestos en la escena metropolitana. No hay lugar a la innovación ni a la sorpresa, pues se idealiza un mundo de certezas en el que la diversidad se diluye en el crisol del proyecto metropolitano. El prestigio de los políticos europeos entre la opinión pública metropolitana y entre ellos mismos parece ser algo notable, pues en la condición del promotor identificable radica buena parte del éxito del proyecto metropolitano. Ese prestigio se pone en juego para cooptar al resto de actores quienes, en principio, se someten al liderazgo del promotor y a su visión metropolitana. Si un proyecto metropolitano implica la coordinación de políticas en la que los agentes son los alcaldes elegidos popularmente y los cabildos municipales que ejercen la vigilancia y el control político, la vinculación al proyecto les implica necesariamente ceder parte del poder que les fue restituido con la descentralización. Por tanto, si el liderazgo surge del núcleo urbano principal, la desconfianza de los cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 59 óscar a. alfonso r. 60 gobernantes de los municipios involucrados en el proyecto acerca de sus verdaderas intenciones da generalmente al traste con las iniciativas de institucionalización de acuerdos y de formas mancomunadas de intervención. El órgano metropolitano de toma de decisiones es la arena de la disputa política y su diseño institucional requiere de reflexión y de un gran tacto pues, de un lado, el reconocimiento de la diversidad y del hecho de que las autonomías se ponen en juego no pueden encajarse en un modelo por exitoso que haya sido y, del otro, esas mismas autonomías municipales se esgrimen ante cualquier asomo de autoritarismo de la ciudad central que procure la subordinación de los municipios menores a los designios del núcleo urbano principal. Imaginen un programa metropolitano de inversiones con recursos públicos escasos que implique el desarrollo secuencial de las iniciativas. Si el presupuesto metropolitano ha sido configurado con arreglo a la importancia poblacional o funcional de los entes territoriales involucrados, el alcalde del núcleo urbano principal querrá que las decisiones de asignación presupuestal se tomen a prorrata de los aportes y, en ese momento, el proyecto metropolitano habrá fenecido pues a los demás alcaldes les incomoda su posición como agentes minoritarios. Si las decisiones se toman a razón de un voto de las mismas características por cada ente territorial, el alcalde mayor se retirará porque sentirá vulnerada su condición de aportante mayoritario. ¿Cuál es la alternativa para mantener la unidad y la cohesión del organismo de decisiones metropolitanas? Seguramente que hay varias, pero el punto de partida cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 es necesariamente la identificación de las áreas de intervención metropolitana estatal que exigen de la coordinación de políticas y, seguidamente, de un pequeño haz de proyectos de inversión pública metropolitana en el que se tenga la claridad de que una intervención en el área de influencia inmediata del núcleo urbano principal le reporta beneficios a los municipios metropolizados y viceversa. Es decir que, en primer lugar, la incorporación de proyectos locales encubiertos bajo una supuesta influencia metropolitana cuando en realidad no la tienen, es el principal detonante de los desacuerdos entre las autoridades políticas que confluyen en los órganos metropolitanos y, en segundo lugar, lo es el desmedido poder de decisión que un acuerdo institucional le pueda otorgar al representante político del núcleo urbano principal. En relación con la estructura técnicoadministrativa es obvio todo proyecto metro politano la requiere; sin embargo, lo que realmente trascendente son sus funciones y las capacidades requeridas del personal para conformarla. Las ejecutorias del nivel local son bastante diferentes de las del nivel metropolitano en tanto la coordinación de entes territoriales para la regulación fiscal y ambiental, la gestión de las iniciativas de política y la financiación de la provisión de bienes públicos metropolitanos. Los traslados horizontales del personal de las administraciones locales o regionales al organismo metropolitano trae más desventajas que ventajas pues, de un lado, su vinculación secular con los grupos políticos locales hace que esos cuadros sean requeridos allí, mientras que en el organismo metropolitano se requiere de un personal con capacidad de metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales desprenderse de los atavismos de la política local para cualificar su gestión con una visión supralocal, esto es, metropolitana, de la intervención estatal. Tal estructura, además, tiene que ser de carácter público pues, de un lado, es inconcebible que organismos del Estado promuevan organizaciones privadas o mixtas para que realicen las labores que en otro caso ellos mismos debían hacer. En otras palabras, unos organismos públicos que promuevan entidades de derecho privado serían el equivalente a la exacerbación de una gobernanza que destituye de facto al funcionario público por incompetente. ¿Qué se entiende por movilización de la sociedad en torno a un proyecto metropolitano? Hay una tendencia a satanizar la participación ciudadana en foros y cabildos cuando se trata de legitimar las decisiones que los técnicos del organismo metropolitano proponen pues se da por descontado que las decisiones ya han sido tomadas y que los participantes están siendo manipulados. Sería útil entonces invertir el flujo de la participación, es decir, la gente opina y el técnico procesa. Pero, más allá de las discusiones procedimentales que, de hecho, se tornan trascendentes en algún momento del proyecto metropolitano, la cuestión es si en verdad es posible que este cuente con el respaldo ciudadano. Ese respaldo proviene del convencimiento de que las ejecutorias que se proponen, así no estén dentro de la jurisdicción local, sí favorecen el desarrollo y contribuyen a resolver. La tarea no es nada fácil pues cuando se tiene la idea de que la intervención favoreció al vecino, la población local se siente excluida del proyecto metropolitano, situación que es explotada en épocas electorales por los candidatos locales. Luego la movilización de la sociedad se deriva de la inclusión metropolitana y se alcanza, de nuevo, con las iniciativas de coordinación de políticas y los proyectos públicos de inversión que involucren a la mayor porción de la población de la zona metropolitana. El contrato público metropolitano es un contrato que tiende a ser completo en tanto los acuerdos que le dieron origen tengan un horizonte temporal relativamente claro y, por lo demás, no muy extenso. Esto es así pues reduce la incertidumbre. Ante condiciones fiscales cambiantes, el establecimiento de metas regulatorias y de inversión pública por etapas es una estrategia flexible que ofrece alternativas a los potenciales candidatos a los cuerpos colegiados y administraciones locales. Una etapa puede llevar más de un período político pues su fin es el mismo en el que se realice el objeto del contrato metropolitano, y sólo hasta que se culmine se puede dar paso a la siguiente etapa. Es posible que allí se vuelva a surtir una negociación que puede ser tediosa, pero que es infranqueable. Pero, dadas las ejecutorias de la etapa precedente, el espíritu del momento podrá modificarse a favor de la continuidad del planeamiento metropolitano previsto o en detrimento de este. Las acciones emblemáticas son cada vez más decisivas para los proyectos metropolitanos. La firma periódica de acuerdos de voluntades entre los gobernantes de los entes territoriales involucrados en el proyecto metropolitano va en contra de la movilización ciudadana que este exige, si tal renovación de acuerdos no se acompaña de alguna ejecutoria cuyo rédito social y político será aún mayor si se trata de subsanar cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 61 óscar a. alfonso r. 62 alguna omisión flagrante que, además, concierna a algún proyecto incluyente. Hay una tendencia a pasar por alto los principios de escasez y de proporcionalidad al momento de suscribir o renovar los acuerdos metropolitanos que, en lo fiscal y financiero son decisivos. Por otra parte, las ejecutorias físicas son más reputadas que las de política como la coordinación del tratamiento fiscal metropolitano a la inversión productiva o la misma regulación ambiental, siendo en ocasiones más perentorias las últimas, de manera que el contrato y su gestión están en capacidad de subsanar tal malentendido. La claudicación de una porción de la autonomía local a favor de un organismo metropolitano es, sin lugar a dudas, uno de los principales obstáculos para el avance del proyecto metropolitano, pues pone en juego una parte significativa del modelo territorial de Estado y de la reproducción política. Si hay algún proyecto a analizar en este sentido, es el de la cuestión autonómica regional en España y, en particular, la de Madrid (Zárate, 2003, p. 286). La adaptabilidad de Madrid a las transformaciones planetarias ocurridas con la globalización, a sus exigencias, parece estar supeditada a la promoción de la autonomía. En efecto, la Comunidad Autónoma de Madrid ha sido relanzada al escenario global a partir de su incorporación a la Unión Europea y de las intervenciones que a través del planeamiento regional le permitieron superar ciertos rezagos tecnológicos que afectaban su desempeño económico, siendo la rápida conversión del aparato productivo diseñando para el consumo de masas hacia la producción flexible uno de los rasgos dominantes de la nueva economía regional ibérica, pues involucra no sólo a Madrid cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 sino a la capital lusitana, Lisboa, y al puerto de Valencia. Al nivel intraurbano, hoy ya se habla de la homogeneización de los paisajes y de la destrucción de los valores culturales enraizados en el pasado, mientras que la periferia asiste también a un relanzamiento de su nivel de vida por fuerza de intervenciones deliberadas para contener las “deseconomías de la macrocefalia madrileña” (Zárate, 2003, p. 288). Los problemas de sociabilidad y habitabilidad no son extraños a una Comunidad en plena expansión económica. Los barrios de extranjeros han aflorado dejando sus improntas culturales en el medio urbano, lo que ha generado una contra-reacción racial dirigida a la diáspora latinoamericana y china, especialmente. El avance de la terciarización de la economía encuentra su principal manifestación socioespacial en el incremento notable en los precios del suelo urbano que acarrea también un incremento en los costos residenciales, de manera que la localización de las oficinas tiende a refluir del centro hacia la periferia de la ciudad, justo en el borde que conecta a Madrid con su entorno metropolitano inmediato (Zárate, 2003, p. 290). El fenómeno de la suburbanización ha irrumpido en los entornos rurales con peculiar ímpetu. Las segundas residencias son poco diferenciadas, de manera que la homogeneización de los productos inmobiliarios traduce el ambiente impersonal de un tipo de ocupación excesivamente denso (Zárate, 2003, p. 296). La ocupación ilegal del suburbano sur contrasta con el desarrollo formal de la zona norte. Es notable la ambigüedad de las edificaciones ya que además de la ilegalidad que viene acompañada generalmente de la fragilidad metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales constructiva, la proliferación de piscinas parece ser el rasgo distintivo de unos habitantes esporádicos que claman por esparcimiento. Luego de 25 años de creada la Comunidad Autónoma de Madrid, al parecer el modelo de organización metropolitana de Madrid ha sido desbordado y se requiere de uno nuevo que promueva un orden territorial más amplio en lo social, y más extenso en lo territorial. El modelo post-fordista le ha impreso un peculiar dinamismo a la economía madrileña, con lo que el nivel del ingreso de las familias ha mejorado tanto que se están haciendo factible nuevas demandas por suelo suburbano para diferentes usos en la postmetrópoli. Las mejoras en las condiciones de accesibilidad regional están permitiendo la expansión del umbral metropolitano. La ciudad región es la opción más proclamada por académicos y por políticos ibéricos en los últimos años. La interacción cotidiana es cada día más intensa, siendo el trabajo el motivo que detona el mayor número de movimientos al interior del espacio metropolitano de la CAM. En esto, los subsidios de transporte – el bono transporte madrileño – han desempeñado un papel importante que favorece las interacciones, dado que muchos trabajadores de la capital residen en Castilla-La Mancha, por ejemplo. La cuestión latinoamericana Los procesos de metropolización en América Latina guardan estrecha relación con la forma de articulación de cada nación a las esferas mundiales de la acumulación de capital y, por tanto, tienen una dimensión histórico-social que hacen de tal fenómeno un hecho social diacrónico pues, en efecto, algunas formaciones sociales en las que se detectó de manera temprana algún avance de la metropolización han experimentado cierto rezago en relación con la profundización de la metropolización en otros lugares del subcontinente latinoamericano. En general, el modo de acumulación industrial de tipo fordista que exige un gran contingente de fuerza de trabajo y que es sostenible con altas tasas de desempleo urbano, promueve la aglomeración de actividades en ciertos lugares y una elevada concentración de población en estos, de manera que las disfuncionalidades atribuibles a la macrocefalia urbana están correlacionadas positivamente con el devenir histórico del desarrollo industrial de mediana y gran escala. Por su parte, el modo comercial de acumulación de capital no exige tal aglomeración como sí varias aglomeraciones con interacción fuerte en razón de los flujos de mercancías. La primera ciudad de las formaciones sociales articuladas al modo comercial de acumulación de capital no alcanza a tener la importancia relativa de la primera del modo industrial. Con el advenimiento de las pautas de producción y circulación de mercancías postfordistas, se demandan nuevas localizaciones. El consumo de espacio por las familias no es su mismo espacio de consumo como anota Rainer Randolph. El deterioro en la distribución personal del ingreso acarrea nuevas formas de segregación socioespacial, siendo la residencia en conjuntos cerrados la forma predilecta de aislamiento de las capas de ingresos altos de la población, justificada socialmente bajo el discurso cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 63 óscar a. alfonso r. 64 setentero de la inseguridad urbana. Cuando esas formas residenciales se dispersan en el medio metropolitano, reproducen los esquemas generales de segregación a una escala espacial mayor que, de hecho, se agudiza cuando se sustituyen usos rurales por usos residenciales suburbanos. Los condominos cerrados son la exégesis de aquella práctica de cerrar vías por los vecinos para producir un barrio cerrado en el que los intrusos tienen prohibi da la entrada pues son clasificados como peligrosos por los residentes. Los estructuradores urbanos captaron rápidamente esta práctica e innovaron vertical y horizontalmente sus productos residenciales para ofrecer seguridad bloqueando la entrada de los intrusos. Lo que está en juego no es propiamente la seguridad personal pues cuando el crimen organizado entra en acción, los afectados – notoriamente los residentes de los conjuntos cerrados – recurren a la justicia formal, pues la seguridad privada no asume responsabilidad alguna sobre los hechos. En medio de esa contradicción, lo que se esclarece es que el espíritu de diferenciación de los citadinos encuentra en el espacio metropolitano – notoriamente en el suburbano – los lugares propicios para sus prácticas de aislamiento que, por lo demás, son prácticas de orden primario en tanto se realizan con miembros de la familia o con colegas rutinarios del trabajo o del estudio, pero en escasas ocasiones con los vecinos. Por tanto, a las zonas metropolitanas más dinámicas de América Latina, les es inmanente la diferenciación y la exclusión socioespacial que se materializa, de un lado, por las desigualdades en la provisión de bienes públicos metropolitanos y, del otro, cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 por el uso ineficiente del suelo urbano y suburbano. La accesibilidad metropolitana en la zona metropolitana de Buenos Aires hacia comienzos del presente siglo, analizada a partir del indicador TDI que sintetiza la oferta Transporte Integral (automotor y ferroviario) en relación a indicadores sociodemográficos (Staffa, 2007, p. 13), muestra que los municipios con menor accesibilidad metropolitana son los más alejados de la capital, los de menor densidad relativa y que cuentan con los mayores niveles de pobreza. Para los analistas argentinos, el efecto de las deficiencias en la provisión de las condiciones de accesibilidad metropolitanas es el incremento en los traslados a pie; pero esas largas caminatas lo que hacen es inhibir el acceso del ciudadano que reside en los lugares de menor accesibilidad relativa al resto del medio metropolitano. Cuando la accesibilidad urbana queda supeditada a la combinación de modos de transporte, el entorno metropolitano asume la forma de un bien club, esto es, un entorno que solamente es accesible para quienes detenten la disponibilidad a pagar suficiente. Pero, sin duda, hay algo más detrás de la dinámica económica metropolitana que origina sorpresas para los que no advierten las anticipaciones del orden urbano y metropolitano que están realizando los estructuradores formales. Seguramente que Berazategui es más deprimido socialmente que Tigre, pero el estructurador metropolitano produjo un nuevo orden desde el momento en que anticipó la demanda en condominios cerrados y se apropio del paisaje del delta, en proximidades a la represa, de manera que las mejoras en la provisión de la accesibilidad metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales Cuadro 3 – Accesibilidad integral relativa en la Zona Metropolitana de Buenos Aires – 2000 Município Esteban Echeverria General Sarmiento Florencio Varela Moreno La Matanza Quilmes Merlo Almirante Brown Berazategui L. de Zamora G. de San Martín Tigre Morón Lanús San Fernando San Isidro Avellaneda Tres de Febrero Vicente López Factor TDI 32 38 40 46 48 51 53 57 67 74 77 84 94 119 124 175 193 195 308 65 metropolitana a Nordelta produjo tal incremento en los precios del suelo habitable que Berazategui debió quedar ahora mucho más alejado socialmente del resto del medio metropolitano y, con igual o peor suerte, todos aquellos partidos que le anteceden en el ordenamiento del Cuadro 3. En el plano institucional, Buenos Aires se refunda desde 1994 cuando por mandato constitucional la emergente institucionalidad metropolitana se erige como un nuevo centro de poder sumándose a los precedentes: la Nación, la Provincia y el Municipio (Sabsay et al., 2002, p. 52). El alcance de su autonomía está aún por esclarecerse y, coetáneamente, el deslinde de sus funciones con la Nación, de manera que la naturaleza jurídica de la ciudad de Buenos Aires, sus funciones y, en relación con la cuestión metropolitana, su capacidad para la creación de regiones, se intenta clarificar para dar paso a los convenios con los municipios y la provincia. Hoy en día se reconoce que tanto la Constitución Nacional Argentina como la de la provincia no restringe de manera alguna la participación de Buenos Aires en la configuración de regiones (Sabsay et al., 2002, p. 60). Esa noción de ciudad integrada en el ámbito metropolitano, en su dimensión ambiental, que deriva en acuerdos con otras jurisdicciones de la estructura ecológica común, es fundamental para la armonización y promoción de las bases territoriales de un orden metropolitano. Pero las otras jurisdicciones potencialmente participantes también se debaten en torno a la disyuntiva de su carácter autónomo o autárquico, es decir, entre su capacidad para autoregularse, autogobernarse y autoadministrarse delante cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 óscar a. alfonso r. de unas competencias territoriales o, simplemente, de autoadministrarse caso en el cual las competencias le son delegadas por el ente provincial y, por tanto, están expuestas a alguna restricción originada en la entidad que las otorga. La autonomía, por su parte, deviene de un mandato constitucional. En relación con la cuestión metropolitana [...] el artículo 124 faculta a las provincias a conformar regiones para el desarrollo económico y social, no existiendo norma expresa respecto a la facultad de los municipios de participar en esquemas de regionalización. (Sabsay et al., 2002, p. 68) 66 Esas limitaciones institucionales para la configuración metropolitana, esto es, para una modificación a los modelos territoriales de Estado, son muy comunes en los países hispanos de América Latina. En el caso colombiano, el interés de las autoridades bogotanas y del Departamento de Cundinamarca para organizarse alrededor de una Región Administrativa y de Planificación Especial, implicó llevar a cabo una reforma constitucional que, cundo se logró, fue declarada inconstitucional por vicios de procedimiento en el trámite en el Congreso de la República. El antecedente institucional y político es la Ley 128 de Áreas Metropolitanas que promueve un desbalance al otorgar un gran poder decisorio al núcleo urbano principal, factor que desalienta a los gobernantes del área circundante a Bogotá para conformar el Área Metropolitana en esos términos. En Brasil, que hoy por hoy cuenta con 5.564 municipios, parecen existir medios más expeditos para la configuración cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 institucional metropolitana. Según el Observatório das Metrópoles, desde 1974, sea por leyes federales o estatales, en Brasil se han conformado “24 regiones metropolitanas y 3 regiones integradas de desarrollo económico, que acogen a 79,1 millones de personas, el 46% de la población brasileña, siendo notable la primacía paulista que con 39 municipios posee alrededor de 19 millones de habitantes, y la carioca en donde residen 11 millones de personas, en contraste con otras de menor calado como la Región Metropolitana del Sudeste de Maranhão que acoge a 324 mil habitantes de ocho municipios o la Región Metropolitana de Macapá donde residen 435 personas en dos municipios”. Hay al menos tres convencimientos detrás de tal dinámica de la institucionalidad metropolitana. El primero tiene que ver con el reconocimiento del fenómeno en sí mismo, es decir, que el municipio tiene una dinámica local insoslayable pero que, por fuerza de la metropolización, es superada por una de mayor calado y cobertura regional. El segundo es que la institucionalización de la metropolización trae más ventajas, como el incremento del poder de negociación ante los gobiernos federal y estatal, que desventajas, como la supuesta pérdida de la autonomía; y, por último, que un buen diseño normativo federal o estatal promueve la institucionalización de la metropolización cuando no crea mayores desequilibrios, sino que los acota. No obstante la existencia de significativas aglomeraciones metropolitanas en el mundo que no han entrado en la tónica de la economía en red, el potencial económico de las mismas es indiscutible. Sólo en 15 de las 27 regiones metropolitanas brasileñas se metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales concentra el 62% de la capacidad tecnológica del país y el 55% del valor agregado que generan las firmas exportadoras (De Queiroz, 2008, p. 1), de manera que el sistema urbano así configurado se reconoce como el principal activo para hacer frente a las nuevas tendencias de la acumulación global del capital. Sin embargo, en algunos medios se discute la supuesta decadencia de las metrópolis brasileñas y, de forma paralela, cierto auge de ciudades medias, siendo uno de los principales indicadores de tal fenómeno la desindustrialización detectada desde mediados de los ochenta y que implicó, por ejemplo, la contracción de la hegemonía industrial paulista estimada en 15 puntos porcentuales de la participación de São Paulo en el empleo industrial brasileño. Pero tal contracción no implicó un retroceso semejante en la producción industrial, lo que sugiere que lo que está ocurrien do es un agudo proceso de reestructuración industrial que se ha logrado a costa de una elevación en la productividad media del trabajo, consistente con una elevación del grado de mecanización de los procesos fabriles. De hecho, entre 2002 y 2005 la participación metropolitana en el PIB pasó del 51,6 al 53,3% (De Queiroz y Martins, 2008, p. 4) mientras que la participación en la población también ha aumentado hasta situarse, en 2007, en 39,2%. De manera que una ciudad media o intermedia, como se acostumbra a denominar a aquellas ciudades localizadas en esas franjas de la jerarquía poblacional y económica de la red de ciudades, puede detentar un crecimiento notable pero marginal a la luz del sistema urbano en su conjunto. Situación bien diferente es la que afrontan las ciudades de esta naturaleza pero que, además, se localizan en un ámbito metropolitano, esto es, ciudades catalizadoras de tal crecimiento poblacional o económico que hace plausible una bifurcación metropolitana que, de conjunto, sí está en capacidad de modificar la estructura jerárquica de la red de ciudades y, por tanto, el patrón de ocupación del territorio de la formación social en cuestión. Esa bifurcación metropolitana puede ocurrir por varias razones, principalmente a las que atañen a la forma de operación de los mercados inmobiliarios y de trabajo. En el caso de la Zona Metropolitana de Ciudad de México como en Barranquilla, las bifurcaciones están ocurriendo en razón de políticas sobre el mercado del suelo urbano. Ciudad de México, subdividida en 16 delegaciones, conforma con otros 41 municipios la segunda zona metropolitana más populosa del mundo con sus 18,8 millones de habitantes, sólo precedida por la conurbación asiática Tokio-YokohamaKawasaki que cuenta con cerca de 33,3 millones de habitantes. La bifurcación del crecimiento poblacional urbano hacia Nezahualcóyotl, Ecatepec y Chimalhuacán ha sido motivada en buena parte por la “restricción a la construcción de nuevos fraccionamientos en el Distrito Federal” (Carrasco y Andrés, 2007, p. 4), medida que detonó la ocupación irregular de terrenos en al oriente del Valle de México. En Soledad, conurbado de Barranquilla en el Caribe colombiano, la tasa de formación de hogares supera a la del núcleo metropolitano como resultado de la confluencia de al menos dos fenómenos. El acelerado crecimiento inmobiliario formal experimentado cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 67 óscar a. alfonso r. 68 recientemente en Barranquilla para acoger a familias de ingresos altos y medios-altos del resto del Caribe que han optado por cambiar de lugar de residencia y, de manera coetánea, las facilidades urbanísticas que ofrece Soledad para acoger a la población desplazada por los violentes de la Sabana Interior Caribeña, y que otrora se dirigían a lugares como Cantaclaro en Montería, por ejemplo. El resultado de las bifurcaciones metropolitanas de esta naturaleza es la configuración de municipios metropolizados de carácter monoclacista, en los que la política social local no es sostenible. En el plano de la institucionalización de la metropolización con la que se pueda hacer frente de manera conjunta a los desafíos poblacionales y sociales como los mencionados, en Barranquilla no se ha avanzado mucho mientras que en Ciudad de México se configuró en 2005 la Zona Metropolitana de Ciudad de México en la que, además de las 16 delegaciones y 40 municipios conurbados, se incorporaron otros 18 que se encuentran en el área de influencia inmediata del núcleo metropolitano y demás conurbados, que revisten las cualidades para ser conurbados en el futuro próximo. Esa anticipación institucional es tan proactiva en términos políticos y deseable en el plano social que podría ser una excelente alternativa para proyectos metropolitanos como el de la expansión madrileña pues, además de reducir los costos en que incurre la intervención pública en la construcción de un nuevo ámbito metropolitano para la coordinación de políticas, facilita el diseño de políticas de bordes metropolitanos con la participación activa de los entes territoriales involucrados. cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 La cuestión anglosajona La estructura jerárquica de la red estadounidense de ciudades, como pocas en el mundo, goza de una notable estabilidad, especialmente por la relativa ausencia de volatilidad de la población en su territorio, aún en medio de la supremacía económica, poblacional y dotacional del eje atlántico frente al eje de desarrollo del pacífico. El cosmopolitismo de su ciudad primada, Nueva York, es reconocido universalmente como el más acrisolado, fuente de mezclas raciales y etarias insospechadas que hacen de la afirmación de la personalidad urbana una práctica en la que cotidianamente sus residentes refuerzan la superioridad intelectual que se irradia por causa del efecto metrópoli. La diversidad poblacional, cultural y económica que acogen sus cinco distritos – Manhattan, Brooklyn, el Bronx, Queens y Staten Island – los diferencian y los cohesionan a la vez, contradicción de la que emergen sus principales rasgos distintivos como metrópoli global a la cabeza de la red mundial de ciudades. La estabilidad secular de la tarifa del transporte masivo (un token por cualquier cantidad de estaciones por US$1,25) ha sido uno de los principales factores que han detonado la expansión de su influencia inmediata hacia New Jersey y Connecticut. La otra es el elevado nivel de precios que caracteriza al real estate neoyorquino desde sus orígenes cuando los grandes especuladores inmobiliarios – los Astor, Beckman o Vanderbilt (Charyn, 1998, p. 28) – acumularon inmensas fortunas al calor del hacinamiento crítico de los residentes de comienzos del siglo XIX “que algunos vieron en ella una amenaza metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales para el hogar americano” (Charyn, 1998, p. 32). Medio siglo más adelante, la “Capital del Mundo” comenzará a acoger la herencia de todos los tiempos y de cualquier lugar del universo: El día de la llegada de los inmigrantes a Nueva York era lo más parecido que se puede encontrar en este mundo al Juicio Final, en que uno es digno o no de entrar al Paraíso… Ellis Island se convirtió rápidamente en uno de los arquetipos de Nueva York, en la “isla de las Lágrimas”, donde a menudo se separaban las familias, donde los inmigrantes debían pasar por un doloroso crisol, donde los cuerpos eran marcados con tiza, recibían nuevos nombres y nuevas identidades, y al final se precipitaban en el caos del Nuevo Mundo, a la búsqueda de nuevos recursos para subsistir. (Charyn, 1998, p. 36) Las grandezas neoyorquinas de hoy en día, Wall Street, los museos metropolitanos, la red de metro con el mayor número de estaciones del mundo, el legado de angolquinos e iroqueses en Broadway o la edificación en altura, por ejemplo, contrasta con la persistencia de antivalores, siendo el más notorio el de la segregación racial mistificado en Harlem. Por otra parte, a esas grandezas se accede por mecanismos de mercado: el alcalde Bloomberg afirmó [...] no vamos a subsidiar a ningún individuo o empresa para que venga aquí a Nueva York. Cualquier empresa que necesite subsidio no la necesitamos aquí, sólo queremos corporaciones, empresas que quieran radicarse en lugares de alta calidad. (Harvey, 2006, p. 4) Otras zonas metropolitanas detentan rasgos distintivos acuñados por lustros y que en la actualidad les confieren alguna preeminencia en la formación social anglosajona: Boston-Cambridge es reconocida como núcleo tecnológico, educativo y arquitectónico, WashingtonBaltimore por ser la ciudad pensada para acoger los núcleos gubernamentales del poder y sus acti vidades de apoyo y San Diego-Tijuana por ser la fuente de la nueva hispanidad que se extiende por el eje de desarrollo del pacífico. Pero, por diferentes razones, en estas preeminentes zonas metropolitanas no es fácilmente discernible la “mítica dicotomía del declinio urbano y la prosperidad suburbana que conlleva el declinio social y económico que se detiene en las fronteras de la ciudad central” (Orfield, 1999, p. 1) como si ocurre en las zonas metropolitanas de la Región de los Lagos o en las del noreste estadounidense. Tal declinio, por lo tanto, es atribuible también a los viejos trabajadores que en la actualidad conforman las capas de ingresos medios que residen en los suburbios y en las ciudades satélites en las que las agencias de servicio social atienden un flujo creciente de personas dolientes del stress urbano. En el mismo sentido, el empobrecimiento persistente de las zonas deprimidas estadounidenses se desenvuelve en medio de una fiscalidad precaria caracterizada por bajísimas tasas impositivas que no proveen los recursos necesarios para atender la demanda de escolaridad y de otros servicios públicos (Orfield, 1999, p. 1) originada, cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 69 óscar a. alfonso r. 70 en muchos casos, por “una suerte de carrera armamentista en la que todas las localidades ofrecen incentivos, pues temen los resultados de no hacerlo” (Clarke et al., 1999, p. 59). El resultado de mediano plazo consiste en la contracción de la base tributaria local sin una respuesta eficaz en la creación de empleo local y una ampliación de la demanda insatisfecha de bienes y servicios públicos que termina por deprimir aún más el medio, generalmente suburbano, de lo que estaba antes. Del otro lado, del de las empresas beneficiarias de las desgravaciones y subvenciones, estas se configuraron como una renta corporativa cuya obtención no conllevó costos ni riesgo alguno y a la que, por tanto, difícilmente renunciarían. La expansión suburbana y la polarización social, la violencia homicida y la segregación son cada vez más frecuentes en los medios metropolitanos. Las zonas suburbanas metropolitanas son fragmentadas para alojar a las clases trabajadora, media y alta. La primera opta por residir en proxim id a d e s a lo s e mp la z a mie n t o s industriales de manera que los trayectos cotidianos del lugar de residencia al sitio de trabajo sean factibles de realizar caminando. La clase media localiza su residencia en proximidades a lugares de tránsito pesado, de flujo de carga, conformando barrios de trabajadores. La clase alta reside en barrios de donde han sido removidas las familias de las otras dos clases y que gozan de atractivos ambientales (Orfield, 1999, p. 22). Cada clase ocupa su lugar configurando un orden metropolitano amparado en una estructura radial de redes de transporte y en las innovaciones residenciales de los estructuradores metropolitanos para cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 salvaguardarlo, mimetizadas bajo el lema de la seguridad personal. Los private communities se abrieron paso en el medio suburbano desde mediados de los setenta. Por entonces se detectaron 340.000 residencias en private communities, mientras que hacia 1990 se estimó en 5,9 millones de personas los residentes en esta pauta de ocupación suburbana. En general los estructuradores metropolitanos ofrecen un paquete que incluye la seguridad física, la garantía de tener vecinos semejantes, algunas facilidades recreacionales y un diseño que integra alamedas y ciclopaseos. A cambio se exige del residente una elevada cuota de administración y manutención del condominio, su vinculación a una asociación de vecinos y el pago periódico de las cuotas de afiliación y sostenimiento y el cumplimiento de un conjunto de reglas. Cuando estas se endurecen, la sujeción de los residentes a las mismas da lugar a los gated communities . Fairfax County en Reston, Virgnina y Howard County en Columbia, Maryland, son casos emblemáticos de estas modalidades. Algunos de sus elementos distintivos se han emulado en Nordelta en la Zona Metropolitana de Buenos Aires, Barra de Tijuca en Río de Janeiro y Alphaville en São Paulo y Curitiba. Sujeción a reglas como la de que en el condominio no pueden habitar personas menores de 18 años ni mayores de 55 o la obligación de remitir previamente a la administración las hojas de vida de los invitados a una reunión para que ella autorice o no su presencia, son sólo algunas de ellas. Levy (1997, p. 98) se pregunta: “si cree mos en la elección maximizadora del consumo en vestuario y automóviles, por metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales qué no en condominios como estos?” Y responde: “porque son la destrucción del Edén de la integración” que “trasciende a un problema de diseño físico” y que tiene implicaciones sociales en materia de segregación socioespacial metropolitana. “Las elites han optado por el aislamiento, pagan por él generosamente y de buen grado”, apunta Bauman (1999, p. 32) para quien las reglas de los gated communities cumplen la función de poner en evidencia los patrones de normalidad de las personas que entonces podrán residir en un condominio al que se le prohíbe la entrada al resto de personas que deben quedar aislados temporalmente, configurándose de esa manera un orden a la manera anglosajona que se irradia hoy por todo el mundo: La experiencia de las ciudades norteamericanas analizadas por Sennet apunta a un elemento común casi universal: la suspicacia, la intolerancia de las diferencias, la hostilidad hacia los forasteros y la exigencia de separarlos y desterrarlos, así como la obsesión histérica, paranoica, por “la ley y el orden”, tienden a alcanzar su más alto grado en las comunidades más uniformes, las más segregadas en cuanto a raza, etnia y clase social, las más homogéneas. (Bauman, 1999, p. 64) La polarización regional y su expansión en los Estados Unidos tienen diferentes manifestaciones socioeconómicas y espaciales: concentración de la pobreza en ciertos grupos poblacionales y su mayor incidencia entre los niños y mujeres cabeza de familia, deficiencias de ingreso, de escuelas públicas y, en general, de acceso a la educación, escalada del crimen, infraestructuras precarias, disparidades fiscales y discriminación laboral, por ejemplo. Las principales diferencias están en la intensidad con que se presentan estos fenómenos en las diferentes zonas en expansión. Para los investigadores de The Metropolitan Area Research Coporporation – MARC, las soluciones metropolitanas se articulan en tres ejes: a) equidad; b) crecimiento prudente; y, c) reformas estructurales metropolitanas. Al primer eje le conciernen las políticas tributarias, especialmente las que conciernen a los usos del suelo. Minnesota es pionera de tales medidas pues aún preservando la autonomía local se logró mejorar la provisión local y estatal de servicios públicos con base en acuerdos entre jurisdicciones (Orfield, 1999, p. 46). La discusión de la equidad metropolitana que involucra diferencias entre el núcleo metropolitano, los municipios metropolizados y entre ellos en su conjunto es, obviamente, muy compleja, pero lo que la hace más compleja es no discutirla. Los resultados han conducido a la eliminación de la competencia tributaria intra-metropolitana y, más aún, a la adopción de políticas como la del Tax Increment Financing. El tercer mecanismo es el de la planeación del uso del suelo, cuyo objetivo principal es el de evitar la ocupación de bajas densidades y la toma de decisiones sobre la infraestructura metropolitana que evita la expansión de estas características. Otras medidas complementarias han sido la equidad escolar en las que el Estado complementa los fondos para garantizar el acceso universal teniendo en cuenta el cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 71 óscar a. alfonso r. 72 esfuerzo tributario local, la revisión de las transferencias y la reinversión en antiguas comunidades cuya revitalización genere una ampliación de la base tributaria. Las políticas de control al crecimiento, como en el caso de Grand Rapid en Michigan, intentan intervenir el crecimiento en los márgenes buscando que no se agudice la segregación y empeore la contaminación y el consumo de energía, entre otros males que encarecen la vida para el conjunto de los residentes de la zona metropolitana. El modelo de planeación del suelo de Oregon es el más comúnmente asimilado en estas localidades, siendo el Estado el que promulga los lineamientos de usos del suelo aplicables a todas las jurisdicciones, las pautas de crecimiento de la ciudad central de los municipios metropolizados, las metas en vivienda y, de manera coherente, los planes de transporte, agua y saneamiento, parques e infraestructura educativa (Orfield, 1999, p. 52). Las reformas estructurales metropolitanas, por su parte, conciernen al papel de las Organizaciones Metropolitanas de Planea miento y a su composición y a su legitimidad en la perspectiva de la toma de decisiones que influyen en el futuro de la región metropolitana. En el caso de los private and gated communities se ha visto como los estructuradores metropolitanos privados se convierten en los verdaderos planeadores mientras que las OMP asumen un rol pasivo, el de consejeras de los cuerpos legislativos, al paso que inmensas zonas carecen de control de uso del suelo, de zoneamiento, las áreas de desarrollo se autonomizan de las ciudades, la ineficiencia económica de usos del suelo es notable y otras áreas entran a ser replanificadas. cadernos metrópole 21 pp. 53-74 10 sem. 2009 Los Utility Advisory Board (UAB) y Urban Cooperation Board (UCB) son los acuerdos entre jurisdicciones que han permitido retornar a la gobernabilidad metropolitana: en el primero se establecen los umbrales y las reglas de la expansión metropolitana, mientras que en el segundo se acuerda la fiscalidad para ser empleada en los proyectos de inversión física (Orfield, 1999, p. 56). Reflexiones finales Variadas alternativas para afrontar los desafíos de las aglomeraciones metropolitanas son factibles de aprehender de los estudios cualitativos, difícilmente resumibles en algún ranking de experiencias exitosas. De hecho, el imborrable aprendizaje de los fracasos tiene la potencia transformadora de los comportamientos que alienta la búsqueda de nuevas alternativas. Las zonas deprimidas del mundo desarrollado aún experimentan alternativas institucionales para resolver los problemas comunes a las jurisdicciones integradas en alguna dinámica metropolitana, mientras que en América Latina las innovaciones institucionales ocurren otro tanto pero en medio de un creciente reconocimiento de que la defensa de las autonomías heredadas de la descentralización administrativa y fiscal no pueden convertirse en obstáculo a la concertación de políticas metropolitanas. Anticipaciones como en el caso de México y difusión de la institucionalidad metropolitana como en Brasil son casos emblemáticos de acuerdos que facilitan tal coordinación. La eficacia de las soluciones metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales propuestas a los desafíos metropolitanos radica, en buena medida, en la originalidad de las alternativas las que, por su parte, provienen de los diagnósticos adecuados, de la apropiación crítica de las experiencias metropolitanas globales y, sin duda, de la capacidad innovadora de los cuadros de las organizaciones metropolitanas de planeamiento, los tres pilares de la metropolítica. Óscar A. Alfonso R. Doctor en Planeamiento Urbano y Regional por el Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Economista con estudios de maestría en la Universidad de los Andes. Docente Investigador de la Universidad Externado de Colombia (Bogotá, Colombia). [email protected] Nota * Este trabajo fue realizado con el apoyo de la Secretaría Distrital de Planeación de Bogotá, D. C. Agradezco los comentarios y sugerencias de Humberto Molina, Carolina Méndez, Johann Julio y del lector anónimo de la revista Cadernos Metrópole. Referencias ALFONSO R., Ó. A. (2005). “La residencia en condominios en un ámbito metropolitano andino: la conquista del campo por los citadinos y el orden segmentado en la región Bogotá-Cundinamarca”. En: Hacer metrópoli: la región urbana de Bogotá de cara al siglo XXI. Bogotá, Universidad Externado de Colombia. ________ (2006). Ciudad-región andina, global y competitiva: elementos de análisis de las condiciones iniciales de la región económica y política Bogotá-Cundinamarca. Revista Controversia, segunda etapa, n. 184. Bogotá, CINEP. ________ (2007). Aportes a una teoría de la estructuración residencial urbana. Revista de Economía Institucional, v. 9, n. 17, Bogotá, Universidad Externado de Colombia. BAUMAN, Z. (1999). 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Os territórios demarcados para o futuro são vistos, na atualidade, como “vazios” urbanos (terras desocupadas ou vagas) e são objetos da ação dos incorporadores imobiliários, que lucram com terras valorizadas, em prejuízo das populações urbanas excluídas. Ao final, sugerem-se medidas para a democratização do acesso aos bens e serviços socialmente constituídos. Palavras-chave: demandas sociais; uso da terra urbana; políticas urbanas; urbanização; Brasília. Abstract Citizenship has made demands and expressed itself in different sectors of our society, mainly regarding the government’s action, as it has been less active in public services such as public health, educational development, public transportation, housing policies, etc. When professionals evaluate urbanization, they analyze these demands in terms of the way in which territories with special characteristics are demarcated and appropriated. Territorial demarcations for strategic reserves or for population are carried out by the citizens, by state agencies, and by economic agencies. Territories demarcated for future use are actually seen as urban “voids” (vacant areas) and are objects of speculation by real estate agencies that aim to profit with valuable areas, to the prejudice of the excluded urban populations. This paper suggests actions that can be taken in favor of the democratization of access to goods and services that were created in favor of the population. Keywords: social demands; urban land use; urban policies; urbanization; Brasília. cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 aldo paviani “Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que o são?” Milton Santos: “Há cidadãos neste país?” O Espaço do Cidadão, 1987 Introdução 76 Procura-se analisar e entender como a sociedade, por seus agentes, apropria-se do território e o organiza para o desempenho de inúmeras atividades necessárias ao ser humano. Assim, ao estudar o ambiente rural, como as atividades no campo, enfatizam-se o uso da terra para cultivos, a criação de gado, exploração de madeiras e também extração mineral. Igualmente, há preocupação de como se deixam glebas de reserva para proteger o ambiente natural, as matas ciliares, os rios e a fauna necessários à sustentabilidade. Por isso, é importante entender os riscos e as vulnerabilidades do ambiente em que se ocupa a terra, sobretudo em tempos de grande pressão mundial por alimentos. Pressão intensa que pode transformar campos e florestas em territórios degradados e inóspitos. No ambiente rural e florestal importa: a) entender as vulnerabilidades do ambiente em que se cultiva a terra e partir para a sustentabilidade; b) identificar as ações que transformam terras férteis em ambientes cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 estéreis e arenosos; c) pensar a Amazônia e os Cerrados como biomas gigantescos e importantes territórios de reserva para as futuras gerações; d) preservar o espaço amazônico da cobiça (nacional e internacional) é dever do Estado, das empresas e de todo brasileiro. Quando urbanistas, geógrafos e arquitetos avaliam o ambiente urbano, pesquisam como territórios, por vezes com características especiais, são demarcados e apropriados. A demarcação para reservas estratégicas ou para povoamento é efetivada pelos habitantes (urbanitas), pelos agentes estatais (planejamento urbano) e pelos agentes econômicos (incorporadores imobiliários, empreiteiras, etc.). Os territórios demarcados para usos futuros são vistos, na atualidade, como “vazios” urbanos (terras desocupadas ou vagas) e são vulneráveis por conta dos ataques de agentes econômicos que visam lucros imediatos com terras valorizadas. No ambiente urbano, as análises se voltam para territórios com características especiais, p.ex., reservas estratégicas para povoamento futuro. Nem sempre os espaços urbanos demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF são objeto de políticas públicas abrangentes com visão não imediatista. As ações para modificar territórios e aglomerados urbanos ocorrem com uma conjunção de forças.1 Poderíamos utilizar, em âmbito nacional, a teorização de Milton Santos para o caso brasileiro, em termos da “dinâmica territorial”, quando trata da “dissolução” da metrópole brasileira: Pode-se dizer, no caso do Brasil, que, ao longo de sua história territorial, as tendências concentradoras atingiam numero maior de variáveis, presentes somente em poucos pontos do espaço. Recentemente, as tendências à dispersão começam a se impor e atingem parcela cada vez mais importante dos fatores, distribuídos em áreas mais vastas e lugares mais numerosos. (Santos, 1993, p. 89) Milton Santos explicitou que há forças presentes nas grandes cidades capazes de gerar concentração, que podem levar à verticalização e forças de dispersão que propiciam horizontalização, isto é, “as horizontalidades serão os domínios da contiguidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial” (1994, p. 16), espaços da solidariedade. Esses movimentos, no interior da dinâmica urbana, são concomitantes e não-concorrentes, pois cada qual toma para si um naco do território: a dispersão com alargamento das periferias propicia a dissolução do tecido urbano para limites cada vez mais amplos, enquanto que as forças concentradoras buscam comprimir atividades e serviços em estritos territórios dos centros metropolitanos, ocupando o espaço aéreo, ganhando as alturas com arranha - céus e valorizando a terra dos núcleos centrais. Tanto a verticalização quanto a horizontalização são fruto de processos mais amplos de modernização e globalização, que têm na metrópole espaços de excelência. De acordo com Souza (2008, p. 43): Como essa modernização é territorialmente seletiva, logo socialmente seletiva também, ela deixa de fora dessa forma muitas empresas capazes de utilizá-la, excluindo a participação de boa parte da economia urbana e da população. Como esses movimentos modificam a estrutura urbana, a continuada valorização da terra central exige um terceiro movimento, a contenção ou preservação de espaços livres, que denomino “reservas estratégicas para o futuro”. Não se deve ocupar todo o território, deixando-se espaços para mais adiante. Em resumo, as forças e os movimentos perceptíveis pela geografia urbana são, em primeiro lugar, o espraiamento horizontal ou horizontalização de suas periferias por assentamentos para habitações subnormais, de baixa renda (favelas). Há também empreendimentos imobiliários (condomínios fechados); em segundo lugar, o crescimento vertical ou verticalização pela construção de edifícios de múltiplos pisos para habitação ou para escritórios, clínicas e outros serviços; em terceiro lugar, um movimento de contenção ou barramento, que visa, de um lado, deixar áreas de reserva para usos futuros ou estoque de terras para a especulação imobiliária e, de outro, conter ações especulativas do mercado imobiliário,2 como se verá a seguir. Todas essas ações podem se efetivar simultaneamente. cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 77 aldo paviani Ocupação do espaço nas grandes cidades 78 No caso de agentes estatais, os estoques de terra ou grandes áreas sem utilização (áreas desocupadas ou “vazios urbanos”) que visam necessidades de expansão em demanda efetiva da sociedade. Há demandas induzidas, provocadas por uso intensivo do aparato da propaganda por parte de empreendedores privados. Raras são as grandes cidades brasileiras em que o ente municipal ou estadual, ao longo do tempo, fez previsões para suas necessidades futuras de terras para equipamentos ou serviços públicos. Nesse caso, há duas saídas: uma a desapropriação de propriedades privadas, como acontece na abertura de novas avenidas ou construção de escolas e hospitais; a segunda ação liga-se à improvisação e mesmo acordo com entidades privadas ou órgãos federais que incluem permutas ou convênios de mútuo interesse. Em todos os casos, os movimentos no interior da metrópole envolvem alargamento de sua periferia com a necessidade suplementar de obras viárias, extensão de redes de saneamento básico e de energia elétrica. Por sua vez, o alargamento horizontal de cunho empresarial e a verticalização muitas vezes pouco têm a haver com a demanda efetiva por parte da população. Obras em condomínios “fechados” nas periferias metropolitanas são movimentos imobiliários que induzem à ocupação da terra e a loteamentos. Neles se propagam os privilégios ambientais do empreendimento (parques, jardins e lagos artificiais ou mesmo piscina e áreas destinadas a esportes). Esses empreendimentos destinam-se às classes média e alta. Em alguns casos, essa cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 horizontalidade assistida por arquitetura, engenharia e paisagismo serve de argumento para que, ao correr das obras iniciais, os empreendedores efetivem vendas que tornem seguro o negócio. Na fase de procura de segurança com conforto ambiental, raros são os empreendimentos que fracassam, apesar (ou por causa) dos altos custos que pesam no orçamento dos compradores. Não há previsão de controle emergencial desses empreendimentos no caso de contaminação por parte da grande crise imobiliária americana de 2007/2008. Há inúmeros exemplos de condomínios de porte que vingaram sob a bandeira da segurança, embora esta não seja tarefa do Estado, mas dos expandidos “serviços de vigilância” de cunho privado. Então, a possível vulnerabilidade da segurança interna do condomínio é suprida por vigilantes armados, guaritas, câmeras de vídeo, cercas eletrificadas e cães ferozes. Nem sempre esses itens têm amparo legal, mas servem de vitrine para a divulgação na imprensa de páginas inteiras de anúncios para atrair compradores. Os construtores omitem o fato de que as terras destinadas ao condomínio são ou não circundadas por favelas. Essas, no Brasil, tornaram-se sinônimos de ausência do Estado e, portanto, presa fácil de atividades ilegais, contravenção, tráfico de entorpecentes e de criminalidade. A favela, por sua vez, é a outra face do alargamento do espaço metropolitano. Disseminadas às dezenas no espaço das metrópoles brasileiras, as favelas ocupam largas porções da periferia urbana. As características essenciais do favelamento são: a pobreza, o predomínio de habitações precárias,3 o desalinho do arruamento a falta de esgoto, de encanamento hidráulico, de demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF escolas, hospitais, isto é, falta dos serviços do estado. Tornam-se o lugar dos periferizados, dos desassistidos, pobres, discriminados e excluídos. Em muitas cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Recife, São Paulo e outras, a periferização parece incontrolável e cria a imagem de dois ambientes: o centro, com bairros “nobres” e a periferia. Nos primeiros, não faltam os equipamentos e serviços de primeiro mundo; na periferia, as carências são tantas que clamam por serviços humanitários, sobretudo de ONGs e entidades religiosas ou da “assistência” coatora da bandidagem e de milícias ilegais, de solução complicada em razão dos habitantes aderirem ao sistema (facilidades) imposto. Qual o desempenho do Estado com iniciativas de contenção? Ultimamente, alguns administradores estabelecem ações de contenção pela via legislativa. Prefeitos e governadores abrem debates sobre planos diretores urbanos e mesmo diretrizes urbanísticas de cunho pontual, por vezes assistencialista e populista. Além da contenção e normatização de usos, examinemos cada um dos agentes e seu papel na dinâmica urbana. Dinâmica urbana no Distrito Federal – atores Logicamente, a atuação dos agentes não se dá de forma estanque. Apenas para destacar as ações de cada um deles, vamos analisá-los de forma itemizada. No mundo real, Estado e empresas imobiliárias ou Estado e cidadãos e ainda agentes imobiliários e compradores podem atuar de forma associada, conveniada, licitada ou mesmo por “termos de ajustamento de conduta” (TACs). Vejamos a atuação dos segmentos: 1 – Estado: é representado, no caso brasileiro, em âmbito municipal, estadual e federal (isolada ou conjuntamente). E, de acordo com as competências administrativas, o poder público é exercido por secretarias municipais, ministérios federais ou secretarias estaduais. Igualmente têm seu papel as câmaras municipais, as assembléias legislativas e o congresso nacional. Há ainda, no Judiciário, competências diversas que vão do juiz de comarca até o Supremo Tribunal Federal e suas instâncias intermediárias – todas com alguma responsabilidade na aplicação das leis ou no julgamento de demandas judiciais. No caso das três esferas executivas, a atuação se dá por um grande leque de iniciativas, por vezes submetidas a políticas públicas sobre, por exemplo, o uso da terra urbana. Cabe ao executivo se antecipar à depredação do ambiente, as agressões especulativas com a imposição de posturas. Estas obedecem a uma infinidade de medidas como portarias, decretos, leis de uso da terra, leis orgânicas, planos diretores e programas ligados à habitação, aos transportes, à segurança pública, à educação, etc. Alvarás, permissões, termos de ajustamento de conduta, editais de concorrência são utilizados para controlar e normatizar a vida coletiva e a fluidez do cotidiano dos habitantes das cidades e de uma dada região. O extinto Banco Nacional da Habitação (BNH) era responsável por todas as iniciativas de construção de casas populares. O BNH desempenhava um grande papel no atendimento às demandas por habitação por parte das classes menos favorecidas. Esse banco foi perdendo essa característica, cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 79 aldo paviani 80 passou a atender demandas da classe média e foi extinto antes que se apurassem graves problemas de ordem financeira e administrativa. Hoje, parte do papel do extinto BNH é desempenhado pela Caixa Econômica Federal, sem a amplitude do banco, e pelo Ministério das Cidades. No caso do DF, o governo tem, desde a transferência da capital, um papel proeminente na organização do espaço (Paviani, 2007, p. 1). Para isso, por anos a fio, manteve desapropriações e um invejável estoque de terras como um dos principais instrumentos para a organização do território. Diferentemente de outros estados e municípios, Brasília detinha esse grande trunfo em mãos dos governadores do DF. Paulatinamente, todavia, esse estoque de terras públicas foi sendo reduzido por vendas com licitações pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap). Com isso, empresas e moradores aumentaram sua participação no “loteamento oficial”. Além disso, alguns programas do Governo do Distrito Federal (GDF)4 como o Proin (visando à atração de indústrias), o Prodecon (Programa de Desenvolvimento Econômico do DF), Pades (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Econômico e Social do DF) e o PRODF (beneficiando empresas em diversos “polos” – informática, vestuário, etc.) e a criação de “assentamentos semiurbanizados”, foram reduzindo o patrimônio imobiliário do governo. Assim, ao projetar Taguatinga, em 1958, o governo local deflagrou um processo de interminável criação de cidades-satélites – todas visando proteger o Plano Piloto de ocupações ilegais, irregulares e informais (favelas), as denominadas “invasões”.5 Desfecha, ao mesmo tempo, o polinucleamento urbano e a periferização com segregação cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 socioespacial. Em 1987, foi assim descrita essa atuação na qual O Governo do Distrito Federal (GDF) tem uma ação indireta (sic) importante na periferização, na medida em que fechou seu espaço urbanizado ou mantém as construções de casas populares em ritmo lento. (...) o GDF atua como uma força de empurrão: o esquema relativamente fechado de terras públicas para fins urbanos e o mecanismo imobiliário ensejaram um movimento de empurrão para além dos limites do Distrito Federal de considerável contingente de população de baixa renda, seja em terrenos legalizados pelo esquema especulativo, seja em terras invadidas (favelas). (Paviani, 1987, p. 38) O governo Roriz, além de criar inúmeros assentamentos, hoje Regiões Administrativas, alterou profundamente a destinação da Área Complementar nº 1 (AC1) do PEOT – em Águas Claras.6 Em projeto urbanístico de 1983, a AC1 deveria abrigar atividades dentro de um programa de descentralização dos congestionados centros do Plano Piloto e Taguatinga. Com a alteração do projeto, Águas Claras foi destinada apenas para moradias com edifícios que chegam a 30 andares. Com a proximidade das muitas obras, criou-se um bairro congestionado, diverso dos demais assentamentos do DF, em que predominam lotes unifamiliares. Ademais, a mudança de destinação bloqueou a possibilidade de descentralização de atividades e serviços do Plano Piloto para a grande área de Águas Claras, prevista no plano de 1983. Assim, haveria aproximação das atividades para localidades populosas como demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF Taguatinga, Ceilândia e Samambaia, conjunto que, em 2000, atingia mais de 750.000 habitantes, conforme censo do IBGE. Na atualidade, o governo Arruda tem ação direta e forte em todas as iniciativas de uso da terra: propôs novos bairros como a expansão do Sudoeste; a licitação para venda de terrenos do Noroeste (para o qual encomendou a um escritório de urbanismo e arquitetura um projeto que inclui habitações em superquadras para abrigar cerca de 40 mil habitantes e comércio local). Projetam, ainda, o bairro do Catetinho e os setores Quaresmeira, Guará III e Jóquei Clube. Além dessas iniciativas, o setor privado, por sua vez, projeta condomínios de luxo no local do demolido estádio de futebol “Pelezão". Tanto no caso de Águas Claras, do governo anterior, como no atual com o Noroeste, Catetinho e outros, há uma clara associação do aparelho do Estado com os empresários do setor imobiliário e da construção civil. Analisando-se as diversas atuações dos últimos 20 anos, fica clara a intenção de valorizar o Plano Piloto, mantê-lo elitizado,7 abrindo espaço apenas para fins residenciais e impossibilitando o uso da terra para a geração de novos postos de trabalho, a não ser trabalho esporádico da construção civil (que poderá sofrer o “efeito cascata” da crise imobiliária americana e depressão econômica globalizada). Com a associação públicoprivado abrem-se amplas possibilidades para alargar atitudes de especulação imobiliária. Ao mesmo tempo, as instituições estatais atuam para o preenchimento de terras desocupadas (em que se utiliza erroneamente o termo “vazios” urbanos). Fechamse as possibilidades para espaços livres para usos futuros. Ademais, condenam-se os habitantes da capital a sacrifícios impostos por engarrafamentos no trânsito, que surgirão no futuro, pela insistência em aglomerar, no Plano Piloto, novos e populosos bairros. Antecipam-se a congestão e o caos no trânsito,8 comuns às demais metrópoles brasileiras. 2 – Empresariado. Melhor seria usar o termo no plural, pois se trata de um agente multifacetado e mutante. Multifacetado porque abriga comerciantes e industriais, passando por diversas categorias empresariais, do ramo imobiliário, da construção civil, corretores, advogados e profissionais liberais apoiadores de atividades privadas.9 E é um agente mutante e híbrido porque circula nas diversas esferas públicas dos três poderes, especialmente do poder executivo, detentor de verbas e dos instrumentos legais que regem a vida social, econômica e política. Além do caráter híbrido, os construtores de moradias e imobiliárias atuam no DF e nos municípios goianos por mais de três décadas. Há exemplos em Luziânia, Santo Antonio do Descoberto e Águas Lindas. Em Luziânia, a explosão dos loteamentos deu origem a novos municípios – Cidade Ocidental, Novo Gama e Valparaízo, cujos vínculos com Brasília os fazem participar, funcionalmente, da Área Metropolitana de Brasília (AMB).10 Ao estudar novas territorialidades e gestão do território, no DF e nos municípios do vizinho estado de Goiás, Ignez Ferreira avaliou que A ocupação dessa área periférica começou com o parcelamento privado das terras, nos municípios limítrofes ao DF, colocando no mercado grande quantidade de lotes em locais sem infraestrutura, vendidos em pequenas prestações cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 81 aldo paviani e longos prazos. Esses empreendimentos encontraram mercado na demanda das classes mais pobres, que viram na compra do lote e na autoconstrução a oportunidade de livrar-se do aluguel nos fundos de lote e nas áreas consolidadas do DF. (1999. p 141) 82 A falta de políticas públicas de médio e longo prazo para atender à demanda reprimida provocou a ocupação de terras no DF, por vezes ao arrepio de leis ambientais. Esses assentamentos privados são mais conhecidos como “condomínios irregulares ou ilegais”. Nesse caso, ferem a legislação porque ocupam áreas de proteção ambiental (APAs) – margem de córregos e matas ciliares. Contam-se às centenas e, presentemente, o GDF tenta identificar quais desses condomínios podem ser “regularizados”. Todavia, lucram grileiros e especuladores que, ocupando terras de outrem (do governo federal, distrital ou de outros proprietários), serão beneficiados, apesar do malfeito contra a natureza ou contra a propriedade privada. Por isso, o século XXI já se inaugurou há quase uma década e a estrutura do território se mostra incompleta sob o ponto de vista legal, administrativa e fiscal, pois há moradores que pagam IPTU e demais taxas de urbanização e outros não pagam por se constituírem em condomínios ainda não regularizados. Mesmo assim, alguns desses já contam com serviços da Companhia de Eletricidade de Brasília (CEB) e da Companhia de Águas e Esgoto (CAESB). Em resumo, criaram-se, na área metropolitana, espaços polinucleados com núcleos esparsos no território, simplesmente porque os modelos de povoamento são repetitivos dentro e fora do DF. Notam-se, cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 nos dias correntes, algumas tentativas do GDF em modificar esse modelo, a partir de iniciativas que vão, pouco a pouco, costurando e emendando o tecido urbano com novos núcleos capazes de, no futuro, não apresentarem espaços intercalares. Em outras palavras, a conurbação começa a se materializar em diversos pontos, como exemplo, a junção de Taguatinga-Ceilândia; Taguatinga-Samambaia, Plano PilotoCruzeiro (Velho e Novo)-Octogonal-Setor Sudoeste e por aí vai com outras iniciativas do poder público associadas à do setor imobiliário. Acaba-se reproduzindo, aqui, o povoamento contínuo, em “manchas de óleo”, compactando-se a cidade. No futuro, será uma grande mancha urbana, assemelhada a qualquer grande cidade do país, deixando para trás e sem retorno a fama de “cidade planejada”, embora os ufanistas tendam a assim considerá-la. Oliveira examina a lógica do setor privado e sua relação com o poder de decisão política: Os mecanismos do mercado imobiliário são estruturadores espaciais de comprovada eficiência e muito mais o são quando aparecem despolitizados, numa relação aparentemente neutra entre comprador de um pedaço de terra ou uma moradia, que têm preços diferentes e localizações diversas dentro da cidade. (...) O mercado imobiliário, cujo fulcro é o espaço urbano enquanto objeto de apropriação e individualizado, como ponto de referência para a compra e venda, num lote ou numa casa será por nós encarado como relação entre classes sociais. (...) As práticas e as relações sociais do mercado imobiliário demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF decorrem da existência de classes com decisão política e com prerrogativas para delimitar o espaço a ser construído e classes sem tal decisão e sem essas prerrogativas; as primeiras estão no comando dos aparelhos do Estado, nos centros decisórios; as segundas estão fora, nas periferias. (1987, pp. 128 e 129) O morador se constitui em paciente (do processo de periferização), na medida em que é expulso do DF, onde não tem acesso à terra e à habitação; se transfiguraria em agente no momento em que, de posse da terra/habitação, passa, ele próprio, a transacionar, transferindo “direitos”, construindo barracos, e os vendendo, alugando e subalugando, etc. Além disso, algumas vezes o mo- Por isso, em muitas metrópoles, quando o Estado, por suas instituições, não abarca a totalidade das demandas sociais por mais moradia, melhor infraestrutura e mais investimentos em obras, o setor privado se faz presente para ser mais do que um coadjuvante. Alguns empresários serão capazes, com a colaboração de legisladores, “oferecer” projetos que atendam algumas demandas, bem como apresentar capacidade de executar obras, por seu equipamento operacional ou de seus associados e prepostos. Nos anos 70 e 80, essa era a tônica do empresariado quando atuava nos “conjuntos habitacionais”, sob o patrocínio do BNH ou quando tomava iniciativas com “loteamentos abertos”.11 Prevê-se incremento de o setor privado envolver-se cada vez mais com a coisa pública, em especial com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que acumula cerca de R$504 bilhões para investimento em infraestrutura até 2010, segundo divulga a mídia e o portal do governo federal.12 3 – O cidadão. O agente cidadão é, por vezes, denominado morador, inquilino, mutuário ou usuário da moradia. Em outro trabalho, avaliou-se que se trata de um agente-paciente13 da urbanização por suas características especiais. Assim, rador atua como intermediário, uma espécie de agenciador, encaminhando amigos e parentes à imobiliária, participando com essas ações de todo o jogo de periferização e especulação imobiliária. (Paviani, 1989, p. 44) Passados 30 anos da pesquisa realizada na localidade de Pedregal (ou Parque Estrela Dalva VI), avaliamos que o agente morador não mudou seu perfil. O que deve ter mudado é o contingente de “agentes-pacientes” da urbanização, em vista das ações do GDF, dos incorporadores imobiliários e corretores. A partir de 1988, com a nomeação do governador e eleição de deputados para Câmara Distrital, as instituições públicas passaram a barganhar apoio político e troca de favores tendo como moeda terrenos nos diversos “assentamentos semiurbanizados” que se multiplicaram no DF. Milhares de “sem teto” e inquilinos de fundo de quintal foram aquinhoados com terrenos em Santa Maria, Samambaia, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Paranoá, Itapuã e extensões de glebas para moradia em outras cidades-satélites. No governo Cristovam Buarque, extinguiu-se a denominação cidade-satélite, passando os núcleos à denominação oficial de “cidade”, embora não cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 83 aldo paviani 84 tenham sede municipal nem sejam assim tratadas pelo IBGE. Nesses assentamentos, de início, o comodato ou o direito à moradia, tornou o imóvel inalienável. Com o passar do tempo e a falta de fiscalização, os “direitos” eram passados por procuração ou simplesmente o comodato era “vendido”, com o que a moradia ou o terreno eram transformados em dinheiro para usos diversos. Com isso, até os dias de hoje, há terrenos que passaram por diversos “proprietários”, ocasionando problemas de posse para fins de “regularização” da propriedade, causando acúmulo de processos, e de trabalho, nos tribunais do DF. Além dos assentamentos oficiais, o morador aderiu aos condomínios, regulares e irregulares (por vezes denominados “loteamentos clandestinos”), que somam mais de quinhentos, dando um nó na regularização fundiária. No caso dos condomínios, os três agentes confluem para tomar posse da terra, de forma legal ou não, sendo difícil para o Ministério Público encontrar quem foi induzido, de boa ou de má fé, a ocupar terras de outrem como se fosse propriedade legítima.14 Dos quinhentos condomínios existentes, apenas algumas dezenas podem se habilitar à regularização. Os demais terão suas contendas judiciais encaminhadas aos juizados, não se tendo previsão sobre qual dos contendores terá ganho de causa – os moradores, os proprietários ou o GDF. Em todo o caso, vale lembrar a Lei 6.766, de 1979 que, em seu Art. 50, inciso I, reza: Constitui crime contra a Administração Pública: dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo (sic) para fins urbanos, sem autorização do órgão público cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 competente ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios. Apesar da lei, a ocupação de terras e a ilegalidade foram constantes ao longo dos anos 80 e 90. Em razão desses desmandos fundiários, a Câmara Legislativa do DF (CLDF) instituiu a “CPI da Grilagem”, em 1995. Após 135 dias de trabalho, a CPI produziu um documento com 528 páginas, contendo recomendações e chegando, nas conclusões, a enumerar a prática de 20 delitos e respectivas punições, que vão desde (item 1) a “falsificação, em todo ou em parte, de documento público, ou alteração de documento público verdadeiro...” a (item 20) “punir administrativamente, via processo de sindicância, os servidores públicos que participaram de alguma forma de grilagem de terras ou implementação de parcelamentos ilegais no DF” (CLDF, 1995). Passados 13 anos dessa CPI, nenhuma medida estancou a grilagem ou a ocupação ilegal de terras, nem se anunciou a punição em massa de possíveis responsáveis por loteamentos irregulares. Segundo Malagutti, Em 1995, quando foi efetuado o último levantamento oficial, chegou-se ao número quase inacreditável de 529 empreendimentos cadastrados. (...) Mesmo considerando que, após minuciosa análise dos 529 empreendimentos cadastrados, o GDF tenha inviabilizado 297 deles, sobrando 232 loteamentos para análise das possibilidades de regularização. Desses, 144 são parcelamentos urbanos e 88, rurais. (1999, pp. 57 e 58). demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF Nota-se que não é por falta de legislação que a questão fundiária não se resolveu até os dias correntes. Em 1999, a CLDF promoveu um levantamento sobre a questão local das terras com a meta de “solucionar definitivamente os problemas relacionados à questão fundiária do DF”, chegando a levantar 33 leis, um decreto e uma emenda à Lei Orgânica como referência ao documento elaborado (CLDF, 1999, pp. 24 a 27).15 Outras demandas Ao longo da construção da capital, mas, sobretudo, na fase de estrutura e consolidação, surgem importantes demandas no setor habitacional, de transportes públicos e de geração de atividades descentralizadas, isto é, pressionando para privilegiar as cidades-satélites. Vejamos, separadamente, essas demandas. a) por ampliação dos postos de trabalho Nos dias correntes, segundo a Pesquisa de Emprego-Desemprego do Dieese, o desemprego atingiu 216 mil pessoas, em outubro de 2008.16 Em termos relativos, o dado preocupante do desemprego é a taxa de 16% da população economicamente ativa, de 1.348.000 pessoas. A taxa média de desemprego das metrópoles estudadas pelo Dieese é de 13,4%. No caso do DF, significa que a saída para a sobrevivência mantém em atividades informais um enorme contingente de trabalhadores, que se ocupam com biscates, “faz tudo”, coleta de materiais usados, comércio de rua, etc. Outra saída foi “oficializar” a “Feira dos Importados”, também denominada “Feira do Paraguai”. Para centenas de camelôs, que ocupavam pontos estratégicos, como a rodoviária urbana, o GDF construiu uma “Feira Popular”, ainda em implantação e alvo de constantes reclamações, pois se localiza distante da circulação de pedestres, justamente nas proximidades da rodo-ferroviária, a dez quilômetros da antiga ocupação. Por isso, há quase 20 anos, a questão da “lacuna de trabalho”17 é preocupação das autoridades e, sobretudo, dos desempregados. A respeito, não há, no horizonte perceptível, nenhum projeto para mudar esse quadro, mesmo porque, com o tombamento da cidade como “Patrimônio Cultural da Humanidade”, a mudança do perfil de atividades, com a atração de indústrias, p.ex., está fora de cogitação. b) por transportes de massa eficientes Outra lacuna que se perpetua é a ineficiência dos transportes coletivos, agravada pelo uso maciço do automóvel particular. Pode-se afirmar que há um verdadeiro “caos no trânsito do DF”.18 Ressalte-se que, ao elaborar o plano piloto para Brasília, Lúcio Costa, inovou ao traçar vias, avenidas e eixos sem cruzamentos. Por isso, nos primórdios e até início de 1970, não havia semáforos no DF. Um dos primeiros foi no contorno a noroeste da rodoviária urbana, visando conter o tráfego no Eixo Monumental proveniente da rodoferroviária até a Esplanada dos Ministérios. Em fins de 1960, o trânsito era tranqüilo, havia poucos automóveis e muitos funcionários públicos faziam o trajeto casa-trabalho e vice-versa em ônibus fretados. Estacionar em ministérios, no Congresso e no Palácio do Planalto era acessível. O trafego do Eixo Monumental e do Eixo Rodoviário assemelhava-se ao de cidade do interior. Ir ao recém-inaugurado Conjunto Nacional e ao Setor Comercial Sul cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 85 aldo paviani não preocupava porque as vagas eram suficientes nos estacionamentos. Outra época, por certo sem retorno. 86 c) por melhoramento no trânsito A urbanização, o incremento populacional e a falta de planejamento urbano acabaram com a regularidade do fl uxo de veículos, a fluidez e a segurança no trânsito. O passar dos anos, a entrada de novos automóveis, a reduzida frota de ônibus e a diminuição das linhas e equipamento da TCB (Transporte Coletivo de Brasília) agravaram o ir e vir. As avenidas W-3, Norte e Sul ganharam sinais de trânsito e foram interligadas; as vias receberam placas indicativas de limite de velocidade. A frota de automóveis particulares, o aumento do número de motoristas e a falta de respeito às leis de trânsito começaram a deixar vítimas fatais nas pistas: acidentes aumentam exponencialmente. Contam-se centenas de mortos no trânsito, anualmente; os feridos lotam hospitais, as clínicas ortopédicas prosperaram, assim como as clinicas de radiologia. Proliferam as agências funerárias e comércio paralelo, por vezes provocando escândalos como o da administração de cemitérios, ora sob CPI na Câmara Legislativa. Aumenta a dor dos que perdem familiares em atropelamentos e acidentes com carros, motocicletas e ônibus. A Justiça Itinerante, bem como a Polícia Militar e bombeiros são chamados para atender acidentes ou mesmo para indiciar responsáveis por atropelamentos, mortes e danos materiais. O caos e a violência no trânsito elevam o temor de sair à rua ou de atravessar na “faixa de pedestres”, antes muito respeitada por todos, verdadeiro símbolo da educação e cidadania no trânsito de Brasília. Advogados especializam-se em assuntos jurídicos de trânsito cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 e aumenta o número dos que defendem e tornam impunes os causadores de acidentes com vítimas. Consolida-se a prática de pagar fiança e ganhar as ruas novamente, mesmo quanto os atropelamentos causam mortes. O Detran parece surgir como um vigilante do asfalto. Mas suas primeiras medidas se ligam ao rendoso trabalho de multar. Tem instalado centenas de radares (pardais) em todas as vias do DF. Estabelece um confuso elenco de velocidades conforme as vias: no Eixo Monumental com várias pistas em cada sentido, a velocidade máxima é de 60 km/h. No Eixo Rodoviário (verdadeira autoestrada, com passagens subterrâneas para pedestres), o limite é de 80 km/h. Nas L-2 Norte e Sul, 60 km/h. No setor de embaixadas e em outros pontos, 70 km/h; as vias paralelas do Setor de Embaixadas demarcam 80 km/h, com barreiras eletrônicas com limite de 60 km/h e alguns pardais. 50 km/h é a velocidade máxima de vias W-4, Sul e Norte19. Nessas, repletas de pardais, a velocidade é de 50 km/h. As vias que possuem barreiras eletrônicas têm velocidade reduzida para 50 km/h e alteram a velocidade de 60 km da mesma via. Como os motoristas não se dão conta desse cipoal, nem se preocupam em observar as placas de advertência, o volume de multas é enorme, chegando a mais de R$ 50 milhões em 2007, segundo divulga a mídia local. Sabe-se, vagamente, que esses recursos se destinam à “melhoria das condições de tráfego”, entre elas a “educação para o trânsito seguro”. Mas ainda é nebulosa a destinação do que é arrecadado em multas. Quando são realizadas campanhas de educação nas escolas o investimento é bem aceito, mas seus efeitos somente surgirão em 10 ou 15 anos... demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF Pode-se perguntar: o que é desejável em vista dessas constatações? A população possui diversas metas para o trânsito, entre elas o aumento do número de empresas de ônibus e respectivas linhas, a melhora das pistas, a vigilância constante dos agentes nas ruas, a educação para um trânsito seguro que se estenda para todo o DF e não apenas para o centro da cidade, o Plano Piloto de Brasília. Todavia, a medida mais urgente é a licitação para as novas empresas, pois a atual cobertura não atende muitos itinerários, sendo lacunoso o transporte em certas horas do dia e da noite. As novas empresas farão desejável concorrência umas às outras, desbaratando o cartel existente. A competição dessas empresas trará a redução das tarifas, hoje as mais elevadas do país. A ida ao trabalho no Lago Sul, por exemplo, por parte de morador de Planaltina (percurso de 55 km) custa-lhe R$12,00 ao dia, pois deve utilizar quatro transbordos, ida e volta, ao custo de R$3,00 ao bilhete. Por isso, a agenda para disciplinar o trânsito deve contemplar ações tais como: 1 – Redução das tarifas ou uso de bilhete intermodal de integração (ônibus-metrô); 2 – A presença constante e educativa de agentes de trânsito nas ruas; 3 – Aumentar o valor das multas para os que dirigem embriagados e com excesso de velocidade; 4 – Substituir, paulatinamente, o asfalto por pistas cimentadas, menos vulneráveis à erosão no período das chuvas. Com a mudança, as pistas apresentarão menos buracos, com queda no número de acidentes e de danos nos veículos; 5 – Construir ciclovias em todos os núcleos urbanos do DF em que a topografia favoreça os que circulam em duas rodas; 6 - Instalar a “onda verde”, a partir de semáforos sincronizados eletronicamente. Com essa medida, o percurso de diversas avenidas se fará sem interrupção, mantida a velocidade sinalizada. Nesse caso, p.ex., se poderá percorrer as avenidas W-3 Sul e Norte sem interrupções, rodando a 60 km/h. No esquema atual, passa-se um semáforo aberto, encontrando-se o seguinte fechado, rodando à velocidade estabelecida. Eleva-se o tempo perdido e, sobretudo, aumenta-se o gasto com combustíveis, tornando o deslocamento lento, caro e enervante. Além disso, acontecem congestionamentos em qualquer das vias e a qualquer hora do dia, por não ter sido instalada a onda verde. No período chuvoso, é comum a ocorrência de engarrafamentos em diversos pontos da cidade por motivo de alagamento das pistas. Os alagamentos se devem ao fato de que a rede de captação das águas da chuva ter sido implantada nos primórdios da capital, estando, portanto, ultrapassada. Para evitar mortes nas pistas, são corretas as medidas para reparar os estragos causados pelo período das chuvas. Essas ocasionam danos na capa asfáltica, sobretudo naquelas vias em que a camada é fina, sendo destruída pelas primeiras enxurradas. Em muitos casos, melhor seria substituir o asfalto por vias cimentadas, como é usual em muitos países europeus e em alguns estados americanos. Vias cimentadas possuem maior durabilidade e evitam que o asfalto seja danificado ou destruído facilmente. O asfalto tem exigido remendos constantes e, uma vez reposto, o asfalto rugoso torna a rolagem desconfortável, quando não provoca danos na suspensão dos veículos pelos desníveis que apresenta. cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 87 aldo paviani 88 As mudanças e os ajustamentos beneficiarão os mais pobres, que se deslocam de grandes distâncias. Constata-se que são os empobrecidos que arcam com os maiores custos para ir e vir ao trabalho, ao médico, à escola, às compras e à procura de serviços no Plano Piloto. Portanto, facilitar o deslocamento dos habitantes das cidades-satélites é dar-lhes condições de cidadania, pela democratização dos meios de transporte. O uso de sistema multimodal evitaria o pagamento de duas ou mais tarifas para ir ao trabalho num percurso como o de Ceilândia ao Plano Piloto, de algo como 30 km. Aumento da frota de ônibus e maior eficiência do trem suburbano (metrô) retirariam milhares de automóveis e motos das ruas. As ações preconizadas levam à melhora na fluidez do tráfego, reduzirão o consumo de combustível, o número de pontos de estrangulamento e os engarrafamentos de veículos. Ainda faltaria ampliar as vagas nos estacionamentos, verdadeiro gargalo no centro da capital. Há anos se debate a construção de garagens subterrâneas, mas sem resultados práticos. Outra questão que é pouco observada é a das condições de trabalho dos operadores de ônibus. Geralmente, o motorista enfrenta o calor e o ruído do motor instalado na frente do veículo. Houve greve dos rodoviários para que as empresas adquirissem ônibus com motor na parte traseira do veículo e direção hidráulica. Além disso, a questão salarial pesa no humor dos operadores, nem sempre preparados de forma conveniente no trato dos passageiros, sobretudo dos idosos e deficientes, os denominados “cadeirantes”, que demandam tempo para o embarque e desembarque. A agenda das empresas deverá ser modificada nesse item, pois a população de Brasília dá sinais de envelhecimento e cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 necessita de transportes públicos adequados à idade e às necessidades de cadeirantes e deficientes físicos. Por fim, ênfase também deve ser dada ao combate da violência no interior dos ônibus: assaltos ao cobrador e passageiros exigem segurança e policiamento para evitar atos delituosos com mortos e feridos. Em resumo, a aspiração de todos é evitar o caos no trânsito do DF e desmistificar a ideia apregoada de que o brasiliense é um ser possuidor de “cabeça, tronco e rodas”. Por certo, algo que pertence ao folclore dos primeiros tempos de Brasília, mas que poderá se perpetuar, pois, em 2008, foi ultrapassada a marca de um milhão de automóveis no DF. À guisa de conclusão Como se percebe, a ação dos estruturadores do espaço urbano prossegue sem obstáculos. Ao ser concluída uma etapa de obras, surgem problemas de diversas ordens, quando não demandas judiciais, contendas e escândalos. Também se pode anotar o caráter solidário desses agentes estruturadores no território. A ação de um agente irá corresponder à atuação dos outros dois. Esses atuarão separada ou conjuntamente. E é justamente o caráter sistêmico sobre o espaço que acabará gerando a manutenção das estruturas existentes ou a modificação delas ao longo do processo, sempre obtendo vantagem o agente mais estruturado, isoladamente ou em parcerias. Por fim, alguns encaminhamentos se fazem necessários para as iniciativas governamentais, oferecendo um rol que não se demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF esgota nele mesmo, porque assume muitas outras vinculações, na medida em que se avança no processo de urbanização. Entre muitas, aventam-se as seguintes sugestões: a) Políticas globalizantes, nas quais devem ser abandonadas ações pontuais, isoladas, paternalistas e clientelistas. A visão de totalidade ampliará o acesso democrático ao espaço da cidade por parte dos urbanitas, cidadãos e construtores da vida urbana; b) Geração de atividades , sobretudo aquelas que absorvem mão-de-obra com qualificação baixa e média. A tendência do mercado é absorver pessoal qualificado nos estratos mais altos com uso de tecnologias, o que também ocorre no setor público, no comércio, na produção industrial e nos serviços. A tecnologia acaba impactando negativamente na geração de postos de trabalho para os estratos médios e baixos da força de trabalho, além de provocar lacunas de trabalho de forma crescente; c) Projetos de médio – longo prazo (urbano-regionais), que não se circunscrevam apenas às áreas metropolitanas, mas que atendam as populações de centros urbanos menores, geralmente expulsores de mão-de-obra; d) Programas educacionais nos diferentes níveis, inclusive para o combate ao analfabetismo e analfabetos funcionais. Somente a educação poderá retirar as áreas periféricas do atraso e da ignorância, que incapacitam o desenvolvimento pessoal, profissional e coletivo da massa populacional; e) Combate aos desperdícios que fazem jogar no lixo alimentos, materiais recicláveis (papel, plástico, vidro e restos de materiais de construção). Evitar desperdício de verbas públicas em obras infindáveis ou que sejam levadas a cabo sob manipulação e/ou corrupção, aí incluído o nepotismo; f) Construir sistemas de proteção aos riscos e vulnerabilidades, que se materializam na violência urbana e rural, fome, pobreza, desemprego, criminalidade, analfabetismo, pedofilia e corrupção. Esses elementos, contidos em nossa realidade crua e que pesam em demasia sobre a população pobre, excluídos e periferizados. Para encerrar, o Juramento da juventude ateniense, serve como elemento ético e de reflexão, vindo de um tempo em que a cidade não oferecia as facilidades, oportunidades e riscos dos dias correntes. Nunca traremos desgraça à nossa Cidade, por nenhum ato de desonestidade ou covardia, nem jamais abandonaremos nossos companheiros sofredores. Lutaremos pelos ideais e pelas coisas sagradas da cidade, isoladamente ou em conjunto. Respeitaremos e obedeceremos às leis da Cidade e tudo faremos para respeito e reverência naqueles que, estando acima de nós, inclinem-se a reduzi-las a nada. Lutaremos incessantemente para estimular a consciência do cidadão pelo dever urbano. Assim, por todos esses meios, transmitiremos essa Cidade, não menor, porém maior, melhor e ainda mais bela do que nos foi transmitida. (Apud Patrick Geddes, 1994) cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 89 aldo paviani Aldo Paviani Livre-Docente/Doutor em Geografia Urbana pela Universidade Federal de Minas Gerais; geógrafo – bacharel e licenciado em Geografia e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor Titular da Universidade de Brasília, aposentado, Pesquisador Associado do Departamento de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (NEUR/CEAM) da Universidade de Brasília. Organizador de obras da Coleção Brasília da Editora UnB. Cidadão Honorário de Brasília - Câmara Legislativa do DF. Professor Emérito pela Universidade de Brasília [email protected] Notas (*) Ampliado de Políticas territoriais e dinâmica urbana, trabalho apresentado na Semana de Extensão da UnB, em 2 de outubro de 2008, mesa Vulnerabilidade, risco e estrutura de oportunidades na cidade. (1) Ver trabalho de Paviani (1989a, pp. 41-45). 90 (2) Essas ações, aparentemente contraditórias, fazem parte da mediação do governo quando trata de atender demandas, de um lado, e, de outro, de aprovar EIAS e RIMAS necessários à abertura de novas áreas urbanas. (3) Michel Rochefort, tratando da pobreza urbana, no período industrial das metrópoles, destaca que “todos os países, mesmo na cidade de Paris, tiveram uma fase que os franceses chamaram de bidonvilles, quer dizer favelas, de zonas hoje denominadas de habitat precário” (2008, p. 31). (4) Breve avaliação desses programas encontra-se em Paviani (1997, pp. 116-146). (5) De longa data, a imprensa e o governo qualificam como “invasores” os moradores pobres que ocupam lotes públicos ou particulares com “loteamentos informais” (favelas). Como são considerados “invasores”, devem ser “erradicados”. Esses termos pejorativos e preconceituosos foram oficializados com a “Campanha de Erradicação de Invasões” (CEI), implantando-se a Ceilândia com cerca de 82.000 habitantes moradores das favelas do IAPI, Vilas Tenório, Esperança, Sara Kubitschek, Morro do Querosene, Morro do Urubu, desconstituídas em 1971 para formar a nova cidade-satélite. (6) Ver de Paviani, O “Projeto Águas Claras”: Planejamento desperdiçado em Brasília (1989a, pp. 73-98). (7) Os novos bairros destinam-se à classe média alta, pois, o metro quadrado deverá ficar entre R$6.000,00 e R$10.000,00, com o que um apartamento de três quartos, no setor Noroeste, com 100 m2, poderá custar entre R$600.000,00 a R$1.000.000,00 a unidade. (8) Tema abordado no artigo Caos no trânsito urbano do Distrito Federal. Disponível em: <http:// www.vitruvius.com.br/> - Minha Cidade, Ano 8, v. 11, jun. 2008, p. 223. (9) Ver Corrêa (1989, p. 12). (10) Sobre a Área Metropolitana de Brasília, ver Paviani (1994, pp. 27-40). cadernos metrópole 21 pp. 75-92 10 sem. 2009 demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF (11) Ver pesquisa sobre a “visão do agente imobiliário” (Paviani, 1987). (12) Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/pac/>, acessado em 25/11/2008. (13) Ver a visão do morador em Paviani (1987, p. 44). (14) Episódio envolvendo um cartório de notas na falsificação de títulos de propriedade, por ora ocasionou o afastamento do tabelião e uma morosa batalha jurídica nos tribunais, conforme noticiado na imprensa de Brasília. (15) Para interessados na questão fundiária do DF, ver Malagutti (1996). (16) Ver PED/DF, disponível em: <http://www.dieese.org.br>, acessado em 2/12/2008. (17) A lacuna de trabalho foi definida como “a atividade-não-gerada ou nos postos de trabalho que não aconteceram ou, mesmo que foram subtraídos do mercado de trabalho”. Ver Paviani (1991, pp. 115-142). (18) Ver nota 8. (19) Em Brasília, praticamente não há logradouros públicos com nome de pessoas. Assim, L-2 significa a 2ª via a leste do Eixo Rodoviário; a avenida W-3 é a 3ª, a oeste do referido Eixo. Referências 91 CORRÊA, R. L. (1989). O Espaço Urbano. São Paulo, Ática. DISTRITO FEDERAL (Brasil) (1995). Câmara Legislativa do DF. CPI da Grilagem – Relatório Final. Brasília, Câmara Legislativa do DF. ________ (1999). Ocupação e Legalidade das Terras do DF. Brasília, CLDF, mimeo. FERREIRA, I. C. B. (1999). “Gestão do território e novas territorialidades”. In: PAVIANI, A. (org.). Brasília – gestão urbana: conflitos e cidadania. Brasília, Editora UnB. GEDDES, P. (1994). Cidades em Evolução. Campinas, Papirus Editora. MALAGUTTI, C. J. (1996). Loteamentos clandestinos no Distrito Federal: legalização ou exclusão. Dissertação de Mestrado. Brasília, UnB. ________ (1999). “Loteamentos clandestinos no Distrito Federal: caminhos alternativos para sua aceitação”. In: PAVIANI, A. (org.). 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Esse trabalho, desenvolvido no âmbito de uma pesquisa comparada entre realidades urbanas brasileiras e portuguesas, questiona esses processos de patrimonialização de centros históricos procurando relevar a volubilidade desses processos. Abstract This article discusses some aspects of urban policies of gentrification, based on the following empirical references: the Neighborhood of Recife and the historic area of Porto (Portugal). The central argument is that, after the apex of urban interventions, which act as an elixir for the problems of a decaying reality, there is a counter-revanchism exacerbated by a sense of space recovery that annihilates the perspectives to improve such operations. This work, developed in the scope of a research study that compares Brazilian and Portuguese urban realities, questions such processes that transform historic centers into cultural heritage, trying to reveal their volubility. Palavras-chave: cidades; patrimônio cultural; enobrecimento urbano. K e y w o r d s : cities; cultural heritage; gentrification cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 rogério proença leite e paulo peixoto O poder redentor do patrimônio 94 As funções e o estatuto do patrimônio no contexto da vida urbana de cidades que, pelo seu ethos , se representam e são representadas como históricas, convertem os processos e as intervenções patrimoniais em uma espécie de nova realidade alegórica das cidades. Essa realidade alegórica evidencia a promessa redentora de, através de complexos processos de patrimonialização,1 reconstruir as imagens das cidades, e sobretudo de suas zonas históricas, em busca da superação de um incontornável processo de declínio. Esse processo de patrimonialização implica diferentes níveis de intervenção diferenciada, com fortes repercussões, tanto na infraestrutura urbanística e arquitetônica, quanto na formatação dos usos dos espaços enobrecidos (Ferreira, 2005) . Uma primeira repercussão desse proces so se faz sentir na materialização de uma ideia de espaço público ordenado, higienizado e minimizado de seus aspectos conflituais, que faz com que a cidade seja imaginada e transformada a partir da reinvenção de um seu passado (Zukin, 1995). Nessa perspectiva, o patrimônio é cada vez mais apresentado como a expressão material de uma ideia pacífica de espaço público, construído com base em uma suposta ideia de passado comum e de tradições compartilhadas. Sob forma figurada da imbricação entre consumo e lazer, os centros históricos alvo de requalificação são uma alegoria desse espaço público idealizado, supostamente perdido, que urge recuperar. As intervenções mais voltadas para um urbanismo intensivo têm ocorrido nos locais onde uma ideia de cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 patrimônio se pode juntar a uma ideia de espaço público para ser potenciada como atração turística e de lazer (Sennett, 1998; Fortuna, 2002). De forma semelhante, há consideráveis repercussões na promoção de uma animação crescente, enquadrada pelo consumo visual e pelo turismo urbano, e por formas de expressão de um patrimônio imaterial, que pretende sugerir ideais de cidadania e de participação cívica. Nesse plano, o espaço recuperado se apresenta como uma nova plataforma de pendor artístico capaz de gerar significados sociais e culturais, como se o visual fosse a condição fundadora de novas e enriquecedoras sociabilidades. Também se observam alterações na concretização de representações destinadas a funcionar como imagens de marca das cidades e como expressões metonímicas que convidam a tomar a parte, ordenada e embelezada, pelo todo e a difundir noções abstractas de centralidade e de qualidade de vida. Nesse plano, o patrimônio funciona como alegoria, dado que o esplendor e a qualidade urbanística dos espaços em que ele se exibe, as cores garridas das fachadas recuperadas, frequentemente contrastando com o resto da cidade que as envolve, tornam os bens investidos de um valor patrimonial numa espécie de obra de arte que representa ideias abstratas de qualidade de vida e de funcionalidade. Neste âmbito, funcionam como imagem metonímica da cidade, convidando a tomar a parte, ordenada e embelezada, pelo todo. O patrimônio e as suas representações que emergem no contexto desses processos de patrimonialização podem ser caracterizados como uma invenção cultural que procura legitimar e naturalizar um determinado tipo políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo de discurso sobre a vida urbana. A busca e a aquisição de um estatuto patrimonial pelos centros históricos do Recife e do Porto são, assim, experiências paradigmáticas do complexo percurso contemporâneo das políticas urbanas. Numa primeira configuração histórica, os centros históricos constituem um componente estrutural e funcional da vida urbana. Condensam as primeiras experiências de uma cultura urbana (Simmel, 1997) e tornam-se espaços de destaque na economia política das cidades. Numa segunda fase, geralmente perdem sua importância socioeconômica, sendo estigmatizados e suscitando progressivamente a emergência de uma sentida tomada de consciência relativa à sua desvalorização social. Numa terceira etapa, reclamam e adquirem uma identidade patrimonial (Arantes, 2000), inserindo-se novamente no centro das políticas urbanas. É nessa fase que ocorrem a reinvenção do patrimônio e a construção de uma nova imagem da cidade, mediante políticas intensivas de revitalização e enobrecimento urbano.2 Espaços antes considerados degradados passam a ter seu atribuído valor patrimonial ressaltado e se transformam em foco nodal de intensivas políticas urbanas e maciços investimentos público e privado. Com seus espaços higienizados e embelezados, a cidade adentra a concorrência intercidades (Fortuna, 1997) com renovada perspectiva, tendo seus patrimônios transformados em mercadoria. É nessa passagem da segunda para a terceira etapa que a ideia patrimonial emerge em meio às transformações urbanas advindas dos processos de enobrecimento. Mas é também nessa fase que, tomando aqui o caso concreto das duas realidades propostas para análise (Recife e Porto), se consuma uma quarta e nova fase observável, caracterizada por uma espécie pós-revanchismo patrimonial. A expressão revanchismo, aplicada aos processos de gentrification, é conhecida nos estudos urbanos para designar uma espécie de vingança tardia, mas eficaz, da cidade, que demarca espaços, segrega usuários e expulsa moradores indesejados (Smith, 1996). A operação lembra as políticas de higienização urbana das cidades portuárias, típica do urbanismo haussmaniano. O que resulta desse ambíguo processo de embelezamento estratégico – para usar mais uma vez a feliz expressão de Walter Benjamin (1997) –, é a não menos conhecida espetacularização da cultura em geral, e do patrimônio material e imaterial, em particular. A quarta fase, aqui chamada de pósrevanchista, é gerada no auge do contexto de patrimonialização e de suas vulnerabilidades, e encerra um desfecho inevitável e indesejado para gestores e capital. Sugestivamente, esse pós-revanchismo sinaliza, por outro lado, uma abertura da cidade àqueles que não tinham espaço nas políticas de enobrecimento. Contudo, o alto preço por essa curiosa e tardia “inclusão social” é a volta desses espaços a condições de esvaziamento e deterioração crescentes. O papel do patrimônio e da requalificação urbana na concretização de novas centralidades Encarados como repositórios e como propulsores de atividades culturais diversas, os cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 95 rogério proença leite e paulo peixoto 96 centros históricos, ao concentrarem as iniciativas patrimonialistas, tornam-se objeto de uma idealização no âmbito das políticas urbanas e de processos de patrimonialização. Na medida em que alimentam com frequência uma visão predominantemente culturalista da cidade, vertida em campanhas de criação e de difusão de imagens, os centros históricos, sustentando-se em operações de patrimonialização e de requalificação urbana, tornam-se uma espécie de hipercentro das cidades. Verdadeiro receptáculo de investidas distintas, do campo político ao técnico, passando pelo associativo e pelo empresarial, esse espaço, que muitos, através das políticas de reabilitação urbana, pretendem tornar a mais falada, a mais estudada, a mais animada ou a mais colorida das configurações urbanas, parece constituir-se como o novo foco, em busca de uma certa centralidade cultural. Mais do que um centro, que muitas vezes já não são, por ganharem uma visibilidade superior àquela que têm no desenrolar da vida quotidiana das urbes, os centros históricos são, no contexto do investimento plástico que neles é feito, um hipercentro das cidades, na medida em que, virtualmente, se constituem como um ponto de convergência de intervenções urbanas diversas destinadas a um certo mediatismo. Os casos do Bairro do Recife e da Ribeira do Porto, enquanto paroxismos de processos de patrimonialização, encaixam-se nesse modelo de desenvolvimento das políticas urbanas (Peixoto, 2006; Leite, 2007). Dos centros históricos, pretende-se cada vez mais que não sejam apenas um mero lugar nem um centro. Mas sim que se tornem num hiperlugar e num hipercentro, na medida em que têm de ser simultaneamente cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 um lugar, uma apropriação e uma prática coletiva de formas de sacralização ou de espectaculosidade. Mais do que remeter para a esfera íntima ou para práticas quotidianas, o hipercentro exige um investimento coletivo que reveste um caráter mais ou menos sagrado, mais ou menos venerável, mais ou menos festivo, mais ou menos extraordinário. Nessa medida, procurando contrastar com o seu papel recente e com o seu entorno urbanístico, os centros históricos são alvo de intervenções destinadas a torná-los protótipos da vida urbana e são mediatizados como lugares exemplares. Por essa via, enraizados numa iconografia patrimonial, acabam por preencher a função de imagem profética de um futuro diferente para a cidade de que fazem parte, participando no desígnio maior de qualquer comunidade. Ou seja, a capacidade em criar e em manter lugares de centralidade que possam ser propostos aos locais e aos estranhos como lugares a admirar e a venerar. Nesse contexto, em posições extremadas que atravessam as políticas de reabilitação, parece consolidar-se a ideia que para ser belo ou atrativo, e consequentemente mediático, é preciso sofrer. Seja o sofrimento inerente às posições estéticas e políticas daqueles que defendem que a função dos centros históricos é preencher o lugar que as ruínas ocupam na formação e no funcionamento da memória coletiva, atuando como uma espécie da “beleza do morto” de que nos fala de Certeau (1996). Seja o sofrimento relativo às transformações plásticas que, para promover um certo sentido estético, transfiguram lugares e objetos tornando-os como que irreconhecíveis e alvo de críticas profundas por parte dos puristas da preservação. políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo Tendo por referência as imagens difusas que irradiam desse hipercentro, não deixa de ser pertinente questionar a tensão marcante que enquadra muitas das intervenções atuais nos centros históricos. Essa tensão, nem sempre fácil de identificar, decorre da colisão entre imagens idea lizadas do passado (o que se pensa que foram) e imagens idealizadas do futuro (o que se pensa que devem ser). Tensão que faz emergirem projetos opostos ou alternativos e, por vezes, inconciliáveis. E que, não sendo ultrapassada pelo confronto com a realidade mais ou menos recente e presente dos centros históricos se constitui como um obstáculo intransponível a uma intervenção sustentável nas áreas urbanas antigas, na medida em que será sempre um contrassenso reabilitar indo contra aquilo que existe. Nessa medida, não é despiciendo notar que as intervenções nos centros históricos, na sua globalidade, e no caso concreto das duas realidades urbanas retidas para análise, e não obstante o forte pendor retórico que as envolve, participam mais da produção representacional e imagética que anima a promoção local que propriamente de uma política urbanística claramente orientada para a reabilitação, como o evidencia o surgimento de processos de revanchismo. Evidenciase, por essa via, o risco de as campanhas de promoção local ficarem excessivamente prisioneiras de imagens sem conteúdo. Em contextos em que o marketing das cidades, movido por uma linguagem hiperbólica e alimentando fenômenos de escalada, parece estar a adquirir uma preponderância crescente, substituindo-se ou sobrepondo-se à ação política, à intervenção técnica e à criação artística e cultural. O processo de patrimonialização do Bairro do Recife Para o aspecto central da análise aqui proposta, é fundamental destacar que o Bairro do Recife, ao longo dos seus mais de 400 anos de existência, já experimentou o apogeu e a decadência quase absolutos – em termos de centralidade econômica, relevância arquitetônica e visibilidade cultural –, em pelos menos três grandes momentos da sua história. O primeiro momento se deu quando da própria fundação do Povoado dos Arrecifes (século XVI) e depois, já com a presença do Mauricio de Nassau (século XVII), quando a sede do governo holandês foi edificada no vizinho bairro de Santo Antonio, deixando o bairro do Recife a amargar uma posição política secundária. O segundo, quando o bairro foi quase todo demolido e reconstruído no melhor estilo da Paris de Haussmann, ainda no auge da economia açucareira de Pernambuco (início do século XX) para, em seguida, presenciar quase seu despovoamento e, uma vez mais, a perda da sua relevância para outras áreas da cidade (sobretudo no pós-guerra até os anos 80 do século XX). Por fim, após amargar várias décadas de quase total abandono, o bairro “ressurge” nos anos de 90 como um dos mais emblemáticos, importantes e impactantes processos de enobrecimento urbano do Brasil (Leite, 2007) A fase mais aguda desse processo de patrimonialização se deu entre 1989 até aproximadamente 2001, época em que se deu o enobrecimento do Bairro. Nesse período, o bairro teve suas feições arquitetônicas cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 97 rogério proença leite e paulo peixoto 98 e funcionais bastante alteradas, com a transformação de antigos casarões em animados pubs e sofisticados restaurantes. As ruas, palco de espetáculos teatrais, shows musicais e exposições artísticas, tornaram-se boulevards para as famílias de classe média da cidade. Rotinas antes impensáveis devido à má fama de local perigoso, o portuário bairro foi se transformando em opção de lazer seguro e entretenimento para a população, foco do turismo internacional e palco de grande visibilidade pública para eventos políticos. O processo de patrimonialização foi intenso, tanto no que se refere ao patrimônio imaterial quanto material. O primeiro foi caracterizado por um agudo processo de retradicionalização do bairro, mediante a apresentação espetacular de folguedos da cultura popular pernambucana, a exemplo de tradicionais grupos de maracatus. A patrimonialização edificada por sua vez foi tão profunda que, pela primeira vez na história das políticas de preservação no Brasil, um bairro em estilo eclético foi reconhecido como patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, a despeito da discutível relevância arquitetônica do bairro para os cânones patrimoniais e preservacionistas brasileiros. Foi nesse bairro haussmanniano do Brasil que o Plano de Revitalização do Bairro do Recife veio a ser colocado em prática, tendo como fundamentação uma proposta de restauração do patrimônio edificado articulada à ideia de intervenção urbana na forma de um empreendimento econômico. Afinado com os pressupostos do chamado market lead city planning, o plano tinha três objetivos principais: 1) transformar o Bairro do Recife em um "centro metropolitano recadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 gional", tornando-o um polo de serviços modernos, cultura e lazer; 2) tornar o Bairro um "espaço de lazer e diversão", objetivando criar um "espaço que promova a concentração de pessoas nas áreas públicas criando um espetáculo urbano"; 3) tornar o Bairro um "centro de atração turística nacional e internacional". Esses objetivos sinalizavam, desde o início, o quanto a proposta estava voltada ao incremento da economia local, pretendendo tornar o Bairro do Recife um complexo mix de consumo e entretenimento. De igual modo, a noção de um espaço de "espetáculo urbano", que iria caracterizar todo o plano, é um indicador importante da presença de uma política de gentrification. Tudo parecia perfeito, após a implantação do Plano de Revitalização, com o antigo centro histórico transformado em festa permanente, numa imbricada relação entre consumo e entretenimento, cultura e mercadoria; até que um fantasma voltou a rondar a bem-sucedida experiência de enobrecimento no Brasil. Aos poucos, o movimento de pessoas se arrefece, bares e restaurantes fecham suas portas; a arrecadação cai; lenta e gradualmente, seus espaços vão decaindo, perdendo visitantes, saindo da agenda cultural da cidade. Com a ausência de ação continuada do poder público, os espaços físicos vão se deteriorando, o patrimônio edificado vai perdendo suas cores e, para surpresa dos desavisados, a antiga área, parecendo cumprir seu histórico ciclo vital, volta quase a ser o que era antes: espaço de vidas cotidianas, sem muita visibilidade pública e sem a espetacularização do seu patrimônio e das rotinas sociais. Em 2006, cinco anos após a fase mais intensa da “revitalização” do bairro, pouco restou das sociabilidades que caracterizaram políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo a efervescência cultural do processo. Mais uma vez, o local experimentava o vazio das suas ruas e do seu belo patrimônio material quase às escuras. O processo de patrimonialização do centro histórico do Porto O fato mais marcante do centro histórico do Porto reside na circunstância de, em apenas três décadas, ter passado repentinamente de objeto disfuncional e de alvo de uma política de demolição a objecto de exibição e alvo de uma política de protecção patrimonial (Peixoto, 2006). O “Plano Director de Robert Auzelle” para a cidade do Porto defendia, como tantas outras soluções de planeamento urbano de inspiração haussmaniana, “a mera demolição do Barredo (zona hostórica mais densa)”, o que motivou o primeiro estudo de recuperação da parte antiga da cidade pelo arquiteto Fernando Távora.3 Apresentado em 1969, esse estudo deu origem, em 1974, à constituição de um organismo público especializado para o levar a cabo – o CRUARB (Ramos, 1995, p. 539), cuja ação viria a ser preponderante para que, apenas 35 anos depois do plano Auzelle, em 1996, a área a demolir fosse elevada à condição de patrimônio mundial pela Unesco. A deterioração que ocorre no centro histórico do Porto a partir do século XIX, agravada pela segregação espacial motivada pela urbanização crescente da cidade, pelo aumento demográfico derivado da industrialização e pela concentração da população mais desprovida de recursos no Bairro histórico da Sé, ao passo que a burguesia emergente se fixava nas novas zonas da cidade (como a Foz), atinge limites de ingovernabilidade que suscitaram “evidentes” soluções de tábua rasa. Nessas circunstâncias, porque quanto mais deteriorado um lugar se encontra mais ele tende a concentrar e a ampliar os problemas verdadeiramente prementes que existem numa cidade e na sociedade, o centro histórico do Porto criou, certamente, mais que qualquer outro em Portugal, condições de difícil implementação de uma política de reabilitação. No Porto, a política de reabilitação e de requalificação urbana teve como pano de fundo os movimentos de moradores e o Serviço Ambulatório de Apoio Local – SAAL. Em 1969, a comunidade que dá significado à zona histórica é mencionada como estando impregnada de um valor histórico a preservar (Rocha et al., 1985) e a constituição do Comissariado para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo (CRUARB) constitui-se como um marco decisivo no lançamento da política local de reabilitação urbana ancorada numa retórica patrimonial. Essa política, na formulação legislativa do diploma que a enquadra, é projetada, em relação à sua zona mais nobre, com receios de enobrecimento da zona histórica e de centrifugação da população aí residente. “Considerando a urgente necessidade de conduzir eficazmente o processo de renovação urbana da zona da Ribeira da Cidade do Porto” afigura-se igualmente premente “assegurar que a população trabalhadora que há muito habita essa zona nas piores condições de alojamento e exploração não venha a ser dela deslocada por força da valorização da propriedade e da zona decorrentes da própria cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 99 rogério proença leite e paulo peixoto 100 operação em tempo planeada” (Rodrigues, 1999, pp. 40-41). Em 1980, segundo dados do INE, nos 3.200 edifícios existentes no centro histórico do Porto residiam cerca de 20.000 indivíduos, numa assinalável média de 6,25 por edifício. Esse desiderato de evitar a saída de residentes não foi contudo concretizado, uma vez que cerca de 800 residentes foram deslocados para o Bairro do Aleixo, gerando-se entre eles, contrariamente ao que muitas vezes se procura evidenciar quando se insiste que as operações de realojamento desta natureza são sempre feitas contra a vontade dos próprios, sentimentos contraditórios. Como lembra Gaspar Pereira, “as operações de renovação urbanística, levadas a cabo na zona central da cidade, em especial as que atingem as zonas mais densamente povoadas do centro histórico, onde se concentravam populações pobres”, têm efeitos perversos e não antecipados. Isso porque “contribuem para agravar as carências habitacionais, conduzindo quer a uma sobreocupação do miolo da cidade antiga não atingido pelas demolições, quer à centrifugação de famílias pobres para a periferia” (Pereira apud Rodrigues, 1999, p. 16). Acresce que, desde cedo, por outro lado, de modo a procurar tornar menos densa uma configuração urbana atulhada, se manifestam contornos de uma renovação seletiva que pretende ver-se travestida de uma prática de reabilitação integrada que, pelo menos retoricamente, valoriza o conjunto histórico constituído pelo habitat residencial e pela comunidade local. Essa política se orienta, assim, para o enobrecimento do espaço público e para o florescimento de condições que favorecessem as práticas urbanas de lazer e de consumo. Por isso mescadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 mo, não é despiciendo nem inaudito notar que à zona da Ribeira, palco da cultura do consumo visual, tenha sido conferida uma prioridade em termos de reabilitação e de requalificação. Como lembra, de resto, um dos técnicos envolvidos nas operações de requalificação: Se edifícios muito degradados sobre que pretendíamos operar não revelassem valor patrimonial suficientemente positivo ou se a sua presença e reconstrução significasse aumento de densidade construtiva, nociva à vida das populações, o Mestre [Arquitecto Viana de Lima] propunha, sem hesitação, o seu apeamento em favor do espaço aberto que proporcionasse o estar lúdico e a circulação facilitada (…). Ainda hoje, e já sem a presença directa do Mestre, soluções urbanísticas deste tipo foram reutilizadas, como no Largo da Viela do Anjo, onde, à custa da demolição de algumas construções em ruína, foi conseguido um espaço urbano aberto de grande qualidade arquitectónica, no interior da densa malha medieval da Sé, sem as descaracterizar, antes valorizando-as. (Moura, 2001, pp. 106 e 108) Ainda que nunca tenha sido assumido pelos poderes locais que a reabilitação urbana empreendida no centro histórico do Porto tivesse sido inicialmente motivada pelo ímpeto em ver o centro histórico tombado patrimônio mundial, a verdade é que esse objetivo se vai consolidando com a maturação do processo de reabilitação. Retendo uma ideia de António Firmino da Costa (1999), segundo a qual as zonas onde a reabilitação e a requalificação urbanas ocorrem são “socialmente constituídas políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo como objetos de reabilitação urbana”, mesmo antes das operações dessa natureza terem início, vale a pena relevar que, frequentemente, essas operações se resumem a pouco mais que esse processo de construção social (com uma amplitude limitada que dificilmente ultrapassa os discursos políticos) e que essa é, recorrentemente, uma queixa difundida pelos técnicos envolvidos. Mesmo não sendo o caso, porque configurou uma interessante operação de reabilitação e de requalificação urbanas, tornado, por isso mesmo, ainda mais pertinente este argumento, a verdade é que, obtido o estatuto de patrimônio mundial (não obstante faltar reabilitar uma grande porção do edificado e requalificar uma parte do espaço público na área Ribeira-Barredo, e de a intervenção na mais densificada zona do Bairro da Sé levar apenas 8 anos de realização), o CRUARB enfrentou um processo de extinção a partir de 2005, o que evidencia a volubilidade dos processos de patrimonialização. Conclusão: do enobrecimento ao contrarrevanchismo As experiências urbanas das cidades do Recife e do Porto guardam similitudes importantes num quadro analítico comparativo. A retórica e a prática inerentes aos processos de patrimonialização, a prazo, por estarem sujeitas a opções políticas, às vicissitudes dos investimentos públicos e a fenômenos de moda, podem ser geradoras de efeitos de revanchismo (neste caso, contrarrevanchismo, se entendermos que o próprio processo de patrimonialização foi uma revanche da cidade aos usuários e moradores “indesejados”). Nessa medida, não é assim tão fora do vulgar constatar que os processos de patrimonialização retroagem sobre eles mesmos, levando a que os efeitos positivos que geraram, em face dos objetivos que perseguiam, retrocedam no sentido que levavam e se encaminhem para situações qualitativamente inferiores àqueles que prevaleciam à época de sua implementação. Nesses casos, tudo se passa como se a intervenção patrimonial, como tantas vezes acontece nas operações de enobrecimento, viesse gerar num determinado espaço uma situação contra natura que acaba, uma vez esmorecida essa intervenção, não só por se normalizar, mas também por se refinar, no sentido em que tende a concentrar e a atrair exponencialmente os fenômenos expurgados pelos processos de patrimonialização. No Porto, a extinção do Comissariado para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo (CRUARB) e da Fundação para o Desenvolvimento da Zona Histórica (FDZH), que foram as duas instituições que desenvolveram uma intervenção sistemática de reabilitação e de requalificação urbanas, não deixam potencialmente de enquadrar fenômenos de revanchismo ligados aos processos de patrimonialização. A ausência dessa intervenção não só significa o retomar de uma dinâmica de decadência, travada pela existência dos processos de requalificação e de patrimonialização, como a legitima numa lógica fatalista que acaba por a acelerar a um ritmo muito mais intenso. Mas esse fenômeno de revanchismo é de natureza complexa e, unidimensionalmente considerado, não deixa de evidenciar cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 101 rogério proença leite e paulo peixoto 102 posições marcadamente ideológicas. O que leva a que seja profícuo questioná-lo na sua complexidade. No caso do Porto, a extinção do CRUARB e da FDZH é recorrentemente justificada por não terem sido levadas a um ponto ótimo as operações de enobrecimento urbano e por essas instituições terem limitado esse enobrecimento a intervenções de requalificação do espaço público. Designadamente, na retórica legitimadora do novo instrumento financeiro-jurídicourbanístico (as Sociedades de Reabilitação Urbana), critica-se o fato de o CRUARB ter apostado numa reabilitação de qualidade, e impossível de generalizar a toda a cidade, para realojar em casas “luxuosamente” recuperadas uma população residente de baixos recursos. Com a agravante – se releva – de essa população, que paga ao município rendas ajustadas à sua baixa renda mensal, não ter recursos, nem os permitir gerar, para fazer face, a médio prazo, às despesas de manutenção das intervenções realizadas. Por isso, um enobrecimento generalizado e mais ousado é defendido como estratégia mais adequada para evitar fenômenos de revanchismo em que os processos de patrimonialização se vejam hipotecados por eles próprios. No caso do Bairro do Recife, o enfraquecimento das atividades do Escritório de Revitalização do Bairro do Recife acompanhou a diminuição progressiva de investimentos. Ancorado, sobretudo, em uma concepção de consumo e entretenimento, típico dos processos denominados gentrification para visitação, o processo de enobrecimento do Bairro do Recife não se alicerçou em políticas residenciais, embora se soubesse, desde as primeiras iniciativas do Plano de cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 Revitalização – Bairro do Recife, que essa dimensão era fundamental para o retorno e manutenção de certas atividades desejadas. Em decorrência de sua incontestável importância, um dos aspectos mais discutidos nas políticas de enobrecimento tem sido justamente a dimensão residencial desses empreendimentos. Entende-se que, sem essa característica, faltaria a esses projetos uma das suas principais bases de sustentação, capaz de gerar certas rotinas cotidianas de serviços que são essenciais à manutenção do curso de uma vida regular. Contudo, o caso do Recife repete uma tendência que tem sido quase um padrão no Brasil: o de não incorporar políticas habitacionais nos projetos de “revitalização”. Nem na forma de melhoria das condições de vida das populações mais pobres, que em geral habitam essas áreas centrais das cidades (em sua maioria, regiões portuárias), nem na forma de novos empreendimentos imobiliários. Somada a ausência de investimentos residenciais, e tendo ou não o plano de “revitalização” apoio da administração pública, existe uma dimensão cotidiana da questão, relacionada à delicada equação da comunicabilidade política expressa nos usos e contrausos desses espaços que podem contribuir para a fragilidade das relações sociais e vulnerabilidade desses espaços enobrecidos. Nesse caso, há de se considerar a presença continuada e persistente de contrausos nos espaços enobrecidos, e suas ressonâncias sobre os processos interativos (estruturadores de identidades mediante a atribuição de sentidos aos lugares) entre os distintos grupos envolvidos nos usos desses espaços. Por fim, é nesse sentido que a relação entre enobrecimento e o revanchismo que lhe subjaz traduz-se de dois modos distintos. políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo Na vingança que as antigas dinâmicas combatidas pelos processos de patrimonialização, aproveitando o enfraquecimento destes últimos, exercem, retomando e alastrando sua importância. Mas também na incapa- cidade das operações de preservação, que existem para reagir a um enobrecimento generalizado, em se manterem sustentáveis num contexto de igual afectação de recursos a todas as operações de requalificação. Rogerio Proença Leite Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (Sergipe, Brasil). Pesquisador 2 do CNPq. [email protected] Paulo Peixoto Professor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal). [email protected] 103 Notas (*) Texto produzido no âmbito das pesquisas da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos (CPLP/ MCT/CNPq e CAPES-FCT). Uma primeira versão deste artigo foi apresentada na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia – ABA, Bahia, Brasil. (1) Referimo-nos aos processos de patrimonialização para dar conta de um movimento de duplo alcance. Por um lado, e na sua essência, os processos de patrimonialização se referem a intervenções de natureza patrimonial e predominantemente técnica que visam, acima de tudo, obter, através de uma operação de tombamento formal, um estatuto patrimonial. Por outro lado, lateralmente, os processos de patrimonialização se referem a operações de natureza diversa (arquitetônica, paisagística, urbanística, política, cultural, comercial, etc.) cujos objetivos, independentemente de um reconhecimento formal, assentam na exacerbação de um patrimônio ou do valor patrimonial de um objeto, para efeitos de consumo visual, turístico ou sustentação de um mercado urbano de lazeres. (2) O enobrecimento, nobilitação, ou gentrification (termo inglês correntemente utilizado na gíria da reabilitação urbana), dá conta da substituição da população residente por outra de estratos sociais mais elevados na sequência de processos de conservação e de restauração de determinado espaço urbano, remetendo numa visão mais redutora para a qualificação do espaço (3) A haussmanização refere-se a uma política de demolição, levada a cabo em Paris por GeorgesEugène Haussmann, na segunda metade do século XIX, que pretende intervir no espaço urbano de modo a controlar, disciplinar e higienizar os comportamentos, assim como a criar referências e marcadores do espaço através da monumentalização. cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 rogério proença leite e paulo peixoto Referências ARANTES, A. A. (2000). Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas, Ed. Unicamp. BENJAMIN, W. (1997). “Paris, Capital do Século XIX”. In: FORTUNA, C. (org). 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Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 cadernos metrópole 21 pp. 93-104 10 sem. 2009 Política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática* Mariana Fialho Bonates Resumo Em 1999 foi criado o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) que, dentre suas atribuições de construção de novos conjuntos habitacionais, também passou a promover a moradia nos centros urbanos, através da reabilitação de antigos edifícios. Sendo assim, várias cidades passaram a elaborar estudos de viabilidade em prédios abandonados, no entanto, poucos foram efetivados. O fato é que a ação do PAR em reabilitação é ainda muito tímida ante a sua outra modalidade – de construção de novas moradias –, beneficiando poucas edificações em algumas cidades. Assim, este artigo tem por objetivo compreender o potencial de utilização do PAR para a reabilitação das áreas centrais das cidades brasileiras. Os procedimentos de pesquisa adotados incluíram revisão bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo, visando levantar as características do PAR, bem como as características quantitativas e qualitativas dos imóveis reabilitados pelo programa. Abstract In 1999, the Housing Leasing Programme (Programa de Arrendamento Residencial – PAR) was set up to build dwellings for low income people. PAR was not, at first, allowed to construct dwellings in peripheral areas, only in areas already equipped with infrastructure, occupying empty land (a problem which is very common in Brazilian cities). In addition to new housing, the programme also targeted on the rehabilitation of old buildings in city centres. Thus, several municipalities developed new projects and applied for funds from PAR to rebuild degraded residential buildings. However, few of these projects have been completed. This paper aims at analyzing PAR as a potential tool in the rehabilitation of city centres via housing revitalization. Palavras-chave: centros urbanos; política habitacional; PAR; reabilitação de edificações; características da produção. Keywords: city centre; housing policy; housing leasing programme; rehabilitation of buildings; housing production. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 mariana fialho bonates Introdução Muito tem mudado na economia internacional em seguida à crise do fordismo e com a emergência do modelo de acumulação flexível, refletindo no desenvolvimento urbano, sobretudo a partir da década de 1990, quando se consolida um novo modelo com base no planejamento estratégico, que tem os centros de cidade como um dos espaços privilegiados de intervenção.1 Segundo Del Rio (2001), 106 [...] a globalização da economia tem acirrado a competição entre cidades na atração de novos investidores e na construção de novos mercados, o que faz destacar os diferenciais urbanísticos e, consequentemente, um cuidado cada vez maior na busca da qualidade para os modelos e processos. Isso significa que investir na reabilitação urbana das áreas centrais é destacar o diferencial do local para a economia mundial, motivo pelo qual essa temática está inserida nas agendas políticas de muitas cidades. No entanto, o que significa o termo reabilitação urbana no contexto do planejamento estratégico? De acordo com a Carta de Lisboa de 1995, a reabilitação urbana é entendida como […] uma estratégia de gestão urbana que procura requalificar a cidade existente através de intervenções múltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais, a fim de melhorar a qualidade de vida das populações residentes; isso exige o melhoramento das condições físicas do cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 parque construído pela sua reabilitação e instalação de equipamentos, infraestruturas, espaços públicos, mantendo a identidade e as características da área da cidade a que dizem respeito. (Apud Vasconcellos e Mello, 2006, p. 59)2 O processo de reabilitação das áreas centrais, que segue um modelo internacional, materializa-se no espaço urbano tentando viabilizar duas vertentes. Uma vertente é a reabilitação por meio da espetacularização e da atividade turística, investindo, sobretudo, em espaços públicos e em infraestrutura, procurando potencializar as identidades do local; a outra vertente está voltada para a promoção da moradia nas áreas centrais. Para Silva (2006, p.15), inclusive, “a política habitacional […] aparece em vários casos como o grande motor da reabilitação”, que eventualmente se desenvolve em conjunto com um processo de gentrificação social (esta, muitas vezes, mesmo não sendo planejada). No entanto, a ideia de conjugar a política habitacional com a política de preservação dos sítios históricos, onde, em geral, localizam-se as áreas centrais, não é recente. A “Recomendação de Nairóbi”, de 1976, relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos e de sua função na vida contemporânea, sugeria, entre outras coisas, a compatibilização entre a política habitacional e a salvaguarda do patrimônio arquitetônico: O regime de eventuais subvenções deveria ser, consequentemente, estabelecido e modulado sobretudo para facilitar o desenvolvimento de habitações subsidiadas e de edifícios públicos através da reabilitação de construções política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática antigas. […]. Além disso, uma parte suficiente de créditos previstos para a construção de habitações sociais deveria ser destinada à reabilitação de edificações antigas. No Brasil, a partir da década de 1990, a questão da reabilitação das áreas centrais se destaca, sendo duplamente influenciada pelo cenário internacional do planejamento estratégico, como também pelo processo de degradação e de deterioração dos centros urbanos e sítios históricos. Segundo Silva (2006), essa degradação e deterioração é resultado de um longo processo histórico que envolve a descentralização das elites do núcleo central, devido à construção de novos bairros residenciais, de novos centros comerciais (como os shoppings centers), etc., levando ao surgimento de novas centralidades na cidade. Alia-se a isso a política habitacional do Banco Nacional de Habitação (BNH – 1964-1986) que, com a utilização de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), difundiu um modelo de implantação periférica dos seus conjuntos, contribuindo na extensiva expansão horizontal de muitas cidades. Todos esses fatos levaram a um processo de evasão da população residente e de abandono de parte das estruturas físicas dos centros urbanos. Por outro lado, as estruturas que não foram abandonadas passaram por outro processo: o de transformação de uso e de perfil social, ou seja, passaram, de prioritariamente residencial, pertencente às elites, para uma área comercial e residencial das camadas populares. Além disso, as áreas centrais caracterizam-se na contemporaneidade pela atividade informal e pela estigmatização como lócus de violência urbana. Em contraste com as unidades abandonadas nas áreas centrais, dados da Fundação João Pinheiro (2005) revelam um déficit de mais de sete milhões de habitações no país. O que se verifica, portanto, é que, mesmo diante do significativo déficit habitacional, há um descompasso entre a produção de novas moradias financiadas pelo governo e a subutilização de aproximadamente seis milhões de unidades fechadas, inclusive, nos centros. Todo esse quadro é, em grande parte, fruto de uma política habitacional voltada para a construção de novas moradias e de uma política de preservação focada no tombamento de monumentos. Numa tentativa de conjugar tais questões, a priori independentes, a reabilitação das áreas centrais no Brasil tem buscado o tema da habitação como centralidade de várias ações, realizadas pelos governos municipal, estadual e federal. Além disso, a reabilitação das áreas centrais consiste em um item quase obrigatório nos planos estratégicos governamentais. Assim, algumas ações vêm sendo viabilizadas por meio do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), criado em 1999. Esse programa se destaca pela construção de conjuntos habitacionais preferencialmente localizados em vazios urbanos, ou seja, não se refere unicamente à reabilitação de edifícios, embora também possa atuar para esse fim. No entanto, como será visto, sua intervenção nas áreas centrais é ainda bastante incipiente, com algumas poucas ações nas principais cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, etc. Não obstante, trata-se de um programa inovador, pois reflete uma nova forma de intervenção da política pública brasileira, diferentemente de períodos anteriores, quando não havia cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 107 mariana fialho bonates políticas voltadas para as áreas centrais, apenas instrumentos, nem sempre efetivos, para a preservação do patrimônio histórico. Também se diferencia no rol das políticas habitacionais pela diferente forma de acesso à moradia – o arrendamento – quando a historiografia foi marcada pela difusão da casa própria. Enfim, tendo como pano de fundo a questão das políticas habitacionais, este artigo visa compreender o potencial de utilização do PAR para a reabilitação das áreas centrais. O artigo está estruturado em três partes. A primeira procura identificar e discutir as políticas públicas para as áreas centrais, tendo a habitação como foco; a segunda parte se refere à caracterização do PAR e, a terceira parte discute os aspectos quantitativos e qualitativos da ação do PAR na reabilitação. 108 As políticas públicas para as áreas centrais: habitação como foco É na década de 1980 que o processo de degradação e de deterioração dos centros urbanos passa a ser discutido de modo mais intensivo no Brasil. O fato é que, inicialmente, a tônica da discussão girava mais em torno da preservação do patrimônio edificado, das ações e dos instrumentos para esse fim. De acordo com Vargas e Castilho (2006), a partir da década de 1990 a questão da reabilitação das áreas centrais se destaca (influenciado pelo cenário internacional do planejamento estratégico), tendo a habitação como centralidade de muitos debates. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 Para Rolnik e Botler (2004), foi a partir do ano 2000 que, no âmbito do governo federal, a Caixa iniciou a implantação do Programa de Revitalização de Sítios Históricos (PRSH), e o Ministério da Cultura implantou o Programa Monumenta. Cada qual apresentava características distintas: enquanto o último estava mais direcionado para atividades de restauro em edificações localizadas dentro do perímetro dos sítios históricos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional (IPHAN), o primeiro visava reabilitar imóveis vazios, transformando-os em uso habitacional. Entretanto, esses imóveis vazios eram localizados em perímetros definidos dentro de áreas protegidas como patrimônio e não necessariamente aqueles tombados. Ainda segundo Rolnik e Botler (ibid.), o PRSH atuou baseando-se na formação de parcerias, sobretudo com o governo francês e tentando disponibilizar financiamentos através do PAR, conforme citação abaixo: Sem um fundo específico de financiamento, contando apenas com recursos do Programa de Arrendamento Familiar – PAR – a Caixa viabilizaria algumas ações de reabilitação, agregando recursos da lei federal de incentivo à cultura, via renúncia fiscal, para complementar os custos da recuperação de imóveis históricos que abrangem obras de restauro que por isto ultrapassam os tetos de financiamento estabelecidos pelo PAR. (Ibid.) No entanto, o PAR não é voltado especificamente para a reabilitação de áreas centrais; trata-se de um programa de habitação do governo federal, que tem a reutilização política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática da antigas estruturas para o uso habitacional como apenas uma de suas frentes de ação, como será explicado mais adiante. Já em 2003, quando se iniciou o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado o Ministério das Cidades para tratar da questão urbana, e, dentre outros, o Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais. Este têm como principal objetivo: […] por meio da recuperação do estoque imobiliário subutilizado promover o uso e a ocupação democrática e sustentável dos centros urbanos, propiciando o acesso à habitação com a permanência e a atração de população de diversas classes sociais, principalmente as de baixa renda; além do estímulo à diversidade funcional recuperando atividades econômicas e buscando a complementariedade de funções e da preservação do patrimônio cultural e ambiental. Esses objetivos são parte integrante de uma nova política urbana baseada nos princípios e instrumentos do Estatuto da Cidade. (Brasil, 2005, p.18) Na prática, o programa visa, através da promoção técnica, do apoio financeiro e da divulgação de experiências, fomentar a realização de Planos Locais de Reabilitação de Centros, financiados com recursos do Orçamento Geral da União (OGU). Na questão habitacional, atualmente, além do PAR, outros programas de habitação são passíveis de financiar a reabilitação de imóveis na área central para uso residencial: o Crédito Solidário, o Pró-moradia, o Apoio à Produção de Habitação, o Imóvel na Planta, o Carta de Crédito Associativo, o Crédito Individual, a Resolução nº 460, isto é, quase todos os programas que compõem a Política de Habitação do governo federal, com recursos do FGTS e de outras fontes (ibid.). Além de aumentar as linhas de financiamento para promover o repovoamento do centro, o Ministério das Cidades está tentando viabilizar a moradia nas áreas centrais através da alienação ou disponibilização de imóveis vazios ou subutilizados pertencentes à União, ao INSS, e à Rede Ferroviária Federal (RFFSA), para serem doados para as prefeituras, principalmente, para que estas também possam tentar viabilizar, por meio de parcerias, a moradia nesses imóveis doados. Verifica-se, portanto, crescentemente, um número de ações do governo federal na tentativa de reabilitar as áreas centrais tendo a habitação como foco da sua intervenção. Os governos estaduais e municipais também vêm promovendo experiências nesse campo, principalmente, por meio de parcerias o governo federal. Por exemplo, segundo Gonçalves (2006), em São Luís-MA, entre 1991 e 1994, iniciou-se um Projeto Piloto de Habitação para o centro, com a recuperação de apenas um sobrado para moradia de uma população de renda mais baixa ou sem renda, mas que não logrou o sucesso esperado, pois não atingiu a “sustentabilidade desejada”. Diferentemente, entre 1996 e 1999, foi criado o Subprograma de Promoção Social e Habitação do Governo do Estado do Maranhão (PPSHGM), financiado com recursos do governo estadual, federal e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em resumo, esse programa teve o seguinte perfil: cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 109 mariana fialho bonates […] como público alvo funcionários estaduais que não possuam imóvel próprio e que morem afastados da área de trabalho, do Centro Histórico de São Luís. A aquisição do imóvel é feita através de uma prévia inscrição desses funcionários e, posteriormente, é feito um sorteio para entrega dos apartamentos. O contrato é estabelecido na forma de aluguel dos apartamentos, no qual os moradores devem respeitar as normas de preservação e conservação do imóvel, sendo fiscalizados e orientados por técnicos do Programa. (Gonçalves, 2006, p. 48) 110 O contrato acima assinalado tem características próprias de um arrendamento residencial, uma vez que os moradores têm a opção de poder comprar o apartamento após um período 10 anos morando no imóvel. As prestações mensais, descontadas da folha de pagamento do servidor, serão contabilizadas como parte do pagamento, segundo indicado por Gonçalves (ibid.). Ainda segundo essa autora, até 2004, haviam sido entregues 5 imóveis, totalizando 38 unidades habitacionais e 18 lojas, e ainda estavam em processo licitatório outros 4 imóveis com 29 novas moradias e 16 lojas. Tal proposta do governo estadual é interessante para essa discussão, uma vez que, embora pouco mais antigo, trata-se de um financiamento muito parecido com a forma operacional do PAR, que financiou apenas um imóvel no caso da capital maranhense, como se verá adiante. Além desta, a prefeitura do Rio de Janeiro tem o Programa Novas Alternativas, que se desenvolve tendo por base recursos municipais, bem como recursos federais. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 Neste caso, destacam-se os programas Carta de Crédito Associativo e o PAR, que já fi nanciaram várias obras no centro carioca – totalizando uma média de 119 unidades e mais 10 lojas em vários imóveis – destacando-se do ponto de vista quantitativo no cenário nacional (Heloui, 2008). Outra cidade que também se destaca com a experiência isolada de um programa municipal para a reabilitação do seu centro é São Paulo, com o Programa Morar no Centro, que promoveu a reforma de alguns edifícios por meio do PAR. Esse programa foi implementado durante a gestão de Marta Suplicy, entre 2000 e 2003, e se tratava de um conjunto integrado de intervenções municipais coordenadas pela Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (SEHAB). Além do PAR, atuou através de uma série de programas habitacionais, utilizando-se de recursos próprios, como o Locação Social, o Bolsa Aluguel, a Moradia Transitória e o Programa de intervenção em cortiços. No entanto, esse programa municipal não teve sua continuidade assegurada na gestão seguinte. Além de São Luís, Rio de Janeiro e São Paulo, outras cidades também apresentam políticas ou planos locais de reabilitação em áreas centrais, em que a habitação tem papel de destaque, e que, muitas vezes estão associadas ao PAR. No entanto, essas ações, junto às ações federais, são ainda muito incipientes, podendo-se afirmar que A ausência de uma política nacional de reabilitação e a fragmentação das articulações em torno do tema permitiu apenas o aparecimento de um formato voluntarioso de ação, sem que se alcançasse a consolidação de uma estrutura política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática de programa capaz de balizar uma relação “contratual”, como normalmente requer um programa federal de políticas públicas, entre as esferas do governo – federal, estadual e municipal. (Rolnik e Botler, 2004) Em outras palavras, assiste-se a um conjunto de ações pouco articuladas que, de fato, não vêm alcançando o resultado esperado de reabilitar as áreas centrais. Nesse cenário, o PAR entra como um dos programas habitacionais mais visados para financiar o uso residencial na área central, motivo pelo qual vamos tentar entendê-lo um pouco melhor a partir de uma análise baseada nos documentos (leis e normativos da Caixa) que regem o seu funcionamento, em informações obtidas junto à Caixa e levantamento de campo em alguns conjuntos do PAR. O programa de arrendamento residencial – a caracterização O PAR e sua respectiva fonte de recursos, o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR),3 foram criados em 1999, durante o segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e assegurado pelo governo Lula. Trata-se de um programa habitacional do governo federal que funciona como um leasing, a priori, por um período de 15 anos,4 com opção de compra ao final do prazo contratado. Entretanto, recentemente, em maio de 2007, foi promulgada uma lei que possibilita a transformação do programa em um financiamento convencio- nal depois de cinco anos de arrendamento.5 Não obstante, o principal objetivo do programa é: Atender, sob a forma de arrendamento residencial, à necessidade de moradia da população de baixa renda, concentrada nas capitais e regiões metropolitanas definidas para o Programa e, nos municípios com população urbana superior a 100 mil habitantes, com opção de compra ao final do prazo contratado, por meio da aquisição de unidades habitacionais a serem construídas, em construção, concluídas ou em reforma e recuperação de empreendimentos (normativo da Caixa-PAR, 2006, p. 7).6 Diante do tipo de acesso à moradia – o arrendamento residencial ou leasing habitacional –, o PAR consiste em uma diferente alternativa à casa própria: é uma política da casa própria, sem a casa ser própria, pois a Caixa é a proprietária fiduciária do imóvel durante o período do arrendamento. Na verdade, esse programa foi uma forma de financiamento encontrada pelo governo federal para tentar minimizar o problema da inadimplência. Como o arrendatário não é o proprietário da habitação, fica mais fácil para a Caixa reaver o imóvel caso ele atrase duas parcelas de qualquer uma das taxas de sua responsabilidade (taxa de arrendamento ou taxa condominial), pois o atraso de 60 dias no pagamento fica definido como quebra contratual. Salienta-se que o prazo máximo de inadimplência estipulado pelo programa vai de encontro à própria Lei do Inquilinato, que permite até 90 dias de atraso. Além da particularidade de se tratar de um leasing, no conjunto de programas de cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 111 mariana fialho bonates 112 financiamento tradicionais da casa própria, o PAR se diferencia dos demais programas de habitação por vários motivos, sobretudo, pelos operacionais, mas também pela sua forma de produção no espaço urbano, atuando em duas frentes de ação no combate ao problema habitacional no país. Assim, como se observou na citação acima, o programa atua, por um lado, na construção de novas unidades unifamiliares ou multifamiliares, em condomínios fechados ou loteamentos; e, por outro lado, na recuperação ou na reforma de antigos edifícios, preferencialmente localizados nas áreas centrais. Para ambas as modalidades existem recomendações locacionais e tipológicas, normatizando o programa de necessidades e a localização dos conjuntos. Por exemplo: conforme o Normativo da Caixa-PAR (2006), o programa de necessidades básico é composto por dois quartos, banheiro, sala e cozinha em 37m², exceto nos projetos de reabilitação, em que as normas são mais flexíveis e específicas.7 O fato é que, seguindo a tradição das políticas da casa própria de produção de novas moradias, o PAR vem adotando mais a primeira vertente em detrimento da reabilitação de antigas estruturas. Assim, de modo geral, a produção através do PAR se caracteriza, sobremaneira, pela construção de novos conjuntos habitacionais semiverticalizados (até 4 ou 5 pavimentos, dependendo da região em que está inserido) e de pequeno porte (aproximadamente 160 unidades, conforme recomendado pelo próprio programa). A princípio, seguindo as recomendações do normativo do programa, esses conjuntos foram preferencialmente implantados em vazios urbanos localizados na malha da cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 cidade, em áreas dotadas de infraestrutura e serviços,8 com o objetivo de evitar a sua implantação em locais longínquos e sem infraestrutura, como normalmente ocorria com o modelo empreendido pela política do BNH. Todavia, muitas das características acima assinaladas vêm se transformando, sobretudo desde 2003, quando têm sido produzidos conjuntos mais horizontalizados, organizados na forma de loteamentos (sem condomínios) e inseridos em áreas mais periféricas das cidades, provocando, inclusive, a distorção da proposta inicial do programa de implantar na malha urbana.9 Em suma, a localização dos conjuntos do PAR era, em essência, um dos principais diferenciais do programa. A preocupação de se produzir habitações no tecido urbano, em locais dotados de infraestrutura, favorece o objetivo de reabilitar as áreas centrais, uma vez que são locais que apresentam tais características, além de uma série de outras qualidades como a concentração de atividades comerciais, de serviços, transportes públicos, etc. Em relação a isso, Amorim e Dufaux (2005) afirmam que: Em um momento de evidente redução da renda familiar da classe média brasileira, a oferta de moradia econômica nas áreas urbanas centrais pode atrair aquela camada da população que deseja reduzir seus gastos mensais, seja pela diminuição do compromisso do orçamento familiar com a moradia (redução do preço de aluguel, taxa condominial e impostos municipais) e transporte, ou para aqueles que buscam outro estilo de vida, no qual a relação com o espaço público seja mais presente e a política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática proximidade com o centro de comércio e de serviços desejável. Outra característica de fundamental importância é o valor pré-fixado do valor máximo das unidades – em geral inferior ao valor estabelecido no mercado imobiliário, pois é basicamente o valor industrial da construção do imóvel. Esse valor é, ainda, variável em função do tipo de especificação dos materiais de construção – especificação “padrão” ou especificação “mínima” – e da localização no território brasileiro. Em suma, em 2007, os valores variavam entre R$30.000,00 e R$40.000,00; especificamente para requalificação de áreas centrais ou recuperação de sítios históricos, o valor pode chegar até R$40.000,00 para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e R$38.000,00 para os demais estados (Portaria nº 493/2007). Assim, buscou-se definir valores máximos para a aquisição dos imóveis a fim de atender a um público-alvo com menor capacidade de pagamento. De modo semelhante, a taxa de arrendamento também é préfixada e mais barata, podendo corresponder a 0,7% ou 0,5% do valor de aquisição do imóvel (a depender do público-alvo, se PAR 1 o PAR 2, respectivamente),10 isento de valorização imobiliária. O valor da taxa de arrendamento é corrigido anualmente tendo-se por base apenas a correção anual da Taxa de Referência (TR). Com esse índice, o valor da taxa de arrendamento variava na faixa aproximada dos R$ 200,00, em 2008, o que é, inclusive, muitas vezes, inferior a uma taxa de aluguel com as mesmas condições de habitabilidade e de localização. Enfi m, essas condições especiais, sobretudo em relação à operacionalização do programa, como o fato de o imóvel ser de propriedade fiduciária da Caixa, contribuem na requalificação de imóveis degradados nos centros urbanos para fins habitacionais, uma vez que o ramo da construção civil continua privilegiando a construção de novas moradias populares em terras mais baratas, ou seja, mais periféricas. A relativa baixa taxa de arrendamento dos imóveis é também outro fator fundamental para estimular o uso residencial da população de menores rendas no centro, já que aquelas faixas de maiores rendimentos não têm interesse nessas áreas da cidade – exceto em casos que passaram por um processo de gentrificação social como ocorreu em Nova York, no Soho, por exemplo. Isso tudo significa que para requalificar o centro com moradia, é importante a forte intervenção e o subsídio do Estado, como o PAR vem promovendo. As características quantitativas e qualitativas dessa produção do PAR na reabilitação das áreas centrais será melhor desenvolvida a seguir. Os dados apresentados na próxima seção tiveram por base um levantamento realizado em sites da internet (preferencialmente os oficiais da Caixa e das prefeituras) e publicações da Prefeitura de São Paulo. Também foram utilizados dados obtidos por meio de pesquisa de campo na Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), na Prefeitura Municipal de Natal (PMN) e entrevista com César Ramos11 sobre o desenvolvimento do PAR no Brasil, destacando-se, em particular, a questão da reabilitação das áreas centrais. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 113 mariana fialho bonates O programa de arrendamento residencial – a ação 114 Entre 1999 e meados de 2005, o programa financiou a construção de 177.150 novas moradias em 1.223 novos conjuntos habitacionais, sendo, nesse universo, uma pequena parcela relativa à reabilitação de edifícios nas áreas centrais. De acordo com dados fornecidos pela Caixa (Gerência em Natal), em abril de 2008, complementados por Castro (2006), em relação à reabilitação de áreas centrais, foram financiadas 1.425 unidades em 26 edifícios, localizados nas principais capitais brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, etc. – e também em Pelotas, conforme identificado na Tabela 1. Além dos empreendimentos discriminados, podem-se citar, ainda, aqueles que estão em processo de avaliação ou licitação como foi encontrado nas cidades de João Pessoa e Natal. Salienta-se que, em muitos casos, a reforma de edifícios pelo PAR está associada a uma política local, seja do gover- no estadual ou municipal, formando parcerias com o governo federal e visando uma reabilitação urbana nos sítios históricos. A partir desta tabela, é possível perceber que os edifícios localizados em São Paulo e em Porto Alegre têm maiores proporções, possibilitando a distribuição de um maior número de unidades habitacionais, ao passo que no Rio de Janeiro e em Salvador as edificações têm menor porte, tendo uma média inferior de unidades por empreendimento. São Luís, Pelotas, Belém e Recife, por sua vez, possuem exemplos isolados na cidade. Todavia, a principal constatação apontada pelos dados quantitativos é que a atua ção do PAR na reabilitação de áreas centrais vem se desenvolvendo ainda muito lentamente, contemplando poucas cidades, especialmente quando comparada com a produção global desse programa. Segundo César Ramos, alguns exemplos de reabilitação só foram possíveis mediante a formação de parceiras, sobretudo com os governos municipais e, no caso de São Paulo, especificamente com os movimentos sociais. Essas parcerias foram importantes na medida em Tabela 1 – Financiamentos concedidos de reabilitação habitacional12 Cidade São Paulo Rio de Janeiro Salvador Porto Alegre São Luís Pelotas Belém Recife Total Operações contratadas 7 6 5 4 1 1 1 1 26 Nº de unidades contratadas 709 70 41 309 16 140 66 56 1.425 Média de unidades por edifício 101 11 8 77 16 140 66 56 54 Fonte: Levantamento realizado na Caixa (2008) e Castro (2006). Elaboração da autora. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática que o custo de reforma é ainda muito alto ante o valor máximo estipulado para as unidades do PAR (até R$ 40.000,00). Em São Luís, por exemplo, foi necessária a parceria entre os recursos do FAR e da Lei Rouanet13 para viabilizar a reabilitação de um imóvel que foi inaugurado em 2005, conforme informações obtidas da Caixa (2008). 14 Esse imóvel – um casarão com três pavimentos – transformou-se em um residencial de pequeno porte, contendo 16 unidades habitacionais (uh) com um quarto apenas. De modo semelhante, na capital baiana, a atuação do PAR foi viabilizada com o auxílio da Lei Rouanet, por meio do programa estadual RemeMorar15 e parceira da ONG Moradia e Cidadania. Os cinco imóveis reabilitados (e inaugurados em 2005) eram do tipo casarões – tombados pelo patrimônio histórico – que apresentavam de um (térreo) a dois pavimentos, resultando em residenciais de pequeno porte, com unidades de aproximadamente 40m², como o imóvel da rua Deraldo Dias (15 uh); três imóveis na rua Joaquim Távora (com 4 uh ou 12 uh cada); e um na rua Ribeiro Santos, (6 uh)16 (Figuras 1, 2 e 3). Essa tipologia de reabilitar casarões em residenciais de pequeno porte também é comum no Rio de Janeiro, cujos edifícios reabilitados se caracterizam por poucos pavimentos. Segundo Castro (2006), os seis imóveis reabilitados são: Residencial João Homem Ladeira (5 uh), na Saúde; Residencial Laurinda (5 uh) e Residencial André Luiz (5 uh), ambos na Rua do Livramento (Gamboa), Residencial Joaquim Silva (26 uh); Residencial João Caetano (6 uh), na Rua do Teatro; e Residencial Senador Pompeo (23 uh), sendo os três últimos localizados no Centro.17 Destes, destaca-se o último, por se tratar de um antigo cortiço, com cerca de 120 anos e atualmente tombado pelo Patrimônio Cultural do Município (Figuras 4 e 5). Além disso, apresenta a particularidade de conjugar o uso residencial com duas lojas, caracterizando-se como de uso misto.18 Em Belém, o PAR Justo Chermont apresenta uma tipologia diferenciada daquela observada em São Luís, Salvador e Rio de Janeiro. Caracteriza-se por um edifício de 11 pavimentos, totalizando 66 unidades habitacionais. Cada qual é composta por quarto, banheiro, sala, cozinha e área de serviço, distribuídos em 39m².19 Na capital gaúcha, a tipologia dos quatro edifícios reabilitados foi parecida com a da capital do Pará. Os imóveis são predominantemente verticais (acima de sete pavimentos), resultando em residenciais com maior número de unidades, como o Edifício Sul América (78 uh); o Residencial Umbu (123 uh); o Edifício Bento Gonçalves e Charrua (80 uh); e o Residencial Arachã (28 uh). 20 Anteriormente, alguns desses edifícios foram residenciais, outros foram hotéis. O Edifício Sul América, por exemplo, cuja construção foi concluída em 1938, antes de ser reabilitado pelo PAR, era um edifício residencial com 26 apartamentos para famílias ricas da cidade. Com a reabilitação (2003) passou a comportar unidades habitacionais com um dormitório e áreas oscilando entre 22 e 37m².21 Já o Edifício Bento Gonçalves e Charrua, cujas reabilitações foram inauguradas em 2004, contém apartamentos com dois quartos e áreas maiores, variando entre 42,62m² e 55,91m². 22 De modo mais diversificado, o Residencial Umbu (2004), antigo hotel, apresenta tipos diferentes, variando entre cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 115 mariana fialho bonates Figura 1 – Rua Deraldo Dias Fonte: Castro, 2006 116 Figura 2 – Joaquim Távora nº 11 Figura 3 – Ribeiro Santos nº 56 Fonte: Castro, 2006. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática Figura 4 – Senador Pompeo situação anterior Figura 5 – Senador Pompeo situação reabilitado Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm. Acesso em 28/1/2009. 117 Figura 6 – Residencual Umbu, na cidade de Porto Alegre–RS Fonte: Castro, 2006. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 mariana fialho bonates o kitchenette (32 unidades), um ou dois dormitórios (45 e 46 unidades, respectivamente). Como consequência, a área média das habitações também varia de 34,56m² a 54,06m²23 (Figura 6). Foi na capital paulista, contudo, que os projetos de reabilitação das áreas centrais por meio do PAR se desenvolveram mais enfaticamente (muitos em consonância com o programa do governo municipal – Morar no Centro). Para viabilizar a produção de moradias pelo programa no centro, fez-se necessário o estabelecimento de algumas parceiras com a SEHAB, além da colaboração dos movimentos sociais: Para conseguir atender à população de mais baixa renda, a SEHAB negociou com o governo federal recursos específicos para subsídios ao PAR, além de ter 118 proposto diversos incentivos fiscais ao programa. Vale notar que, em alguns casos, a SEHAB subsidia parcial ou totalmente o custo de compra do imóvel, para que o custo final da reabilitação seja mais acessível à população de baixa renda. Além disso, para adequar o PAR à realidade específica da área central de São Paulo, a SEHAB elaborou, em colaboração com os movimentos sociais do centro, um conjunto de propostas para melhorar seu desempenho quanto às exigências de qualidade, de custos e de prazos. (Prefeitura de São Paulo, 2004a, p. 31) Segundo Maleronka (2005), até 2003, foram reformadas pelo programa 464 unidades em cinco edifícios: Fernão Sales (54 uh), Olga Benário Prestes (84 uh), Rizkallah Jorge (167 uh), Maria Paula (75 uh) e Edifício Labor (84 uh). Além destes, destacam-se cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 o antigo Hotel São Paulo (152 uh) e outro imóvel com 93 uh (Joaquim Carlos), conforme listado por Castro (2006). O primeiro edifício reabilitado na capital paulista – e, inclusive, no país – foi o Fernão Sales (Maleronka, 2005). No entanto, segundo Maleronka (ibid., p. 77), merece especial atenção o edifício Rizkallah Jorge, de 17 pavimentos, que é “propagandeado afora como o grande exemplo de PAR-Reforma bem-sucedido. Este edifício foi construído na década de 1940 e passou por usos diversos antes de ser recuperado pelo PAR. Com a recuperação, o edifício passou a abrigar 167 novas unidades do tipo estúdio, contendo sala/dormitório, cozinha americana com área de serviço integrada e banheiro, distribuídos em uma área privativa média de 30m². Salienta-se, ainda, a recuperação da fachada, tombada pelo Patrimônio Histórico (Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), bem como o piso e as paredes em mármore carrara do saguão, e os pisos de taco, os quais, em conjunto, conferiram uma aparência de melhor padrão construtivo, como pode ser observado nas Figuras 7 e 8. Por fim, esse edifício foi entregue em 2003 para famílias indicadas pelo Movimento para a Moradia no Centro (MMC).24 No final de 2006, foi entregue o antigo Hotel São Paulo, também construído na década de 1940. Esse edifício, que foi um hotel, passou a abrigar em seus 21 pavimentos, famílias ligadas ao Movimento do Fórum dos Cortiços (Moradia Popular no Lugar de Hotel) (Figura 9). As suas unidades habitacionais também apresentam tipos diferentes, 27 apartamentos do tipo kitchenette, 103 com um quarto e 22 com política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática Figura 7 - Fachada frontal do edifício Rizkallah Jorge Figura 8 – Apartamento do tipo estúdio do Rizkallah Jorge Fonte: http://cury.net/par02.htm (acesso em: 11-4-2008). Figura 9 – Antigo “Hotel São Paulo”, na capital paulistana 119 Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo (2004c) cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 mariana fialho bonates Figura 10 – Conjunto de casas da Rua São Suassuna 120 Figura 11 – Casarão 27 da Rua João Suassuna Fonte: Acervo da autora, 2006. Figura 12 – Planta baixa do 2º pavimento da proposta de reuso para o casarão 27 Fonte: Levantamento na PMJP, 2006. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática Figura 13 – Residencial Tambiá, em João Pessoa Figura 14 – Residencial Ribeira I, em Natal Fonte: Acervo da autora, 2005. Fonte: Acervo da autora, 2006. dois quartos, com áreas variando entre 25,70 e 49,81m².25 Por fim, segundo Castro (2006), outras cidades vêm sendo alvo de estudos de viabilidade para reabilitação de edifícios, destacando-se: Fortaleza, Natal, João Pessoa, Maceió, Aracaju, Belo Horizonte, Vitória, Cuiabá, Teresina e Olinda. João Pessoa, até junho de 2007, apresentava oito imóveis em processo de licitação, embora a tentativa de reabilitar edifícios pelo PAR já vem sendo feita desde 2004 (Figuras 10 a 12). Segundo o secretário de Habitação, João Azevedo, 26 o Ministério Público promoveu uma ação contra os proprietários dos casarões para que estes recuperassem seus imóveis que estavam abandonados e em estado avançado de degradação. Como os imóveis eram detentores de elevados débitos com a prefeitura – referentes ao IPTU ou de outra natureza –, os proprietários negociaram a retirada das dívidas em troca da doação dos imóveis ao governo municipal. Após essa etapa, previu-se a reabilitação e a reutilização das casas por meio dos recursos do FAR, para serem destina- das preferencialmente ao uso habitacional dos funcionários da própria prefeitura.27 O projeto de reabilitação prevê cinco unidades habitacionais em cada casarão (total de 80 uh), e estas são compostas por dois quatros em uma área oscilando entre 40m² e 60m², como pode ser visto na Figura 12. Importante mencionar que, em 2001, em consonância com as características locacionais do programa, o PAR ocupou um vazio urbano próximo ao centro da cidade de João Pessoa, com a construção do Residencial Tambiá. De modo semelhante, seguindo os parâmetros do programa de implantar nos vazios urbanos, inseridos na malha urbana dotada de infraestrutura, na capital do Rio Grande do Norte, em 2001, o PAR implantou no bairro contíguo ao seu centro histórico, Rocas, o Residencial Ribeira I e o Residencial Ribeira II (Figuras 13 e 14). Todavia, a tentativa de reutilização de antigos edifícios no centro da capital potiguar vem encontrando sérias dificuldades que impedem a concretização do financiamento. As principais dificuldades são: 1) falta de imóveis adequados ao uso habitacional e, ao mesmo tempo, disponíveis para venda cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 121 mariana fialho bonates Figura 15 – Antigo Hotel Central e possível edifício a ser financiado pelo PAR, na cidade do Natal-RN 122 Fonte: Prefeitura Municipal do Natal, 2007. ou para doação; 2) a compatibilização entre o custo máximo preestabelecido para a reabilitação e a quantidade de unidades habitacionais em cada empreendimento; e 3) empresas construtoras interessadas em participar do processo. Estas não demonstram qualquer interesse nesse tipo de projeto, por se tratar de uma reforma com poucas unidades e que demandaria um investimento de maior risco, uma vez que o valor de avaliação da Caixa é baixo (pois é valor de mercado e, geralmente, esses centros encontram-se degradados), e o PAR não permite suplementação de recursos, caso o orçamento previsto inicialmente não corresponda à realidade da obra executada.28 cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 Apesar disso, a Prefeitura Municipal do Natal instituiu em 2004 uma lei criando o programa ReHabitar (Lei nº 5567, de 2 de julho de 2004), como forma de estimular preponderantemente a produção de moradias para a população de baixa renda nos bairros históricos da Ribeira e da Cidade Alta. Em consonância com essa “política” municipal, a prefeitura comprou e desapropriou, em 2005, um edifício na Ribeira, – o antigo Hotel Central –, desenvolvendo, em seguida, um projeto com 8 apartamentos (alguns com um quarto, outros com dois) para serem financiados pelo PAR (Figura 15). 29 Com essa mesma finalidade, também desenvolveu um projeto de reuso política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática habitacional para uma outra edificação que foi doada pela GRPU30 e localizada no mesmo bairro – o edifício Valparaíso – prevendo seis unidades habitacionais, com um (2 uh) ou dois quartos (4 uh). Enfim, depois de um período de aproximadamente dois anos, muitos projetos de reforma elaborados e revisados, e muita negociação com construtoras e a agência financeira, em junho de 2007, ambas as propostas de reuso estavam em fase de avaliação na Caixa. Porém, no final daquele ano, as duas construtoras haviam desistido e iniciou-se, novamente, a busca por novos interessados. Esses dois últimos casos – João Pessoa e Natal – exemplificam algumas dificuldades enfrentadas pelas cidades brasileiras para a reabilitação de suas estruturas nas áreas centrais, motivo pelo qual ainda são poucas as intervenções do PAR no cenário nacional. Conclusão Em particular para cidades de médio e grande porte, a reabilitação das áreas centrais é hoje um item de destaque nas agendas do poder público, influenciadas por uma filosofia típica do planejamento estratégico. A partir da década de 1990, a esfera municipal, com a especial ajuda do governo federal, vem ampliando a sua atuação através da elaboração de planos de reabilitação, perímetros de reabilitação integrada (PRI), projetos urbanos predominantemente para espaços públicos e reuso de antigas edificações. No entanto, o que se verifica é que a reabilitação de antigas estruturas é tratada apenas como “obras complementares”, integrantes de um Grande Projeto de Desenvolvimento Urbano (GPDU),31 que causa impacto na área central. A reforma da Estação da Luz e seu entorno é um dos mais significativos exemplos encontrados em São Paulo; a obra do Largo do Teatro na capital potiguar e outras ações mostram que os projetos urbanos vêm sendo executados. Por outro lado, a reabilitação de edifícios para uso residencial encontra dificuldades para se viabilizar. Alguns exemplos citados ao longo deste trabalho até o final de 2008 não haviam sido concretizados ainda. Primeiro: as ações do PAR voltadas para habitação nas áreas centrais são poucas. No entanto, pode-se dizer que se trata de uma ação inovadora, uma vez que procura atender concomitantemente ao problema do déficit habitacional em contraposição aos domicílios desocupados, além de se preocupar com a reabilitação das áreas centrais, que são particularmente caracterizadas como ambientes degradados e abandonados, apesar dos inegáveis valores culturais que oferecem para a cidade. Ademais, o PAR apresenta uma formatação que facilita o acesso à moradia da população de menores rendas a um menor custo. Talvez seja pelo próprio modelo operacional diferenciado – o arrendamento residencial –, que possibilita ao PAR mais facilidade para atuar em relação aos demais programas habitacionais do governo federal nas áreas centrais, todos, porventura, seguindo o modelo tradicional da política da casa própria. Sendo assim, a medida de transformação do arrendamento em financiamento (Lei nº 11.474, de 15 de maio de 2007) pode ser considerada um problema futuro para esse tipo de intervenção, uma vez que fatalmente surgirá uma série de dificuldades cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 123 mariana fialho bonates 124 de ordem administrativa (gestão) e condominial do imóvel. Amorim e Dufaux (2007, p. 14) citam, ainda, como problemas para a atuação do PAR nas áreas centrais a liberação de recursos para edificações de uso misto, já que o programa se destina ao uso estritamente residencial – apesar disso, o Residencial Senador Pompeo, no Rio de Janeiro foi excepcionalmente financiado mesmo tendo o uso misto. Também se pode dizer que é necessário haver uma maior promoção do programa no sentido de viabilizar a reforma das unidades, incluindo a criação de novas parcerias com governos ou outras instituições interessadas em incentivar o desenvolvimento do PAR, bem como mais subsídios. Outras dificuldades enfrentadas na reabilitação de antigas estruturas nas áreas centrais passam, em especial, pela questão fundiária, uma vez que a maioria dos imóveis é de propriedade privada, outros são objetos de espólio, etc. Há também a indisponibilidade de edificações adequadas para se transformar em uso habitacional multifamiliar e o desinteresse dos empresários do ramo da construção civil, devido ao alto custo de se reformar antigas estruturas, ante a capacidade de pagamento da população de mais baixa renda e do valor preestabelecido pelo PAR (até R$40.000,00, em 2007). Maleronka (2005, p. 69) indica, ainda, a dificuldade do tempo de viabilização das obras e de que “são comuns os casos de terrenos apresentados à CEF cuja escritura não confere com o real ou de proprietários que desistem do negócio no decorrer do processo por julgar que o valor avaliado de seu imóvel não é justo”. Porém, possivelmente, a questão mais importante talvez seja a falta de uma política e cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 recursos específicos para a reabilitação das áreas centrais no rol das políticas urbanas do país. O que se verifica é a alocação de esforços, recursos e de programas de outras políticas para a reabilitação. Apesar desses entraves, os poucos imóveis reabilitados no Brasil servem como exemplo do que se deve vislumbrar como política pública urbana. Muitos foram os ganhos com cada reabilitação, dos quais se podem citar: 1) a restauração de imóveis tombados pelo patrimônio histórico, 2) a ocupação de estruturas abandonas, garantindo sua função social; 3) enfrentamento do déficit habitacional; 4) diversidade de soluções arquitetônicas, 5) requalifi cação de zonas degradadas, em oposição à dispersão centrífuga pela expansão das fronteiras urbanas, etc. Quanto à tipologia reabilitada, percebeu-se uma variedade de tipos edificados, desde sobrados, casarões, até edifícios de vários pavimentos. A variedade também está presente na organização espacial das novas moradias do tipo kitchenette , com um ou dois dormitórios, além de variadas áreas privativas, embora tenham predominado as unidades de menores dimensões, em função de necessidade de “comportarem o número máximo possível de unidades habitacionais ao invés do número ideal” (Maleronka, 2005, p. 72), chegando, inclusive a produzir soluções projetos inadequados. Verificam-se, assim, aspectos positivos com a reabilitação dos edifícios nos centros das cidades para uso residencial, a despeito das dificuldades mencionadas e da pequena representatividade numérica das ações. Sendo assim, a reabilitação é uma forma de intervenção que pode vir a crescer e trazer benefícios para a dinâmica das áreas política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática centrais e a preservação do sítio histórico, através da provisão de habitação, unindo os objetivos econômicos do planejamento estratégico com os sociais. No entanto, para que isso aconteça é preciso rever alguns aspectos característicos do PAR, como já mencionado, para que ele continue atuando nessa frente de ação. Mais do que ilustrar casos do PAR, em especial, este artigo conclui com uma reflexão direcionada para a política habitacional brasileira. Além de programas habitacionais e recursos, no caso da reabilitação das áreas centrais, é necessário pensar em uma política de locação social (como o programa municipal de Locação Social de São Paulo, mas que não logrou o sucesso esperado), uma vez que a predominância das ações estatais sempre esteve voltada para a casa própria, até mesmo o PAR. Reabilitar o centro e enfrentar o problema habitacional são tarefas muito árduas, em que são necessárias somas vultosas de capital em grandes intervenções governamentais para a aquisição dos imóveis, a reforma e a construção das unidades habitacionais até a posterior manutenção e conservação dos imóveis. É o caso das vilas militares, que são eficientemente produzidas e geridas pelo poder público, por meio de uma política de locação (moradias funcionais), motivo pelo qual são bem preservadas e conservadas no contexto atual das cidades, destacando-se como pontos de cristalização no cenário urbano. Outros exemplos de política de locação social bem-sucedidos são também encontrados em países europeus, como Inglaterra, França, Suécia, entre outros. 125 Mariana Fialho Bonates Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi chefe do Setor de Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Arqueológico da Prefeitura Municipal do Natal entre 2007 e 2008. Professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, Brasil). [email protected] Notas (*) Trabalho previamente apresentado no Arquimemória 3, em Salvador-BA, no dia 9 de junho de 2008. Agradecimento ao Prof. Dr. Márcio Moraes Valença pela leitura inicial e pertinentes comentários. (1) Sobre planejamento estratégico, ver Vainer (2000). cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 mariana fialho bonates (2) Quanto à reabilitação de edifícios, ela pode ser entendida como “toda a série de ações empreendidas com vista à recuperação, à beneficiação de um edifício tornando-o apto para o seu uso atual. Seu objetivo consiste em resolver as deficiências físicas e as anomalias construtivas, ambientais e funcionais acumuladas ao longo dos anos, procurando ao mesmo tempo uma modernização e uma beneficiação geral do imóvel sobre o qual incide – atualizando as suas instalações, equipamentos e a organização dos espaços existentes, melhorando o seu desempenho funcional e tornando esses edifícios aptos para a sua mais completa e atualizada reutilização” (Cabrita, et al. apud Moreira, 2008). (3) Fundo que alimenta o programa, composto com recursos onerosos (como o FGTS) e não-onerosos. (4) Para maiores detalhes a respeito das características do PAR, ver Bonates (2007). (5) A Lei nº 11.474, de 15 de maio de 2007, possibilita a desimobilização das unidades da Caixa em favor da opção dos arrendatários, antes do fim do contrato. (6) Embora o objetivo classifique o público-alvo como “baixa renda”, o programa atende, na verdade, aquele segmento da sociedade mais conhecido como de renda média baixa. (7) De acordo com o manual de especificações técnicas mínimas, uma proposta de regionalização elaborada para manter um mínimo de qualidade quanto à construção dos conjuntos, a área mínima pode ser até 33m² para as unidades construídas na região Sul do país. (8) Para maiores detalhes a respeito das características arquitetônicas e urbanísticas da produção do PAR, ver Bonates (2007). (9) Ver Bonates (2008). 126 (10) Inicialmente, o programa foi destinado a atender a população com renda variando entre 3 e 6 salários mínimos, podendo chegar até 8. Em 2007, a faixa de renda atendida passou a ser, em geral, até R$1.800,00 (aproximadamente 4,7 s.m., considerando-se o salário mínimo da época – R$380,00); até R$2.100,00 (5,52 s.m.) nos casos de reforma de edifícios em centros históricos; e, até R$2.800,00 (7,36 s.m.) nos casos de profissionais da segurança pública (Portaria nº 493, 2007). O PAR 1 atende a uma população com faixa de renda variando entre 3 e 8 salários mínimos, enquanto o PAR 2 atende a uma população com rendimentos de até 4 salários mínimos, aproximadamente. (11) Entrevista semiestruturada realizada com César Ramos, gerente de Projetos do Ministério das Cidades, no I Seminário Internacional das Cooperativas Habitacionais, realizado no Hotel Blue Tree Park, em Natal-RN, entre os dias 28-2-2007 e 1-3-2007. A entrevista ocorreu no segundo dia do evento. (12) De acordo com Castro (2006), há um imóvel em Recife, porém não foi identificado na Caixa a sua forma de financiamento. (13) Lei federal de incentivo à cultura. (14) Informações obtidas de Elisabeth Silva, arquiteta da GIDUR-RN, no dia 9-4-2008. (15) O Programa RemeMorar é executado pelo governo do Estado da Bahia através da Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, Conder/Sedur. (16) Mais informações disponível em:<http://www.projetorememorar.com.br/index.html> e <http:// www.conder.ba.gov.br/webnews/news/noticia.asp?NewsID=705>. Acesso em: 30-1-2009. Castro (2006) também foi uma fonte utilizada. cadernos metrópole 21 pp. 105-129 10 sem. 2009 política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática (17) Esses dados foram também confrontando com os dados quantitativos fornecidos pela Caixa em 2005 (GIDUR-PB). (18) Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm> e <http://www.rio.rj.gov.br/ habitat/morcentro.htm>. Acesso em: 11-4-08. (19) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=6304253&tipo_noticia=13>. Acesso em: 11-4-08. (20) Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?reg=2&p_secao=80>. Acesso em: 11-04-08. (21) Disponível em: <https://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=2401272&tipo_noticia=0>. Acesso em: 11-04-08. (22) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=4802021&tipo_noticia=0>. Acesso em:11-04-08. (23) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=4901935&tipo_noticia=0>. Acesso em: 11-06-2007. (24) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=1701102&tipo_noticia=0> e <http://cury.net/par02.htm> Acesso em: 11-04-08. (25) Disponível em: < https://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release. asp?codigo=6405349&tipo_noticia=>. Acesso em: 11-04-08. (26) Entrevista realizada no dia 24 de abril de 2006. (27) Durante a realização da entrevista com o secretário de Habitação, João Azevedo, no dia 24 de abril de 2006, o prefeito Ricardo Coutinho entrou na sala em que ocorria a entrevista e expressou tal vontade. (28) No Recife, também foi constatado tal desinteresse, segundo Amorim e Dufaux (2005). (29) Podemos citar, ainda, outras ações da prefeitura em consonância com a reabilitação das áreas centrais, como a Lei de Operação Urbana de 1997, revalidada em 2007 por mais seis anos. (30) Gerência Regional do Patrimônio da União. (31) Em relação a esse tema, ver Sanchez, et al. (2004). Referências AMORIM, L. e DUFAUX, F. (2005). Lições das margens do Rio São Lourenço: aprendendo com a experiência de requalificação urbana de Montreal, Canadá. Arquitextos, texto 067, dez., 2005. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq067/arq067_03.asp>. Acesso em: 5/9/2007. BONATES, M. F. (2007). Ideologia da casa própria... sem casa própria. 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Este artigo reflete sobre essa discussão a partir de uma pesquisa que abordou as formas de sociabilidade em algumas praças de Belo Horizonte, constatando que há transformações significativas na forma de interagir nos espaços públicos das cidades, por exemplo, uma busca cada vez maior pela convivência entre iguais – o que revela que a segregação socioespacial que se observa na cidade é reproduzida nos seus espaços públicos. Apesar dessas mudanças, porém, percebeu-se que esses espaços ainda possuem grande vitalidade. Abstract The bibliography that deals with changes in the public spaces of great cities points to their decline and to the characterization of contemporaneity as dominated by a great individualism that prioritizes life among equals in watched and privatized spaces or in spaces known as semi-public, such as shopping malls. However, a closer look at the city might contradict these theories. This article reflects on this discussion, starting from a survey that approached the sociability forms in some squares in the city of Belo Horizonte, showing that there are significant transformations of the way of interacting in the public spaces of cities; for instance, an increasing search for conviviality among equals – which reveals that the social-spatial segregation that is observed in the city is reproduced in its public spaces. Despite these changes, however, it was observed that these spaces still have great vitality. Palavras-chave: espaços públicos; cidades; praças; sociabilidade; segregação socioespacial. Keywords: public spaces; cities; squares; sociability; social-spatial segregation. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 132 A literatura que trata das recentes mudanças nos espaços públicos das grandes cidades aponta para várias transformações, que incluem desde os casos extremos de privatização de ruas e praças, como ocorre nos condomínios fechados (Caldeira, 2000; Andrade, 2003) e nas favelas e bairros dominados pelo tráfico de drogas (Souza, 2000), bem como o uso de gradis no perímetro de praça como estratégia para a vedação e possibilidade de cerceamento desses espaços (Serpa, 2003) até uma retração do convívio nos principais espaços públicos da cidade em troca da convivência em espaços semipúblicos, como os shopping centers. Essas mudanças têm gerado diversas interpretações. Uma delas, talvez a mais difundida, detecta o declínio dos espaços públicos e o domínio do tempo presente por um individualismo exacerbado que prioriza a vida entre iguais em espaços vigiados e privatizados (Sennett, 1988; Davis, 1993; Augé, 1994; Serpa, 2003 e 2007). Algumas pesquisas empíricas sobre a convivência nos espaços públicos das grandes cidades, porém, revelam realidades mais complexas.1 E, ainda que as formas de usufruir e interagir nos espaços públicos tenham sofrido significativas alterações – em grande parte decorrentes de um generalizado sentimento de insegurança –, é possível afirmar que alguns espaços públicos mantêm grande vitalidade. A partir de uma pesquisa em praças de Belo Horizonte, percebeu-se uma mudança nas formas de sociabilidade nos espaços públicos, motivada principalmente por um forte sentimento de insegurança e uma alteração na sociabilidade cotidiana decorrente dos modos de vida urbana contemporâneos. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 Além disso, a apropriação desses espaços difere conforme os grupos sociais. Os estratos mais altos optaram pela vigilância constante dos espaços públicos próximos às suas residências, por meio da contratação de segurança privada e de pressão sobre o executivo municipal para a tomada de medidas destinadas a dificultar a presença dos mais pobres e a desvalorização imobiliária do local. Também adotaram comportamentos mais vigilantes nos espaços públicos e privilegiaram os semipúblicos. Os grupos de menor poder aquisitivo continuam frequentando os espaços públicos tradicionais, como os do centro da cidade, e os espaços próximos às suas residências, em geral mal cuidados pelo poder público e abandonados até mesmo pela polícia, fato que muitas vezes os transforma em ponto de consumo e tráfico de drogas, especialmente à noite. Durante o dia, continuam a abrigar uma sociabilidade típica dos bairros populares, como o encontro entre vizinhos, sejam jovens, crianças ou adultos. Este artigo focaliza os espaços públicos, mais do que a esfera pública, entendida como espaço de representação. É comum que esses termos apareçam como intercambiáveis, mas a distinção é necessária para os objetivos deste trabalho. Interessa aqui o espaço público como espaço físico da cidade (e estamos tratando aqui especificamente de praças) em que ocorrem interações de um determinado tipo, diferente das interações que têm lugar nos espaços privados. Rogério Proença Leite, por exemplo, diferencia espaço urbano de espaço público, afirmando, com Habermas e Arendt, que o espaço urbano só se torna público quando é investido de significação. espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles Quando as ações atribuem sentidos de lugar e pertencimento a certos espaços urbanos, e, de outro modo, essas espacialidades incidem igualmente na construção de sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir como espaços públicos: locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente (Leite, 2002, p. 116). Assim, o espaço público vai além da rua, porque só se torna público a partir das ações que dão sentido a determinados espaços e também são influenciadas por eles. A reflexão feita aqui, então, não se volta para a dimensão da esfera pública como “espaço” – não necessariamente físico – de expressão da vida pública, próprio de uma sociedade democrática, como as câmaras e assembléias, os conselhos, as associações e os movimentos populares. Embora essa distinção preliminar seja importante, cabe registrar que tais dimensões não são excludentes, até porque o espaço público mantém suas qualidades de esfera pública. Mas trata-se aqui de priorizar a investigação dos tipos de sociabilidade e de controle existentes nos espaços públicos da cidade, onde se desenrola a vida cotidiana de seus cidadãos. A vida pública e a intimidade não podem ser pensadas de forma estática, já que mudam consoante o contexto. De acordo com Sennett (1998), os domínios público e privado devem ser vistos como fenômenos evolutivos, na medida em que modificam com o tempo. Assim, vida pública e intimidade não devem ser vistas necessariamente como contraditórias, mas como complementares e, além disso, como aponta Matta (1997, p. 55), tal oposição também não é absoluta, especialmente no Brasil, antes, deveria ser pensada dinâmica e relativamente. Em suas palavras: [...] na gramaticidade dos espaços brasileiros, rua e casa se reproduzem mutuamente, posto que há espaços na rua que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou pessoas, tornando-se sua “casa” ou seu “ponto”. (Ibid.) Para as Ciências Sociais, os espaços públicos interessam como lugares que propiciam certo tipo de interação em princípio diferente das interações observadas nos espaços privados.2 Neles se espera um tipo específico de interação e uma disposição a se submeter a determinadas situações sociais, como expor-se a diferentes pessoas (uma vez que se trata de um espaço aberto a todos) e a certas convenções, como respeitar o direito do outro ao uso desse mesmo espaço. Nos espaços públicos, as diferenças sociais e as hierarquias são temporárias e relativamente suspensas, porque ali todos têm direitos iguais no que se refere ao uso e à apropriação do espaço. Enfim, os espaços públicos, como compreendidos pelos cientistas sociais, são lugares de convivência que expressam estilos de vida (Giddens, 1997), relações de poder (Lofland, 1985, Hansen, 2002) e formas de apropriação por distintos grupos sociais, sendo, portanto, lugares segmentados e identitários. São ainda lugares representativos da vida e da história das cidades, lugares simbólicos, característica essa mais explícita nos espaços das áreas centrais. O que melhor define esses espaços é a sua natureza de abertos a todos. Definição cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 133 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 134 típico-ideal no sentido weberiano, uma vez que os espaços das cidades contemporâneas possibilitam várias situações intermediárias, como os shopping centers, as ruas controladas por segurança privada, os parques públicos que cobram a entrada, entre outras. Além disso, por meio de pesquisas empíricas é possível notar as restrições sociais a essa dimensão típico-ideal, na medida em que elas revelam como os encontros nos espaços públicos são mediados por relações de poder, estilos de vida, segmentações e, em muitos casos, segregações (Kaztman, 2001) e que o encontro entre estranhos nem sempre é desejado (Lofland, 1985). A questão mais relevante, porém, é que todo espaço público é construído socialmente. Essa dimensão já fora destacada por Simmel (1939) em sua sociologia do espaço, pois as formas de sociabilidade e de apropriação dos espaços públicos, além de se transformarem constantemente, expressam processos sociais mais gerais de uma sociedade em um determinado tempo e lugar. Como espaço construído socialmente, é também lugar de conflitos entre os diferentes grupos sociais, além de espaço de poder, de afirmação de um grupo sobre outro (Hansen, 2002). Suas formas de apropriação evidenciam restrições que, apesar de não formais, são tão ou mais eficazes. Um espaço ocupado preferencialmente por um grupo de alto poder econômico e simbólico, por exemplo, constrange a permanência de pessoas de baixa renda. Espaços ocupados preferencialmente por jovens não são muito convidativos aos idosos e vice-versa. Esses exemplos demonstram que a abordagem dos espaços públicos pelo foco das interações e apropriações pelos diferentes grupos revela tensões e conflitos que não cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 se restringem à simples separação entre o público e o privado. A abordagem do conflito e do poder inerentes às apropriações sociais dos espaços públicos remete a outra questão relevante no estudo das praças: até que ponto a segregação residencial existente na cidade se repete nos espaços públicos? E, ainda, segue uma mesma lógica ou aponta para conflitos de outra natureza? As praças são os espaços públicos escolhidos para essa abordagem uma vez que estão mais intimamente ligadas à vida cotidiana, o que permite apreender a diversidade social característica das grandes cidades. Os encontros nas praças e a sua intensidade não se dão por acaso. O planejamento desses espaços, seus equipamentos e sua manutenção pelo poder público ou pelos moradores são elementos que precisam ser considerados, assim como a natureza da praça, se lugar histórico e simbólico da cidade, se praça de bairro ou mesmo simples rotatória para carros. Este texto tem como objetivo discutir as formas de sociabilidade nos espaços públicos, a partir de uma pesquisa realizada na cidade de Belo Horizonte durante os anos de 2004 e 2005 sobre as sociabilidades, os conflitos e as formas de apropriação das praças. Não se trata de um conjunto homogêneo de lugares e sociabilidades. Há as praças de bairros, com uma sociabilidade bastante local. Há as dos espaços centrais, lugares de passagem para um grande número de pessoas, mas também de sobrevivência para outros. Suas rotinas alteram-se segundo as horas do dia e os dias da semana. Os usos nos fins de semana são, na maioria delas, bastante distintos dos usos nos dias de semana, assim como o público. A intervenção espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles do poder público e das associações de moradores são também fatores que influenciam os seus usos e apropriações. Praças de Belo Horizonte Belo Horizonte é uma cidade planejada, cujo projeto foi elaborado por uma equipe, coordenada pelo engenheiro Aarão Reis. Seguindo uma concepção higienista, o projeto adota um modelo de cidade fechada, definida pelo desenho e com extrema importância dada à circulação, especialmente de veículos (Guimarães, 1991). As praças tiveram um papel importante no planejamento de Belo Horizonte. Marcam os cruzamentos das principais avenidas e ruas, assim como suas extremidades. Algumas, como a Praça da Liberdade, tiveram seu lugar cuidadosamente escolhido. Essa praça, construída a partir de elaborado projeto urbanístico e paisagístico, situa-se no ponto mais alto da cidade planejada e é cercada pelo palácio do governo e suas secretarias. Fora da área planejada e em bairros mais tradicionais, as praças continuaram a ocupar um lugar central, muitas vezes na frente de uma igreja. Mas, na maioria dos bairros, principalmente nos mais novos, elas deixaram de ocupar os espaços nobres e centrais. Nesses bairros, é comum encontrar praças que são simples rotatórias ou se situam em partes íngremes e de difícil aproveitamento. A regional Centro Sul – que compreende a área planejada da cidade mais os bairros do seu entorno – é a mais nobre e concentra o maior número de praças. Em Belo Horizonte, após a descentralização da administração municipal, as praças passaram a ser administradas pelas regionais, que se dividem em nove. Além da maior concentração de praças na regional Centro Sul, as diferenças entre áreas centrais e periféricas também aparecem quando se comparam os equipamentos e a manutenção. As praças da regional Centro Sul são as mais bem cuidadas e também as que mais contam com adoção por empresas,3 o que contribui para seu melhor estado de conservação. Segundo dados de março de 2002, 321 praças eram adotadas. Entre essas, 128 (40%) se localizavam na regional Centro Sul. Na década de 1990, foram projetadas e construídas em Belo Horizonte duas grandes praças – Praça JK e Praça da Barragem Santa Lúcia – em lugares bastante significativos socialmente, pois fronteiras entre bairros de classe média alta e favelas. Considerando os seus projetos, ambas recuperam a tradição, ainda que modificada, das primeiras praças da cidade: são lugares amplos, com projetos bem elaborados e que contemplam diversos usos. Diferem das praças originais principalmente por seus usos atuais. Se antes as praças eram lugares de contemplação, de footing e de encontros, hoje, as mais frequentadas, como no caso dessas duas praças, são as que possuem pistas para caminhadas e/ou equipamentos para exercícios físicos. Outra peculiaridade dessas duas praças é que, situadas em áreas de transição entre a população de alta renda e a residente em favelas, seus projetos previram atividades que atendem às demandas socioculturais desses dois grupos. Quatro praças foram escolhidas para análise neste artigo: a Praça JK, situada no bairro Sion e a Praça Lagoa Seca, localizada no bairro Belvedere, ambas na regional cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 135 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 136 Demográfica),6 que reúne um conjunto contíguo de bairros. A Praça JK situa-se na AED Cruzeiro/ Anchieta e Sion, onde também se localiza a Vila Acaba Mundo, com 1.295 habitantes ou 3% da população total da AED. Já a Praça da Lagoa Seca está localizada na AED Mangabeiras/São Bento/Papagaio, em que a população do Aglomerado do Morro do Papagaio (um conjunto de favelas) representa 43,45% dos domicílios dessa AED. Essa informação é importante para a interpretação dos dados, pois, enquanto na AED da Praça JK mais de 70% das famílias têm rendimento médio superior a dez salários mínimos, na AED Belvedere há uma concentração nos extremos, ou seja, uma maior desigualdade, pois 36,58% das famílias recebem menos de dois salários mínimos mensais, enquanto 41,47% têm rendimento médio mensal superior a dez salários mínimos. Na AED correspondente ao bairro onde se situa a Praça X, 76,57% das famílias Centro Sul, uma terceira situada em um bairro de classe média baixa na regional Norte, aqui denominada Praça X4 e a mais recente de todas, denominada oficialmente Área de Esporte e Lazer da Via Expressa, que se localiza no bairro Coração Eucarístico, na regional Noroeste. Todas essas quatro praças são bem posteriores à origem da cidade, e se localizam no anel externo à área planejada, no interior da Avenida do Contorno. Não são, portanto, praças centrais, mas todas são muito utilizadas pelos moradores. As duas primeiras com capacidade de atrair não apenas os moradores da sua proximidade, mas também dos bairros vizinhos, já as outras duas têm como público os moradores do seu entorno.5 A Tabela 1 apresenta uma classificação mais precisa da condição socioeconômica dos moradores dos bairros no entorno das praças pela unidade do IBGE denominada área de Ponderação ou AED (Área de Expansão Tabela 1 – Percentual de famílias por classe de renda mensal do responsável em salários mínimos AED/Bairros7 Regional/Praça Cruzeiro/Anchieta/Sion (Acaba Mundo) Centro Sul (Praça JK) Até 2 SM Entre 2 e 5 SM Entre 5 e 10 SM Acima de 10 SM Total 4,54 7,11 16,40 71,95 100 Centro Sul (Praça Lagoa Seca) 36,58 15,49 6,45 41,47 100 João Pinheiro – Dom Cabral – Coração Eucarístico Noroeste (Área de Esporte e Lazer da Via Expressa) 26,11 22,87 23,72 27,30 100 Bairros não identificados Norte (Praça não identificada) 41,77 34,80 16,65 6,79 100 Mangabeiras/São Bento/Papagaio (Belvedere) Fonte: IBGE, Censo de 2000, dados trabalhados pelo Observatório das Metrópoles, Metrodata, http://web. observatoriodasmetropoles.net/ cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles têm rendimento mensal menor do que cinco salários mínimos. Nesse sentido, enquanto para a Praça JK 70% dos responsáveis têm rendimento médio mensal acima de dez salários mínimos, na Praça X menos de 7% dos responsáveis atingem esse patamar de rendimento. Na AED João Pinheiro-Dom Cabral, onde se localiza a área de Esporte e Lazer Via Expressa, há uma distribuição mais uniforme entre os rendimentos médios mensais. Para chegar a essas quatro praças foi realizada uma pesquisa empírica em uma amostra das praças de Belo Horizonte em três regionais, selecionadas a partir da análise do Índice de Vulnerabilidade Social/IVS.8 A escolha dessas três regionais se deu pela constatação de que a partir delas é possível se obter uma boa amostra da situação do município. A Regional Centro-Sul possui UPs com o menor índice de vulnerabilidade social, mas também apresenta grande desigualdade. A Regional Norte revela-se, em geral, como uma área de alto índice de vulnerabilidade social e a Regional Noroeste apresentaria a maior heterogeneidade, já que há quase todas as faixas do IVS – com exceção da menor, abundante na CentroSul – em suas Unidades de Planejamento. O primeiro passo da pesquisa consistiu em um mapeamento, por meio de um trabalho de campo, em todas as praças dessas três regionais. O objetivo desse mapeamento foi conhecer as condições físicas da praça, seus usuários, assim como os seus usos mais freqüentes. Já os estudos de caso consistiram em observações e entrevistas com seus usuários, buscando conhecer os usos e apropriações desses espaços, assim como os conflitos e as possibilidades de interação entre os conhecidos e estranhos. A Praça JK A Praça JK, oficialmente denominada Parque JK,9 situa-se entre os bairros Sion e a Vila Acaba Mundo.10 Ali era um córrego que foi aterrado no final da década de 1980. No início da década de 1990, foi elaborado um projeto para a construção de uma praça no local, mas sua execução iniciou-se apenas na segunda metade dessa década. Nesse intervalo, o espaço foi apropriado e cuidado pelos moradores da Vila Acaba Mundo em associação com uma moradora do Sion. No final da década de 1990, o projeto da praça, depois de apresentado às comunidades de moradores do bairro Sion e da Vila Acaba Mundo, foi executado. A praça conta com equipamentos de ginástica, amplos espaços para lazer e duas pistas para caminhada. Seus jardins estão constantemente floridos e são cuidados por uma empresa privada que participa do programa “Adote o Verde” da Prefeitura Municipal e, em troca, faz sua propaganda no local. Seus frequentadores são os moradores do Sion e da Favela Acaba Mundo e moradores de outros bairros – especialmente da zona sul – pois, além das muitas possibilidades de lazer para crianças e adultos, o local oferece, frequentemente, diversos eventos culturais. A Avenida Bandeirantes, que dá acesso à praça para os moradores do Sion e para os que vêm dos outros bairros, é uma das principais vias da região, com trânsito intenso e comércio variado. A Praça JK é ainda contornada por uma via de trânsito local, que permite o acesso à favela. Nas suas duas laterais há residências com alto padrão de acabamento (casas de um lado e prédios de outro). cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 137 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 138 Ao fundo vê-se a favela e, atrás da favela, a Serra do Curral. Entre os equipamentos da Praça JK destacam-se as duas pistas de caminhada, aparelhos para ginástica, um campo de futebol, uma piscina de areia e várias áreas livres em forma de círculos. Essas qualidades permitem que nela se reúnam pessoas de diferentes estratos sociais e idades. A diversidade social é garantida pela presença da favela, pois os outros frequentadores são dos bairros próximos, todos de classe média. As crianças de classe média, sempre acompanhadas de babás ou de parentes mais velhos, ficam, as mais novas, em um círculo menor da praça, situado no centro e, as mais velhas, no círculo maior próximo à Avenida Bandeirantes. Ali andam de bicicleta, patins ou jogam bola. As crianças residentes no Acaba Mundo usam principalmente a parte da praça mais próxima de suas casas. Em geral estão desacompanhadas. Os meninos brincam no campo de futebol e as meninas preferem as barras de ginástica do círculo próximo à favela, onde fazem malabarismos. Ao contrário das crianças de classe média que levam brinquedos para as praças, as crianças da favela raramente o fazem. Elas caminham pela praça, brincam nas barras de ginástica e algumas pedem dinheiro perto da barraca de cocos ou se oferecem para vigiar os carros. Na visão da presidente da associação dos moradores da Vila Acaba Mundo, a falta de brinquedos na praça limita o seu uso pelas crianças da Vila: [Deveria ter] um balanço, um escorregador para as crianças usarem, porque só tem barras de ferro para fazer ginástica, musculação (...) a criança tem cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 que ter o brinquedo para utilizar o espaço, quando a criança não tem, ela não brinca, brincar de quê? (Entrevista, agosto de 2004). A presença de adolescentes e jovens é mais rarefeita, a não ser próximo às barras, fazendo ginástica. O grupo maior é composto por adultos e idosos que fazem caminhadas em duas pistas paralelas, uma no sentido horário e outra no sentido anti-horário, o que possibilita vários encontros. Esse grupo é formado exclusivamente pelos estratos médios. O lugar mais frequentado pelos adultos da favela é uma escada que dá acesso à praça e se localiza bem em frente à vila. Alguns usam também o campo de futebol. No fim de semana é possível vê-los com seus filhos em brincadeiras, mas é na escada que se concentram e de lá observam o movimento da praça. Atrás dessa escada, entre a favela e a praça, e no ponto mais alto desta, é comum ver um policial. Segundo alguns entrevistados, ele oferece uma sensação de segurança para os que caminham na praça. Outros dois policiais costumam rondar a praça a cavalo. As entrevistas realizadas com os usuários da praça revelaram diferentes percepções da segurança. Os moradores da Vila se mostram menos preocupados, até porque circulam diariamente pela praça, o que favorece a intimidade com o local. As pessoas mais inseguras são os moradores do Sion e de outros bairros que se sentem ameaçadas pela presença da favela e dos seus moradores na praça, como relatou uma ex-usuária, agora freqüentadora da Praça da Lagoa Seca. Ela costumava caminhar na Avenida Bandeirantes, mas não na Praça JK, por temer espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles caminhada. O que se observa é que a praça divide-se em duas, com predominância dos usuários dos estratos médios. Esse confinamento dos moradores da Vila na parte da praça mais próxima às suas moradias se estende a uma pequena praça, da Carioca, que divide em dois braços a rua que dá acesso à favela. Durante as férias de julho de 2004, essa rua era intensamente utilizada pelos moradores para um improvisado jogo de basebol com pedaços de pau e garrafas pet. Jogadores e público se concentravam num espaço de seu uso exclusivo, em contraste com o lazer das crianças de classe média, que inclui brinquedos fabricados e raramente envolve várias crianças. Sobre as relações dos moradores do Acaba Mundo com a praça e com os outros usuários, as entrevistas não revelam integração. Há o argumento de que a praça é deles, afinal foram eles que inicialmente cuidaram da praça. E, como disse uma garota, “eu moro quase aqui dentro”. A Tia Magda, uma moradora do Sion, é uma importante mediadora entre os moradores da Vila e os do Sion e outros bairros. Quando do plantio a favela. Outros têm uma opinião oposta e reagem ao que consideram estigmatização da população favelada. O mais recorrente, porém, é um comportamento controlado. As pessoas sabem da ocorrência de alguns crimes, porque presenciaram ou ouviram falar e, por isso, tomam certas precauções, como não carregar bolsas e celulares e evitar determinados horários em que a praça fica mais vazia e sem policiamento. Segundo dados da Polícia Militar, em 2003 foram registrados vinte crimes na praça, conforme a Tabela 2. O medo e a distância social perpassam as relações entre os moradores da Vila e os do Sion e de outros bairros. Ambos os grupos frequentam a praça, mas em espaços separados. As duas áreas mais próximas à favela – o campo de futebol e um dos círculos com barras de ginástica – são de uso quase exclusivo dos seus moradores. Já a parte mais próxima à Avenida Bandeirantes – três grandes círculos, um deles contendo outro conjunto de barras de ginástica – é ocupada predominantemente pelos estratos médios, assim como as pistas de Tabela 2 – Ocorrências registradas pela Polícia Militar na Praça JK durante o ano de 2003 Tipo de crime Manhã (6 às 12h) Tarde Noite Madrugada (entre 12 e 18h) (entre 18 e 24h) (entre 24 e 5h) Total Roubo a mão armada consumado a transeunte 2 – 5 – 7 Roubo consumado a transeunte 3 4 1 2 10 Roubo tentado a transeunte – 1 – – 1 Homicídio consumado – 1 – – 1 Homicídio tentado – 1 – – 1 Total 5 7 6 2 20 Fonte: Crisp/PMMG. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 139 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida de árvores com as crianças da Vila, ela tentava incutir-lhes o sentimento de que aquele lugar também lhes pertencia, como forma de enfrentar o preconceito dos outros moradores. Segundo seu depoimento, [...] quando iniciaram o plantio das árvores os moradores do Sion tratavam de forma preconceituosa os moradores da Vila, achavam que eles não tinham mais do que a obrigação de cuidar da praça, 140 ideia que se vinculava à tradição do trabalho manual por despossuídos. Mas dessa iniciativa ficou a percepção de que a praça é um espaço que lhes pertence. Desse movimento surgiu o Projeto Querubins, cujas oficinas de arte e esportes – música, capoeira, futebol etc. – atendem a 160 crianças e jovens entre seis e 18 anos. Segundo o depoimento de um voluntário do Querubins, “o projeto nasceu na praça”. Não é possível saber como seriam as relações dos moradores da Vila com a praça sem essa mediação, mas, mesmo considerando que ela contribuiu para o sentimento de que a praça é deles, suas relações com os outros usuários são apenas de copresença no espaço ou então de prestação de serviços.11 Uma moradora da Vila descreve assim os moradores do Sion: Muita gente sem educação, a gente traz os meninos para brincar e os ricos puxam as crianças deles para não brincar com as nossas, tem muito preconceito. As crianças aparecem em vários depoimentos porque, em muitas situações, geralmente em contextos sociais mais igualitários, cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 são elas que propiciam a aproximação entre os frequentadores, mas nesse caso o que chama a atenção é justamente a recusa dos moradores dos outros bairros em interagir de forma igualitária com as crianças que, em princípio, não deveriam ameaçar os frequentadores dos bairros. Não é que não exista interação, mas o seu conteúdo é de recusa ou de distanciamento, como mostra o depoimento da presidente da associação da Vila Acaba Mundo. Eu acho que os ricos olham muito para os moradores da Vila com cara de dó, de medo. Vêem um menino sujo, já pensam: têm que dar as coisas (...). Eu acho que deveria mais procurar conhecer a história, saber um pouco, conversar e até sentar com a criança, bater um papo com ela, perguntar alguma coisa sobre a vida dela, dos pais delas, assim tentar ajudar. (Entrevista, agosto de 2004) Ao dar seus brinquedos aos moradores da Vila, os do Sion reafirmam a distância que os separa. Uma situação rara e interessante registrada pela pesquisa foi o encontro entre três crianças: Leandro, Victor e Rhavi, que brincavam na praça. Reproduzimos aqui o relato da pesquisadora que abordou essas crianças: Parei para conversar com três garotos que brincavam, dois com aparência mais humilde, um se chamava Victor e o outro Leandro e disseram morar no Acaba Mundo. O Leandro era bem tímido, já o outro era mais falante. O mais arrumado se chamava Rhavi e disse morar nos EUA. Quando vem ao Brasil, duas vezes por ano, fica num apartamento espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles em frente à praça. Perguntei a idade dos garotos. Rhavi tinha 13 anos, os outros dois 12 anos. Perguntei se responderiam a um questionário, mas só Leandro e Rhavi aceitaram. O outro ficou inseguro, pois achava que teria que escrever. Os dois garotos que moram no Acaba Mundo estão cursando a 4ª série e Rhavi está na 8ª. A desigualdade não impedia esses garotos de brinca- todo lado e a praça é aberta”, mas acha que a praça é importante para a cidade “porque é um lugar que tem árvore e é aberto”. As respostas de Leandro, diferentemente, se concentravam nos aspectos sociais e da sobrevivência. Para ele a praça não tem a “cara” do bairro (ele pensa na Vila) porque “não parece nada com a Vila”. E acha importante a praça para Belo Horizonte “porque aqui a gente acha garrafa e vendemos”. rem. Rhavi andava de patins e os outros corriam. Mas os três riam muito juntos. Isso me chamou a atenção porque pela primeira vez vejo uma interação entre Praça da Lagoa Seca moradores da favela e um morador do Sion. Rhavi parecia gostar muito das brincadeiras e me disse ter acabado de conhecer os dois garotos. (Diário de campo, 9 de agosto de 2004) Além da diferença de escolaridade, as respostas dos dois à entrevista contrastam no conteúdo e na fluência. Rhavi, que raramente frequenta a praça, tem muito mais fluência e argumentos. Já as frases de Leandro são sempre curtas. Quando perguntados sobre quais espaços da praça mais frequentam, Leandro respondeu a quadra de futebol e Rhavi as duas primeiras áreas (as mais próximas da Avenida Bandeirantes). E quando perguntados sobre as partes que não frequentam, as respostas novamente se opuseram: Rhavi disse não frequentar a quadra “porque sempre tem gente jogando” e Leandro não frequenta “a primeira parte da praça”. À pergunta se a praça tinha a “cara” do bairro e se era importante para Belo Horizonte, Rhavi se concentrou nos aspectos espaciais. Acha que a praça não tem a cara do bairro (ele pensa no Sion) “porque o bairro é muito fechado, há prédios por A Praça da Lagoa Seca localiza-se, como a Praça JK, na regional Centro Sul, mas no bairro Belvedere III, uma terceira e polêmica etapa do loteamento de uma área localizada na divisa do município de Belo Horizonte com o município de Nova Lima, junto à Serra do Curral. O Belvedere I e II, exclusivamente residenciais e unifamiliares, correspondem às duas primeiras etapas desse loteamento iniciado em 1979 com a subdivisão de uma área em 900 lotes. Neste mesmo ano, inaugurou-se o primeiro shopping center da cidade, o BH Shopping, nas proximidades do bairro. Fugindo aos parâmetros convencionais de aprovação de loteamentos pelo poder público municipal, o Belvedere III teve seu projeto aprovado na Justiça, um pouco antes da promulgação da nova Lei de Uso e de Ocupação do Solo de Belo Horizonte. O principal interesse dos loteadores e das construtoras era conseguir para esse último parcelamento parâmetros de ocupação mais permissivos. Nessa década, o Belvedere I e II já estavam praticamente ocupados, sendo considerados, juntamente com a região da cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 141 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 142 Pampulha e o bairro Mangabeiras, os bairros de residências unifamiliares mais nobres da cidade. Paralelamente, o BH Shopping se firmava como o principal shopping da cidade e cresciam, no município vizinho de Nova Lima, os condomínios fechados. Ou seja, a implantação do Belvedere III ocorreu num período de extrema valorização da região e os interesses imobiliários conseguiram se sobrepor ao poder público municipal e à reação contrária da sociedade, desencadeada pelos moradores do Belvedere I e II, pelos ambientalistas e demais associações envolvidas no planejamento da cidade (Rodrigues, 2001). Atualmente, o que se vê é um cenário contrastante. Numa parte do bairro, um conjunto de residências tem a Serra do Curral ao fundo e, na outra parte, ergue-se um “paliteiro de torres” e só por suas frestas – cada vez mais estreitas – pode-se ver a serra, tombada pelo Patrimônio Histórico do Município de Belo Horizonte. O que predomina são os edifícios residenciais, mas há também os comerciais, com salas e pequenos shopping centers voltados para as ruas. Seus moradores têm alto poder aquisitivo. Segundo dados da Câmara de Mercado Imobiliário (CMI), o Belvedere é o bairro com o preço do metro quadrado mais alto da cidade: “O preço médio do metro quadrado para apartamentos prontos no Belvedere é de 3 mil reais. Para empreendimentos comerciais, o valor é de 1,5 mil reais e, quando o assunto é casa, o custo do metro quadrado chega a 350 reais” (Especial Encontro, Mercado Imobiliário, junho de 2004). Em decorrência de sua aprovação peculiar, não foi destinada ao bairro nenhuma área pública de lazer e de encontro. A solução encontrada pelos loteadores e construtoras cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 foi o aproveitamento de uma área denominada Lagoa Seca, entre as ruas Juvenal de Melo Senra, Elza Brandão Rodarte e Vicente Guimarães. Em dois de seus lados, a praça é rodeada por edifícios exclusivamente residenciais, em outro lado por edifícios com lojas para a rua e, na quarta lateral, separada por um jardim em aclive, uma pista de rolamento e pelo BH Shopping. Suas dimensões e forma são de um quarteirão, só que não ocupado. A intenção dos seus criadores era de que essa área contribuísse positivamente para a valorização do bairro e dos imóveis. Mas, como o bairro, essa é uma praça atípica. Sua área permanece como privada, mas seu uso é público, ainda que bastante seletivo. Quem a planejou, executou e atualmente cuida da sua manutenção é a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB).12 A área livre e útil da antiga Lagoa Seca consiste apenas em uma pista de aproximadamente três metros de largura. No seu interior há um grande espaço livre, mas sem condições de uso, seja pela declividade do terreno, seja pelo córrego de água poluída. Na temporada de chuva essa área é inundada. Resume-se, portanto, a uma pista de caminhada em volta de uma área mais baixa e livre. Na pista não há bancos nem outros equipamentos de lazer. Durante os dias da semana, suas pistas são intensamente ocupadas por pessoas que fazem caminhadas. Alguns se exercitam acompanhados por um personal trainer. O grupo que caminha e corre abrange várias faixas etárias. A maioria dessas pessoas está acompanhada, raras são as que andam ou correm sozinhas. Trata-se, portanto, de um exercício físico, mas também de uma forma de sociabilidade. Os horários de pico são os do início da manhã e do final da tarde. No espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles domingo, uma das ruas que contorna a praça é fechada, o que permite que também as crianças usufruam desse espaço com patins, bicicletas, velotrol ou skate. Trata-se de um grupo muito homogêneo socialmente: todos são brancos, vestem-se com roupas próprias para caminhada e, pela aparência, são pessoas dos estratos altos, o que condiz com o perfil dos moradores do bairro. Não se nota a presença de pessoas de outros estratos sociais. Como se pode ver, é um lugar bastante seletivo em relação aos usos e estilos de comportamento. Uma usuária, moradora do bairro vizinho de Buritis, vem a essa praça porque a considera “mais segura e mais bem frequentada”, e descreve seu público como “pessoas que gostam de se mostrar com roupas de ginástica (...) há um desfile de corpo e de moda”, além de ser “um ponto de encontro para outros programas”.13 Um aspecto importante para a compreensão dos significados dos espaços públicos contemporâneos é a participação das associações de bairro, principalmente de bairros de classe alta. No Belvedere, as associações são muito ativas, a ponto de uma delas ter definido e executado o projeto da praça e atualmente cuidar da sua manutenção. É a associação que contrata os cinco funcionários que cuidam do jardim interno e da limpeza das calçadas e é também ela que arca com os custos da iluminação da praça, conforme o depoimento do presidente da Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB): Nós é que fizemos tudo, aí era um buraco. Tudo que você está vendo no Belvedere fomos nós que fizemos, a associação do bairro, o plantio de todas as árvores, nós aterramos a praça, nós plantamos a grama em volta dela, fizemos o passeio, fizemos a iluminação de bolas externas, que é diferente da Cemig, o dela é de poste de concreto, os nossos são de ferro, aquelas bolas mais charmosas, e pagamos a conta de luz também. (Entrevista, setembro de 2004) Uma moradora explicou a ausência de bancos na praça como uma tentativa de evitar a permanência de pessoas indesejáveis, o que o presidente da associação confirmou: A ausência de bancos foi uma decisão nossa. Ela partiu do princípio: a praça vai ser uma praça de lazer, para criança andar no sábado e domingo, de velocípede, brincar e as pessoas andarem. Porque o primeiro banco que nós colocamos, no domingo veio uma família, infelizmente de uma menor posição social no país, veio da favela com sete mulheres e dez meninos, trouxeram cachaça, deu polícia e já deu confusão. A associação partiu de uma premissa: ou é o nosso espaço ou é o espaço que nós não vamos ser donos, e o banco vai nos tirar o direito de dizer: “Aqui é a nossa convivência, o nosso encontro”. Todo mundo se conhece aí, se encontra, então foi nesse ponto aí que nós não colocamos bancos (...) cada um tem o seu limite de ficar em pé ou sentado no meio-fio, então cada um encerra o seu limite e vai embora. (Entrevista, setembro de 2004) O estatuto ambíguo de praça – propriedade privada e uso público – também se faz presente na forma como a associação assumiu a sua manutenção. O que inicialmente cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 143 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida poderia ser visto como uma participação da associação na gestão dos bens públicos, na verdade, vai bem além, uma vez que a associação se sente proprietária desse espaço, como se constata na fala do seu presidente. Daí a ambiguidade: culpa-se o poder público por sua ausência, mas é essa ausência que permite, como nos condomínios fechados (Andrade, 2001), uma gestão privada dos espaços públicos. Por outro lado, o poder público, que há tempos vem transferindo para o setor privado a gestão e manutenção de diversos bens públicos, exime-se de intervenção nos processos de privatização de bens públicos. 144 Ela [a associação] é dona da praça. Ela quem faz tudo, ela quem manda, ela quem limpa, ela quem a administra, por ausência do poder público (...). A omissão deles nos leva a fazer tudo, e eles sabendo que a omissão deles e o nosso trabalho é importante para eles, é um bom relacionamento, eles não falam nada e nós fazemos a nossa parte. É como se fosse uma subprefeitura, com autonomia completa. Nós plantamos o que a gente quer, tudo do jeito que nós queremos, plantamos a grama como plantamos as áreas verdes. (Entrevista, presidente da associação, setembro de 2004, grifo nosso). Uma grande preocupação dessas associações é a manutenção do valor dos imóveis do bairro, o que está intimamente ligado à conservação de uma alta qualidade de vida no local, traduzida, atualmente, pela segurança e exclusividade. A praça, além ser um bem raro na cidade, é muito utilizada para as atividades físicas, o que concorre para a cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 valorização do bairro, como argumenta o presidente da associação: Se isso fosse um buraco, como você vende os prédios da praça? A Líder [construtora] vendeu todas as unidades dela ali rapidinho (...). Eles investem numa publicidade muito barata. (Entrevista, setembro de 2004) As associações investem ainda na segurança pública e privada do bairro e da praça. A AMBB construiu o posto policial do bairro e as outras duas associações – Associação dos Comerciantes e dos Amigos do Belvedere – doaram para a polícia um carro e uma moto. Além disso, toda mudança que cause impacto no bairro – modificação no sentido do trânsito para realização de uma obra, instalação de um hipermercado, construção de um conjunto de prédios, entre outras – conta com a participação ativa da associação. Certas atividades comerciais consideradas indesejáveis também são evitadas. Segundo o presidente da associação: Nós não deixamos colocar uma faixa no bairro. Se você quiser vender alguma coisa por aí, em cinco minutos nós cortamos as faixas, porque é proibido por lei. Nós não deixamos camelô aqui dentro. Não deixamos o cara vir vender jornal, revista na praça, camisa no bairro, roupa. A associação vai, interfere, chama a polícia e briga pelo direito. (Entrevista, setembro de 2004) Assim as associações garantem que o bairro, apesar do adensamento e dos problemas de trânsito, mantenha o preço mais alto do metro quadrado da cidade. Esse tipo espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles de associativismo recebeu de Emilio Duhau a denominação “comunitarismo defensivo” e o seu resultado a “condominização da cidade”: De este modo, por una parte se observa el despliegue de un seudo comunitarismo defensivo (y as veces muy agresivo) que en las áreas de clase media se expresa a través de reivindicaciones en torno de la defensa del entorno urbano inmediato, buscando la protección del valor de la propiedad, el control de las externalidades urbanas y la exclusividad de los espacios residenciales en tanto que dispositivo de distinción, a través de instrumentos como los planes de usos del suelo, y de lo que podríamos denominar como creciente “condominización de la ciudad”. (Duhau, 2001) Se a apropriação da Praça da Lagoa Seca como local de caminhada visa ao cuidado com o corpo e com a saúde, também pode ser percebida como a celebração de um estilo de vida e a manutenção de contatos sociais. Essas práticas revelam que tanto a praça como espaço público, quanto o cuidar do corpo, não podem ser pensados isoladamente, fazem parte de um complexo de relações sociais em que lugar, estilo de vida, formas de sociabilidade e controles sociais se definem de modo bastante específico. O que se percebe é que não se caminha em “qualquer lugar”, tampouco se caminha de “qualquer maneira”, há uma preparação para isso que inclui o investimento em roupas, tênis e demais acessórios, símbolos trocados durante as caminhadas e nos pontos de encontro. Esse estilo de vida é reforçado pela Associação dos Amigos do Belvedere, que, em recente campanha publicitária, lançou o seguinte slogan para o bairro: “Você vai descobrir o que é viver com estilo”. Praça X A Praça X localiza-se na regional Norte, em um bairro com características populares. Conforme a Tabela 1, 41,77% de seus moradores ganha até dois salários mínimos. Sua forma é triangular e com desníveis que conformam três ambientes distintos. O nível mais baixo é a área mais sombreada da praça, com árvores altas. Ali há um pequeno teatro de arena e bancos em forma semicircular e em “s”. Também nesse nível há uma cabine de apoio da Superintendência de Limpeza Urbana – SLU – do município. Apesar dessa cabine, não há lixeiras na praça. No nível intermediário há uma quadra poliesportiva com arquibancadas e cercada por um alambrado. Durante as observações, os frequentadores a usavam apenas para jogar futebol. No nível mais alto há três mesas para jogos – com tabuleiros de dama e xadrez pintados –, bancos ao redor das mesas, um banco semicircular e alguns canteiros com árvores médias. Entre os desníveis há escadas. As observações mostraram que a praça é muito mal conservada. A grama não é podada, a tela do alambrado está arrebentada em várias partes e o lixo se espalha pelo chão em toda a sua extensão. A má conservação da praça parece não ter relação com ações de vandalismo, mas com o desgaste devido ao uso ao longo do tempo. O único sinal de vandalismo foi encontrado nas pichações, principalmente nos bancos. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 145 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 146 A praça é contornada por três ruas, com alguns estabelecimentos comerciais fechados, exceto uma sorveteria e uma oficina. As casas, como os bancos da praça, estão pichadas. Seus frequentadores são os moradores do bairro e o que eles procuram é o que se pode chamar de lazer na praça. As crianças soltam pipa e correm, os adolescentes jogam futebol, há casais de namorados e muita gente fica ali apenas conversando. Não há nenhum comércio no interior da praça. Outro aspecto particular nesse espaço são pessoas que ficam nas calçadas em frente à praça – na porta de suas casas –, conversando, brincando ou apenas observando. É comum encontrar um senhor que coloca uma cadeira diante de sua casa e fica ali observando a praça. Vez por outra ele toca saxofone, o que dá a impressão de que as calçadas também fazem parte da praça. Enfim, a praça e seus arredores abrigam um tipo de sociabilidade mais tradicional, típica de bairros com relações de vizinhança mais consolidadas. Um aspecto que chamou a atenção nessa praça foi a presença constante de um grupo de adolescentes – predominantemente homens –, que normalmente se senta em torno das mesas de jogos para conversar, jogar baralho e, principalmente, fumar maconha. Esses jovens frequentam a praça há aproximadamente dois anos14 e a maior parte deles está desempregada e não estuda. Foram entrevistados dez jovens, entre os quais apenas dois estudam e três trabalham, em todos os casos no emprego informal. Um ajuda o pai, que é pedreiro, “quando há serviço”; outro é catador de papel e vigia carros; e outro trabalha com o tio num bar: “Meu tio tem um bar (...) e eu fico lá ajudando ele”. Todos são moradores da região cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 e o fato de ali fumarem maconha não causa grande reação nos outros frequentadores. Apenas uma entrevistada reclamou, já os outros frequentam a praça sem se importarem com a presença desses jovens. Em geral esses jovens vão ali apenas durante o dia, porque dizem que à noite a praça é muito perigosa. Como afirma um entrevistado: “Eu venho só de tarde e venho de noite às vezes. (...) fica mais cheio, os caras mais barra pesada”. Em todo o período de observação não se viu nenhum policial na praça. Uma senhora que a frequenta relatou-nos que, embora nunca tenha sofrido ou presenciado qualquer tipo de violência ali, não se sentia segura, já que não havia a presença da polícia. Sobre isso dois adolescentes respondem: “Segurança não tem aqui não, eu nunca vi polícia aqui”. “Eu nunca vi polícia aqui. Ouvi falar uma vez que veio polícia à noite, mas os caras circulou”. O mal estado de conservação e a ausência de ocorrências policiais (durante o ano de 2003, não foi registrada nenhuma ocorrência na praça) são indicadores da ausência do poder público, que, na perspectiva dos adolescentes, é um aspecto positivo, pois torna a praça segura para “fumar um”. Mas, para a maioria dos moradores, inclusive o grupo de adolescentes, torna a praça inacessível, porque perigosa no período noturno. Como se percebe, as estratégias de controle dessa praça são inteiramente diferentes das duas primeiras. A Praça JK é vigiada por policiais militares e a Praça da Lagoa Seca, por segurança privada, além de gerida por associações de moradores. Na praça da região Norte, diferentemente, não há controle pelo poder público, tampouco por segurança privada. Os próprios usuários evitam a praça quando está muito vazia e, espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles principalmente, no período noturno, quando é ocupada por um grupo que os moradores, provavelmente por medo, não identificam bem, mas dizem ser perigoso. Área de Lazer e Esporte Via Expressa Inaugurada em 27 de junho de 2004, a Área de Lazer da Via Expressa é conhecida pelos seus frequentadores como Praça da Via Expressa ou Praça dos Skatistas. Situada no canteiro central da Via Expressa, avenida de intenso fluxo de carros, seu formato é triangular e, antes de ser praça, havia ali um lote vago. Fechada por uma cerca de aproximadamente dois metros de altura, seu acesso se dá por um grande portão situado num dos vértices do triângulo. Paralela à cerca, uma pista de cooper asfaltada contorna a praça. Mais internamente, num dos lados do triângulo, há uma pista de bicicross – de areia e com uma elevação – circundada por uma área gramada. No lado oposto dessa pista, ocupando todo um lado do triângulo, há uma pista de skate, com rampas de concreto e barras de ferro, que também servem para a prática do esporte. Há outra pista de skate, de concreto, em formato abaulado. Há ainda bancos em semicírculo, um bebedouro e aparelhos de ginástica. A história dessa praça, embora recente, é emblemática para a reflexão sobre os usos de espaços públicos na contemporaneidade, entre outros motivos por ser gradeada e fechada ao público durante a noite. A praça abre às seis da manhã e fecha às dez da noite. Situada na regional Noroeste e próxima a uma vila – Vila São Vicente – e a três bairros – Coração Eucarístico, Minas Brasil, Padre Eustáquio – a Praça da Via Expressa é um espaço público cuja gerência cabe não só à prefeitura de Belo Horizonte, mas também ao Conselho Permanente de Usuários – CPU – composto por 13 entidades, entre associações de moradores – do bairro Coração Eucarístico e da Vila São Vicente –, de skatistas e de comerciantes. Percebe-se aqui o associativismo, como na Praça da Lagoa Seca, mas numa parceria formal com o poder municipal e, nesse caso, a distância em relação à Praça da Lagoa Seca é grande, já que esta é um espaço privado com uso público e mantido por associações de bairro. Aqui, diferentemente, trata-se de um espaço público mantido pela prefeitura em parceria com entidades abrigadas num conselho. Na portaria que formaliza a gestão da Área de Lazer, essa parceria torna-se clara: O Secretário Municipal de Esportes (...) resolve: Artigo 1º – O Equipamento Esportivo será gerenciado de forma compartilhada entre a Secretaria Municipal de Esportes, a Secretaria Municipal da Coordenação de Gestão Regional Noroeste e o Conselho Permanente de Usuários – CPU, cujos membros serão eleitos por votação em assembléia e que terá a função de organizar e fiscalizar o agendamento das atividades a serem realizadas no local, através da normatização assinada pelas partes. (Portaria 003/2004. In: Belo Horizonte, 2004). cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 147 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida 148 Embora haja uma gestão compartilhada, as entrevistas com alguns usuários da praça revelaram que eles desconhecem esse fato. Perguntados se sabiam quem cuidava da praça, alguns diziam que não sabiam e outros afirmavam ser a prefeitura. Nas pistas de skate há grafites e pichações e numa delas se lê: “It’s just skate, but I like it”. Os grafites foram executados com a permissão da prefeitura com o objetivo de evitar as pichações, uma vez que os pichadores não costumam pichar sobre grafites. No entanto, nos outros espaços não grafitados havia pichações. Constatou-se a existência de dois grupos muito distintos de usuários da praça. De um lado, os skatistas, jovens entre 14 e 18 anos, predominantemente homens (vez ou outra é possível ver uma ou duas meninas, na mesma faixa etária, andando de skate) e, em geral, de classe baixa, dado que a maioria dos jovens entrevistados em dias de semana residia na favela próxima à praça. De outro lado, adultos – homens e mulheres – que usam a pista de cooper e parecem, ao menos pela forma de vestir, pertencer a um estrato social mais elevado. Nos fins de semana há também crianças acompanhadas de adultos, que levam bicicleta, patins ou skate e, nos dias de semana, adolescentes com uniforme escolar. Nos dias de semana, a praça é frequentada majoritariamente por moradores dos bairros vizinhos e, nos fins de semana, por pessoas de diferentes regiões de Belo Horizonte e Contagem. Em conversa com os usuários de bairros mais distantes, percebeu-se que estavam ali porque passaram pela avenida em outra ocasião e viram a praça ou porque ficaram sabendo de uma nova praça em Belo Horizonte com equipamentos para a prática do skate. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 Quando os pesquisadores de campo15 iniciaram a observação nessa praça, havia uma faixa em que os moradores da Vila São Vicente agradeciam ao prefeito e a uma vereadora a construção da praça. Embora a faixa iniciasse com os “moradores da Vila São Vicente”, a assinatura era: “Skatistas da região”. A vereadora revelou-nos, em conversa por telefone, que o projeto surgira de demandas de diferentes grupos da região, entre os quais os skatistas, algumas associações de moradores e de comerciantes. Ainda segundo ela, o fechamento teria sido decisão dos usuários representados pelo Comitê Permanente de Usuários (CPU). A maioria dos usuários entrevistados desconhecia o motivo do fechamento da praça, mas imaginava que seria uma estratégia contra a ação de vândalos. Um funcionário da prefeitura relatou-nos que os moradores pediram que a praça fosse fechada para evitar esse tipo de ação. O que nos parece, entretanto, é que o fechamento da praça, análogo à ausência de bancos na Praça da Lagoa Seca, seria uma estratégia para evitar a presença de pessoas “indesejáveis”. Outra hipótese é que ofereceria proteção para brinquedos como bolas ou mesmo skates não caírem na via pública. Mas essa proteção não justifica o fechamento à noite. Portanto, a hipótese que nos pareceu mais plausível é a de evitar que os moradores de rua, que se concentram na Via Expressa e nos seus viadutos, façam da praça um local de moradia ou pelo menos de pernoite. Tanto a Praça X como a Praça da Via Expressa têm a presença marcante de jovens. Ainda que os desta última sejam mais jovens, com idade variando entre 14 e 18 anos e todos os entrevistados estudam e alguns já trabalham. Diferenciam-se também espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles por apresentarem um perfil mais reivindicativo e participativo. Considerações finais Como dito no início deste artigo, o modo de apropriação de algumas praças em Belo Horizonte parece sugerir que as reflexões recentes que apontam para a morte do espaço público devem ser relativizadas. Entretanto, há que se considerar significativas mudanças nas formas de apropriação dos espaços públicos e de sociabilidade entre seus usuários. As praças são hoje muito mais utilizadas para os exercícios físicos, ainda que certos valores e estilos de vida sejam explicitados por meio desses usos. Não se trata, portanto, de simples voyeurismo ou de participação passiva, como disse Sennett (1988). Outro aspecto dessas recentes transformações é o cuidado com a segurança, presente no comportamento dos usuários, nas ações das associações de bairro, do poder público, das empresas privadas e dos grupos de usuários. Nota-se também um comportamento mais segregacionista. As praças são bastante frequentadas, mas busca-se cada vez mais a convivência entre iguais e a segregação socioespacial que se observa na cidade é reproduzida nos seus espaços públicos. Ou seja, não há uma recusa à praça, mas uma recusa em interagir com as diferenças. Dessa forma, uma das qualidades dos espaços públicos, a possibilidade do encontro com o diferente, vem sendo evitada pelos novos usuários dos espaços públicos. Por fim, é interessante analisar a ação do poder público nessas quatro praças. Na Praça JK, o projeto elaborado pelo poder público tentou contemplar o uso, ainda que segmentado, dos diferentes frequentadores, o que garante hoje a presença – ainda que com poucas possibilidades de interação – dos dois grupos, os de classe média e os moradores da favela. Na Praça X, o que se nota é o abandono por parte do poder público. Essa praça carece de cuidados mínimos, como limpeza, colocação de lixeiras e até mesmo a ação da polícia. Apesar das insistentes afirmações de que não é um lugar seguro à noite, nenhuma ocorrência foi registrada no local, durante todo o ano de 2003. Isso contrasta com as duas outras praças da regional Centro Sul – Praça JK e da Lagoa Seca – onde a presença da polícia (pública ou privada) é mais efetiva. Nessa última, a situação é atípica: trata-se de um espaço de uso público, mas cuja gestão é privada. Em consequência, é um lugar extremamente segregado. Já no caso da Área de Lazer e Esportes Via Expressa, o poder público, pressionado pelas demandas dos moradores, opta pelo fechamento do espaço público. E, ainda que sua constituição tenha contado com a participação de várias entidades, ele desafia uma outra dimensão tão cara aos espaços públicos: a natureza de espaço aberto a todos. De todo modo, o que se constatou é que as quatro praças investigadas são muito frequentadas. Assim, como pensar em morte ou renúncia aos espaços públicos? É evidente, como revelado em todo o texto, que, num contexto de exacerbação da criminalidade urbana nas grandes cidades, há, por um lado, maior controle da frequência e das interações nos espaços públicos e, por outro lado, a intensificação das interações entre iguais, mas as pessoas continuam se apropriando e interagindo nos espaços públicos das grandes cidades. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 149 luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida Luciana Teixeira de Andrade Socióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil). [email protected] Juliana Gonzaga Jayme Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e dos cursos de Publicidade e Propaganda e Serviço Social (Minas Gerais, Brasil) [email protected] Rachel de Castro Almeida Arquiteta Urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenadora da equipe de tutoria da Associação Internacional de Educação Continuada (Minas Gerais, Brasil) [email protected] 150 Notas (*) Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no XXVIII Encontro Anual da Anpocs, no grupo de trabalho Metrópoles: segmentação, sociabilidade e cidadania. A pesquisa que deu origem a este trabalho foi financiada pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa da PUC Minas e o trabalho de campo contou com a decisiva participação de Heloísa Helena de Souza e Jeremias Farias Abbud, alunos do Curso de Ciências Sociais da PUC Minas. (1) Ver o trabalho de Leite (2004) sobre o histórico bairro do Recife. Sobre os usos do espaço público em Belo Horizonte, ver Almeida (2001); Teixeira (2003); Gois (2003). (2) Alguns grupos fazem dos espaços públicos espaços da privacidade, quando, por exemplo, os transformam em local de moradia, como aponta Araújo (2004, p. 10): “A construção de moradias improvisadas explicita (...) a presença da esfera privada em locais públicos, trazendo um novo recorte para pensarmos as fronteiras entre público e privado”. (3) Trata-se do Programa Adote o Verde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. “Parceria entre a administração municipal e a iniciativa privada e a comunidade em geral, com o objetivo de viabilizar a implantação e, principalmente, a manutenção de parques, praças, jardins, canteiros centrais de avenidas e demais áreas verdes públicas da cidade. É responsável, hoje, pela manutenção de cerca de 300 espaços verdes do município” (site da PBH, acessado em agosto de 2004). (4) Nessa praça um grupo de jovens consome regularmente maconha. Eles participaram da pesquisa com a condição, proposta por nós, de que não seriam identificados. Por isso o bairro e a localização precisa da praça não são revelados e a denominamos Praça X. cadernos metrópole 21 pp. 131-153 10 sem. 2009 espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles (5) Sobre as praças centrais e suas relações com o plano original da cidade ver Arroyo (2004). (6) Cada AED – também denominada área de ponderação – compreende um conjunto de bairros cujo número varia segundo as suas respectivas densidades populacionais. (7) A identificação dos bairros que compõem cada AED privilegiou os nomes dos bairros maiores e mais conhecidos, como forma de facilitar a sua identificação. Ver Metrodata, Observatório das Metrópoles. http://web.observatoriodasmetropoles.net/ (8) Optamos por utilizar o Índice de Vulnerabilidade Social para a escolha das Regionais a serem pesquisadas por permitir identificar espacialmente as áreas de maior e menor vulnerabilidade social em Belo Horizonte (Nahas, 2002). (9) Devido à sua dimensão, a prefeitura a classifica como parque, mas aqui é considerada como praça por ter forma e usos similares às praças, e, especialmente, porque seus frequentadores a chamam de praça. (10) Em Belo Horizonte, as favelas são denominadas vilas pelo poder público e em muitos lugares essa denominação é também empregada pelos moradores, que a preferem devido às conotações negativas do termo favela. Neste texto usaremos ora uma, ora outra denominação. (11) Além de vigiarem os carros, em alguns eventos os moradores da Vila são contratados como seguranças. Sobre as difíceis relações entre estratos sociais diferentes, mas que vivem próximos, ver Ribeiro et al. (2004). (12) Na região existem três associações. A mais antiga é a Associação dos Moradores do Bairro Belvedere (AMBB), que reúne os moradores do Belvedere I e II. Com a aprovação do Belvedere III surgiram mais duas associações: a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB) e a Associação dos Comerciantes do Belvedere. (13) Como esse espaço não existe oficialmente como praça, até porque praça é um espaço de domínio público, não foi possível, nos registros de crimes da Polícia Militar, isolar aqueles referentes ao local. O que se tem são registros dos crimes ocorridos nas ruas que contornam a praça. Segundo esses dados, em 2003 foram registrados aí três crimes: um roubo à mão armada de veículo automotor, um roubo à mão armada a transeunte e um roubo a transeunte. (14) Todos os garotos entrevistados disseram na época (2004) frequentar a praça há um ou dois anos. Numa pesquisa anterior nessa mesma praça, durante o ano de 2000, não foi registrada a presença desse grupo. (15) Jeremias Abbud, estudante do curso de Ciências Sociais e Júlia Guimarães Mendes, estudante do curso de Jornalismo, ambos da PUC Minas. Referências ALMEIDA, R. de C. (2001). Espaço público e paisagem urbana: um estudo sobre duas praças de Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado Belo Horizonte, PUC Minas. ANDRADE, L. T. de. (2001). 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Nesse sentido, o artigo problematiza o argumento de que a proliferação das organizações sociais seria uma condição necessária e, especialmente, suficiente para a geração de confiança e, por consequência, capital social. Com base nos dados de survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Alegre, realizado pelo Observatório das Metrópoles, o presente artigo identifica a inexistência de uma relação direta entre envolvimento associativo e níveis de confiança em instituições políticas. Buscando responder a esse aparente paradoxo, sustenta-se a necessidade de incorporar a dimensão político-institucional à análise sobre os fundamentos da confiança, rompendo com uma abordagem exclusivamente centrada no associativismo. Abstract This paper critically examines an approach to the foundations of trust and social capital that is inspired by the very influential work of Robert Putnam. It discusses the argument that the spread of civil organizations is a necessary and sufficient condition for building up trust and, as a consequence, social capital. Through the analysis of a survey’s data on Political Culture in the Metropolitan Region of Porto Alegre, the paper identifies the lack of a direct relationship between civic engagement and levels of trust in political institutions. Facing what seems to be a paradox, the paper sustains that to properly understand the foundations of trust, the analysis must take into account the political-institutional dimensions rather than focusing only on civic engagement. Palavras-chave: associativismo; instituições; confiança; capital social. Keywords: civic engagement; institutions; trust; social capital. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes Introdução 156 Assiste-se, na última década, à emergência de um aparente consenso entre amplos segmentos da comunidade científica e membros de instituições diversas (Estado, organismos internacionais, ONGs, etc.) em torno da centralidade das organizações da sociedade civil na geração de confiança e solidariedade, constituindo o capital social que permitiria a superação de diversos problemas sociais e políticos relacionados à pobreza, ao subdesenvolvimento, à consolidação da democracia, à qualidade do desempenho governamental. Fundado na generalização – e, muitas vezes, simplificação – do argumento de Robert Putnam, que identifica na desigualdade de capital social o fator explicativo para as diferenças entre o desempenho institucional e o desenvolvimento econômico do Norte e do Sul da Itália, esse aparente consenso gerou não apenas uma fértil literatura acadêmica, mas também um amplo conjunto de programas e políticas voltados à produção de capital social a partir do estímulo às práticas associativas. O objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo crítico com essa perspectiva, problematizando o argumento de que a proliferação das organizações sociais seria uma condição necessária e, especialmente, suficiente para a geração de confiança e, por consequência, capital social no sentido atribuído por Putnam a esse conceito.1 Com base nos dados do survey sobre Cultura Política na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA),2 desenvolvida no âmbito do Observatório das Metrópoles, o presente artigo identifica a inexistência de uma correlação direta entre envolvimento associativo e cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 elevação dos níveis de confiança, contrariando, assim, o consenso apontado anteriormente. Buscando responder a esse aparente paradoxo, sustenta-se a necessidade de incorporar a dimensão político-institucional à análise sobre os fundamentos da confiança, rompendo com uma abordagem exclusivamente centrada no associativismo.3 Para desenvolver a análise, o artigo apresenta a seguinte estrutura: na próxima seção, é feita uma sintética apresentação dos argumentos de autores que problematizam a perspectiva atualmente dominante na literatura sobre confiança e o capital social, a partir da defesa da incorporação da dimensão político-institucional; na seção seguinte, são analisados os dados sobre o envolvimento associativo na RMPA; posteriormente, são apresentados os dados sobre os níveis de confiança entre a população pesquisada; na seção que segue, são analisadas as avaliações dos entrevistados sobre o desempenho dos atores e instituições político-administrativos; por fim, o artigo conclui com o argumento de que o baixo nível de confiança observado tende a ser melhor explicado pela interpretação dos entrevistados sobre o contexto político-institucional no qual os pesquisados estão inseridos do que pelo envolvimento no tecido associativo local. Fundamentos da confiança: bringing the political institutions back in4 Robert Putnam, especialmente a partir da análise desenvolvida no livro Comunidade fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA e Democracia, estabeleceu uma perspectiva que se tornou, ao longo da última década, um dos principais focos de interesse de cientistas sociais. Tal perspectiva, que adota diversos elementos da análise de Alexis de Tocqueville em A Democracia na América, pode ser sintetizada da seguinte forma: a configuração associativa, na medida em que é a fonte da confiança e das normas que constituem o estoque de capital social de uma determinada sociedade, possui um efeito determinante no desempenho das instituições e, no limite, na definição dos níveis de desenvolvimento dessa sociedade. Dessa forma, Putnam e os adeptos dessa perspectiva tendem a estabelecer uma correlação direta entre níveis de confiança e configuração associativa (em geral, operacionalizada quantitativamente enquanto número de associações e volume de filiações); ou seja, quanto maior o número de associações e o volume de filiados a elas, maiores os níveis de confiança (e, assim, de capital social). Apesar de obscurecidos pela grande repercussão e aceitação da perspectiva de Putnam, especialmente entre agências de desenvolvimento e organismos financeiros internacionais, alguns autores têm problematizado os fundamentos dessa perspectiva a partir de diversos argumentos. Neste artigo, o interesse concentra-se naqueles autores que têm confrontado a relação causal unidirecional que Putnam institui entre configuração associativa, níveis de confiança e desempenho político-institucional. Um dos autores que confronta de maneira mais direta e contundente essa abordagem unidirecional é Omar Encarnación, no livro que tem o sugestivo título The Myth of Civil Society. A partir da fundamentação empírica oferecida pela análise dos processos de redemocratização na Espanha e no Brasil, esse autor sustenta a necessidade de inverter o sentido da relação causal estabelecida por Putnam, defendendo que os níveis de confiança tendem a ser determinados menos pela configuração associativa do que pela configuração e desempenho das instituições político-administrativas.5 Para ele, deve-se esperar que a confiança social, as redes de reciprocidade e outros componentes do capital social floresçam em contextos no qual o sistema político é efetivo e bem institucionalizado. Nas sociedades em processo de democratização, o contexto [...] político-institucional inclui um governo que seja comprometido com os valores e práticas da democracia, um confiável e coerente aparato estatal e partidos políticos com profundas raízes na sociedade. Estas condições provêm as melhores perspectivas para o bemestar geral da sociedade, tanto em termos de estabilidade política quanto em termos de desenvolvimento econômico, que, por sua vez, proporciona o fundamento ideal para o aumento da capacidade dos indivíduos confiarem uns nos outros e se engajarem em esforços de colaboração no apoio da democracia. Tais condições também facilitam a confiança no sistema político, um requisito crítico para as instituições políticas executarem com sucesso a integração da sociedade em torno do projeto de democratização e oferecer aos atores sociais meios efetivos de representação política. Em contraste, nós devemos esperar que a formação de capital social seja minada, senão completamente paralisada, por instituições políticas ineficientes ou precariamente desenvolvidas. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 157 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes De fato, as formas mais negativas de capital social (por exemplo, desconfiança e cinismo) são prováveis de emergir deste contexto político. (Encarnación, 2003, pp. 8-9) 158 Segundo Encarnación, o processo de redemocratização brasileiro ofereceria um dos melhores exemplos para sustentar a crítica ao modelo analítico de Putnam, na medida em que seria um caso no qual se combinaria um expressivo crescimento e complexificação do tecido associativo com um marcante decréscimo dos níveis de confiança interpessoal e institucional. 6 A resposta para esse resultado se encontraria no precário desempenho das instituições político-administrativas brasileiras no período. Para ele, apesar da existência de sinais de uma florescente sociedade civil, de um impressionante nível de engajamento dos cidadãos em grupos voluntários de quase todos os tipos e propósitos, o capital social é pouco disponível no Brasil. O Brasil é “um verdadeiro deserto” no que se refere ao indicador empírico básico de capital: a confiança social. O autor relaciona isso à pobre performance dos governos brasileiros no período pós-transição e o declínio institucional que afligiu o sistema político do país nas últimas décadas (ibid., p.12). Outro autor que aborda criticamente o argumento de Putnam é Sidney Tarrow, que destaca que a “falta da agência do Estado no livro Comunidade e Democracia é uma das maiores falhas do seu modelo explicativo” (1996, p. 395). Para Tarrow, o apego de Putnam a uma perspectiva comprometida com a concepção da vida associativa como fonte única de capital social, precedendo e determinando o desempenho institucional, cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 lhe impossibilitou apreender, na sua análise da história italiana, o decisivo impacto das distintas conformações institucionais do Norte e do Sul da Itália na estruturação da vida associativa em cada uma dessas regiões. Como salienta o autor, [...] o caráter do Estado é externo ao modelo, sofrendo os resultados da incapacidade associativa regional, mas sem responsabilidades pela produção desta. (…) nós podemos ficar satisfeitos com a interpretação da capacidade cívica como um produto local no qual o Estado não desempenhe nenhum papel? (Ibid., p. 395) Da mesma forma que Encarnación e Tarrow, Sheri Berman também responde negativamente a esse questionamento. Baseando-se na análise da crise da República de Weimar e ascensão do nazismo na Alemanha, Berman demonstra que, ao contrário do “círculo virtuoso” estabelecido pelos tocquevillianos – entre os quais, Putnam – o mero crescimento do associativismo não pode ser tomado como um indicador de aumento dos níveis de confiança ou de vitalidade das instituições democráticas. No processo analisado, ao contrário, a autora mostra que o crescimento associativo se vincula diretamente ao declínio da confiança e à crise institucional, sendo um dos mecanismos que possibilitou a ascensão do Partido NacionalSocialista ao poder. Assim, conclui a autora, O caso alemão deveria nos tornar céticos sobre vários aspectos da teoria neotocquevilliana. Em particular, o desenvolvimento político alemão levanta questões sobre aquilo que, fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA recentemente, tornou-se praticamente um senso comum, qual seja que existe uma relação direta e positiva entre uma rica vida associativa e uma democracia estável. Sob certas circunstâncias, o caso é claramente o oposto: o associativismo e as perspectivas da estabilidade democrática podem, de fato, estar inversamente relacionados. Além disto, muitas das consequências do associativismo enfatizadas pelos pesquisadores neotocquevillianos – fornecer habilidades políticas e sociais aos indivíduos, criar vínculos entre os cidadãos, facilitar a mobilização, diminuir os obstáculos à ação coletiva – podem ser direcionados tanto para fins antidemocráticos quanto democráticos. Talvez, assim, associativismo deva ser considerado uma variá vel politicamente neutra – nem inerentemente bom nem inerentemente mal, mas, antes, cujos efeitos dependem do amplo contexto político. (Berman, 1997, pp. 426-427) Partindo dessas problematizações ao modelo analítico de Putnam, este artigo critica a desconsideração da dimensão políticoinstitucional nas análises sobre confiança, na medida em que as instituições constituem um fator determinante na estruturação das representações e práticas dos agentes sociais. Como salienta Boschi (1987, p.19), As instituições organizam a experiência diária dos indivíduos, dando forma aos ressentimentos e definindo as demandas e metas de ação. Também são um determinante implícito das formas eventualmente assumidas pelo protesto, no sentido de que é a vida institucional que agrega e dispersa as pessoas. Nesse sentido, adota-se a hipótese de que os níveis de confiança estão mais relacionados às avaliações da população sobre o desempenho dos atores e instituições político-administrativos do que ao envolvimento associativo. Assim, em contextos nos quais a avaliação do campo político-institucional é predominantemente negativa, o nível de confiança da população, independentemente da inserção associativa, tende a ser baixo. Nesses contextos, de fato, o envolvimento associativo pode se constituir menos em um indicador ou fonte de confiança e mais em um mecanismo de autoproteção ante um ambiente interpretado como ameaçador. Atuação sociopolítica e inserção associativa na RMPA Para caracterizar o nível de envolvimento associativo da população da RMPA, esta seção utiliza dois conjuntos de informações disponibilizados pela pesquisa: o que trata da participação dos entrevistados em ações sociopolíticas e outro sobre a participação dos entrevistados em associações. Conforme pode ser observado na Tabela 1, a experiência de atuação sociopolítica dos entrevistados, indicada pela a assinatura de petições e, especialmente, abaixo-assinados é a alternativa de ação mais difundida na RMPA: 37,7% deles já o fizeram (289 em 768). Essa forma de ação, caracterizada pelo seu baixo custo para os participantes e pelo baixo risco envolvido, apresenta uma longa tradição na região, sendo empregada tanto por movimentos reivindicativos quanto cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 159 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes Tabela 1 – Experiência de ação social e política – RMPA – 2007 Tipo de ação Assinar uma petição ou abaixo-assinado Participar num comício ou reunião política Participar em manifestação Boicotar produtos por razões políticas, éticas e ambientais Contatar político ou alto funcionário do Estado Dar dinheiro ou recolher fundo para causas públicas Participar num fórum através da internet Contatar/aparecer na mídia Nunca fez Fez NS/NR Entrevistados Entrevistados Entrevistados Nº % Nº % Nº % 449 561 603 619 634 653 645 677 58,5 73,1 78,5 80,6 82,6 85,1 83,9 88,1 289 178 147 107 101 96 79 52 37,7 23,2 19,2 13,9 13,2 12,5 10,3 6,7 30 29 18 42 33 19 44 39 3,9 3,8 2,3 5,5 4,3 2,5 5,7 5,1 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. 160 pelas redes de clientela política. Em segundo lugar, com presença na trajetória de quase um quarto dos entrevistados (178 em 768), encontra-se a participação em comícios ou reuniões políticas, indicando o envolvimento mais ou menos intenso de um segmento significativo dos entrevistados com a política partidária. Com um percentual um pouco menor, próximo a 20% (147 em 768), encontrase a participação em manifestações. Mesmo que esse valor, em termos absolutos, possa ser avaliado como baixo em relação ao total de entrevistados, não pode ser desprezado o fato de quase um quinto dos entrevistados ter tido alguma experiência de participação em manifestações. Dado o custo, em geral, expressivo desse tipo de ação coletiva e os riscos inerentes a tais ações, esses percentuais podem ser considerados como relevantes. Esse dado exige relativizar a interpretação sobre a existência de uma aversão generalizada ao envolvimento em ações coletivas entre os brasileiros, 7 indicando que, em certas conjunturas, uma parcela expressiva cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 dessa população apresentou as condições e disposições para inserir-se em processos de mobilização. Outro aspecto que confere destaque ao percentual de participantes de manifestações e o torna relativamente elevado é a comparação com os contatos diretos com políticos. Na medida em que a política brasileira é retratada como sendo fortemente marcada por práticas clientelistas, poder-se-ia se esperar uma significativa disseminação de relações diretas entre políticos e cidadãos, uma vez que esses contatos seriam os canais privilegiados para a mediação clientelista dos interesses sociais junto ao poderes públicos. No entanto, os dados mostram que os contatos diretos com políticos têm uma presença relativamente pequena entre os entrevistados, tendo sido uma ação já praticada por apenas 13,2% dos mesmos (101 em 768). O envolvimento associativo dos entrevistados está relacionado, primeiramente, à importância da religiosidade na conformação do tecido associativo da RMPA. Conforme pode ser observado na Tabela 2, a inserção fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA Tabela 2 – Pertencimento associativo por tipo de associação – RMPA – 2007 Tipo de associação Igreja ou grupo religioso Grupo desportivo, recreativo ou cultural Sindicato, grêmio ou associação profissional Outra associação voluntária Partido político Nunca pertenceu Pertence ou pertenceu NS/NR Entrevistados Entrevistados Entrevistados Nº % Nº % Nº % 331 517 546 532 595 43,1 67,3 71,1 69,3 77,5 419 235 212 171 165 54,6 30,6 27,6 22,2 21,4 18 16 10 65 8 2,3 2,1 1,3 8,5 1,1 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. em organizações de caráter religioso constitui-se na principal opção de associativismo, sendo essa a única forma de pertencimento associativo que é ou já foi experimentada por mais da metade dos entrevistados (54,6%, 419 em 768). Cerca de 30% dos entrevistados têm ou tiveram participação em organizações desportivas/recreativas/ culturais (30,6%, 235 em 768) e em sindicatos/associações profissionais (27,6%, 212 em 768). Ou seja, quase um terço dos entrevistados possuía experiência de envolvimento nesses tipos de organizações sociais. Além disto, aproximadamente 20% responderam ter experiência de participação em outros tipos de associações voluntárias (22,2%, 171 em 768) e em partidos políticos (21,4%, 165 em 768). No conjunto dos entrevistados, apenas 26,2% (201 em 768) declararão não possuir nenhum tipo de experiência associativa, o que indica que aproximadamente três quartos da população pesquisada têm ou teve algum tipo de engajamento associativo. Os dados obtidos na pesquisa mostram, então, que a população da RMPA se caracteriza por uma experiência de envolvimento sociopolítico e associativo que não pode ser desconsiderada. Ao contrário, observa-se que um volume significativo de entrevistados apresenta algum tipo de inserção associativa e, em menor grau, de participação em ações políticas e/ou reivindicativas. Tais informações tendem, assim, a sustentar a interpretação de senso comum que identifica a RMPA como um espaço social caracterizado por uma tradição de organização e mobilização social e política, constituindo um contexto associativo propício, segundo o argumento de Putnam, à geração de altos níveis de confiança e, assim, de capital social. A desconfiança generalizada Contrariamente ao resultado esperado a partir do modelo analítico de Putnam, os dados da pesquisa Cultura Política na RMPA apontam para um contexto de baixíssimos níveis de confiança, tanto em relação às instituições como em termos das relações interpessoais. No que se refere à confiança nas instituições, 8 predomina a avaliação negativa sobre a intencionalidade dos agentes cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 161 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes governamentais. Na Tabela 3, observa-se que mais de 55% dos entrevistados avaliam que os governantes tendem a agir de forma incorreta, enquanto menos de 30% concordam que os integrantes dos governos tenderiam a agir com correção. Ou seja, para a maior parte dos entrevistados, os agentes públicos são, por princípio, objeto de desconfiança. Essa interpretação é corroborada pela preponderância entre os entrevistados da visão de que a atuação dos políticos é motivada principalmente pela busca de vantagens pessoais. A Tabela 4 mostra que praticamente 80% dos entrevistados consideram que a obtenção de vantagens pessoais é a razão básica para a atuação política dos políticos e não o interesse público. Assim, além de não atuarem corretamente, a maior parte dos indivíduos envolvidos na política institucional é vista como sendo movida por interesses egoístas. Tabela 3 – Concordância com a afirmação “Pode-se confiar que as pessoas do governo farão o que é certo” – RMPA – 2007 Entrevistados Nível de concordância 162 Nº 72 139 103 155 275 24 768 Concorda totalmente Concorda em parte Não concorda nem discorda Discorda em parte Discorda totalmente NS/NR Total % 9,4 18,1 13,4 20,2 35,8 3,1 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. Tabela 4 – Concordância com a afirmação “A maior parte dos políticos está na política para obter vantagens pessoais” – RMPA – 2007 Entrevistados Nível de concordância Nº 456 158 49 48 39 18 768 Concorda totalmente Concorda em parte Não concorda nem discorda Discorda em parte Discorda totalmente NS/NR Total Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 % 59,4 20,6 6,4 6,2 5,1 2,3 100,0 fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA Tabela 5 – Frequência com que as pessoas tentarão tirar vantagem ou serem justas nas relações com outras pessoas – RMPA – 2007 Entrevistados Frequência Nº 239 305 121 67 36 768 Tentarão tirar vantagem sempre Tentarão tirar vantagem às vezes Serão justas às vezes Serão justas sempre NS/NR Total % 31,1 39,7 15,8 8,7 4,7 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. Tabela 6 – Confiança interpessoal – RMPA – 2007 Entrevistados Confiança Nº 58 156 258 271 25 768 As pessoas quase sempre são de confiança As pessoas algumas vezes são de confiança Algumas vezes todo o cuidado é pouco Quase sempre todo o cuidado é pouco NS/NR Total % 7,6 20,3 33,6 35,3 3,3 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. Essa mesma avaliação sobre o predomínio de uma lógica “predatória” é encontrada nas opiniões dos entrevistados sobre a natureza das relações interpessoais. A Tabela 5 mostra que mais de 70% dos entrevistados consideram a principal intenção das pessoas, ao se relacionarem umas com as outras, é a busca de vantagens e não o estabelecimento de relações em que procuraram ser justas. Nesse sentido, não é surpreendente que esses mesmos entrevistados destaquem a necessidade de adotar uma postura de precaução nas relações interpessoais. Aqui, novamente, quase 70% das respostas apontam para a necessidade de tomar cuidado em relação aos outros indivíduos, indicando claramente a presença de uma desconfiança generalizada que também está presente na relação com as instituições político-administrativas. Não há, portanto, uma relação direta entre configuração associativa e níveis de confiança. Conforme caracterizado na seção anterior, a RMPA apresenta uma população com significativa experiência de envolvimento associativo, mas essa experiência, paradoxalmente – de acordo com a prescrição do modelo de Putnam –, não tem se constituído numa fonte efetiva de confiança e, assim, de capital social. De fato, os níveis de confiança não apresentam variações significativas cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 163 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes quando se diferenciam os entrevistados em termos da experiência associativa prévia; ou seja, os níveis de confiança institucional e interpessoal tendem a ser relativamente similares (baixos), tanto entre aqueles que têm experiência associativa quanto entre aqueles que não têm. Decifrando o “paradoxo”: desempenho institucional e (des)confiança 164 Ante a incapacidade do argumento de Putnam oferecer uma interpretação adequada para os dados sobre confiança coletados na pesquisa Cultura Política na RMPA, recorre-se, nesta seção, aos argumentos apresentados pelos críticos da perspectiva de Putnam, no sentido de comprovar sua sustentabilidade empírica no contexto em foco. Nesse sentido, busca-se apreender a avaliação dos entrevistados sobre o desempenho dos atores e instituições político-administrativos e, especialmente, se essa avaliação pode ser correlacionada9 aos baixos níveis de confiança identificados entre a população pesquisada. Um primeiro indicador para analisar a avaliação política dos entrevistados refere-se à forma como estes percebem o grau de abertura dos governantes para a participação da população. Conforme pode ser observado na Tabela 7, praticamente dois terços dos entrevistados (62,9%, 483 em 768) avaliam que suas opiniões, o que eles pensam, interessam pouco ou não são de nenhum interesse para os governantes. Essa informação, isoladamente, poderia expressar uma declaração de incompetência política por parte dos entrevistados. Mas, como 53,3% (409 em 768) desses mesmos respondentes afirmam ter algo a dizer sobre a ação governamental, essa suposição não se confirma. Ou seja, os entrevistados se autoavaliam como cidadãos dotados de competência para opinar sobre assuntos relativos à gestão pública e capacitados para contribuir com a ação governamental, mas têm sua participação desestimulada ou mesmo bloqueada, pelo menos em parte, pela ausência de interesse dos governantes nesta participação. Tabela 7 – Concordância com as afirmações “Eu acho que o governo não liga muito para o que as pessoas como eu pensam” e “Não tenho nada a dizer sobre o que o governo faz” – RMPA – 2007 Nível de concordância Eu acho que o governo não liga muito para o que pessoas como eu pensam Entrevistados Nº Concorda totalmente Concorda em parte Não concorda nem discorda Discorda em parte Discorda totalmente NS/NR Total 313 170 90 80 65 50 768 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 Não tenho nada a dizer sobre o que o governo faz 10 sem. 2009 Entrevistados % 40,8 22,1 11,7 10,4 8,5 6,5 100,0 Nº % – 100 106 87 149 260 66 – 13,0 13,8 11,3 19,4 33,9 8,6 fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA Essa avaliação de que na administração pública predominam as orientações particularistas é reforçada por dois outros indicadores. O primeiro deles se refere ao acesso dos cidadãos aos serviços públicos. Como a Tabela 9, para quase três quartos dos entrevistados (73,8%, 567 em 768) o acesso e/ou a qualidade dos serviços públicos é mediada por relações pessoais. Ou seja, ao invés dos princípios universalistas e igualitários de cidadania instituídos no ordenamento jurídico, a maioria dos entrevistados considera que o acesso a bens e serviços públicos municipais e a qualidade do tratamento a eles dispensado pela administração municipal depende de critérios particularistas baseados em vínculos interpessoais. Juntamente com essa avaliação de que os governantes são pouco permeáveis à participação dos cidadãos, a visão negativa sobre os atores político-institucionais se expressa no conceito dos entrevistados sobre diferentes aspectos do desempenho da administração pública. Nesse sentido, a Tabela 8 mostra que 54% dos entrevistados (415 em 768) afi rmam que os administradores públicos apresentam pouco ou nenhum comprometimento em servir ao público. Isso reafirma – de outro modo, ao particularizar a atuação dos administradores públicos – o predomínio da opinião de que os políticos estão voltados principalmente para o atendimento de interesses particulares. Tabela 8 – Avaliação sobre o comprometimento da administração pública em servir as pessoas – RMPA – 2007 165 Entrevistados Nível de comprometimento Nº 109 227 309 106 17 768 Muito comprometida De alguma forma comprometida Pouco comprometida Nada comprometida NS/NR Total % 14,2 29,6 40,2 13,8 2,2 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. Tabela 9 – Tratamento dispensado pelo serviço público municipal a uma determinada pessoa, se ele depende de quem ela conhece – RMPA – 2007 Entrevistados Dependência Nº 284 283 103 68 30 768 Definitivamente sim Provavelmente sim Provavelmente não Definitivamente não NS/NR Total % 37,0 36,8 13,4 8,9 3,9 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes Tabela 10 – Envolvimento com corrupção na administração pública brasileira – RMPA – 2007 Nível de envolvimento em corrupção Ninguém envolvido Poucos envolvidos Alguns envolvidos Muitos envolvidos Todos envolvidos NS/NR Total Entrevistados Nº 19 62 157 262 253 15 768 % 2,5 8,1 20,4 34,1 32,9 2 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. 166 O segundo indicador refere-se à avaliação da população pesquisada sobre a presença de corrupção na administração pública. A Tabela 10 mostra que 67% dos entrevistados (515 em 768) consideram que muitos ou todos aqueles que atuam na administração pública estão envolvidos em corrupção. Assim, para a maioria dos entrevistados, a corrupção não constitui um desvio de conduta eventual de um ou outro governante ou funcionário público, mas sim um procedimento institucionalizado na estrutura e funcionamento da administração pública. Por todas essas avaliações negativas, não é surpreendente o escasso interesse que a maioria dos entrevistados diz ter em relação à política (65,4% responderam ter pouco ou nenhum interesse pela política), um campo marcado por condutas moralmente condenadas e, ainda, pouco permeável aos interesses daqueles destituídos dos recursos que garantem o acesso aos bens e serviços públicos. Apresentando um baixo interesse pela política, descrentes do interesse dos governantes por suas opiniões e avaliando negativamente a atuação dos administradores cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 públicos, seria esperado que os entrevistados apresentassem o baixo nível de confiança – especialmente em relação às instituições político-administrativas – identificado anteriormente. Um argumento que poderia ser utilizado para problematizar essa conclusão seria a inversão do sentido da explicação: ao invés de tomar o desempenho políticoinstitucional como gerador do desinteresse e da desconfiança, ver o desinteresse e a desconfiança como fatores preexistentes que explicariam o desempenho – ou a avaliação da população sobre o desempenho – político-institucional. Ou seja, uma parte do argumento de Putnam poderia ser retomada, aquela que considera que o desempenho institucional é determinado pelos estoques de capital social previamente existentes. De fato, esse é um argumento relativamente constante na literatura que trata da cultura política dos setores populares no Brasil, seja nas vertentes clássicas da Cultura da Pobreza e da Teoria da Marginalidade, seja em abordagens mais recentes dos estudos sobre Transição Democrática fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA (Perlman, 1981; Moisés, 1995). Apesar de suas diferenças, essas abordagens tendem a compartilhar a concepção de que parcelas significativas da população – especialmente os segmentos ditos de “baixo refinamento político”, ou seja, aqueles de menor renda e menos escolarizados – apresentam um desinteresse inerente pela política, uma visão cínica da realidade e, no limite, um desapego em relação aos valores e condutas que definiriam uma cultura política democrática. Tal linha de argumentação, em muitos casos, acabou levando ao ponto de vista “elitista” criticado por Zaluar (1994, p. 69), segundo o qual [...] o atraso do sistema político brasileiro passa sutilmente a ser entendido (...) não como o resultado da desigualdade aberrante e do autoritarismo necessário para mantê-la, mas como um efeito perverso da existência de massas empobrecidas, que não têm ideias nem meios de ação política modernos. Os pobres passam a ser vistos, por este prisma, como inimigos inconscientes da democracia. Os dados coletados na pesquisa, no entanto, não oferecem suporte a esse argumento de que a população brasileira seria politicamente desinteressada, uma vez que os entrevistados valorizam, em diversas respostas, distintas formas de participação política. Nesse sentido, por exemplo, 60% dos entrevistados definiram o direito de “votar sempre nas eleições” como muito importante. Com maior adesão ainda entre entrevistados, encontram-se as opções relacionadas ao direito de participar diretamente do processo de discussão e decisão das ações governamentais: as alternativas “políticos escutarem os cidadãos antes de tomarem as decisões” e “dar às pessoas mais oportunidades de participar nas decisões de interesse público” obtiveram uma avaliação de “muito importante” entre 77,3% e 72,5% dos entrevistados, respectivamente. Tais resultados indicam claramente que os entrevistados valorizam tanto a consulta aos cidadãos como o envolvimento direto destes no processo de tomada de decisões. Outro dado que contesta a visão generalizada (inclusive entre os entrevistados) sobre o predomínio de um desinteresse pela política pode ser observado na Tabela 11: praticamente a metade dos entrevistados (48,4%, 374 em 768) afirmou que seria provável ou muito provável sua ação contra a aprovação, pelo Congresso Nacional, de uma lei considerada injusta. Apesar do possível viés existente na pergunta, na medida em que a definição de algo como injusto já é um elemento central para a emergência de ações de contestação (Moore Jr., 1987), essa informação indica uma disposição para mobilização em defesa daquilo que os entrevistados consideram justo, mesmo tratandose de uma instituição bastante distanciada da vida do cidadão comum como é o Congresso Nacional. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 167 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes Tabela 11 – Probabilidade de ação contra lei injusta em votação no Congresso Nacional e probabilidade de esta ação receber atenção do Congresso Nacional – RMPA – 2007 Ação contra lei injusta Nível de probabilidade Nº Muito provável Provável Improvável Muito improvável NS/NR Total Atenção do Congresso Nacional Entrevistados 149 223 267 76 53 768 Entrevistados % 19,4 29,0 34,8 9,9 6,9 100,0 Nº % 53 185 295 163 72 768 6,9 24,1 38,4 21,2 9,4 100,0 Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007. 168 No entanto, o que importa destacar é o predomínio, entre os entrevistados, de um sentimento de que é improvável ou muito improvável que os membros do Congresso Nacional deem atenção a suas reivindicações (59,6%, 458 em 768). Na medida em que a ação política depende não apenas de um sentimento de injustiça, mas também de uma crença na possibilidade de que esta ação seja eficaz para modificar a situação injusta,10 os dados ajudam a explicar os significativos obstáculos institucionais ao desenvolvimento de maiores níveis de confiança entre a população em análise. Conclusões Com base nos dados da pesquisa Cultura Política na RMPA, realizada pelo Observatório das Metrópoles, o presente artigo demonstrou a ausência de sustentação empírica para a generalização do argumento que parece ter assumido uma posição de cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 verdade incontestável entre segmentos de pesquisadores e membros de agências de desenvolvimento; qual seja: que o associativismo seria a fonte básica da confiança e, assim, de capital social. Ao contrário dessa relação causal direta e unidirecional entre associativismo e confiança, os dados coletados entre a população da RMPA mostram um resultado aparentemente paradoxal (do ponto de vista do argumento acima): níveis relativamente altos de envolvimento associativo e, ao mesmo tempo, níveis muito baixos de confiança interpessoal e político-institucional. A análise mostra, por outro lado, que se sustentam os argumentos daqueles autores que, críticos do enfoque de Putnam, defendem a hipótese de que a configuração e o desempenho político-institucional são fatores fundamentais para a determinação dos níveis de confiança em um determinado contexto social. Nesse sentido, os dados da pesquisa indicam uma forte correlação entre o baixo nível de confiança manifestado pelos entrevistados e a avaliação extremamente fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA negativa dos mesmos sobre os atores e instituições político-administrativos. Esses resultados não devem ser vistos, no entanto, como suportes para a adoção do ponto de vista de que a configuração associativa é irrelevante na análise da confiança. Tal postura representaria a repetição, de forma inversa, do mesmo equívoco cometido por aqueles que desconsideram a importância das condições político-institucionais. Retomando a citação de Berman no início deste artigo, o que se sustenta é a inexistência de um sentido pré-estabelecido normativamente na relação entre configuração associativa e confiança. Nessa perspectiva, ao contrário, a forma como a configuração associativa incide sobre os níveis de (des) confiança seria condicionada pelo contexto político-institucional. Na medida em que este argumento estiver correto, observa-se que um dos desafios centrais da consolidação democrática no Brasil encontra-se menos na ampliação do tecido associativo11 e mais na construção de instituições político-administrativas mais acessíveis, eficazes e transparentes (e, assim, confiáveis) para todas/os cidadãs/ãos brasileiras/os. Marcelo Kunrath Silva Mestre em doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil). [email protected] Soraya Vargas Côrtes Departamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil). [email protected] Notas * O presente artigo foi elaborado durante realização de pós-doutorado no Watson Institute for International Studies/Brown University. Agradeço ao CNPq e à UFRGS, que propiciaram as condições para esta atividade. (1) De fato, o conceito de capital social apresenta diversas e contrastantes definições. Não é objetivo deste artigo, no entanto, inserir-se nesta discussão conceitual. Neste sentido, aceita-se aqui a perspectiva de Putnam (1993, 1996), para quem a confiança é o componente central do capital social, visto como um bem público. Para esta discussão conceitual, ver Lin (2001), Portes (2000), Burt (2005). cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 169 marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes (2) Este survey foi realizado no período de 18 de março a 16 de abril de 2007, entrevistando 768 habitantes da RMPA, sendo 384 moradores do município de Porto Alegre e 384 moradores de outros municípios que integram a RMPA. Para uma análise sobre os limites dos dados de survey para análise de capital social, ver Foley e Edwards (1999). (3) A literatura brasileira referente às dinâmicas associativas, seja na vertente dos estudos sobre movimentos sociais, seja nas análises que adotam a abordagem da sociedade civil, tende a estar marcada por uma visão dicotômica das relações entre Estado e organizações sociais. Para uma crítica aos limites analíticos dessa perspectiva e uma defesa de uma abordagem relacional, ver Silva (2006; 2007) (4) O título desta seção é uma alusão ao já clássico trabalho de Evans; Rueschemeyer e Skocpol (1985). (5) Esse argumento, na verdade, possui uma longa linhagem. Talvez o mais clássico exemplo seja o trabalho de Norbert Elias (1993), que mostra a relação entre “civilização dos costumes” (que envolve, entre outras aspectos, o aumento nos níveis de confiança) e construção dos Estados Nacionais europeus. Para o autor, a geração da confiança necessária para o estabelecimento de relações sociais “civilizadas” dependeu, entre outros fatores, da construção de um contexto institucional específico corporificado pelo Estado moderno. (6) Neste artigo, pelos limites do material empírico disponível, não foram claramente diferenciadas as especificidades da confiança interpessoal e da confiança institucional. Para uma crítica a essa falta de diferenciação na literatura sobre capital social, ver Smith (2006). 170 (7) Como destaca Santos (2006, p. 180) “O custo do fracasso das ações coletivas pode ser bastante elevado, com significativa deterioração do status quo dos participantes, circunstância suficientemente ameaçadora para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados. Ser pobre, no Brasil, é uma condição associada à altíssima taxa de aversão ao risco e à opção por estratégias conservadoras de sobrevivência”. (8) Moisés (2005) critica uma apreensão unidimensional da confiança institucional, diferenciando cinco níveis de confiança política. Pelas limitações do material disponível para análise, não foi possível atender às distinções analíticas propostas pelo autor. (9) De fato, os dados disponíveis não possibilitam analisar os mecanismos explicativos da correlação entre desempenho institucional e níveis de confiança. Assim, o presente artigo se limita à tentativa de demonstração empírica de tal correlação, sem abordar sua explicação causal. Para uma distinção entre correlação e explicação causal, ver Dessler (1991). (10) Como salientam McAdam; McCarthy e Zald (1999, p. 26), existe um elemento mediador entre oportunidade, organização e ação, a saber, os significados compartilhados e conceitos por meio dos quais as pessoas tendem a definir sua situação. Resulta imprescindível que as pessoas, pelo menos, se sintam afetadas negativamente por uma situação determinada e acreditem que a ação coletiva pode contribuir para solucionar esta situação. Faltando alguma dessas duas percepções, resulta altamente improvável que as pessoas se mobilizem, ainda que contem com a oportunidade de fazê-lo (destaque nosso). (11) Estudos recentes (IBGE; IPEA; ABONG; GIFES, 2008) mostram um significativo processo de crescimento do associativismo no Brasil. cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA Referências BERMAN, S. (1997). Civil society and the collapse of the Weimar Republic. World Politics. v. 49, n. 3, pp. 401-429. BOSCHI, R. R. (1987). A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. São Paulo/Rio de Janeiro, Vértice/IUPERJ. BURT, R. S. (2005). Brokerage and closure: an introduction to social capital. 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Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 172 cadernos metrópole 21 pp. 155-172 10 sem. 2009 O confronto do Orçamento Participativo com as tradições representativas em São Paulo Paulo Edgar da Rocha Resende Resumo Instrumentos de participação direta da cidadania como o Orçamento Participativo podem representar grande inovação na tomada de decisões de governos locais, favorecendo a transparência nas instituições, a inclusão de novos sujeitos políticos e a justiça social na distribuição de investimentos públicos. O alcance dessa participação, conduzida pelo Estado, terá sempre o limite estipulado pelo formato das instituiçoes liberais e os interesses dos líderes que controlam essas instituições políticas. Neste artigo, são analizados como e por que o Orçamento Participativo da Prefeitura Municipal de São Paulo (2001-2004) sofreu determinados contingenciamentos. Os resultados da pesquisa apontam como principais fatores as estratégias eleitorais e de governabilidade tomadas pelo partido e líderes políticos, as alianças de governo, a diversidade do perfil de líderes políticos, as disputas por influenciar o orçamento público e o clientelismo enraizado nas práticas políticas locais. Abstract Instruments of direct citizen participation, such as the Participatory Budget, may represent a big innovation in the local governments’ policymaking. Usually, they work by favouring more transparency in the political institutions, the inclusion of new political subjects and more social justice in the distribution of public resources. The scope of this participation, conducted by the State, will always be limited by the design of liberal institutions and the interests of leaders controlling these political institutions. This article discusses how and why the Participatory Budget of São Paulo’s municipal government (2001-2004) suffered certain constraints. The research results point to the electoral and governability strategies taken by the political party and leaders, the governmental alliances, the diversified profile of political leaders, the competition to shape the public budget and the clientelism rooted in local political practices, as the main causal elements. Palavras-chave: democracia participativa; instituições liberais; governo local; cidadania; empoderamento. Keywords: participatory democracy; liberal institutions; local government; citizenship; empowerment. cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 paulo edgar da rocha resende Introdução 174 Os instrumentos de participação cidadã enfrentam enormes desafios e contradições nas instituições políticas liberal-representativas. Ao mesmo tempo em que grupos políticos no estado conseguem abrir espaços para aumentar a influência dos cidadãos nas decisões políticas, essa abertura é obtida somente de forma dosada e controlada. O formato liberal das instituições estatais e os interesses dos líderes políticos que chegam através da representação a controlá-las são os fatores fundamentais que, de maneira deliberada ou não, limitam um “empoderamento” mais amplo e radical dos cidadãos na política institucional. Experiências de participação têm nas ultimas duas décadas se diversificado e difundido por governos locais de diversos países do mundo. O Brasil, muitas vezes tido como referência pela fama que ganhou o Orçamento Participativo (OP) no município de Porto Alegre, foi palco de um dos maiores desafios já visto à participação institucional, ao desenvolvê-la no orçamento público de uma cidade com as dimensões e complexidades que representam São Paulo (Oliveira et ali., 2001). Apesar de notáveis resultados positivos que evidenciavam os esforços da Coordenação que administrava o programa, o OP de São Paulo encontrou limitações bastante importantes ao seu desempenho descentralizado e à efetividade de suas decisões. Esses limites não foram causados por falhas metodológicas ou por falta de compromisso político daqueles que o desenvolveram, senão pelo programa estar ausente do planejamento central de atuações da cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 Prefeitura. Tal ausência deu lugar a estratégias eleitorais e de governabilidade tomadas pelo Partido dos Trabalhadores (da então prefeita Marta Suplicy, 2001-2004) e líderes locais, que envolveram alianças com quase todos os partidos presentes na Câmara Municipal e resultou no acesso de enorme diversidade de líderes políticos a cargos executivos. Com isso, o clientelismo esteve longe de ser erradicado, os projetos de consolidação de força política do partido ganharam prioridade e a participação ficou relegada ao segundo plano no planejamento da cúpula governamental. Neste trabalho, são apresentados resultados de pesquisa desenvolvida, em nível de mestrado, sobre as particularidades do caso de São Paulo, embora entendemos que entraves à participação são intrínsecos a qualquer contexto local de institucionalidade liberal-representativa. O que não significa inexistência de enorme variedade de resultados no desempenho de mecanismos institucionais de participação cidadã (Wampler, 2003). Apesar de que todas as experiências são limitadas, caso contrário estariam substituindo grande parte dos agenciamentos representativos das demandas sociais, esses limites se constituem de modo diferenciado e em aspectos distintos da relação Estado-sociedade, conforme as especifi cidades locais. Ao cartografarmos a relação entre governantes e governados, estamos especialmente atentos às possibilidades de liberdade dos cidadãos, que tornam sempre plausíveis a imprevisibilidade das linhas de fuga, dos fluxos das múltiplas vias, que escapam das somas, consensos, acordos e linhas duras previstas e postuladas pelos liberais (Deleuze e Guattari, 1988; Foucault, 2003). o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo Temos consciência de que ao enfocar os obstáculos político-institucionais detectados no Orçamento Participativo de São Paulo, são deixados de lado outros importantes fatores que também podem incidir negativamente no desempenho de um instrumento participativo, como os relativos ao contexto cultural, social e econômico. A opção aqui é por identificar aqueles elementos no âmbito da própria estrutura estatal, que abrem e circunscrevem oportunidades de participação direta dos cidadãos nas decisões político-institucionais. A participação desafiando o liberalismo Desde o princípio, o sistema político liberal caracterizou-se mais pela salvaguarda de interesses e direitos privados e individuais, como a propriedade e a segurança, que pela promoção de interesses públicos e coletivos. Buscou-se assegurar em primeiro lugar que os indivíduos pudessem estar pacificamente separados e atuando por conta de seus interesses pessoais, para que pudesse admitir que se unissem e lutassem em defesa da comunidade, da justiça ou da cidadania (Barber, 1984). O formato das instituições políticas, com seus dispositivos constitucionais e o monopólio estatal da violência, o testifica. O sistema de democracia liberal estabilizou a tensão entre democracia e capitalismo através da [...] prioridade conferida à acumulação de capital em relação à redistribuição social e pela limitação da participação cidadã, tanto individual, quanto coletiva, com o objetivo de não “sobrecarregar” demais o regime democrático com demandas sociais que pudessem colocar em perigo a prioridade da acumulação sobre a redistribuição. (Santos e Avritzer, 2005. pp. 59-60) De fato, para autores liberais da teoria democrática contemporânea, a participação cidadã, se nutrida e maximizada, pode pôr em perigo a estabilidade do sistema, diminuir o consenso nas normas e enfraquecer a poliarquia.1 A abertura dos governos locais à participação cidadã representa uma inegável ampliação dos espaços de prática cidadã e da própria democracia. Essa ampliação está desafiando uma reconstituição das anteriores margens do sistema políticos no que diz respeito à participação cidadã: limites no “empoderamento” de cidadãos e de líderes políticos para que as bases das quais depende seu funcionamento não sejam alteradas. Nessas bases, fundamentais do Estado liberal, não se incluem a participação ativa e constante dos cidadãos no poder político, denominada por Benjamin Constant – um dos pais intelectuais do liberalismo – liberdade dos antigos, em referência à democracia ateniense. O liberalismo seria a fundação da liberdade dos modernos, também denominada liberdade negativa, que é a liberdade individual de fazer tudo o que não afete a liberdade do outro em não fazer o que não é de sua própria vontade (Berlin, 1969). Tal liberdade se afirma na autonomia individual em agir sem interferências externas. O que o sistema político tenta possibilitar pelo Estado mínimo e a segurança provida por suas instituições a um desfrute pessoal e pacífico de bens privados (Bobbio, 1989). cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 175 paulo edgar da rocha resende 176 Autores precursores do liberalismo, como Constant e mais contemporâneos como Berlin, entendem que a liberdade negativa é contraditória com a liberdade positiva, entendida como a capacidade individual de autogovernar-se. Se aceita interferências externas, desde que decididas de baixo para cima, a partir desses indivíduos comuns. Para esses autores, a existência de uma liberdade impossibilitaria a existência da outra. O que fez com que a participação dos cidadãos no Estado se constituísse como a mínima necessária para evitar a concentração de poder dos mandatários governamentais, ao invés de se ampliar com objetivos de maximizar o autogoverno (Bobbio, 1989; Macpherson, 1978). O conflito está justamente no que se entende como a finalidade última da participação cidadã. As lutas pela ampliação e cumprimento efetivo dos chamados direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração tem sido incessantes nos últimos 150 anos. Hoje, com amplo reconhecimento formal desses direitos em diversos países, ainda se podem encontrar elementos no Estado e na sociedade que impedem uma efetivação real desses direitos. A respeito da ampliação dos direitos civis e políticos, de primeira geração, por exemplo, verifica-se que apesar da existência de líderes políticos dispostos a ceder espaços aos cidadãos na tomada de decisões, a cúpula do partido em que esses líderes se apóiam frequentemente está mais preocupada com sua concentração de poder e o fortalecimento de suas lideranças. Não se trata de conspiração contra a participação. É apenas condicionamento às regras do jogo, em que a sobrevivência político institucional depende de disputas eleitorais e alianças com partidos, grupos sociais e econômicos. cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 Nesse jogo político, os mecanismos de participação entram pela transversal e ganham dimensão restrita o suficiente para não conturbar o funcionamento do sistema. Há questões sobre as quais a participação política dificilmente conseguirá alcançar. Os considerados inalteráveis e invioláveis direitos fundamentais do homem – a vida, a segurança, a propriedade privada – são garantidos constitucionalmente. Assim também são os demais elementos fundamentais para garantir a limitação do poder estatal: o controle do poder executivo pelo legislativo; o controle judiciário do parlamento sobre a constitucionalidade das leis; a descentralização estatal com relativa autonomia ante o governo central e um poder judicial independente do poder político (Bobbio, 1989). Tomando a democracia em sua acepção liberal, método de prevenção do abuso de poder – através de eleições para controle de líderes –, a participação direta pode ser remédio complementário à participação indireta, eleitoral. Mas quando atribuímos à democracia um significado mais amplo, de igualdade não somente formal e jurídica, como também econômica e social, reconhecemos que essas igualdades democráticas só seriam alcançáveis pela maximização da participação cidadã a todas as questões que afetam ao povo como coletivo. Nesse caso, o obstáculo a superar é a própria existência constitucional do Estado Liberal, que mantém uma distribuição desigual da propriedade, é incapaz de possibilitar igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos e tenta pacificar essa desigualdade através do monopólio da violência em mãos do Estado (Macpherson, 1978; Poulantzas, 1981). Como visto, o sistema político vigente se compõe de elementos liberais e o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo democráticos, e que, apesar de complementários em muitos sentidos, ambos os elementos têm diferencias que podem chegar a ser antagônicas. O conflito da participação nesse âmbito se estabelece não somente com a forma tradicional na qual vem funcionando o sistema político, senão com os próprios fundamentos, apresentados mais acima, pelos quais o sistema se constitui. Esse desdobramento nos permite concluir que os limites políticos à ampliação da participação se deriva principalmente de ordem estrutural, com efeitos no formato das instituições e nos interesses de líderes políticos. É evidente que essas determinações não são absolutas, apesar de predominantes. Não só as instituições podem ser reformadas para se adaptar às exigências de uma democracia participativa, como também os próprios líderes partidários não se unificam todos em torno de uma única racionalidade pré-determinada pelas práticas e normas institucionais.2 Se não fosse assim, não haveria experimentos participativos que desafiassem as rotinas liberal-representativas de fazer política. Nosso foco é buscar ilustrar com o Orçamento Participativo de São Paulo como essas consolidadas rotinas colocam freios às inovações de proximidade Estadosociedade. A aposta pela participação cidadã Levando em conta a complexidade social, as especificidades de grupos minoritários, as carências da população de baixa renda e a deficiência na representação de seus interesses, o distanciamento entre representantes e representados, tudo com a consequente apatia pela democracia, verifica-se a urgência de incorporar mais efetivamente a sociedade às decisões políticas (Barber, 1984; Santos e Avritzer, 2005). A baixa participação e a iniquidade social estão de tal modo interligadas que uma sociedade mais equânime e mais humana exige um sistema de mais participação política. (Macpherson, 1978, p. 98) Com o envolvimento dos cidadãos na elaboração de políticas públicas, muitos governos locais têm encontrado soluções para melhorar a qualidade da democracia e dos serviços públicos, facilitando a atenção aos fragmentos da sociedade historicamente menos atendidos e com mais demandas acumuladas (Fung e Wright 2003). Com a participação, a identificação de problemas sociais tem sido mais ajustada à realidade, permitido maior transparência e controle da cidadania aos governos locais, gerando relações de proximidade e confiança. Estão sendo concedidos novos direitos aos cidadãos, com ampliação da liberdade e da responsabilidade, maior justiça social na distribuição de recursos públicos e fortalecimento do espírito cívico e cooperativo numa cidadania crescentemente ativa (Abers 2001; Avritzer, 2002; Baiocchi, 2005). Com a democracia participativa, os cidadãos deixam de ser meros receptores e passam a ser importantes protagonistas das políticas públicas (Oliveira et ali., 2001). Como adequação, os instrumentos de participação direta demandam novas rotinas administrativas, visando a compatibilizá-los com as instituições representativas. cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 177 paulo edgar da rocha resende 178 Entre os diversos mecanismos de empoderamento e participação,3 o Orçamento Participativo se destaca por transferir aos cidadãos o poder de decidir sobre o tema mais relevante da administração municipal: o orçamento para investimentos públicos em obras e serviços. A disputa entre atores políticos, sociais e econômicos pelo poder de influenciar o orçamento municipal já é tradicionalmente elevada. Transferir aos cidadãos esse poder intensifica ainda mais a concorrência e a complexidade da composição do processo orçamentário. Em uma cidade como São Paulo – com enormes desigualdades sociais e complexas interações entre interesses públicos e privados, além de intensas disputas por espaços e afirmações de poder –, esses instrumentos oferecem enorme potencial de reinventar a esfera pública, equilibrando o acesso ao poder entre diferentes grupos sociais e de atender mais eficientemente aos que necessitam mais atenção e investimentos governamentais (Oliveira et ali., 2001; Santos e Avritzer, 2005). Executado anualmente entre 2001 e 2004, o processo do Orçamento Participativo de São Paulo baseou-se na realização de assembléias simultâneas em todos os distritos municipais, para as quais a população era convidada a participar propondo obras e serviços e elegendo delegados com mandato imperativo. As propostas mais votadas, de todas as regiões e setores de investimento municipal, eram analisadas pelo governo quanto à viabilidade técnica e hierarquizadas de acordo com critérios de justiça social.4 O procedimento de análise, negociação com o governo e ponderação entre propostas eram acompanhados pelos dois níveis de representantes populares – delegados, através do Fórum de Delegados, e conselheiros, cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 através do Conselho do Orçamento Participativo (CONOP), instância máxima de decisão popular do OP – eleitos nas assembléias e fóruns distritais e municipais. O processo se concluía em cada ano com a elaboração do Plano de Obras e Serviços, que se inseria na Lei Orçamentária Anual indicando os recursos a serem investidos pela Prefeitura no ano seguinte. A Lei era efetivada depois de aprovada pela Câmara Municipal, em sessão em que os conselheiros do CONOP tinham enorme disposição em assistir e pressionar os vereadores pela aprovação integral das propostas do OP . A São Paulo de Marta, contextualizada A perversa desigualdade na distribuição de direitos e recursos públicos A desigualdade social em São Paulo tem proporções gigantescas e o desequilíbrio territorial na distribuição de infraestruturas e equipamentos públicos entre centro e periferia é alarmante. A metrópole pode ser considerada uma das cidades mais complexas do mundo atual, pelos abismos existentes entre misérias e luxos, autoritarismos e libertações, organização espacial altamente planejada e auto-organização desordenada, mestiçagens étnico-culturais e higienizações sociais. Um dos maiores cenários de desigualdade econômica e de direitos políticos, sociais e culturais. Enquanto a cidade produz quase 10% do PIB nacional 6 e dispõe dos melhores o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo hospitais e universidades do país, modernos complexos arquitetônicos e centros com tecnologias de ponta, nas áreas periféricas faltam as mais essenciais infraestruturas urbanas. Desde asfalto, esgoto e canalização de córregos até hospitais, escolas e pontos de ônibus. Apesar da enorme carência por investimentos públicos nas áreas periféricas, a segregação espacial entre centro-periferia não é um retrato perfeito da distribuição de riqueza e bem-estar entre áreas da cidade. A partir dos anos 90, “os diferentes grupos sociais estão cada vez mais próximos, mas separados por muros e tecnologias de segurança, tendendo a não interagir, embora próximos” (Bógus e Pasternak, 2006, p. 26) A pobreza de uma parte da população que está justo ao lado da riqueza produzida pelos grandes negócios e serviços especializados, é terreno fértil para a prática política clientelista. Além das precárias condições de vida, o baixo nível de instrução educacional da maior parte dessa população facilita que se tornem vítimas de promessas de candidatos a cargos políticos. Entre tantas carências, a realização de qualquer obra já costuma ser uma grande realização na percepção de muitos cidadãos marginalizados, o que desperta o interesse pela manipulação em determinados pseudorepresentantes. As decisões no Orçamento Participativo tendem a corrigir o destino dos investimentos públicos com bastante eficácia e precisão de onde está localizado o problema e quais são os mais urgentes. Pesquisas recentes 7 têm confirmado a capacidade redistributiva desses mecanismos, que melhoram os gastos públicos e permitem maior acesso a direitos fundamentais a populações marginalizadas. Precário histórico de participação No que diz respeito ao histórico da participação no município de São Paulo, se destacam os conselhos gestores de políticas públicas. Esses órgãos estáveis se caracterizam pela precária efetividade e devolução das decisões tomadas e pela seleção das entidades sociais participantes. Em comparação com os Orçamentos Participativos, pode-se concluir que a segmentação do debate reivindicativo por temas específicos impede uma visão geral da administração pública nos participantes e inibe a integração planejada das políticas municipais, já que os órgãos são setorizados (Tatagiba, 2004). Os conselhos gestores acabam funcionando mais como órgãos técnicos para auxiliar o governo na tomada de decisões que como canais de interlocução dos cidadãos para transmitir suas demandas para a Prefeitura, o que se pode concluir por a participação estar dirigida a entidades, ao invés de a cidadãos individualmente, e pelo elevado nível educativo e de renda dos conselheiros (Coelho e Veríssimo, 2004). A autonomia dos conselhos ante o governo também era prejudicada pelo fato de que os presidentes de mais da metade dos conselhos ativos na cidade de São Paulo, durante o governo de Marta Suplicy, eram designados pelo responsável político da respectiva Secretaria do executivo municipal.8 Com o Orçamento Participativo, os conselhos ganharam nova funcionalidade, integrando a partir do segundo ano representação no CONOP e participando da elaboração do Plano de Obras e Serviços. Antes da gestão de Marta, a única tentativa pós a redemocratização que tentou desenvolver outros instrumentos de cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 179 paulo edgar da rocha resende 180 participação cidadã foi do governo de Luiza Erundina, também do PT, entre os anos de 1989 e 1992. Os espaços de participação descentralizada, chamados Núcleos Regionais de Planejamentos, foram executados nas 20 Administrações Regionais e tinham a tarefa de elaborar o Orçamento Público do ano seguinte. O projeto acabou sendo desestruturado pela Prefeitura em apenas 18 meses depois do início de suas atividades. Como alternativa, a então prefeita pôs em funcionamento um programa centralizado de audiências públicas sobre o orçamento municipal que não obteve grande adesão por parte dos cidadãos e carecia de potencial deliberativo (Couto, 1995; Sánchez, 1997). Há vários motivos que explicam o fracasso daquela tentativa de gestão participativa descentralizada no primeiro governo do PT no município. Um dos principais problemas teria sido que a equipe de governo de Erundina estava presa a uma visão tecnocrata da gestão pública, sem ânimos para desenvolver um programa de participação verdadeiramente aberto e “empoderado”.9 Mas também se verificou certa ausência de racionalização dos interesses dos distintos movimentos sociais participantes com as necessidades distritais e municipais, que dificultou uma coordenação conjunta das demandas sociais com o planejamento (Kowarick e Singer, 1994). Faltou a estruturação de um órgão que implementasse metodologias participativas que fossem capazes de coordenar os procedimentos administrativos do governo local com as propostas dos cidadãos nas Administrações Regionais. Evidenciou-se um conflito de competências entre os Secretários Municipais de áreas temáticas – Educação, Saúde, Habitação, etc. – e os dirigentes cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 responsáveis por áreas territoriais – as Administrações Regionais – na canalização das pressões dos movimentos organizados para a efetivação das políticas públicas municipais (Dias, 2006). Rolo compressor em chaves políticas A coalizão montada pela Prefeita Marta Suplicy foi composta inicialmente pelo PT, PC do B, PCB e o minúsculo PHS, constituindo uma frente na Câmara Municipal com 19 vereadores, que logo se acrescentou dois mais do PSB. No primeiro ano eram três partidos na oposição: PMDB, PP e PSDB. A partir do segundo ano, só se manteve o PSDB (ibid.). A construção do poder petista em São Paulo foi impressionante em termos de governabilidade. Em 2004, nada menos que 78% dos vereadores formavam parte de sua base aliada, o que significa 46 de 55 representantes políticos no legislativo. Com isso, a Prefeito conseguiu aprovar a maior quantidade de projetos do executivo em 15 anos: 57% dos submetidos à Câmara. Ao mesmo tempo, os projetos de autoria dos próprios vereadores obtiveram aprovação de somente 16,8% entre 2001 e 2003.10 Considerando que São Paulo é o maior colégio eleitoral do país e sua importância também se constitui pela potência na produção econômica e intelectual, com efeitos na opinião pública de grande parte do país, as eleições municipais são fundamentais para os interesses nacionais dos partidos políticos. Além dos votos, do apoio da imprensa e dos formadores de opinião, há também as colaborações financeiras das empresas às campanhas eleitorais. Vale lembrar que os últimos dois presidentes da República tiveram o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo a metrópole como base política. Construir um governo forte no município não garante o sucesso de uma candidatura para âmbito nacional, mas colabora com a construção de apoios eficazes. Isso significa que as políticas interpartidárias de fortalecimento político desenvolvidas no município têm grande probabilidade de fazer parte de uma estratégia mais ampla de alcançar o poder federal. Práticas e instituições brecando a participação O Orçamento Participativo de São Paulo foi especialmente vigoroso no que diz respeito aos âmbitos temáticos sob deliberação popular;11 aos privilégios concedidos à participação dos mais marginalizados12 e na formação/qualificação de delegados e conselheiros, eleitos para negociar com o governo13 (Sánchez, 2004b). Por outro lado, a experiência teve importantes limitações, como a escassa divulgação do programa e de suas realizações,14 o limitado alcance da convocatória de participantes,15 baixa execução das propostas aprovadas em algumas áreas16 e pequeno volume de recursos alocados17 (Bello, 2007; Resende, 2008). Para decifrar as causas dos problemas apontados acima, foi necessário verifi car a interação do programa formal de participação com as principais instituições representativas locais. Considerando como variável independente os interesses eleitorais e de permanência no poder e como variável dependente a potencialidade da participação cidadã, identifi camos que essas instituições – o partido político à frente da administração da Prefeitura, o executivo e o legislativo municipal – deveriam ser analisadas nos seguintes elementos: a) Relação da cúpula e dos quadros do partido com o programa de participação; b) Dimensão e importância do programa dentro das atuações da Prefeitura e c) Admissão ou interferências das demais forças políticas e atores legislativos do município no programa de participação. Com isso, encontramos na exploração do Orçamento Participativo de São Paulo quatro efeitos resultantes da integração entre inovação participativa e tradição representativa, que impossibilitaram desenvolvimento mais amplo e eficiente da participação cidadã. O quinto elemento apresentou potencial de prejudicar o programa, mas foi evitado pelos acordos de aliança partidária. 1) Subordinação do programa de participação cidadã a estratégias de visibilidade e apoio político; 2) Clientelismo, como canal de endereçamento de demandas dos cidadãos; 3) Política de alianças e coalizão de governo, com a contraparte de cargos do executivo; 4) Perfil heterogêneo de líderes do governo; 5) Interesse de vereadores pela composição do orçamento público.18 Estratégias de visibilidade e apoio político As estratégias políticas, com finalidades eleitorais ou de aquisição/afirmação de poder, adotadas pelo partido que administrava o governo local, foram um dos principais elementos de obstrução político-institucional do potencial de alcance do Orçamento cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 181 paulo edgar da rocha resende 182 Participativo de São Paulo. Consideramos a forma como atuações determinadas por lideranças do PT repercutiram na experiência, debilitando-a em diversos âmbitos e possibilitando a ocorrência de elementos limitadores, que desenvolveremos nos próximos tópicos. Muitas das estratégias políticas adotadas nas instituições representativas fogem das regras formais estabelecidas e são conformadas de acordo com os contextos de balança de poder, de redes políticas (policy networks), e interesses determinados dos atores. Blanco formula duas questões cruciais para entender os componentes explicativos a que nos referimos: Por que os políticos valorizam a participação? Por que, por exemplo, sem ter a obrigação legal de fazer Orçamentos Participativos, fazem tal programa? (Blanco et ali., 2005). A questão ganha relevância quando levamos em conta, por exemplo, resultados de estudos demonstrando que os instrumentos de participação cidadã têm efeitos incertos nas eleições (Anduiza et ali., 2005). À diferença de outras políticas públicas, colocar em funcionamento instrumento de participação, independentemente do grau de sua eficiência e efetividade, não parece ter grande impacto eleitoral a favor do partido que lidera o município. Entender os motivos que podem fazer com que um líder ou um grupo político ponha em funcionamento um instrumento de participação nos ajuda a compreender o porquê de não fazê-lo. À nossa leitura, os mesmos motivos para não fazer participação servirão também para aproximar-nos a uma explicação de por que são postos limites nos instrumentos participativos. A pesquisa conduzida por Blanco (Blanco et ali., 2005,) detectou três grandes razões pelas cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 quais é mais provável o surgimento dessas experiências de inovação democrática: 1) Razões de perfil ou de trajetória da participação cidadã. Estão relacionadas com a estrutura social da organização e da lógica subjetiva dos promotores da participação. Dividem-se em duas categorias: a) organização que promove: concepção ideológica da democracia, composição social do partido, organização interna do partido; b) pessoa que promove: concepção pessoal de democracia, experiência política, trajetória político-associativa, formação pessoal. 2) Razões estruturais ou de contexto. Dependem das condições “ambientais” propícias para o surgimento de novas oportunidades de participação política no município: tamanho do município, características socioeconômicas, correlação de forças políticas, sistema de partidos, cultura participativa e associativa da população, antecedentes participativos, existência de instituições que promovem, estimulam ou assessoram a participação; 3) Razões estratégicas ou instrumentais. São compostas pelos interesses dos atores políticos que põem em funcionamento a participação: a) reforçar-se politicamente buscando obter créditos eleitorais, criando alianças e cumplicidade com os movimentos sociais; reforçar-se dentro da Prefeitura ou equipe de governo ou alterar o balanço de poder na sociedade; b) melhorar a tomada de decisões para legitimar publicamente decisões já efetivadas, para deslocar as responsabilidades à cidadania, para mediar conflitos entre coletivos sociais opostos ou para aumentar a eficiência das decisões. Algumas dessas razões estratégicas ou instrumentais, especialmente as relacionadas o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo com a possibilidade de obtenção de benefícios próprios, são utilizadas por autores do âmbito das teorias de rational choice, como Navarro (1999), para explicar os problemas de origem política da participação cidadã direta. Para esse autor, a única variável independente capaz de explicar o fenômeno são os interesses dos partidos e líderes políticos locais em fortalecer-se no poder. O limite dessa perspectiva se manifesta em restringir a diversidade de lógicas possíveis que justifiquem a atitude, seja em prol ou em contra, desses atores políticos aos instrumentos de participação. Não apenas são mais diversos os interesses que podem afetar a participação, senão que os próprios impulsores são mais complexos e nem sempre se compõem de atores unitários e movidos sob uma única razão, como veremos mais abaixo no caso de São Paulo. Nossa perspectiva vai mais ao encontro da que assimilamos de Blanco: o impulso e o empenho de atores políticos para implementar e fortalecer programas de participação estão determinados pela combinação de elementos do contexto histórico, institucional, político, social e cultural; das circunstâncias estratégicas desses atores e também de seus perfis político-ideológicos. Combinando esses fatores entre si e entre os diferentes líderes políticos no governo local, se condicionará o resultado do programa de participação cidadã. No caso de São Paulo, foram detectadas atuações centralizadoras da cúpula do PT, com perspectivas de fortalecer-se no poder e construir bases de apoio para futuras eleições – particularmente as presidenciais de 2002 e as municipais de 2004 –, que acabaram reduzindo a importância do Orçamento Participativo no processo de decisões da Prefeitura (Wampler, 2003). Essa conclusão pode ser constatada a partir de: a) troca de lideranças durante a campanha eleitoral – de Félix Sánchez, da Democracia Socialista, para Rui Falcão, mais próximo da Prefeita e dos líderes do campo majoritário; b) insignificante infraestrutura dada para o começo dos trabalhos do OP em 2001; c) status de Coordenadoria e não de Secretaria para sua administração; d) centralização e decisão técnica para investimentos de grande visibilidade, como os CEUs; 19 e) ampla política de alianças, que implicava o apoio de quase todos os partidos àquela gestão e ao PT nas eleições municipais seguintes (Resende, 2008). É evidente que essas atuações do partido foram determinadas com base no contexto social, político e econômico de São Paulo naquele momento e pelo perfi l político-ideológico de líderes da tendência majoritária. Também podemos deduzir que esses líderes visavam à concentração de poder e ao êxito eleitoral. Entretanto, permitiram o funcionamento e até o crescimento do poder de influência do Orçamento Participativo, apesar das limitações. O que a análise nos permite é visualizar a complexidade na qual um setor do partido e da prefeitura empregou forças no programa, enquanto a cúpula o aceitava com reservas. Está claro que a execução do OP foi baseada em motivações diversas as quais não parecem incluir o fortalecimento do poder próprio daqueles que o conduziram. Seus entraves ocasionados pela cúpula até que poderiam ser entendidos dessa forma, embora uma maior divulgação do processo de participação e apoio para sua execução tivessem elevada capacidade de trazer benefícios eleitorais sob a bandeira da eficácia e modernização cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 183 paulo edgar da rocha resende da administração pública. O mais provável é que, devido ao perfil ideológico dos líderes da cúpula do PT e da Prefeitura de São Paulo e considerando seus vínculos sociais, a preferência tenha sido pelas alianças com setores mais conservadores da sociedade e do espectro político. Esses setores apresentam sérias resistências aos instrumentos de ampliação democrática, por oferecerem o risco de desviar o foco das decisões políticas da classe mais privilegiada – onde seus vínculos mais fortes estão constituídos –, em direção aos estratos sociais de mais baixa renda, podendo afetar privilégios, investimentos e status-quo. A cultura clientelista e a busca personalista por votos 184 O clientelismo como prática política se constitui quando o controle dos cidadãos às estruturas governamentais é limitado ou inexistente, facilitando o uso privado de recursos públicos. Quando entendido como apoio em forma de voto pelo cidadão ao representante político que lhe concedeu benefícios privados, sua existência só é possível em governos representativos (ver Leal, 1986). Apesar da ampla utilização de agentes captadores de votos, estes raramente conseguem a realização dos investimentos públicos prometidos à sua clientela (Whitaker, 1992). É importante lembrar que, no Brasil, práticas de clientelismo derivaram de relações “político-pessoais”, em que o “cidadão-cliente” estava preso ao “coronel” ou líder local por laços extraeconômicos de fidelidade.20 Foi sustentado, sobretudo, cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 pela dependência de enormes contingentes populacionais de baixa renda e marginalizados aos recursos e investimentos estatais, o voto direto em listas abertas, o voto obrigatório e a opacidade das instituições políticas (Faoro, 1958; Leal, 1986; Carvalho, 1997). Na cultura urbana no Brasil, a prática se configurou como “processo de incorporação das massas populares na política, sob o controle das classes economicamente dominantes” (Kowarick; Camargo et ali., 1976, p. 108). O clientelismo é inimigo direto dos instrumentos de participação cidadã, enquanto esses instrumentos atuam suprimindo tais práticas de favoritismo nas instituições públicas. A incompatibilidade entre ambos é inequívoca, dado o conflito imanente entre interesses privados e interesses públicos, entre “homens naturais” e “homens artificiais”,21 entre instituições políticas opacas e instituições políticas permeáveis ao controle e influência direta dos cidadãos. Os efeitos do clientelismo nas mesmas estruturas administrativas que o Orçamento Participativo são percebidos principalmente na concorrência pela canalização de demandas sociais aos investimentos públicos. Muitos cidadãos e líderes comunitários recebem incentivos para confiar suas petições em diálogos privados e bilaterais com líderes políticos, em troca da mobilização de votos para seus “padrinhos”. Como consequência, o orçamento público municipal pode acabar tendo parte de sua composição baseada em método personalista (Resende, 2008). Em São Paulo, durante o período estudado, essas práticas que pervertem a finalidade pública das instituições governamentais acabaram desestimulando cidadãos o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo a participar das assembléias do OP, e fez com que as subprefeituras tivessem dois tipos concorrentes de demandas a atender:22 de vereadores aliados, que transmitiam as demandas de comunidades em que tinham laços pessoais com movimentos e líderes comunitários, e as decididas por cidadãos, através de assembléias do OP (Resende, 2008). Além disso, nos dois últimos anos da administração, a Secretaria Municipal de Habitação incorporou militantes da UMM, União dos Movimentos de Moradia, em seu quadro de funcionários, facilitando que tivessem canal exclusivo para encaminhar demandas à Secretaria (Cavalcanti, 2006). O clientelismo está tão consolidado no município que Rizek chega a questionar “se a experiência do OP, por suas fragilidades e apesar de ter se confrontado com as práticas clientelistas, não acabou por ter de administrar aquilo que escapou dessas práticas” (2007, p. 146). Independentemente da centralidade que faltou ao Orçamento Participativo no governo municipal, o clientelismo desestimula a ação coletiva, a organização e a mobilização social. Em meio àquelas práticas, os laços entre indivíduos se estabelecem em torno do acesso a um líder, ao invés de buscas por cooperação horizontalizada (Abers, 1998). Como já mencionado, entre participação e práticas clientelistas, estabelece-se relação de soma zero, em que o êxito de um corresponde ao fracasso do outro. Como exemplo, a pesquisa da autora demonstra que o Orçamento Participativo de Porto Alegre pôde evitar o clientelismo de áreas mais pobres da cidade, com o fortalecimento da sociedade civil e a mobilização dos cidadãos para novas arenas reivindicativas. As políticas de alianças e coalizões de governo No agigantado multipartidarismo brasileiro é quase impossível governar sem a formação de alianças, como em geral ocorre na maioria dos países de democracia representativa multipartidária. Embora no presidencialismo o chefe do executivo não dependa de aprovação do legislativo para a posse do cargo, resulta praticamente fundamental a obtenção de apoio de maioria dos parlamentares para a obtenção de uma governabilidade razoável. Nos sistemas parlamentaristas com mais de dois partidos, essas coalizões são condições quase imprescindíveis para a existência do executivo. Para a própria democracia, alianças e governos de coalizão são importantes recursos para evitar o excesso de poder dos representantes executivos, funcionando como espécie de contrapeso. As alianças geralmente podem ser definitivas, enquanto durar o mandato, ou temáticas, por projetos ou tipos de projetos (Dodd, 1976; Laver e Schofield, 1990). As trocas de apoios partidários ou de parlamentares por cargos no executivo é prática comum nos legislativos brasileiros. Permite melhores perspectivas para a governabilidade, embora colabore com a existência de práticas clientelistas. Os partidos mais suscetíveis a alianças por cargos são aqueles cujo fisiologismo torna imprescindível a permanência no governo.23 Além de pouco aptos a permanecerem na oposição, estes partidos costumam carecer de vínculos amplos com movimentos sociais. Com o objetivo de obter sólida governabilidade na Prefeitura de São Paulo e apoios para as eleições seguintes, a cúpula cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 185 paulo edgar da rocha resende 186 do Partido dos Trabalhadores fez acordos com quase todos os partidos com representação na Câmara Municipal. A coalizão permitia aos legisladores designar pessoas de confiança para cargos políticos do executivo municipal, sobretudo nas subprefeituras. Isto gerou problemas na execução descentralizada do programa participativo, afetando a convocação de participantes, a organização de assembléias, a execução de obras atribuídas às subprefeituras e certa permissividade às práticas clientelistas de vereadores aliados. Também foi verificado que determinados vereadores pressionavam os subprefeitos para executarem obras e serviços de interesse da comunidade com que tinham vínculos. A atitude prejudicou uma maior atenção dos órgãos descentralizados às propostas do OP e seccionou o compromisso do representante político com toda a cidade (Resende, 2008). Considerando que muitos indicados pelos vereadores a ocupar cargos públicos não tinham afinidade com a tendência da prefeita, já que de outro modo não seria necessário “comprar” o apoio do parlamentar através de cargos, a eficiência na gestão da máquina pública ficou seriamente comprometida com as alianças. O Orçamento Participativo, como programa de inovação da prática democrática, que rompe com a tradição política e requer importantes mudanças nas atuações e concepções de gestão pública, foi efetivamente obstaculizado, por sua execução ser dependente do poder de decisão dos contemplados com cargos. Mesmo havendo setores do governo que promoveram a participação, buscando neutralizar oposições de membros da coalizão, a inovação encontrou resistência em setores da Prefeitura administrados por cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 representantes resistentes a um maior envolvimento da cidadania em decisões importantes (ibid.). Soluções plausíveis para conciliar o Orçamento Participativo com as coalizões políticas seriam a concessão de cargos para setores que não afetem a participação, assim como a submissão do acordo de coalizão à não debilitação de nenhum aspecto do programa participativo. Isso demandaria compromisso maior da cúpula da prefeitura com o OP e organização institucional que permitisse aos líderes do executivo municipal garantir os setores da administração envolvidos na participação cidadã. Entretanto, o custo político de limitar o poder de influência de aliados necessita uma dupla consideração que leve em conta aos interesses estratégicos, a correlação de forças, os objetivos do instrumento de participação, o compromisso com a cidadania e suas demandas mais urgentes e a disposição em superar as práticas políticas predominantes. A heterogeneidade da equipe de governo É importante destacar que a falta de consenso ao programa participativo na equipe de governo não é gerada apenas pela ampla aliança interpartidária. A própria composição social do partido que controla a Prefeitura pode resultar em grande diversidade de perfis ideológico-administrativos na equipe de governo, que, em muitas ocasiões, provoca notável heterogeneidade no desenvolvimento das políticas públicas. Em grandes estruturas administrativas, o problema exige especial organização institucional, ou de autoridade dos líderes, para evitar que aliados o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo deixem de se comprometer com a política participativa. Na realidade, a heterogeneidade da equipe de governo, seja ocasionada pela aliança ou pelos quadros do partido, pode causar obstruções. Entretanto, consideramos que programas como o Orçamento Participativo são especialmente mais sensíveis, devido a três fatores: a) o programa, muitas vezes, é posto em funcionamento sem uma lei que o regulamente; b) é um dispositivo de composição e definição transversal a diversos ou a todos os setores de atuação municipal; c) os ocupantes de cargos públicos eletivos buscam muitas vezes contar com estratégias pessoais de canalização de demandas cidadãs, mantendo laços personalistas com movimentos sociais e organizações comunitárias. O encarregado de um setor, com elevada capacidade de investimentos da Prefeitura, independentemente de que seu partido seja líder do governo ou aliado, naturalmente terá expectativas de usar seu poder para decidir onde investir parte do dinheiro público que lhe cabe administrar. O enfrentamento com o programa participativo será claro, além disso, se seu perfil e o contexto sociopolítico de sua área administrativa não lhe motivar a métodos de decisão participativos. Em São Paulo, durante o período estudado, a heterogeneidade de líderes do PT ocupando cargos mais altos do executivo municipal afetou o modo com que propostas aprovadas pelos cidadãos no OP fossem efetivadas. Algumas secretarias, como a de Educação, buscavam executar quase a totalidade das propostas. Outras, como a Secretaria de Saúde, em algumas ocasiões, selecionava propostas que correspondiam com o que já havia sido decidido como prioritário pelos técnicos. A Secretaria de Habitação concedia maior atenção a canais paralelos de participação, como o Conselho Municipal de Habitação, onde havia grande presença de associações com laços estreitos com o secretário. Este e outros setores, como meio-ambiente, transportes e segurança, deixaram de executar grande parte ou a totalidade das propostas aprovadas pelo Orçamento Participativo (Resende, 2008; Bello, 2007; Rizek, 2007). É evidente que o esforço para garantir o bom funcionamento da participação não depende somente da aceitação de técnicos e líderes do governo sobre determinado projeto. Depende, principalmente, de que a cúpula do executivo esteja suficientemente empenhada em potenciar o programa. Esse empenho deve ser refletido desde a formação do governo, com seleção de líderes administrativos preparados e comprometidos com a participação, até a formatação institucional das instâncias na qual o OP se insere.24 Conflito do OP com o Legislativo: a disputa pelo orçamento O interesse de vereadores pelas emendas à Lei Orçamentária é bastante notável no sistema político brasileiro, visando a permitir a reeleição. Com isso, os vereadores de grandes cidades se vêm obrigados a empreender estratégias eleitorais durante seu mandato no legislativo. Muitos mantêm contatos estreitos com comunidades que lhes podem render votos, buscando beneficiá-las com investimentos e demonstrando aos moradores seu poder de influência na administração pública municipal. Quando cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 187 paulo edgar da rocha resende 188 o executivo abre brechas, os vereadores se apropriam de bairros e fazem com que a Prefeitura execute obras e serviços que lhes poderão proporcionar benefícios eleitorais. Quando o executivo não concede esse poder ao vereador, de qualquer forma, o parlamentar ainda pode propor emendas ao orçamento público, com a finalidade de exibi-las à sua base eleitoral. O não cumprimento da emenda pelo executivo mostrará a falta de compromisso não do vereador com a comunidade, mas sim da Prefeitura (Whitaker, 1992). Ainda que pareça legítimo e recomendável que um vereador, como representante político do legislativo, busque auscultar demandas de cidadãos diretamente nas comunidades, o afã de beneficiar-se eleitoralmente pode comprometer a eficiência administrativa. O planejamento estratégico do município pode acabar sendo substituído pela fragmentação do território em áreas de influência de vereadores. “A racionalidade político-social tende a se submeter à racionalidade político-eleitoral, seja na perspectiva individual do vereador, seja dentro de uma estratégia político-partidária” (ibid., p. 28). O resultado é que vereadores deixem de ser representantes do povo para se tornarem “delegados dos interesses de certas áreas da população (bairros, categorias profissionais, grupos étnicos ou religiosos, etc.)” (Kowarick; Camargo et al., 1976, p. 109). As relações entre Orçamento Participativo e a Câmara dos Vereadores são “inevitavelmente tensas”, porque “o OP cria um estorvo ao exercício das práticas tradicionais de clientelismo” e introduz “critérios públicos, objetivos e impessoais de tomada de decisão a respeito da distribuição de cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 recursos públicos” (Pontual, 2005, p. 112). Entretanto, há medidas possíveis para que a relação com o Legislativo seja mais saudável, como, por exemplo, permitir que parlamentares participem de todo o processo do OP, sem que desfrutem do direito de voto ou que o Conselho Municipal do Orçamento Participativo (CONOP) tenha representante da Câmara Municipal. Formalmente, o papel do legislador é “a produção de leis, a discussão dos temas e prioridades da cidade, assim como a aprovação, o acompanhamento e a fiscalização da execução orçamentária” (ibid., pp. 112113). De acordo com Pontual, alguns vereadores do PT estariam dispostos a analisar a proposta orçamentária, composta pelo Conselho do OP, e ao encontrar algum desacordo, a discutiria e sugeriria alterações aos cidadãos participantes. É necessário destacar que o diálogo entre vereadores e conselheiros do OP pode resultar levemente dificultoso. Muitos dos participantes do OP mais politizados e independentes demonstram ter receios de perder a autonomia por suas decisões e serem cooptados por representantes políticos. Na Prefeitura de São Paulo administrada pelo PT de Marta Suplicy, a equipe da hierarquia mais alta do governo resolveu parcialmente a questão da conflitividade dos vereadores com o OP a través da ampla política de alianças. Os cargos no executivo viabilizados pelas alianças eram em troca do total apoio de vereadores às propostas de lei do executivo. Os legisladores seguiram propondo emendas ao orçamento, elaborado pelo CONOP e por órgãos do executivo, mas já sabiam que suas alterações não seriam implementadas pelas Secretarias centrais da Prefeitura. As emendas, nesse caso, tinham o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo objetivo apenas figurativo, com a função de serem exibidas nas comunidades em que possuíam mais vínculos. A essas comunidades, como já comentado anteriormente, se buscava beneficiar através de pressões diretas às subprefeituras para execução de obras e serviços pequenos (Resende, 2008). Conclusão Os limites político-institucionais à participação em São Paulo, gerados pela democracia liberal-representativa, como a centralização de decisões na cúpula do partido, as coalizões de governo e o clientelismo, embora não sejam intrínsecos ao funcionamento de democracias liberais, são gerados pela própria lógica de funcionamento desse sistema político. A disputa eleitoral para seleção de representantes políticos para cargos majoritários e proporcionais é sua dinâmica fundamental e concentra grande parte de interesses de políticos profissionais. Mas não são apenas os interesses de poder de representantes políticos que determinam seus comportamentos no governo. É necessário considerar, fundamentalmente, a cultura política em que estão inseridos, as regras das instituições políticas em que atuam, a ideologia político-administrativa, o desenvolvimento histórico que compõe suas preferências, assim como os laços que possuem com grupos organizados da sociedade e o nível associativo e reivindicativo dos cidadãos. Diferente da corrupção, que é claro desvio de condutas, a centralização de decisões em cúpulas e as práticas personalistas de busca de apoios eleitorais são comportamentos, até certo ponto, aceitáveis por diversos setores da sociedade brasileira e caracterizados como estratégia política. Ao mesmo tempo em que as democracias liberais pretendem que a maioria dos cidadãos tenha parte de seus interesses representados em governos eleitos, provocam também a falta de representação de outros cidadãos com baixa capacidade de influência. Esses cidadãos, ou minorias, são potenciais vítimas de promessas e favores de caráter clientelista. Mas não são apenas vítimas. Aqueles grupos organizados que preferem o caminho mais curto de acesso ao poder, para encaminhar suas demandas, constituem-se em importantes coagentes do clientelismo. Desenhos institucionais como os do sistema político brasileiro, de eleições em listas abertas, conseguem facilitar a existência de práticas políticas em que interesses pessoais de permanência no poder se sobrepõem ao bem comum. Seguramente, reformas no desenho das instituições políticas poderiam mudar ou suavizar esses conflitos. Mas não se pode afirmar que eliminariam qualquer conflito de interesses entre cidadãos, dispostos a participar diretamente de decisões, e representantes com receios de ceder o poder obtido pelas eleições. Em nossa perspectiva, as regras formais das instituições políticas não podem ser analisadas isolando-as de práticas dos atores, pois aquelas só são relevantes para os cidadãos, pelo uso que se faz delas. Ainda que os conflitos possam ser suavizados por gestão pública eficiente e atenta a essa questão, seu aparecimento seguirá eminente. É importante enfatizar que não consideramos que a participação cidadã seja incompatível com o sistema liberal-representativo. Mas sim que o fluxo desse sistema cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 189 paulo edgar da rocha resende 190 político, de reprodução por via eleitoral, tem elevada capacidade para gerar práticas políticas que são contraditórias com uma ampla e efetiva participação direta de cidadãos nas decisões públicas. O que não significa que essas tensões possam ser eliminadas por determinados formatos institucionais e práticas políticas coerentes com a participação. Significa que, paradoxalmente, são obstáculos fundamentais para a intensificação ou radicalização da prática democrática, ao mesmo tempo em que se constituem em instituições imprescindíveis para a existência dos instrumentos de democracia participativa. Os elementos de conflito entre a participação e a dinâmica das instituições liberalrepresentativas, que revelamos a partir do caso de São Paulo, não são absolutos nem exclusivos, mas servem para comprovar a existência desse tipo de conflito. Com isso não queremos dizer que os instrumentos de participação não devam ser desenvolvidos ou aperfeiçoados. Ao contrário, os atores políticos, interessados em pôr em funcionamento um avançado instrumento de participação poderão levar em conta esses obstáculos. O que oferece condições de favorecer a articulação dos elementos necessários para potenciar essas experiências, assim como para reformar as instituições representativas, de forma que possibilite uma mais radical ampliação dos espaços democráticos. O número crescente de experiências participativas prova que é possível conciliar participação com representação. Os efeitos positivos dessas experiências na sociedade demonstram que são recomendáveis à gestão pública. Aperfeiçoam o sistema representativo e ampliam espaços de prática ativa da cidadania. Muitas dessas experiências, cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 entretanto, estão em fase germinal e necessitam empenho de representantes políticos e de cidadãos, assim como pesquisas científicas, para que se fortaleçam como instrumentos importantes de tomada de decisões políticas. Se for correta a máxima de La Boétie, “cada povo tem o governo que merece”, dependerá mais dos cidadãos que da classe política, que haja ágoras, em que todos possam participar direta ou semidiretamente de decisões que afetam a todos. A pressão da sociedade organizada e de indivíduos autônomos tem que ser suficientemente forte para que esses espaços de empoderamento sejam abertos e potencializados. Estaria a maioria dos cidadãos preparada e interessada em forçar os governos a abrirem espaços em que possam participar ativamente de suas decisões mais relevantes? A pergunta se faz mais relevante se consideramos que a maioria nem sequer confia ou acredita no sistema, basta ver as pesquisas mais recentes do Latino-barômetro.25 Estará o destino de nossos governos condenado ao que a cultura liberal provocou na maioria dos cidadãos, apatia política e desinteresse pela comunidade? É evidente que a história ainda não terminou. As experiências de Orçamento Participativo podem representar o início de uma fase em que os governos vão se tornando cada vez mais abertos e próximos aos cidadãos. Dependerá das pressões da sociedade para evitar que esses instrumentos se tornem mais uma ferramenta legitimadora de decisões já tomadas, docilizando possíveis contrariedades. O grande desafio para os instrumentos de participação dos cidadãos nas decisões políticas é lograr que as forças de fluxo bottom-up sejam no mínimo paritárias às o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo forças estatais, de ordem top-down . Ou, aludindo a Deleuze e Guattari (1988), que as estruturas “arbóreas” da burocracia estatal sejam pouco a pouco carcomidas pelas redes “rizomáticas” de criação e ação política coletiva. A democracia participativa, em sua modalidade de instrumentos institucionais de participação cidadã, apesar de seu potencial de transformação social e da prática política, parece se constituir mais no âmbito do porvir previsível e retilíneo, ainda que por linhas flexíveis, que do devir transgressor e imprevisível foucaultiano (Foucault, 1979 e 2003). Isso se deve principalmente por ser posta em prática e controlada a partir do Estado, dentro de uma ordem institucional dominada de checks and balances, em que se evita qualquer excedente de poder popular que possa desestabilizar a ordem do sistema estabelecido. A democracia liberal, mesmo integrando dispositivos participativos aos representativos, está sempre disposta a determinado limite de incorporação da vontade popular. Dimensão que uma democracia radical, muito além dos Orçamentos Participativos, tende a romper. A expectativa que buscamos alimentar com a participação e incidência direta dos cidadãos no Estado é que essa participação saia do plano administrativo, da organização procedimental, e maximize a afirmação plano político horizontalizado até a imprevisibilidade da consistência democrática. O que envolveria diversos aspectos da vida cotidiana, sem carecer de uma institucionalidade limitadora. As incertezas de tal cenário trazem riscos, mas também a possibilidade de radicalização da democracia, desconstruindo, em algum grau, a separação entre Estado e sociedade. 191 Paulo Edgar da Rocha Resende Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, possui Diploma de Estudos Avançados em Ciências Políticas pela Universidade Autônoma de Barcelona e é Doutorando em Políticas Públicas e Transformação Social nessa mesma universidade. Bolsista do programa de Formação de Professores Universitários (FPU) do Ministério de Inovação e Ciências da Espanha, colabora como pesquisador no Instituto de Governo e Políticas Públicas (IGOP) (Barcelona, Espanha). [email protected] cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 paulo edgar da rocha resende Notas (1) Nos referimos sobretudo a Dahl (1956), Sartori (1962), Schumpeter(1966) e Huntington, Crozier e Watanuki (1975). Para uma crítica a esses autores desde uma perspectiva participativa, ver, entre outros: Pateman (1970) e Macpherson (1978). (2) Para uma elaborada crítica ao racionalismo individualista e à teoria de Rational Choice, ver Shapiro e Green (1994). (3) Para uma ampla tipologia de instrumentos de participação, ver OIDP, 2007. (4) Esses critérios serviam para priorizar a distribuição de obras e serviços entre os 96 distritos, ponderando por: a) porcentagem da população do distrito que participou das assembléias; b) população total do distrito e c) carência distrital do serviço ou equipamento público. (5) Sobre as dinâmicas de funcionamento e os significados do Orçamento Participativo de São Paulo, ver Sánchez (2004a) e para versões mais extensas Sánchez (2004b) e Dias (2006). (6) Fonte: IBGE, “Posição ocupada pelos 100 maiores municípios em relação ao Produto Interno Bruto”, 2003. (7) Marquetti (2003); Campos, Marquetti e Pires (2007). (8) Sobre a composição social dos conselhos gestores na cidade de São Paulo, ver Tótora e Chaia (2004). (9) De acordo com Félix Sánchez, em entrevista concedida a Dias (2006, p. 42). 192 (10) Para efeitos de comparação, a quantidade de projetos submetidos pelo executivo municipal foi quase o dobro da prefeitura do Rio de Janeiro no mesmo período. Sobre o poder adquirido pelo executivo do Governo Marta, ver Valor Econômico, 29/09/2004: “Rolo compressor de Marta é recordista de aprovação na Câmara” (http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias. asp?NOTCod=152999) acessado em 13/11/2007. (11) Saúde e Educação no primeiro ano e todas as áreas de investimento municipal em seu terceiro e quarto ano de funcionamento. (12) Os chamados “segmentos sociais vulneráveis” tinham a seguinte facilidade para eleger delegados: um delegado eleito por cada voto para pessoas com deficiência; um delegado por cada três votos para população indígena e pessoas em situação de rua; um delegado para cada cinco votos para os segmentos de mulheres, população negra, jovens, idosos e gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT). Crianças e adolescentes eram representados através de processo exclusivo denominado OP Criança. Todos os demais adultos eram eleitos pela proporçao de um delegado para cada vinte votantes nas assembléias territoriais deliberativas. (13) A formação de delegados, conselheiros e técnicos do governo era realizada através de cursos, seminários e oficinas preparatórias. (14) Por falta de apoio da cúpula da Prefeitura, a divulgação do programa ficou a cargo da Coordenadoria do Orçamento Participativo, ao invés da Secretaria de Comunicação, que costumava ser a normal encarregada da tarefa. (15) A chamada para participações era realizada pela Coordenadoria do OP e seus órgãos descentralizados em subprefeituras. Além de faixas nas ruas, boletins periódicos, carros de som, anúncios radiofônicos e folhetos nas subprefeituras, a partir delas se contatavam os cidadãos telefonicamente para divulgar a data e local das assembléias. cadernos metrópole 21 pp. 173-196 10 sem. 2009 o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo (16) Com a exceção das áreas de saúde e educação, que obtiveram índices superiores ao 70%, todas as demais tiveram um índice de execução cujo topo, segundo números oficiais, foi de 56% da área de habitação até o ano de 2004. (17) De acordo com a Prefeitura, em 2003, foi destinado ao OP de São Paulo 7,7% do orçamento municipal. Em estudo independente (Bello, 2007), para o ano de 2004, as cifras confiáveis permitem estimar esse valor em 3,91% do total do município. (18) Esse elemento teve seus efeitos limitados no Orçamento Participativo de São Paulo, pela política de coalizão adotada pela Prefeitura. (19) Centros Educacionais Unificados. Grandes empreendimentos arquitetônicos com ensino primário, fundamental e médio. Foram elaborados pela equipe do governo, que também determinou que seriam instalados em bairros de elevada exclusão social. Aos participantes do OP apenas coube definir em quais bairros seriam instalados o equipamento, com base nas (20) Está, portanto, correlacionado com categorias amplamente trabalhadas pela literatura brasileira, como o coronelismo e o patrimonialismo. (21) Categorias hobbesianas para designar, respectivamente, indivíduos com atuações que visam a atender a interesses próprios e indivíduos que atuam visando ao interesse público. (22) As subprefeituras tinham um limite orçamentário que lhes permitia certa autonomia ante os órgãos centrais da prefeitura, na execução de pequenas obras e serviços. (23) Sobre as motivações dos partidos na formação de alianças, ver Budge e Laver (1986) e Laver e Schofield (1990). (24) Sobre formatos institucionais político e administrativos da participação cidadã, ver Ramió e Salvador (2007). (25) Disponível em: http://www.latinobarometro.org Referências ABERS, R. (1998). From clientelism to cooperation: local government, participatory policy and civic organizing in Porto Alegre, Brazil. Politics and Society, vol. 26, n. 4, pp. 511-537. ________ (2001). Inventing local democracy: grassroots politics in Brazil. Boulder, Westview. ANDUIZA, E. et ali. (2005). “Les eleccions y la participació”. In: FONT, J. (org.). La política i la participació: politics, partits i eleccions. Barcelona, Editorial Mediterrània. AVRITZER, L. (2002). Democracy and the public space in Latin America. Princeton, Princeton University Press. BAIOCCHI, G. (2005). Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford, Stanford University Press. BARBER, B. (1984). Strong democracy: participatory politics for a new age. 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Sugere ainda um debate sobre abordagem territorial onde se considere a influência que os atores políticos locais e suas bases eleitorais exercem no processo. Ao final, expectativas e limitações são apresentadas, delineando-se as condições favoráveis e desfavoráveis à implantação de estruturas de gestão territorial, levantadas a partir do estudo comparativo entre o Programa Governo nos Municípios, em Pernambuco e o Projeto Meu Lugar, em Santa Catarina. Abstract The conceptual and institutional questions of territory management are discussed based on the recent experience in Brazil, in the federal and state levels, focusing on social participation. The analysis reflects on political and institutional factors which determine the performance capacity of councils and forums, in the perspective of influencing decisions and public actions. The article also approaches the influence of local political actors and their electoral bases on the process. Expectations and limitations are presented and favorable and unfavorable conditions to the implementation of territory management structures are delineated. These conditions were verified in a comparative study between Programa Governo nos Municípios (Program Government in Municipalities), in Pernambuco and Projeto Meu Lugar (Project My Place), in Santa Catarina. Palavras-chave: território; gestão pública; descentralização; participação social. Keywords: territory; public management; decentralization; social participation. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes Introdução1 198 O presente trabalho explora as condições que favorecem a implantação de políticas públicas de âmbito territorial, quando se desenham modelos de natureza participativa. A questão da gestão territorial se coloca hoje como um dos grandes desafios das políticas públicas brasileiras, fato atestado pela ocorrência, nos últimos quinze anos, de um número considerável de políticas propositoras de uma integração do território2 como forma de gerar desenvolvimento. Dentro desse contexto, a concepção de território é compreendida como um processo que envolve práticas e processos decisórios estratégicos e a implementação de ações públicas, independentemente de fronteiras políticoadministrativas pré-definidas pela estrutura federativa. Ou seja, de um lado, a gestão territorial aparece como um mecanismo de alocação ótima de recursos, e, de outro, como um fórum privilegiado de participação para a população. Levando em consideração as concepções expostas, resolvemos, preliminarmente, realizar uma reflexão sobre o tema, com base em duas dimensões distintas. A primeira, moldada por uma visão mais voltada à eficiência, vê o território como uma forma de otimização da alocação dos recursos em seus mais variados sentidos. Essa abordagem vem sendo defendida, tanto por razões econômicas, de racionalidade na distribuição dos recursos, quanto por razões políticas, de controle e accountability,3 configurando os territórios como locus específico para realizar a junção dos interesses. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 Tomando por referência essa concepção, evidenciamos a análise das barreiras e facilitadores institucionais à implantação efetiva de uma política nacional de ordenamento territorial, a partir de questões sugeridas pela Ciência Política, como a influência que os atores políticos locais e suas bases eleitorais exercem no processo, ou seja, a conexão eleitoral e a estrutura federativa, balizadores importantes da formulação e implementação de políticas públicas no Brasil. A segunda dimensão situa a participação no centro do debate e a concebe como uma forma de empoderamento da comunidade, bem como uma forma de aumentar o capital social. Desse modo, a participação se transforma numa das molas mestras do desenvolvimento local sustentável, em contraposição aos processos exógenos e verticalizados de desenvolvimento. O artigo está dividido em três partes: na primeira, realizamos uma breve revisão da literatura recente sobre o tema; a segunda parte traz informações e questões, no âmbito da institucionalidade criada na perspectiva de uma abordagem territorial, para o planejamento de ações públicas no país. Na última seção é discutida a existência de condições favoráveis à implementação de políticas de cunho territorial, quando se leva em conta a importância do recorte cultural e político previamente constituído nas regiões. São considerações formuladas a partir do estudo comparativo entre o Programa Governo nos Municípios, experimentado em Pernambuco, no período de 1999 a 2002 e o Projeto Meu Lugar, em implementação, em Santa Catarina. participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? O PGM, implantado na gestão Jarbas Vasconcelos, foi apresentado à população como um instrumento de gestão pública participativa com o objetivo principal de discutir com os atores locais as prioridades de investimento para cada Região de Desenvolvimento (RD) do Estado. Um dos objetivos do programa foi demonstrar a importância da descentralização das ações e da potencialidade das regiões, com vistas ao que foram realizadas plenárias de discussão abertas com o público convidado, inicialmente em cada uma das dez, posteriormente em cada um das doze Regiões de Desenvolvimento, em que foi dividido o território do estado. Ver Lubambo e Coelho (2005). O Programa de Descentralização Santa Catarina é uma experiência mais recente, implantado a partir de 2002. A ideia da descentralização do governo capaz de promover desenvolvimento regional e um ambiente de cooperação e governabilidade originou um modelo básico a partir da constituição dos Conselhos de Desenvolvimento Regional, vinculados às Regiões de Desenvolvimento (30), com as Secretarias de Desenvolvimento Regional então criadas para mediar entre as demandas locais e o Governo Estadual. (Governo de Santa Catarina. Disponível em: http://www.sc.gov.br/ Acesso em 28 de janeiro de 2008). Vale a pena salientar que este trabalho dá início a uma agenda de pesquisa, na qual as categorias analíticas – gestão territorial e participação – mostram-se imbricadas com relação aos seus resultados e à cadeia de causalidade dos fenômenos. Nesse eixo lógico, as teorias ou modelos ausentes de seu desenvolvimento permanecem como uma meta de investigação. Gestão territorial e participação política: questões centrais Ao falarmos de gestão territorial, falamos de um espaço para a consecução de objetivos, especialmente nas políticas públicas. Ao definir território, o Ministério da Integração Regional define o território como [...] o espaço da prática. Por um lado é o produto da prática espacial: inclui a apropriação efetiva ou simbólica de um espaço, implica a noção de limite – componente de qualquer prática – manifestando a intenção de poder sobre uma porção precisa do espaço. (SDR/ MI/IICA, 2006a) Essa forma de definição ultrapassa as barreiras do território como definidos no federalismo brasileiro, podendo o conceito ser aplicado a uma unidade menor que o município, igual ao município, maior que o município, igual a partes de um grupo de municípios em estados distintos, etc. Uma iniciativa de gestão territorial no país impõe uma reconstrução do território pré-existente, através de projeto de lei enviado ao Congresso Nacional. Uma série de problemas previsíveis e não previsíveis, inerentes ao processo político-administrativo, acaba decorrendo dessa iniciativa, uma vez que interesses de mais de um ente federativo estarão envolvidos. As questões dificultadoras da implantação de uma política de gestão territorial referemse, sobretudo, à possibilidade de mudança na distribuição das recompensas entre os cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 199 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 200 atores do sistema político, até então razoavelmente estável e articulado, estabelecidas nas oportunidades de realocação dos investimentos no território. Iremos inicialmente ancorar a discussão no conceito das arenas políticas, conforme discutido por Löwi (1964,1985). Nesse contexto, iremos discorrer sobre os principais fatores determinantes da estruturação das arenas, bem como sobre a tipologia de políticas. Em seu trabalho, Löwi divide as políticas (policy arenas, no original) em quatro tipos fundadores: as políticas distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas. Dentro dessa perspectiva, cada uma das arenas políticas acarreta características e comportamentos próprios por parte dos atores.4 As políticas distributivas são descritas por Frey (2000) como políticas caracterizadas por um baixo grau de conflito e alto grau de inclusão, onde um grande número de pessoas é beneficiado com recursos de baixo poder de transformação. Em oposição a estas, as políticas redistributivas se caracterizam pela alocação de recursos entre grupos distintos da sociedade, como classes sociais e grupos específicos. Já as arenas das políticas regulatórias, estas se referem à atuação de determinados setores da sociedade, em larga escala grupos de atividades econômicas e sua relação com o Estado, o que gera certa indeterminação dos graus de conflito entre elas, dependentes de fatores como grau de competição e diferença na adaptação às novas regras. O último tipo de arena é a das políticas constitutivas, e especificamente se refere ao tema tratado. As políticas constitutivas são políticas que modificam as regras do jogo, questões ligadas ao desenho ou à estrutura cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 de funcionamento do governo que refletem a distribuição de poder e autoridade entre organizações na burocracia governamental. Essas políticas geram com isso estruturas de incentivos próprias, diferentes das estruturas previamente existentes. Ainda segundo Frey (ibid., p. 224): A política estruturadora diz respeito à própria esfera da política e suas instituições condicionantes (polity) refere-se à criação e modelagem de novas instituições, (...), de cooperação e de consulta entre os atores políticos. Dessa forma, a geração de uma nova política constitutiva, como a de gestão territorial, leva à definição ou modificação das regras do jogo político, no qual “em geral costuma-se discutir e decidir sobre modificações do sistema político apenas dentro do próprio sistema político-administrativo” (ibid., p. 225). Ou seja, os atores que irão definir as modificações desse tipo de arena são, nesse caso específico, entes federativos, uma vez que o ordenamento territorial irá modificar a estrutura de alocação e repasse de recursos do Governo federal para com estados e municípios e, por conseguinte, reorganizará os interesses políticos nesses territórios. Em se tratando desse tipo de arranjo, no Brasil, pelo menos dois impactos são esperados: o primeiro deles diz respeito à chamada “conexão eleitoral”, em que a ligação entre o deputado e o eleitor/município se dá através de um sistema complexo de recompensas pela apresentação de emendas individuais de orçamento, que envolve apoio ao executivo, eleição de deputados e manutenção do poder político nas prefeituras.5 O participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? processo descrito por Ames (1995, 2003) dá conta de um sistema de recompensas em que o deputado que “traz obras” para um determinado município, através de emendas individuais do orçamento, tem sua recompensa através da sua reeleição. Especificamente Ames cria uma tipologia de deputados por suas estratégias eleitorais, e como estratégia, os dois tipos das categorias dos deputados “dominantes” tendem a usar o município como conexão para os eleitores.6 Noutra vertente, Cain, Ferejohn e Fiorina (1987) apostam em uma conexão personalizada, onde o eleitor identifica seus representantes diretamente, através das obras que o “seu deputado” trouxe através de uma conexão personalizada. Pereira e Rennó (2001) testam as hipóteses de ambos e com algumas ressalvas, afirmam que “os interesses locais prevalecem na arena eleitoral porque as demandas locais parecem ter impacto mais forte no sucesso eleitoral”. Com isso, a execução de emendas legislativas se torna central no processo de governo brasileiro, onde o executivo federal usa a liberação de emendas ao orçamento para “dirigir” as votações de projetos de seu interesse, utilizando tais emendas como moeda de troca (Pereira, 2000). A hipótese da “conexão eleitoral”, quando analisada com relação à constituição de uma política de gestão territorial, pode levar a uma perda de poder dos deputados e dos prefeitos, em relação aos municípios. Como já apontado por Arretche (2004), no Brasil inexistem pesquisas conclusivas acerca do efeito dos partidos sobre as relações verticais da federação (no caso, estado e municípios), mas continua prevalecendo certo consenso a respeito da positividade das alianças para o estreitamento das relações federativas. Nessa perspectiva, acreditamos que a implantação de um programa de descentralização política demande uma composição de interesses entre atores políticos municipais, de modo a viabilizar tal programa no âmbito dos vários projetos eleitorais. Essa hipótese analítica será conduzida no estudo mais adiante. Como segundo ponto de partida, nesta revisão de literatura, será feita uma análise das considerações correntes sobre participação política e a emergência de processos que levem ao empoderamento das comunidades e ao aprimoramento dos instrumentos de accountability. Atualmente, há um debate sobre a importância dos processos participativos no contexto de algumas experiências de gestão territorial em distintos espaços do país. Nessa perspectiva, busca-se analisar os elementos e as condições que interferem e favorecem a articulação, nos diversos níveis, entre os fóruns e conselhos criados e entre estes e os agentes responsáveis pela distribuição dos benefícios, por programas que anunciam o desenvolvimento como resultado da gestão territorial. Os conselhos de representação da sociedade civil tornaram-se um componente essencial do desenho institucional das políticas públicas no Brasil. Os conselhos difundiram-se de tal maneira que é rara uma política pública cujo mecanismo regular de operação não conte com pelo menos um conselho cuja existência se deva a uma exigência da legislação. Para as mais diversas políticas e nos três níveis de governo, tornaram-se umas espécies de elemento constitutivo de seu desenho institucional. Como resultado da generalização da exigência dos conselhos (Abramovay, 2001; cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 201 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 202 Melo, 2003), observa-se a emergência de instâncias desta natureza também para as políticas e programas de desenvolvimento territorial. Ou seja, a inclusão de mecanismos de participação política para as experiências de gestão territorial não surgiu por qualquer manifestação espontânea da sociedade civil. São, antes, como requisitos de programas na maioria das vezes financiados por agências internacionais7 e pelo governo federal. A exigência da participação da comunidade beneficiária no financiamento e manutenção do projeto figura entre as recomendações8 de muitos dos programas de desenvolvimento, como pressuposto de que produziriam os incentivos necessários à geração de capital social e, por consequência, desenvolvimento econômico local (Tendler, 2000). Ainda que se reconheçam relativos ganhos advindos de estratégias de participação nas decisões alocativas dos programas, inspiradas na teoria do capital social, uma gestão territorial envolve uma política de natureza distributiva (Löwi, 1964), isto é, que aloca benefícios de modo desagregado para distintas regiões e localidades, e, pela condição participativa, representados por atores sociais também diversos. A identificação de elementos indicativos de como articular a ação das instâncias colegiadas para a gestão territorial, de forma mais integrada e cooperada nos recortes municipais, estadual e federal revela-se, desse modo, em uma contribuição à consolidação e aperfeiçoamento das práticas associadas a esse tipo de planejamento e de execução de programas de desenvolvimento. A maior parte do debate público no país tem abordado as transformações institucionais no plano da descentralização da gestão cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 que vem ocorrendo por duas vias principais: em primeiro lugar, pela ampliação da participação nas decisões públicas através de mecanismos de consulta que envolve a população diretamente, mediante a instituição de fóruns e plenárias locais9 e, em segundo lugar, pelo fortalecimento dos mecanismos de controle de acompanhamento de gestão territorial, mediante a criação de instâncias de deliberação e consulta10 que aglutinam representantes dos interesses diretamente envolvidos, como também de entidades da sociedade civil, provedores de serviços e clientelas. Contudo, a despeito da quase unanimidade em torno dos efeitos positivos da descentralização decisória, a instituição dos Orçamentos Participativos, dos Conselhos Setoriais, dos Fóruns de Discussão ou de outros Mecanismos de Controle Social ainda não se firmou como um fator imprescindível para o melhor desempenho da gestão. Ou seja, tem-se afirmado que tais experiências se constituem num efetivo fortalecimento da capacidade governativa nas diversas instâncias, mas até que ponto essa capacidade se constitui num patrimônio cívico (capital social) ou se evidencia, circunstancialmente, conforme as singularidades políticas de cada gestão? Além disso, como atestar a associação dessas inovações com os níveis de empoderamento da sociedade local? Conforme o próprio debate teórico atual sugere (Lubambo, Coelho e Melo, 2005 e Arretche et alli, 2006), dificuldades maiores ao empoderamento surgem na mesma medida em que se expressa a resistência da sociedade à participação. Essa resistência apresenta-se, principalmente, como resultado de uma herança cívica desfavorável, ainda presente em muitas regiões e localidades participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? do país, como os pequenos municípios do Norte e do Nordeste brasileiro. Por um lado, assiste-se a uma reduzida credibilidade no Estado, abalada por uma sucessão de governos descomprometidos com o bem-estar da população e, por outro, a uma ausência de experiências locais de associativismo (baixo capital social). Expressam-se os limites das burocracias acostumadas aos antigos modelos e resistentes a estratégias de reengenharia institucional por parte do Estado. De modo similar, reconhecem-se limites contidos na representação e na participação popular intermediada por associações de qualquer espécie, sobretudo por aquelas oriundas de mudanças institucionais, como os modelos programáticos com nítida orientação governamental. Independentemente da discussão sobre a eficácia dessas tais instituições/associações, a participação/representação da população requer um preparo para enfrentar os problemas mais simples da ação coletiva. Além disso, até que ponto essa institucionalidade recém-criada tem inibido a manutenção das práticas políticas tradicionais? É possível falarmos em hibridismo de perfis políticos? Institucionalidade para o território: o que há de novo no país?11 É digno de nota o esforço interministerial recente no processo de concepção, formulação e construção participativa da Política Nacional de Ordenamento Territorial. A ideia que marcou a concepção da PNOT foi orientada pela necessidade de instituir um Ordenamento Territorial, no sentido regulatório, distintamente do sentido do desenvolvimento territorial. A inexistência de uma tradição dessa abordagem regulatória no planejamento, em nível nacional, reforçou a oportunidade da iniciativa. Não significa desconsiderar a notoriedade de ações pontuais, como, por exemplo, a ação coordenada pelo Ministério de Meio Ambiente, com suas unidades de conservação, a do Ministério de Desenvolvimento Agrário, com sua proposta de “territórios de identidade”, e a iniciativa do Ministério da Integração, com a proposta da Política Nacional de Ordenamento Territorial.12 Essa prerrogativa foi possibilitada com a instituição da Constituição de 1988. O sentido regulatório está na base de uma arena constituinte e também redistributiva, diferentemente da formulação de propostas de desenvolvimento regional que se referem a uma arena mais ou menos neutra. O processo correspondeu a uma sucessão de etapas. Na primeira fase, houve um Seminário Inicial em 2003, coordenado pela Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração, do qual resultou um Termo de Referência que serviu de base a uma licitação para contratação de uma equipe de consultores.13 Existe uma articulação estreita com o Ministério da Defesa por razões de soberania, uma vez que a proposta também focaliza ações na Amazônia, nas áreas de fronteiras e na costa litorânea. Na segunda fase, o objetivo foi elaborar do Documento-Base. Houve uma divisão do trabalho em seis estudos: experiências internacionais; experiências nacionais; aspectos fundiários; padrão de ocupação do território; logística, cada qual sob a responsabilidade cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 203 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 204 de um consultor. Essa fase foi marcada pela discussão ampliada nas Unidades da Federação. Foi chamado à discussão o Conseplan (Conselho Nacional de Secretários Estaduais do Planejamento) que apoiou a realização de quatro seminários regionais em Belém; Recife; Florianópolis e Goiânia. A sociedade civil, através de suas entidades mais representativas de empresários, trabalhadores e outros grupos, também foi convocada em cada um desses lugares. O último momento de incorporação de propostas e ideias aconteceu no Seminário Nacional de Ordenamento Territorial, em novembro de 2006. Na fase de elaboração da Proposta Final, foi constituído o Grupo de Trabalho Interministerial (Ministério da Defesa, MDA, Minas e Energia, Ministério da Agricultura, Cidades, MDS, Ministério da Integração, sob a coordenação da Casa Civil), com a missão de apresentar uma proposta, em forma de projeto de lei, ao Congresso Nacional. Sob a coordenação da Secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração, acontecem os trabalhos de discussão, com a finalidade de aprovação da proposta.14 No âmbito do MDA, a ênfase foi dada na proposta elaborada para a territorialização. O conceito foi explicado como sendo uma ampliação da concepção sobre áreas regionais para a definição de territórios, a partir das identidades (Perico e Ribeiro, 2005). Foram evidenciados três elementos centrais: 1) A montagem de um mapa de “territórios de identidade”. O estudo foi desenvolvido entre 2003-2004 com base na proposta do IBGE para as microrregiões geográficas e ajustado pela metodologia da OCDE para os critérios de ruralização cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 (densidade demográfica e população média por município). Das 550 regiões, aproximadamente, existentes segundo o IBGE, o MDA passou a considerar 450 territórios, segundo os critérios ajustados de ruralidade. Mais precisamente, 43% dos territórios correspondem às microrregiões pré-definidas pelo IBGE, enquanto os outros 57% dos territórios correspondem a arranjos divergentes, definidos pelos elementos culturais, sociais, etc. Nessa fase de montagem, foram visíveis as divergências quanto às visões de território. A concepção de identidade como vetor da capacidade de diferenciação foi paulatina e esforçadamente sendo instituída. Momentos de desequilíbrio no trabalho foram evidentes na definição de identidades e conflitos em cada território. Atualmente, está sendo finalizado o relatório (elaborado entre 2006-2007) que apresenta a proposta de Tipologias e Identidades de Territórios, elaborado com a consultoria do IICA.15 2) A Institucionalidade Criada. Foi criado, em 25 de fevereiro de 2008, o programa Território da Cidadania. Consiste numa estratégia de desenvolvimento regional sustentável e de garantia de direitos sociais, voltado a algumas regiões do país definidas em função de critérios como: menor IDH; maior concentração de agricultores familiares e assentamentos do programa de Reforma Agrária; maior concentração de populações quilombolas e indígenas; maior número de beneficiários do programa Bolsa Família; maior número de municípios com baixo dinamismo econômico e maior organização social. O programa tem como objetivo levar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de cidadania. Propõe a integração das ações do Governo Federal e dos Governos Estaduais participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? e Municipais, em um plano desenvolvido em cada território, com a participação da sociedade. Atualmente, o Programa contempla 60 Territórios espalhados por todo o Brasil, de modo que, em cada Estado Federativo, deve haver, pelo menos um Território da Cidadania.16 Em cada território, um Conselho Territorial composto pelas três esferas governamentais e pela sociedade determinará um plano de desenvolvimento e uma agenda pactuada de ações. O desenho institucional proposto seguiu o pressuposto central de fazer descolagem da institucionalidade préexistente, montada a partir dos conselhos municípios viabilizados pelo PRONAF, desde a década de 1990. A ideia é criar conselhos dos territórios. Com isso pretendeu-se focar a ação descentralizada no nível microrregional, territorial. Não há um padrão de estratégia de aproximação na perspectiva da instituição dos conselhos nos territórios. Genericamente, pode-se dizer que preliminarmente se formam as Comissões de Implantação de Ações Territoriais (CIATs), nos primeiros três anos, que depois serão substituídos pelos Colegiados dos Territórios. Com relação ao nível estadual, há um reconhecimento e respeito à ação de arranjo institucional elaborado a partir dos Conselhos Estaduais Rurais Sustentáveis, mas há que ser feita uma apreciação dos critérios instituídos para que os territórios sejam alvos das ações do MDA. Para implementar a nova política rural no Brasil, substituindo a dimensão regional pela dimensão territorial, o MDA estimulou as unidades da federação a criarem os Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) nos territórios prioritários de cada Estado. 3. Cenário Considerado. É pressuposta a ideia de que se trata de um processo longo, estimado, pelo próprio ministério, como próximo a um período de 35 anos. A experiência tem demonstrado que existe mais participação onde já pré-existia alguma ação movida por organizações das mais variadas naturezas (ONGs internacionais, religiosas, sindicalistas e outras). Mas a estratégia baseia-se na ação governamental, com um trabalho de apoio durante 10 anos, aproximadamente, em cada território. Além da ação de um conjunto de ministérios, que ao todo somam 15, ações integradas em parceria com os governos estaduais e municipais, podem apresentar suas respectivas propostas e projetos. São ações incentivadas, na perspectiva de consolidar as relações federativas, tornando mais eficiente a ação do poder público nos territórios. Compactua-se a ideia de que cada território é um mundo singular: a ação, por exemplo, em Pernambuco tem sido facilitada pela ação combinada do governo estadual local, na mesma direção, movida pelo Conselho de Desenvolvimento Sustentável. Em Santa Catarina, o MDA tem encontrado mais obstáculos institucionais, posto que há uma representação governamental forte nas sub-regiões (com a instituição das SDRs), o que resulta numa representação da sociedade civil pouco inclusiva. Significa dizer que há uma ação diferenciada em cada Unidade Federativa, a depender do apoio político estadual. As principais reações a esse processo têm se referido às dificuldades de aceitação da prática da “regulação”; mais precisamente, à ausência de tradição. Ainda que se identifiquem reações sobre a incompatibilidade entre as propostas de regionalização do IBGE e outras que prevalecem nas Unidades da Federação, uma proposta de territorialização ordenada seria (em tese) pouco cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 205 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 206 porosa aos conflitos e pressões do processo político, por se distinguir enquanto arena constituinte. No momento em que ações passarem a serem reguladas, de fato, criando parâmetros para a gestão, a emergência dos conflitos será mais evidente. O desafio que se coloca para o atual estágio de discussão é a incorporação de um diálogo sobre a inserção das políticas setoriais, nas três escalas de ação: nacional, estadual e sub-regional e sobre a institucionalização de conselhos. O segundo ponto que propusemos analisar neste artigo reaparece com a exposição acima e refere-se ao debate acerca dos ditames da estrutura federativa brasileira. Trata-se do problema já apontado por Fernando Abrucio (2005, p. 2) da “coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presente nas federações”. Significa dizer que, para além do debate sobre autonomia local e necessidade de checks and balances, entre os níveis de governo, precisamos enfrentar alguns desafios associados ao processo de shared decision making (compartilhamento de decisões e responsabilidades). Segundo os textos básicos disponibilizados pela secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional (SDR/MI/IICA, 2006), no que tange à Avaliação do Aparato Institucional e Jurídico-legal na perspectiva da PNOT (Política Nacional de Ordenamento Territorial ), tem-se que: O sistema de divisão de competências adotado pela CF/88 é complexo, envolvendo, basicamente, a enumeração taxativa das competências da União, competência remanescente dos Estadosmembros e competência para dispor cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 sobre tudo que for de interesse local aos Municípios. (SDR/MI/IICA, 2006a, p. 10). E ainda: O termo Ordenação do Território está fixado legalmente através do artigo 21, parágrafo IX da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “Compete à União elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social”. (Ibid., p. 18) Significa dizer que a competência de organização do território é da União, enquanto que a competência para se tratarem assuntos locais compete ao município, nos termos da Constituição Federal.17 Embora não haja sobreposição de competências, uma vez que a competência dos estados-membros e municípios é remanescente, também cabe ao município e ao estado-membro legislar, direito respeitado no princípio da competência legislativa concorrente. O principal desafio é o de entender como a estrutura de incentivos e competências rebatem nas políticas e, consequentemente, os seus efeitos na gestão governamental. Um exemplo disso é a comparação entre os projetos de gestão territorial planejados pelo estado e pela União. Os repasses estaduais discricionários aos municípios são baixos, não representando grande diferencial na vida do município. Já no nível federal, a liberação de recursos para os municípios através de emenda individual é de fundamental importância para a sobrevivência política dos prefeitos e deputados como discutido anteriormente. Outro aspecto é o participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? local da licitação e planejamento das obras, que no caso do governo federal se dá nos municípios e no governo estadual no âmbito do próprio estado. Ou seja, a lógica de gestão territorial para os estados baseia-se em planejamento e execução internos, enquanto que para o governo federal orienta-se pelo planejamento interno e execução externa. Parte significativa desse desafio referese à capacidade de equilibrar competição e cooperação, inovação e homogeneização de ações, ainda que se considere a atuação coordenadora do governo e de outras instâncias federativas. Sustentamos, contudo, a hipótese de que a disponibilidade de recursos, locais de toda natureza, é uma variável fundamental na indução de ganhos resultantes de ações autônomas e competitivas; noutra direção, experiência e tradição associativa são variáveis significativas para adesão, por parte dos entes federados, a processos de ação coletiva. Logo, ao focalizarmos a implantação de uma Política de Ordenamento ou de Gestão Territorial, há que se analisar também o “esforço” legislativo de adequação das normas municipais à política nacional e estadual, despendido por um rol diversificado, nem sempre articulado, de atores e instituições. Considerando o exemplo do Plano Diretor, o município depende de, no mínimo, sete tipos de ordenamentos legais, sendo o primeiro, no nível federal, a própria constituição, que oferece através da divisão política e administrativa do país as competências para legislar da União, dos estados federados e dos municípios. Ainda no nível federal, as legislações específicas sobre ordenamento Urbano e Ambiental e as diretrizes sobre habitação, transporte, saneamento básico e meio ambiente. Ao observarmos a quantidade de instrumentos legais e instâncias a serem respeitadas, podemos intuir que, para uma boa aplicação ao caso concreto da ação territorial, precisamos de um grau de conhecimento técnico das legislações federal, estadual e municipal, além de uma cuidadosa articulação política para a negociação em todos esses níveis. Assim, as políticas territoriais terão de respeitar, no ordenamento constitucional atual, a legislação municipal no que lhe couber, por sua condição de ente federativo, ou gerar coordenação entre a União, o estado e os vários municípios. Essa coordenação pode ser realizada de duas formas: a primeira delas é a renúncia de parte das prerrogativas federativas por parte dos estados e municípios, algo que é improvável, a não ser em uma estrutura de incentivos, muito vantajosa para estes. Uma segunda possibilidade é a de que essas políticas sejam executadas pelos municípios e estados, através de um planejamento conjunto, no nível federal. Este segundo arranjo, apesar de mais plausível, traz uma nova gama de atores à execução dos projetos, tornando mais complexa a sua realização. Pernambuco e Santa Catarina: convergências e divergências nas condições favoráveis à gestão territorial À primeira vista, esperaríamos encontrar, entre Pernambuco e Santa Catarina, condições completamente distintas para a implantação de programas de gestão territorial. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 207 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 208 Três conjuntos de fatores, conforme será exposto nos próximos parágrafos, embasam tal suposição: a) tratamos de estados que ostentam indicadores sociais bastante diferenciados; b) a tradição de associativismo municipal é incomparável entre as duas regiões; c) os perfis de participação política dos cidadãos são comprovadamente desiguais. O primeiro fator encontra defesa reconhecida na literatura que associa padrões políticos tradicionais a baixos índices de desenvolvimento.18 Localizados em regiões divergentes em prosperidade, a observação comparada dos indicadores sociais sugere a suposição de que as práticas políticas dominantes em cada estado também sejam muito diferentes, levando a resultados e até a mudanças institucionais distintas no âmbito dos programas públicos. Investigamos, por isso, a condição dos municípios dos dois estados focos da nossa análise, Pernambuco (NE) e Santa Catarina (S), com base na tipologia proposta pela Secretaria de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, que divide as microrregiões entre as de Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa Renda.19 Podemos observar, no Gráfico 1, que o demonstrativo do número relativo de municípios de Pernambuco diagnosticados como de baixa renda ou em situação caracterizada como de estagnação é bem mais alto que o do correlato em Santa Catarina e até mesmo em relação ao do restante do país. A grande concentração de territórios com baixo grau de desenvolvimento socioeconômico está demonstrada pelo peso de um quarto dos municípios do estado, contra menos de 13% no Brasil e 0% do estado de Santa Catarina. Nesse estado, mais de 80% são considerados municípios de alta renda, ao contrário de Pernambuco, onde apenas 4,32% se enquadram nessa categoria. Gráfico 1 – Situação dos municípios do Brasil, Pernambuco e Santa Catarina quanto à dinâmica das microrregiões Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional. Disponível em www.integracao.gov.br cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? Como são recorrentes as análises que articulam o grau de dinâmica econômica dos municípios e capacidade de gestão para o desenvolvimento regional numa correlação inversa, os dados existentes para Pernambuco e Santa Catarina nos levam a suposições em torno de existir uma maior dificuldade na implantação de políticas territoriais em Pernambuco do que em Santa Catarina. Esta ideia fica reforçada quando observamos o padrão de execução de orçamento de desenvolvimento regional, ou seja o quadro de gastos em recursos de desenvolvimento regional. Tal indicador revela que o Sudeste apresenta o maior número relativo de municípios optantes por esse tipo de despesa, como demonstra o Gráfico 2. Naquela região, durante a década de noventa, o percentual dos municípios que executaram esse tipo de orçamento oscilou aproximadamente entre 20% e 25%, observando-se um crescimento constante e moderado, que oscila entre aproximadamente 5% em 1990 até chegar a quase 10% em 2001. Um dado que se soma a essa evidência, de acordo com a pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros - Gestão Pública 2006, de responsabilidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referese ao grau de utilização, pelos municípios, de mecanismos de incentivo à implantação de empreendimentos, tais como: doação de terrenos; cessão de terrenos; isenção total ou parcial de IPTU e isenção de ISS. A maior parte dos municípios que abrem mão de receita, cerca de 60%, está localizada nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, onde chama a atenção o comportamento dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul que apresentam, em algumas regiões, uma grande aglomeração de municípios adeptos de tais mecanismos. Consideradas as informações, pode-se afirmar que condições mais favoráveis relativas à montagem de novas Gráfico 2 – Percentual de municípios com Execução Orçamentária em Desenvolvimento Regional Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 209 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 210 institucional idades estão presentes com maior evidência em Santa Catarina. É razoável supor também a existência de variáveis intervenientes de efeito negativo no tocante ao estado de Pernambuco. Significa que quando analisamos o fator definido como tradição de associativismo municipal, as condições na região Sul do país já se apresentam mais favoráveis. Empiricamente, a tradição de associativismo municipal, em Santa Catarina, pode ser comprovada desde a década de 1960 com o movimento municipalista catarinense. Nos anos oitenta, surgiu a FECAM – Federação Catarinense dos Municípios; a rigor, a entidade foi criada com o nome de Federação Catarinense das Associações Municipais,20 o que realça o significado do número de entidades regionais de associação de municípios. Atualmente, a FECAM conta com 284 municípios filiados dos 293 municípios de SC (FECAM, 2008). Foram as associações de municípios, coordenadas pela FECAM, que deram o impulso para a criação dos fóruns de desenvolvimento em cada uma de suas áreas territoriais (Côrtes, 2006). Em Pernambuco, a experiência existe, mas tem acontecido de modo pouco sistemático. Entre algumas tentativas de associação municipal, podem ser citadas a formação de um Fórum na Mata Sul, outras tentativas de constituir consórcios municipais no Agreste Central (em torno de ações de saneamento e construção de aterros sanitários) e ainda no Submédio São Francisco (em favor de ações para instalação de centros de distribuição e comercialização de produtos). Com relação aos perfis de participação política dos cidadãos, buscamos verificar os níveis diferenciados presentes nas duas regiões que abrigam os estados analisados. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 Defendemos que o estímulo à participação, bem como as estratégias implementadas pelos atores sociais divergem conforme dois fatores principais: a) a bagagem histórica, expressa pelas condições recentes da democratização no Brasil e b) os condicionantes institucionais e políticos à participação e ao empoderamento presentes regionalmente. Significa dizer que, de um lado, importam os fatores vinculados à herança ou à cultura política e, de outro, aqueles fatores associados às inovações institucionais. Como indicador da bagagem histórica, utilizamos perfis de participação política apresentados na Tabela 1. Ao compararmos as regiões nas quais os estados cobertos pela pesquisa se incluem, é possível ver que os índices de participação política no Sul do país são muito superiores aos dos estados do Nordeste, principalmente no que toca aos itens relacionados a associações como clubes sociais e esportivos e reuniões de condomínio (95,3%) e à filiação a partidos políticos (91,3%), onde a taxa de participação é de quase o dobro. Apenas no que diz respeito às associações de moradores, há um relativo equilíbrio nas taxas de participação, sinalizando um maior índice de participação da população na região Sul. Mas, por que condições tão divergentes de dinâmica econômica, capacidade de gestão para o desenvolvimento regional e capital social, entre duas regiões, tornaram-se secundárias, ao passo que outras condições mais favoráveis induziram à experimentação de programas de territorialização e descentralização? Que condições foram essas? O Programa Governo nos Municípios pode ser considerado, entre o conjunto de experiências participativas que vêm sendo vivenciadas no país, como uma novidade participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? Tabela 1 – Perfis de participação política comparados: Nordeste e Sul do país Categorias Participação em associação de moradores* Nordeste 21,87 Sul 22,59 Sul/Nordeste 3,27% Participação em reunião de condomínio* 10,04 19,61 95,30% Participação em clube social ou esportivo* 18,07 35,30 95,32% Participação em associação assistencial-religiosa* 29,70 49,84 67,80% 6,37 11,42 79,15% Filiação a sindicato** 20,57 25,85 25,63% Filiação a associação profissional** 11,97 17,15 43,31% 5,92 11,32 91,26% Participação em associação assistencial não religiosa* Filiação a partido político** *Participa ou já participou; **Apenas quem é efetivamente filiado Fonte: Estudo Eleitoral Brasileiro (2002). Elaboração própria. institucional. Claramente orientado pela ideia de que a sociedade pode imprimir uma lógica mais democrática na definição das prioridades na alocação dos recursos públicos, estando “mais próxima do Estado”, o Programa Governo nos Municípios foi implantado no estado de Pernambuco, em 1999, abrangendo uma população de aproximadamente oito milhões de pessoas. A expectativa inicial se ampliou para a construção de um modelo de gestão territorial, pelo qual se projetou o levantamento de demandas específicas e a negociação sobre o ordenamento das várias propostas setoriais, diretamente com os grupos sociais, em cada uma das 12 Regiões de Desenvolvimento do estado e 185 municípios.21 Tal modelo de gestão pressupunha dois níveis de atuação do governo estadual: o primeiro corresponde à articulação entre o estado e a sociedade civil, mediante a realização de plenárias regionais e a instalação de uma Comissão de Desenvolvimento representativa dos interesses locais, em cada região; o segundo diz respeito à articulação entre as várias instâncias governamentais no âmbito do próprio estado, mediante o esta- belecimento de um pacto no qual as variadas ações setoriais deveriam ser encaminhadas, no sentido das negociações estabelecidas para cada região. O Programa de Descentralização Santa Catarina é uma experiência ainda mais recente. Baseado nos pressupostos da descentralização da gestão do estado e da participação da sociedade no desenvolvimento do território, o programa foi implantado a partir de 2002, para atingir uma população de aproximadamente seis milhões de pessoas. A ideia central é de que a descentralização do governo é capaz de promover, simultaneamente, o desenvolvimento regional e a construção de um ambiente de cooperação e governabilidade, criando um círculo virtuoso e sinérgico de participação de vários setores da sociedade civil. O modelo básico propôs a criação dos Conselhos de Desenvolvimento Regional, vinculados às 30 Regiões de Desenvolvimento que abrangem 293 municípios, com as Secretarias de Desenvolvimento Regional então criadas para mediar entre as demandas locais e o governo estadual.22 É importante acrescentar que os dois programas territoriais incorporaram no seu cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 211 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes 212 arcabouço institucional as instâncias participativas integrantes de várias políticas de desenvolvimento territorial, estadual ou federal da Secretaria de Desenvolvimento Territorial do MDA. No âmbito da nova estratégia do Ministério de Desenvolvimento Agrário, o município deixa de ser o foco das políticas públicas e o território passa a ser a unidade de discussão e de implementação das ações desenvolvidas pelo Poder Público, a partir de uma visão contextualizada que contempla os múltiplos fatores intervenientes, integrando-se atividades agrícolas e não agrícolas. Em princípio, a ênfase no território fortalece o processo de articulação horizontal e vertical entre políticas públicas e demandas sociais, observando-se, igualmente, que o Estado deve, para atender as prerrogativas da construção da democracia e do desenvolvimento e de redefinição do papel do Estado, atuar especialmente quanto à provisão de bens públicos, direção e regulação da economia. Os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável e outros Conselhos de Desenvolvimento Municipal fazem parte dessa nova configuração institucional 23 e, nesse sentido, oferecem elementos valiosos à discussão do desenvolvimento sob a ótica do território, tendo em vista que as decisões sobre as ações, projetos e os rumos a serem privilegiados são discutidos por esses atores. Retomando a questão formulada, que condições teriam favorecido a experimentação de programas de territorialização e descentralização tão semelhantes? Supomos, então, que um conjunto de fatores também semelhantes constituiu o quadro de condições favoráveis à implantação dos programas referidos. Um exame mais apurado nos arcabouços político-institucionais cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 locais revela semelhanças significativas entre as duas unidades federativas – PE e SC. A que mais chama atenção é a inflexão sofrida na força e resistência dos partidos tradicionais de direita,24 no interior desses estados. Conforme o Gráfico 3, a direita manteve um percentual acima de 40% da bancada de suas assembléias legislativas de 1982 a 2002, para o caso de Pernambuco e, para o caso de Santa Catarina, até 2006. Significa dizer que, pela abordagem da conexão eleitoral, é possível supor que a confluência de interesses regionais favoreceu a implantação de programas de descentralização. Ainda que não se possa assegurar a existência de influência direta da autoridade do governo do estado sobre as alianças municipais, foi visível a mudança no quadro de apoio partidário entre os deputados estaduais, se for considerada a situação antes do programa e depois do programa. Há fortes indícios de que a implantação dos Programas em cada um dos estados e nos períodos respectivos exerceu uma influência gradual no quadro político de apoio à primeira e à segunda gestão consecutiva de cada governador – Jarbas Vasconcelos em Pernambuco e Luís Henrique da Silveira em Santa Catarina. Ao que parece, a aliança partidária surge como uma variável fundamental para garantir a adesão das elites locais ao programa. Nos dois estados, os dois governos foram eleitos por meio de ampla coalizão partidária liderada pelo PMDB. Nas disputas eleitorais ocorridas após a implantação dos programas de descentralização, é interessante notar a tendência de desconcentração regional em favor do grupo partidário aliado ao governador, que obteve mais de 50% nas regiões do interior do estado. Esses dados são bastante significativos participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? Gráfico 3 – Percentual das cadeiras ocupadas pelos Partidos de Direita na Assembléia Legislativa (1982-2006) Pernambuco e Santa Catarina Fonte: www.jaironicolau.iuperj.com.br/dadoseleitoraisdobrasil e sugerem que uma análise sobre a estratégia política do governo de compor um pacto para a implantação do Programa Governo nos Municípios, a partir de 1999 e do Projeto Meu Lugar, a partir de 2002 é uma hipótese bastante consistente. Com relação à competição política na base municipal, historicamente, os deputados desses partidos têm sido individualmente mais dominantes em suas bases eleitorais. Em seus principais municípios, eles tendem a ficar com proporções mais altas da votação total local. Geralmente, são bem votados em municípios geograficamente contíguos e raras vezes disputam a preferência dos eleitores. Esse controle oligárquico, representado pela concentração eleitoral reduz não somente o número de novatos na política quanto o número de partidos concorrentes. Ou seja, são padrões muito próximos de competição política. Portanto, pode-se dizer que o que aproxima os dois estados é a força das oligarquias tradicionais que conserva o poder nos seus redutos territoriais, sobretudo no interior. Ou seja, embora se possa dizer que, no caso brasileiro, alguns fatores reduziriam o impacto das alianças partidárias e das coalizões de governo sobre a concentração de autoridade política,25 importante foi constatar que, no cenário político desses dois estados, evidenciam-se fortes elementos de continuidade sustentados pelo controle das antigas oligarquias. Tais grupos políticos locais aliaram-se convenientemente ao governo do estado e utilizaram os Programas de Descentralização como espaço político para aumentar seu poder de atuação nas bases eleitorais. A herança clientelística era visível em muitas situações, durante as visitas ao campo. Obras antes escolhidas pela população eram, por vezes, apropriadas, como objeto de propaganda por políticos com base eleitoral na região. Além disso, verificamos que a participação popular tão tem sido suficiente para inibir a manutenção das práticas cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 213 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes políticas tradicionais ou, na pior das hipóteses, tem se rendido ao imediatismo das ações dos politiqueiros de plantão. Embora o reduzido tempo de implantação do programa impeça afirmações mais conclusivas, o debate atual deixa claro que estudos que se dediquem a apontar os ele- mentos aqui referidos têm sido pouco privilegiados. Ao mesmo tempo, esse mesmo debate aponta que há um espaço vazio nas formulações acadêmicas que articulam o perfil político-territorial com a instituição de mecanismos de gestão descentralizada e pretensamente participativa. Cátia Wanderley Lubambo Doutora em Sociologia e Mestre em Desenvolvimento Urbano e Regional pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutorada em Gestão Pública na Fundação Getulio Vargas de São Paulo. Pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife. Docente no Mestrado Profissional em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste, na Universidade Federal de Pernambuco (Pernambuco, Brasil). [email protected] 214 Flavio Cireno Fernandes Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em avaliação de Políticas Públicas pela Universidade do Texas (Austin). Pesquisador da Diretoria de Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife (Pernambuco, Brasil). [email protected] Notas (1) Este trabalho é parte do projeto “Gestão Territorial e Participação Política”, desenvolvido no âmbito da Coordenação de Estudos Sociais e Culturais da Diretoria de Pesquisa da Fundação Joaquim Nabuco e como pesquisa de pós-doutorado da autora na Fundação Getúlio Vargas-SP. (2) O conceito de território aparece aqui no seu sentido lato, sendo aceito desde a noção de arranjos produtivos locais até a noção geográfica de território propriamente dita. (3) Podemos definir accountabilitty como uma forma de controle e supervisão que designa processos de influência do coletivo sobre o individual, mas não existe uma tradução precisa do termo. Admitimos ser um modo de articulação cooperativa dos atores sociais adeptos da prática de mecanismos de monitoramento e avaliação de programas ou políticas públicas. (4) Ainda segundo Löwi, os atores políticos envolvidos não necessariamente apresentam comportamentos invariantes com relação ao seu envolvimento e sua posição na política. A referência é mais direcionada a comportamentos típicos: o de grupos de interesse, o de clientela, o de partidos políticos e o de elite tecnocrática. Alguns autores também chamam as políticas constitutivas de políticas estruturadoras; neste texto usaremos ambos os termos. (5) Para uma breve revisão da análise sobre a “conexão eleitoral” ver Limongi e Figueredo (2005). cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? (6) São os tipos dominantes concentrados e dominantes dispersos, onde o deputado consegue angariar o maior número de eleitores possíveis em determinados municípios, por razões diversas. (7) Não é recente, por exemplo, a atuação do governo brasileiro, com apoio do Banco Mundial, na implementação de programas de combate à pobreza rural do Nordeste. Atualmente, o Banco Mundial financia o programa de Combate à pobreza Rural – PCPR, que atua em projetos de pequeno porte para comunidades rurais, representadas nas comissões e fóruns participativos. (8) Outras recomendações são, por exemplo, a aplicação de recursos a fundo perdido em projetos construídos pela comunidade local. (9) Os exemplos mais destacados nessa direção têm sido as experiências de orçamento participativo. (10) Pode-se afirmar que ocorreu um verdadeiro choque institucional na última década, sinalizado pela criação de centenas, em alguns casos, milhares de conselhos vinculados aos planos locais nas áreas de criança e adolescente, do desenvolvimento urbano, educação, desenvolvimento rural, meio ambiente, saúde e assistência social. Esse fato contribui para que o tema venha recebendo espaço importante na literatura. Ver Gohn (2001); Carvalho (1995); Coelho e Nobre (2004) entre outros. (11) Esta secção toma por base um levantamento de campo, realizado em Brasília, em maio de 2008. Foram entrevistados: o Secretário de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração – Júlio Miragaya; o indicado – Marcelo Duncam – do Secretário de Desenvolvimento Territorial do MDA – Humberto de Oliveira e o Responsável pelo Comitê de Desenvolvimento Territorial do CONDRAF – Ronaldo Cambuim. (12) Consultar os Documentos Temáticos Elaborados como Subsídios da Proposta – PNOT, texto que serviu de base para a montagem da proposta que hoje tramita em discussão e votação no Congresso. (13) A equipe vencedora foi o Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS da UnB, onde ficaram responsáveis pela Coordenação Técnica dos Estudos para elaboração da PNOT, os professores Marcelo Burstzin e Brasilmar Ferreira. (14) Citam-se como importantes, a proposta do IBGE, atualmente em etapa de conclusão e a discussão iniciada em novembro de 2008, a partir do lançamento do Estudo da Dimensão Territorial, realizado e apresentado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE, durante o Seminário Internacional de Planejamento Territorial no Brasil, promovido pelo Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão. (15) Ver o Documento do MDA, 2008 – Desenvolvimento Sustentável e Territorialidade: identidades e tipologias. Equipe de Consultores: Rafael Echeverri e Edviges Ioris. Consultar também no site do MDA o link do Sistema de Informações de Territórios Rurais, as regiões existentes por UFs. (16) Foram definidos conjuntos de municípios unidos pelas mesmas características econômicas e ambientais que apresentavam identidade e coesão social, cultural e geográfica. Maiores que o município e menores que o estado, os territórios conseguem demonstrar, de uma forma mais nítida, a realidade dos grupos sociais, das atividades econômicas e das instituições de cada localidade, o que facilita o planejamento de ações governamentais para o desenvolvimento dessas regiões. Consultar o documento Território da Cidadania, disponívelem:http://www.mda.gov.br/ portal/index/show/index/cod/1816/codInterno/16264. Pesquisa realizada em 22/9/2008 (17) O artigo 30 da constituição, nos seus incisos I e VII, dispõe sobre a competência do município. O inciso I discorre sobre assuntos de “interesse local”, sem especificação, e o inciso VII discorre sobre o ordenamento territorial intraurbano, como parcelamento e lei de usos e ocupação do solo. cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 215 cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes (18) Segundo alguns autores, o baixo grau de desenvolvimento econômico leva a práticas clientelísticas e de apropriação do espaço público pela elite, o que faz com que a qualidade da participação resulte comprometida. Mesmo autores que também reconhecem a importância das mudanças institucionais, alertam como o fazem Bonfim e Silva (2003), que mudanças de qualquer natureza e ainda mais com o propósito de empoderamento, revelam-se como algo dispendioso, tanto do ponto de vista da ação coletiva, quanto da perspectiva relativa à mobilização de recursos políticos. Ou seja, embora haja condições de se induzir, por meio de mudanças no desenho institucional, uma trajetória de empoderamento numa determinada sociedade não só demanda tempo para consolidar-se, quanto supõe certos pré-requisitos (inclusive históricos e de capital social) para a “largada” no curto prazo e para a consolidação em perspectiva mais longa, sobretudo em regiões que vivenciam um desenvolvimento tardio. (19) Essa classificação foi apresentada com base na tipologia proposta pela Secretaria de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, que divide as microrregiões entre as de Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa Renda. (20) Em setembro de 2008, foi realizada pesquisa de campo na Região Serrana de Santa Catarina e entrevistado Gilsoni Lunardi Albino, na época, secretário executivo da AMURES - Associação dos Municípios da Região Serrana, com sede em Lages. 216 (21) Realizaram-se as 1as. Plenárias na RDs para levantamento de demandas/projetos necessários. Seguiram-se 2as. Plenárias nas RDs, para definição de prioridades, em função das planilhas de custos de execução dos projetos necessários. Formaram-se as Comissões de Desenvolvimento Regional. Seguiu-se a elaboração, pelos técnicos do governo dos Planos Plurianuais Regionais, integrantes do PPA do Estado, posteriormente apreciados pela Assembléia Legislativa do Estado. O número de representantes na CDR era dado pela quantidade de municípios componentes da RD. (22) Reuniões mensais dos Comitês de Desenvolvimento Regionais, em que se define a agenda de prioridades, são realizadas com a coordenação das Secretarias Regionais. Seguem-se discussões no âmbito dos Comitês Temáticos, com base nas informações, estudos de viabilidade e de impactos. As decisões sobre as ações estratégicas são tomadas nas reuniões dos CDRs que tornamse corresponsáveis pelo acompanhamento das ações nas Secretarias Regionais. Cada Conselho de Desenvolvimento Regional é formado por quatro representantes de cada um dos municípios que integram a região administrativa, sendo dois mandatários (o Prefeito e o presidente da Câmara de Vereadores) e dois representantes da sociedade civil. O conselho é presidido pelo Secretário Regional. (23) Foi elaborado um estudo sobre a opinião dos atores sociais envolvidos, a respeito dos resultados obtidos no Programa Governo nos Municípios, em Pernambuco (Lubambo e Coelho, 2005). De maneira complementar, foram realizados grupos focais nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural na Região de Desenvolvimento do Agreste Meridional de Pernambuco, em agosto de 2008. Este trabalho conta com informações levantadas entre os Conselhos de Desenvolvimento Regional na Região de Lages, em Santa Catarina, em setembro de 2008. Considerações importantes foram, também, tomadas a partir do estudo de Birkner (2006) sobre o capital social em Santa Catarina. (24) Definimos a direita tradicional como o somatório do PDS/PPR/PPB/PP, além do PFL/DEM, e do PTB. Em 1994, o PDS tornou-se o PPR, o qual, posteriormente, mudou de nome para PPB. Ver Tarouco (2008). cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis? (25) Marta Arretche (2004, p. 20) sugere elementos tais como a fragmentação do sistema partidário que tem implicado reduzido número de prefeitos e governadores do mesmo partido e a ausência de uma centralização no sistema partidário, gerando certa insubordinação dos governadores e prefeitos em relação às direções dos seus respectivos partidos. Referências ABRAMOVAY, R. (2001). Conselhos além dos limites. Estudos Avançados. São Paulo. 15(43). ABRUCIO, F. (2005). A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, n. 24. AMES, B. (1995). 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Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 cadernos metrópole 21 pp. 197-218 10 sem. 2009 Regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade Manoel Teixeira Azevedo Jr. Resumo O presente artigo discute os programas de regularização de assentamentos informais ou de loteamentos irregulares do ponto de vista da sustentabilidade urbana, compreendida em sentido amplo, não só o da concepção do programa para cada assentamento em particular, mas, principalmente, o da relação desses programas com a lógica de produção do espaço da cidade como um todo, em especial de suas periferias. Para tal, aborda as possibilidades dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade para a reversão da permanente reprodução da precariedade das periferias e para a universalização do direito à cidade. Abstract The present paper discusses the programs of regularization of informal settlements or irregular allotments from the point of view of urban sustainability, understood in a broad sense, not only the conception of the program for each settlement in particular, but, principally, the relationship of these programs to the logic of production of the city space as a whole, especially its peripheries. The paper approaches the possibilities of the urban policy instruments of the City Statute for the reversion of the constant reproduction of precarious peripheries and for the universalization of the right to the city. Palavras-chave: regularização urbana; assentamentos informais; sustentabilidade urbana; Estatuto da Cidade; direito à cidade. Keywords: urban regularization; informal settlements; urban sustainability; City Statute; right to the city. cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 manoel teixeira azevedo jr. Introdução 220 A idéia de sustentabilidade, associada ao meio urbano, vem sendo largamente utilizada tornando-se, em muitos casos, uma espécie de jargão, que legitima qualquer projeto e lhe amplia o alcance urbano, dando-lhe, supostamente, permanência e continuidade para além do momento e das circunstâncias de sua produção. Ligado à questão da regularização de assentamentos urbanos, o termo deveria abranger duas escalas interrelacionadas: a do assentamento em si e a da cidade, compreendendo esta tanto os impactos das ações de regularização sobre o entorno imediato como suas vinculações com as políticas urbanas mais gerais, relativas à cidade como um todo, notadamente as de produção de moradias, expansão urbana e regulação do mercado de terras e ocupação dos vazios urbanos. As iniciativas recentes, em grande medida apoiadas por programa específico do governo federal, através do Ministério das Cidades, têm se prendido basicamente ao primeiro aspecto, deixando o segundo a cargo dos planos diretores municipais, espaço mais adequado, a princípio, para sua abordagem. Embora não seja possível no momento uma avaliação consistente, a nível nacional ou regional, da aplicação dos instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade, inseridos de formas variadas na última “safra” de planos diretores, a maioria terminados em 2006, a partir de prazo fixado pelo próprio Estatuto (Art. 50), é possível, por leitura preliminar de planos diretores de municípios da região metropolitana de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais, perceber uma certa timidez na aplicação e articulação dos cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 instrumentos de política urbana no sentido de alterar a ordem excludente característica dos processos brasileiros de urbanização. Desse modo, as ações de reurbanização e regularização fundiária, por mais que articuladas em programas municipais bem estruturados e que têm, nos melhores casos, buscado incluir a dimensão social, tentando abrir perspectivas de superação da pobreza, acabam sendo marcadas pelo caráter emergencial de melhoria de situações críticas, as quais tendem a permanentemente recriarse, sem que a estruturação das cidades se altere, em especial no aspecto de sua profunda diferenciação socioespacial. Neste artigo, buscamos discutir as possibilidades de interferir nesse processo, de modo a melhor articular as ações pontuais de regularização fundiária com políticas que redirecionem, em alguma medida, a lógica de produção e de expansão do tecido urbano das cidades brasileiras, a partir da utilização dos instrumentos de reforma urbana colocados à disposição das administrações locais pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01). Ou seja, tenta-se refletir sobre o potencial desses instrumentos para a efetivação de um princípio de sustentabilidade ao nível da cidade ou do aglomerado urbano como um todo. Trabalha-se, assim, com a clássica ideia de desenvolvimento sustentável, no qual a resolução de nossas demandas atuais não compromete as das futuras gerações, o que implica, no caso da expansão informal dos tecidos urbanos, atuar sobre as causas desse processo e sobre os mecanismos da produção do espaço urbano periférico, entendido este, não de um ponto de vista da localização em relação aos espaços centrais, mas no sentido dos territórios de exclusão, regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade de pobreza e miséria que as cidades brasileiras estão constantemente a recriar. No entanto, essa atuação deve articular-se com o resgate da enorme dívida social representada pela precariedade dos assentamentos e das condições de vida de boa parte da população brasileira. A sustentabilidade supõe, assim, em primeiro lugar, a reversão dos níveis de desigualdade de renda e de acesso a bens e serviços, o que supera largamente o campo das ações de melhoria urbanística e de moradia, embora as inclua. Representa também, uma perspectiva de maior eficácia na aplicação dos recursos públicos, na medida em que tende a, progressivamente, diminuir as demandas de ações curativas de reurbanização, liberando recursos para áreas de atuação mais permanente do Poder Público, como as de educação, saúde, transportes, entre outras. Significa a perspectiva de que os programas de reurbanização alcancem seus objetivos de mudança social, não de forma pontual e fragmentária, mas de forma ampliada no território e no tempo, ou seja, de forma sustentável, tornando-se residuais no longo prazo, em uma visão que hoje se afigura quase quimérica. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, estima-se que na América Latina, onde cerca de 75% da população vive em áreas urbanas, 25% dessa população está em assentamentos informais (Fernandes, 2006). No Brasil, a população moradora de favelas nas principais metrópoles se situa, em geral, acima de 20% do total, chegando, nos casos de Recife, Salvador e Fortaleza a, respectivamente, 46%, 30% e 31% (Maricato, 2001). Isso sem contar a enorme população vivendo em parcelamentos periféricos irregulares e de precária urbanização. Reforma urbana e ação institucional Em um quadro como este, colocar a perspectiva da sustentabilidade urbana implica retomar o tema da reforma urbana, origem do Estatuto da Cidade, e o alcance dos instrumentos legais que hoje estão disponíveis para encaminhá-la, já que se trata, muito mais, de implantar um processo do que operar uma mudança brusca. Trata-se de instaurar, de forma negociada, um redirecionamento das práticas de produção do espaço urbano, revertendo suas implicações sociais perversas e excludentes. O tema da reforma urbana, seu debate no ambiente técnico e político e as lutas e reivindicações a ela vinculados, nascem, ainda na década de 60, como desdobramento, no âmbito das cidades, das lutas pela reforma agrária e, portanto, muito marcados pelas questões fundamentais do acesso à terra e à moradia nas cidades. A reforma urbana é impulsionada, assim, pela necessidade de se repensar a propriedade privada da terra nas cidades e a lógica de produção do espaço urbano, que excluía, e ainda exclui, as parcelas mais pobres da população do acesso ao mercado imobiliário formal, empurrando-as para as favelas ou para o mercado dos parcelamentos periféricos irregulares. Tendo como passo inicial o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, realizado em Petrópolis, em 1963, as demandas de reforma urbana ganham ressonância dentro do próprio regime militar que, reconhecendo o caráter danoso da retenção especulativa de terras para a própria produção capitalista do espaço urbano, inicia, em 1977, no âmbito da Comissão Nacional cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 221 manoel teixeira azevedo jr. 222 de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) e, posteriormente, no Conselho Nacional de Política Urbana (CNDU), discussões para a criação de uma Lei Nacional de Desenvolvimento Urbano, a qual é encaminhada ao Congresso apenas em 1983 (Projeto de Lei 775/83). Como parte do processo de redemocratização do país e concomitante revigoramento das organizações da sociedade civil, é constituído o Movimento Nacional de Reforma Urbana, que terá papel fundamental durante a elaboração da nova constituição, através da apresentação da Emenda Popular da Reforma Urbana, com mais de 130 mil assinaturas, que repercutirá no avanço signifi cativo da Constituição no campo da Política Urbana. Esse avanço se dá, especialmente, pela explicitação da necessidade de a propriedade privada cumprir uma função social, a ser definida pelos planos diretores municipais, e pela instituição de instrumentos de combate à retenção especulativa de imóveis e de reconhecimento do direito de propriedade e de permanência em seus locais de moradia aos ocupantes de áreas urbanas (usucapião urbana). Visando regulamentar os dispositivos do texto constitucional, o senador Pompeu de Souza apresenta projeto de lei substitutivo ao PL 775/83, denominando-o Estatuto da Cidade, o qual é aprovado em 1990 no Senado (PL 181/90). Após 11 anos de trâmite no Congresso e muitas alterações, o projeto ganha sua aprovação final e é sancionado pelo Presidente da República em julho de 2001, gerando o primeiro marco legal para uma nova política de gestão das cidades brasileiras, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01. cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 Em que pese a enorme importância do Estatuto da Cidade, ele por si não realiza a reforma urbana. Coloca uma gama de instrumentos legais à disposição dos municípios, cabendo a estes, através do Poder Público e da participação do conjunto da sociedade organizada, usarem de forma combinada esses instrumentos, como alavancas para a construção de um novo padrão democrático e igualitário de cidade. Tal padrão decorre, evidentemente, também de uma nova postura de garantia de direitos sociais (à educação, à saúde, ao trabalho, etc.) e de ações que priorizem a efetivação de tais direitos. Como forma de implementação do Estatuto da Cidade, o Ministério das Cidades desenvolve, a partir de sua criação, em 2003, ações de divulgação do mesmo junto aos municípios, priorizando a elaboração dos planos diretores participativos. Esse instrumento, muito difundido, embora com pouca eficácia, durante a administração tecnocrática do regime militar, ganha novo alento a partir da importância que lhe confere o texto constitucional para a aplicação dos instrumentos de cumprimento da função social da propriedade. A grande novidade nessa nova fornada de planos diretores é, sem dúvida, além da possibilidade de aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, a obrigação de participação da sociedade em sua formulação, o que enfatiza sua dimensão política, como uma espécie de pacto social em torno de um projeto de cidade, ampliando a familiaridade com as questões técnicas da gestão urbana, tirando desta o aspecto de algo acessível apenas a especialistas, e permitindo o acompanhamento da implementação dos planos. regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade O apoio à elaboração de planos diretores participativos, prioridade do Ministério das Cidades no período de 2003 a 2006, inscreve-se em uma linha de “ação preventiva” do Ministério, traduzida no Programa de Fortalecimento da Gestão Municipal, buscando “evitar a formação de novos assentamentos precários no país; a formação de ocupações e usos do solo predatórios do patrimônio cultural e ambiental; e apropriações indevidas dos investimentos coletivos” (Rolnik et al., 2007, p. 9). A esta se soma uma linha de “ação curativa”, traduzida no Programa Papel Passado (Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável) e no Programa de Gerenciamento e Remoção de Riscos. Do ponto de vista da sustentabilidade urbana, as ações curativas reconhecem as situações de irregularidade existentes e procuram equacioná-las segundo um novo patamar de qualidade urbanística, enquanto as ações preventivas procuram introduzir uma nova lógica de produção do espaço urbano, de modo a inibir a reprodução constante das situações de irregularidade e precariedade urbanas, as quais demandam novas ações curativas e fazem com que o Poder Público esteja sempre correndo atrás da mitigação de situações criadas por processos sobre os quais não é capaz de interferir. O Programa Papel Passado assume a questão da sustentabilidade a partir de duas preocupações fundamentais: a primeira, a de não pensar a regularização apenas na dimensão legal, a da garantia da obtenção do título de propriedade, mas também na dimensão urbanística, ou seja, incluindo intervenções de reurbanização, atendimento às exigências urbanísticas das leis de parcelamento do solo, remoção de ocupações em áreas de risco, reassentamento de famílias, resolução de situações de ocupação de áreas de proteção ambiental, etc. Dessa forma, a regularização é pensada de maneira ampla, correspondendo a uma requalificação urbana que busca promover a integração socioespacial dos assentamentos à cidade. A segunda preocupação que fundamenta a utilização do princípio de sustentabilidade é o envolvimento da comunidade interessada, tornando-a partícipe das decisões urbanísticas, consciente dos problemas específicos de irregularidade e dos instrumentos legais mais adequados para enfrentá-los e responsá vel, junto com o Poder Público, pelo acompanhamento da dinâmica de ocupação da área após o processo de regularização fundiária, de modo a evitar que situações de ocupação irregular se recriem e de modo a estabelecer um novo padrão de relação da população com os recursos ambientais, em especial os cursos d’água, as nascentes, as áreas de proteção da flora ou da fauna e as áreas com risco para a ocupação. Reforçamse assim, os vínculos da população com seu ambiente de vida, fazendo-a efetivamente, não apenas dona de sua propriedade particular, mas também daquilo que diz respeito ao espaço coletivo, ao bairro e aos interesses da comunidade. Amplia-se a autoestima dos moradores, com repercussões no cuidado com a moradia e o bairro e no reforço dos laços com sua comunidade. Sustentabilidade e direito à cidade A sustentabilidade urbana, no entanto, não pode ser entendida apenas no nível de cada cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 223 manoel teixeira azevedo jr. assentamento em particular, mas as ações nestes devem estar inseridas em uma política urbana que diz respeito ao conjunto da cidade e, no caso dos grandes aglomerados urbanos, ao contexto regional e metropolitano em que as cidades ou os municípios se encontram. Por um lado, cada assentamento objeto de regularização interage com um contexto imediato que é impactado, em maior ou menor medida, pelas ações que se dão nele. Por outro lado, suas especificidades são parte de um processo amplo de produção do espaço periférico, marcado pela informalidade no acesso ao solo urbano e à moradia. As principais causas desse processo 224 [...] vão desde fatores globais e fatores macroeconômicos até variáveis locais, mas cinco causas principais merecem atenção especial, quais sejam: a falta de opções formais resultantes da natureza das políticas fundiárias, habitacionais, urbanas e fiscais dos governos; a dinâmica excludente dos mercados de terras formais, que não incluem os pobres; a longa tradição de manipulação política dos moradores de assentamentos informais mediante práticas renovadas de clientelismo político; os sistemas de planejamento urbano elitistas e tecnocráticos que são implantados pelas administrações locais, sem levar em conta as realidades socioeconômicas de acesso ao solo e produção da moradia e nem a capacidade de ação das administrações locais para garantir o cumprimento da legislação urbanística; e a natureza obsoleta dos sistemas jurídicos e procedimentos judiciais que ainda prevalecem na maioria dos países em desenvolvimento e em transição. (Fernandes, 2006, p. 50) cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 A regularização fundiária é parte fundamental do direito social de moradia, mas suas implicações e repercussões na reestruturação do espaço urbano devem percebê-la na perspectiva da promoção de um direito mais amplo: o direito à cidade. Nesse sentido, os programas de regularização de assentamentos urbanos devem fazer parte de uma estratégia de política urbana que inclui, entre outras, as ações sobre a estrutura fundiária, a ocupação de vazios, a produção de moradias de interesse social e a distribuição dos equipamentos públicos, disseminandoos no espaço da cidade, com prioridade para sua implantação nas áreas periféricas. Essa estratégia deve estar intimamente articulada com outras políticas públicas, notadamente as de transporte e mobilidade urbana, de educação e geração de renda, de qualificação e universalização dos serviços de saúde, entre outras. Embora todas essas políticas devam ser concebidas em termos da cidade ou da metrópole como um todo, suas propostas específicas já devem ser incorporadas nos diversos programas de regularização, sendo que algumas já deveriam, necessariamente, fazer parte deles, caso das ações de capacitação profissional da população e geração de renda e das de implantação de equipamentos comunitários, respeitadas as características e demandas particulares de cada assentamento e suas relações com o entorno. Isso inscreveria mais efetivamente os programas de regularização enquanto ações curativas de resgate de direitos sociais, em uma política ampla de sustentabilidade urbana. Evidentemente, deve-se considerar também a amplitute das ações de regularização. Se elas se constituem em efetivos programas de reurbanização que, além de regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade garantir a infraestrutura básica, requalifiquem os espaços públicos, na perspectiva de uma maior homogeneidade nos padrões de urbanização, superando as enormes disparidades imperantes nas cidades brasileiras, elas têm condições de serem efetivas propulsoras do direito à cidade. Nesse caso, as ações específicas em cada assentamento deveriam fazer parte de estratégia geral de reurbanização das áreas periféricas, de modo a evitar disparidades urbanísticas que tendem a reforçar processos pontuais de valorização imobiliária, geradores de expulsão progressiva das populações beneficiadas, o que comprometeria os objetivos pretendidos de melhoria da qualidade de vida dessas populações. Tal estratégia ampla de reurbanização demanda um volume de recursos que implica, tanto um forte compromisso da sociedade, em especial dos setores mais ricos, com a diminuição das disparidades urbanísticas no interior das cidades, como a introdução de novas fontes de financiamento, para as quais os instrumentos de política urbana previstos pelo Estatuto da Cidade podem ser de grande valia, como discutiremos mais adiante. Se os projetos de regularização se restringem, como tem sido bastante usual, à infraestrutura básica, a poucas obras prioritárias de articulação viária e a sanar situações emergenciais de inadequação de ocupação, seu impacto sobre o entorno será, evidentemente, limitado, como limitada será sua capacidade de alterar o quadro de diferenciação socioespacial da cidade. De certa forma, se estará sacramentando uma urbanização de segunda categoria, um padrão empobrecido de urbanização para os mais pobres, a quem se oferecem pequenas benesses, no mais das vezes pontuais e sem atingir sequer o conjunto das áreas por eles ocupadas. Isso não deslegitima as ações que vêm sendo efetuadas e todo o esforço de diversas administrações municipais apenas tenta perceber os limites de tais ações e sua pouca eficácia em uma avaliação de sustentabilidade urbana e de encaminhamento da garantia do direito à cidade. Reconhece-se, no entanto, a magnitude das situações de precariedade urbana e o acúmulo de problemas de toda ordem, contrapostos a uma grande limitação de recursos e à baixa prioridade da sociedade para a resolução dessas questões, o que só alimenta a desesperança nas possibilidades de alteração desse quadro. As opções para o enfrentamento das disparidades socioespaciais se colocam para o jogo das forças políticas da sociedade brasileira. Os planos diretores e o conjunto do sistema de participação social na gestão dos municípios são, sem dúvida, espaços fundamentais para a definição dessas prioridades e do modelo de cidade que se pretende, mas essas questões estão permanentemente se recolocando, a partir da própria dinâmica social e política, na lenta e necessariamente conflituosa construção de cidades mais democráticas e igualitárias. Percebe-se, assim, a clara dimensão política do direito à cidade, que inclui o direito à terra e à moradia, mas os amplifi ca, inserindo-os em um direito aos bens e serviços produzidos pela sociedade. Nesse caminho, é fundamental um patamar de urbanização a todos garantido, condição preliminar para um convívio social menos marcado pela violência e o estranhamento entre os grupos sociais. Direito à cidade é, assim, requisito básico para o exercício pleno da cidadania. cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 225 manoel teixeira azevedo jr. Instrumentos de política urbana 226 Dentro dessa perspectiva, duas vertentes articuladas deveriam nortear, no âmbito das políticas urbanas, a atuação do Poder Público: habitação e urbanização. O enorme déficit habitacional, aliado às condições precárias em que vive boa parte da população urbana e à sua exclusão do mercado imobiliário formal, exige um enorme esforço de produção de novas moradias e de urbanização e regularização fundiária de assentamentos informais. Isso implica, para além da capacitação e organização das administrações municipais, grande aporte de recursos financeiros, que demandam a previsão de novas fontes de financiamento, a priorização desses investimentos nos orçamentos municipais e a diminuição dos custos de acesso à terra, um dos gargalos de qualquer política de produção de moradias. Trata-se, portanto, de ações de caráter, não apenas técnico, mas eminentemente político, envolvendo a escolha de instrumentos, a amplitude de sua aplicação e a pactuação na distribuição de ônus e benefícios. Na questão do acesso à terra, instrumento importante é previsto pela Constituição e regulamentado pelo Estatuto da Cidade: a Usucapião Especial de Imóvel Urbano que, ao assegurar o direito de permanência e domínio para aqueles que ocupam há mais de cinco anos imóveis urbanos de até 250 m2, sem contestação judicial e não sendo proprietários de outros imóveis, é fundamental para a regularização fundiária das favelas, no caso de áreas de propriedade privada. Sua utilização foi enormemente facilidade pela possibilidade de aplicação cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 coletiva, na forma de condomínio especial, resolvendo a grande dificuldade e quase inviabilidade de utilização do instrumento se os processos de usucapião tivessem, no caso das favelas, que ser feitos de forma individualizada. O sucedâneo da usucapião, no caso de áreas de propriedade pública, é Concessão do Direito Real de Uso e, especialmente, uma forma específica desta instituída pela Medida Provisória n° 2.220/01, a Concessão Especial de Uso para fins de Moradia. Esse instrumento garante a permanência nos locais de moradia àqueles que, até 30/6/2001, ocupavam por cinco anos contínuos, sem oposição, áreas públicas de até 250 m2, sem serem proprietários de outro imóvel. A medida exclui desse direito uma série de áreas públicas (as de uso comum do povo, as de risco, as destinadas a projetos de urbanização, as de preservação ambiental, entre outras), prevendo, no entanto, que, nesses casos, o Poder Público deverá promover o reassentamento das famílias ocupantes. É importante ressaltar que, diferente da Concessão do Direito Real de Uso, que é uma “prerrogativa do Poder Público”, a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia, ao criar um “direito subjetivo” do ocupante, implica “obrigação do Poder Público” (Fernandes, Edésio em Rolnik, 2007). Esse instrumento havia sido vetado no Estatuto da Cidade por este não prever os casos de não aplicabilidade e não estabelecer a data limite para sua aplicação, sem a qual, supostamente, poderia ocorrer uma “corrida” de ocupação de áreas públicas. Outro instrumento importante é a definição de Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) que, além de possibilitar a aplicação de parâmetros específicos de urbanização regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade no caso de assentamentos existentes e, nesse sentido, facilitar a implantação dos programas de regularização, poderia ser muito mais explorado pelos planos diretores na definição de áreas para futuros programas habitacionais, criando uma espécie de reserva de terrenos para tais programas, cujos valores tenderiam a se retrair em função do próprio zoneamento. Assim, além de possibilitar a formulação de uma política de médio e longo prazos para a produção de moradias, a definição das ZEIS, ao baratear os custos de acesso aos terrenos, poderia ser combinada, para a implantação dos programas habitacionais, com a utilização de instrumentos fiscais de incentivo à participação da iniciativa privada nesses empreendimentos ou de instrumentos de parceria com o setor privado, como o Convênio Urbanístico de Interesse Social. Neste, Poder Público e iniciativa privada se associam, entrando, um com o terreno, outro com obras, viabilizando programas habitacionais e permitindo, entre outras possibilidades, que o ressarcimento pelo uso de terrenos privados se dê através de parcelas urbanizadas dos mesmos, que permanecem com os proprietários originais, enquanto o restante é utilizado no programa de interesse social. A definição como ZEIS das áreas onde se aplicarão a Usucapião ou a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia é importante como forma de inibir possíveis pressões do mercado imobiliário para venda das áreas regularizadas, na medida em que, como ZEIS, a destinação dos terrenos é a habitação de interesse social, com parâmetros mais restritivos de tamanho do lote e de ocupação do terreno, o que tende a diminuir sua atratividade para o mercado imobiliário (Alfonsin, Betânia em Rolnik, 2007). No entanto, a regularização fundiária e a reurbanização de favelas e loteamentos precários, trabalhando no socorro às situações existentes, devem estar ligadas, como já apontado, a políticas que alterem o modo perverso de produção do espaço urbano, em especial nas grandes metrópoles. Essa produção tem se caracterizado pelo baixo padrão urbanístico e por uma ocupação extensiva e rarefeita das áreas periféricas, deixando grandes áreas vazias, encarecendo os custos per capita de implantação das infraestruturas urbanas e obrigando a população a percorrer enormes distâncias, o que é agravado pela, em geral, baixa qualidade dos serviços públicos de transporte. Além disso, os demais serviços urbanos (de educação, saúde, lazer, etc.) são também, em geral, marcados pela deficiência quantitativa e qualitativa. Com isso, aumenta a espoliação da população pobre, agregando à baixa remuneração do trabalho e consequentes restrições de consumo, uma deterioração da qualidade de vida que decorre da própria forma da cidade e da qualidade dos serviços e equipamentos urbanos. Para enfrentar essa situação, além das fundamentais políticas de melhoria dos serviços de educação, saúde, lazer e transportes, é preciso, no âmbito das políticas fundiárias e de ocupação urbana, restringir os perímetros de expansão urbana, dimensionando-os em função, não das demandas de valorização especulativa e dos interesses de proprietários de terrenos, mas sim da real demanda de terras para urbanização, calculada para um horizonte de tempo relativamente curto (em torno de cinco anos) e periodicamente reavaliada. Nesses cálculos, deve-se considerar o estoque de áreas vazias e de construções desocupadas no interior das cidades, cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 227 manoel teixeira azevedo jr. 228 em especial nas áreas centrais. Essa política de controle da expansão urbana deve estar associada a uma política agressiva que estimule e mesmo obrigue a colocação no mercado e a ocupação desses imóveis vazios, subutilizados ou sem utilização, ou seja, que imponha a eles o cumprimento de sua função social. Instrumentos para isso são os colocados na Constituição e regulamentados no Estatuto da Cidade: o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, o IPTU progressivo e a Desapropriação com títulos da dívida pública, cuja utilização deve se dar de maneira sucessiva. Com isso, estar-se-ia trabalhando na perspectiva de geração de uma cidade compacta, menos espraiada, com maior rentabilidade e economia na implantação e utilização das infraestruturas e equipamentos urbanos. Essa política de ocupação de vazios urbanos e de imóveis subutilizados ou não utilizados e de controle da expansão territorial deveria estar articulada com as políticas de produção maciça de novas moradias ou lotes urbanizados de interesse social, valendo-se, para isso, dos mecanismos de definição de ZEIS e das parcerias entre Poder Público e iniciativa privada. Combinarse-iam, assim, mecanismos de imposição do cumprimento da função social da propriedade, com mecanismos de viabilização de tal cumprimento. É importante ressaltar que a produção de moradias em larga escala e a oferta de lotes com condições urbanísticas satisfatórias e localização adequada para a população mais pobre é fator fundamental para a prevenção e inibição do processo de desenvolvimento urbano informal (Fernandes, 2006). A outra questão fundamental é a dos padrões de urbanização. Não há como cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 conciliar cidadania e democracia com as enormes disparidades nos padrões de urbanização que caracterizam as cidades brasileiras. Garantir uma equalização mínima desses padrões é não só fundamental para o direito à cidade, mas também instrumento para diminuir as enormes disparidades no valor das terras urbanas e, portanto, fator essencial para facilitar a produção de novas áreas urbanizadas. É essencial também para a perspectiva da sustentabilidade urbana, notadamente na sua dimensão social. Evidente que esse esforço de requalificação urbanística dos territórios periféricos da cidade, que inclui os programas de regularização de assentamentos informais, mas os ultrapassa, abrangendo o conjunto da precariedade urbanística das periferias, exige grandes recursos fi nanceiros e uma das formas de obtê-los é a exploração mais adequada e socialmente direcionada dos instrumentos de justiça na produção do espaço urbano previstos no Estatuto da Cidade. O principal deles é a Concessão Onerosa do Direito de Construir, que taxa os empreendimentos com maior densidade construtiva, em decorrência do fato de que a permissão de tal adensamento decorre da presença de uma infraestrutura implantada pela coletividade. Por isso esta deve receber uma contrapartida por tal concessão. Esse instrumento, usado de maneira inteligente e inserido em uma política coerente de uso e ocupação do solo, pode gerar uma massa significativa de recursos que deveria alimentar fundos de urbanização ou fundos de habitação social, propiciando aporte de recursos para o grande esforço de produção de moradias e reurbanização de áreas periféricas que a perspectiva da universalização do direito à cidade impõe. Tal política regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade deveria ter como princípio onerar as áreas de maior interesse do mercado imobiliário, em geral destinadas à população mais rica, e ser aplicado diferenciadamente em outras áreas da cidade, através de redutores ou mesmo de isenções, dentro de uma estratégia, pensada para a cidade como um todo, de estímulos ou inibições ao adensamento populacional ou construtivo. Infelizmente, por pressão dos interesses imobiliários e o argumento de que esse instrumento iria sobrecarregar o custo final das unidades construídas, a Concessão Onerosa do Direito de Construir tem sido muito pouco explorada nos planos diretores ou aplicada de modo extremamente tímido, com valores baixos de contrapartida, sem gerar os efeitos sociais que possibilitaria. O argumento do aumento do custo final das construções é verdadeiro, mas não necessita incidir sobre o conjunto da produção de moradias do mercado formal, de acordo com uma estratégia diferenciada para sua aplicação, que inclui a consideração das diferenças de renda nos grupos sociais que demandam o mercado imobiliário. Além disso, seu impacto sobre o custo final da construção tenderia a ser diluído pelos diversos compradores, em geral de maior poder aquisitivo. A aplicação do instrumento deve, assim, estar balizada por critérios sociais e sua utilização plena faz parte das decisões políticas da sociedade e do nível de responsabilidade que os setores mais ricos pretendem assumir no esforço de diminuição das desigualdades socioespaciais. Dentro dessa mesma linha, poderiam ser previstas também formas de contrapartida social, destinadas a fundos de urbanização ou de habitação, para loteamentos urbanos direcionados aos estratos mais ricos da população. Outro instrumento importante de justiça na produção do espaço urbano são as Operações Urbanas Consorciadas que, nos grandes obras públicas de reurbanização, em especial as viárias, pode reverter a lógica tradicional de apropriação privada da valorização decorrente do investimento público, fazendo com que aqueles que lucram em função dessas obras participem no custeio das mesmas. Dentro das Operações Urbanas, o instrumento em geral mais utilizado para a geração de recursos de custeio das obras envolvidas é, justamente, a Concessão Onerosa do Direito de Construir. A Contribuição de Melhoria é outro instrumento que trabalha nessa mesma direção. A utilização deles, além dos objetivos de melhor distribuir os ônus e benefícios do investimento público, tende a desonerar os cofres públicos, liberando maiores recursos para outros investimentos, em especial nas áreas periféricas. A dimensão metropolitana É importante destacar, em especial no contexto das grandes cidades, que a aplicação desse conjunto de instrumentos de política urbana só pode ter eficácia se realizada dentro de uma gestão de âmbito metropolitano, ou seja, dentro das chamadas questões de interesse comum dos municípios componentes de aglomerados ou regiões metropolitanas. Se isso já é claro e vem sendo praticado em relação a questões como o abastecimento de água, o esgotamento e tratamento de efluentes sanitários, a macrodrenagem urbana, o sistema viário estruturante e o sistema de transportes cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 229 manoel teixeira azevedo jr. 230 coletivos, outras questões têm sido tratadas de modo fragmentado pelos diversos municípios. Não há como conceber políticas coerentes de produção de moradias, de reurbanização de periferias e regularização de assentamentos informais, e mesmo políticas de implantação dos equipamentos comunitários de educação, saúde, lazer, entre outros, sem tratá-las no âmbito do espaço metropolitano. Na medida em que a produção do espaço periférico nas grandes cidades, com suas características de precariedade e segregação se dá, em geral, menos no município central e muito mais nos municípios ao redor deste, em assentamentos conurbados ou que se estendem, fragmentariamente, em um amplo espaço regional polarizado pelo município principal, a política urbana deve ser pensada a partir dessa realidade supralocal e não como somatório de políticas municipais, em geral desarticuladas. A definição dos perímetros urbanos, a aplicação dos dispositivos de combate à retenção especulativa de terras, a definição das ZEIS para novos programas habitacionais, o modo de aplicação da Concessão Onerosa do Direito de Construir, articulada a um fundo de urbanização ou de habitação, entre outros instrumentos, só ganham eficiência e se tornam efetivos mecanismos de sustentabilidade urbana se concebidos através de uma articulação política de âmbito metropolitano ou regional. No caso, por exemplo, da Concessão Onerosa do Direito de Construir, os municípios centrais, onde o interesse e as possibilidades de adensamento são maiores, tendem a ser geradores de recursos que, numa perspectiva metropolitana, devem ser destinados não só para suas áreas periféricas mas também, e talvez principalmente, cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 para as periferias dos municípios mais pobres, em geral as mais carentes. Assim, a ideia de um fundo metropolitano deveria estar alimentada por recursos, entre outros, da aplicação coordenada desses instrumentos, em especial da Concessão Onerosa do Direito de Construir, e com estratégias de alocação dos recursos de caráter redistributivo, ou seja, priorizando os municípios periféricos, em geral com base econômica frágil e, nesse sentido, incapazes de fazer frente aos problemas sociais e urbanísticos de toda ordem que suportam. Essas são questões que recolocam a necessidade de se reestruturar uma gestão dos espaços metropolitanos, agora em um novo patamar: não mais como imposição tecnocrática do poder estadual e federal, como foi a experiência do período do regime militar, mas assumindo a dimensão política de um pacto entre os municípios das regiões metropolitanas, com interveniência da sociedade civil e do poder estadual. Sem a construção dessa articulação metropolitana, os municípios mais pobres estão fadados à perpetuação de sua condição de pobreza e ações positivas de democratização urbana em um município podem não atingir os fins desejados ou repercutir negativamente em outros, fazendo com que a realidade da segregação e diferenciação socioespacial seja constantemente reproduzida. Conclusão A partir das questões aqui levantadas, é possível perceber o grande potencial aberto pelo Estatuto da Cidade para o enfrentamento e a diminuição das desigualdades socioespaciais regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade presentes nas cidades brasileiras e sua importância para que a perspectiva da sustentabilidade urbana contemple essa dimensão de reconfiguração física e social das cidades. Cabe à sociedade explorar as possibilidades dos instrumentos disponibilizados pelo Estatuto, incrementando sua aplicação criativa e combinada, em um processo de permanente acompanhamento e avaliação de sua eficácia para os objetivos pretendidos. Apesar da discussão e do alerta da necessidade de uma reforma urbana já vir de mais de qua- renta anos, período em que a questão social nas cidades brasileiras se tornou dramática, abrem-se hoje possibilidades efetivas de enfrentamento dessas questões, até por pressão da própria realidade e maior consciência dos setores dirigentes, cabendo esperar da sociedade como um todo, especialmente dos governos e das classes mais ricas, que sejam capazes de perceber a dimensão do problema e a necessidade de agir com consistência, na perspectiva de resultados duradouros e efetivamente transformadores. Manoel Teixeira Azevedo Jr. Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil). [email protected] 231 Referências BRANCO, S. M. (1989). Ecossistema – uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente. São Paulo, Edgard Blücher. FERNANDES, E. (org.) (2001). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte, Del Rey. ________ (2006). Programas de regularização fundiária em áreas urbanas: comentários e lições. Oculum ensaios: revista de arquitetura e urbanismo. São Paulo, n. 6. MARICATO, E. (2001). Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ, Vozes. ROLNIK, R. e CYMBALISTA, R. (org.) (1997). Instrumentos urbanísticos contra a exclusão urbana. São Paulo, Polis. ROLNIK, R. et al. (2007). Regularização fundiária sustentável – conceitos e diretrizes. Brasília, Ministério das Cidades. Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 cadernos metrópole 21 pp. 219-231 10 sem. 2009 A construção da esfera pública no planejamento urbano. Um percurso histórico na cidade de Santos Luiz Antonio de Paula Nunes Resumo O objetivo deste trabalho é o estudo do processo de participação da sociedade civil no planejamento urbano no período compreendido entre os anos de 1945 e 2009, tendo como objeto a cidade de Santos, que é tomada como estudo de caso. O foco está na construção e institucionalização de espaços políticos, como comissões e conselhos, onde ocorreram debates para formulação de propostas de intervenção e elaboração de legislação urbanística. Tendo como base uma revisão bibliográfica sobre a temática envolvida, aliada ao levantamento documental, a fim de constatar como esse percurso histórico se deu, pretende-se responder questões sobre como e por que se construíram e se institucionalizaram essas arenas no nível local. Abstract The aim of this work is the study of the process of civil society participation in urban planning in the period between 1945 and 2009, having as object the city of Santos, which is taken as a case study. The focus is the construction and institutionalization of political spaces such as commissions and councils, where debates were held in order to formulate proposals for intervention and urban legislation production. Based on a bibliographical review, allied to a documental survey in order to check how this historical path occurred, the aim is to answer questions about how and why those arenas were built and institutionalized in the local level. Palavras-chave: cidade; planejamento; cidadania; governança; democracia. Keywords: city; planning; citizenship; governance; democracy. cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 luiz antonio de paula nunes Introdução 234 A história da democracia deve ser vista como um processo dinâmico, constantemente alterado por mobilizações que a identificam cada vez mais com a pluralidade de interesses. Nesse percurso histórico, pode ser vista tanto como a oportunidade dos cidadãos de participarem do processo político através do voto como pela possibilidade de participarem das tomadas de decisões. Nas últimas décadas do século XX, as questões relativas à participação dos cidadãos tornaram-se presentes em diversas áreas, inclusive na formulação de propostas relacionadas com o desenvolvimento urbano. A questão que se coloca é: Esse cenário é novo ou é consequência de um percurso histórico em que planejamento urbano, participação e concepção de democracia estão intrinsecamente relacionados? O que se pretende demonstrar é que, na trajetória histórica do planejamento urbano, ocorreu um processo de construção da esfera pública derivado da trajetória das concepções de democracia, estruturação do Estado, sociedade civil e cidadania. Ao fazermos esta análise, encontramos relações entre planejamento urbano e política, em que a participação passou a assumir papel cada vez mais relevante. Isso implicou a formulação de novos conceitos, tais como espaço público e esfera pública, além da redefinição de outros, como sociedade civil e cidadania. A base teórica teve como principais referências autores como Maria da Glória Gohn, Carole Pateman, Alain Touraine e Norberto Bobbio, além do conceito de esfera pública de Jünger Habermas e análises cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 elaboradas sobre esse conceito e sobre sociedade civil por, dentre outros, Sérgio Costa, Adrian Lavalle e Elenaldo Teixeira. As referências que aqui constam são apenas aquelas utilizadas para elaboração deste artigo: para verificar toda a bibliografia utilizada na pesquisa vide Nunes (2006). Neste artigo, privilegiou-se a análise do cenário político brasileiro em conjunto com a história do pensamento urbanístico, tomando a cidade de Santos como estudo de caso e utilizando o recorte temporal definido pelos anos de 1945 e 2009, dividido em três períodos. O primeiro período, de 1945 a 1964, trata, no contexto do restabelecimento do regime democrático no Brasil, de como o planejamento urbano passou a ser pautado na agenda política. O segundo período, de 1964 a 1984, trata, no contexto histórico do autoritarismo brasileiro, do isolamento da atividade do planejamento pela centralização tecnocrática. O terceiro período, de 1984 a 2009, trata, no contexto da redemocratização do Brasil, das recentes experiências de participação no processo de gestão urbana. 1945 a 1964 – Democracia e politização Nessa época, acirravam-se os conflitos ideológicos, produzindo consequências políticas para o processo democrático de sinais opostos. Para o liberal, o protagonismo da sociedade está no indivíduo, enquanto que, para a chamada “esquerda”, o protagonismo está nos sindicatos e organizações populares. O conceito de democracia, como forma de a construção da esfera pública no planejamento urbano exercício da política, variava de um método para escolher lideranças que tomariam decisões em nome dessa maioria a um método eficaz para se resolver conflitos e obter consenso. Já a participação de organizações da sociedade civil em organismos do Estado pode ocorrer como uma resposta institucional a um processo que, neste trabalho, chamamos de “politização”. Normalmente, esse termo é utilizado para designar o processo de conscientização dos cidadãos, ou classes sociais, de seus deveres e direitos políticos, preparando-os para exercê-los, mas, para este trabalho, estamos utilizando-o para designar o processo que leva um determinado tema a ser incorporado na pauta política. O processo político implica a conciliação de posições conflitantes para a tomada de decisão relativa ao bem comum, independentemente da qualificação que se dê a esse bem e a forma de sua realização. Vista dessa forma, uma questão se torna política à medida que adquire um caráter polêmico e quando sua solução é considerada como um bem público e que passa a receber o respaldo, ou é almejado, de um agente do poder. Como corolário dessa colocação, podemos falar em politização quando afirmamos que um determinado tema passa a ter maior densidade política por integrar em si essas três condições: polêmica, bem comum e poder de decisão. Dessa forma, o tema se torna político pela sua relevância em termos práticos, quando envolve diretamente questões fundamentais da vida dos indivíduos ou, em termos estratégicos, quando se torna atrativo nos meios de comunicação. Portanto, “politizar” um determinado tema é torná-lo “atrativo”, o que pode ser feito pela sua “imagem” ou pela importância dos agentes que o expõem, e relaciona-se assim com os meios de comunicação disponíveis. O governo pode procurar estimular o debate dos temas cuja perspectiva de encontrar decisão consensual seja mais óbvia, ao mesmo tempo em que, pelo contrário, pode dificultar quando a solução poderia ameaçar interesses estabelecidos. A Comissão do Plano da Cidade de Santos No final dos anos 40, a partir do início do processo de retomada democrática no Brasil, a cidade de Santos continuava sob intervenção federal, mas, no âmbito do planejamento urbano, essa época corresponde à sua inserção na pauta política, num processo que acabou por criar a primeira instância de participação para discussão sobre o planejamento urbano na cidade de Santos: a Comissão do Plano da Cidade. A preocupação com o tema parece se relacionar com a importância dos agentes que o expunham nesse momento, Anhaia Mello e Prestes Maia, dois dos mais importantes urbanistas brasileiros da época, que foram citados direta ou indiretamente nas plataformas eleitorais da maior parte dos partidos políticos, enquanto que a questão da habitação, por outro lado, constituiu-se como um dos temas centrais dos comunistas. A pautação política do planejamento urbano parece estar associada a diversos fatores: a experiência bem-sucedida de Prestes Maia na cidade de São Paulo, a postura de Anhaia Mello, que defendia a participação da sociedade civil no debate sobre a cidade cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 235 luiz antonio de paula nunes 236 através das Comissões, a promoção de debates e eventos com a presença de técnicos que discutiam as questões urbanas por iniciativa de associações, como o Rotary Club, Associação dos Engenheiros de Santos e Sociedade Amigos da Cidade, e, principalmente, o fato de o Plano Geral oferecer uma perspectiva de se encontrar uma decisão consensual para os problemas urbanos que se agravavam. A ideia de cidade planejada, através de comissões que estabelecessem um compromisso das administrações com o plano, correspondia à garantia de salvaguarda dos interesses privados no processo de desenvolvimento urbano, assim como também representaria um elemento de ligação do sistema com a estrutura política, que detinha o poder de decisão. A Comissão do Plano da Cidade, a partir de 1948, passou a discutir o futuro e o presente da cidade analisando todos os processos relativos à urbanização, garantindo a existência de um espaço institucional para dar continuidade aos debates que ocorriam em outros espaços, repercutindo nessa esfera a opinião pública e influenciando o processo de tomada de decisão. Por outro lado, também ocorreu a valorização do “saber técnico”, visto que a representação que se pretendia era “técnica”, enquanto outros setores da sociedade civil estariam excluídos nesse momento. A “centralização”, enquanto característica do planejamento urbano nesse período, decorre naturalmente da valorização do formalismo técnico e jurídico, que seria uma forma de dificultar um processo político que permitisse atender às demandas sociais, uma vez que essas colocassem em perigo os interesses dos grupos dominantes (cf. Touraine, 1996, p. 36). cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 Na Comissão do Plano, as associações estavam representadas através de duas agremiações que reuniam os setores da classe média urbana da época, o Rotary Clube e a Associação de Engenheiros de Santos. Todos os participantes da Comissão eram membros de uma dessas associações. Apenas 10% correspondia a profissionais liberais, 40% dos membros eram da Câmara Municipal, 20% eram técnicos da Prefeitura e 30% de empresas privadas. Essa participação legítima, mas de caráter corporativo, era vista de maneira positiva pelas elites, na medida em que esses grupos eram representantes dessa mesma elite e avessos ao conflito. A politização do planejamento chegou ao ponto que interessava aos grupos dominantes, impedindo debates que fugissem a um consenso sem respaldo primordialmente técnico. Com essas características, essa Comissão não pode ser considerada como uma esfera pública nos termos propostos por Habermas, porém, alguns de seus princípios já estavam presentes, o que a torna, de fato, uma arena de discussões das questões urbanas, mesmo que faltassem na sua composição segmentos a serem representados. O encaminhamento de temas polêmicos demonstrou que o debate permitia certa transparência na discussão dos temas urbanos e do planejamento da cidade, com repercussão em setores da sociedade antes da tomada de decisão final, o que era sem dúvida um avanço em termos de participação, ainda que restrita (Nunes, 2001). A composição da Comissão do Plano da Cidade permaneceu a mesma durante os três anos que duraram os estudos para elaboração do Plano de Expansão e Melhoramentos da Cidade, aprovado em 1951. Em 1952, a a construção da esfera pública no planejamento urbano Comissão Consultiva do Plano da Cidade foi instituída com uma composição mais heterogênea, pela representatividade de outros setores, mas sua atuação foi reduzida e não há registros significativos sobre ela. Como em outras cidades brasileiras, o zoneamento e os índices urbanísticos passaram a dominar o pensamento urbanístico e o planejamento urbano, aspectos que passaram a ser fundamentais para a indústria da construção civil, particularmente na cidade de Santos. No início da década de 1960, em que pese ter sido marcante a ampliação da participação política, esta acabou por não se institucionalizar plenamente, justificando de certa forma o percurso que “teve como eixo as atividades e discursos que vieram a desembocar nos atuais planos diretores” (Villaça, 1999, p. 175). 1964 a 1984 – Autoritarismo e centralização Esse período é caracterizado pela suspensão das garantias democráticas no Brasil. A participação da sociedade civil se reduziu em todos os níveis e coincidiu com conflitos sociais decorrentes das alterações no quadro urbano brasileiro e o planejamento se consolidou como instrumento de política governamental, influenciado por experiências anteriores e propostas da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal. Como pano de fundo da busca pela racionalidade técnica, havia um caráter autoritário e uma estratégia de implantação de instâncias institucionais compatíveis com o esforço centralizador de modernização da administração e dos meios de produção do país. Ao contrário do que se assistiu a partir do final da década de 1940, o planejamento urbano saiu da agenda política e assumiu uma característica ainda mais tecnocrata, passando a ser uma forma de “despolitizar” os conflitos urbanos. Os princípios liberais associados com ideais de uma política do bem-estar social, através de uma relação equilibrada entre iniciativa privada, interesse público e apropriação de benefícios da ação coletiva, predominavam no Plano Diretor Físico aprovado em 1968, num texto prolixo que, apesar de não ultrapassar a barreira do discurso, foi substituído somente depois de 30 anos. O Conselho Consultivo do Plano Diretor Físico – Coplan, que substituiu os espaços anteriores de discussão, era composto por sete membros designados pelo prefeito, dos quais quatro eram representantes do Poder Executivo, o que lhe conferia a predominância na constituição desse Conselho, com técnicos das áreas de engenharia e do direito. Foram justamente essas pretensas superioridade e neutralidade da técnica que levaram o planejamento a um isolamento em relação à população, e a ausência desses mesmos resultados terminou por transformar o Plano Diretor em um texto burocrático, cujo interesse político, principalmente num momento histórico em que inexistia o controle social sobre essas atividades, restringia-se aos aspectos que poderiam alterar o valor da terra e atender interesses de investidores. Esse momento correspondia a novos entendimentos no ideário de planejamento urbano e a utilização crescente de análises com base nas relações produtivas determinadas pela desigualdade das condições cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 237 luiz antonio de paula nunes materiais entre as diferentes classes sociais para compreender os padrões de urbanização e o processo como se dava o acesso à terra e aos meios de consumo coletivo. No Brasil, esse aspecto influenciou nos debates, intensificando críticas ao padrão centralizador que marcou o período autoritário e gerando propostas de descentralização que passaram a ganhar força não só como um meio para se alcançar justiça social na gestão da cidade, mas como a possibilidade de democratização do país. Participação como resistência democrática 238 Na década de 1970, a participação da sociedade civil e os movimentos sociais assumiram a forma de resistência ao autoritarismo e à centralização excessiva do regime militar numa “ética política de nós versus eles” (Linz e Stepan, 1999, p. 28) cuja ênfase na dicotomia entre sociedade civil e Estado foi útil para isolar o regime não-democrático; mas na década de 1980 a sociedade civil começou a se configurar mais como “uma rede de associações, movimentos, grupos e instituições, que, articulada com setores liberais e lideranças empresariais, participa ativamente do processo de redemocratização” (Teixeira, 2001, p. 24). Nessa época, um anteprojeto de lei federal condicionava a propriedade à sua função social, trazia novos instrumentos urbanísticos e colocava a participação das comunidades interessadas como parte fundaental na elaboração e execução de normas, diretrizes e planos urbanísticos, mas não teve resultado imediato, a não ser mostrar que existia um esforço de resistência à cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 centralização excessiva, e que novas ideias e conceitos sobre cidadania, sociedade civil e democracia participativa eram absorvidos pelas mais diversas áreas de conhecimento, inclusive no planejamento urbano. 1984 a 2009 – Participação e democracia Esse período corresponde ao restabelecimento, no Brasil, dos direitos civis fundamentais. A sociedade deparou-se então com conflitos e divergências que surgiram de um conjunto de demandas reprimidas ao longo de duas décadas. Seria preciso não só reconhecer como legítimos os interesses divergentes como também criar os canais de participação da sociedade, num verdadeiro processo de negociação. Nesse momento da história brasileira, o termo “participação popular” se generalizou como forma de obter o rearranjo das relações entre Estado e Sociedade e se aperfeiçoar o tema da igualdade de oportunidades. A segunda metade da década de 1980 se iniciou com a certeza que participação e eleições eram fundamentais para o processo democrático e para que se alcançassem níveis adequados de bem-estar. Participação como conquista Em 1985, inaugurou-se no Brasil o primeiro ciclo do que se chamou de “democracia urbana”, caracterizado pela participação dos movimentos sociais, e, nas eleições de 1988, o segundo ciclo dessa “democracia urbana” se caracterizou pela maior radicalidade no a construção da esfera pública no planejamento urbano discurso sobre a participação direta, com ênfase na proposta de instalação de conselhos deliberativos e orçamento participativo (Soares e Gondin, 2002, pp. 65 e 66). Dentre as teses sobre participação que passaram a ser veiculadas, prevaleceram as que defendiam mudanças institucionais, democraticamente construídas, criando direitos num quadro de respeito às liberdades constitucionais. Mecanismos de participação e consulta foram incorporados e consolidados com a promulgação, em 1988, da Constituição Federal. Nas referências teóricas do debate sobre a sociedade civil, o aspecto estritamente decisório da participação perdeu sua ênfase para dar lugar ao debate público das questões, à proposição de alternativas, exigência de prestação de contas dos atos dos agentes públicos e consequente responsabilização dos que tomam as decisões, ao que Habermas chama de política deliberativa (Teixeira, 2001, p. 36), onde a dimensão negociada é enfatizada. Nessa concepção de democracia, o conflito, mais do que inevitável, passa a ser visto como legítimo e necessário e sua solução passa por mudanças estruturais na relação de poder da sociedade. Descentralizar e desconcentrar ganharam novo significado, não mais como ferramenta para abrir “brechas” no sistema, mas como instrumento para legitimar interesses divergentes ante o reconhecimento da emergência de conflitos. Participação como princípio Esses conceitos dominaram o debate sobre a participação democrática da sociedade civil no processo político e serviram muitas vezes como ponto de referência para esboçar teorias sobre canais de interlocução entre sociedade e Estado. Dentre esses novos canais, os conselhos de gestão passaram a ser uma nova forma de influenciar as decisões políticas. A participação deixava de ser uma conquista e passava a se tornar um princípio a ser garantido. Os conselhos gestores e novos projetos em termos de intervenção coletiva, organização e desenvolvimento social, efetivavam-se, colocando novas questões para o debate sobre planejamento urbano e municipal. As eleições de 1992 deram início ao terceiro ciclo das gestões locais inovadoras, que, desta vez, além da ênfase no orçamento participativo, introduziam o conceito [...] de parceria e de desenvolvimento econômico como condições para uma administração bem-sucedida [combinando] formas de participação semidireta na gestão (os conselhos setoriais) com a parceria da iniciativa privada, ONGs e organizações populares no desenvolvimento de projetos econômicos. (Soares e Gondin, 2002, p. 67) Se, por um lado, isso passou a ser a marca dos governos democráticos populares, por outro, iniciava-se um processo de assimilação institucional desses conceitos que passariam a serem contemplados nos discursos dos mais variados matizes políticos. O que se observou foi certa “diluição nas marcas ideológicas do discurso, muito embora persistam nítidas diferenciações políticas na natureza das ações” (ibid., p. 69), na medida em que, “independentemente de tendências ideológicas, [essa visão era] cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 239 luiz antonio de paula nunes imperativa para o enfrentamento da crise social” (ibid., p. 74). Fica evidente que a questão da participação na gestão, especialmente do desenvolvimento local, passou a ser incorporada à agenda de muitos atores sociais e é hoje um dos principais temas de discussão e intervenção, nas três esferas de governo, ainda que o significado e o conceito de participação e de desenvolvimento apresentem possibilidades diversas. Participação como estratégia 240 A partir da década de 1990, uma política mais generalizada de inserção nos mercados globais se desenvolveu, dinamizando um modelo de gestão que apontava para uma interação do governo com a sociedade através da relação de mercado ou de parcerias entre o público e o privado. Dando continuidade às políticas de descentralização de gestão, o objetivo passou a ser ampliar oportunidades de negócios e minimizar o Estado. A vitalidade desse processo depende da existência de um espaço público que represente [...] a arena privilegiada de atuação política dos atores da sociedade civil, constituindo, ainda, a arena de difusão dos conteúdos simbólicos e das visões de mundo diferenciadas que alimentam as identidades de tais atores. (Costa, 1997, p. 17) Nesse caso, a esfera pública corresponde à possibilidade de soluções e respostas às reivindicações por direitos e melhorias de qualidade de vida, que antes eram vistas cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 como de responsabilidade do Estado, e passaram a ser encaradas como frutos de negociações e de políticas alternativas às que são geradas a partir do Estado. Nesse momento, a ideia da participação da sociedade civil no processo de planejamento e gestão já deixara “de ser apanágio dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais e passou a ser incluída nas propostas de governos e no planejamento estratégico das cidades, independentemente da orientação ideológica dos gestores” (Soares e Gondin, 2002, p. 81) e as parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada foram incentivadas. Parcerias passaram a ser consideradas como forma de participação e incorporaramse conceitos que já permeavam algumas administrações locais, no exterior desde a década de 1980 e no Brasil desde a década de 1990, que adotavam um modelo de planejamento que privilegiava a gestão empresarial, denominado Planejamento Estratégico. 1984 a 2009 – Participação, democracia e planejamento em Santos Como pudemos perceber, as mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas foram rápidas e profundas. Descentralização e democracia participativa, que já eram temas presentes no debate sobre o “planejamento participativo”, que passou a ser visto como solução para os problemas urbanos. Essa expectativa por um urbanismo democrático e participativo era fruto de articulações que antecederam a Constituinte. a construção da esfera pública no planejamento urbano Na cidade de Santos, durante a gestão Osvaldo Justo (1985-1988), foram aprovadas, com emendas da Câmara Municipal, alterações na lei do Plano Diretor que ampliaram a representatividade da sociedade civil no Conselho Consultivo do Plano Diretor – Coplan. As novidades nessa nova composição foram: a redução da presença do Poder Executivo e a presença de entidades de bairro e ambientalistas. Ainda que a qualidade de representação no Coplan fosse questionável, no entanto, não se retira a importância da conquista que a sociedade civil obteve naquele momento, durante o primeiro governo municipal eleito após o período militar. O texto da Constituição Federal de 1988 trouxe novidades em relação à política urbana e à questão da participação. A função social da propriedade ficou vinculada às exigências de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, o que deu fundamento para outros instrumentos, e a institucionalização desses aspectos se deu, sucessivamente, nas esferas federal para a estadual e local. Essa transferência de conceitos é uma demonstração de como a Constituição Federal de 1988 transformou-se no principal marco normativo da ideia de nação politicamente democrática, coroando o processo de lutas e movimentos anteriores, propiciando uma redefinição nas relações de poder e de convivência política que construiu novos espaços institucionais. Uma das consequências desse processo é que muitas das gestões eleitas a partir de então incorporaram a participação enquanto prática administrativa e, em muitos casos, nessas administrações, ocorreu uma forma de enfrentamento dos problemas urbanos que privilegiou instrumentos que buscavam a inclusão social no processo de urbanização através, principalmente, da regularização fundiária e investimentos em políticas públicas. Nesse sentido, o caso da cidade de Santos é exemplar. Na gestão Telma de Souza (1989-1992), o planejamento urbano pretendia se revelar como essencialmente político, em oposição ao discurso tecnocrata do período autoritário que queria mostrar o planejamento urbano como apolítico. Sua elaboração conceitual rompia com padrões até então presentes no ideário do planejamento e partia do pressuposto de uma cidade real, resultado da ação desigual dos agentes que produzem e se apropriam dos espaços urbanos. Apesar da ausência mais efetiva de resultados em relação ao Plano Diretor, é importante reconhecer o aprofundamento do debate interno aos órgãos da administração e não se pode negar que a estratégia de enfrentamento das questões urbanas resultou em conquistas como, dentre outras, as legislações de proteção do patrimônio histórico, de defesa do patrimônio ambiental na área continental do município e sobre áreas de especial interesse social, e a criação e regulamentação do Conselho Municipal de Habitação. A gestão David Capistrano (19931996) concentrou atividades do que poderíamos chamar de planejamento estratégico, articulando ações que ao mesmo tempo ampliassem o leque de alianças políticas. O desenvolvimento da Agenda 21 local pode ser considerado uma das mais importantes iniciativas no campo da participação da sociedade na gestão pública, assim como o início da revisão do Plano Diretor, que culminaria com o Congresso Municipal de Planejamento, reunindo delegados de todas as cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 241 luiz antonio de paula nunes regiões da cidade e propondo um novo Conselho Consultivo do Plano Diretor – Coplan, reconhecendo-se sua inadequação em termos de representatividade e a necessidade de reestruturá-lo incluindo outros setores da sociedade ainda ausentes. Essa postura reafirmava uma das características, dentre outras, do terceiro ciclo da “democracia urbana”, a [...] visão estratégica da atuação do governo em termos políticos, administrativos e econômicos [e] uma nova concepção de democracia, que enfatiza, real ou simbolicamente, a descentralização, a participação popular e as parcerias do poder público com diferentes agentes sociais. (Soares e Gondin, 2002, p. 69) 242 Na gestão Beto Mansur (1997-2004), a discussão sobre o Plano Diretor se deu preponderantemente em relação à questão do uso e ocupação do solo urbano, como havia ocorrido na década de 1980, voltando a ganhar relevância os índices urbanísticos. Aprovado o novo Plano Diretor, em 1998, o Coplan teve sua nomenclatura adequada para Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano – CMDU. Na nova composição do CMDU, com o número recorde de 43 membros titulares e 43 membros suplentes, o Executivo teve sua representatividade proporcional aumentada, passando para 41,3%, isoladamente, o segmento com maior proporcionalidade, a indústria imobiliária teve tradicionais aliados do setor incluídos, como o setor de infra-estrutura, sindicatos e associações patronais das áreas do comércio e transporte, fixando a representação proporcional do setor patronal em 19,4%. O número de cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 representantes do meio acadêmico foi ampliado e somado aos profissionais liberais resultou em 26,9% do CMDU. Se, por um lado, não havia a possibilidade de eleição no campo dos movimentos sociais como na proposta de 95, por outro, era garantida a participação de representantes de outros conselhos e de uma ONG, que resultou em 12,4% dos membros do CMDU. É indiscutível a importância do CMDU como espaço democrático que propicia a discussão de temas afins como, por exemplo, o aperfeiçoamento de novos instrumentos urbanísticos propostos no Estatuto da Cidade. Porém, eficiente do ponto de vista da administração pública, mas ainda pouco eficaz ou representativo do ponto de vista da sociedade civil, o CMDU, enquanto esfera pública, ainda está em construção, o que exige análise e reflexão. Em 2000, o Meio Ambiente e o Planejamento voltaram a ter status político diferenciado como Secretarias Municipais específicas, além de se criar a Secretaria de Governo e Projetos Estratégicos. Antes, se o foco se dividia entre desenvolvimento econômico e políticas públicas de caráter social, agora se caracterizava pela conformação das políticas para “o desenvolvimento sustentável do município de Santos e o bem-estar de seus cidadãos” mediante parcerias com os agentes promotores (Inciso XV, artigo 400, Lei Complementar 423/2000). O debate hoje sobre o Plano Diretor na cidade de Santos Na gestão João Paulo Papa (2005-2012), o Plano Diretor retornou para o debate na sociedade. Desde novembro de 2008, a construção da esfera pública no planejamento urbano a cidade de Santos está vivendo o momento de rediscussão de seu Plano Diretor de Desenvolvimento e Expansão Urbana de Santos, em vigor desde 1998, passando pelos dois tipos de fóruns que conceituamos neste artigo como “espaço público” e “esfera pública”. No primeiro caso, destaca-se o papel do “Fórum da Cidadania”, caracteristicamente um espaço público (www.forumdacidadania. org.br) que, além de chamar o debate sobre o Plano Diretor, em 14 de fevereiro de 2009, congregando entidades as mais diversas, criou o “Curso Intensivo de Capacitação e Mobilização – Por Dentro do Plano Diretor Participativo”, em conjunto com universidades locais. De acordo com o manifesto de lançamento do processo de discussão nesse fórum, disponível no site oficial citado acima [...] é imperioso que os debates e outras formas de participação previstos no desenvolvimento urbano que vão influir decisivamente na qualidade de vida do conjunto da população. No segundo caso, o da esfera pública institucionalizada, destaca-se o papel da Prefeitura Municipal nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Urbano – CMDU e de Desenvolvimento Econômico de Santos – CDES. Esses órgãos, formados por representantes do poder público e da sociedade civil, estão propondo a realização conjunta de Audiências Públicas, Oficinas de Capacitação e Conferências para tratar dos temas relacionados com o Plano Diretor. Além disso, a Prefeitura Municipal de Santos editou uma “cartilha” (disponível em (http://www.santos.sp.gov.br/planejamento/planodir/download/cart_pl.pdf) para facilitar o debate e buscar esclarecer alguns dos aspectos relacionados com o Plano. De acordo com o site oficial (www.santos.sp.gov.br), processo de revisão do Plano Diretor se estendam a todos os segmentos sociais da cidade e, portanto, não se limitem apenas aos espaços oficiais. Afirma ainda o manifesto: [...] sem desprezar os aspectos técnicos pertinentes que devem naturalmente estar presentes e subsidiar o trabalho de revisão do Plano Diretor, entende A participação da população é essencial para a elaboração do Plano Diretor, afinal, a cidade é composta por pessoas com classes, interesses e objetivos diferentes. Assim, através de discussões, podemos entender como a cidade funciona para cada morador e como podemos tornar Santos um lugar com oportunidades e desenvolvimento econômico e social para todos. que a questão fundamental deste processo é de natureza política, uma vez que o Plano Diretor é o responsável direto pelas definições sobre os rumos atuais e futuros da cidade e, sobretudo, pela determinação das condições de Ainda que esse processo esteja em curso, o que impede qualquer tipo de avaliação metodológica com mais profundidade, é importante citá-lo para melhor apresentar as conclusões deste trabalho. cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 243 luiz antonio de paula nunes Conclusão 244 Política e planejamento são temas que se entrecruzam e, em função disso, o percurso histórico que observamos revelou formas diferentes de participação da sociedade civil durante o processo de planejamento urbano em razão das condicionantes políticas e das características do pensamento urbanístico de cada momento analisado. O que não pode ser considerado isoladamente, como fruto de um processo linear de desenvolvimento de ideias, mas sim como decorrência de um quadro muito mais amplo que incorpora o debate, em nível global, sobre formas de democracia representativa e participativa. O percurso histórico que apreciamos demonstra que a questão da participação da sociedade civil nas estruturas de governo, mais do que uma questão de modismo ou de metodologia de planejamento, ainda que presente em determinados momentos, é uma questão estrutural que envolve diretamente fundamentos do exercício do poder político. Assim como não são simplesmente ações periódicas, como as eleições, que passaram a determinar o processo democrático, assim também não é um quadro teórico que determina a forma mais contemporânea de planejar a cidade, mas sim uma disputa por práticas que visam coletivizar a tomada de decisões a partir de diferentes princípios. Por essa razão, podemos afirmar que existe um percurso histórico de construção da esfera pública no planejamento urbano que torna a participação o seu referencial central, não porque sua formulação parte do âmbito teórico do planejamento, mas essencialmente porque é na relação entre democracia e gestão que encontramos esses cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 aspectos, e é no campo ideológico que podemos entendê-la. A construção da “esfera pública” não obedeceu a uma lógica linear e, apesar de sua institucionalização corresponder a demandas no campo do pensamento urbanístico, sua utilização e efetividade dependem quase que exclusivamente do conteúdo ideológico dos grupos que detêm o poder e, consequentemente, da concepção que esses grupos elaboram sobre cidadania, democracia e sobre a própria participação. Sendo assim, os fatores que levaram à institucionalização desses fóruns estão além dos conceitos da democracia representativa e da esfera política partidária, ainda que guardem uma relação direta com esse cenário. Esses fatores se encontram na luta por espaço político que a sociedade impõe e que se iniciou com o processo de democratização e se consolida com a eleição de dirigentes comprometidos com a participação da sociedade. Esses aspectos ficam evidentes no recente processo de discussão do Plano Diretor em Santos. Instituições das mais diversas organizaram-se em um Comitê, sob guarida do Fórum da Cidadania, na forma de um espaço público onde a discussão política impôs, de forma evidente, uma reação da esfera pública, a qual busca o reconhecimento com a participação da sociedade, e demonstra isso ao capacitar os interessados no debate. É evidente que não podemos aqui emitir um juízo de valores sobre esse atual processo, mas é importante destacar como ele vem se dando, de acordo com os princípios levantados para o último período analisado, em que democracia e participação, em todas as visões, são as palavras-chave para entender o processo de planejamento urbano. a construção da esfera pública no planejamento urbano Luiz Antonio de Paula Nunes Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos, Mestre e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professor de História e Teoria do Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Cecília, em Santos (São Paulo, Brasil). [email protected] ou [email protected] Referências COSTA, S. (1997). Categoria Analítica ou Passe-Partout Político-Normativo: Notas Bibliográficas sobre o Conceito de Sociedade Civil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, Anpocs, n. 4, pp. 3-25. LINZ, J. J. e STEPAN, A. (1999). A transição democrática e consolidação da democracia: a experiência do sul da Europa e da América do Sul. São Paulo, Paz e Terra. NUNES, L. A. P. (2001). Saber técnico e legislação - A formação do urbanismo em Santos 1894-1951. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FAU-USP. ________ (2006). A construção da esfera pública no planejamento urbano. Um percurso histórico: Santos, 1945-2000. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP. TEIXEIRA, E. C. (2001). O local e o global. Limites e desafios da participação cidadã. São Paulo, Cortez. TOURAINE, A. (1996). O que é a democracia? Petrópolis, Vozes. SOARES, J. A. e GONDIN, L. (2002). “Novos modelos de gestão: lições que vêm do poder local”. In: SOARES, J. A. e BAVA, S. C. (org.). Os desafios da gestão municipal democrática. São Paulo, Cortez. VILLAÇA, F. (1999). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: DÉAK, C. e RAMOS, S. S. (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp. Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 cadernos metrópole 21 pp. 233-245 10 sem. 2009 245 A construção do poder público como espaço privado na cidade de Diadema (1983 a 1996) Joana Darc Virgínia dos Santos Resumo A demanda social por infraestrutura básica em habitação e a necessidade de organização espacial da cidade gerou uma série de desdobramentos na constituição do espaço urbano de Diadema. Entre 1983-1996, a cidade teve à frente da administração pública três gestões do Partido dos Trabalhadores que propuseram a implantação da participação popular direta na gestão pública. É intuito deste artigo investigar a construção da cidade de Diadema através da atuação dos diferentes sujeitos: representantes do poder público e munícipes, durante as três gestões consecutivas do PT. Dessas relações e conflitos foram criados os mecanismos que propiciaram a implantação do Plano Diretor naquela cidade em 1994. Abstract The social demand for basic infrastructure in housing and the need for the spatial organization of the city have generated a series of developments in the formation of the urban space in Diadema. Between 19831996, the city’s public management was in the hands of three administrations of the Worker’s Party (PT), which proposed the implementation of direct popular participation in public management. The purpose of this article is to investigate the construction of the city of Diadema through the performance of different subjects: public power representatives and residents, during the three consecutive administrations of PT. These relationships and conflicts have created mechanisms that enabled the implementation of the Master Plan in that city in 1994. Palavras-chave: história das cidades; urbanismo; políticas públicas em habitação; movimentos sociais. Keywords: history of cities; urban planning; public policies in housing; social movements. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 joana darc virgínia dos santos 248 A cidade de Diadema está localizada na região Sudeste do Brasil, entre São Paulo e São Bernardo do Campo, a 17 quilômetros da capital, na área hoje conhecida como ABCD paulista; possui uma superfície de 30,7 km2 com 7,06 km2 do território definido como área de preservação ambiental pela proximidade com a represa Billings. Até 1959, Diadema era parte do território de São Bernardo do Campo e no ano de sua emancipação política contava com 12 mil habitantes (Hereda e Alonso, 1996, p. 129). Segundo o censo de 2007, a cidade possui 386.779 mil habitantes e uma das maiores densidades demográficas do país, ou seja, 10.167 hab/km2. Diadema é até hoje conhecida como Cidade Vermelha, pelo adensamento de habitações inacabadas mantendo expostos os tijolos vermelhos que a compõem. Essa paisagem expressa a construção de modos de vida condicionados a uma certa organização do espaço social, estruturada de forma relacional pelos que detêm os meios produção, que segrega os sujeitos a partir da posição que estes ocupam no processo produtivo. Até meados de 1940, a região era chamada de Vila Conceição e tinha como atividades econômicas a produção de tijolos, móveis e pequeno comércio que sobrevivia graças ao trânsito de pessoas em busca de lazer na represa Billings. Com a inauguração da Via Anchieta, em 1947, uma série de indústrias, principalmente automobilísticas, se instalaram entre São Bernardo do Campo e Diadema. Em 1952, quando Diadema era distrito de São Bernardo do Campo, foi instalada a primeira indústria em território hoje diademense, a IMBRA S/A Indústria Química que, entre 1957 e 1958, passou a fabricar matériacadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 prima para indústrias de plástico. Em 1956, fixou-se na cidade a Empresa Roberto L. Gordon, de produção de acessórios para eletrodomésticos e bijuterias. A Roberto L. Gordon, em 1960, passou a produzir componentes automobilísticos e mudou de nome para Metagal (Diadema, 1999, p. 93). Na década de 1990, com a implantação da reestruturação produtiva1 (Alves, 2000) no Brasil, as empresas multinacionais iniciaram a terceirização dos processos da cadeia produtiva, o que propiciou o surgimento de empresas menores a partir da implantação do modo de gestão toyotista, o que Giovanni Alves chamou de “Fragmentação Sistêmica”. Essas pequenas empresas foram subcontratadas pelas transnacionais em um sistema de cooperação entre os capitalistas. A partir de procedimentos fundamentais de garantia da eficiência do processo e redução de custos, as transnacionais procuram adequar a lógica da produção ao sistema concorrencial na mundialização do capital e às novas fases da luta de classes. A localização privilegiada da cidade de Diadema, pela proximidade com as vias de escoamento, polo petroquímico e automobilístico, atraiu muitas dessas empresas terceirizadas, principalmente as de autopeças. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990 a necessidade de mão-de-obra para as novas fábricas, e posteriormente comércios e serviços, propiciou um grande aumento populacional na região. Baianos, alagoanos, pernambucanos, cearenses, piauienses, maranhenses, sergipanos, paraibanos, capixabas, mineiros, mato-grossenses e paulistas chegaram em grande número para compor os trabalhadores das indústrias automobilísticas, de autopeças e das indústrias químicas da região que hoje chamamos de a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) Grande ABCD paulista. Milhares de pessoas deixaram suas cidades de origem em busca de melhores condições de vida, envolvidas pelas histórias promissoras contadas por conhecidos(as), familiares e mídia, a respeito do desenvolvimento econômico das cidades do estado de São Paulo. A busca pelo sonho de se estabelecerem em cidades com ofertas de empregos, cujos salários possibilitassem a reprodução material da vida, aliada ao desejo de reorganização dos laços de sociabilidade, trouxe ao ABCD Paulista muitos familiares e amigos(as) dos(as) primeiros(as) migrantes. Grande parte destes(as) migrantes encontrou, na ocupação de áreas vazias, uma alternativa possível para estabelecer moradia, diante do desemprego e dos baixos salários. Muitas pessoas que chegaram a partir do final da década de 1960, em Diadema, sem condições de realizarem sua necessidade de moradia pelo mercado formal, ocuparam de forma precária terrenos sem uso, construindo suas casas com compensados e madeirites. Uma parte desses terrenos pertencia a empresas que, por algum motivo, não fixaram ali suas instalações, conforme previsto quando a área foi recebida por doação ou adquirida em um sistema de incentivo fiscal. Os sujeitos “semi ou não-qualificados” profissionalmente, que chegaram às cidades do grande ABCD Paulista na década de 1980 encontraram ofertas de empregos precários nas empresas de autopeças, subsidiárias das montadoras. O processo de “favelização” em Diadema expressa, portanto, o movimento geral de depauperação dos centros urbanos brasileiros em decorrência da crise que se abateu sobre o país nos anos de 1989 e 1990; conforme a documentação, identificamos as seguintes características: migração das áreas rurais para as áreas urbanas devido à precarização das condições de vida nas áreas rurais e intenso processo de industrialização nos grandes centros, a desigualdade e exploração no trabalho, o arrocho salarial, a alta rotatividade nos empregos, o desemprego e tempo de locomoção da casa ao trabalho (Diadema, 1993, p. 3). Aparato burocrático do Estado a serviço de interesses privados O território hoje diademense, antes da emancipação política conhecido como área rural de São Bernardo do Campo, era composto por chácaras que foram vendidas para fins de loteamento. A disponibilidade de terrenos na região a serem comercializados oportunizou a atuação de indivíduos como intermediários no processo de compra e venda desses loteamentos. É o caso dos dois primeiros prefeitos de Diadema: o professor Evandro Esquível e o corretor de imóveis Lauro Michels, que se revezaram no poder entre 1960 e 1972. A partir das influências que Esquível e Michels conseguiram através dos negócios imobiliários, tornaram-se figuras de destaque no cenário político da cidade. A natureza do ofício de intermediar compra e venda de terras aliada à histórica troca de favores e interesses pessoais instaurada nas relações políticas, propiciou um contato maior com os setores institucionalizados que regulam o regime de propriedade privada e infraestrutura da região. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 249 joana darc virgínia dos santos 250 São contatos estabelecidos na esfera municipal e estadual com o intuito de conseguir documentações e viabilizar processos para compra e a venda dos terrenos. Os interessados na aquisição e nas vendas de terras estão ávidos por viabilizarem seus negócios e em muitos casos suas necessidades imediatas de sobrevivência e vêem no intermediário um agente que conhece os trâmites legais e ilegais e tem influência necessária, dada sua experiência, para o alcance desses objetivos. Durante sua gestão como prefeito de Diadema (1964-1968), Michels obteve grande crescimento em seus negócios imobiliários e passou a investir em pecuária (Simões, 1992). As organizações do Estado, de forma politicista, expressam-se pela realização das necessidades de transformação de grupos a quem representam, através de processos de disputas de interesses. Nessas disputas de interesses privados, os sujeitos participam na esfera da organização pública de forma a influenciarem a ação governamental conforme suas capacidades de mobilização. Nesta forma identificamos que as relações clientelistas prevalecem sobre a racionalidade burguesa: a garantia de isonomia é estabelecida juridicamente, mas as condições para efetivação das leis não são iguais para todos, o que resulta na reprodução de privilégios e desigualdades. Na esfera local, sujeitos como Esquível, Michels e os vereadores têm o aparelho burocrático do Estado a sua disposição para dirigirem a aplicação desses aparatos a partir dos processos de interação de interesses, em que as corporações assumem papel predominante devido as suas capacidades de mobilização e influência econômica e política. No processo de emancipação administrativa, a correlação de forças políticas fez cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 com que o recorte territorial fosse feito de tal modo que as principais fábricas ficaram na área destinada a São Bernardo do Campo, o que levou a arrecadação dos impostos para esta cidade. Enquanto isso, Diadema continuou a atrair o contingente de trabalhadores porque os terrenos dessa cidade eram mais baratos que os da cidade vizinha, pois havia grandes áreas territoriais para serem ocupadas e, como a área não dispunha de infraestrutura, também o pagamento de impostos era bem menor, isso quando eram recolhidos. Além disso, a administração de Diadema dispunha de poucos recursos para iniciar um processo de implantação de infraestrutura na cidade, já que a cidade possuía pouca receita. Em seu território, com a saída das grandes indústrias a partir do recorte territorial no processo de emancipação, ficaram apenas pequenas atividades comerciais e empresas manufatureiras ou semimanufaturadas, tocadas de forma familiar como olarias, fábrica de móveis, pequenos comércios e poucas empresas de porte maior. As poucas obras públicas de infraestrutura realizadas em Diadema nas décadas de 1960 e 1970 foram negociadas em troca de favores e apoios político-partidários atrelados às relações clientelistas entre políticos da esfera estadual e municipal. A aplicabilidade da lei não está disponível para todos os sujeitos, o que podemos identificar pela constatação da necessidade de mobilizar agentes específicos no estabelecimento de acordos para garantir implantação de pequenas ações de infraestrutura. A legislação estabelecida está a serviço dos que têm instrumentos para fazê-la valer na prática, seja através de contatos interpessoais e/ou uso de poder conferido por cargo a fim a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) de mobilizar o aparato institucional a seu favor e pelos meios possibilitados pela propriedade monetária e de capitais por trâmites legais ou ilegais. Diadema no período de transição do bonapartismo para a autocracia burguesa A crise da década de 1980 foi acompanhada pelas expectativas de democratização do país após um período ditatorial de mais de 20 anos, nos quais as possibilidades de mobilização social para expressão de suas demandas foram totalmente cerceadas. Para expressarmos as concretudes sócio-históricas que caracterizaram o período chamado pela historiografia de ditadura militar, utilizamos aqui o conceito de bonapartismo conforme Marx (1974), Martins (1977), Rago Filho (1998). O conceito bonapartismo foi cunhado por Marx em análise a natureza da dominação autocrática-burguesa durante o governo de Napoleão III na França. A burguesia francesa exerceu o domínio político e econômico, de forma indireta, na figura de Napoleão III, que, por sua vez, declarou-se representante de todas as classes sociais, mas, na prática, investiu na instituição de mecanismos de repressão que mantiveram as demandas sociais dos trabalhadores reprimidas. Como uso da figura que representou históricamente a natureza do poder exercido por Napoleão III, alguns autores como Rago Filho e Martins, para a compreensão específica do período de ditadura militar, iniciada em 1964, utilizam o conceito de bonapartismo para caracterizar o domínio indireto da burguesia nacional sob a figura dos militares, que, em nome do desenvolvimento nacional, construíram um aparato repressivo violento para conter as demandas populares. Usamos o conceito de autocracia burguesa para caracterizar o período pósditadura militar chamado pela historiografia brasileira de democrático para expressar o uso do poder coercitivo e violento do Estado brasileiro, administrado por segmentos da burguesia nacional, com o objetivo de conter as demandas sociais e realizar o desenvolvimento do capitalismo, garantindo a realização das necessidades de acumulação sob a lógica do capital sem a mobilização popular. O uso da violência é justificado e legitimado como uma ação de manutenção da ordem e segurança nacional para o desenvolvimento da democracia no Brasil. Assim, a emergência de novas organizações partidárias veio acompanhada por forte mobilização social por demandas muito concretas de melhoria das condições de vida, particularmente expressas pelas populações urbanas. Essas mobilizações sociais exerceram forte pressão sobre as organizações do Estado brasileiro que, de diversas maneiras, procurou aninhar a participação popular em seus canais institucionalizados. Dentre estas destacaram-se os movimentos por moradia. Tais movimentos chegaram a ter uma expressão nacional que se manifestou através da organização dos mais diferentes tipos. Dentre estas, destacou-se uma que reuniu pessoas desempregadas ou de baixíssima renda, que marcharam até Brasília em 1989, intitulado Caravana à Brasília organizada pela União dos Movimentos de Moradia, com o objetivo de forçar a negociação de políticas públicas de atendimento às cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 251 joana darc virgínia dos santos 252 necessidades de habitação dos trabalhadores de baixa renda; foi produzido documento para ser distribuído aos participantes do encontro e representantes dos poderes legislativo e executivo. Os moradores de Diadema participaram ativamente desse movimento, tanto fazendo parte das comissões que ajudaram a organizá-lo quanto produzindo documentos que espelhavam a situação de precariedade em que viviam e as alternativas de solução que propunham. No entanto, destaca-se dessa mobilização a mediação do poder público municipal que atua enquanto agente social em defesa dos interesses de seus munícipes em suas petições ao poder central. É o que se observa, por exemplo, no Plano de Governo realizado pela prefeitura a fim viabilizar a implantação de uma política habitacional (Diadema, 1987). Esse material foi produzido pelos técnicos da Secretaria de Habitação da gestão do então prefeito Gilson Meneses (1983-1988), primeiro prefeito que expressava a tentativa da população de promover alterações na forma de fazer política e que, naquele momento, vinculava-se à organização do Partido dos Trabalhadores e que vinha das hostes metalúrgicas do ABC. A formação do Partido dos Trabalhadores está ligada à atuação do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo. Os dirigentes do Sindicato, organizados em suas bases de atuação, impulsionaram a criação do partido nacionalmente agregando setores cuja ideologia 2 é bastante diversa entre si de acordo com a prática social que executavam, são eles: Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, intelectuais de “esquerda”, estudantes, bancários, servidores públicos e professores. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 Tal diversidade culminou em uma série de embates, como sobre o registro partidário com destaque para a proposta vencedora: a criação de um partido que abarcasse conteúdos de reivindicação de diversos setores trabalhistas para defender e realizar esses conteúdos no sistema político vigente (Oliveira, 1988, p. 130). Para a conquista do registro partidário, foi realizado um processo de mobilização em massa para alcançar o número de filiações necessárias. A filiação foi organizada pelos núcleos de base que eram compostos por pessoas do mesmo domicílio eleitoral. Os núcleos de base tinham caráter consultivo e possuíam poucos membros ativos devido ao processo de filiação em massa que agregou pessoas com interesses e histórias de participação popular diferentes. Segundo os estatutos do PT que indicam o processo de organização dos núcleos de base, era intuito dos membros do partido utilizá-los como espaço de educação e mobilização política para a militância; o que acabou não sendo alcançado devido à necessidade do partido em cumprir as exigências para o processo de legalização e desmobilização dos núcleos de base depois das eleições de 1982. Sobre a descaracterização dos núcleos de base, Gadotti e Pereira (1989) afirmam que seu funcionamento se limitou à função de comitês eleitorais e grupos de apoio a vereadores; tal fato teria sido desencadeado por uma série de fatores, entre eles a lógica imediatista dos processos eleitorais que demandava a organização de um grande número de pessoas para alcance dos votos necessários à eleição a cada dois anos. Essa organização se dava de forma desvinculada dos processos de luta e formação necessários ao entendimento das propostas ideológicas do partido, a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) prevalecia a necessidade de conseguir votos da forma mais rápida e eficiente possível. Nessas condições, a cidade elegeu como prefeito o metalúrgico Gilson Meneses pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Essa eleição constitui uma das primeiras prefeituras deste partido no Brasil. O período que compreende o governo ininterrupto do PT em Diadema, 1983 a 1996, foi uma época de investimento em infraestrutura na cidade. Os dados sobre os índices de mortalidade infantil desse período indicam a expressividade desse investimento.3 A queda acentuada da mortalidade infantil em Diadema é resultado de uma série de ações implementadas pelos governos petistas como: execução de obras de saneamento básico, extensão da rede de água encanada, campanhas de vacinação e acompanhamento pré-natal. Destacam-se, portanto, vários fatores diferenciais significativos na trajetória da urbanização e do fazer político dessa cidade a partir da década de 1980, pois os recursos passaram a ser canalizados para investimentos públicos e o processo decisório que definia tais investimentos passaram a contar com a participação popular. Tanto os movimentos de luta por moradia quanto a relação que estes estabeleceram com o particular poder público expresso pelos governos do PT constituem nexos constitutivos que compuseram a situação socioeconomicaespacial da cidade no período abordado e sua análise nos revela a concretude histórica que emerge das descrições encontradas nos documentos e os elementos pelo quais os indivíduos compreendem a lógica do mundo em que vivem revelando a consciência destes sobre a operação prática da qual participaram cotidianamente. Inversão da lógica de investimentos públicos sob a prática politicista As gestões municipais de Esquível (19601963 pelo PTN e 1969-1972 pelo Arena), Michels (1964-1968 e 1977-1982 ambas gestões pelo MDB) e Putz (1973-1976 pelo MDB), já haviam realizado obras públicas privilegiando a região central da cidade. Esquível e Michels representaram uma mediação política entre a esfera municipal e a estadual durante o processo de constituição da cidade e fizeram prosperar as obras públicas que beneficiaram seus negócios particulares, bem como o de seus aliados, mas procuraram negociar de forma hábil com a população mais carente com a justificativa de que o investimento a ser realizado atingiria, em breve, a todos os cidadãos diademenses. A negociação sobre implementação de mudanças necessárias ao desenvolvimento econômico da cidade era realizada entre políticos e grupos que representavam força política e econômica nas esferas municipal, estadual, federal, de acordo com a abrangência dos interesses; sem mobilizar a população, com o objetivo de manter a organização destas sob o controle estatal. O industrial Ricardo Putz (1973-1976) chegou à prefeitura de Diadema pelo MDB apoiado por Michels. Putz representou os interesses de modernização da administração municipal. Em sua gestão, foi organizado um programa de apoio a projetos de moradia econômica, elaborou Plano Diretor de Zoneamento, projetos que não foram efetivados, e no último ano de mandato centralizou ações na região central da cidade, que foram parcialmente concluídas cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 253 joana darc virgínia dos santos 254 na gestão de Michels, como construção de praças, calçadão, Fórum e o Centro Cultural (Simões, 1992). Lauro Michels retornou à administração da cidade de Diadema em 1977, pelo MDB, mantendo a prática de realizar investimentos na região central em detrimento das regiões periféricas que careciam de infraestrutura básica. O metalúrgico Gilson Meneses, em sua primeira gestão (1983-1988 gestão pelo PT) assumiu plataforma de governo que tinha como prioridade implantar políticas sociais no município com a participação deliberativa das associações populares nas decisões de governo. Gilson Meneses chegou à Prefeitura com o desafio de implantar as promessas de campanha a partir de recursos parcos e comprometidos com dívidas das administrações anteriores. O Programa de Urbanização de Favelas (PUF), carro-chefe de sua plataforma de governo, consistiu na implantação de infraestrutura básica e concessão de posse da terra aos moradores. A partir do segundo ano de mandato, foi instituída consulta popular sobre a elaboração do orçamento municipal através de comissões e conselhos. Embora houvesse muitas críticas quanto à representatividade dos conselhos que participavam desse processo, essa consulta foi realizada até o final da gestão de Gilson Meneses. A implantação da proposta de atuação direta da população nos programas de governo, através dos Conselhos Populares (CPs), não se deu conforme o proposto devido a uma série de enclaves. As divergências entre petistas e não-petistas, administração municipal e representantes do Diretório do PT em Diadema esvaziaram as reuniões dos CPs. Seja por ações da administração que isolaram as cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 reivindicações articuladas pelos representantes do Diretório Municipal, seja pela ausência dos não-petistas nas reuniões dos CPs, criando oposição às propostas articuladas (Simões, 1992). Os CPs foram substituídos por programas pedagógico-participativos que propunham a organização popular como mecanismo para atendimento das demandas da população. A população era estimulada a se organizar e atuar junto aos técnicos da prefeitura em um sistema de cooperação e cogestão de políticas públicas. A prioridade de atendimento no PUF era dada às “favelas” cuja população havia se organizado, primeiramente, no sentido de executar o Programa. A organização a partir da participação popular privilegiava o processo de construção de políticas sociais na discussão de problemas que afligiam os moradores, o que resultou em uma implantação lenta e conflituosa do Programa (ibid.). Na disputa das prévias locais para a candidatura do PT ao município de Diadema, em 1988, o diretor do Departamento de Saúde e Higiene José Augusto conseguiu aliados no diretório municipal e regional do PT derrotando o candidato apoiado por Gilson Meneses, Cláudio Rosa. Gilson Meneses desligou-se do PT no mesmo ano e filou-se ao Partido Socialista Brasileiro. José Augusto, médico sanitarista, participou como militante do movimento de saúde na zona leste de São Paulo, foi indicado para ocupar o cargo de diretor do Departamento de Saúde e Higiene durante a gestão 1983-1988 pelos membros do Diretório do PT em São Paulo, no qual era filiado. José Augusto venceu as eleições pela Prefeitura Municipal com a força da legenda petista, beneficiado pela avaliação positiva sobre o desempenho da primeira gestão a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) do PT em Diadema. Durante sua gestão (1989-1992) foi mantido o Programa de Urbanização de Favelas. Os investimentos nas áreas da saúde e saneamento, que representavam em 1984 8% do orçamento, foram ampliados em 1988 e 1999 para 17% e em 1990 significou 16% do total (AUPV, 1991). O Fundo Municipal de Apoio à Habitação de Interesse Social (Fumapis) e seu Conselho Deliberativo foram instituídos em 1990 com os respectivos objetivos de captar e administrar em cogestão com os movimentos de luta por moradia, recursos na área da habitação, porém, durante essa gestão, não foi efetivado. A criação do Fundo e seu conselho gerou apenas movimentação para o processo de eleição dos conselheiros, durante o período de eleições municipais. Apesar das inúmeras reuniões, o primeiro Conselho Deliberativo do Fumapis foi eleito em 1991 (Diadema, 1991) e tomou posse apenas em 1994 para um mandato de dois anos. Segundo depoimento de Edmundo, participante da Associação de Luta por Moradia Unidos da Leste (ALMUL), sobre o primeiro mandato dos conselheiros do Fumapis “foi criado esse Conselho, mas um Conselho inútil, que não fazia nada, que não se discutia porque não era vontade do prefeito”.4 Edmundo explicita os desafios práticos da pretensa autonomia da participação popular restrita aos instrumentos de interlocução criados segundo a organização burocrática do Estado. As discussões e deliberações tratadas no Conselho estavam submetidas aos trâmites legais acessíveis aos membros da administração municipal que fizeram uso das informações privilegiadas, limitando a ação dos conselheiros segundo as necessidades de organização do poder público. O engenheiro José de Filippi Junior participou das duas primeiras administrações petistas em Diadema e chegou ao cargo de prefeito em 1993, pelo PT, com o compromisso de consolidar uma política habitacional com participação popular. Durante a gestão 1993-1996, foram implementadas ações que vinculavam a elaboração jurídica do plano de governo na área da habitação, efetivação dos instrumentos urbanísticos e envolvimento da população na execução dos projetos. No primeiro ano da gestão (1993) foi realizado o I Encontro de Habitação do município reunindo representantes de movimentos populares e sindicatos. Uma série de programas na área da habitação foi implantada, com a proposta de envolver os moradores na execução direta dos projetos, desde a compra dos materiais até a autoconstrução. O Plano Diretor e as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) foram aprovados em 1993, em meio a muitas disputas quanto aos interesses dos proprietários de terras, movimentos de luta por moradia e vereadores. Como diretriz do Plano Diretor, o Conselho Deliberativo do Fumapis recebeu legalmente mais força, porém, na prática, não atingiu suas proposições, funcionou como um espaço de discussões de propostas para a Política Habitacional (Scalli, 1998). A segunda eleição do Conselho Deliberativo do Fumapis, em 1995, ano que antecedeu as eleições municipais, contou com a participação de um número expressivo de votantes e candidatos cuja atuação nas negociações com o poder público era reconhecida pela população em geral (ibid.). Dadas as circunstâncias históricas da realização dessas eleições, a mobilização pelos votos para conselheiro tornou-se uma prévia das eleições para vereador. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 255 joana darc virgínia dos santos 256 Em documentos internos do Fumapis (Diadema, s.d.), nos quais não constam datas que indiquem exatamente o período de sua elaboração – mas comparando aos nomes que compõem o corpo do Conselho Deliberativo apontam tratar-se da sua primeira gestão –, identificamos uma proposta de urbanização que organiza as ações por macroáreas: Central, Serraria, Conceição, Vila Nogueira, Casa Grande, Inamar, Eldorado, Piraporinha, Canhema, Campanário e Taboão. Foram designados como responsáveis pela implantação do projeto um arquiteto e um sociólogo e são citados 180 moradores como referências para o diálogo com a população, dos quais 70 eram mulheres. Do total das pessoas citadas, 88 estão indicadas com a sigla PT, significando a representação do Partido dos Trabalhadores nos núcleos habitacionais. O Fumapis, efetivamente, existiu apenas no papel, pois as verbas utilizadas para a realização das obras de urbanização eram provenientes do orçamento municipal e dos pagamentos realizados pela população por implantação de infraestrutura, o que limitou a ação dos(as) conselheiros(as). No último ano da gestão de José de Filippi Junior, pela primeira vez, foi possível deliberar sobre os valores do Fundo, tendo sido transferido dinheiro proveniente dos pagamentos realizados pela população pelo Plano Comunitário de Pavimentação para o Fundo (Villas-Bôas, 1995, p. 9). Em análise sobre a atuação dos dois mandatos do Conselho Deliberativo do Fumapis, Edmundo afirmou: O Conselho do Fumapis ele é exatamente um Conselho para gerenciar, não é só deliberativo. (...) deliberar só aquilo que a administração quer. (...) Aí, eu cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 retribuo (sic: atribuo) esse erro não só à administração, mas eu acho que nós mesmos enquanto liderança de movimento, que era conselheiro do Fumapis também, porque a gente cobrava, mas não agia. Porque o Conselho do Fumapis é um órgão que tem poder, se a administração não está fazendo aquilo que foi deliberado ele (o movimento) tem até obrigação de entrar na Justiça pra intervir na situação. E isso a gente não fez até por entender que era uma prefeitura democrática e popular, que com todos os defeitos, mas a gente tava participando da discussão. Os conselheiros não moveram ações em defesa das deliberações não operacionalizadas na prática. Alguns dos conselheiros militantes do PT procuraram resolver os conflitos dentro da lógica estabelecida pela prefeitura, enviando ofícios e levando as reivindicações às reuniões organizadas pelos membros da administração. Portanto, identificamos, através da análise documental e bibliográfica, que a constituição do território diademense é marcada pelo desenvolvimento do polo automobilístico e petroquímico instalado no ABCD paulista e o processo de reestruturação produtiva.5 O vertiginoso crescimento populacional da cidade de Diadema, entre 1960 e 1990, teve como mola propulsora a necessidade de mão-de-obra nas empresas da região, aliada à grande quantidade de trabalhadores desempregados nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. A chegada de grande quantidade de indústrias em Diadema deveu-se a: a) localização privilegiada entre o litoral sul do estado e região sul da cidade de São Paulo; b) construção das vias de escoamento a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) Anchieta e Imigrantes, que cortam a cidade; c) valorização dos terrenos da região sul da cidade de São Paulo, fato que impulsionou a saída das empresas e instalação das mesmas nas cidades próximas, principalmente Diadema; d) implantação da Fragmentação Sistema no polo automobilístico, o que possibilitou a instalação de diversas empresas subsidiárias das montadoras em Diadema, pelos baixos preços dos terrenos, política de incentivos fiscais e proximidade com as vias de escoamento. Os investimentos em infraestrutura na cidade de Diadema, entre as décadas de 1960 e 1980, foram destinados à área central da cidade, local em que estavam instalados o comércio e os moradores de maior poder aquisitivo; e também às áreas de uso industrial que necessitavam de vias de escoamento, serviços de água encanada, esgoto e energia para funcionarem. Com a chegada do PT à prefeitura de Diadema em 1980, foi realizada uma série de investimentos em projetos de urbanização de “favelas”, além da criação de um conjunto de leis, em alguns casos ineficazes, que dispuseram sobre o ordenamento da cidade, incluindo projetos que viabilizaram a instalação de habitações destinadas aos trabalhadores com renda de até três salários mínimos. Ou seja, os trabalhadores continuaram impossibilitados de realizarem suas necessidades básicas, autonomamente, via mercado, continuaram dependendo de ações estatais na mediação do acesso a seus direitos à moradia e serviços básicos. Foi possível identificar que as políticas públicas desenvolvidas na cidade de Diadema pelas três gestões petistas com o intuito de atender às necessidades de moradia dos munícipes foram organizadas no âmbito legislativo e tiveram uma série de entraves durante a sua implantação. Podemos classificar as características desses entraves segundo a natureza dos conflitos que eclodiram a partir do processo de elaboração e implantação dessas políticas públicas. Os membros da gestão 1983-1988 identificavam as péssimas condições de vida dos trabalhadores residentes em Diadema e assumiram a incapacidade de solucionar essa situação a partir do aparato burocrático da prefeitura. Admitiram, portanto, que as ações implementadas pelo governo municipal possuíam características curativas e suplementares e que não atacaram diretamente as causas que impossibilitaram os trabalhadores de realizarem suas necessidades de moradia: a concentração de renda e situação de miséria dos trabalhadores (Diadema, 1987, p. 1). Durante a gestão 1989-1992, a estratégia de ação pautou-se na realização de ações que garantiram ao governo visibilidade. A continuidade do Programa de Urbanização de Favelas foi centralizada nas áreas em que o processo já estava em andamento e que necessitavam de poucas intervenções. A grande inovação no campo legislativo, o Fumapis, durante essa gestão, não foi efetivada. A criação do Fundo e seu conselho geraram apenas movimentação para o processo de eleição dos conselheiros, durante o período de eleições municipais. Os instrumentos urbanísticos e o aparato jurídico implantados na gestão 19931996 no município de Diadema visaram a consolidação de uma política habitacional a partir das conquistas dos movimentos de luta por moradia alcançadas em âmbito nacional e que já haviam sido concretizadas no campo legalista. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 257 joana darc virgínia dos santos Identificamos, durante as três gestões petistas, grande dificuldade de implementação da legislação por diversas razões, entre elas o burocratismo que implicou a sua efetivação, a necessidade de mediação dos sujeitos que compunham os quadros legislativos e executivos para exercício da lei e a necessidade do governo municipal em manter sob controle as demandas sociais de acordo com a possibilidade de ação governamental ante os interesses dos empresários e proprietários de terras. Em períodos eleitorais, os resultados de implementação da legislação vigente tiveram resultados mais expressivos. A superação das limitações do aparato legalista teve como tentativa de solução a criação de novas leis. Joana Darc Virgínia dos Santos Especialista e Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel e licenciada plena em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André (São Paulo, Brasil). [email protected] 258 Notas (1) Conforme Alves (2000), chamamos de complexo de reestruturação produtiva a implantação de novas tecnologias e formas de organizar a produção social capitalista. A reestruturação produtiva no Brasil teve grande impulso durante o governo Collor como um processo de integração entre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a mundialização do capital. Os polos industriais foram modernizados tecnologicamente e também foram alteradas estratégias de gestão, localização das fábricas, bem como a relação entre sindicatos e trabalhadores. (2) Utilizamos o conceito ideologia segundo a análise marxiana, como consciência da operação prática. (3) Segundo dados colhidos pela Fundação Seade referente à mortalidade infantil em Diadema entre 1980 e 1994. (4) O depoimento de Edmundo da Silva Ribeiro foi coletado em 1997 por Eliete Rocha de Almeida, Fabiana Lo Bello, Janete Barros Nunes e Silmara de Paulo Santos, quando o depoente ocupava o cargo de presidente da Almul, uma das cinco organizações que participaram do projeto Sanko. (5) Segundo Alves (2000), na segunda metade década de 1980, o processo de reestruturação produtiva foi implantado Brasil a partir do toyotismo restrito e, na década de 1990, houve a incorporação do toyotismo sistêmico. cadernos metrópole 21 pp. 247-259 10 sem. 2009 a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996) Referências ALMEIDA, F. L. B. et al (1997). 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Foram levantados bibliografia, legislação sobre resíduos, grupos atuantes na coleta seletiva; e aplicados formulários em 13 grupos. Dados indicaram organização e gestão dos grupos, dificuldades, gerenciamento e divisão dos recursos, participantes e interesse de participarem da coleta seletiva oficial. Das dificuldades que os grupos apontaram estão: falta de espaço adequado para guardar, separar e enfardar material coletado; falta de recursos para seu desenvolvimento; e falta de apoio do governo. Abstract A study in the city of São Paulo identified difficulties which independent groups of scavengers face to be included in the local government’s selective collection program. The city generates 16 thousand tons of residues daily, only 1% for selective collection. Nevertheless, groups of scavengers collect, informally, thousands of tons of residues, without being included in statistics. The methods were bibliographical and legislation research, and forms were administered to 13 groups that deal with collection. The data enabled to recognize the organization and management of groups, difficulties, administration and division of resources, participants and their interest in participating in the official program. The main difficulties indicated by the groups were: lack of space to sort out, bale, and keep collected material, lack of financial resources and of government support. Palavras-chave: políticas públicas; grupos de catadores; sustentabilidade; coleta seletiva; reciclagem. Keywords: public policies; groups of scavengers; sustainability; selective collection; recycling. cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 marina pacheco e silva e helena ribeiro Introdução 262 Conhecer grupos de catadores organizados, que atuam na coleta seletiva na Cidade de São Paulo, foi o grande desafio desta pesquisa. O tema é muito amplo, existem ainda poucas referências científicas. A opção como objeto de estudo foi pelos grupos de catadores organizados que atuam com a coleta de resíduos sólidos descartáveis e não têm parceria com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. Andar pelas ruas do centro expandido da cidade de São Paulo é a certeza de encontrar trabalhadores puxando carroças e recolhendo materiais descartados. São, em maioria, profissionais desempregados que exercem a função de catadores de resíduos recicláveis e procuram, na venda desses m ateriais, uma maneira de sobreviver e ter autonomia para decidir sobre as suas necessidades. Um dos fatores que contribui para esse quadro é o aumento de materiais descartáveis, depositados pelas ruas, que pode ser explicado pelas mudanças dos hábitos de consumo. Por exemplo, até os anos 60, a garrafa de leite de vidro era retornável. Foi substituída por saco plástico, depois por caixa “tetra pak”. Atualmente, vivencia-se a era dos descartáveis: as embalagens de bebidas e de alimentos são produzidas em larga escala, substituindo as reutilizáveis por descartáveis de papel, plástico e alumínio. A cidade de São Paulo, segundo o Departamento de Limpeza Urbana – Limpurb, coleta diariamente 16 mil toneladas de lixo, destes 9.600 toneladas de resíduos domiciliares, com a seguinte composição: 52,5% de resíduos orgânicos, 28,4% de papel e cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 papelão, 5,6% de plásticos, 4,9% de metais, 3% de vidro e 5,6% de outros.1 Os aterros sanitários públicos da cidade de São Paulo chegaram a sua capacidade máxima, e hoje os resíduos sólidos gerados são levados para dois aterros particulares: CDR Pedreira, localizado no Tremembé, e Essencis, localizado no município de Caieiras. As despesas decorrentes da coleta, transporte, tratamento e disposição final dos resíduos são exorbitantes. As normas, nas três esferas (federal, estadual e municipal) que regulam os princípios, objetivos, atribuições, ações do governo voltadas ao saneamento, a coleta e reciclagem de resíduos sólidos, têm presente a preocupação com o desemprego e com a melhoria da qualidade de vida. A reciclagem passa a ser, além de atribuição do município para a preservação da saúde pública e a garantia da sustentabilidade ambiental, uma forma de inserção do desempregado na sociedade. A cidade de São Paulo possui 15 Centrais de Triagem, sob a supervisão da Secretaria de Serviços, vinculadas à Limpurb, e situadas em 15 Subprefeituras. Elas são geridas por cooperativas conveniadas com a Prefeitura. Seus contratos foram legalizados entre fevereiro e março de 2008. Essas cooperativas estão subordinadas às regras estabelecidas pela Autoridade Municipal de Limpeza Urbana – AMLURB, utilizam espaço e equipamento públicos, mediante cessão de uso gratuita, mas com a cláusula de devolução em 30 dias desde que notificadas pelo poder público. No município de São Paulo, estimase que existam 20.000 profissionais que exercem a função de catadores de resíduos sólidos, recolhendo 39 mil toneladas de grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo resíduos mensalmente (Grimberg, 2007, p. 14), enquanto apenas 838 catadores atuam no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. Isto é, apenas cerca de 4,2% dos catadores estão inseridos no Programa da Prefeitura e recolhem, nesse programa, 6,7% do material recolhido pelos 20.000 catadores não inseridos. Buscou-se, no estudo, identificar as dificuldades que os grupos organizados autônomos de catadores, que atuam com a coleta seletiva de resíduos recicláveis na Cidade de São Paulo, encontram para se inserirem no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. A cidade de São Paulo, o espaço público como local de trabalho A cidade contribui para a socialização capitalista das forças produtivas, ela é resultado da divisão social do trabalho, porque concentra as condições da produção capitalista. A urbanização capitalista é uma multiplicidade de processos privados de apropriação do espaço, sendo que cada um deles é determinado por regras próprias de valorização do capital (Topalov, 1979, p. 20). A visão de Topalov representa a dinâmica, a apropriação e as relações de poder, que podem parecer invisíveis, mas estão presentes na vida da cidade. A cidade de São Paulo tem 1.509 km² e destes, 1.000 km² são urbanizados. Conta com uma população de 10.995.082 habitantes. O seu orçamento, para o exercí cio de 2008, foi de R$25,2 bilhões. Desse orçamento, destinaram-se R$500.422.421,002 para custear o contrato de “Concessão dos Serviços Divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público”,3 que executa a coleta de resíduos sólidos em 99,2% dos domicílios.4 Entretanto, milhares de “carroceiros” também recolhem resíduos descartados passíveis de reciclagem, disputando as vias públicas com 6,7 milhões de veículos e 15 mil ônibus. Uma parcela dos coletores de recicláveis também vive na rua. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS (2005), 31% da população de rua são catadores. Para Vieira (1994), a população de rua tende a permanecer em locais que favorecem a sobrevivência. Ela ocupa bairros mais centrais onde, durante o dia, o comércio produz grande adensamento de pessoas e muitos resíduos recicláveis, e que à noite ficam ociosos. A apropriação dessas áreas pelos catadores acarreta um duplo uso: espaço de moradia e de trabalho. Ocorre, assim, uma reorganização, uma reinvenção do espaço público e comum, onde a concepção de casa cede lugar a outra (ibid., p. 103). O que é privado, como comer, beber, dormir etc., torna-se público. O público, enquanto espaço coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Essa subversão de regra faz da ocupação das ruas um fato conflituoso, cabendo ao poder público gerenciar este conflito (Vieira, 1995, p. 43). Os milhares de profissionais que trabalham como formigas no espaço urbano, procurando, recolhendo, triando resíduos descartados, são invisíveis na sua ação que favorece o meio ambiente e são discriminados pela sociedade, pois a locomoção de suas carroças pela cidade dificulta a fluidez do tráfego. cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 263 marina pacheco e silva e helena ribeiro Figura 1 – Cena de disputa entre os carros e a carroça no trânsito da cidade 264 Fonte: Rodrigo Marcondes – Folha Imagem O que as pessoas não percebem, afirma Angelo (2007), é que esse trabalho beneficia toda a cidade, pois os resíduos que eles recolhem retornam como matéria-prima e deixam de abarrotar os aterros. Paciência, motorista, com o pobre do carroceiro. Cala a tua buzina irritada, que o homem que ali vai, puxando sua carga enorme e desequilibrada, trabalha para o teu bem. (Angelo, 2007) A falta de paciência e uma concepção higienista levam os catadores ao isolamento social, que reduz as suas oportunidades de inserção. O catador de material reciclável necessita atuar em locais onde os resíduos cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 sejam mais abundantes e isso ocorre nos setores dinâmicos do comércio, que se concentram nos distritos do centro e nos corredores sul-sudoeste (Jardins, Pinheiros, Itaim, Moema, Vila Mariana) (Torres, 2004). Métodos Após análise da bibliografia e da legislação pertinente aos resíduos sólidos, a etapa da pesquisa de campo foi subdividida em: definição do perfil dos grupos e levantamento do universo a ser pesquisado, elaboração do instrumento de coleta de dados, pré-teste dos formulários com questões de múltipla grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo escolha e abertas e sua aplicação a líderes dos grupos de catadores autônomos.5 Para a definição do perfil dos grupos objeto da pesquisa, foram considerados os requisitos pré-estabelecidos pelo Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. Esses requisitos exigem que os grupos: • Estejam constituídos como cooperativas. Para se constituir como cooperativa é necessário no mínimo 20 participantes. A seleção do grupo levou em conta apenas o número de participantes, não tendo sido pré-requisito o grupo já estar constituído como cooperativa, mas ter condições para tal; • Tenham seu endereço e atuem na cidade de São Paulo; • Atuem com a catação de materiais recicláveis; Além dos requisitos legais, mais três requisitos operacionais foram incluídos: • Serem de conhecimento da pesquisadora as referências do grupo, tais como nome, endereço, telefone, número de participantes; • Não terem contrato com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo; • Concordarem em receber a pesquisadora para a aplicação do formulário. Universo da pesquisa Foram identificados 143 grupos. Destes, constatou-se que: 11 eram ONGs; 18 não tinham dados suficientes que possibilitassem contatá-los; 15 se referiam a grupos que não atuavam mais com catação; 3 eram grupos que não atuavam na catação por falta de espaço físico. Os demais 94 grupos foram classificados em: Centrais de Triagem6; Grupos com até 19 participantes; e grupos com mais de 20 participantes. Estes últimos, 13 grupos, constituíram o objeto da presente pesquisa, pois, teoricamente, poderiam ser incluídos no programa da prefeitura. As questões elaboradas para a coleta de dados tiveram como objetivo aprofundar o conhecimento sobre a forma de organização, as parcerias estabelecidas pelo grupo, as suas condições econômicas, a forma de gestão, a caracterização dos participantes, o conhecimento do grupo sobre o Programa de Coleta Seletiva do Município, o interesse em participar do programa e a opinião deles sobre as vantagens e as desvantagens em participar do referido programa. Algumas referências legais Algumas referências legais são importantes para conhecer o fio que separa a inclusão ou exclusão desses grupos no programa municipal. A Lei nº 13.430, de 2002, regulamenta o Plano Diretor da Cidade de São Paulo. O art. 7º destaca seus princípios, que demonstram preocupação com justiça social, redução das desigualdades sociais e regionais; inclusão e participação da população, direito ao trabalho, à cidade e à moradia. O artigo 72, inciso IX, indica as “ações estratégicas para a política de resíduos sólidos, entre elas implantar e estimular programas de coleta seletiva e reciclagem, preferencialmente em parceria com grupos de catadores organizados em cooperativas, com associações cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 265 marina pacheco e silva e helena ribeiro 266 de bairros, condomínios, organizações não governamentais e escolas.” A Lei Municipal 13.478, de 30 de dezembro de 2002, dispõe sobre a organização do Sistema de Limpeza Urbana de São Paulo. O art. 2º refere-se aos deveres do Poder Municipal, e o seu inciso V estabelece que compete ao município criar condições para que os serviços de limpeza propiciem o desenvolvimento social, reduzam as desigualdades sociais e aprimorem as condições de vida de seus habitantes. O artigo 6º, inciso VIII, atribui ao munícipe o dever de “contribuir ativamente para a minimização dos resíduos, por meio da racionalização dos resíduos gerados, bem com sua reutilização, reciclagem ou recuperação”. O capitulo II – Seção III, os artigos 67 e 70 estabelecem permissão às cooperativas de trabalho, integradas por catadores de resíduos sólidos recicláveis, para a prestação de serviços de limpeza urbana e coleta seletiva de lixo e de triagem do material coletado, em regime público, podendo celebrar convênios com as cooperativas interessadas em prestar os serviços, com o repasse de recursos financeiros, materiais ou humanos, com vistas a incentivar sua execução. O Decreto Municipal 48.799, de 2007, normatiza o Programa Socioambiental de Coleta Seletiva com Cooperativas, tendo como objetivo estimular a geração de emprego e renda e fomentar a formação de cooperativas e associações de catadores de materiais recicláveis, como política de inclusão social. As ações do Programa preveem o apoio à formação de cooperativas e associações de catadores e a implementação progressiva da coleta seletiva por meio das cooperativas e associações, estabelecendo que os contratos da Prefeitura para as atividades de coleta cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 seletiva estão isentos de licitação. Define, para tanto, cooperativas ou associações como “o grupo de catadores de materiais recicláveis que atuem no ramo de coleta seletiva, legalmente constituído, que gerenciará a Central de Triagem ou a unidade de produção encarregada de coletar, triar, armazenar, beneficiar e comercializar os resíduos sólidos recicláveis”. Ainda determina que “a receita proveniente da comercialização dos resíduos recicláveis será revertida integralmente às cooperativas e associações participantes do programa”. Há, pelas peças legislativas citadas, amplo amparo legal para que os grupos de catadores atuem na coleta seletiva, desde que organizados legalmente em cooperativa e que estabeleçam parceria com o governo municipal. Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo O primeiro Programa de Coleta Seletiva do município de São Paulo foi implantado em julho de 1989 (Calderoni, 1999). Para o seu início, a Prefeitura disponibilizou, no bairro de Vila Madalena, a coleta domiciliar de recicláveis porta a porta, em dias diferentes da coleta convencional de resíduos sólidos. Para os bairros que não tinham acesso a esta coleta, colocou à disposição da população containeres em parques ou em áreas de concentração habitacional. As escolas também foram alvo desse programa, contando com um trabalho de educação ambiental desenvolvido por Limpurb. grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo Todo o material coletado no bairro de Vila Madalena e nos containeres era direcionado para centro de triagem localizado em Pinheiros, implantado junto com o Programa de Coleta Seletiva, sob coordenação do Corpo Municipal de Voluntários – CMV. São Paulo já tinha uma coleta informal realizada pelos catadores avulsos de rua, os quais recolhiam em torno de 500 toneladas dia, e, para não prejudicá-los, o Programa de Coleta Seletiva evitava a colocação de containeres nas áreas onde eles se concentravam. Em 1993, a coleta porta a porta foi cancelada, permanecendo apenas os postos de entrega voluntária nos parques da cidade. Em 1997, a Limpurb lançou o Programa “Recicla São Paulo”, tendo como objetivo a coleta e revenda de recicláveis, operacionalizado pelas empresas responsáveis pela coleta tradicional de lixo e prevendo a integração e remuneração dos moradores pelo lixo coletado seletivamente (Calderoni, 1999). Em agosto de 1997, um grupo de entidades do setor de embalagens apresentou ao Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, um diagnóstico e uma proposta de incentivo à reciclagem e à coleta seletiva, chamada de “uma proposta cidadã”. A proposta previa estímulos aos municípios para implementar coleta seletiva e centros de triagem de resíduos, incentivos fiscais da União e do Estado para catadores e recicladores, campanhas do governo estadual e da sociedade civil para motivar a população, apoio aos catadores para ampliarem a ação de suas cooperativas e desenvolvimento de mercado, por parte da indústria, para os produtos feitos com materiais reciclados (Oliveira, 1997). Entretanto, em setembro de 1997, a Prefeitura remanejou verba destinada a diversos serviços (dentre eles, da coleta seletiva), para o pagamento de dividas e R$511 milhões para gastos com a destinação final do lixo, uma vez que os aterros sanitários estavam sobrecarregados (Huertas, 1997). O programa de coleta seletiva foi considerado deficitário, pois o custo da coleta era muito alto (U$470 dólares a tonelada) comparado ao valor arrecadado com a comercialização (U$50 dólares por tonelada). O apoio operacional tornou-se limitado e houve cortes nas campanhas de divulgação. Os containeres coloridos foram substituídos por apenas uma cor, verde, e passaram a receber todos os tipos de materiais a serem reciclados, sendo necessário separar o lixo seco (resíduos recicláveis) do lixo molhado (resíduos orgânicos). Segundo a Limpurb, a falta de investimento levou o programa ao colapso, o material que era depositado nos containeres deixou de ser coletado e se amontoava nos Postos de Entrega Voluntária – PEVs – por dias seguidos, causando mau cheiro e favorecendo a presença de vetores transmissores de doenças.7 Com a proximidade das eleições municipais, em junho de 2000, sessenta instituições que atuavam na área social e ambiental criaram o “Fórum do Lixo e Cidadania da cidade de São Paulo”, e elaboraram o documento Plataforma Lixo e Cidadania para São Paulo, com as propostas produzidas no “Encontro Lixo e Cidadania: compartilhando a gestão do lixo de São Paulo”. Essa plataforma ressaltava a necessidade de o poder público, em especial o próximo Gestor da cidade, prever no seu plano de governo ações que valorizassem a importância da redução dos resíduos sólidos urbanos – RSU, o reaproveitamento destes com a participação cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 267 marina pacheco e silva e helena ribeiro 268 dos catadores e a erradicação do trabalho infantil nos aterros. Esse documento foi apresentado aos candidatos à Prefeitura e à Câmara Municipal (Plataforma do lixo e cidadania, 2000).8 Reportagem de janeiro de 2001 apresentou as iniciativas das ONGs, que apesar de não contarem com o apoio efetivo da Prefeitura, utilizavam o lixo como forma de gerar renda a seus beneficiários. As ONGs Reciclazaro e Boa Vista Reciclada atuavam na Lapa e no Centro da cidade, respectivamente, e atendiam trabalhadores que anteriormente eram explorados por ferros velhos. Esta reportagem cita pesquisa da FIPE apontando que dos 8.704 moradores de rua, mais de 3000,9 atuavam com a catação. Traz, ainda, dados sobre o volume de resíduos gerado na cidade, que era de 14.072 toneladas, sendo aproximadamente um terço de resíduos recicláveis. No entanto, a coleta seletiva só recolhia 4 toneladas/mês, o que correspondia a 0,08% (Viveiros, 2001). Para a ampliação e retomada do programa de coleta seletiva, em 2002, a prefeitura apresentou nova proposta, que consistia na abertura de três Centros de Triagem. A escolha dos grupos para a gestão das três primeiras centrais foi feita em reunião com representantes da Prefeitura, dos Fóruns de catadores e das entidades Coopamare e Reciclazaro, que já tinham experiência com grupos de catadores. A organização dos catadores foi o grande desafio para esse projeto. Os catadores podiam ser divididos em três grupos: os que assumiam a atividade como profissão, os que dependiam dela, mas tinham vergonha e os que tratavam a atividade como um bico (Folha, 2002). Sendo uma das atribuições da Prefeitura a capacitação para a inserção no Programa cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 Socioambiental Cooperativa de Catadores de Material Reciclável, a Secretaria do Desenvolvimento Trabalho e Solidariedade, SDTS, em 2002, em parceria com a Unesco e com entidades sociais, desenvolveu cursos de capacitação em Agente Comunitário de Coleta Seletiva. Esses cursos formavam os agentes, que deviam, no final do curso, ter conhecimento da importância da reciclagem, das suas consequências ao meio ambiente, dos tipos de materiais que podem ser reciclados, da diferenciação entre os materiais e saber convencer a população para a separação dos resíduos em suas casas.10 O Instituto Pólis, em dezembro de 2002, conjuntamente com 67 instituições que atuavam com educação ambiental, inclusão social, econômica e cultural, realizou o “1º Encontro de Educação Socioambiental do Programa Coleta Seletiva Solidária de São Paulo”. Esse encontro foi copromovido pelo Comitê Metropolitano de Catadores, pelo Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, pelo Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste, pelo Fórum Recicla São Paulo e pela Prefeitura do Município de São Paulo. O objetivo foi a implantação do “Programa Coleta Seletiva Solidária”, para o reaproveitamento de resíduos com vistas à inclusão social, geração de trabalho e renda e mobilização da sociedade. O Programa tinha como princípio a estruturação de um sistema de coleta seletiva associativista, operacionalizado pelas organizações de catadores e com apoio logístico do poder público e capacitação dos catadores para atuarem em cooperativas.11 As Centrais de Triagem começaram a ser implantadas em 2003 (10 centrais), em 2004 foram implantadas mais 4 centrais e em 2006 mais uma, totalizando as 15 centrais existentes. Elas foram grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo estruturadas a partir de grupos organizados que já atuavam com a coleta nas regiões onde foram implantadas. A central de Triagem da Mooca contava, na época, com 39 cooperados e tinha o apoio de 5 núcleos. Para o início das Centrais de Triagem esses núcleos encaminharam catadores para formarem a cooperativa à qual eles permaneciam ligados, formando uma rede de coleta seletiva na região (Ribeiro et al., 2005). A rede acabou não se consolidando e as Centrais de Triagem passaram a operar independentemente dos grupos existentes. Alguns desses grupos deixaram de existir e outros, hoje, pleiteiam o status de se tornarem Centrais de Triagem. Relatório do Limpurb sobre o desempenho do Programa de Coleta Seletiva e Ecopontos, de março de 2007, apontava um custo da coleta seletiva de R$5.267.976,74 milhões/ano e R$438.976,74 mensais. O número de cooperados atuando nas 15 centrais de triagem era de 838, que recebiam, em média, R$649,19 mensais. Triavam, por mês, 2.610 toneladas de resíduos, ao custo de R$168,10 a tonelada. As principais dificuldades enfrentadas pelo programa, apontadas nesse relatório foram: dificuldade de gerenciamento administrativo; falta de prestação de contas à Prefeitura e a dependência dos cooperados ao Órgão Público; desconhecimento sobre a Lei 5.764/71 que rege o Cooperativismo; a falta de participação da Sociedade na separação dos resíduos; e a falta de uso dos equipamentos de proteção individual – EPI’s, pelos cooperados.12 Em novembro de 2007, o Instituto Pólis, com entidades que atuam na integração social e educação ambiental na cidade de São Paulo, reuniram 101 pessoas para a elaboração da Agenda de 2008 – Política Pública de Coleta Seletiva com Inclusão dos Catadores e Catadoras.13 O diagnóstico apresentado no encontro demonstra que os números do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo permaneciam inalterados em relação aos dados de 2004, que as cooperativas continuavam reciclando 1% dos resíduos coletados na cidade e que apenas 1.000 cooperados integravam as Centrais de Triagem. O orçamento de 2007 para a coleta convencional e destinação de resíduos, sob o regime de concessão, foi de R$479.085.000,00, enquanto o da coleta seletiva foi de R$6.707.950,00, isto é, 1,4% do orçamento destinado à coleta convencional. Em contrapartida a esse quadro, grupos de catadores organizados e mesmo catadores autônomos vêm atuando informalmente na coleta, e o material recolhido por eles não é computado oficialmente nas estatísticas. Muitos desses catadores aguardam uma oportunidade de se inserir no Programa da Prefeitura e de receber a remuneração pelos serviços prestados à cidade. A remuneração a catadores participantes da coleta seletiva oficial foi prevista na legislação normativa, mas ainda depende de regulamentação. A ampliação da coleta seletiva com inclusão dos catadores pode trazer benefícios para a cidade, entre eles: a redução dos custos de operação dos aterros sanitários e aumento de sua vida útil, redução de custos de energia e matéria-prima, ampliação dos números de postos oficiais de trabalho e renda, inclusão de catadores no sistema público de coleta seletiva, aumento de oportunidades de inserção social e reintegração de catadores e suas famílias e conservação de recursos naturais. cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 269 marina pacheco e silva e helena ribeiro Agentes ambientais, carrinheiros, carroceiros, recicladores, catadores 270 Agentes ambientais, catadores, carrinheiros, carroceiros, profissionais do “lixo”. Existem diversas formas de denominá-los. Esses profissionais garantem seu sustento e de sua família através da catação de materiais descartados como “lixo”, encontrados nas ruas, nas indústrias, nas residências e usam a tração humana para puxar carroças e se locomoverem. Birbeck denomina os catadores selfemployed proletarians , considerando que o autoemprego não passa de ilusão, pois os catadores se autoempregam, mas, na realidade, vendem sua força de trabalho à indústria da reciclagem, sem terem acesso à seguridade social do mundo do trabalho (Birbeck 1978 apud Medeiros e Macedo, 2006, p. 65). Segundo Rodrigues e Cavinato, há mais de 50 anos é bastante conhecido, no Brasil, o catador de papel e papelão que anda pelas ruas nos centros das cidades puxando seu carrinho e remexendo os sacos de lixo na calçada. A catação é o processo de reaproveitamento do “lixo” mais antigo de que se tem notícia no país. Devido a essa tradição, o Brasil ocupava, no final da década de 1980, uma posição de destaque mundial na recuperação de papel e papelão, à frente dos Estados Unidos e do Canadá. (1997, p. 57) Ângelo (2007), no conto A Formiga e o Lixo , faz uma reflexão sobre quem é o cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 catador, o trabalho que ele realiza no dia a dia, a pessoa que recolhe o que não consome, a sua função na sociedade, representando a pobreza, a carência, a exclusão, o trabalho de formiguinha que contribui para o Brasil ser o maior reciclador de alumínio. O homem da carroça, o burro sem rabo,(....) na grande cidade, é um resto. Um rejeito levando rejeitos.(.....) um personagem-símbolo do grande problema, da pobreza, da exclusão, da carência. (Ibid., p. 141) Para conhecer quem eram esses catadores, a Secretaria Municipal do Trabalho – SMTRAB, realizou uma pesquisa, em 2005. Foram entrevistados 500 profissionais no centro expandido da cidade (SMTRAB 2005). De acordo com seus resultados, 90% desses profissionais eram do sexo masculino, 26% tinham entre 31 e 40 anos e 46% entre 41 e 55 anos, 59% tinham o ensino fundamental incompleto, 23% moravam na rua e 14% em albergues. Concluiu-se que 37% estavam em situação de rua e 50% moravam com a família, 36% moravam na região central da cidade, 57% trabalhavam anteriormente com carteira registrada, 88% eram autônomos. No entanto, a profissão de catador é legalmente reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, tendo sido inscrita no Código Brasileiro de Ocupações – CBO, pelo nº 5.192 e denominada “catadores de material reciclável”, incluindo nessa classificação – Catador de ferro-velho, Catador de papel e papelão, Catador de sucata, Catador de vasilhame, Enfardador de sucata (cooperativa), Separador de sucata grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo (cooperativa), Triador de sucata (cooperativa) (CBO – MTE). Mas, como visto, ter uma profissão reconhecida não garante a esses profissionais o reconhecimento da sociedade, nem a garantia do direito ao seguro social. Resultados Os resultados obtidos na pesquisa de campo evidenciaram muitos dos pontos acima descritos. O desconhecimento dos membros do grupo e o seu registro é uma tônica, uma vez que não é prática dos grupos terem ficha de cadastro dos participantes. Dos 13 grupos aos quais foram aplicados os formulários, apenas três se reportaram às fichas de cadastro, para responder às questões. Assim, nem mesmo o grupo conhece seus membros. No quesito gênero, 11 grupos souberam caracterizar seus participantes, sendo, na média, 47% homens (H) e 53% mulheres (M). Essas proporções entre os gêneros são semelhantes às obtidas por Besen (2006), em estudo sobre associações de catadores de resíduos, em três municípios: 43% do sexo masculino e 57% do sexo feminino. Já na pesquisa realizada pela SMTRAB, 90% dos entrevistados eram do sexo masculino. Tais dados podem ser explicados pelo fato que na pesquisa da SMTRAB só foram entrevistados catadores que estavam puxando carroças. Na presente pesquisa, foi verificado que, nos grupos que utilizam carroça, a percentagem de homens era maior que na média dos grupos (56% homens e 44% mulheres). Segundo relato dos representantes, os homens puxam a carroça e as mulheres fazem a triagem do material. Cinco grupos não souberam prestar informações sobre idade dos seus participantes, 3 grupos relataram que a maior parte tem, em média, 30 a 40 anos. Apenas 3 grupos souberam precisar a idade dos participantes. Nestes, 37% dos participantes estavam na faixa de 30 a 40 anos e 38% na acima de 40 anos. No total dos grupos, pode-se afirmar que a faixa etária que prevalece é de 30 a 40 anos. Pesquisa da SMTRAB (2005) demonstrou que 48% dos entrevistados tinham idade entre 41 e 55 anos. Portanto, nas duas pesquisas com catadores, evidenciou-se forte presença de população em idade produtiva. Quanto à escolaridade, 6 grupos não souberam prestar nenhuma informação, 5 grupos informaram o número de participantes analfabetos e com ensino médio. Só um grupo não tinha analfabetos. Dentre todos os grupos, 72% dos catadores tinham o ensino fundamental completo ou incompleto. Os resultados assemelham-se aos da pesquisa da SMTRAB, de que 75% dos entrevistados tinham ensino fundamental completo ou incompleto, isto é, 5 a 8 anos de estudo. Esta população, portanto, apesar de estar em idade produtiva, encontra dificuldades para se inserir no mercado formal de trabalho. Os dados corroboram a afirmação de Camargo (s.d.) de que a taxa de desemprego entre os trabalhadores semiqualificados no Brasil é mais elevada. Como alternativa de sobrevivência e sustento da família, os trabalhadores semiqualificados optam pela catação. Possivelmente, sua capacitação não atende aos requisitos necessários para vagas de empregos disponíveis, com renda que supere a obtida no trabalho de catação. cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 271 cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 cúria metropolitana cedido* cedido* locado locado PMSP sem cessão PMSP comodato PMSP sem cessão contratante PMSP sem cessão locado cedido* 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 individual individual e do grupo grupo grupo grupo individual e do grupo individual individual e do grupo individual e do grupo entidade individual grupo grupo Posse dos equipamentos individual*** grupo grupo grupo grupo externo contador individual*** grupo grupo coordenação grupo entidade grupo Gestão dos recursos grupo + entidade assembleia assembleia assembleia assembleia assembleia assembleia assembleia assembleia entidade + SMADS assembleia assembleia coordenação e assembleia Tomada de decisões material recolhido hora trabalhada hora trabalhada hora trabalhada hora trabalhada individual ou hora trabalhada material recolhido material e hora trabalhada hora trabalhada dia trabalhado produção hora trabalhada hora trabalhada e produção Divisão dos recursos não tem arrecadação pelo grupo não sabem o total 4.000,00 40.000,00 4.111,00 30.000,00 não tem arrecadação pelo grupo 20.000,00 13.000,00 14.960,00 20.000,00 21.000,00 62.000,00 Arrecadação mensal dos grupo – R$ 1.000,00 200,00 300,00 900,00 700,00** 197,00 1.000,00** 800,00 450,00 700,00 500,00 salário mínimo 700,00 480,00 1.900,00** 450,00 Renda mensal dos participantes R$ não recolhem não recolhem não recolhem todos recolhem não recolhem não recolhem não recolhem alguns recolhem não não recolhem não recolhem não recolhem todos recolhem Seguridade social – INSS não não não 10% não sim não sim, variável não não sim, 10% não não sim não sim sim não não não não sim sim não não sim Fundo Investimentos de reserva * cedido – Utilizam espaço cedido pela SMADS a uma entidade social; ** maior valor e menor valor; *** recolhem individualmente com a carroça. PMSP sem cessão Situação do espaço utilizado pelo grupo 1 Grupo 272 Quadro 1 – Síntese das variáveis de análise da situação econômica dos grupos Parceria Porta a porta Porta a porta e parceria Parceria Parceria e entrega de terceiros Parceria e entrega de terceiros Porta a porta Parcerias Parcerias Parcerias Parcerias Parcerias Parcerias Forma de coleta marina pacheco e silva e helena ribeiro grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo Sustentar a família era a necessidade de 73% dos membros dos 6 grupos que tinham a informação do local de moradia de seus participantes. Dos demais grupos, 3 informaram que a maioria vivia com a família. Um único grupo informou que 76% dos participantes viviam sós ou moravam em albergues. Este último atuava em parceria com a SMADS, na inserção dos albergados. Quanto às variáveis de análise da situação econômica, sobressai a questão do espaço físico (Quadro 1). Dos dados apurados na pesquisa, constatou-se que 3 grupos desenvolviam suas atividades em espaço locado, 1 grupo prestava serviço a um grande gerador e utilizava o espaço do contratante, outro grupo tinha o espaço cedido pela Cúria Metropolitana. Os outros 8 grupos (62%) desenvolviam suas atividades em espaços públicos, isto é, espaços pertencentes à Prefeitura, com e sem cessão de espaço. Apenas 1 grupo tinha o comodato por 25 anos para a utilização do espaço, assinado pelo prefeito. A falta do espaço predeterminado pelo poder público contribui para o uso irregular da cidade e para a utilização do espaço público coletivo, como ruas e praças na execução da triagem do material recolhido pelos grupos. O relato abaixo retrata uma prática dos grupos que atuam informalmente. Ele representa a história de um dos grupos estudados. O cenário mais marcante da apropriação do espaço público do Largo São Francisco começa depois das 17h, quando, particularmente as praças tornam-se locais de comercialização e beneficiamento de papelão, papel e outros resíduos coletados em toda a região central. Uma legião de catadores, com suas respectivas famílias, vai chegando, carregando montanhas de sacos de lixo em suas carroças quase medievais. São verdadeiras tropas de seres humanos puxadores de carroças que depositam pilhas de sacos de lixo no chão, e ali mesmo, começam a fazer a separação da fração comercializável. (Serpa, 2001, p. 51 apud Serpa, 2004) A existência de espaço adequado de triagem também é determinante para a utilização de maquinário. A disponibilidade de balança, prensa, esteira, entre outros equipamentos, contribui para agregar valor ao material coletado e aumentar a renda do catador. O grupo que possui uma infraestrutura melhor tem condições de coletar, triar, enfardar e comercializar uma quantidade maior de resíduos mais valorizados pelo mercado, o que leva a aumentar sua arrecadação. Para ampliar a quantidade de material coletado, alguns grupos costumam estabelecer parceria com empresas e condomínios, que reservam os seus resíduos recicláveis para que esses grupos os retirem, em dias pré-determinados. Dentre os dados apurados, essa sistemática era praticada por 10 grupos (77%). Dentre esses 10 grupos, 2 grupos, além do material que retiravam, também recebiam material de terceiros pela entrega voluntária nas sedes dos grupos. Os outros 3 grupos recolhiam os resíduos só passando de porta em porta. As parcerias são, portanto, importantes elementos para a sustentabilidade desses grupos, mas exigem a formação de certo grau de capital social, baseado em confiança adquirida (Kawachi et al., 2008). Exige também o reconhecimento, cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 273 marina pacheco e silva e helena ribeiro 274 pelas empresas e pelos moradores desses condomínios, dos catadores como cidadãos, com algum direito, mesmo que restrito aos resíduos descartados pela sociedade de consumo, em que pese eles não apresentarem os requisitos para estarem inseridos nos benefícios do programa municipal. As propostas de inclusão social e formação de cidadania dos catadores apontam para a necessidade de que os grupos desenvolvam suas ações à luz dos pressupostos da economia solidária. Segundo Singer (2004), a economia solidária pressupõe a repartição dos benefícios de forma igual e menos casual. Para Lechat (2002), a característica central da economia solidária é ser meio de produção que preza o laço social através da reciprocidade e adota formas comunitárias de propriedade. Essa não era a realidade nos grupos pesquisados. Ainda estavam arraigadas nos participantes as ações individuais, com dificuldades de incorporar o coletivo. Provavelmente, essa difi culdade está ligada à necessidade premente de subsistência. A gestão dos recursos auferidos era assim administrada: em 8 grupos (62%) era administrada pelo próprio grupo; em 2 grupos não existiam recursos coletivos, cada catador ficava com o valor auferido pelo seu trabalho; em 1 grupo a administração dos recursos era realizada pelo coordenador que fazia as contas e a divisão dos recursos; 1 grupo contratava uma empresa de contabilidade para a administração dos recursos; e em outro grupo a administração dos recursos era feita pela entidade mantenedora. O dinheiro arrecadado pelo grupo era dividido pelas horas trabalhadas em 9 grupos (69%). Destes 9 grupos, 3 grupos tinham mais de uma forma de rateio (material cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 recolhido e produção), 2 grupos não tinham rateio (cada participante ficava com o que havia coletado e arrecadado), o outro grupo era remunerado pelo dia trabalhado. A atividade de catação, como já foi dito, não era percebida pelos participantes como um trabalho importante, sendo feita na falta de oportunidade melhor de trabalho. Os catadores almejavam ser empregados, receber salário fixo constante, o que não ocorre, ao menos no início, num projeto de economia solidária. As retiradas mensais realizadas pelos componentes dos grupos variavam dentro do próprio grupo. A menor retirada mensal era de R$197,00 e a maior de R$1.900,00. A média de renda mensal obtida era de R$630,00, o que correspondia a 1,65 salários mínimos. Esse valor médio arrecadado era semelhante aos obtidos em outras pesquisas que abordaram o assunto. Na pesquisa da SMTRAB, 43% dos “carroceiros” apresentavam renda entre 1 e 3 salários mínimos; e na pesquisa de Besen (2006), a renda média correspondia a quase 1,5 salários mínimos. Quanto às despesas que tinham, variavam de grupo para grupo: 2 grupos não tinham despesas, em 1 grupo as despesas eram assumidas pelo Convênio com a SMADS, em 1 grupo uma parte delas era assumida também pelo convênio com SMADS e nas outras o valor variava de R$315,00 a R$13.000,00. As despesas elevadas de alguns grupos referiam-se a locação e manutenção de caminhão, locação de espaço, uniformes, serviços públicos de água e eletricidade, encargos sociais. Dentre os grupos pesquisados, apenas 2 estavam regulares com a previdência social, e recolhiam o INSS em nome de todos grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo os membros, em 1 grupo alguns membros recolhiam por si e 10 grupos (77%) não recolhiam o INSS de seus membros. De maneira geral, constataram-se insegurança e falta de amparo social desses grupos em situações de doença, acidentes de trabalho e aposentadoria. Sua situação de exclusão estaria evidenciada como a impossibilidade de acesso a alguns direitos sociais básicos que, em decorrência, leva os grupos nessa situação à condição de subcidadãos: sem direitos, sem consumo e sem ferramentas para superar essa condição (Pochmann, s.d.). A instância de tomada de decisões era a Assembléia em 10 grupos (77%), em 2 grupos a entidade responsável pelo grupo participava das decisões e em 1 grupo as decisões não incluíam os catadores (eram tomadas pela entidade que administrava o convênio com a SMADS, com o aval desta). As regras estipuladas nos estatutos dos grupos de catadores estudados eram fruto da participação de poucos. De forma geral, os catadores encontram dificuldade para se incorporarem num novo modelo, em que sua participação é requerida. Além do mais, muitas vezes estes estatutos são construídos isoladamente, num processo anterior à integração e mobilização do grupo, pela necessidade de atender às exigências legais do cooperativismo, conforme exposto por Cortegoso e Porto (2008). Os resultados obtidos na pesquisa, nesses quesitos, evidenciam a fragilidade dos laços de confiança estabelecidos entre os membros dos grupos, possivelmente também decorrente da sua alta rotatividade. A rotatividade dos grupos pode indicar a busca por segurança, pelo emprego que garanta uma receita maior e que possa suprir as necessidades básicas do catador, conforme sugerido por Grimberg (2007). Segundo a autora, um dos fatores que contribui para a evasão, é que a retirada dos catadores avulsos é relativamente maior do que dos que estão em associações. Entretanto, é importante que os laços dos grupos se fortaleçam e que sua organização seja sólida. A capacidade de os grupos se organizarem é que vai permitir que o Estado os incorpore em políticas públicas (Marques, 1999). Inserção em política pública é alternativa para adquirir cidadania? O conceito de cidadania adotado neste artigo prende-se às conquistas coletivas, impulsionadas por uma concepção de universalidade, cujo fundamento é o direito de se ter direitos (Kowarick, 2000). Neste contexto, seria o direito à inserção em políticas públicas de coleta seletiva. A análise das variáveis que demonstram o potencial de inserção dos grupos no Programa de Coleta Seletiva incluía: o interesse dos grupos, as dificuldades levantadas por eles, o conhecimento dos pré-requisitos necessários, as vantagens e desvantagens da participação no programa. A Tabela 1 retrata o interesse desses grupos. Dentre as vantagens levantadas pelos grupos em relação a participar do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo, destacou-se o caminhão como a maior vantagem. O uso do caminhão possibilita recolher maior quantidade de resíduos e contribui para preservar a saúde e minimizar os riscos a que os catadores estão expostos pelo trabalho precário em carrinhos cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 275 marina pacheco e silva e helena ribeiro Tabela 1 – Interesse dos grupos em se inserirem no Programa de Coleta Seletiva Variável Têm interesse em se inserir no Programa da PMSP Já mantiveram contato e oficializaram o interesse em se inserirem no Programa de Coleta Seletiva Estão tentando estabelecer contato Nunca entraram em contato com a Limpurb para se inserirem no Programa de Coleta Seletiva Nunca tentaram, pois não são Cooperativas Conhecem os requisitos para estabelecer parceria com o Programa de Coleta Seletiva 276 e carroças, realizado com alto grau de periculosidade, insalubridade e sem reconhecimento social (Medeiros e Macedo, 2006). Em segundo lugar, na lista das vantagens, indicaram o material que as concessionárias do serviço de limpeza pública levam para as centrais de triagem operadas pelas cooperativas parceiras do programa da prefeitura. A infraestrutura e o espaço físico apareceram juntos em terceiro lugar. Segundo todos os entrevistados, outra vantagem importante de estarem incluídos no programa da prefeitura era a legalização do espaço. A existência de espaço físico adequado e legalizado é um fator relevante para que o grupo se sustente. Este é objeto do Contrato de Concessão dos Serviços divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público14 firmado entre a Prefeitura de São Paulo e as empresas Loga e Ecourbis, que têm a concessão para exploração do serviço de limpeza pública em São Paulo. No anexo III do contrato é estabelecido que as empresas deverão construir 17 centrais de triagem, cabendo à Prefeitura indicar as áreas disponíveis para sua construção. Portanto, depende do comprometimento efetivo da Prefeitura e das cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 Nº de grupos 12 % 92 4 31 2 15 4 31 3 22 7 53 empresas para que os grupos tenham local e infraestrutura adequados para desenvolver a triagem de resíduos. O quesito capacitação não representava um empecilho à não inserção desses grupos no programa municipal. Segundo Grimberg, o catador de rua, para integrar-se a um processo de trabalho cooperativado, necessita passar por um processo de capacitação, que contribua para valorizar o trabalho coletivo (Grimberg, 2007). O processo de construção de um empreendimento economicamente solidário é lento e necessita ser constante para que a formação e a qualificação sejam incorporadas e as atitudes mudadas (Mello, 2005). A participação no programa municipal pressupõe a capacitação dos catadores envolvidos. No caso dos grupos entrevistados, apesar de não participantes do programa municipal, apenas 1 não havia recebido nenhum tipo de capacitação. Dos demais, 10 grupos receberam capacitação administrativa e gerencial, 3 grupos receberam qualificação profissional para atuar com a reciclagem, 6 grupos capacitação jurídica, 9 grupos foram capacitados na área de organização e grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo integração para o trabalho. Dentre os outros cursos realizados, 3 grupos citaram o de cooperativismo, um grupo de autogestão e um grupo de logística. Relacionando a participação nos cursos com o tempo de existência do grupo, pode-se verificar que os grupos que mais tiveram capacitação tinham 10, 13 e 6 anos de existência. Um dos grupos, que tinha 18 anos de existência, informou que continua em processo de capacitação permanente, sendo o único que relatou esse fato. Assim, a formação de capital humano não era uma prerrogativa dos incluídos no programa municipal. Entretanto, como afirma Pochmann (2002), as práticas do empreendedorismo se desenvolvem de forma conflituosa, e trabalhar esses conflitos é um modo de aprimoramento. Mas, para que haja esse aprimoramento, é necessário o acompanhamento, o monitoramento e a instrumentalização constantes. A inclusão num programa público poderia prover essa constante instrumentalização. Dentre as desvantagens de participar do programa municipal, as maiores preocupações eram com a perda da autonomia por parte dos grupos e com a mudança de gestão administrativa na Prefeitura, pois essas mudanças sempre interferem no gerenciamento dos grupos. Outra desvantagem apontada foi a exigência legal de que o grupo tenha 20 membros para se constituir em cooperativa e poder estabelecer parceria com a prefeitura. Alguns grupos, quando questionados sobre o número de participantes, relataram a dificuldade em manter esse número mínimo exigido: [...] houve uma redução (do número de catadores), queda do material, muitas pessoas acabam se tornando catador avulso, tem vantagens, o catador acaba pegando R$30,00, R$40,00, pega móveis, alimentos e roupa. A pesquisa mostrou que os grupos, para se sustentarem, necessitam usufruir das vantagens que o programa propicia às Centrais de Triagem, como a legalização do espaço, a utilização do transporte motorizado (minimizando os riscos e os inconvenientes do uso da carroça), o custeio da infraestrutura (reduzindo as despesas), o que, consequentemente, possibilitaria o aumento da renda dos catadores. Concluindo A cidade de São Paulo conta com 94 grupos ou cooperativas organizadas que atuam com a catação de resíduos sólidos. Destes, só 15 são parceiros da Prefeitura na gestão das Centrais de Triagem. Os outros 79 necessitam de apoio para se formalizarem, para se constituírem em empreendimentos economicamente solidários, que sejam reais instrumentos de exercício de cidadania em prol de seus direitos. Dentre esses direitos estariam a geração de trabalho e renda, contribuindo para elevar a condição de vida de seus membros, capacitando-os para o trabalho coletivo, com a divisão equitativa das tarefas e dos recursos auferidos. O reconhecimento e a valorização desses grupos de catadores, da sua capacidade de autogestão e de participação ativa nas decisões e implementação de políticas públicas de resíduos sólidos urbanos tornaria os membros do grupo sujeitos aptos a definir os seus rumos, os dos seus cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 277 marina pacheco e silva e helena ribeiro empreendimentos, conscientes do seu papel na conservação dos recursos do ambiente e na melhoria da cidade. Dentre os resultados obtidos, pode-se afirmar que a falta de apoio, o desconhecimento das premissas da economia solidária e a necessidade premente de subsistência dos partícipes do grupo contribuíram para que a prática do coletivo seja bastante restrita entre os grupos de catadores autônomos envolvidos na coleta seletiva na cidade de São Paulo. Muitas vezes, sua característica de grupo se restringe à utilização de um mesmo espaço físico e, mais raramente, de um mesmo maquinário, quando existente. O estigma de sujeira que os catadores carregam, a desconsideração que a sociedade tem das atividade que eles executam e a não percepção de que o trabalho deles contribui para a melhoria da qualidade de vida da cidade podem ser revertidos. A coleta seletiva pode ser uma ferramenta de inclusão dos catadores, um mecanismo socializador, que possibilita o ganho financeiro e transforma os catadores em cidadãos. A falta de uma ação sistematizada por parte da Prefeitura Municipal de São Paulo junto aos grupos de catadores autônomos organizados tem sido um dos obstáculos para a ampliação do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. A legislação vigente contém normas que viabilizam a efetividade do programa, objetivando a ampliação da coletas de resíduos recicláveis, a diminuição de descartes nos aterros e o aumento da participação dos grupos de catadores, mas isso não é suficiente. 278 Marina Pacheco e Silva Assistente social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, assistente social da Prefeitura do Município de São Paulo, Secretaria Municipal do Trabalho (São Paulo, Brasil). [email protected] Helena Ribeiro Geógrafa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, livre-docente em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo do Departamento de Saúde Ambiental (São Paulo, Brasil). [email protected] cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo Notas (1) Apostila 2006 – Coleta Seletiva Cidade de São Paulo – Programa Coleta Seletiva – 2006. (2) http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/orcamento_2008/detalhamento_despesa_ mai2008.pdf (3) O contrato destina-se à coleta de lixo convencional na cidade, o custeio das Centrais de Triagem é objeto de outra dotação orçamentária. (4) http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/infogeral.php, acessado em 14.4.2008. (5) A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública. (6) As Centrais de Triagem são vinculadas à Prefeitura de São Paulo e administradas por cooperativas de catadores que possuem um convênio com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. São ao todo 15 Centrais de Triagem que estão situadas em diferentes pontos da cidade. Elas ocupam terrenos municipais e/ou locados pela municipalidade para esse fim. Além do espaço, essas centrais têm toda a infraestrutura mantida pela Prefeitura. (7) Apostila 2006 Coleta Seletiva Cidade de São Paulo, Limpurb – 2006, pg. 6. (8) Plataforma Lixo e Cidadania para São Paulo, Instituto Pólis, 2000. (9) Pesquisa realizada pela FIPE- Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, dados de fevereiro de 2000. (10) Projeto Formação Cidadã, Capacitação Ocupacional e Aprendizagem de Utilidade Coletiva no Município de São Paulo, Prefeitura de São Paulo, Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade – SDTS, em Parceria com a Unesco – convênio 914BRA3000, 2002. (11) Plataforma de Educação Socioambiental do Programa Coleta Seletiva solidária, Instituto Polis, março 2003. (12) Programa de Coleta Seletiva e Ecopontos, Relatório Mensal, março de 2007. Prefeitura da Cidade de São Paulo , Secretaria de Serviços, LIMPURB – Departamento de Limpeza Urbana, Divisão de Coleta seletiva e Ecoponto. (13) Agenda de Ações 2008 – Política Pública de Coleta Seletiva com inclusão de catadores e catadoras – Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, janeiro de 2008. (14) O Contrato de Concessão dos Serviços Divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público foi firmado entre a PMSP e as empresas Loga e Ecourbis em setembro de 2004. cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 279 marina pacheco e silva e helena ribeiro Referências ANGELO, I. (2007). “A formiga e o lixo”. In: FERREIRA, M.B. (org.). A vida que a gente quer depende do que a gente faz. São Paulo, Ecofuturo. BESEN, G.R. (2006). 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Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.br.php?scripit=sci_arttext&pid =S0103-40142004000200001&Ing=en& nrm=iso>. Acesso em 8 jan 2008. SMTRAB – Secretaria Municipal do Trabalho. (2005). Perfil dos Carroceiros na cidade de São Paulo. São Paulo. TOPALOV, C. (1979). La urbanizacion capitalista algunos elementos para su análisis. México, Editorial Edicol. TORRES, H. G. (2004). Segregação residencial e políticas públicas: São Paulo na década de 1990. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, pp. 41-55. VIEIRA, M. A. C. et al (1994). População de rua : quem é, como vive, como é vista. São Paulo, Hucitec. ________ (1995). “Perfil da população de rua São Paulo”. In: ROSA, C. M. M. (org.). População de rua: Brasil e Canadá. São Paulo, Hucitec. VIVEIROS, M. (2001). Lixo reciclado gera renda para catadores. Folha de S. Paulo. Disponível em: http:// www1folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1102 2200201.htm. Acesso em 14 maio 2008. Recebido em dez/2008 Aprovado em mar/2009 cadernos metrópole 21 pp. 261-279 10 sem. 2009 281 Normas para publicação de artigos Contribuições Os artigos recebidos para publicação nos Cadernos Metrópole são submetidos à apreciação do Coletivo Editorial, ao qual caberá a decisão final sobre a oportunidade de publicação. O Coletivo Editorial da revista comunica aos autores a decisão sobre a publicação, mas não se compromete a devolver originais não publicados. A pauta de cada número é organizada separadamente, não havendo, portanto, compromisso de publicação resultante da data da remessa do artigo. A publicação de um artigo não significa que o Conselho Editorial esteja de acordo com o seu conteúdo. Da mesma forma, a recusa não significa desaprovação. Em ambos os casos, a decisão resulta de uma seleção entre os textos submetidos à revista, que leva em conta o espaço disponível e a oportunidade do tema. A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor recebe 3 exemplares do número em que for publicado seu trabalho. Apresentação dos originais Os trabalhos devem ser encaminhados para a Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo – SP – Brasil, gravados em CD (artigo e folha de rosto) e em 2 (duas) vias impressas, sem identificação do autor, digitadas em espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo, no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas. Devem ter um resumo de até 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave. Os textos devem ser em Word; tabelas e gráficos em Excel; imagens em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm , sendo que os gráficos e imagens devem ser em tons de cinza. Os créditos do(s) autor(es) serão colocados em uma folha de rosto com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005. Dúvidas e sugestões: [email protected] Onde adquirir Cadernos Metrópole Raquel Cerqueira (11) 3368.3755 - 9931.9100 [email protected] Porto Alegre - RS ● FEE - Rosetta Mammarella (51) 3216.9028 [email protected] Belém - PA ● UFPA - Livraria do Campus Univ. do Guamá (91) 3201.7351 - 3201.7357 [email protected] Recife - PE ● UFPE - Maria Angela de Almeida Souza (81) 3421.3628 [email protected] Belo Horizonte - MG ● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/MG ● Rio de Janeiro - RJ Luciana Teixeira de Andrade (31) 3462.2900 ● Observatório das Metrópoles - UFRJ - Beth Observatório de Políticas Urbanas da Proex - PUC/MG Luciana Teixeira de Andrade (31) 3319.4588 [email protected] ● Susanne Bach Comércio de Livros Ltda. Curitiba - PR - Rosa Moura (41) 3351.6324 [email protected] ● UFBA - Gilberto Corso Pereira ● Ipardes Fortaleza - CE ● UFCE - Luis Renato Pequeno (85) 3366.9864 [email protected] Goiânia - GO ● UCG - Aristides Moysés (62) 3946.1191 [email protected] (21) 2598.1932 - (21) 2598.1950 fax [email protected] (21) 2573.2512 [email protected] Salvador - BA (71) 3332.1980 / 9955.1015 [email protected] São Paulo - SP ● B.K.S. Livraria Especializada Antonio Ricarte (11) 3129.5176 Dafam ● Fupam - Fundação para a Pesquisa Ambiental (11) 3554.6060 - Ingrid [email protected] ● Instituto Pólis (11) 2174.6800 Maringá - PR ● UEM - Ana Lucia Rodrigues (44) 3261.4287 [email protected] Natal - RN ● UFRN - Janaína Maria da C. Silveira (84) 3215.3836 [email protected] ● Livraria Cortez (11) 3873.7111 [email protected] ● Livraria Moisés Limonad (11) 3871.2023 [email protected] ● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/SP (11) 3670.8609 [email protected] Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São Paulo – SP – Brasil. 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