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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole trabalho e moradia Cadernos Metrópole v. 12, n. 23, pp. 1-294 jan/jun 2010 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira ttrabalho rabalho e m moradia oradia PUC-SP Reitor Dirceu de Mello EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente), Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso, Thiago Lopes Matsushita Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Sonia Rangel Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA 05015-001 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília, Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa, Portugal) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, México) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, São Paulo, Brasil) Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa, Portugal) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo, Brasil) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo, Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Leila Christina Duarte Dias (UFSC, Santa Catarina, Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Bahia, Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Andrea Catenazzi (UNGS, Los Polvorines, Argentina) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj, Rio de Janeiro, Brasil) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona, Espanha) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Ceará, Brasil) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, São Paulo, Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa, Bahia, Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Rio de Janeiro, Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago, Chile) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Rio Grande do Norte, Brasil) Carlos José Cândido G. Fortuna (UC, Coimbra, Portugal) Marília Steinberger (UnB, Brasília, Brasil) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona, Espanha) Nadia Somekh (UPM, São Paulo, Brasil) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Pará, Brasil) Nelson Baltrusis (UCSAL, Bahia, Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Pará, Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo, Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (PUC, São Paulo, Brasil) Raquel Rolnik (USP, São Paulo, Brasil) Fernando Nunes da Silva (UTL, Lisboa, Portugal) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo, Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo, Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Paraná, Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC, São Paulo, Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, São Paulo, Brasil) Heliana Comin Vargas (USP, São Paulo, Brasil) Sarah Feldman (USP, São Paulo, Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG, Minas Gerais, Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Rio de Janeiro, Brasil) Jesús Leal (UCM, Madrid, Espanha) Suzana Pasternak (USP, São Paulo, Brasil) José Antônio F. Alonso (FEE, Rio Grande do Sul, Brasil) Tamara Benakouche (UFSC, Santa Catarina, Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (PUC, São Paulo, Brasil) Wrana Maria Panizzi (UFRGS, Rio Grande do Sul, Brasil) sumário 9 Apresentação dossiê trabalho e moradia Residen al segrega on and employment 15 in large Brazilian urban spaces Popula on’s commu ng: evidence of the lack 43 of connec on between housing and labour From class hierarchy to the social organiza on 65 of the intra-urban space: a comparison among the major Brazilian metropolises Socio-territorial organiza on and residen al mobility 85 in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Luiz César de Queiroz Ribeiro Juciano Mar ns Rodrigues Filipe Souza Corrêa Movimento pendular da população no Paraná: uma evidência da desconexão moradia/trabalho Rosa Moura Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano: um olhar compara vo sobre as grandes metrópoles brasileiras Luciana Corrêa do Lago Rose a Mammarella Organização socioterritorial e mobilidade residencial na Região Metropolitana do Rio de Janeiro Érica Tavares da Silva The func onal center of Campo Grande 105 Centro funcional de Campo Grande no início do at the beginning of the 21st century: século XXI: centralidade renovada ou periférica? renewed or peripheral centrality? Cris na Lontra Nacif Gisele Teixeira Antunes Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 1-294, jan/jun 2010 7 Antagonism between employment 125 O antagonismo entre emprego e moradia and housing in Brazil’s Federal District no Distrito Federal Beatriz Teixeira de Souza Rômulo José da Costa Ribeiro Residen al segrega on and reproduc on 145 Segregação residencial e reprodução das of social and spa al inequali es desigualdades socioespaciais no aglomerado in the Brasília urban conglomerate urbano de Brasília George Alex da Guia Lúcia Cony Faria Cidade Exploring the consequences of metropolitan 169 Explorando as consequências da segregação segrega on in two socio-spa al contexts metropolitana em dois contextos socioespaciais Luciana Teixeira de Andrade Jupira Gomes de Mendonça Anthropology in the analysis 189 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas of urban peripheral situa ons Maria Gabriela Hita John E. Gledhill Urbanism, demography and the ways 211 of living in the metropolis: a case study in the Metropolitan Region of Campinas Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole: um estudo de caso da Região Metropolitana de Campinas Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves José Marcos Pinto da Cunha Two decades of urban occupa ons in Curi ba. 239 Duas décadas de ocupações urbanas em Curi ba. Quais são as opções de moradia para os What are the housing op ons for poor workers? trabalhadores pobres, afinal? Celene Tonella Beyond the prison-building: peripheries 263 Para além da prisão-prédio: as periferias como campos de concentração a céu aberto as borderless concentra on camps Acácio Augusto The democra c management of the metropolis in 277 Gestão democrá ca da metrópole na periferia the periphery of capitalism: paradoxes do capitalismo: paradoxos e perspec vas and transforma on perspec ves de transformação Paulo Romano Reschilian 8 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 1-294, jan/jun 2010 Apresentação Um dos fenômenos marcantes observados nos aglomerados urbanos e nas metrópoles contemporâneas é a mobilidade diária da população residente, provocada pela dissociação entre local de moradia e local de trabalho. Na maioria dos casos, as grandes proporções desses movimentos se originam em municípios com baixa capacidade interna de absorção de mão-deobra ou com serviços educacionais que não atendem às necessidades da população. Tal fenômeno se deve, também, à concentração das oportunidades de trabalho e educacionais nos municípios de maior porte, em geral polos das aglomerações ou das áreas metropolitanas que exercem funções de centralidade em relação ao entorno e direcionam a sua dinâmica. Tais movimentos, que ocorrem principalmente em função do trabalho e da busca pelas condições de educação, não são realizados apenas pelos segmentos populacionais de baixa renda, mas atingem vários setores da população ocupada. A maior concentração dos fluxos registra-se naqueles municípios que exercem a função de “dormitórios”, concentrando segmentos de baixa ou alta renda, onerando o sistema público de transporte e demandando serviços de vários tipos em razão dos deslocamentos. Outras questões emergem quando se propõe o debate sobre a conexão/desconexão entre moradia e trabalho nas metrópoles contemporâneas. No caso das metrópoles brasileiras, imediatamente vêm à tona os problemas gerados – ao longo das últimas quatro décadas – pela formação e expansão de periferias pobres, pela distribuição inadequada de serviços públicos e bens de consumo coletivo, produzindo os processos conhecidos como segregação socioespacial. Esse modelo de estruturação metropolitana está, por sua vez, vinculado a formas de gestão do Estado que se articulam a interesses de alguns setores da economia e geram impactos no âmbito dos investimentos públicos e na dinâmica econômico-social urbana. Diante desse quadro, cabe indagar em que medida essas tendências apontam para a consolidação de metrópoles segmentadas, com base na divisão entre municípios ricos e municípios pobres, com a distribuição desigual de oportunidades de trabalho, estudo e geração de renda, onde a desconexão trabalho-moradia se instala como modelo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 9-13, jan/jun 2010 9 Apresentação Os textos reunidos neste número dos Cadernos Metrópole debatem essas e outras importantes questões que compõem o quadro dos desafios que se apresentam aos estudiosos da questão urbana e aos formuladores de políticas públicas. Partindo da hipótese de que os processos de segmentação territorial e segregação residencial em curso nas metrópoles brasileiras têm grande importância na compreensão dos mecanismos de reprodução das desigualdades sociais e da exclusão, Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa discutem os possíveis efeitos da segregação residencial sobre as oportunidades geradas pelo mercado de trabalho, em 17 regiões metropolitanas, a partir da transformação estrutural à qual foram submetidos os espaços urbanizados nas últimas décadas. Com base em evidências empíricas, o texto procura demonstrar os efeitos da composição social dos bairros sobre as oportunidades de emprego dos adultos, apontando para a existência de maiores riscos e maior vulnerabilidade social nas áreas de concentração de pobreza. Os resultados encontrados contribuem para a discussão da segregação residencial como uma variável importante para a compreensão dos mecanismos que produzem e reproduzem a desigualdade em diferentes metrópoles no Brasil. No trabalho de Rosa Moura, a desconexão moradia/trabalho também é observada a partir dos movimentos pendulares da população brasileira para trabalho e/ou estudo, com foco especial no caso do estado do Paraná. Para Moura, o perfil da população que se desloca retrata as relações espaciais entre o mercado de trabalho e a moradia na organização interna das metrópoles, evidenciando as diferenças quanto à acessibilidade às funções metropolitanas, expressão, por seu lado, das formas de segregação socioespacial. O trabalho assinala que esses movimentos têm se ampliado, considerando o número de pessoas envolvidas e as distâncias percorridas, o que demanda sua compreensão analítica e a formulação de políticas públicas compatíveis às dinâmicas territoriais urbanas. Conforme a autora, as consequências dessa desconexão afetam diferencialmente os segmentos da população, dificultando a acessibilidade dos pobres ao trabalho, à renda e aos bens de consumo coletivos, acirrando a desigualdade nos espaços urbanos/ metropolitanos. No âmbito desse debate, o artigo de Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella busca traçar as grandes tendências na organização social do território metropolitano brasileiro, orientando-se por um conjunto de pressupostos e questões construídos ao longo da trajetória de quinze anos de pesquisa do Observatório das Metrópoles. Partindo do suposto de que o grau de diversidade ou homogeneidade social de um bairro exerce forte influência sobre as ações dos indivíduos ali residentes, examinam as alterações no padrão intrametropolitano de localização das classes sociais em quatro metrópoles brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre – com base nas categorias sócio-ocupacionais construídas a partir dos dados censitários de 1991 e 2000. Focalizando mais especificamente a região metropolitana do Rio de Janeiro, o estudo de Érica Tavares da Silva investiga as tendências dos movimentos populacionais articulando-as às grandes transformações na organização social do território. A análise utiliza uma classificação 10 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 9-13, jan/jun 2010 Apresentação tipológica da evolução socioespacial segundo a hierarquia ocupacional e investiga quais áreas da tipologia têm se caracterizado por maior imigração e sob quais modalidades de fluxos: núcleoperiferia; periferia-núcleo; periferia-periferia; intraestadual; interestadual. Os resultados apontam para diferenças na mobilidade espacial intrametropolitana conforme as modificações observadas nos tipos socioespaciais, ao longo do período estudado. Apontam, também, para a conexão entre segregação socioespacial e segmentação da mobilidade. Restringindo o foco da análise para a zona oeste da metrópole do Rio de Janeiro, o texto de Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes discute alguns aspectos da reconfiguração socioespacial daquela área da periferia, com destaque para Campo Grande, centro funcional de reconhecida importância regional. Partindo da constatação de que o bairro está sendo impactado por grandes obras de infraestrutura, além de vários lançamentos do mercado imobiliário e da implantação de novas indústrias, as autoras indagam se tais investimentos produzirão a reafirmação da centralidade de Campo Grande, realizando a expectativa de desenvolvimento socioeconômico na região. Mais do que isso, questionam a possibilidade de alteração ou de continuidade do clássico modelo centro-periferia de expansão metropolitana, a partir do caso analisado. Em que pesem as diferenças e especificidades em termos de sua estruturação territorial, a região metropolitana de Brasília não foge ao modelo característico das demais metrópoles brasileiras, com padrões similares de segregação residencial, processos intensos de mobilidade pendular e políticas de gestão territorial incapazes de equacionar as demandas sociais crescentes, presentes na relação centro-periferia. Os dois textos sobre Brasília, publicados neste número, possuem caráter complementar e analisam 1) a presença de fatores claramente antagônicos entre a moradia e o emprego, agravados pela concentração dos empregos públicos, da esfera federal, na área central do Distrito Federal (Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro). Essa área, tombada como patrimônio, não pode receber novas moradias, residindo muitos dos que ali trabalham em áreas periféricas do entorno, distantes dos empregos; 2) em que medida fatores como a influência da ação do Estado na alocação de postos de trabalho e moradia foram importantes para a conformação de um gradiente social de rendas descendentes do centro para a periferia, com elevados níveis de segregação residencial e segmentação territorial, conforme colocação de George Alex da Guia e Lucia Cony Faria Cidade. Desses dois trabalhos, depreende-se a presença, no aglomerado metropolitano de Brasília, de um contínuo processo de periferização dos pobres em direção ao entorno e do fortalecimento da autossegregação de parte dos setores médios, intelectuais e dirigentes nas áreas centrais do Distrito Federal. Depreendem-se, também, o caráter excludente da política habitacional e o descompasso gerado pelo processo de dispersão urbana, com a geração de elevados custos sociais. A análise das consequências de dois processos distintos de segregação na região metropolitana de Belo Horizonte, apresentada no texto de Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça, recoloca a questão de como a homogeneidade ou a heterogeneidade social produzem impactos nas oportunidades no mercado de trabalho ou apresentam estruturas de oportunidades diferenciadas. Os contextos analisados são o eixo norte de Belo Horizonte, onde Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 9-13, jan/jun 2010 11 Apresentação se localizaram, a partir dos anos 1970, os municípios “dormitório” pobres, com características de forte homogeneidade, e o eixo sul, onde se observou, a partir dos anos 1990, a autossegregação de grupos de alta renda, em condomínios residenciais fechados. Tal região atraiu, posteriormente, segmentos de baixa renda em busca de empregos pouco qualificados, constituindo-se em área marcada pela heterogeneidade social. Apesar de analisarem fenômeno presente na maioria das cidades brasileiras, as autoras apontam para especificidades atribuídas à história dessas áreas e concluem pelos efeitos positivos da maior mistura social sobre a estrutura de oportunidades e menor estigmatização dos residentes, ao contrário de áreas da periferia que se homogeneízam pela pobreza, criminalidade e violência. A proposta de uma análise antropológica que permita estabelecer a diferenciação entre áreas pobres na cidade de Salvador ressalta a importância das redes sociais na conformação de atores sociais coletivos e na emergência de novos tipos de atores políticos e comunitários. Conforme propõem os autores Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill, uma análise etnográfica de como as pessoas vivem pode oferecer uma melhor compreensão das diferentes situações urbanas periféricas, bem como subsidiar a reformulação de políticas públicas voltadas a essas áreas. Completando o debate do tema do dossiê e situando-se na linha de estudos denominada “heterogeneidade da pobreza urbana”, o trabalho de Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha discute um dos aspectos centrais de tal heterogeneidade que diz respeito às distintas formas de morar numa metrópole, a partir da ótica dos estudos demográficos. Partem do pressuposto de que a composição e produção do espaço urbano e toda sua heterogeneidade e desigualdade, em particular os assentamentos populares, são também, em parte, reflexo das características sociodemográficas da população residente. O texto tem como objetivo analisar a relação entre as diferentes etapas do ciclo vital familiar/do curso de vida individual e a condição migratória com as alternativas existentes para obtenção da moradia em áreas metropolitanas, a partir de estudo realizado na Região Metropolitana de Campinas. Segundo afirmam os autores, não apenas o movimento migratório mas também o tempo de residência podem se traduzir em ativos para algumas famílias no sentido de melhorar suas condições habitacionais. O aprofundamento destas relações bem como a identificação dos mecanismos a partir dos quais as características demográficas atuam sobre a dinâmica habitacional são aspectos importantes para a compreensão dos processos de segregação socioespacial. Complementarmente a esse debate, o texto de Celene Tonella considera o modelo de ocupação das periferias urbanas e metropolitanas como parte de uma dinâmica excludente e segregadora, que produz e reproduz as favelas e as chamadas “habitações subnormais”, abrigando aqueles que nem sequer tiveram acesso ao terreno periférico e/ou à casa própria. Essa dinâmica estabelece uma relação direta entre o local de moradia e o tipo de habitação com a forma de integração das pessoas no mercado de trabalho. A partir de um balanço da bibliografia recente sobre o tema, aponta algumas situações diferenciadas, porém recorrentes, em áreas metropolitanas. Seu artigo tem por objetivo revisitar a história de luta dos trabalhadores 12 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 9-13, jan/jun 2010 Apresentação pobres por um lugar para morar na cidade de Curitiba, Paraná, marcada de modo crescente pelas ocupações irregulares de terrenos para moradia e por um número crescente de famílias residindo em áreas de risco social e ambiental. Numa outra vertente do debate sobre as periferias pobres e a questão social metropolitana, o texto de Acácio Augusto analisa de forma contundente as consequências dos investimentos em políticas assistenciais que visam solucionar o chamado problema da “violência urbana”. Tais políticas indicam uma via da configuração das periferias das grandes cidades ou das chamadas cidades globais como “campos de concentração a céu aberto”. A partir da apresentação de um projeto de aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto para os chamados adolescentes infratores, o autor analisa os impactos dessas medidas em áreas consideradas de risco e/ ou habitadas por jovens classificados como em situação de vulnerabilidade social. O conceito sociológico de gueto, colocado por Wacquant, é problematizado a partir da noção de campo de concentração a céu aberto proposta por Edson Passetti e da análise genealógica de Michel Foucault. A contribuição final às análises apresentadas neste número é feita por Paulo Romano Reschilian, que discute o contexto socioespacial das metrópoles brasileiras como campo de análise, tendo em vista a criação de mecanismos de gestão e de instrumentos urbanísticos, na perspectiva do planejamento urbano contemporâneo. Aborda, para tanto, a dinâmica urbana e a espacialização da pobreza como indicativos de uma ordem territorial na qual a existência de assentamentos precários tem marcado o processo de construção social da paisagem urbana. Nas análises propostas, o autor remete à necessidade de identificar os elementos para a formulação de uma abordagem multidimensional que possibilite a apreensão dos aspectos componentes da urbanização desigual, bem como os limites à ação cidadã e à atuação do Estado. A relevância das discussões trazidas pelos textos aqui reunidos, a riqueza dos dados e a relevância das questões apresentadas oferecerão ao leitor um amplo leque de possibilidades de reflexão e deverão inspirar novos estudos e pesquisas sobre os temas tratados em sua diversidade e grande complexidade. Lucia Bógus Luiz César de Q. Ribeiro Editores científicos Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 9-13, jan/jun 2010 13 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Residential segregation and employment in large Brazilian urban spaces Luiz César de Queiroz Ribeiro Juciano Martins Rodrigues Filipe Souza Corrêa Resumo Nosso sistema urbano conta hoje com 37 grandes aglomerados, onde reside 45% da população (76 milhões de pessoas); e, apesar de seus desequilíbrios, constituem importante ativo para o desenvolvimento nacional. Ao mesmo tempo, a urbanização e o crescimento econômico brasileiro na segunda metade do século XX, além da robustez do sistema urbano, não foram capazes de garantir melhores condições sociais, sobretudo nos grandes espaços urbanos. Partindo da hipótese de que os processos socioespaciais em curso nas metrópoles brasileiras têm enorme importância na compreensão dos mecanismos de exclusão e integração, através dos seus efeitos sobre a estruturação social dos mecanismos de produção/reprodução de desigualdades, procuramos, neste trabalho, entender de que maneira a divisão social do espaço urbano está relacionada às condições de acesso à estrutura de oportunidades no mercado de trabalho. O exercício cujos resultados aqui apresentamos permite uma reflexão teórico-metodológica sobre as hipóteses enunciadas, considerando a grandeza e relevância estatística dos resultados obtidos. Abstract The Brazilian urban system currently has 37 large agglomerations, where 45% of the population live (76 million people); despite their imbalances, they are an important asset for national development. At the same time, the urbanization and economic growth that took place in Brazil in the second half of the 20th century, as well as the robustness of the country’s urban system, have not been able to secure better social conditions, especially in large urban areas. Based on the hypothesis that the socio-spatial processes in Brazilian cities are important for the understanding of the exclusion and integration mechanisms, through their effects on the social structuring of the mechanisms of production/reproduction of inequalities, our purpose, in this study, is to find out how the social division of the urban space is related to the conditions of access to the structure of opportunities in the labor market. With the results presented here, we are able to carry out a theoretical and methodological reflection on the study’s hypotheses, considering the magnitude and statistical significance of the obtained results. Palavras-chave: metrópoles; crise social; segregação residencial; mercado de trabalho. Keywords: metropolises; social crisis; residential segregation, labor market. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Introdução disso, outras limitações decorrem da natureza mesma dos dados. Utilizando informações censitárias – aqui as provenientes do Censo 2000 Partindo da hipótese de que os processos de do IBGE –, estamos limitados a, por um lado, segmentação territorial e segregação residen- apreender situações que julgamos estruturais cial em curso nas metrópoles brasileiras têm e, por outro, caracterizar realidades coletivas enorme importância na compreensão dos me- que produzem efeitos sobre os indivíduos. Por canismos de reprodução das desigualdades exemplo, será o desemprego – um dos indica- sociais e, consequentemente, na exclusão e dores aqui utilizados – uma situação conjun- integração, procuramos, neste trabalho gerar tural ou estrutural dos indivíduos, dúvida de- evidências empíricas sobre os possíveis efeitos corrente da natureza pontual no tempo do le- da segregação residencial sobre as oportuni- vantamento. A mesma questão pode ser levan- dades geradas pelo mercado de trabalho. tada para os outros indicadores de desfecho Em outras palavras, buscamos explorar no mercado de trabalho que aqui utilizamos. os efeitos da concentração espacial de pes- As segundas limitações provêm do fato de as soas com desvantagens de condições de ha- informações serem levantadas sobre os indiví- bilitação exigidas para acessar a estrutura de duos e não sobre as realidades coletivas que oportunidades distribuídas pelo mercado de buscamos caracterizar. Por exemplo, as carac- trabalho. Não pretendemos que os resulta- terísticas do espaço coletivo denominado es- dos aqui apresentados sejam a demonstração tatisticamente como dos Domicílios – no qual da relação causal direta entre os contextos os indivíduos desenvolvem sua vida, portanto sociais conformados por esses processos de adquirem certas características – são apreen- aglomeração residencial. Apesar da utiliza- didas por indicadores construídos no nível do ção de procedimentos e técnicas de análise indivíduo. Por último, vale a pena mencionar adequadas a contornar os erros conhecidos a necessária precaução no entendimento da da “falácia ecológica”, estamos conscientes relação causal aqui explorada em função da que a natureza seccional do dados limitam existência da pluralidade de concepções teó- a apreensão dos resultados como comprova- rico-metodológicas nas ciências sociais sobre a ção de tal causalidade. Com efeito, apenas a própria noção de causalidade. Essa questão é utilização de dados longitudinais permitiria complexa o suficiente para limitar o seu tra- controlar adequadamente a relação entre as tamento no marco deste trabalho. Ela toca a características das pessoas e dos seus lugares pluralidade de modelos pelos quais as ciências de residência e com desfechos individuais que sociais pretendem por meio de suas várias ver- se realizam no mercado de trabalho. Afinal, é tentes teóricas explicar a relação de determi- em razão de as pessoas terem certas posições nação entre o indivíduo e a sociedade, do mais no mercado de trabalho que elas moram com puro atomismo, passando pelo individualismo pessoas que compartilham características se- metodológico até as diversas variações do es- melhantes dotando tais lugares de contextos truturalismo. Adotamos aqui a atitude metodo- sociais específicos ou o seu contrário? Além lógica weberiana, segundo a qual a covariação 16 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros de duas ou mais variáveis não é suficiente para lhes permitem atingir um grau maior de in- estabelecer uma relação de causalidade, mas é serção na economia de serviços produtivos e necessária para imputar uma causalidade cuja poder de direção, medido pela localização das descrição e compreensão deve prosseguir no sedes das 500 maiores empresas do país, pelo desdobramento de um trabalho, seja no plano volume total das operações bancárias/finan- empírico seja no teórico. ceiras e pela massa de rendimento mensal.2 Na primeira parte, apresentamos o con- Neste estudo, além das 15 metrópoles texto de transformação estrutural ao qual fo- já mencionadas, incluiremos na análise outros ram submetidas as metrópoles brasileiras nas dois aglomerados: a região metropolitana de últimas décadas. Na segunda, apresentamos Natal-RN (Lei Complementar Estadual nº 152, os principais elementos da metodologia apli- de 16 de janeiro de 1997) e a região metropo- cada, com ênfase nos dados utilizados, no litana de Maringá-PR (Lei Complementar Esta- tratamento das variáveis e no modo de medir dual nº 83, de 17 de julho de 1998), que fazem a segregação residencial. Na terceira e última parte da Rede Observatório das Metrópoles. A parte, apresentamos os resultados do estudo, localização dessas 17 metrópoles e a categoria fruto das análises empreendidas que eviden- de tamanho populacional à qual elas perten- ciam os efeitos da segregação residencial so- cem estão representadas no Mapa 1. bre o desemprego, a fragilidade ocupacional e o nível de rendimento nas metrópoles. Vale salientar, que esses espaços considerados metropolitanos têm redobrada importância no cenário social e econômico nacional, principalmente no que tange à concentração Crise social e mercado de trabalho nas metrópoles brasileiras das forças produtivas nacionais. Eles concentram 62% da capacidade tecnológica do país, medida pelo número de patentes, artigos científicos, população com mais de 12 anos de estudo e valor bruto da transformação industrial Nosso sistema urbano conta hoje com 37 gran- (VTI) das empresas que inovam em produtos des aglomerados onde reside 45% da popula- e processos produtivos. Ainda nessas 15 me- ção (76 milhões de pessoas) e, apesar de seus trópoles está ainda concentrado 55% do valor desequilíbrios constitui importante ativo para o de transformação industrial das empresas ex- desenvolvimento nacional. Entre os 37 grandes portadoras. aglomerados urbanos, temos 151 metrópoles, A urbanização e o crescimento econô- ou seja, grandes espaços urbanos que apresen- mico brasileiro na segunda metade do século tam características das funções de coordena- XX e a robustez do sistema urbano não foram ção, comando e direção próprias das grandes capazes de garantir melhores condições so- cidades na “economia em rede” (Veltz, 1996). ciais, sobretudo nas grandes cidades. A cria- Ao mesmo tempo, concentra elevada parcela ção de novos empregos em todos os setores da população, exerce alta capacidade de cen- da economia não se generalizou e a abun- tralidade, além de possuir características que dância de mão-de-obra disponível permitiu Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 17 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Mapa 1 Fonte: IBGE, 2007 Elaboração: Observatório das Metrópoles, 2008, por Arthur Molina a compreensão das remunerações, além de (Ribeiro e Santos Junior, 2007). Podemos afir- forjar uma estrutura ocupacional em que se mar que esses desequilíbrios também se repro- viu cada vez mais a presença das relações de duzem no interior dessas grandes cidades em trabalho precárias em setores como o pequeno forma de desigualdade intraurbana, visto que comércio, os serviços pessoais ou o trabalho além da rapidez do processo de urbanização, doméstico (Carvalho, 2006). os interesses do capital imobiliário e a fraca Ao mesmo tempo, a crise social transfor- capacidade de regulação e distribuição do Es- mou a geografia da pobreza urbana e da vul- tado contribuíram para conformação de cida- nerabilidade social, com impactos profundos des extremamente desiguais e injustas (Carva- na dinâmica da agregação societária do terri- lho, 2006). Sendo assim, em algumas cidades, tório popular e nas relações reais ou simbóli- as qualidades urbanísticas se acumulam em cas que estabelece com o restante da cidade setores restritos, locais de moradia, negócios e 18 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros consumo de uma minoria da população mora- em atividades com baixas produtividades dora, enquanto que para a grande maioria res- (Cacciamali, 2004). Nesse sentido, o aumento tam as terras que a legislação urbanística ou da informalidade é o principal ajuste verifica- ambiental veta para a construção, ou espaços do no mercado de trabalho brasileiro, como precários das periferias (Rolnik, 2008). resultado das mudanças ocorridas na econo- Na década de 80, após um período de mia nesta década (Ramos, 2002). Nas regiões elevado crescimento econômico, a tendência metropolitanas, onde é realizada a Pesquisa de melhora nas condições sociais, conquista- Mensal de Emprego do IBGE (PME) – São das principalmente por melhorias na qualidade Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto do emprego, se inverte. Neste sentido, Alegre, Recife e Salvador – a informalidade [...] com o agravamento da crise econômica, da crise fiscal do Estado e uma intensa aceleração do processo inflacionário, os caminhos do país foram reorientados, com a implantação de um conjunto de políticas convergentes, recomendadas pelas agências multilaterais. (Carvalho, 2006, p. 9) Tais efeitos provocaram profundas mudanças no mercado de trabalho brasileiro e, principalmente, em suas principais áreas urbanas. Nesse período, o chamado ajustamento do emprego (mercado de trabalho) ocorreu por dois mecanismos principais: 1) o aumento de ocupações de baixa qualidade e alta produtividade; e, 2) uma queda da renda real dos segmentos ocupacionais médios e inferiores. Ao mesmo tempo, aconteceu um aumento do número de trabalhadores por conta própria (Cacciamali, 1993). Sentindo mais diretamente os efeitos da globalização e da reestruturação produtiva, o mercado de trabalho brasileiro caracterizouse, na década de 1990, pelo crescente aumento da informalidade, principalmente nas grandes metrópoles. Após a implantação do plano real, verificou-se um maior volume de desemprego aberto, com queda no emprego industrial e um crescimento do setor terciário Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 passou de 40% para 47% entre 1991 e 1996 e, até 2001, com pequenas variações no ritmo de crescimento, esse índice chegou a 50% da população ocupada (ibid.). Para Ramos (ibid.), a principal explicação para o comportamento da informalidade nesse período é de natureza estrutural, em função das mudanças ocorridas em dois setores fundamentais da estrutura econômica: a indústria da transformação e o setor de serviços. Em outras palavras, o aumento da informalidade está ligado a uma realocação da mão-de-obra no contexto das mudanças na estrutura ocupacional mencionadas anteriormente. Pois, por um lado, houve uma perda do percentual de ocupados na indústria de transformação e, por outro, um aumento substancial no setor de serviços, como já afirmamos. Segundo o mesmo autor: A razão de ser para esse raciocínio deve-se às características dos postos de trabalho em cada um desses setores: enquanto a indústria contrata majoritariamente através do assalariamento com carteira assinada — em torno de 70% dos vínculos trabalhistas na indústria eram dessa natureza em 2001 –, o oposto acontece com o segmento de serviços, em que o grau de informalidade era próximo de 60% 19 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa nesse mesmo ano. De maneira análoga, a constatação de que o movimento ascendente da informalidade perdeu força, ou mesmo desapareceu, na virada da década, justamente quando as participações desses setores no total da ocupação se estabilizaram, serve para reforçar este argumento. (Ramos, 2002, p. 4) 2000, mas com taxas bem próximas à média Já o desemprego ao longo dos últimos 2007, foi registrada uma taxa de desempre- anos comporta-se de maneira bastante dife- go de pessoas com mais de 15 anos de idade renciada nas regiões metropolitanas onde é de 17,7%, enquanto a média nacional é de realizada a Pesquisa Nacional por Amostra 10,9%. das regiões metropolitanas pesquisadas. Curitiba e Porto Alegre apresentam as menores taxas desde o inicio da década de 1990, sempre abaixo da média. Já as regiões metropolitanas do Nordeste sempre apresentaram os maiores percentuais, principalmente Recife, onde, em de Domicílios (PNAD/IBGE). Ao mesmo tem- Antes de tratarmos diretamente dos po, apresenta comportamento diferente entre efeitos da segregação residencial sobre as con- elas. Nas regiões metropolitanas de São Paulo dições de acesso ao mercado de trabalho nas e Rio de Janeiro, com podemos ver na Tabela metrópoles, se faz necessário um panorama 1, a tendência foi de aumento entre meados da situação de desemprego e fragilidade dos da década de 1990 até início da década de adultos de 30 a 59 anos de idade no ano 2000. Tabela 1 – Taxa de desemprego (%) pessoas com 15 anos ou mais das regiões metropolitanas Ano Brasil/Região Metropolitana Brasil RMs 1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 9,1 9,0 7,9 9,3 11,0 12,9 13,8 12,6 13,0 13,8 13,1 13,0 11,7 10,9 9,7 9,6 8,2 9,9 11,3 12,6 14,3 13,1 13,5 13,9 13,6 13,5 12,1 11,5 Belém 11,9 8,9 9,0 10,8 12,7 10,3 16,5 14,2 13,1 11,9 11,9 12,8 12,3 11,0 Salvador 11,6 14,8 9,6 14,6 16,0 17,0 19,2 15,5 19,3 19,8 19,3 17,5 16,5 15,2 Fortaleza 9,3 8,9 9,1 8,8 10,1 10,9 12,1 12,0 13,5 13,6 13,2 12,9 12,1 11,4 Recife 13,2 14,3 9,2 10,9 13,2 14,7 14,3 14,0 14,9 17,6 17,8 18,3 15,4 17,7 Brasília 7,9 8,9 7,9 12,5 9,9 11,6 14,8 14,4 14,0 13,7 14,2 13,3 11,4 11,7 Belo Horizonte 9,4 7,9 6,6 8,1 9,4 12,3 14,1 12,6 12,0 11,4 12,0 12,2 9,9 8,7 Rio de Janeiro 6,9 7,8 7,4 8,3 9,5 11,0 11,3 12,5 12,2 13,5 11,8 12,6 12,0 10,5 10,1 9,1 8,2 9,5 12,2 14,5 15,5 12,9 13,3 14,6 13,8 13,3 11,9 10,7 Curitiba 6,8 6,2 6,4 6,0 8,6 11,0 10,9 9,3 8,8 9,2 8,0 8,8 7,5 6,4 Porto Alegre 6,9 6,2 7,4 8,5 9,0 10,9 9,9 8,6 9,9 9,9 8,8 8,6 8,3 9,2 São Paulo Fonte: Elaborado pelo IETS a partir dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE). Nota: A pesquisa não foi a campo em 1994 e 2000. 20 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Vale lembrar que os dados podem divergir dos respectivamente. As maiores metrópoles, São já apresentados anteriormente, pois se trata de Paulo e Rio de Janeiro, apresentam níveis de fontes e de grupos etários diferentes, entretan- desemprego bastante semelhantes. Em São to, é necessário caracterizar os impactos das Paulo, 13,8% dos adultos encontravam-se de- transformações apontadas acima no mercado sempregados segundo o Censo de 2000, en- de trabalho, no que diz respeito ao universo quanto que no Rio de Janeiro esse percentual que estamos observando, ou seja, os adultos era de 13,5%. Além desses casos, vale salientar que o de 30 a 59 anos de idade. No que tange ao desemprego, o percen- restante das metrópoles apresenta taxas de tual da PEA de 30 a 59 anos de idade nessa desemprego entre 10% e 14%, tratam-se de: situação se diferencia bastante entre os 17 es- Curitiba, Porto Alegre, Campinas, Brasília, For- paços urbanos analisados. As menores taxas taleza, Grande Vitória, Belo Horizonte e Natal. foram verificadas em Florianópolis, Goiânia e Além de Rio de Janeiro e São Paulo, já men- Maringá, onde o desemprego nessa faixa etá- cionadas. ria é menor que 9%. Por outro lado, Recife, Isso justifica o fato de que, ao analisar o Manaus e Salvador apresentam as maiores ta- mercado de trabalho, é extremamente neces- xas de desemprego, com 17,2%, 17,9% e 18%, sário lançar mão de um indicador de qualidade Gráfico 1 – Taxa de desemprego e fragilidade das pessoas de 30 a 59 anos, por metrópole – 2000 lém Be a ez tal r Fo ia iân Go á ng ari M s au an M tal Na ria itó V de ran G Desemprego e cif Re F ED RID iba rit Cu Rio o eir an J de or ad lv Sa B elo e nt izo r Ho o Sã ulo s Pa ina C re p am leg Po A rto lis po nó ia lor F Fragilidade Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 21 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa do emprego. No presente trabalho, construímos o indicador de fragilidade da ocupação – cuja lógica de construção daremos mais à frente –, pois a taxa de desemprego não é suficiente pa- Explicações metodológicas Bases de dados utilizadas ra captar essa dimensão. Consideramos, neste caso, que não somente o acesso ao mercado Os Microdados da Amostra do Censo Demo- de trabalho, tal qual expresso pela taxa de de- gráfico de 2000, realizada pelo Instituto Brasi- semprego, nos ajuda a pensar as condições de leiro de Geografia e Estatística (IBGE), consiste acesso à estrutura de oportunidades oriundas na principal fonte de dados utilizados neste do mercado de trabalho como também traba- trabalho. A partir destes dados construímos os lhamos com a ideia de que da instabilidade do principais indicadores e variáveis utilizados na laço dos indivíduos e do seu grupo domiciliar presente análise. com o mercado de trabalho decorrem outras Adotamos como unidade territorial míni- instabilidades que afetam a vida social dos ma de análise da divisão social do espaço me- indivíduos, incidindo portanto na reprodução tropolitano as “áreas de ponderação”- AED´s. das desigualdades sociais. Por exemplo, no ca- Essa divisão territorial foi criada pelo próprio so de Goiânia, vimos que a taxa de desempre- IBGE para a divulgação dos dados da amostra, go dos adultos é de 8,4%, a segunda menor obedecendo a critérios estatísticos. Cada uma entre todas as metrópoles, e por outro lado, a dessas unidades geográficas é taxa de fragilidade é de 38,7%, que somente é menor do que as taxas verificadas para Salvador e Belém. Outro caso interessante é São Paulo, que apresenta uma das maiores taxas de desemprego, mas apresenta a quarta menor taxa de fragilidade (27,8%). [...] formada por um agrupamento mutuamente exclusivo de setores censitários, para a aplicação dos procedimentos de calibração das estimativas com as informações conhecidas para a população como um todo. (IBGE, 2002) Vale destacar que Belém, a qual apresenta elevada taxa de desemprego, tem a maior taxa de fragilidade, seguida por Forta- Definição das variáveis utilizadas leza. Na primeira, 41,5% dos adultos ocupados estão em situação de fragilidade, enquanto em Torna-se imprescindível, portanto, na sequên- Fortaleza, esse percentual chega a 39,6%. Me- cia do presente texto, apresentar as variáveis recem destaque também Maringá e Manaus. utilizadas no presente trabalho. Com o intuito A primeira por apresentar uma combinação de de explicar o efeito do contexto social dos espa- baixo desemprego e alta fragilidade, e a se- ços de residência sobre as condições de acesso gunda por apresentar alto desemprego e alta à estrutura de oportunidades no mercado de fragilidade, portanto, uma maior precariedade trabalho, definimos três variáveis dependen- no mercado de trabalho. tes.3 Nesse sentido, buscamos operacionalizar 22 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros três dimensões dessas condições de acesso. A vos da presente análise, desconsiderar os efei- primeira delas diz respeito à própria condição tos dessas variáveis nos faria incorrer no risco de acesso ao mercado de trabalho, tal qual de atribuirmos à lógica de organização do expressa pela variável indicadora da situação território um caráter explicativo que se deves- de desemprego. A segunda diz respeito à si- se a outras variáveis. Por isso, consideramos tuação de fragilidade do vínculo ocupacional, essas variáveis como “controle” dos efeitos conforme dito anteriormente. Essa condição do território. No caso da variável “Sexo”, tra- de fragilidade ocupacional é operacionalizada balhamos com a hipótese de que as mulheres através da variável que identifica indivíduos apresentam piores condições de acesso à es- nas seguintes situações: (a) conta própria não trutura de oportunidades do que os homens. contribuinte com sistema de previdência; (b) Com relação à variável “Idade”, consideramos empregado doméstico, com e sem carteira de que, quanto maior a idade, melhores são es- trabalho assinada; e (c) empregado sem car- sas condições. Quanto menor for a escolarida- teira de trabalho assinada, não contribuinte de do indivíduo, piores são essas condições; com sistema de previdência oficial. A terceira para isso, consideramos como critério de defi- e última dimensão diz respeito aos recursos nição das faixas desta variável os anos de es- adquiridos a partir da inserção no mercado de tudo que corresponderiam aos limites dos ci- trabalho, recursos esses expressos diretamente clos educacionais no Brasil. O Tipo de vínculo pela renda obtida a partir da ocupação princi- ocupacional definido a partir da fragilidade pal exercida. Nesse caso, temos como hipótese também apresenta efeito a se considerar, da- que o território organizado a partir de uma ló- do que essa instabilidade (ou fragilidade) do gica de segregação, utilizando-se de diversos vínculo com o mercado de trabalho se traduz mecanismos – cuja problematização foge aos em menores rendimentos. Já no plano do do- objetivos do presente trabalho –, afeta de ma- micílio, acreditamos que o ambiente domici- neira desigual a possibilidade de traduzir as liar também afeta o nível dessas condições de oportunidades de inserção no mercado de tra- acesso à estrutura de oportunidades no mer- balho em rendimentos. cado de trabalho. Ao considerarmos a variável Contudo, acreditamos que não somente de “Renda domiciliar per capita”, acreditamos a lógica de organização do território a partir que o nível material dos domicílios expresso de mecanismos de segregação influencia es- pela renda per capita amplia ou limita essas sas condições de acesso à estrutura de opor- condições de acordo com o nível de necessi- tunidades no mercado de trabalho. Outras dades materiais de cada ambiente domiciliar. variáveis podem ser elencadas a partir de ex- No caso da variável clima educativo, estamos tensa bibliografia apresentando os resultados considerando que o ambiente educativo do dos seus efeitos sobre o mercado de trabalho. domicílio, expresso através da média dos anos Sejam elas: Sexo, Idade, Escolaridade, Tipo de de estudo dos adultos residentes com 25 anos vínculo com o mercado de trabalho, Renda ou mais, possui crescente relevância como domiciliar per capita e Clima educativo domi- requisito de posicionamento no mercado de ciliar. Sendo assim, de acordo com os objeti- trabalho e da transformação dessa posição em Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 23 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa novos recursos oriundos da sua inserção no portanto, indiretamente relacionado com as mercado de trabalho (rendimento da ocupa- condições de acesso à estrutura de oportuni- ção) tendo como base as evidências encontra- dades no mercado de trabalho. No nível do das em trabalhos realizados sobre este tema, território, consideramos o efeito do contexto como Kaztman e Retamoso (2005) e Ribeiro social do espaço de moradia com base na ela- (2007). Além da percepção da relevância da boração de uma tipologia socioespacial que escolaridade individual sobre o posicionamen- classifica as áreas de ponderação do Censo to no mercado de trabalho, esses autores tam- Demográfico de 2000 a partir dos procedi- bém destacam o caráter explicativo do nível mentos descritos logo a seguir. O Quadro 1 de escolaridade do domicílio (clima educativo) apresenta a descrição detalhada das variáveis sobre o nível de escolaridade do indivíduo, e, utilizadas no presente trabalho. Quadro 1 Variáveis Tipo Descrição Desemprego Dicotômica Variável que assume o valor “1” caso o indivíduo não exercesse nenhum tipo de ocupação na data de referência do Censo, e o valor “0” caso contrário Fragilidade ocupacional Dicotômica Variável que assume o valor “1” caso o indivíduo apresentasse vínculo frágil com o mercado de trabalho, e o valor “0” caso contrário Contínua Variável numérica formada pelos rendimentos oriundos da ocupação principal dos indivíduos considerados Variáveis dependentes Renda da ocupação principal Variáveis de controle (nível individual) Dicotômica Variável que assume o valor “1” caso o indivíduo seja mulher, e o valor “0” caso contrário Escolaridade Ordinal Total de anos de estudo do indivíduo classificado em três faixas: 1) de 0 a 4 anos de estudo; 2) mais de 4 a 8; 3) mais de 8 anos de estudo Idade Ordinal Idade do indivíduo classificada em três faixas: a) de 30 a 34 anos; b) de 34 a 39 anos; e c) mais de 39 anos de idade Sexo Cor Dicotômica Variável que assume o valor “1” caso o indivíduo seja preto ou pardo, e o valor “0” caso contrário Variáveis de controle (nível domiciliar) Renda domiciliar per capita Clima educativo do domicílio Ordinal Variável que corresponde à soma dos valores dos rendimentos nominais mensais dos moradores do domicílio, dividida pelo número de moradores do domicílio, expressa em salários mínimos, utilizando-se três faixas: 1) até 1/2 salário mínimo; 2) de 1/2 a 1 salário mínimo; e 3) acima de 1 salário mínimo Ordinal Variável que corresponde à média dos anos de estudo dos adultos com idade superior a 25 anos de idade em cada domicílio, utilizando-se três faixas: 1) de 0 a 4 anos de estudo; 2) mais de 4 a 8; 3) mais de 8 a 12; e 4) mais de 12 anos de estudo Ordinal Variável que expressa a classificação das áreas de residência dos indivíduos de acordo com o seu contexto social obtido de acordo com a concentração de pessoas nas faixas de clima educativo domiciliar, utilizando-se três categorias; 1) baixo; 2) médio; e 3) alto Efeito do território Tipologia socioespacial 24 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros A identificação dos contextos sociais do bairro estudo. Em Belém e Manaus o percentual de indivíduos com clima educativo nessa faixa é superior a 35%. No que tange especificamente aos domi- Para expressar a divisão social das metrópoles cílios com alta escolaridade (mais de 11 anos estudadas, optamos por classificar as áreas in- de estudo), o percentual em Fortaleza e Natal traurbanas através de uma análise tipológica.4 não chega a 10%. Florianópolis, Rio de Janei- Para tal, utilizamos como variável classificado- ro, Curitiba, Porto Alegre, Brasília e São Paulo ra das áreas o clima educativo domiciliar, ou apresentam os maiores percentuais de indiví- seja, a média no domicílio da escolaridade dos duos residindo em domicílios com alto clima indivíduos acima de 25 anos de idade. Consi- educativo, ou seja, acima de 15,2%, que é o deramos que tal variável permite a descrição percentual médio de todos os espaços urbanos da segregação residencial em termos da con- analisados. centração de pessoas que vivem nos planos A partir da distribuição dos indivíduos da família e do bairro em situações de maior em cada faixa de clima educativo domiciliar ou menor chance de acesso a recursos que po- para cada uma das áreas de ponderação de tencializam o seu posicionamento na estrutura cada uma das metrópoles estudadas, partimos de oportunidades oferecidas pelo mercado de para a construção da tipologia. trabalho. Para identificarmos os contextos sociais Primeiramente, os indivíduos foram nas regiões metropolitanas consideradas no agrupados em quatro faixas de clima educati- âmbito de estudo do Observatório das Me- vo do domicílio: 1) menor que 4 anos; 2) mais trópoles, fizemos uso de uma metodologia de 4 a 8 anos; 3) mais de 8 a 12 anos; e 4) utilizada em trabalho anterior (Ribeiro, Rodri- mais de 12 anos. gues e Corrêa, 2008), já que esta apresentou O Gráfico 2 traz a distribuição das pes- resultados interessantes para pensarmos a or- soas segundo as faixas de clima educativo do ganização social do território das regiões me- domicílio nos 17 espaços urbanos seleciona- tropolitanas, utilizando como variável de clas- dos para o estudo. Essa distribuição, confor- sificação, o clima educativo domiciliar dividido me podemos notar, apresenta-se de maneira em quatro faixas. A classificação das áreas de diferenciada entre esses espaços. Com efeito, ponderação por meio dessa tipologia foi reali- em duas regiões metropolitanas da Região zada através da aplicação da técnica de Análi- Nordeste, Fortaleza e Natal, predominam in- se Fatorial por Combinação Binária, seguida de divíduos que residem em domicílios com baixo uma Classificação Hierárquica Ascendente. Na clima educativo. Nessas duas áreas metropo- primeira etapa, para cada metrópole, reduzi- litanas, mais de 35% das pessoas residem em mos a dimensão de explicação da distribuição domicílios com clima educativo de até 4 anos dos indicadores de clima educativo pelas áreas de estudo. Em todas as outras metrópoles, a de ponderação em dois fatores, tendo como maioria dos indivíduos reside em domicílios critério do número de dimensões satisfatório com clima educativo entre 4 ou 8 anos de a considerar o valor de 80% de explicação da Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 25 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Gráfico 2 – Percentual de pessoas residentes segundo o clima educacional, por metrópole – 2000 45 40 35 30 25 até 4 20 15 mais de 4 até 8 10 5 mais de 8 até 11 s M an au DF ia DE RI re lis eg iâ n Go mais de 11 Po r to Al á po ing nó ar M r ia Flo s iba Cu r it lo ina au mp Ca Sã oP ir o r ia de Ja ne te tó Vi de an Rio r do on r iz Ho lo Be Gr l e l va Sa cif Re ta lez Na r ta Fo Be lém a 0 Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. variância dos indicadores. As cargas fatoriais do tipo Médio, são os casos de Florianópolis, resultantes desse procedimento foram salvas Salvador, São Paulo, Goiânia, Belém, Curitiba para a realização da segunda etapa de cons- e Porto Alegre. Esta última ainda se destaca trução da tipologia segundo o contexto social, por ter o maior percentual de pessoas residin- para tal, utilizamos essas cargas fatoriais na do em territórios com alto clima educacional, definição de clusters com base nas áreas de o que tem muito a ver com a situação social cada uma das regiões metropolitanas, o resul- da metrópole. Outras três metrópoles se des- tado da Classificação Hierárquica Ascendente tacam pela alta concentração de pessoas re- forneceu três agrupamentos de áreas, cuja sidentes no contexto socioespacial cujo perfil variância intraclasses foi em média 28,8% e a dominante é o da concentração dos domicílios variância interclasses foi em média 71,2%. com baixo clima educacional. São os casos No Gráfico 3 podemos ver como a popu- de Campinas, Belo Horizonte e Recife, todos lação de cada metrópole se distribui segundo com mais de 60% das pessoas residindo nesse os 3 tipos encontrados. Como podemos no- tipo de território. Ao mesmo tempo, em Belo tar, a distribuição da população residente em Horizonte, é baixa a concentração de residen- cada um dos tipos de contexto social nas 17 tes nos territórios de alto clima educacional metrópoles é bastante diferenciada. Algumas (6,1%). Como também em Brasília e Manaus, delas apresentam uma elevada concentração 7% e 7,5%, respectivamente. 26 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Gráfico 3 – Percentual de população residente segundo o tipo socioespacial, por metrópole – 2000 alto médio s te Ca mp ina e on cif r iz Re Be lo Ho a í lia lez as Br r ia tó r ta Vi Fo l ir o ne Ja de s ta Na Rio á au ing an M iba lém M ar Be ia iâ n r it Cu eg Al r to Po Go r re lo do au l va Sa nó po Sã r ia Flo oP lis baixo Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. Segregação residencial e mercado de trabalho nas metrópoles brasileiras No contexto da acelerada urbanização e dos ajustes estruturais diante da globalização, o padrão de organização espacial vigente nas metrópoles caracteriza-se pela distância social e, em alguns casos, proximidade física entre as classes de alta renda e os vários segmentos da “baixa classe média” e os segmentos das classes operárias. Nesse sentido, a segregação residencial aparece como uma das marcas do padrão de organização social das metrópoles brasileiras. A dinâmica que resulta nesse padrão tem como característica principal a autossegregação de determinados grupos sociais. Ribeiro descreve este processo da seguinte maneira: Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Por um lado, pelo aprofundamento da autossegregação das camadas superiores formadas por aqueles que historicamente ocupam posições de controle das oportunidades, por controlarem as várias formas de poder expressas no controle dos capitais econômico, social, político e cultural. São aquelas reconhecidas nas representações sociais da sociedade brasileira como as “altas classes médias”. Com algumas diferenças entre as metrópoles, decorrentes das suas respectivas histórias urbanas, o padrão de organização espacial vigente no período 1950/1990 foi caracterizado pela distância social e proximidade física entre as classes superiores e os vários segmentos da “baixa classe média” e os vários segmentos do mundo operário-popular. Esta estrutura socioespacial vem se transformando aceleradamente com a constituição de espaços de forte concentração das classes superiores – o que estamos denominando neste texto autossegregação é a constituição 27 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa de territórios que concentrando parcelas significativas da população vulneráveis nos planos do trabalho, da família e da comunidade estão submetidas a mecanismos de reprodução intergeracional das desigualdades e da pobreza, todos relacionados às consequências do isolamento socioterritorial. (2008, p. 4) defini-los através da técnica utilizada; no segundo, contribui no entendimento do padrão de segregação de cada espaço urbano estudado, visto que podemos ver como os grupos sociais, neste caso o de adultos segundo o nível escolar, se distribuem no território. Nesse sentido, visualizamos nos gráficos abaixo que três regiões metropolitanas se des- Procuramos, através dos dados apresen- tacam pela alta concentração de pessoas de tados a seguir, algumas evidências empíricas escolaridade elevada nas áreas classificadas, do autoisolamento das camadas de alta qua- segundo a tipologia descrita acima, como Alto lificação e detentoras de parcelas significa- contexto social: Brasília, Belo Horizonte e Rio tivas do capital econômico, social e cultural. de Janeiro. Nessas metrópoles 79,1%, 72,1% e Ao mesmo tempo, procuramos demonstrar a 69,1% dos adultos residem nas áreas do tipo alta concentração de camadas da sociedade "Alto", têm escolaridade superior a 11 anos de compostas por pessoas com baixa qualifica- estudo, respectivamente. Ao mesmo tempo, ção e que compõem, na maioria das vezes, os verifica-se que nessas áreas ocorre uma baixa grupos de trabalhadores manuais do terciário, presença de adultos com escolaridade inferior da construção civil, empregados domésticos, a 4 anos de estudo. Em Brasília, por exemplo, o ambulantes e biscateiros. Esses dados concor- percentual de adultos com esse nível de esco- dam, em certa medida, com o entendimento laridade nessas áreas gira em torno de 2,5%, e que se tem da maneira como os grupos sociais no Rio de Janeiro, embora o percentual seja um se distribuem no território, principalmente no pouco maior, 4,6%, fica abaixo da média das que diz respeito a esse autoisolamento. metrópoles analisadas, que é de 6,1%. Pode- Os Gráficos 4 e 5 representam a distri- mos afirmar, portanto, que nessas metrópoles, buição dos adultos de 30 a 59 anos de idade essas áreas classificadas como de alta escola- nos três tipos socioespaciais encontrados. Es- ridade tendem a ser áreas de autossegregação sa distribuição colabora em dois sentidos: no dos grupos sociais de maior escolaridade, es- primeiro, na justificativa de construção dos ti- paços quase que totalmente exclusivos desses pos, reforçando os parâmetros utilizados para grupos. 28 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Gráfico 4 – População de 30 a 59 anos, residente em domicílios com clima escolar superior a 11 anos de estudo, segundo o tipo socioespacial – 2000 % Baixo Médio F -D RI DE on te ir o r iz lo Ho iba ne de Ja r it Cu Rio Be s ia Ca mp ina lis iâ n Go nó r ia Flo Po Gr po do r e cif Sa l va lém Be au Re lo á ing oP ar M r to Sã l re a ta eg Al Na lez r ta Fo Vi an de M an tó au s r ia Alto Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. Gráfico 5 – População de 30 a 59 anos, residentes em domicílios com clima escolar inferior a 4 anos de estudo, segundo o tipo socioespacial – 2000 % Baixo Médio iba Cu lez r ta r it a l Na ta Fo iâ n Go ing ia á F -D ar M DE au lo RI oP Flo Sã l va do r lis po tó r ia nó Vi Sa r ia te on de an Ho r iz Gr s re lo Be r to Al eg ina e cif Ca Re au lém Be an M mp Po Rio de Ja ne ir o s Alto Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 - IBGE. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 29 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Outras metrópoles, como Curitiba, Goiâ- socioespacial Alto (8%), a maior neste tipo nia, Campinas e Salvador, seguem a mesma entre as metrópoles analisadas. Em relação à tendência, pois todos apresentam a concen- taxa de desemprego, Manaus é a metrópole tração espacial de adultos com escolaridade que apresenta elevadas taxas para os três ti- elevada nas áreas de alto clima escolar acima pos socioespaciais (perdendo somente para da média, que é de 57,1%. Por outro lado, em Salvador quando consideramos os territórios Curitiba, Fortaleza e Natal, as áreas de baixo de médio contexto social, permanecendo em clima educacional concentram um percentual segundo lugar). Ao mesmo tempo, Salvador elevado de adultos com escolaridade inferior se destaca por apresentar a maior diferença a 4 anos de estudo, em comparação com os entre os tipos socioespaciais de Alto e Baixo outros espaços urbanos estudados. Nas áreas contexto social. Pois, enquanto o primeiro ti- desse tipo, nessas metrópoles, mais de 50% po apresenta taxa de desemprego de 6,9%, o dos adultos possuem escolaridade situada tipo baixo apresenta 14,7%, o que indica um nessa faixa. Vale destacar que, ao mesmo forte efeito da segregação socioespacial sobre tempo, em Curitiba, o percentual de adultos as taxas de desemprego dos territórios. Por com baixa escolaridade não chega a 5% dos outro lado, Florianópolis e Porto Alegre apre- adultos que residem em áreas classificadas co- sentam as menores diferenças, considerando mo de Alto clima escolar. todas as metrópoles, entre os territórios de alto e baixo contexto social. Em Porto Alegre, a diferença na taxa de desemprego não atinge Resultados 2% dos adultos de 30 a 59 anos pertencentes à PEA considerando esses territórios. Em Florianópolis, essa diferença fica em torno dos Efeitos da segregação residencial sobre o desemprego 2%. Esses resultados indicam que para essas duas metrópoles não evidenciamos um efeito da segregação sobre os níveis de desemprego Como podemos ver no Gráfico 6, a taxa de- para a população considerada. Brasília apre- semprego varia também no nível intrame- senta um resultado bastante peculiar pois, tropolitano segundo o tipo socioespacial, ou apesar de as taxas de desemprego para os ter- seja, a magnitude do desemprego claramente ritórios de médio e baixo contexto social não se diferencia conforme o território. O tipo de serem elevadas, o fato de apresentar a menor território de baixo contexto social em Manaus taxa de desemprego no território de alto con- e Salvador apresenta as taxas de desemprego texto social faz com que a diferença entre os de adultos mais elevadas, superior a 14,5%. contextos alto e baixo seja a segunda maior Manaus chama mais a atenção, pois apresen- evidenciada entre as metrópoles consideradas ta uma taxa de desemprego elevada no tipo (7,5%). O restante das metrópoles apresenta 30 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Taxa de desemprego Gráfico 6 – Taxa de desemprego, segundo o tipo socioespacial, por metrópole – 2000 Baixo s r e Alto M an au do l va Sa lo cif au Re oP Sã r ia lém Be ir o tó ne Vi Ja de de Gr an l te on Ho r iz Rio a ta Na lo Be í lia lez r ta Fo re as Br s eg ina Al mp Ca r to Po á iba r it Cu ia ing ar M iâ n po nó r ia Flo Go lis Médio Baixo/Alto Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. um padrão de distribuição das taxas de de- estatisticamente esse efeito do território, semprego entre os territórios bastante pareci- aplicamos um modelo de regressão logística 5 do, apesar dos diferentes níveis evidenciados. inserindo não só a variável do contexto social Os dados apresentados acima indicam do território, mas também outras variáveis de que o acesso a melhores condições de empre- controle correspondendo aos níveis individual go mantém razoável associação com o local de e domiciliar. moradia, pois notamos substanciais diferenças Portanto, no Gráfico 7, apresentamos os entre espaços de alto, médio e baixo contex- resultados dos modelos de regressão logística to social. Contudo, somente a análise descri- que estimam os efeitos do contexto social se- tiva dos níveis de desemprego para cada um gundo o clima educativo do domicílio sobre o dos territórios, de cada uma das metrópoles risco de desemprego de indivíduos entre 30 e consideradas, não nos permite evidenciar um 59 anos, controlando-se por variáveis de nível efeito do território sobre os níveis de desem- individual e de nível domiciliar. Com base nes- prego, pois consideramos que outras caracte- ses resultados, podemos ter um comparativo rísticas, sejam elas individuais ou do domicílio, do efeito do contexto social para o conjunto influenciam também nessa diferença entre as das regiões metropolitanas consideradas. taxas. O que nos levaria a crer que não have- Brasília é a metrópole que apresenta o ria um efeito do território sobre essas taxas. maior efeito do contexto socioespacial sobre Para isso, com o intuito de evidenciarmos o risco de desemprego, sendo 123,2% maior Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 31 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa para o contexto de baixo status, e de 80,8% contexto social. Mesmo apresentando um pa- maior para o contexto de médio status em re- drão bastante parecido, as duas metrópoles do lação às áreas de alto status. O que já era de Norte apresentaram efeitos menores do que as se esperar, dado o caráter atípico da configu- demais metrópoles do grupo. ração da estrutura econômica desta metrópo- As metrópoles do Nordeste (Salvador, le em relação às outras. Principalmente dado Natal, Fortaleza e Recife) apresentam um pa- o grande número de funcionários públicos do drão de segregação sociespacial parecido em governo federal em altos cargos, o que corres- termos do efeito sobre o desemprego, já que ponde em certa medida a altos salários e alta não há diferença significativa entre os efei- escolaridade, justificando, de certa forma, o tos encontrados para os territórios de médio caráter de segregação dessa região metropoli- e baixo contexto socioespacial, o que indica tana, onde verificamos uma grande concentra- uma polarização dos territórios em termos dos ção de áreas de alto contexto social na cidade efeitos sobre o risco de estar em situação de de Brasília e áreas de médio e baixo contexto desemprego. em cidades satélites e nos outros municípios Belo Horizonte, Maringá, Campinas e que compõem o espaço metropolitano. Rio Vitória apresentam um risco moderado de es- de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Manaus, e Be- tar em situação de desemprego para os dois lém, assim como a RIDE do Distrito Federal, contextos sociais considerados, apresentando apresentam uma diferença significativa entre uma pequena diferença entre os dois. Já as os efeitos dos territórios de médio e baixo demais metrópoles da Região Sul (Curitiba, Gráfico 7 – Resultados do modelo de regressão linear múltipla do efeito do contexto social sobre o risco desemprego – 2000 Baixo re eg lis Al po Po r to iba Flo r ia nó r ia r it Cu e s Gr an de Vi tó cif Re á ina mp Ca M ar ing te a on lez r iz r ta Ho Fo lo Be s lém Be ia au an M lo iâ n Go l au ir o ta oP Sã Na ne r Rio de Ja do l va DE RI Sa -D F Médio Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 - IBGE. 32 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Florianópolis e Porto Alegre) apresentaram bai- situação constituem a maioria dos ocupados. xos efeitos sobre a taxa de desemprego, sendo Nesses territórios, a fragilidade varia entre que em alguns casos o risco de desemprego é 30%, registrada em Porto Alegre, e 49%, no maior nos territórios de médio contexto social, caso de Belém. Em Goiânia, Fortaleza, Marin- em relação ao alto contexto social. gá e Manaus, o percentual de pessoas nessa situação é superior a 40%. Por outro lado, no que tange à fragilidade nos territórios de baixo Efeitos da segregação residencial sobre a fragilidade ocupacional contexto social, Campinas, Belo Horizonte, Florianópolis estão mais próximas de Porto Alegre, com taxas de fragilidade inferiores a 34%, ou Os territórios das metrópoles se diferenciam seja, bem abaixo da fragilidade evidenciada pela distribuição das pessoas adultas de 30 a para esse território em todas as 17 metrópoles, 59 anos em situação de fragilidade, como po- que é de 38%. demos ver no Gráfico 8. Nos tipos socioespa- Da mesma forma, Porto Alegre apresen- ciais de baixo contexto social, os adultos nessa ta o menor nível de fragilidade nos territórios Gráfico 8 – Taxa de fragilidade segundo o tipo socioespacial, por metrópole – 2000 Baixo F s RI DE -D s au ina an M iba r it mp Cu Ca Alto Baixo/Alto Rio de Ja ne te ir o re on eg r iz Al Ho r to lo Po Be r lis do po l va nó Sa tó Vi de r ia Flo á r ia lo ing ar M an Gr Sã oP au ia l ta iâ n Na Go e lém Be cif lez r ta Fo Re a Médio Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 - IBGE. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 33 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa de alto contexto social. Nessa metrópole, o é bastante grande em relação ao terceiro co- percentual de pessoas em situação de fragi- locado nesse ordenamento dos efeitos (Marin- lidade ocupacional é de 19%. Por outro lado, gá). As metrópoles de Belo Horizonte e Porto Fortaleza apresenta o maior percentual de pes- Alegre não apresentaram efeitos significativos soas em fragilidade nos territórios desse tipo, para a situa ção de fragilidade ocupacional com 27,1%, seguido por Recife, Belém e Natal, considerando as áreas de contexto social bai- todos com taxa de fragilidade superior a 22%, xo em relação às áreas de alto contexto social. no tipo Alto. Novamente, Porto Alegre apresenta um risco No Gráfico 9, apresentamos os resulta- de fragilidade ocupacional maior para os ter- dos das estimativas do efeito do contexto social ritórios de médio contexto social do que os de baixo e médio, em relação ao contexto social baixo contexto social. alto, sobre o risco de estar em situação de fra- As RIDE do Distrito Federal, Belém, Curi- gilidade ocupacional. A partir desse gráfico, tiba, Rio de Janeiro, Fortaleza e Campinas, podemos ver que a RIDE do Distrito Federal e apresentaram uma grande diferença em rela- Belém destacam-se como as metrópoles onde ção aos efeitos encontrados para os territórios há um maior risco de fragilidade ocupacional de médio e baixo contexto social, o que indica no contexto social baixo do que nas metrópo- que nessas metrópoles o efeito da segregação les restantes. A diferença de efeito estimada socioespacial sobre a situação de fragilidade para a RIDE do Distrito Federal e para Belém ocupacional é maior nos territórios de baixo Gráfico 9 – Resultado do modelo de regressão linear múltipla do efeito do contexto social sobre o risco de fragilidade ocupacional – 2000 Baixo re te eg on Po r to r iz Ho lo Be Al lis e po cif nó Flo r ia lo au oP Sã Re r l do s ta l va Sa Na s ina au mp Ca an M lez a ir o ne r ta Fo iba Rio de Ja ia r it Cu r ia iâ n Go á tó Vi de Gr an M ar ing lém -D DE RI Be F Médio Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. 34 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros contexto social. Em Maringá, Vitória e Goiâ- onde os adultos residentes em áreas do tipo nia, não evidenciamos uma diferença signifi- Alto ganham em média 84% a mais do que cativa entre os efeitos estimados para os dois aqueles residentes em territórios do tipo Bai- contextos sociais considerados, o que indica xo. Vale destacar que em Belém, Belo Horizon- uma polarização dos territórios em termos dos te, Salvador e Rio de Janeiro esse percentual seus efeitos sobre a situação de fragilidade também supera 80%. Nessas mesmas metró- ocupacional, o que já era indicado no gráfico poles, além de Recife, a distância da média da anterior. renda também é elevada entre os territórios Manaus, Natal, Salvador, São Paulo, Re- do tipo Alto e Médio. Em Salvador, por exem- cife e Florianópolis, além de não terem apre- plo, a média da renda dos primeiro é 73,2% sentado altos riscos de fragilidade ocupacional superior ao segundo (Gráfico 10). para os contextos sociais considerados, apre- Para facilitar a visualização do efeito do sentaram uma pequena diferença entre si, in- contexto social sobre o rendimento da ocupa- dicando que os efeitos do risco de fragilidade ção principal, apresentamos no Gráfico 11 os ocupacional são menos sensíveis à organiza- efeitos de diminuição percentual na média da ção socioespacial do GEUB. Esse resultado é renda da ocupação principal do contexto so- interessante, pois, mesmo apresentando ní- cial baixo em relação ao contexto alto, para veis de fragilidade bastante diferentes, esses cada uma das metrópoles. Da mesma forma GEUBs apresentaram um padrão nos efeitos que nos modelos anteriores, torna-se possí- da segregação socioespacial. De certa manei- vel, com base nesses resultados, comparar ra, confirmando a relevância do uso da análise os efeitos do contexto social sobre os rendi- de regressão para esse fim, tornando possível mentos provenientes da inserção dos indiví- compararmos a grandeza dos efeitos de segre- duos no mercado de trabalho, em cada uma gação apesar dos diferentes níveis de fragilida- das regiões metropolitanas consideradas. No de ocupacional. caso do modelo de regressão linear múltipla, devido em parte a sua robustez, nenhum dos coeficientes estimados foi considerado como Efeitos da segregação residencial sobre os diferenciais de rendimento não significativo, mantendo-se o nível de significância de 5%. Nesse caso, considerando o efeito do No quesito média da renda na ocupação prin- território de baixo contexto social, a RIDE do cipal dos adultos de 30 a 59 anos adotada Distrito Federal apresenta o maior efeito de como indicador de recursos oriundos da inser- diminuição do rendimento, seguido por Rio de ção dos indivíduos no mercado de trabalho, Janeiro, Goiânia e Belo Horizonte. As demais podemos ver que algumas metrópoles se des- metrópoles apresentam um efeito de diminui- tacam pela alta diferença entre os territórios ção bastante próximo em torno de 30% da de Baixo contexto social e os de Alto contexto média da renda do contexto social alto. As me- social. Essa diferença é maior nas duas metró- trópoles de Porto Alegre e Florianópolis se des- poles do Centro-Oeste – Goiânia e Brasília –, tacam por apresentarem efeitos bem menores Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 35 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Gráfico 10 – Diferenciais de rendimento na ocupação principal, segundo o contexto social, por metrópole – 2000 Alto/Baixo Alto/Médio po r ia nó Al r to lis re s eg ina mp Ca Po Gr Flo s r ia de M an au lo Vi tó au oP Sã an M Re Na ar cif ta e l á iba ing a r it lez r ta Fo Cu r ir o ne do Be Rio de Ja l va lo Ho Sa r iz on te lém -D Be DE RI Go iâ n ia F Médio/Baixo Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. Gráfico 11 – Resultados do modelo de regressão linear múltipla do efeito do contexto socioespacial sobre o rendimento da ocupação principal – 2000 Baixo lis Flo r ia nó po eg re r ia tó Po r to Al s Gr an de Vi an au iba M lo au r it oP Sã Cu ina s á ing Ca mp l ta Na ar M Sa l va do r e cif lém Re a lez r ta Fo Be te ia on r iz Be lo Ho iâ n ir o Go ne Ja de Rio RI DE -D F Médio Fonte: Elaboração própria com dados do Censo Demográfico 2000 – IBGE. 36 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros do que o restante, sendo de 22,3% e 17,7%, trabalho é heterogênea no espaço intraurbano respectivamente. das metrópoles analisadas, bem como entre As diferenças entre os efeitos de diminui- elas. Constatamos, portanto, que existem va- ção da média da renda da ocupação principal riações na taxa de desemprego, na fragilidade para os territórios de baixo e médio contexto so- ocupacional e na remuneração dos trabalha- cial não são muito grandes. Principalmente nas dores, conforme o local de moradia, mesmo metrópoles de Porto Alegre e Florianópolis, nas quando controlamos os atributos individuais e quais, além do efeito de diminuição da renda ser domiciliares. Isso implica, portanto, que as os menor do que para as demais metrópoles, não adultos de 30 a 59 anos de idade têm menores evidenciamos uma diferença significativa entre chances de estar empregados, de conseguirem os efeitos dos territórios de médio e baixo con- melhores empregos ou melhores rendimentos texto social. Nesses casos, podemos considerar por estarem inseridas em bairros de baixo ca- que os efeitos da segregação socioespacial são pital social. menores do que nas demais metrópoles, exceto Nesse sentido, fica evidente que não é em Salvador, onde também evidenciamos uma em vão o interesse pela exploração sistemá- situação bastante parecida, apesar dos eleva- tica dos efeitos da concentração espacial da dos efeitos de diminuição da renda consideran- pobreza (e/ou da riqueza) sobre sua reprodu- do os dois tipos de contexto social. ção. Nesse sentido, se esses efeitos afetam diferentemente as metrópoles no que diz respeito às oportunidades no mercado de trabalho, Conclusão conforme evidenciamos no presente trabalho, podemos afirmar que os mecanismos que inci- Nosso trabalho procura mostrar a relação en- dem sobre esse processo também são diferen- tre o local de moradia e o maior risco de de- tes. Mas que mecanismo são esses? Segundo semprego, de fragilidade ocupacional e menor Kaztman e Retamoso (2005), o papel de inter- rendimento. Mais do que isso, demonstramos mediário do contexto do bairro ocorre por duas os efeitos da composição social dos bairros vias: a primeira se dá pelo estreitamento dos sobre as oportunidades de emprego dos adul- âmbitos de interação entre as classes sociais; e tos. Reconhecemos, porém, que a investiga- a segunda, pelo aumento das diferenças entre ção dos mecanismos que incidem sobre esse os bairros pobres e o resto dos bairros da cida- efeito está além dos objetivos propostos neste de, no que diz respeito à qualidade dos servi- momento. No entanto, fica evidente que a or- ços e das instituições. ganização socioespacial de nossas metrópoles Os resultados aqui encontrados, por- provoca efeitos diversos sobre o acesso às tanto, contribuem para a discussão sobre a oportunidades no mercado de trabalho, visto segregação residencial como uma variável im- que, em alguns casos, nem se chega a verifi- portante para que se entendam de um ponto car tal efeito. de vista analítico, os mecanismos que produ- No geral, pudemos verificar que a chance de melhores inserções no mercado de Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 zem/reproduzem, nas diferentes metrópoles, a desigualdade. 37 Luiz César de Queiroz Ribeiro, Juciano Martins Rodrigues e Filipe Souza Corrêa Luiz César de Queiroz Ribeiro Sociólogo. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Juciano Martins Rodrigues Cientista Econômico. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Filipe Souza Corrêa Cientista Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Notas (1) São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, Curi ba, Recife, Fortaleza, Goiânia, Campinas, Belém, Vitória, Florianópolis e Manaus. (2) Para maiores detalhes ver: Observatório das Regiões Metropolitanas do Brasil. Relatório de A vidade 1: iden ficação dos espaços metropolitanos e construção de pologias. Convênio Ministério das Cidades/Observatório das Metrópoles/Fase/Ipardes-PR. Brasília, 2005. 118p. Disponível em h p://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/produtos/produto_mc_1.pdf. (3) O uso dos termos “variáveis dependentes”, “variáveis de controle” se jus fica, como será explicado mais à frente, devido ao uso de métodos de regressão (logís ca e linear múl pla) com o intuito de estabelecer uma correlação, e de certa maneira, um sen do causal na explicação da variação encontrada nas variáveis que selecionamos para evidenciar as condições de acesso à estrutura de oportunidades no mercado de trabalho. (4) Vale lembrar que existem outras maneiras de se quan ficar ou medir a segregação, como os índices sinté cos, por exemplo, com nos lembra Ribeiro (2005). (5) Para uma descrição detalhada do modelo de regressão logís ca u lizado, conferir o Anexo A. 38 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros Referências CACCIAMALI, M. C. (1993). “Ajustamento do mercado de trabalho no Brasil nos anos 80”. In: LAVINAS, L. (et alii). Reestruturação do espaço econômico e regional do Brasil. São Paulo, Hucitec. ______ (2004). “O mercado de trabalho sob a globalização”. In: SHIFFER, S. Globalização e estrutura urbana. São Paulo, Hucitec. CARVALHO, I. M. M. (2006). Globalização, metrópoles e crise social no Brasil. Revista Eure, v. 23. n. 95, San ago do Chile. CHARNET, R., BOVINO, H., FREIRE, C. A. e CHARNET, E. M. (1999). Análise de modelos de regressão linear com aplicações. Campinas, Editora da Unicamp. DOBSON, A. J. (2002). An introducƟon to generalized linear models. 2. ed. Nova York, Chapman e Hall/ CRC. IBGE (2002). Censo demográfico de 2000. Documentação dos microdados da amostra. Rio de Janeiro, IBGE. KAZTMAN, R e RETAMOSO, A. (2005). Segregación espacial, empleo y pobreza en Montevideo. Revista de la Cepal, n. 85. San ago del Chile, Cepal RAMOS, L. A. (2002). Evolução da informalidade no Brasil Metropolitano. Textos para Discussão, n. 914. Rio de Janeiro, IPEA. RIBEIRO, L. C. Q. (2005). “Segregação residencial: teorias, conceitos e técnicas”. In: MOYSES, A. 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Isto é, buscamos a função g que torne a relação linear, onde β é o vetor dos parâmetros estimados das variáveis explicativas e π é a probabilidade de ocorrência da variável que buscamos explicar. Sendo assim, π é a probabilidade de o indivíduo estar em uma ocupação frágil. Para isso aplicamos a função de ligação conhecida como “logit” dada pela equação que é comumente conhecida como logaritmo das vantagens, que entendemos nesse caso como o logaritmo da razão entre a probabilidade de ocorrência do fenômeno e o seu complementar. Escolhida a função de ligação, o nosso interesse recai sobre a estimação dos parâmetros das variáveis explicativas. Para tal, utilizamos a razão de vantagem ( odds ratio ) de ocorrência do evento que é dada pela fórmula sendo a probabilidade de ocorrência do evento para o qual se quer calcular a vantagem. Os resultados dos modelos de regressão logística são comumente apresentados pelos softwares estatísticos pelas odds ratio, que consideraremos para fins desta análise como “risco” de um indivíduo estar em uma ocupação frágil segundo as variáveis independentes utilizadas. Contudo, como o modelo de regressão logística é aplicável principalmente a fenômenos com pouca incidência na população de referência, o que não é o nosso caso, realizamos uma correção chamada de “risco relativo” (Zhang e Yu, 1998), dada pela fórmula sendo RR o risco relativo e OR a odds ratio obtida do resultado da estimação do modelo. Com essa correção, evitamos estimações distorcidas dos parâmetros no caso de uma incidência não rara na população de referência. Os resultados podem ser entendidos como sendo o percentual de risco de ocorrência do indivíduo estar em uma ocupação frágil dada a presença da variável explicativa em 40 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 Segregação residencial e emprego nos grandes espaços urbanos brasileiros relação ao grupo de referência que é dado pela constante do modelo, sendo risco caso o sinal do parâmetro estimado seja positivo, e proteção caso o sinal seja negativo. Para testarmos a significância dos parâmetros estimados, usaremos a estatística de Wald que é dada por , que para grandes amostras se distribui da seguinte forma ou Modelo de Regressão Linear Múltipla Para a explicação da variável “rendimento da ocupação principal”, com base nas variáveis explicativas selecionadas, utilizamos o modelo de regressão linear múltipla, já que a variável resposta escolhida possui uma distribuição contínua. Devido à sua distribuição assimétrica, aplicamos uma transformação dada pelo logaritmo natural. O modelo de regressão linear múltipla é dado pela fórmula , onde y é a variável resposta, X é a matriz com os valores observados pelas variáveis explicativas, β é o vetor de parâmetros correspondentes ao efeito de cada variável explicativa e ε é a matriz de erro aleatório (Charnet et al., 1999). Para testarmos a adequação do modelo, usamos o coeficiente de determinação ajustado (R2 ajustado) que é obtido pela fórmula onde n corresponde ao número de variáveis explicativas e p corresponde ao número de parâmetros estimados. O teste da significância dos parâmetros, conhecido como teste t, é dado pela expressão Sendo que o estimador de mínimos quadrados dos parâmetros é dado por O resultado da estimação dos parâmetros nos dá a medida da contribuição de cada variável explicativa para a distribuição da variável resposta. No caso da transformação da variável resposta pelo logaritmo podemos dizer de uma contribuição relativa de cada variável explicativa em relação à variação da variável resposta. Texto recebido em 3/nov/2009 Texto aprovado em 31/jan/2010 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 15-41, jan/jun 2010 41 Movimento pendular da população no Paraná: uma evidência da desconexão moradia/trabalho Population’s commuting: evidence of the lack of connection between housing and labour Rosa Moura Resumo A desconexão moradia/trabalho é observada nos movimentos pendulares da população para trabalho e/ou estudo. A análise dos seus vetores espaciais permite estimar a existência e extensão de aglomerações, assim como apontar outras dinâmicas territoriais. O perfil da população que se desloca evidencia as relações espaciais entre o mercado de trabalho e da moradia na organização interna das metrópoles, e revela diferenciações quanto à acessibilidade às funções metropolitanas, cuja expressão é a segregação socioespacial. O presente trabalho explora as possibilidades dessa informação no caso brasileiro, com mais particularidade ao Paraná. Conclui mostrando que esses movimentos se ampliam em número de pessoas envolvidas e na distância percorrida, o que exige sua compreensão analítica, e a adequação e formulação de políticas compatíveis à sua dinâmica. Abstract The housing/labour disconnection is observed in the population’s commuting to work and/ or to study. The analysis of its spatial vectors enables to estimate the existence and extension of agglomerations and also shows other territorial dynamics. This population’s profile highlights the spatial relations between the labour market and the housing market in the metropolises’ internal organization, and reveals differences regarding accessibility to metropolitan functions, whose expression is socio-spatial segregation. The present work explores the possibilities of this information in the case of Brazil, particularly in the State of Paraná. It concludes by showing that such mobility increases in terms of number of persons involved and distance travelled, which requires its analytical understanding, and the adequacy and formulation of compatible policies. Palavras-chave: pendularidade; movimento pendular; comutação; segregação socioespacial; dinâmicas intrametropolitanas. K e y w o r d s : commuting; mobility; intrametropolitan dynamics; socio-spatial segregation. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Rosa Moura O uso da informação de um determinado território, posto que essas são definidas, principalmente, em termos de deslocamentos diários da casa para o trabalho, Os movimentos pendulares da população para relacionados a um sistema de assentamento trabalho e/ou estudo em município que não o orientado para a produção (Adams, 1995). de residência constituem uma informação que Essa importância se consolida com o vem sendo empregada para captar dinâmicas avanço tecnológico e sua rápida difusão, par- territoriais, particularmente associadas à urba- ticularmente incorporada pelos meios de trans- nização. Tais movimentos se dão, majoritaria- porte e comunicações, e com a organização da mente, motivados pela dissociação entre local produção, associada a mudanças nos padrões de moradia e local de trabalho, dada a concen- demográficos, na vida social e na forma de tração de atividades ligadas à produção e con- ocupação do espaço. Para Frey e Speare Jr. sumo, em geral, em municípios (ou parte de- (1995), essas transformações definiriam um les) de maior porte. No caso das aglomerações novo conceito de área metropolitana, conside- urbanas, estão condicionados à distribuição e rada como “área ampliada de vida local” ou hierarquia de funções entre os municípios inte- “área econômica regional”, caracterizada por grantes. São evidenciados também entre mu- alta densidade de movimento pendular e pe- nicípios não aglomerados, quando expressam lo desacoplamento dos espaços funcionais e a localização de atividades atrativas para tra- físicos. Derruau (s/d, p. 67), analisando o que balho e/ou estudo, muitas vezes decorrentes chama de “migrações temporárias”, salienta apenas de uma grande indústria, um grande que os movimentos cotidianos entre o domi- estabelecimento de comércio ou serviços, uma cílio e o local de trabalho são pertinentes ao cooperativa, uma empresa agropecuária ou estudo da “geografia das cidades e dos arre- uma universidade. dores”. Beaujeu-Garnier (1980) denomina os O movimento pendular é revelador da sujeitos desse processo “migrantes diários” e extensão do fenômeno urbano no território, destaca duas questões fundamentais: a de que constituindo uma informação utilizada na de- os movimentos diários estão aumentando em limitação de grandes áreas urbanas (Moura et número e em distância, e a de que inexistem al., 2006). Além disso, esse movimento adquire políticas coordenadas entre local de moradia e crescente visibilidade nas grandes cidades, da- de trabalho. da sua associação com as demandas por trans- Esses autores são convergentes quanto a porte e vias de circulação, entre outras funções que a extensão da área da aglomeração, seja públicas de interesse comum. Também incide metropolitana ou não metropolitana, cada vez de maneira decisiva no funcionamento cotidia- mais se torna ampliada e decorrente da pos- no e na projeção estratégica das cidades, tanto sibilidade de fluxos regulares da população para pessoas como para empresas e institui- entre o local de trabalho e o da moradia. Mas ções. Por tais possibilidades, é uma importante não convergem quanto a uma denominação informação usada para identificar aglomera- única a essa ordem de deslocamentos, na me- ções urbanas entre o conjunto de municípios dida em que ora se referem a “migração” ora 44 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná a “movimento”. No âmbito da informação cen- franjas internas se voltam ao polo, mantendo sitária, Carvalho e Rigotti (1998) recomendam um intercâmbio equilibrado com as vizinhas como mais adequado o termo “movimento zonas de emprego, situadas entre elas e a me- pendular”, pois entendem que ele não implica trópole principal. Participam no enraizamento transferência de residência ou fixação definiti- da frente urbana, apagando pouco a pouco os va em outro lugar – natureza que o diferencia vazios deixados pela urbanização. As franjas dos movimentos migratórios, embora ambos externas, ao contrário, têm uma relação direta impliquem fluxos de pessoas no território. e assimétrica com a metrópole principal, onde Conforme Gilli (2002), a análise dos mo- cada vez mais seus ativos trabalham. Ao mes- vimentos de deslocamento domicílio/trabalho mo tempo, essas franjas atraem ativos das zo- permite responder a questões fundamentais, nas situadas no contato com a superfície urba- relativas à expansão da conurbação entre ci- na de Paris. Essa análise confirma as relações dades, a padrões urbanos de configurações entre a mobilidade, a organização do território mono ou policêntricas, às interações entre o e as mudanças intraurbanas. núcleo metropolitano e o entorno imediato, e Num país com mais similaridades com o entre este e outras cidades das imediações. Es- Brasil, a pendularidade da população também te autor pondera, com base na análise da área é tomada como referência para caracterizar o metropolitana de Paris, que a cidade continua processo de metropolização. O Conselho Na- a se expandir, agora se estendendo na direção cional de População (Conapo) reconhece que de centros urbanos maiores, reorganizando as principais cidades no México são considera- sua área aglomerada em torno desses centros das zonas metropolitanas, e que essas proveem secundários. Com eles, produz duas espécies de bens e serviços os setores mais produtivos, de franjas: uma mais próxima, como parte da motores do desenvolvimento econômico na- área metropolitana, onde vive e trabalha a cional e regional, e com mais alta capacidade maior parte dos residentes, e na qual emerge científica e tecnológica, o que lhes possibilita uma hierarquia entre os centros; e outra que, um melhor posicionamento no mercado global. mesmo sem fazer parte da área metropolitana, Paradoxalmente, também são as que alojam absorve muitos dos residentes em comutação a maior parte da pobreza urbana no país. A com essa área. No caso parisiense, os centros identificação das zonas metropolitanas se vale metropolitanos regionais atraem e esculpem de um amplo conjunto de critérios e informa- a região à qual pertencem, enquanto desen- ções, entre as quais se consideram indicadores volvem crescentes ligações com a metrópole de população (volume, densidade, movimen- principal, sem quebrar sua monocentralidade. tos pendulares), ocupação em continuidade e Ademais, a metrópole principal interage com alto grau de integração funcional, inclusive de todos esses centros da região ao redor, e cada municípios das franjas da aglomeração, para qual configura suas áreas locais. os quais exige que tenham ao menos 15% de Ainda segundo Gilli (ibid.), ambas as sua população ocupada residente trabalhando franjas constituem uma frente de urbaniza- nos municípios centrais da zona metropolitana, ção que apresenta alguns polos de fixação. As ou 10% ou mais da população que trabalha no Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 45 Rosa Moura município residente nos municípios centrais realizadas sobre os movimentos pendulares. dessa última (Conapo, 2007). Como contextualização, serão abordados os No Brasil, nos anos 1960, o Grupo de movimentos pendulares no Brasil, com ênfase Áreas Metropolitanas, então existente no à densidade de seus fluxos nas regiões mais IBGE, definiu os movimentos pendulares como dinâmicas do país, porém apontando outros um dos critérios para identificar os municípios processos. Tomando em particular o estado do integrados a essas áreas, exigindo “pelo me- Paraná, serão comparadas as bases de dados nos 10% de sua população total deslocando- dos movimentos pendulares da população de se diariamente, em viagens intermunicipais, 1980 e de 2000, identificadas mudanças de para o município que contém a cidade central comportamento quanto aos fluxos intermuni- ou outros municípios da área” (Galvão et al., cipais e apontadas a formação e consolidação 1969, p. 61). Davidovich e Lima (1975) tam- dos três principais arranjos espaciais paranaen- bém tomaram por base o mesmo percentual de ses, com destaque ao arranjo urbano-regional 10% de pessoas residentes que trabalham fora de Curitiba. Nesse caso, será discutido como do município em relação ao total da população esses movimentos refletem situações de segre- economicamente ativa para definir a integra- gação socioespacial, ao associar localizações ção entre municípios de uma mesma aglome- de moradia a determinados tipos de ocupação ração urbana. e renda; e como, cada vez mais, ampliam-se as Nos anos 2000, essa informação orien- distâncias entre municípios de origem e desti- tou estudos classificatórios, como o da re- no, portanto, entre o local de moradia e o do gião de influência das cidades (IBGE, 2008) e trabalho e/ou estudo. a identificação dos níveis de integração dos municípios na dinâmica das aglomerações (Ribeiro, 2009). Moura (2009) destaca, entre as aglomerações urbanas que se configuram em território nacional, arranjos urbano-regionais Movimentos pendulares no Brasil que se constituem na aglutinação em uma unidade espacial de mais de uma aglomeração e A pesquisa da informação sobre o município de centros urbanos, polarizados por uma metró- destino para trabalho e estudo foi introduzida pole, nas quais os movimentos pendulares se no Censo de 1970, mantendo-se no de 1980, caracterizam pelos mais elevados volumes de ficando ausente no de 1991, e sendo reintro- pessoas em trânsito e pela multidirecionalida- duzida no de 2000. Neste Censo, ela traz al- de dos fluxos. gumas ambiguidades, pois a pergunta não Aceitando o importante papel dessa in- especifica a periodicidade do deslocamento ou formação na identificação e monitoramento a duração do percurso, que pode ser cotidiano da expansão dos aglomerados, e ciente de que ou não. Mesmo assim, ressalta-se a importân- ela é ainda pouco explorada para captar outras cia da informação para a identificação da área dinâmicas territoriais, na sequência deste texto compreendida pela comutação intermunicipal serão enfocadas algumas análises e reflexões e intra e interaglomerados, posto que a grande 46 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná maioria dos fluxos representa movimentos de proximidade, que tendem a ser cotidianos. É fundamental salientar que esse volume, se por um lado parece pequeno diante No Brasil, favorecidos pelo sistema viário da dimensão da população brasileira, é signi- e por sistemas urbanos de circulação e trans- ficativamente concentrado em aglomerações porte de passageiros, os movimentos pendula- urbanas, o que faz com que seja pertinente res da população criam desenhos próprios nas considerar estas últimas como espaços em mo- porções mais densas do território: 7.403.456 vimento. Por outro lado, como a informação pessoas deixam o município de residência para é coletada na unidade do município, ela não trabalho e/ou estudo em outro município, em incorpora os fluxos internos, entre bairros do fluxos de origem (ou saída), dos quais 72,1% município, que tornam ainda maior o movi- apenas para trabalho (Tabela 1). Os fluxos mento atribuído às aglomerações. Também por de destino (ou de chegada) correspondem a esse motivo, algumas aglomerações constituí- 7.030.250 pessoas, das quais 72,6% apenas das basicamente por um município de grande para trabalho. porte, como a de Manaus, aparentam relativa Tabela 1 – Pessoas que realizam movimento pendular, por tipo de fluxo, e proporção sobre o total de pessoas do município que estudam e/ou trabalham – Brasil – 2000 Tipo de fluxo FLUXOS DE ORIGEM TOTAL Intraestadual Interestadual Brasil não especificado Outros países Trabalho, estudo ou ambos Só trabalho % sobre pessoas do município que estudam e trabalham % sobre pessoas do município que só trabalham FLUXOS DE DESTINO TOTAL Trabalho, estudo ou ambos Só trabalho % sobre pessoas do município que estudam e trabalham % sobre pessoas do município que só trabalham Pessoas Absoluto Proporção % 7.403.456 6.655.263 671.872 24.366 51.955 100,0 89,9 9,1 0,3 0,7 7.403.456 5.326.928 100,0 72,1 6,7 9,4 7.030.250 7.030.250 5.098.776 100,0 100,0 72,6 6,4 9,0 Fonte: IBGE, Sidra. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 47 Rosa Moura imobilidade da população, no que concerne ao movimento pendular. De modo geral, Rio de Janeiro e Espírito Santo apresentam movimentos expressivos, Assim, os movimentos pendulares da po- sejam de origem ou de destino sejam para pulação caracterizam-se por uma mobilidade trabalho e/ou estudo ou só para trabalho. São predominantemente entre municípios próxi- Paulo e Pernambuco destacam-se nos fluxos mos, no interior das próprias unidades da fe- só para trabalho, sejam de origem ou de des- deração (UFs); entre estas, os fluxos de maior tino, e o Distrito Federal apresenta números volume de população ocorrem em São Paulo, muito elevados nos fluxos de destino, nas duas tanto referentes à origem quanto a destino condições. Esses comportamentos sinalizam os (Observatório das Metrópoles, 2009). Os flu- perfis específicos das UFs. xos interestaduais representam apenas 9,1% A espacialização dos fluxos pendulares do total, e aqueles para outros países sequer dos municípios brasileiros, classificados pelo atingem 1%; mesmo assim, em escala local, método de análise de agrupamentos, deixa ní- esses fluxos expressam trocas relevantes esta- tidas as áreas onde a movimentação é mais ex- belecidas entre divisas interestaduais ou fron- pressiva. Os municípios com os maiores volu- teiras internacionais. mes de fluxos de origem (saída) para trabalho No caso dos movimentos com destino e/ou estudo aparecem bastante concentrados a outros países, o Paraná se destaca por con- em torno das capitais de estados e do Distrito centrar quase um terço do total desse tipo de Federal. Os conjuntos mais expandidos, e en- fluxo no país, fundamentalmente em função volvendo um maior número de municípios, são da mobilidade intra-aglomeração transfron- as aglomerações de São Paulo, Rio de Janei- teiriça de Foz do Iguaçu/Ciudad Del Este (Pa- ro e Distrito Federal, seguidas pelas de Porto raguai)/Puerto Iguazú (Argentina). São Paulo Alegre e Curitiba. Nelas, há grande volume de e Rio Grande do Sul aparecem na sequência, pessoas se movimentando para trabalho e/ou revelando uma forte conexão fronteiriça com estudo em outro município. alguns países do Cone Sul, majoritariamente o Paraguai. Em termos das proporções de pessoas que saem do município onde residem para Quanto às trocas interestaduais, Goiás – trabalho e/ou estudo em outro município, em particularmente representado pela mobilidade relação ao total das pessoas do município no arranjo urbano-regional Brasília/Goiânia –, que trabalham e/ou estudam, delineia-se um Minas Gerais, São Paulo e Bahia se destacam quadro que, além de ampliar a extensão das por darem origem aos maiores fluxos (acima áreas dos entornos dos aglomerados destaca- de 50 mil pessoas) com destino para outros dos, aponta outras porções do território com estados. Distrito Federal, São Paulo, Rio de Ja- dinâmicas expressivas. Essas porções corres- neiro e Minas Gerais se destacam como prin- pondem, particularmente, ao oeste do estado cipais receptores de fluxos oriundos de outras de São Paulo, norte do Paraná, leste de Santa UFs. Esse conjunto concentra mais da metade Catarina, além de pequenas manchas no inte- dos fluxos interestaduais no país. rior brasileiro. Colocam em evidência que as 48 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná dinâmicas indutoras de movimentos de saída, total da população do município que trabalha fundamentalmente para trabalho, podem não e/ou estuda. Isso demonstra que as atividades estar restritas a atividades urbanas, embora se mais atrativas se desenvolvem em municí- vinculem nitidamente a essas. pios concentradores de população, e que sua Genericamente, os municípios com as maiores proporções de fluxos pendulares são própria população ativa representa a grande maioria da mão-de-obra ocupada. aqueles localizados em regiões industrializa- Visando compreender a complexidade das e de serviços, nas quais a divisão territo- dos movimentos, seja pelo volume de pessoas rial do trabalho é mais nítida e a valorização em deslocamento seja pelo quanto esse volu- do solo urbano expande as periferias, que se me significa em proporção ao total de pessoas tornam redutos de moradia de trabalhadores do município que trabalham e/ou estudam, foi em atividades localizadas em outras partes realizada uma correlação entre as informações das cidades. As elevadas proporções de fluxos referentes aos volumes absolutos e aos valores em áreas ligadas a atividades com base agro- relativos, para origem e para destino, a partir pecuária sugerem que essa mobilidade tam- de duas ordens de comparações, referentes bém se torna expressiva em regiões menos ur- a fluxos de origem e a fluxos de destino. Os banizadas, nas quais as relações empresariais parâmetros de cortes para preponderância e prescindem da moradia do trabalhador no as demais escalas da classificação foram de- próprio campo – fato comum nas regiões onde finidos por análise de agrupamentos (Moura, prevalece o agronegócio, como se verifica em 2009). porções do Centro-Oeste, Norte e Nordeste O indicador composto na primeira com- brasileiros, assim como no interior paulista e paração, entre volume e proporção, destaca norte paranaense. A espacialização dos movi- municípios nos quais a movimentação pendular mentos só para trabalho reproduz comporta- implica: a) elevados ou moderados volumes mento muito similar. e proporções de deslocamentos; b) elevados Quanto aos fluxos de destino, o resultado volumes, mas sem significância proporcional; espacial mostra a força das principais centrali- c) expressivas proporções, mas sob fluxos de dades como receptoras e ressalta uma mancha reduzidos volumes; ou d) volumes e proporções ampliada de grande extensão, conjugando baixos a insignificantes. Na segunda, foram municípios que recebem volumes elevados de comparadas as classificações obtidas quanto população para trabalho e/ou estudo no entor- à origem e destino, e identificados municípios no das aglomerações de São Paulo, incluindo com: a) elevados volumes e/ou elevadas pro- áreas de aglomerações próximas, e do Rio de porções, ou seja, movimento intenso, de en- Janeiro, seguidos em uma escala decrescente trada e saída, b) movimento intenso de saída e pelas demais capitais de estados, com maior moderado de entrada; c) movimento moderado presença nas do centro-sul. Em termos de va- de saída e intenso de entrada; d) movimento lores relativos, são poucos os municípios brasi- moderado de entrada e saída; e) municípios leiros com proporções de pessoas que chegam evasores; f) municípios receptores; e g) municí- para trabalho e/ou estudo superiores a 10% do pios sem movimento significativo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 49 Rosa Moura A correlação de ambos os indicadores aglomeração metropolitana do Rio de Janeiro, resultou em uma tipologia que, além dos aglo- compondo uma auréola extensa, assim como merados singulares nos entornos da grande no entorno de Porto Alegre, Curitiba e Belo Ho- maioria das capitais de estados, revelou áreas rizonte, estendendo-se a aglomerações urba- com complexa dinâmica de fluxos, dotadas nas vizinhas. Com menor intensidade, ocorrem de algumas particularidades (Figura 1). Reve- na extensão do aglomerado Distrito Federal/ lou ainda movimentos expressivos, refletindo Goiânia, tendo Brasília como o grande recep- situações localizadas. tor. A partir dessas porções, os fluxos se esten- O primeiro tipo engloba porções do terri- dem contínua e tentacularmente ao longo do tório onde ocorrem as dinâmicas mais comple- sistema viário principal dos estados, compondo xas, que envolvem um grande número de muni- um segundo tipo de movimentos que anunciam cípios em movimentos de intensos a moderados, conexões mais distantes, como ocorre em São sejam de entrada ou de saída, muito nítidas no Paulo, densificando-se nos eixos das rodovias estado de São Paulo. O município de São Paulo que cortam os vetores apontados; no Rio de compõe o core de uma área de fluxos multidi- Janeiro, expandindo-se nos eixos das rodovias recionais, que aglutina aglomerações das pro- Rio de Janeiro/Belo Horizonte e Rio de Janeiro/ ximidades, nos vetores norte, noroeste e Vale Vitória; e em menor escala, no eixo Salvador/ do Paraíba. Também são nítidas no entorno da Feira de Santana. Figura 1 – Tipologia dos movimentos pendulares – Brasil – 2000 movimento intenso de entrada e saída movimento moderado de entrada e saída movimento moderado de saída e intenso de entrada movimento intenso de saída e moderado de entrada sem movimento significativo Fonte: IBGE. 50 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná Um terceiro tipo corresponde a fluxos a implicações na ordem de políticas públicas, menos intensos de evasão e recepção que particularmente no que se refere à necessidade contornam as aglomerações metropolitanas de sistemas eficazes de transporte coletivo e do Nordeste, criando um lineareamento na de um sistema viário adequado à intensidade faixa litorânea, pontuado descontinuamente do tráfego. Outras implicações incidem na po- pelas aglomerações de Recife, João Pessoa e lítica de uso e ocupação do solo urbano, assim Natal. No sul do país, no estado de Santa Ca- como na provisão de infraestruturas e equipa- tarina, o mesmo lineareamento se repete no mentos urbanos. eixo da BR 101, com distinta natureza, no qual Embora essa constatação seja evidente, vários municípios desenvolvem fluxos multi- o cenário presente neste início de século é de direcionais, que articulam continuamente as uma densificação e intensificação nos vetores aglomerações urbanas de Joinville, Itajaí, Blu- da mobilidade intrametropolitana – como tam- menau, Florianópolis e Criciúma, entre outros bém em aglomerações urbanas de natureza centros ao longo do traçado rodoviário. não metropolitana e menor porte e mesmo em Os quarto e quinto tipos referem-se à municípios não aglomerados – sem o condi- conjunção de municípios receptores (polos zente acompanhamento de políticas adequa- regionais) e evasores. Ocorrem tanto no en- das. Cada vez é mais extensa a superfície na torno de capitais de estados e outros centros qual se alocam unidades de trabalho e de mo- de médio porte, configurando aglomerações radia, e a dissociação entre ambas sujeita um urbanas singulares, como em amplas exten- número crescente de pessoas às dificuldades, sões no interior do país, e mais particularmen- diretas e indiretas, impostas pela locomoção te no interior do estado de São Paulo e norte/ obrigatória. noroeste do Paraná, num espraiamento difuso, Os movimentos pendulares intra-aglome- sem características de aglomerações, confor- rações são majoritariamente motivados pelo me já comentado. Um sexto tipo corresponde desempenho da atividade trabalho. A divisão a movimentos expressivos, porém esparsos, de papéis entre municípios, com a concentra- entre municípios dispersos no território; e um ção das atividades industriais e dos serviços e sétimo, ao restante dos municípios, nos quais a configuração dos municípios-dormitórios dão os movimentos são inexpressivos ou mesmo a tônica a esses deslocamentos. A localização inexistentes. e os vínculos entre o funcionamento espacial As morfologias desenhadas a partir da do mercado de trabalho e o crescimento físico espacialização dos fluxos dos movimentos e populacional da aglomeração, assim como pendulares, fundamentalmente aquelas cor- os padrões de localização de infraestruturas respondentes aos três primeiros tipos, reme- fazem com que a dinâmica desses espaços se tem a espaços mais dinâmicos e complexos, materialize com os fluxos diários de pessoas. vindo a corresponder aos arranjos urbano-re- A matriz de fluxos de origem e de des- gionais identificados pela análise exploratória tino dos movimentos pendulares entre muni- espacial por Moura (2009). Nesses espaços, cípios brasileiros, associada a outras informa- a complexidade da dinâmica de fluxos remete ções, como taxas de crescimento populacional Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 51 Rosa Moura e participação do PIB municipal no PIB total do Brasil, mostra relações peculiares. Fluxos elevados de origem incidem sobre municípios Três arranjos com intensa mobilidade no Paraná com elevadas taxas de crescimento populacional, ao mesmo tempo em que fluxos de des- Tomando como foco de análise o estado do tino associam-se a municípios com elevada Paraná, observa-se que, consoantes aos flu- participação no total do PIB, sinalizando que xos que definem a região de influência das as fronteiras da expansão da ocupação urba- cidades, os fluxos dos movimentos pendulares na não incide sobre áreas nas quais é gerada da população para trabalho e/ou estudo em a riqueza. Outra associação constatada é a de município distinto do de residência demar- que os municípios com os maiores volumes de cam a abrangência física dos deslocamentos fluxos de destino, ou seja, os grandes recep- frequentes, induzida pelos diferentes papéis tores, comumente classificam-se nas catego- desempenhados pelos municípios que confor- rias superiores da hierarquia dos centros da mam os três principais arranjos espaciais: o rede urbana do Brasil, segundo o IBGE (2008). configurado pelas aglomerações urbanas de Assim, a centralidade medida pelo padrão Londrina e Maringá, no norte do estado; o que funcional urbano mais qualificado e o desem- agrega a aglomeração de Cascavel/Toledo e a penho econômico com perfil de maior concen- aglomeração transfronteiriça de Foz do Igua- tração da riqueza correspondem a áreas de çu, no oeste; e o arranjo urbano-regional de maior atratividade, seja pela possibilidade de Curitiba – Unidade espacial configurada pela trabalho oferecida seja pela oferta de opor- aglomeração metropolitana de Curitiba, aglo- tunidades educacionais, motivando o destino meração de Ponta Grossa, Carambeí e Castro, dos fluxos pendulares de população. Próximos e ocupação contínua litorânea, polarizada por a esses, e mais particularmente em seus entor- Paranaguá (Moura, 2009). nos, posicionam-se inúmeros municípios com De modo geral, esses fluxos vêm dese- elevados fluxos de saída, muitos dos quais nhando os núcleos ampliados das aglomera- com proporções elevadas relativas à sua po- ções, e as franjas em seu entorno funcionam pulação que trabalha e/ou estuda, correspon- como frentes da urbanização, mostrando não dendo a áreas de expansão do aglomerado, só movimentos unidirecionais em relação aos a municípios dormitórios, entre outros casos polos, como, fundamentalmente no caso do nos quais a dinâmica de crescimento popula- arranjo urbano-regional de Curitiba, revelan- cional é expressiva. Facilitados por meios de do a condição dessas franjas como atrativas transporte e circulação, mesmo que precários, a fluxos externos, inclusive partindo do polo. esses municípios sustentam a dinâmica prin- Há municípios receptores, evasores e aqueles cipal dessas aglomerações e revela a divisão que ao mesmo tempo atraem e enviam flu- de papéis necessária ao pleno funcionamento xos a municípios vizinhos, conforme tipologia desses espaços, enquanto totalidade. apresentada. 52 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná Análise de informações referentes aos em favor da faixa de 25 a 59 anos. Assim, há movimentos pendulares da população em mais mulheres, mais adultos e inclusive mais 1980 e em 2000 leva a observar que houve crianças se locomovendo para trabalho e/ uma intensificação dos fluxos, seja em relação ou estudo entre os municípios paranaenses ao número e perfil de pessoas em movimento (Deschamps e Cintra, 2007). seja em relação ao número de municípios de Houve também uma expansão das aglo- origem ou destino. Em 1980, 110,8 mil pessoas merações, percebida na inclusão de municípios residentes nos municípios do Paraná realiza- mais distantes envolvidos pelos fluxos princi- vam movimento pendular para trabalho e/ pais dos movimentos pendulares. Em 1980, ou estudo. Esse número elevou-se para 359,4 entre aqueles com maiores fluxos de origem mil em 2000. Nesses vinte anos, o perfil das (considerados os acima de mil pessoas), além pessoas que se deslocam também sofreu mu- de municípios limítrofes a Curitiba, encontra- danças: aumentou a proporção de mulheres, vam-se municípios limítrofes a Londrina (Cam- de 26,1% para 37,6%, enquanto entre os gru- bé, Ibiporã, Apucarana) e Maringá (Marialva), pos etários diminuiu a participação da faixa de assim como os centros regionais Cascavel, no pessoas de 15 a 24 anos, fundamentalmente oeste, e Ponta Grossa (Quadro 1). Quadro 1 – Municípios com maiores fluxos pendulares intraestaduais de origem, número de municípios de destino, pessoas envolvidas e participação no total do estado(1) – Paraná 1980/2000 Município de origem Piraquara Colombo Curitiba Cambé Almirante Tamandaré São José dos Pinhais Marialva Londrina Ibiporã Campo Largo Araucária Maringá Cascavel Ponta Grossa Apucarana TOTAL DO ESTADO 1980 Pessoas % no total do Paraná Municípios de destino 13.991 12.926 7.065 6.396 6.200 5.480 4.608 2.772 2.032 1.806 1.639 1.497 1.441 1.265 1.090 110.802 12,63 11,67 6,38 5,77 5,60 4,95 4,16 2,50 1,83 1,63 1,48 1,35 1,30 1,14 0,98 100,00 47 33 141 39 34 34 53 96 28 24 15 86 56 55 49 290 Municípios com fluxos entre mil e 5 mil pessoas Municípios com fluxos entre 500 e mil pessoas 9 10 2000 Município de origem Pessoas % no total do Paraná Colombo Curitiba Pinhais São José dos Pinhais Almirante Tamandaré Piraquara Sarandi Cambé Foz do Iguaçu Fazenda Rio Grande Araucária Campo Largo Londrina Paiçandu Campina Gde. do Sul TOTAL DO ESTADO 41.197 29.577 24.441 24.296 23.190 17.457 15.184 14.644 12.900 12.558 9.708 8.726 8.203 5.927 5.286 435.309 9,46 6,79 5,61 5,58 5,33 4,01 3,49 3,36 2,96 2,88 2,23 2,00 1,88 1,36 1,21 100,00 Municípios de destino 52 204 42 58 43 44 48 57 75 31 39 34 154 23 24 398(2) 40 51 Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1980 e 2000 (arquivo de microdados). (1) Somente fluxos com destino identificado. (2) Tunas do Paraná é o único município do estado que não realiza fluxo de origem. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 53 Rosa Moura Nos anos 2000, com exceção de Cambé Quanto aos fluxos de destino, aproxima- e Londrina, esses municípios deixam o con- damente 60% das pessoas se deslocavam para junto que realiza os principais fluxos (agora trabalho e/ou estudo convergentemente aos considerados os superiores a 5 mil pessoas). A três maiores centros urbanos do Estado em aglomeração metropolitana de Curitiba aponta 1980. Curitiba recebia 47,6 mil pessoas, Lon- para uma expansão física de sua área de maior drina, 11 mil, e Maringá, 7,3 mil (Quadro 2). comutação, posto que passa a incluir municí- Apenas nove municípios, os três citados, e Foz pios mais distantes. Maringá incorpora novos do Iguaçu, Ponta Grossa, Cascavel, Apucara- municípios de seu entorno, e no oeste, emerge na, Araucária e São José dos Pinhais recebiam Foz do Iguaçu entre os municípios com os mais fluxos de mais de mil pessoas, somando no elevados fluxos. Aumenta também o número conjunto 67,7% do total dos fluxos do estado. de receptores dos fluxos de origem da maioria Exceto os vizinhos a Curitiba, todos são polos dos municípios: Curitiba enviava fluxos a 141 regionais. municípios e passa a enviar para 204; Londri- Há que se observar, como destacam na passou de 96 para 154, São José dos Pi- Deschamps e Cintra (2007), que grande parte nhais, de 34 para 58, entre os acréscimos mais do movimento pendular ocorrido no estado expressivos. em 1980 envolvia algum município da Região Quadro 2 – Municípios com maiores fluxos pendulares intraestaduais de destino, número de municípios de origem, pessoas envolvidas e participação no total do estado(1) – Paraná 1980/2000 Município de origem 1980 Pessoas % no total do Paraná Municípios de destino 47.570 11.010 7.326 2.172 2.074 1.439 1.247 1.154 1.003 110.802 42,93 9,94 6,61 1,96 1,87 1,30 1,13 1,04 0,91 100,00 208 108 106 72 17 93 13 60 47 290 Municípios com fluxos entre mil e 5 mil pessoas Municípios com fluxos entre 500 e mil pessoas 6 15 Curitiba Londrina Maringá Foz do Iguaçu Araucária Ponta Grossa São José dos Pinhais Cascavel Apucarana TOTAL DO ESTADO Município de origem Curitiba Maringá Londrina São José dos Pinhais Pinhais Cascavel União da Vitória Umuarama Araucária TOTAL DO ESTADO 2000 Pessoas % no total do Paraná 174.109 30.176 27.986 9.936 8.875 5.238 4.855 4.635 4.592 435.309 44,48 7,71 7,15 2,54 2,27 1,34 1,24 1,18 1,17 100,00 Municípios de destino 628 278 344 56 20 167 27 144 35 396(2) 32 27 Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1980 e 2000 (arquivo de microdados). (1) Somente fluxos com destino identificado. (2) Novo Itacolomi, Paranapoema e São Manoel do Paraná não realizam fluxo de destino. 54 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná Metropolitana de Curitiba, que, no conjunto, menos heterogêneo, porém são incidentes era destino de 55,4 mil pessoas e origem de majoritariamente no arranjo urbano-regional outras 51,6 mil. No entanto, a quase totali- de Curitiba, sendo Colombo o maior evasor, dade desse movimento se dava internamente com fluxos de saída de 41.197 pessoas, segui- à Região; ou seja, 87,1% do movimento era do por Curitiba (29.577), Pinhais (24.441), São intrametropolitano, envolvendo 48,2 mil pes- José dos Pinhais (24.296), Almirante Taman- soas, das quais 84,3% buscavam a capital pa- daré (23.190), Piraquara (17.457) e Fazenda ra estudo e/ou trabalho. Rio Grande (12.558), entre aqueles com fluxos Nesses 20 anos, Curitiba eleva sua par- superiores a 10 mil pessoas. Nos dois outros ticipação de 42,9% do movimento total do arranjos espaciais, os maiores fluxos estão em Paraná para 44,5%. Foz do Iguaçu, Ponta Sarandi (15,2 mil) e Cambé (14,6 mil), no nor- Grossa e Apucarana deixam o rol dos princi- te; e Foz do Iguaçu (12,9 mil), no oeste. pais receptores; entram União da Vitória, que Entre as maiores proporções de pessoas conforma uma aglomeração transestadual com que saem para trabalho e/ou estudo, em rela- Porto União (SC); Umuarama, que se define ção ao total da população do município que como uma centralidade emergente no noroes- trabalha e/ou estuda, destacam-se os municí- te do estado; e Pinhais, reforçando o entorno pios vizinhos a Curitiba. Essas proporções são metropolitano. mais elevadas quando relativas a saídas exclu- No âmbito do Paraná, os fluxos ressaltam sivamente para o trabalho, superando os 50% e consolidam como áreas de maior movimento de pessoas do município que trabalham; apon- os três arranjos mais concentradores do esta- tam para os municípios-dormitório. do, e mostram, no interior deles, deslocamen- No caso da aglomeração metropolitana, tos em todas as direções, com vetores majo- embora os maiores municípios e com maior ritários e convergentes aos polos. Confirmam, nível de centralidade urbana tanto recebam ainda, o arranjo urbano-regional de Curitiba quanto emitam fluxos de pessoas, ocorre uma como a porção do estado onde os volumes são grande convergência de destinos a Curitiba, mais elevados e os vetores mais diversificados originados em todos os municípios do en- (Figura 2). torno – e entre esses, inclui-se Joinville, em Os principais absorvedores de população Santa Catarina. Nota-se que os municípios de outro município para trabalho e/ou estudo de origem e de destino desenham áreas de em 2000 são as principais centralidades do abrangência, cuja extensão é proporcional à estado. Curitiba recebe 174,1 mil pessoas, Ma- importância do exercício de funções centrais. ringá, 30,2 mil, e Londrina 28 mil, sendo estes Assim, Curitiba projeta a maior abrangência, os únicos municípios com fluxos de destino sendo foco de origem de fluxos de 628 mu- superiores a 10 mil pessoas. Deles, respecti- nicípios do Paraná e estados vizinhos. Esses vamente, 75,3%, 71,7% e 61,8% das pessoas padrões ficam claros no mapa dos fluxos (ver que se movimentam buscam apenas o traba- Figura 2), captados pela matriz origem/desti- lho. Os municípios que se sobressaem por flu- no. Percebe-se um emaranhado de direções, xos de saída apresentam um comportamento quanto maior a proximidade com a metrópole, Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 55 Rosa Moura Figura 2 – Fluxos pendulares no Paraná – 2000 Fonte: IBGE. 56 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná que mostra a densificação dos deslocamentos políticas solidárias entre os lugares e os habi- e reitera a necessidade de políticas públicas tantes citadinos” (ibid., p. 267). adequadas de mobilidade, moradia, entre outras, para esse elevado contingente de pessoas em movimento. A concentração de população, em sua dinâmica de intenso crescimento, e a densa A dimensão segregadora da mobilidade pendular conjunção dos movimentos pendulares da população e das ligações funcionais entre centros No âmbito da divisão territorial do trabalho, a mostram que em nível estadual verifica-se no espacialização dos fluxos pendulares descreve arranjo urbano-regional de Curitiba um posi- a relação existente entre municípios no exer- cionamento de supremacia perante os demais, cício de suas funções, seja nas aglomerações similar ao de São Paulo em relação ao territó- urbanas seja em novas espacialidades aciona- rio brasileiro. Essas áreas são exemplos de que das pelo agronegócio. A exploração dos des- a dimensão urbano-regional emana não só da locamentos intermunicipais para trabalho e/ou Grande Metrópole Nacional como também de estudo, em suas relações matriciais entre mu- outros arranjos, em outros contextos, cada nicípios, a composição do perfil das pessoas qual com suas especificidades. que realizam o movimento e a natureza da Cabe ressaltar que os movimentos pen- busca sintetizam os principais vetores de ex- dulares verificados no Paraná fazem parte da pansão urbana e registram que a seletividade história da própria mobilidade territorial brasi- de uso e apropriação do solo, com dissociação leira e de particularidades ligadas a processos entre o lugar da moradia e o do trabalho, se locais/regionais. Santos (2009) analisou traje- faz acompanhar de mecanismos socioespaciais tórias de pessoas que realizam fluxos pendu- segregadores. lares entre Colombo e Curitiba, e demonstrou Rodríguez (2008) considera que nos des- que há uma intercalação de escalas espaciais locamentos diários pode haver uma segrega- explicativas das motivações do fenômeno em ção da localização dos postos de trabalho, da cada caso. Para a autora, a mobilidade pen- mobilidade e do uso do território público. Essa dular ocorre como desdobramento de um múl- segregação poderia advir da desconexão de tiplo processo migratório desencadeado em segmentos sociais que vivem separadamente, território nacional, intercalado por temporali- e que também não compartem os espaços de dades distintas, e pela desigual repartição do trabalho, os percursos e os espaços físicos de uso e ocupação do espaço na metrópole pa- encontro na cidade. Outra preocupação levan- ranaense, fortemente condicionado pelo pla- tada pelo autor é que tais movimentos, asso- nejamento urbano do polo. Tal complexidade ciados à segregação sociorresidencial, debili- torna insuficiente considerar analiticamente tam as finanças dos municípios pobres, afetam apenas as escalas origem/destino e remete à os residentes das áreas carentes e operam um imperiosa necessidade de projetos políticos “efeito vizinhança” adverso, seja por déficit mais audaciosos, que contemplem “ações relativo de equipamentos, serviços, capital Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 57 Rosa Moura social (contatos) ou capital cultural (códigos) ligada à globalização e ao desenvolvimento seja pelo acúmulo de problemas comunitários. tecnológico, apontando o policentrismo e uma Provocam um “fator estigma”, que dificulta a forma de funcionamento e estrutura urbana integração social, e se vinculam à ingoverna- similar à de cidades estadunidenses; e outra bilidade e à anomia nas áreas pobres segrega- mais relacionada às desigualdades socioter- das, podendo compor um mecanismo que ten- ritoriais e à economia de serviços, também de a reproduzir a pobreza e as desigualdades apontando um policentrismo estendido que preexistentes, assim como erodir a gestão e o favorece uma mobilidade mais intensa dos desenvolvimento metropolitano. pobres e um “encapsulamento” ou isolamen- Mesmo assim, muitos mitos do senso co- to dos ricos – esta, representativa do modelo mum devem ser descartados, como o próprio de crescimento e expansão metropolitana dos Rodríguez (ibid.) mostra, com base em estu- países subdesenvolvidos, portanto encontra- dos sobre as metrópoles de Cidade do México, da, com certas ressalvas e singularidades, nas Santiago, São Paulo e Rio de Janeiro. Nessas cidades brasileiras. metrópoles, a mobilidade é mais frequente en- No caso da Região Metropolitana de tre assalariados, em princípio, mais próximos Curitiba (RMC), Deschamps e Cintra (2008) ao mercado de trabalho formal; nas brasileiras, analisaram o perfil social das pessoas ocupadas as pessoas em movimento têm menor nível de de 10 anos e mais, residentes nos 15 municípios educação, enquanto em Santiago e Cidade do que mantêm os maiores fluxos pendulares com México a probabilidade de ser comutante se Curitiba, num universo de 346.183 pessoas eleva com a educação. Tais resultados, como (63,4%, homens, e 36,6%, mulheres). Entre os ressalta o autor, chocam com visões tradicio- homens, 67,5% trabalham no município onde nais, que supõem a mobilidade e os traslados residem e 32,5% se deslocam a Curitiba para diários como atributos típicos dos pobres, que trabalhar; entre as mulheres, essas proporções pelos processos seletivos do mercado de ter- são, respectivamente, de 62,1% e 37,9%, mos- ras são obrigados a viver longe do local de trando que, em termos relativos, as mulheres trabalho. Da mesma forma, a pendularidade saem mais de seus municípios para o trabalho diária não guarda relação direta com o setor em Curitiba. informal; ao contrário, essa categoria é a que A análise de Deschamps e Cintra (ibid.) registra menores níveis de comutação, nas deixa claro que, além das faixas salariais serem quatro cidades examinadas, o que sugere que mais elevadas para as pessoas que trabalham uma fração significativa desse setor pode estar na capital, vindas de outros municípios metro- trabalhando no próprio domicílio ou em seu politanos, as atividades também são mais sele- entorno próximo. tivas. Constata-se que esses municípios são os Rodríguez (ibid.) conclui que a separação grandes abastecedores de mão-de-obra para e o distanciamento entre residência e trabalho serviços domésticos em Curitiba, e se infere afetam, com diferentes graus de dificuldade, que os trabalhadores que se deslocam de Curi- a todos os grupos socioeconômicos. Destaca tiba para ocupações nos municípios periféricos duas tendências em contraposição: uma mais são mais qualificados, dadas as faixas salariais 58 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná preponderantes nesses casos. Para estes, tem- e ocupações horizontais de populações de se uma visível concentração de pessoas na úl- melhor renda, particularmente nos municípios tima faixa salarial, acima de 5 SM, em todos os limítrofes servidos pelas melhores infraestrutu- setores. Entre as atividades ocupadas, chama a ras de circulação e transporte. Pode-se perce- atenção aquelas relacionadas à Indústria, para ber também a verticalização e a qualificação as quais os que se deslocam teriam maior espe- urbana das sedes desses mesmos municípios. cialização, envolvendo nelas as montadoras de Entretanto, a segregação velada nas relações automóveis situadas em São José dos Pinhais, sociais se mantém. Mesmo que fisicamente para onde se dirige o maior fluxo saindo de diferentes grupos se aproximem, a distância Curitiba. Também se observa que não há uma social permanece, como sintetiza a analogia atividade industrial predominante nas ocupa- recorrente nas discussões dos movimentos so- ções, mas uma ampla gama de atividades, ciais,1 que contrapõe o Alphaville – condomí- desde tradicionais até modernas, incorporando nio de luxo situado em Pinhais – ao “alfavela”, pessoas do polo e dos municípios periféricos. em alusão às ocupações pobres vizinhas aos Essas informações, que expressam pessoas seus limites. em movimento, mostram a dinâmica existente Com relação à segunda hipótese, os flu- entre os municípios do arranjo urbano-regio- xos pendulares não descrevem uma situação nal de Curitiba, com fluxos multidirecionais e completamente dual. Mesmo assim, na dinâ- densos, e revelam a desigualdade no perfil das mica observada, Deschamps e Cintra (2008) pessoas que trabalham no próprio município confirmam a existência da segregação socio- onde residem e as que se deslocam. espacial entre o polo e os municípios perifé- Em relação ao perfil desigual dos traba- ricos, que funcionam como abastecedores da lhadores e uma possível segregação socioespa- demanda por mão-de-obra menos qualificada cial, Rodríguez (2008) levanta duas hipóteses pela economia da metrópole. Dentro destes, a quanto aos deslocamentos das localizações pe- população que sai aufere rendimentos maiores riféricas. A primeira é a de uma redistribuição que a que fica, colocando em evidência mais das classes mais abastadas, pela verticalização essa face da segregação. das áreas centrais dos municípios periféricos e A própria condição referente à mobili- implantação de condomínios fechados nas pe- dade se distingue, pois as diferentes faixas de riferias, criando, desse modo, uma aproxima- renda têm acesso diferenciado aos meios de ção dos grupos socioeconômicos em algumas transporte, sendo que as menos favorecidas zonas das cidades, que tende a espairecer a se- não têm outra opção senão o transporte cole- gregação, ao menos nessa escala. A segunda é tivo, já bastante saturado pela demanda e am- a da dualização e crescente desigualdade pro- pliação dos trajetos. Para ambas, a distância vocadas pelo modelo econômico vigente, com a ser percorrida oferece dificuldades: para os a pertinaz periferização dos pobres. pobres, relacionadas com o grande tempo de Com relação à primeira hipótese, um viagem em condições de transporte incômo- percurso pelo entorno imediato de Curitiba das, vias inadequadas de circulação e custos confirma a presença de condomínios fechados relativos altos; para os setores de alta renda Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 59 Rosa Moura suburbanizados, vinculam-se a congestiona- melhor qualidade são oferecidos em Curitiba mentos e custos elevados de transporte. e, quando de competência da administração Indicadores intrametropolitanos (Ipar- municipal, muitas vezes com acesso restrito des, 2005), que abrangem informações de de- apenas a moradores da capital. Os menores mografia, educação, condição domiciliar, bens níveis de rendimento dos trabalhadores que de consumo, pobreza e trabalho, referentes às permanecem em seus municípios para o tra- áreas de ponderação da amostra (AEDs) do balho também levam a crer que essas pessoas Censo Demográfico de 2000, tornam evidente tenham maior dificuldade de mobilidade e a segregação socioespacial no território da RM acesso aos equipamentos e serviços públicos de Curitiba. Descrevem as melhores condições mais centrais e melhor qualificados. Se por um correspondendo às AEDs centrais de Curitiba lado a permanência para o trabalho no mesmo e de alguns municípios do entorno imediato, município de residência é positiva no que se particularmente São José dos Pinhais, Pinhais, refere à redução do custo e do desgaste pelo Araucária e Campo Largo. Os demais municí- deslocamento, por outro, conforme Rodríguez pios apresentam situações de maior precarie- (2008), ela pode resultar num encapsulamen- dade, incluindo entre eles Colombo, de onde to ou isolamento dos pobres, completando o se originam os maiores fluxos pendulares da círculo de segregação territorial residência- região. escola-trabalho. No caso dos ricos, o encap- Os dados deste trabalho mostram com sulamento, na escala municipal ou da comuni- clareza a ocupação pobre nas áreas limítrofes dade, não parece ainda ser a tônica da região, a Curitiba, inclusive nos municípios apontados. mesmo assim, os condomínios residenciais nas Considerada uma síntese representativa do periferias tentam oferecer opções de perma- comportamento socioespacial dos demais indi- nência a tudo, exceto ao trabalho. cadores analisados, a taxa de pobreza, ou seja, O cenário descrito e a preocupação a proporção de famílias com renda domiciliar de Rodríguez confirmam a interpretação de mensal per capita de até 1/2 salário mínimo, Katzman e Ribeiro (2008, p. 20) acerca de que na RMC, em 2000, era de 13,1%, correspon- as novas modalidades de acumulação, com dente a 106.805 famílias pobres. Curitiba, com elevação na exigência dos níveis de qualifica- a taxa de 8,6%, concentra 39,9% das famílias ção para ocupações mais estáveis, flexibiliza- pobres da Região, e os municípios do entor- ção no mercado de trabalho e liberalização do no imediato, 44,9% – municípios estes que mercado imobiliário, “têm gerado segmentos respondem pelos maiores volumes de deslo- sociais vitoriosos e perdedores”. Para os auto- camentos pendulares. Entre os municípios da res, os primeiros, que aproveitaram as opor- RMC, os do entorno metropolitano imediato tunidades de mobilidade social ascendente, chegam a atingir a taxa de 35%, como ocorre deslocaram-se para os bairros de maior status com Itaperuçu, ficando os demais entre 14% social, caracterizados por condições priva- e 25%. das de urbanização e produção da moradia, Também se distinguem os equipamentos expressos nos condomínios fechados e seus urbanos e os serviços públicos, dado que os de congêneres. “Ganhadores e perdedores estão 60 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Movimento pendular da população no Paraná distanciados socialmente em termos de ren- imprescindíveis para se conhecer o volume e da, qualificação e estabilidade de empregos, o perfil das pessoas em movimento, na escala segmentação dos serviços sociais e urbanos e local/regional, constituindo uma contribuição também pela segregação residencial”. ao planejamento e gestão urbana e regional. Tal segregação residencial e socioeco- Associadas a outras informações censitárias e nômica ressalta a importância de se pensar, a novas pesquisas correlatas, como aquelas re- para os espaços mais densos de movimentos lativas às motivações que dão origem a esses pendulares, políticas adequadas de emprego, fluxos e à própria trajetória anterior à última moradia, mobilidade, entre outras, tendo em residência da pessoa que se desloca, oferecem vista que não se trata mais de uma vida urba- referências importantes para compreensão das na restrita a um município, mas de aglomera- dinâmicas territoriais na escala nacional, mui- ções, de singulares a complexas, e de arranjos tas vezes impostas por outras escalas. espaciais de natureza e dimensão urbano-re- De maneira muito precisa, os movimen- gional. Mais que isso, revela, nesses espaços, tos pendulares da população refletem a desco- a dissociação existente entre o local de traba- nexão existente entre o mercado de trabalho lho e o da moradia, situação que acarreta des- e da moradia na organização interna das me- gastes, seja pelas exigências da mobilidade, trópoles e sinalizam seus efeitos decorrentes. nem sempre em condições adequadas, seja Apontam também as dinâmicas territoriais em pela permanência de familiares no município curso e novas áreas onde a mudança no perfil de origem, que requerem serviços e cuidados das atividades separa o município da produção também onerosos particularmente aos muni- do da moradia. cípios-dormitório, assim chamados exatamen- As consequências dessa desconexão te por não lograrem atividades econômicas afetam diferentemente os segmentos da po- na quantidade e qualidade para absorver sua pulação, dificultando a acessibilidade dos população economicamente ativa, sofrendo, pobres ao trabalho, à renda e aos bens cole- consequentemente, com a baixa arrecadação. tivos, num processo de segregação, que acirra Aponta, assim, a importância de se ler esses mais fortemente a desigualdade existente nos espaços compondo uma totalidade, com as espaços mais complexos, como os metropoli- partes assumindo papéis diferenciados, e na tanos. Diante de uma agenda de estado que qual a condição de dormitório é uma função não foca as metrópoles em sua totalidade, que em uma dinâmica maior. implementa políticas setoriais também desconexas entre si, e com a expansão contínua das aglomerações metropolitanas e a agluti- Considerações finais nação destas a outras aglomerações e centros vizinhos de seu entorno, em arranjos urbanoregionais, tem-se agudizada a problemática. A Análises mais detalhadas dos deslocamentos multidimensionalidade e multidirecionalidade pendulares, possíveis a partir das informações de fluxos nesses espaços, e a permanência dos disponibilizadas pelo Censo Demográfico, são polos metropolitanos como principais pontos Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 61 Rosa Moura de convergência desses fluxos, mostram que, centro-periferia persiste na divisão social do mesmo com a formação de novas centralida- trabalho no Brasil. Porém, sob relações mais des – com suas periferias próprias –, o modelo densas e mais complexas. Rosa Moura Geógrafa. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – Ipardes. Curitiba, Paraná, Brasil. [email protected] Nota (1) Essa analogia tem sido sempre lembrada por lideranças populares de municípios do entorno imediato de Curi ba e mesmo das favelas da capital, em debates e programas de formação realizados pelo Observatório de Polí cas Públicas Paraná. Referências ADAMS, J. S. (1995). “Classifying se led areas of the United States: conceptual issues and proposals for new approaches”. In: DAHMAN, D. C. e FITZSIMMONS, J. D. (ed.). Metropolitan and nonmetropolitan areas: new approaches to geographical definiƟon. Washington, Popula on Division/US Bureau of the Census, pp. 9-83 (Working paper, 12). BEAUJEU-GARNIER, J. (1980). Geografia da população. São Paulo, Companhia Editora Nacional. CARVALHO, J. A. M. de e RIGOTTI, J. I. R. (1998). 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 63 Rosa Moura SANTOS, G. (2009). “Lá e cá: a mobilidade de trabalhadores de Colombo para Curi ba”. In.: MOURA, R. e FIRKOWSKI, O.L.C de F. Dinâmicas intrametropolitanas e produção do espaço na Região Metropolitana de CuriƟba. Rio de Janeiro/Curi ba, Letra Capital/Observatório das Metrópoles/ Observatório de Polí cas Públicas Paraná. Texto recebido em 17/nov/2009 Texto aprovado em 10/dez/2009 64 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 43-64, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano: um olhar comparativo sobre as grandes metrópoles brasileiras From class hierarchy to the social organization of the intra-urban space: a comparison among the major Brazilian metropolises Luciana Corrêa do Lago Rosetta Mammarella Resumo O artigo busca traçar as grandes tendências na organização social do território metropolitano brasileiro, orientando-se por um conjunto de pressupostos e questões construídos ao longo da trajetória de quinze anos de pesquisa do Observatório das Metrópoles. Parte-se da ideia central de que o grau de diversidade ou homogeneidade social de um bairro exerce forte influência sobre as ações dos indivíduos ali residentes e dos demais agentes que atuam na metrópole. Assim, serão examinadas as alterações no padrão intrametropolitano de localização das classes sociais em quatro metrópoles brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre – com base nas categorias sócio-ocupacionais construídas, utilizando-se como fonte os dados censitários de 1991 e 2000. Abstract Palavras-chave: metrópole; classe social; segregação urbana; mercado de trabalho; organização socioespacial. Keywords: metropolis; social class; urban segregation; labor market; social-spatial organisation Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 The article attempts to outline the major trends in the social organization of the Brazilian metropolitan territory, guided by a set of presuppositions and questions that were built up during the last fifteen years at Observatório das Metrópoles. It starts with the central idea that the level of social diversity or homogeneity in a neighborhood has a strong influence on the actions of individuals living there and on other agents who work in the metropolis. Thus, the study examines the changes in the pattern of intra-metropolitan location of social classes in four Brazilian cities - São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre – based on sociooccupational categories, using as source the 1991 and 2000 census data. Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella Introdução da precarização do trabalho (Oliveira, 2004) e do crescente isolamento socioterritorial dos pobres urbanos (Kaztman, 2001; Sabatini, Buscaremos no presente artigo analisar as 1998). A crise e a reestruturação econômica grandes tendências na organização social do iniciadas na década de 80 e a privatização dos território metropolitano brasileiro, partindo serviços públicos na década de 90 teriam alte- do pressuposto de que o perfil social de uma rado as condições de acesso à renda, à mora- área, ou seja, o grau de diversidade ou ho- dia e aos serviços urbanos dos trabalhadores mogeneidade social de uma área exerce forte e, como consequência, o padrão de desigual- influência sobre as ações dos indivíduos ali dades socioespaciais e as formas de interação residentes e dos demais agentes que atuam entre as classes sociais. na metrópole. Nesse sentido, o perfil social É a partir desse pressuposto que exami- de uma área não é entendido apenas como naremos as alterações na organização social expressão das desigualdades econômicas e do território de quatro metrópoles brasileiras: de poder entre as classes sociais na disputa São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e pela apropriação do espaço urbano, mas co- Porto Alegre. Teremos que entender o com- mo fator (re)produtor de tais desigualdades. portamento do mercado de trabalho e, mais Áreas mais exclusivas das classes superiores precisamente, da estrutura sócio-ocupacional ou áreas mais tipicamente operárias abrigam de cada uma das metrópoles, para nos aproxi- um grau de coesão de classe que possibilita marmos da noção de classe social citada ante- estratégias e condições de vida urbana es- riormente. Buscaremos avaliar em que medida pecíficas entre aqueles ali residentes. Essa as mudanças no padrão intrametropolitano conjugação entre território e identidade de de localização das classes sociais indicam o classe fortalece a coesão e o poder da classe fortalecimento do poder das elites, aprofun- (Bourdieu, 1997). Portanto, áreas socialmen- dando os efeitos negativos da reestruturação te homogêneas habitadas por trabalhadores econômica sobre as condições de vida dos tra- precários, distantes da experiência de classe balhadores, ou ao contrário, vêm amenizando e com reduzido poder de disputa na cidade tais efeitos. podem funcionar como fator de bloqueio às As questões que orientam este trabalho oportunidades de acesso aos recursos. Nesse buscam uma interlocução com visões recen- caso, o quadro se inverte: áreas com maior di- tes e crescentemente hegemônicas sobre a versidade social, ou seja, que abriguem tanto espacialidade metropolitana brasileira. Fatos trabalhadores precários quanto estáveis possi- novos emergem nas cidades, tais como os bilitam canais de acesso a serviços e a oportu- condomínios fechados e a difusão da informa- nidades de trabalho àqueles mais vulneráveis. lidade do trabalho e da moradia, a partir dos Esse argumento dialoga com estudos recentes quais vem se construindo socialmente uma sobre a realidade social das cidades brasileiras nova representação sobre o urbano, manifes- e latino-americanas, desenvolvidos em torno tada através da ideia de um novo padrão de 66 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano segregação urbana. A noção de fragmentação do argumento, ficará restrita a apenas alguns socioespacial é constituinte dessa nova repre- processos de ordem objetiva. Propomos ava- sentação e materializada por um conjunto de liar as tendências, nos anos 90, da estrutura fenômenos entendidos como processos exclu- socioespacial de quatro metrópoles brasileiras, dentes que transformam a escala e a natureza à luz dos processos de produção e consumo do da segregação urbana até então vigente: por espaço construído metropolitano. Como es- um lado, a redução de sua escala e a conse- trutura socioespacial entende-se o padrão de quente “aproximação” entre as classes domi- distribuição da população, segundo seu perfil nantes e dominadas e, por outro, a redução sócio-ocupacional, pelas diferentes áreas que do grau de interação entre grupos socialmen- conformam o espaço metropolitano, trabalhan- te distintos em função do confinamento dos do-se conjuntamente grau de concentração dos grupos superiores em espaços privados e da diferentes grupos sociais e grau de homoge- estigmatização dos espaços da pobreza como neidade social das áreas. Estaria em curso um espaços da violência. processo de homogeneização dos espaços de Na América Latina, esse padrão fragmen- residência? Em quais espaços podemos iden- tado/excludente tem sido pensado em contra- tificar uma maior homogeneidade e com que posição ao padrão desigual/integrado – centro- clareza e intensidade ela se expressa? Trata-se periferia – consolidado nos estudos urbanos de um estudo quantitativo da estrutura urbana como expressão e até mesmo como explicação e das desigualdades socioespaciais, com base da dinâmica de organização interna do espa- nos dados censitários de 1991 e 2000, no qual ço metropolitano (Caldeira, 1997; Ribeiro e aplicamos, para as quatro metrópoles, a mes- Lago, 1992). A concentração do emprego, da ma metodologia de organização e tratamento moradia das classes médias e superiores e dos dos dados. equipamentos e serviços urbanos nas áreas Primeiramente, analisaremos de forma centrais e, consequentemente, as enormes comparativa as principais tendências nas es- carências que marcam os espaços periféricos truturas sócio-ocupacionais das referidas me- sustentaram, até os anos 80, a visão dual da trópoles, na década de 90. As regularidades metrópole, em que a periferia evidenciava a entre as regiões e suas especificidades quanto distância física e social entre as classes sociais. ao mercado de trabalho servirão de base pa- Essa distância foi um dos mecanismos utiliza- ra compreendermos as alterações, no mesmo dos pelas nossas elites para a reprodução de período, na estruturação do espaço intra- seu poder econômico e simbólico. metropolitano. Tais questões englobam necessariamen- No segundo segmento, examinaremos te as dimensões objetiva e subjetiva do pro- as grandes tendências no que diz respeito ao cesso de organização social do espaço urbano. rebatimento das transformações do mercado No entanto, a contribuição da presente aná- de trabalho na distribuição das classes no terri- lise, no que se refere à sustentação empírica tório metropolitano. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 67 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella As estruturas sócioocupacionais das grandes metrópoles: semelhanças, particularidades e tendências A primeira evidência que se destaca é a semelhança entre as estruturas sociais das regiões, especialmente no que se refere às categorias superiores na hierarquia: dirigentes, profissionais 2 e ocupações médias. 3 As diferenças mais significativas estão concentradas A estrutura sócio-ocupacional aqui trabalhada no universo dos trabalhadores manuais, parti- é formada por 24 categorias sócio-ocupacio- cularmente entre os operários da indústria, a nais hierarquizadas, agregadas em 8 grandes categoria mais afetada pela crise e pela rees- 1 grupos, como mostra o Quadro 1. truturação produtiva iniciada na década de 80. Quadro 1 – Estrutura sócio-ocupacional das metrópoles de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre – 2000 Categorias socioocupacionais São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Porto Alegre Dirigentes Grandes empregadores Dirigentes do setor público Dirigentes do setor privado 1,4 0,8 0,2 0,4 1,2 0,6 0,2 0,3 1,3 0,7 0,2 0,3 1,4 0,8 0,3 0,3 Profissionais de nível superior Profissionais autônomos de nível superior Profissionais empregados de nível superior Profissionais estatutários de nível superior Professores de nível superior 7,8 2,0 3,7 0,4 1,8 8,7 2,0 3,6 1,1 2,0 7,4 2,0 2,9 0,8 1,8 7,6 2,1 2,8 0,7 1,9 2,6 2,4 2,8 3,2 Categorias médias Ocupações de escritório Ocupações de supervisão Ocupações técnicas Ocupações médias da saúde e edução Ocupações de segurança, justiça e correios Ocupações artísticas e similares 28,2 10,6 5,3 6,4 3,3 1,5 1,1 27,7 9,2 4,3 5,7 4,2 2,9 1,4 26,1 9,7 4,2 5,5 3,7 1,7 1,3 26,9 9,3 4,5 6,4 3,6 1,9 1,2 Trabalhadores do terciário Trabalhadores do comércio Prestadores de serviços especializados 19,3 9,7 9,6 20,8 9,7 11,1 19,1 9,7 9,4 17,4 8,7 8,7 Trabalhadores do secundário Operários da indústria moderna Operários da indústria tradicional Operários dos serviços auxiliares Operários da construção civil 24,0 7,1 4,6 6,0 6,3 20,2 3,9 3,9 5,1 7,3 23,6 5,6 4,2 5,4 8,4 27,3 6,4 8,9 4,9 7,2 Trabalhadores do terciário não especializado Prestadores de serviços não especializados Trabalhadores domésticos Ambulantes + biscateiros 16,2 5,2 7,2 3,7 18,4 5,3 8,8 4,3 18,6 5,7 9,7 3,1 14,7 4,6 6,7 3,4 Pequenos empregadores Agricultores Total 0,5 0,6 1,1 1,4 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: Censo demográfico de 2000; tabulação: Observatório das Metrópoles. 68 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano Entre as quatro regiões, São Paulo, Be- país, além de centro financeiro e de serviços lo Horizonte e Porto Alegre apresentavam, em de ponta, abrigava, em 2000, um mercado de 2000, um perfil sócio-ocupacional “médio- trabalho tão diversificado quanto o das três operário”, em função da predominância das outras regiões. categorias médias (de 26% a 28%) e dos tra- Em relação às categorias médias, o maior balhadores do secundário (entre 23% e 27%). percentual era de São Paulo (28,1%), acompa- As metrópoles de São Paulo e Belo Horizonte nhado de perto pelo Rio de Janeiro. Porém, em eram mais “médias” do que “operárias”, en- São Paulo, eram as ocupações de escritório, as quanto a de Porto Alegre era mais “operária” de supervisão e as técnicas que explicavam es- do que “média”. O Rio de Janeiro diferencia- se maior percentual, enquanto no Rio de Janei- va-se das demais regiões ao exibir um perfil ro eram as ocupações em saúde e educação e “médio-terciário”, onde as ocupações médias as de segurança, mais ligadas ao setor público. 4 Belo Horizonte apresentou o menor percentual e os trabalhadores do terciário especializado eram as duas categorias com maior participação (28% e 21%, respectivamente). de categorias médias: 26,1%. Quanto ao universo das categorias ma- Cabe destacar a fraca associação en- nuais (trabalhadores do terciário especializado, tre a estrutura sócio-ocupacional, o tamanho do secundário e do terciário não especializa- popula cional e o grau de complexidade da do), Porto Alegre se destaca como a metrópole economia de uma metrópole. Vimos que São de perfil mais operário, em função da elevada Paulo, a maior e mais complexa metrópole bra- participação na estrutura social, tanto dos tra- sileira, com uma população ocupada em torno balhadores da indústria tradicional quanto da de 7 milhões, apresentava, em 2000, uma es- moderna, que, somados, equivaliam a 15,3% trutura sócio-ocupacional muito semelhante à do total de ocupados. Em relação à indústria de Porto Alegre, que abrigava cerca de 1 mi- moderna, São Paulo apresentava o maior per- lhão e 500 mil ocupados. centual (7,1%), e Porto Alegre o segundo maior Examinando o universo das categorias (6,4%). A particularidade de Porto Alegre está, superiores da hierarquia, percebe-se que os portanto, na combinação dos altos percentuais dirigentes são aqueles com o menor peso na em ambos os setores industriais, embora o se- estrutura das quatro regiões, seguidos pelos tor coureiro-calçadista, localizado na porção pequenos empregadores e pelos profissionais norte da metrópole gaúcha, sustente uma par- de nível superior. Como destaque, temos o Rio ticipação bem mais elevada dos operários da de Janeiro, onde a participação dos profissio- indústria tradicional. nais (8,8%) era significativamente superior ao A segunda evidência dentro desse uni- das demais regiões (entorno de 7,5%). A alta verso refere-se à presença significativa, em concentração das sedes das grandes empre- todas as regiões, dos ocupados na construção sas industriais e financeiras em São Paulo não civil,5 cujos percentuais variavam entre 6,3%, ocasionou a elevação no peso dos dirigentes e em São Paulo e 8,4%, em Belo Horizonte. Es- profissionais acima do alcançado pelas demais se é um setor marcado pela baixa qualificação regiões. Isso mostra que a maior metrópole do dos trabalhadores, por salários inferiores e por Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 69 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella relações de trabalho mais precárias tendo em vista os demais setores industriais. As estruturas sociais apresentadas acima de forma sintética e comparativa expressam os Quanto à participação das categorias efeitos das transformações econômicas sobre manuais do terciário, é na metrópole do Rio o mercado de trabalho metropolitano, ocorri- de Janeiro onde encontramos o maior percen- das na década de 90. Em trabalhos anteriores, tual dos trabalhadores do terciário especiali- havíamos detectado o enorme impacto da cri- 6 zado e do terciário não especializado. Apenas se econômica dos anos 80 sobre esse mercado. no Rio de Janeiro o peso dos prestadores de A queda, em termos relativos, dos operários serviços especializados (em torno de 11,5%) da indústria ocorreu, na chamada “década era superior ao dos trabalhadores do comércio perdida”, em todas as metrópoles, no entanto (em torno de 9,5%). Nas demais metrópoles, ela foi mais acentuada em São Paulo, onde a os dois percentuais eram muito semelhantes. participação dessa categoria passou de 32% São Paulo e Belo Horizonte também exi- dos ocupados, em 1980, para 27%, em 1991. biam percentuais relativamente elevados (em A metrópole mais operária do país perdeu seu torno de 19%) dos ocupados no terciário es- lugar para Porto Alegre, onde, no final dos pecializado, porém apenas a metrópole minei- anos 80, os operários representavam 29% do ra mantinha o mesmo patamar para o terciário total dos ocupados. Belo Horizonte também se não especializado. Em São Paulo, essa última destacou em relação ao processo de desindus- categoria tinha menor peso (16,2%). trialização, ao apresentar um decréscimo no Observando a categoria dos trabalhado- peso dos trabalhadores da indústria de 29% res do terciário não especializado, onde foram para 25%, no mesmo período. Nesse sentido, agrupadas as ocupações que exigem a menor as três metrópoles citadas, se comparadas qualificação dentro da estrutura social e onde com a região do Rio de Janeiro, onde encon- a informalidade nas relações de trabalho é pre- tramos maiores percentuais dos trabalhadores dominante, as metrópoles do Rio de Janeiro e manuais do terciário, foram mais afetadas por Belo Horizonte destacam-se: esse conjunto de essa dimensão da crise.7 trabalhadores representava cerca de 18,5% Examinando as mudanças nas estruturas da população ocupada de ambas as regiões. sócio-ocupacionais entre 1991 e 2000, verifi- Porém, não se pode desconsiderar que os camos que o fenômeno da desindustrialização 16,2% desses trabalhadores residindo na me- atravessou os anos 90: em todas as metrópo- trópole de São Paulo equivaliam a 1.149.703 les houve queda no percentual dos trabalha- ocupados. Entre os não especializados, os em- dores do secundário, com destaque para São pregados domésticos atingiam cifras em torno Paulo, que apresentou queda em três pontos de 10% em Belo Horizonte, e os ambulantes e percentuais. A compensação foi o aumento re- biscateiros representavam 4,3% dos ocupados lativo, nas quatro regiões, na participação dos na metrópole do Rio de Janeiro. Porto Alegre ocupados nos serviços auxiliares da indústria destaca-se em função da menor participação (onde predomina o setor de transporte), com do terciário não especializado. destaque para São Paulo. Quanto à indústria 70 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano da construção civil, as alterações mais signifi- Em contraposição à forte diminuição re- cativas foram no Rio de Janeiro e Porto Alegre, lativa dos operários da indústria e das ocupa- com aumento relativo (Quadro 2). ções médias, observamos o aumento generali- A segunda grande categoria que apre- zado na participação dos trabalhadores do ter- sentou queda relativa em todas as metrópoles ciário especializado e dos profissionais de nível foi a que reúne as ocupações médias. Também superior, tendência que já estava em curso na aqui, é necessário examinarmos as mudanças década de 80. É possível que uma parte do em cada categoria que compõe o grupo. A re- operariado da indústria de transformação te- dução da participação das ocupações médias nha sido absorvida pelo setor terciário especia- é explicada, em primeiro lugar, pela queda em lizado, especialmente pelo setor de serviços, todas as regiões das ocupações de escritório, que cresceu relativamente mais do que o setor que em 1991 representavam entre 11,9% e de comércio. O percentual dos trabalhadores 14% do total de ocupados, e em 2000, entre do comércio sofreu pouca alteração em todas 9,2% e 10,6%. Outra categoria com queda em as metrópoles, mantendo-se entre 8,4% e todas as metrópoles foram as ocupações de 9,7%. Por outro lado, os prestadores de servi- supervisão. Ainda em relação às ocupações ços especializados tiveram aumento acima de médias, duas categorias apresentaram aumen- dois pontos percentuais em todas as regiões e to relativo em todas as regiões: as ocupações tornaram-se a categoria com o maior peso na técnicas e as ocupações médias de saúde e estrutura social do Rio de Janeiro. São Paulo, educação. Porto Alegre e Belo Horizonte apresentaram Quadro 2 – Diferença em pontos percentuais do peso de cada grande grupo de CATs na composição da estrutura sócio-ocupacional das RMs, entre 1991 e 2000 Dirigentes Profissionais de nível superior Pequenos empregadores Ocupações médias Trabalhadores do terciário especializado Trabalhadores do secundário Trabalhadores do terciário não especializado Agricultores São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Porto Alegre Fonte: Censos demográficos de 1991 e 2000; Observatório das Metrópoles. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 71 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella aumento relativo dos prestadores não especializados, em função principalmente da elevação do peso dos ambulantes e biscateiros. Cabe A localização das categorias sociais no espaço urbano destacar a particularidade de São Paulo em relação às demais metrópoles: os trabalhadores Buscaremos, a seguir, nos aproximar das domésticos passaram de 6,3% para 7,2% e os questões iniciais que orientaram o presente ambulantes e biscateiros, de 2,1% para 3,7%. estudo comparativo, introduzindo na análise Embora em todas as metrópoles tenha ocor- o padrão de distribuição espacial das catego- rido um aumento relativo dos ambulantes e rias sócio-ocupacionais no interior das metró- biscateiros, apenas em São Paulo os trabalha- poles. Para tanto, utilizaremos uma tipologia dores domésticos apresentaram elevação no socioespacial composta por quatro tipos de percentual. Nas demais, os percentuais pouco área: “superior”, “médio”, “operário” e “po- se alteraram. pular”. 8 Examinaremos o padrão de concen- Quanto aos profissionais de nível supe- tração territorial das categorias ocupacionais rior, a crise não bloqueou a expansão dos pos- e o grau de homogeneidade social do terri- tos de trabalho de mais alta qualificação, mas tório como representação das estratégias de apenas os postos vinculados ao setor público. localização das classes sociais no espaço me- Se olharmos o comportamento das quatro ca- tropolitano. tegorias que formam o grupo dos profissionais, Numa caracterização geral de cada um fica claro que não foram os estatutários nem dos tipos acima referidos, levando em conta o os professores as categorias responsáveis pelo perfil sócio-ocupacional predominante em ca- aumento relativo dos profissionais em todas as da agrupamento, podemos dizer que: as áreas metrópoles. Na realidade, os estatutários apre- de tipo “superior” se definem pela maior con- sentaram queda relativa e os professores man- centração e maior peso relativo das categorias tiveram um percentual próximo do encontrado dos dirigentes e dos profissionais de nível supe- em 1991. O aumento ocorreu entre os demais rior, sendo que, em alguns casos, os pequenos profissionais, tanto entre os autônomos quanto empregadores e as ocupações médias dividem entre os empregados. Em geral, os percentuais importância com elas. As áreas de tipo “mé- sofreram um aumento de 100%. dio” são marcadas por uma forte presença das Por fim, examinando as mudanças nas ocupações médias, muito embora elas não se grandes categorias dos dirigentes e dos pe- encontrem tão concentradas num determinado quenos empregadores, a principal tendência tipo como as demais categorias, uma vez que observada no conjunto das metrópoles foi a uma das características dos estratos médios é queda relativa dos grandes e pequenos empre- a sua maior dispersão residencial no território. gadores e um pequeno aumento no peso dos Essa dispersão revela misturas sociais varia- dirigentes dos setores público e privado. Ape- das, seja com as categorias de profissionais, nas em São Paulo houve queda no percentual seja com as ocupações terciárias ou secundá- dos dirigentes do setor privado (Quadro 2). rias. Já o tipo “operário” define os espaços 72 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano onde a moradia dos trabalhadores da indústria das elites, podemos trabalhar, no caso do Rio tem significado estatístico relevante. Quando de Janeiro, com uma escala territorial menor os operários compartilham a área de residên- do que a de São Paulo, delimitando com mais cia com outros setores sociais, isso ocorre, precisão os espaços dessa classe, sem perder- via de regra, com os setores populares, repre- mos a consistência estatística garantida pela sentados pelos trabalhadores manuais pouco alta densidade domiciliar. qualificados, da construção civil e do terciário A baixa densidade desse tipo de bairro não especializado. Estes últimos, por sua vez, em São Paulo provoca o espraiamento das se constituem nas categorias definidoras das elites por uma extensão territorial maior e, áreas de tipo “popular”. portanto, uma delimitação espacial menos A primeira grande distinção entre as re- precisa socialmente, ou seja, áreas menos giões é a maior presença das áreas superiores homogêneas. O Quadro 3 mostra o perfil mais na metrópole de São Paulo, tanto em termos diversificado das áreas superiores em São da extensão territorial (número de áreas), Paulo, se comparado com os perfis do Rio de quanto do contingente de ocupados nessas Janeiro, Belo Horizonte e, em menor propor- áreas: em 2000, 20,5% do total das áreas ção, de Porto Alegre: entre os paulistas, ape- eram do tipo superior e 20,5% da população nas 24,4% dos residentes nessas áreas eram 9 ocupada residia nesse tipo de área. No Rio de dirigentes e profissionais, enquanto 32% eram Janeiro, esses dois percentuais eram 8,8% e trabalhadores manuais. Ante as outras três 12,4%, respectivamente (Quadro 3 e Mapas 1 metrópoles, as áreas superiores em São Paulo e 2). A explicação poderia ser o peso relativa- eram mais extensas e menos exclusivas, nos mente maior das classes superiores na estru- levando a pensar que o poder da classe domi- tura social de São Paulo, gerando uma maior nante paulista de se apropriar dos investimen- demanda por espaço. No entanto, já vimos tos públicos no urbano beneficiou um contin- que o peso dos dirigentes e profissionais na gente proporcionalmente maior dos segmen- estrutura social paulista era inferior ao encon- tos sociais menos favorecidos e residentes nas trado na estrutura do Rio de Janeiro. A expli- mesmas áreas. Outra particularidade de São cação, então, está no padrão de ocupação das Paulo soma-se a essa: as áreas superiores ul- áreas mais valorizadas em cada metrópole: trapassam os limites da capital, sendo encon- em São Paulo, parte significativa dessas áreas tradas em outros oito municípios da região, é de baixa densidade, abrigando casas unifa- tais como Santo André e Guarulhos. No Rio de miliares, enquanto no Rio de Janeiro as clas- Janeiro, apenas os municípios de Niterói e No- ses superiores moram em apartamentos con- va Iguaçu abrigavam áreas com esse perfil. centrados em bairros de alta densidade. Na Belo Horizonte apresentava, em 2000, metrópole paulista, apenas 34% do estoque as áreas superiores mais exclusivas, onde 38% domiciliar das áreas superiores era de aparta- dos residentes ocupados eram dirigentes e mentos em 2000, enquanto no Rio de Janeiro profissionais. No Rio de Janeiro, essas catego- esse percentual alcançava 81%. Consequen- rias representavam 35% dos moradores nesse temente, ao analisarmos as áreas residenciais tipo de área, e em Porto Alegre, 30%. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 73 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella Mapa 1 – Região Metropolitana de São Paulo – 2000 Tipologia socioespacial por Área de Expansão Demográfica (AED) – 2000 Limite municipal Superior Médio Operário Popular Agrícola Fonte de dados e base cartográfica: IBGE, 2000. Elaboração cartográfica: OPUR/Proex/PUC Minas – Rogério Sant’Anna de Souza – 2009. Mapa 2 – Região Metropolitana do Rio de Janeiro – 2000 Tipologia socioespacial por Área de Expansão Demográfica (AED) – 2000 Limite municipal Superior Médio Operário Popular Fonte de dados e base cartográfica: IBGE, 2000. Elaboração cartográfica: OPUR/Proex/Puc Minas – Rogério Sant’Anna de Souza – 2009. 74 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano Mapa 3 – Região Metropolitana de Belo Horizonte – 2000 Tipologia socioespacial por Unidade Espacial Homogênea (UEH) – 2000 Limite municipal Municípios não considerados na comparação Superior Médio Operário Popular Fonte de dados e base cartográfica: IBGE, 2000. Elaboração cartográfica: OPUR/Proex/Puc Minas – Rogério Sant’Anna de Souza – 2009. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 75 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella Mapa 4 – Região Metropolitana de Porto Alegre – 2000 Tipologia socioespacial por Área de Expansão Demográfica (AED) – 2000 Limite municipal Municípios não considerados na comparação Superior Médio Operário Popular Agrícola Fonte de dados e base cartográfica: IBGE, 2000. Elaboração cartográfica: OPUR/Proex/Puc Minas – Rogério Sant’Anna de Souza – 2009. Quadro 3 – Perfil sócio-ocupacional médio das áreas de tipo “superior” 1991 e 2000 Perfil médio das áreas superiores – 1991 e 2000 Categorias socioocupacionais São Paulo Perfil 1991 Dirigentes Rio de Janeiro Perfil 2000 Perfil 1991 Perfil 2000 Belo Horizonte Perfil 1991 Perfil 2000 Porto Alegre Perfil 1991 Perfil 2000 5,1 4,3 5,8 4,9 8,8 7,4 4,4 4,0 13,0 20,1 24,0 30,1 22,9 31,6 21,4 25,8 5,7 6,5 5,7 7,0 9,7 9,5 6,2 6,8 Categorias médias 38,0 36,8 35,8 33,3 34,1 33,4 41,8 37,5 Trabalhadores do terciário 12,3 14,1 8,1 9,7 5,8 6,4 9,7 12,1 Trabalhadores do secundário 13,2 8,6 5,4 4,5 3,8 2,7 6,4 5,7 Trabalhadores do terciário não especializado 12,1 9,3 14,7 10,2 14,7 8,8 10,0 7,8 0,5 0,2 0,4 0,3 0,1 0,2 0,2 0,2 100,0 Profissionais de nível superior Pequenos empregadores Agricultores Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Nº de áreas superiores 183 167 41 39 10 8 15 17 % da pop. ocupada nas áreas superiores 27,9 20,5 13,7 12,4 6,5 13,3 12,8 8,8 Fonte: Censo Demográfico de 1991 e 2000. IBGE. 76 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano Ainda que em 2000 o grau de exclusi- daquele grupo. Quando observamos a locali- vidade das áreas superiores variasse entre as zação desses segmentos médios no território, metrópoles, as quatro regiões apresentaram fica evidente o seu caráter difuso. Tal conjun- a mesma tendência à elitização nessas áreas, to de trabalhadores estava presente, com al- ao longo dos anos 90. Significa dizer que o guma relevância, em todos os tipos de área peso dos dirigentes e profissionais aumentou (Quadros 3, 4, 5 e 6). Mesmo nas áreas po- relativamente, enquanto o dos trabalhadores pulares, sua participação variava entre 16%, do terciário não especializado e o dos operá- em Belo Horizonte e 20%, em São Paulo, ga- rios sofreu queda relativa. Na realidade, parte rantindo certo grau de diversidade social nas desse processo de elitização é explicada pela áreas mais precárias em termos de recursos diminuição das empregadas domésticas que ti- urbanos. Além de se espalhar pelo território nham como residência principal a casa de seus metropolitano, esse segmento se concentrou patrões. mais em determinadas áreas, o bastante pa- São Paulo apresentava ainda outra ca- ra marcar tais áreas como tipicamente mé- racterística que a diferenciava das demais me- dias. No Rio de Janeiro e em São Paulo, mais trópoles. Abrigava, em 2000, a mais equilibra- de um terço da população ocupada residia, da distribuição da população ocupada entre os tanto em 1991 quanto em 2000, nesse tipo quatro tipos de área (superior, médio, operário de área. Em Porto Alegre e Belo Horizonte, e popular): cerca de um terço em áreas médias, cerca de um quarto dos trabalhadores mora- outro um terço em áreas operárias, e os 40% vam em áreas médias em 2000, no entanto, restantes divididos entre as áreas superiores as duas regiões apresentaram tendências (20%) e populares (18%). No Rio de Janeiro, opostas na década de 90: a metrópole gaú- 37% dos trabalhadores residiam em áreas po- cha teve um surpreendente aumento de áreas pulares e 34% em áreas médias. Em Belo Hori- médias no período – de 18 para 35 áreas –, zonte, 49% residiam em áreas operárias e em enquanto a metrópole mineira viu encolher Porto Alegre, 45%, nesse mesmo tipo de área. esse tipo de área e o percentual de ocupados Ou seja, os espaços operários marcavam mais nele residindo. No caso de Porto Alegre, esse fortemente a territorialidade das metrópoles aumento de áreas médias foi acompanhado gaúcha e mineira, enquanto no Rio de Janeiro, pela queda do número de áreas populares, o áreas médias e populares partilhavam a prima- que nos faz inferir que as categorias médias zia no território. se espalharam por territórios que eram tipica- Na primeira parte do texto buscamos mente populares em 1991, alterando o perfil qualificar de forma sintética o perfil social pre- social de parte desses territórios. Vale lem- dominante em cada metrópole e vimos que, brar que, nas quatro metrópoles, o conjunto em 2000, as categorias médias apareciam co- das categorias médias apresentou, nos anos mo o grupo sócio-ocupacional de maior peso 90, queda relativa. Portanto, essa difusão dos na estrutura social das regiões, com exceção setores médios em Porto Alegre não resultou de Porto Alegre, onde os operários alcança- da elevação do contingente de trabalhadores vam um percentual um pouco superior ao nesses setores, mas de novas estratégias de Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 77 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella localização residencial acionadas por estes. Já à autossegregação das elites ou a segregação em Belo Horizonte, a diminuição de áreas mé- imposta às classes populares, temos como con- dias ocorreu juntamente com o aumento de traponto bairros marcados pela diversidade so- áreas populares e, em menor escala, de áreas cial. Porém, essas áreas médias têm sido muito operárias. Nesse caso, a retração dos setores pouco estudadas, justamente por estarem “no médios foi acompanhada pela expansão dos meio” das polarizações socioespaciais, estas prestadores de serviço e trabalhadores do co- sim objetos privilegiados pelos estudos urba- mércio em áreas médias, transformando parte nos contemporâneos. dessas áreas em áreas tipicamente populares. Encontramos em Porto Alegre e Rio de Mesmo com redução, as áreas médias ainda Janeiro uma relação direta entre seus perfis marcavam fortemente o espaço metropolita- sócio-ocupacionais e seus respectivos padrões no mineiro, em 2000. socioterritoriais: na metrópole mais operária Esses territórios, que denominamos do país, com 27% de sua população ocupada de “tipo médio”, são os que apresentam o no setor secundário, os espaços operários pre- maior equilíbrio na distribuição das categorias dominavam em 2000, enquanto na metrópole sócio-ocupacionais, sendo, portanto, os mais fluminense, de perfil terciário, o maior peso das próximos do que projetamos como distribuição categorias médias (28%) e dos trabalhadores ótima das classes sociais no espaço urbano. do terciário especializado (21%) sustentava a Quando analisamos criticamente a tendência primazia das áreas médias e populares. Quadro 4 – Perfil sócio-ocupacional médio das áreas de tipo “médio” 1991 e 2000 Perfil médio das áreas superiores – 1991 e 2000 Categorias socioocupacionais São Paulo Perfil 1991 Rio de Janeiro Perfil 2000 Perfil 1991 Perfil 2000 Belo Horizonte Perfil 1991 Perfil 2000 Porto Alegre Perfil 1991 Perfil 2000 Dirigentes 1,4 1,0 1,2 1,0 1,6 1,7 2,1 1,8 Profissionais de nível superior 4,0 7,5 7,6 10,5 7,5 12,7 10,5 10,1 Pequenos empregadores 2,9 2,6 3,1 2,9 4,3 4,2 5,2 4,1 Categorias médias 37,0 33,6 40,8 37,1 38,8 35,1 42,0 34,8 Trabalhadores do terciário 15,9 20,1 16,4 20,5 15,1 18,0 14,7 18,6 Trabalhadores do secundário 27,5 21,5 17,8 15,0 19,0 14,9 14,5 16,2 Trabalhadores do terciário não especializado 10,8 13,6 12,7 12,8 13,4 13,2 10,8 14,2 0,5 0,2 0,5 0,2 0,3 0,3 0,3 0,4 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Nº de áreas médias 212 251 132 143 42 38 18 35 % da pop. ocupada nas áreas médias 29,6 31,6 35,2 34,1 36,5 27,4 13,4 24,9 Agricultores Total Fonte: Censo Demográfico de 1991 e 2000. IBGE. 78 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano No caso de Belo Horizonte, embora qua- tipicamente operárias. Nesse ponto, São Paulo se metade da população ocupada residisse em aproximava-se mais de Porto Alegre, na medi- áreas de tipo operário, o peso dos operários na da em que abrigava áreas operárias com eleva- estrutura social da metrópole (23%) era infe- do percentual de trabalhadores do secundário rior ao das categorias médias (26%). Uma ex- (34%), embora esse tipo de área representas- plicação possível seria a maior dispersão terri- se apenas 29% do total de áreas na metrópole torial dos operários marcando socialmente um paulista. maior número de áreas. Comparando a metró- Recuperando a tese de que a alta homo- pole mineira e a gaúcha, vemos que a primeira geneidade de bairros mais tipicamente operá- continha maior percentual de áreas operárias e rios tem algum nexo com a coesão e o poder de ocupados nessas áreas, porém essas eram de classe, podemos pensar que Porto Alegre e bem mais heterogêneas do que aquelas do São Paulo guardam condições socioterritoriais mesmo tipo, localizadas em Porto Alegre. Em mais propícias à reprodução e ao exercício Belo Horizonte, apenas 28% dos trabalhado- desse poder por parte dos trabalhadores da res residentes nas áreas operárias eram ope- indústria, se comparadas com as de Belo Hori- rários, enquanto em Porto Alegre, esse per- zonte e Rio de Janeiro. Porém, essa conjugação centual alcançou 39% (Quadro 5). Portanto, entre território e poder está condicionada às a região mineira abrigava relativamente mais condições de trabalho e mais precisamente ao áreas operárias, porém tais áreas eram menos grau de estabilidade do trabalho. Em todas as Quadro 5 – Perfil sócio-ocupacional médio das áreas de tipo “operário” 1991 e 2000 Perfil médio das áreas operárias – 1991 e 2000 Categorias socioocupacionais São Paulo Perfil 1991 Rio de Janeiro Perfil 2000 Perfil 1991 Perfil 2000 Belo Horizonte Perfil 1991 Perfil 2000 Porto Alegre Perfil 1991 Perfil 2000 Dirigentes 0,8 0,4 0,5 0,4 0,5 0,5 1,0 Profissionais de nível superior 1,8 2,8 2,2 3,5 1,6 3,1 1,9 3,0 Pequenos empregadores 1,7 1,1 1,6 1,4 1,7 1,7 2,9 2,4 25,8 21,8 24,9 25,9 23,4 23,7 24,6 22,8 Categorias médias 0,8 Trabalhadores do terciário 16,3 21,0 19,6 24,1 18,3 21,2 14,5 17,3 Trabalhadores do secundário 37,7 34,4 29,2 24,6 32,9 28,8 42,0 39,3 Trabalhadores do terciário não especializado 15,1 18,3 21,4 19,8 20,4 19,5 11,9 13,4 0,8 0,3 0,6 0,3 1,3 1,6 1,2 1,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Nº de áreas operárias 283 242 152 70 54 59 73 74 % da pop. ocupada nas áreas operárias 29,1 28,3 46,6 16,5 44,8 49,2 42,5 44,5 Agricultores Total Fonte: Censo Demográfico de 1991 e 2000. IBGE. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 79 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella metrópoles estudadas, verificou-se, nos anos tipicamente populares, ou seja, com maior 90, um significativo aumento no percentual peso dos trabalhadores manuais dos serviços e de trabalhadores autônomos sem Previdência, comércio. Nesse universo, a metrópole do Rio indicando uma forte precarização das relações de Janeiro destacava-se das demais metrópo- de trabalho e, consequentemente, crescente les com um percentual de áreas populares bem instabilidade da renda. Soma-se a esse quadro mais elevado: 43% das áreas, em 2000, en- o significativo aumento da taxa de desempre- quanto nas outras três regiões esse percentual go no período.10 Sem reduzir a importância que ficou entre 13% e 17%. O que ocorreu na me- os bairros mais tipicamente operários podem trópole fluminense foi uma alteração no perfil ter para a manutenção ou reconstrução dos social de muitas áreas operárias, com a queda interesses coletivos por parte dos trabalhado- relativa dos operários da indústria e o aumento res, sabemos, através de uma já vasta litera- dos prestadores de serviço e dos comerciários, tura, que a crescente precarização do trabalho tornando essas áreas tipicamente populares: enfraquece as possibilidades da ação coletiva em 1991, o Rio de Janeiro abrigava 152 áreas baseada numa identidade de classe. O bairro operárias e 116 áreas populares; em 2000, operário, nesse contexto, guardaria ainda sua eram 70 do primeiro tipo e 191 do segundo. função de facilitar a ajuda mútua para a repro- São Paulo sofreu o mesmo processo, mas em dução dos trabalhadores e suas famílias. menores proporções. Porém, em ambas as me- Por fim, examinemos os espaços popu- trópoles não foram apenas os trabalhadores lares11 e, em especial, o quanto esses espa- do comércio e serviços que aumentaram relati- ços se tornaram, ao longo dos anos 90, mais vamente sua presença nos espaços populares, Quadro 6 – Perfil sócio-ocupacional médio das áreas de tipo “popular” 1991 e 2000 Perfil médio das áreas populares – 1991 e 2000 Categorias socioocupacionais São Paulo Perfil 1991 Rio de Janeiro Perfil 2000 Perfil 1991 Perfil 2000 Belo Horizonte Perfil 1991 Perfil 2000 Porto Alegre Perfil 1991 Perfil 2000 Dirigentes 0,8 0,4 0,5 0,3 0,5 0,5 0,7 Profissionais de nível superior 1,5 2,7 1,4 2,2 1,8 2,1 2,7 2,4 Pequenos empregadores 1,4 1,0 1,3 1,0 1,6 1,1 2,3 1,3 Categorias médias 22,2 19,9 16,6 18,0 13,9 16,0 26,5 19,4 Trabalhadores do terciário 17,6 21,9 18,6 23,3 13,0 19,5 18,5 20,8 Trabalhadores do secundário 34,2 29,1 31,9 28,2 30,7 30,7 28,1 29,6 Trabalhadores do terciário não especializado 20,7 24,4 26,8 25,8 30,2 28,4 20,1 24,0 1,7 0,7 2,9 1,1 8,2 1,7 1,2 2,2 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 Nº de áreas populares 125 136 116 191 15 % da pop. ocupada nas áreas populares 12,8 17,9 Agricultores Total 4,6 37,0 9,8 0,4 16 43 25 16,8 28,6 15,5 Fonte: Censo Demográfico de 1991 e 2000. IBGE. 80 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano mas também os profissionais de nível superior vimos anteriormente que ocorreu uma diminui- e, no caso do Rio de Janeiro, ainda as cate- ção significativa no número de áreas populares gorias médias. Em Belo Horizonte, apenas as na metrópole gaúcha (de 43 para 25 áreas) em categorias médias acompanharam o aumento função do aumento na participação das cate- relativo dos trabalhadores do terciário, embora gorias médias e superiores, elevando o perfil com menos intensidade. desses espaços. Nesse sentido, não podemos Em síntese, nas três metrópoles do su- afirmar que as áreas caracterizadas como po- deste, a redução dos empregos industriais al- pulares em 1991 apresentaram tendência à terou a composição social das áreas populares, proletarização, pois estamos analisando, em transformando parte dos operários em traba- 2000, apenas 25 das 43 áreas. Poderíamos in- lhadores do terciário, principalmente do terciá- ferir que houve diversificação social nos espa- rio especializado, entre estes, os cozinheiros, ços populares de Porto Alegre se levarmos em os garçons, as manicures, etc. Em 1991, os conta que em torno de um terço das áreas se trabalhadores do terciário não especializado tornaram tipicamente médias. (domésticas, porteiros, vigias, ambulantes), juntamente com os operários da construção civil, marcavam socialmente os espaços populares. Essas categorias juntas equivaliam, em Conclusão Belo Horizonte, a 46% dos ocupados, no Rio de Janeiro, a 40% e, em São Paulo, a 32%. Em Como conclusão, quatro evidências merecem 2000, esses percentuais sofreram queda, em- ser apontadas e aprofundadas em estudos bora permanecessem acima dos percentuais futuros. A primeira refere-se às estratégias de das demais ocupações manuais. Essas alte- localização residencial das classes superiores, rações no interior do universo popular não partindo-se do pressuposto de que pelo menos impediram que categorias superiores e mé- determinadas frações dessas classes usam o dias ganhassem posição e contribuíssem para território como mecanismo de reprodução do uma relativa diversificação social dos espaços seu poder material e simbólico. Duas tendên- populares. cias aparentemente antagônicas foram verifi- Os espaços populares da metrópole de cadas: as áreas superiores ficaram mais “exclu- Porto Alegre apresentaram tendências distin- sivas”, através do aumento na participação dos tas das encontradas nas demais metrópoles, profissionais nessas áreas e, ao mesmo tempo, ou seja, os trabalhadores do terciário não es- essa mesma categoria ficou menos concentra- pecializado juntamente com os operários da da nessas áreas, aumentando sua presença construção ganharam posição relativa nesses nos espaços médios e populares. As duas ten- espaços, passando de 30% para 37% do to- dências podem estar expressando a diversida- tal de ocupados. Os prestadores de serviços de social interna ao grupo dos profissionais de especializados também aumentaram relati- nível superior e, consequentemente, a diversi- vamente, evidenciando um claro processo de dade de estratégias de localização acionadas proletarização das áreas populares. Porém, por estes. Profissionais de mais alta renda Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 81 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella permaneceram ou se deslocaram para as áreas dessas áreas residenciais, através do aumento mais valorizadas das metrópoles, alimentando relativo, seja dos trabalhadores do terciário,12 a crescente valorização desses espaços e, por seja das categorias superiores e médias. Não consequência, impondo limites para a entrada sabemos, nesses casos, em que medida a de outros segmentos sociais com menor poder maior diversidade social nos bairros operários econômico. Outros profissionais, com menor tende a romper antigas formas de solidarieda- poder de compra, permaneceram em seus bair- de de classe, enfraquecendo o poder da classe ros de origem ou se deslocaram na direção das operária, e/ou tende a fortalecer novas formas novas fronteiras de expansão do capital imobi- de interação interclasses. Trata-se de um cami- liário nas áreas periféricas. nho analítico a percorrer. A segunda evidência diz respeito ao uni- A quarta e última evidência contraria a verso diversificado e amplo de trabalhadores tese do crescente isolamento e homogenei- a que denominamos categorias médias. Ao zação das áreas populares periféricas. Vimos longo dos anos 90, as ocupações de escritório que essas áreas, em seu conjunto, estão mais mais tradicionais, como secretárias e recepcio- diversificadas socialmente em função da des- nistas, sofreram significativa retração nas qua- concentração espacial das categorias superio- tro metrópoles, levando o conjunto das ocupa- res e médias. É certo que tal desconcentração ções médias a reduzir sua participação relativa é acompanhada pela valorização do preço da na estrutura social. Porém, esse universo de terra e dos imóveis, com processos cíclicos de trabalhadores com pelo menos o segundo grau expulsão dos mais pobres. É certo, também, completo manteve-se como principal categoria que a proximidade física não implica, necessa- ocupacional no que se refere ao contingente riamente, a interação entre classes, podendo, de ocupados e, assim como a categoria dos ao contrário, gerar mecanismos de distancia- profissionais de nível superior, dispersou-se mento social, tais como a estigmatização dos pelo território metropolitano. Mesmo com re- setores populares. lativa redução das categorias médias, ocorreu Ao investigarmos áreas específicas nos um aumento no número de áreas tipicamente espaços periféricos, encontraremos, certa- médias em função dessa dispersão em direção mente, processos diferenciados daqueles pos- aos espaços mais periféricos, indicando ten- síveis de serem percebidos para a média des- dência a maior diversidade social em partes ses territórios como um todo. Aqui, tentamos desses espaços. apresentar tendências de caráter estrutural e A terceira evidência trata das mudanças algumas hipóteses explicativas para os fenô- observadas nas áreas operárias, especialmente menos observados. Porém, mais do que res- aquelas localizadas em Porto Alegre e São Pau- ponder às questões inicialmente levantadas, o lo, onde, em 1991, ainda encontrávamos áreas presente estudo possibilitou a formulação de mais homogeneamente operárias, ou seja, com novas perguntas sobre a vida metropolitana, cerca de 40% dos trabalhadores no setor se- que somente o diálogo entre pesquisas quan- cundário. Como esperado, a retração dos em- titativas e qualitativas possibilitará respostas pregos industriais no período alterou o perfil consistentes. 82 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Da hierarquia de classes à organização social do espaço intraurbano Luciana Corrêa do Lago Arquiteta Urbanista. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Rosetta Mammarella Filósofa e Socióloga. Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. [email protected] Notas (1) Tal estrutura foi construída pela rede nacional de pesquisadores Observatório das Metrópoles, sediada no IPPUR/UFRJ (www.observatoriodasmetropoles.net). Na sua construção, agrupamos as ocupações discriminadas nos censos demográficos de 1991 e 2000, em 24 categorias, procurando obedecer aos seguintes princípios de divisão: capital (empregadores) e trabalho (não empregadores), grande (mais de 11 empregados) e pequeno capital, trabalho assalariado e trabalho autônomo, trabalho manual e não manual e a vidades de controle e de execução. Também foi levada em consideração a diferenciação entre setores da produção, como o Secundário e o Terciário, e, finalmente, entre os ocupados no Setor Secundário, foi feita uma dis nção entre os setores modernos e tradicionais da indústria. Ver: Ribeiro, L. C. Q. e Lago, L. C. (2000). (2) As ocupações de maior peso entre os profissionais de nível superior são advogados, médicos e den stas, contadores, engenheiros e analistas de sistema. (3) Trata-se de um grupo sócio-ocupacional bastante heterogêneo, reunindo secretárias, escriturários, recepcionistas, gerentes, técnicos, auxiliares de enfermagem e policiais, entre as principais ocupações. As ocupações de maior peso entre os técnicos são os corretores, desenhistas, técnicos em eletrônica e em programação. (4) A categoria dos trabalhadores do terciário especializado agrupa os trabalhadores do comércio (vendedores) e os prestadores de serviços especializados cujas ocupações de maior peso são as de garçons, cozinheiros, vigilantes e trabalhadores nos serviços de embelezamento. (5) As ocupações de maior peso entre os operários da construção são as de pedreiro, ajudantes de obra, marceneiros e pintores. (6) A categoria dos trabalhadores do terciário não especializado agrupa os ambulantes, as empregadas domés cas e os prestadores de serviços não especializados cujas ocupações de maior peso são as de porteiros, vigias e trabalhadores de limpeza de edi cios e ruas. (7) A desindustrialização é apenas uma das dimensões da crise econômica iniciada nos anos 80. A precarização das relações de trabalho e o achatamento salarial são outras dimensões que afetam diretamente as condições urbanas de vida dos trabalhadores. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 83 Luciana Corrêa do Lago e Rosetta Mammarella (8) Para cada metrópole foi construída uma pologia socioespacial referente ao censo de 2000 e outra, ao de 1991, através de uma análise fatorial por correspondência baseada no perfil sócioocupacional de cada uma das áreas em que cada região foi subdividida: São Paulo com 812 áreas, Rio de Janeiro com 443, Belo Horizonte com 121 e Porto Alegre com 156. A iden ficação dos pos está fundada na relação do perfil médio de cada área com o perfil médio da metrópole como um todo. Nesse sen do, cada po expressa um determinado grau de homogeneidade social e de concentração das categorias sócio-ocupacionais num conjunto de áreas. (9) Em 1991, esses percentuais eram ainda maiores: 22,5% das áreas e 28% dos ocupados em áreas de po superior. (10) Na metrópole de São Paulo, a taxa de desemprego passou de 10,4% em 1992, para 13,2% em 2001; no Rio de Janeiro, de 7,1% para 12,7%; em Belo Horizonte, de 9,6% para 12,7%; em Porto Alegre, de 7,1% para 8,7% (dados PNAD/IBGE). (11) Nas quatro metrópoles, as áreas populares estavam localizadas majoritariamente nas periferias. Em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, um pequeno número correspondia às favelas em zonas mais centrais. Já no Rio de Janeiro, 16% das áreas populares, em 2000, estavam localizadas em favelas da capital, tanto nas zonas suburbanas quanto centrais. (12) Parte dos operários da indústria tornara-se prestador de serviço para o setor industrial, porém fora da fábrica. Nesse caso, o trabalhador muda de categoria ocupacional, mas permanece exercendo a mesma a vidade através de uma relação de trabalho mais precária, ou seja, como autônomo, sem estabilidade de renda. Referências BOURDIEU, P. (1997). “Efeitos do lugar”. In: BOURDIEU, P. (coord.). A miséria do mundo. Petrópolis, Vozes. CALDEIRA, T. P. (1997). Enclaves for ficados: a nova segregação urbana. Novos Estudos CEBRAP, n. 47. KAZTMAN, R. (2001). Seducidos y abandonados: el aislamento social de los pobres urbanos. Revista de La Cepal, 75. OLIVEIRA, J. (2004). Mutações no mundo do trabalho: o (triste) espetáculo da informalização. Democracia viva. n. 21, abril/maio, pp. 6-13. RIBEIRO, L. C. Q. e LAGO, L. C. (1992). “Crise e mudança nas metrópoles brasileiras: a periferização em questão”. In: LEAL, M. C. et alii. Saúde, Ambiente e Desenvolvimento, v. 1, Hucitec-Abrasco, 1. ______ (2000). “O espaço social das grandes metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte.” Cadernos Metrópole, n. 4, pp. 9-32. SABATINI, F. (1998). “Reforma de los mercados de suelo en San ago, Chile,: efectos sobre os precios de la erra y la segregacion esapacial”, San ago do Chile, Série Azul, no. 24, Ins tuto de Estudios Urbanos, Pon ficia Universidad Catolica. Texto recebido em 4/nov/2009 Texto aprovado em 20/mar/2010 84 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 65-84, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Socio-territorial organization and residential mobility in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro Érica Tavares da Silva Resumo Este estudo se propõe a investigar tendências dos movimentos populacionais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, articulando-as às grandes transformações na organização social de seu território. A análise utiliza uma classificação por tipo da evolução socioespacial nas metrópoles que identificou as áreas segundo uma hierarquia ocupacional. Ao considerar a mobilidade residencial a partir desses tipos, o estudo investiga quais áreas têm se caracterizado por maior imigração e sob quais tipos de fluxos: núcleo-periferia; periferia-núcleo; periferia-periferia; intraestadual; interestadual. Os resultados mostram consideráveis diferenças na mobilidade espacial intrametropolitana conforme os tipos socioespaciais se modificam, aponta a relação entre os movimentos migratórios e os movimentos cotidianos para trabalho, revelando ainda que a segregação socioespacial está relacionada a uma segmentação da mobilidade. Palavras-chave: organização socioespacial; mobilidade; migração. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Abstract This article aims to investigate trends in population movements in the Metropolitan Region of Rio de Janeiro, linking them to major changes in the social organization of the territory. The analysis uses a classification by type of socio-spatial evolution in the metropolises that identified the areas according to an occupational hierarchy. Working with residential mobility, the study investigates which areas have been characterized by increased immigration, considering the types of movements (center-periphery, peripherycenter, periphery-periphery, intrastate, interstate). The results show considerable differences in intrametropolitan spatial mobility according to the socio-spatial types. Furthermore, they reveal the relationship between migratory movements and daily commuting, and also disclose that sociospatial segregation is related to the segmentation of mobility. Keywords: socio-spatial organization; mobility; migration Érica Tavares da Silva Introdução exclusão/fragmentação, que ficou evidente nos estudos sobre a relação centro-periferia nesta escala. Este estudo se propõe a investigar as transformações na dinâmica populacional da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), reflexão esta que se insere num conjunto de estudos sobre as grandes tendências na organização social do território metropolitano brasileiro. A ideia geral é partir de uma classificação socioespacial já existente e estudada para algumas áreas metropolitanas, que elaborou uma categorização do espaço interno das metrópoles, além de uma compreensão de sua composição, especialmente em termos de estrutura sócio-ocupacional e das mudanças ocorridas entre 1991 e 2000. A pesquisa à qual fazemos referência está explicitada no relatório “Tendências na organização social do território das metrópoles 1991-2000”,1 que considerou que [...] o perfil social de uma área apresenta-se como resultado das desigualdades econômicas e de poder entre as classes sociais, mas também exerce forte influência sobre as ações dos indivíduos ali residentes e dos demais agentes que atuam na metrópole. (Mammarella e Lago, 2009) Na América Latina, esse padrão fragmentado/excludente tem sido pensado em contraposição ao padrão desigual/integrado – centro-periferia – consolidado nos estudos urbanos como expressão e até mesmo como explicação da dinâmica de organização interna do espaço metropolitano (Caldeira, 1997; Ribeiro e Lago, 1992). A concentração do emprego, da moradia das classes médias e superiores e dos equipamentos e serviços urbanos nas áreas centrais e, consequentemente, as enormes carências que marcam os espaços periféricos sustentaram, até os anos 80, a visão dual da metrópole, em que a periferia evidenciava a distância física e social entre as classes sociais. Essa distância foi um dos mecanismos utilizados pelas nossas elites para a reprodução de seu poder econômico e simbólico. (Mammarella e Lago, 2009) Análises recentes sobre a organização socioeconômica do território metropolitano colocaram algumas evidências para a discussão desse modelo de organização. Obser vam-se indicativos de manutenção do modelo centroperiferia, entretanto, são constatadas simultaneamente algumas tendências de diversifica- Como aproximação para expressar as desi- ção. Outra constatação é a importância de gualdades econômicas e diferenciação de clas- relativizar o centro e a periferia apenas como ses sociais, temos trabalhado com a ocupação o município núcleo da região metropolitana das pessoas para uma hierarquização social e os demais municípios, pois essa diversifica- desses grupos que, por sua vez, contribui para ção aponta para alterações na escala de divi- a compreensão da organização espacial. são social do território metropolitano, saindo A análise do espaço metropolitano este- da macro para a microescala. Há surgimento ve considerando a divisão da metrópole entre de categorias superiores na escala de hierar- espaços de inclusão/integração e espaços de quização social em espaços considerados 86 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro populares, assim como aparecem/aumentam também territórios de favela ou concentração de pobreza em áreas mais elitizadas. Além disso, fatores históricos e políticos de cada região também parecem exercer influência nessa organização socioespacial. A diversificação do modelo núcleo-periferia vem ocorrendo em função dos efeitos combinados da segmentação dos mercados de trabalho, de moradias e da mobilidade urbana, destacando a estrutura de oferta dos transportes públicos (Observatório, 2009). Esses fatores têm operado conjuntamente na dinâmica de organização socioespacial, levando a uma complexidade crescente desse processo, em que há uma singularidade de fenômenos, ao invés de um processo macro e mais massificado como anteriormente. vulneráveis é um fator de contenção das possibilidades de ação desses segmentos. (Mammarella e Lago, 2009) Sobre a metodologia utilizada, a menor unidade espacial considerada foram as AEDs – Áreas de Expansão da Amostra –, unidades territoriais mínimas formadas através da reunião de setores censitários para disponibilização de microdados do Censo Demográfico de 2000; essa composição foi compatibilizada com a base de 1991. Para o núcleo da RMRJ, o município do Rio de Janeiro, os pesquisadores utilizaram um recorte espacial intraurbano que permitiu separar as favelas, portanto, em alguns casos são as AEDs, em outros são recortes que distinguem as favelas. Para a elaboração de uma hierarquia sócio-ocupacional e posterior tipologia dos espaços metropoli- Nesta introdução – apesar de traçarmos tanos, consideraram-se 24 categorias sócio- no trabalho um descrição analítica que consi- ocupacionais chamadas de CATs2 (reunidas em dera também os municípios – fazemos referên- 8 grandes grupos), que foram cruzadas com as cia ao estudo do qual partimos, uma vez que AEDs ou áreas homogêneas no Rio de Janeiro. nosso principal interesse será a análise da mo- Através de uma análise fatorial por correspon- bilidade residencial segundo os grandes tipos dência da distribuição das categorias sócio- socioespaciais. Portanto, essa tipologia elabo- ocupacionais por cada uma das áreas, seguiu- rada considera as formas de acesso à moradia se uma classificação hierárquica ascendente, como fator explicativo das tendências observa- chegando a diferentes agrupamentos de áreas das. Ao analisarem as tendências de segmen- com perfis semelhantes, que resultaram das tação socioespacial no território metropolita- distinções entre as estruturas ocupacionais e no, o objetivo das autoras foi dos processos de organização social do espaço [...] refletir sobre os efeitos da segmentação socioespacial nas relações de classe, partindo dos pressupostos de que: (a) a concentração das classes dominantes no território é uma estratégia de poder, (b) a concentração dos operários no território pode ser uma estratégia de poder e (c) a homogeneidade social em territórios com múltiplas carências e abrigando os segmentos mais Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 em cada metrópole. A partir dos indicadores selecionados (perfil sócio-ocupacional; distribuição relativa das categorias; e índice de densidade), os grupos de áreas foram nomeados segundo suas principais características sócio-ocupacionais internas e segundo as diferenciações que apresentam entre si. Como resultado, todas 87 Érica Tavares da Silva as regiões apresentaram uma hierarquia que passando a apresentar em 2000 delineamen- definiu os tipos socioespaciais superiores , tos de tipos médio e popular. médios, operários, populares e agrícolas; esses tipos foram subdivididos de acordo com as especificidades internas de cada agrupamento em cada uma das regiões metropolitanas.3 Para este trabalho, consideramos apenas a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Partindo assim deste estudo, consideramos que há diversos processos que impactam essa organização socioespacial do território metropolitano apresentada, como a reestruturação produtiva, as transformações no mercado de trabalho e no mercado imobiliário, etc. Nosso objetivo é realizar uma abordagem que atente também para os aspectos demográficos, neste caso, os movimentos populacionais, como contribuição para o entendimento dessas mudanças socioespaciais, assim como para apreender diferenças entre as próprias áreas consideradas. É preciso ressaltar que estes aspectos se influenciam mutuamente. Sendo assim, a partir do estudo relatado, na RMRJ foram identificados os tipos socioespaciais superiores, médios, operários, populares e agrícolas para 1991; já em 2000, não chegou a formar-se um grande tipo agrícola, ficando apenas os quatro primeiros. Para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), as autoras observaram que reduziram, consideravelmente, os espaços operários, mas ampliaram-se as áreas populares, em proporções semelhantes. A RMRJ em 1991 era predominantemente de tipos médio e operário, 88 O crescimento relativo tanto de áreas como de população nos tipos populares da metrópole fluminense revela que os pobres da metrópole não só concentraram sua moradia no espaço como ocuparam mais espaços em 2000. Ao mesmo tempo, o território dos tipos médios sofreu leve ampliação, mas com perda relativa de população. Como característica central, podemos dizer que a Região Metropolitana do Rio de Janeiro não só se popularizou como foi a que mais se desproletarizou entre o conjunto das seis regiões consideradas, uma vez que registrou perda significativa tanto de áreas como de população no tipo operário. Comparando as duas maiores metrópoles do Brasil, observa-se, portanto, que tanto a paulista como a fluminense apresentaram diminuição dos espaços operários, mas, no Rio de Janeiro, a polarização social ficou mais acentuada. (Mammarella e Lago, 2009, p. 19) Pela composição, é possível notar que as áreas superiores passaram a apresentar maior participação ainda das profissões com maior nível na hierarquia social, por sua vez, as áreas populares também apresentaram maior participação de população ocupada nas categorias do secundário e do terciário, do terciário não especializado também. Nosso objetivo é analisar as diferenças de movimentos na metrópole e para ela entre esses grandes tipos socioespaciais ante a própria dinâmica que ocorre no nível dos municípios. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Dinâmica populacional Sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, podemos observar que ela em muito se diferencia das outras regiões do estado, Com a diminuição das taxas de mortalidade e uma vez que foram se concentrando em tor- fecundidade devido às transformações sociais, no da capital – um núcleo econômico ativo e econômicas e culturais que ocorreram, espe- forte – vários municípios que cresciam e de- cialmente a partir do acelerado processo de pendiam da metrópole, uma vez que estavam urbanização, muitas mudanças ocorreram no integrados a ela (Ervatti, 2003). Essa região ritmo de crescimento populacional de todas concentra em torno de 80% da população do as áreas do país, assim como na importância estado. Apesar disso, no seu conjunto, a RMRJ das componentes demográficas sobre a dis- teve uma taxa de crescimento populacional, tribuição e o crescimento populacional entre de 1991 para 2000, de 0,71% ao ano, bem os espaços – a mortalidade, a fecundidade abaixo da média nacional (1,63%); o Rio de e a migração. Com a redução especialmente Janeiro – capital – ficou com um crescimen- das taxas de fecundidade, observamos uma to semelhante – 0,74% ao ano, diminuindo tendência geral de diminuição do ritmo de ainda no período posterior, de 2000 a 2007 crescimento populacional, que vai apresen- (Tabela 1). A Baixada Fluminense, que agre- tando impacto diferenciado sobre os grupos ga os municípios limítrofes à capital e que se demográficos de crianças, jovens, adultos e constituíram historicamente como sua exten- idosos; assim como segue apresentando com- são urbana, encontraram de 2000 a 2007 um portamento diferenciado entre as regiões do crescimento menor do que o observado na dé- país, e entre espaços internos nas próprias cada anterior. Dessa área, somente Duque de cidades e áreas metropolitanas. Com essa di- Caxias (1,67%) teve um ritmo de crescimento minuição geral, os movimentos das pessoas a próximo à média nacional em 2000. As maio- partir de uma mobilidade residencial vão se res taxas de crescimento são encontradas nos tornando um aspecto importante para deter- municípios configurados como novas “fron- minar as mudanças na distribuição espacial da teiras” de expansão, que são Mangaratiba população, tanto na escala intrametropolitana (3,72%) e Maricá (5,71%), mas que também como inter-regional – a migração passa a ser vêm diminuindo nesse indicador. Em decrés- também uma componente essencial na identi- cimo populacional – exceto o caso de Nova ficação desses processos. Diante disso, vamos Iguaçu (-3,74%), que teve seu território des- analisar essa dinâmica populacional entre os membrado para fazer surgirem outras cidades, grandes tipos socioespaciais, mas consideran- e de Itaguaí (-3,51%) na mesma situação –, do também indicadores para os municípios apenas Nilópolis revelou um decréscimo popu- metropolitanos, primeiramente em termos de lacional de 0,31% ao ano. No outro lado da crescimento populacional, afinal essas mudan- Baía de Guanabara, municípios de expansão ças de população podem ter reflexo imediato urbana já consolidada continuam com um rit- nos ritmos de crescimento da população. mo de crescimento considerável, apesar de não Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 89 Érica Tavares da Silva ser tão expressivo como foi na década de 80, A análise desenvolvida por Ribeiro, Ro- São Gonçalo cresceu 1,49% ao ano, enquanto drigues e Correa (2008) identifica os municí- que em Itaboraí a taxa foi de 1,58% ao ano pios-renda que concentram elevadas parcelas (Observatório das Metrópoles/Metrodata). do bem-estar social e as atividades de alta Apresentaremos indicadores de mobili- qualificação, que são Rio de Janeiro e Niterói dade tanto por municípios como por grandes (primeiro bloco na tabela). Esses estudos iden- tipos socioespaciais. Apenas para melhor en- tificaram também cidades mistas de natureza tendimento, realizamos uma separação de mu- operária que apresentam melhores condições nicípios baseada em outros estudos realizados de vida populacional, com crescimento popu- para a RMRJ, que consideraram condições de lacional negativo ou reduzido: Nilópolis, Du- geração e apropriação de riqueza, mercado de que de Caxias, São Gonçalo, Nova Iguaçu e trabalho e mobilidade populacional (Ruiz e Pe- São João do Meriti – esses municípios coinci- reira, 2007; Ribeiro, Rodrigues e Corrêa, 2008; dem também com pesquisa desenvolvida por Ribeiro e Silva, 2008; Lago, 2008 e 2009). Lago (2008) que levanta uma reflexão sobre A segmentação econômica e territorial alterações na periferia da RMRJ, inclusive so- na RMRJ revela uma concentração territorial bre as condições de uma nova relação centro- da produção, da renda e do bem-estar indivi- periferia. dual e coletivo, que pode ser comparada com Em seguida, os municípios-renda que esta caracterização quanto à mobilidade da apresentaram piores indicadores de bem-estar população (Ribeiro, Rodrigues e Correa, 2008). individual e coletivo foram Magé, Paracambi Segundo Ruiz e Pereira (2007), a segmentação e Japeri. Já Queimados e Belford Roxo foram econômica entre municípios geradores e apro- considerados municípios-produção, mas apre- priadores da renda pode ser identificada a par- sentaram dinâmica populacional semelhante tir dos seguintes tipos de situação: a primeira a estes anteriores. Temos ainda Seropédica, reuniria aqueles municípios onde a renda é Itaboraí, Itaguaí, Guapimirim e Tanguá, onde maior do que o valor da produção gerada em moram camadas populares e operárias e pre- seu território, configurando o caso de muni- valecem níveis médios de condições pessoais cípios apropriadores da renda pessoal; a se- e coletivas de vida; e outros municípios, como gunda, o contrário, municípios que geram um Mangaratiba e Maricá, que apresentam uma valor de produção superior ao que se apropria dinâmica populacional inclusive mais diferen- da renda; por último, também temos situações ciada com outras regiões do estado (algumas mistas que reúnem aqueles municípios nos divisões não consideram que esses municípios quais há uma situação mista na dualidade ge- fazem parte da região metropolitana) 4 – ape- ração e apropriação da renda. O estudo tratou sar de este último grupo apresentar municí- de identificar a estrutura socioeconômica da pios-renda e produção, apresenta conjunta- região metropolitana em termos da sua com- mente maior crescimento populacional e maio- posição por cidades-renda, cidades-produção res taxas líquidas de migração, como também e cidades-mix. veremos mais a frente. 90 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Diante do exposto, podemos apresen- Mobilidade espacial tar uma compreensão em nível municipal da RMRJ entre os municípios-renda, que exercem menores ritmos de crescimento, e outros com Quais são os fatores que o desenvolvimento econômico-social e a urbanização acarretam sobre os territórios que os tornam espaços de atração e/ou repulsão de pessoas? (especialmente se considerarmos que os movimentos populacionais são cada vez mais determinantes do crescimento e distribuição populacional no espaço). Geralmente, os aspectos relacionados a perspectivas de trabalho, oportunidades de melhores rendimentos e origem em características diferenciadas especialmente regiões menos desenvolvidas são apontados em termos de crescimento populacional mais como promotores de movimentos populacio- elevado. Ressaltamos que essa separação se nais. Entretanto, essa visão parece incomple- dá apenas para facilitar a compreensão. ta e fundamentada na perspectiva de uma maior centralidade na RMRJ; municípios de natureza mista entre apropriação e geração de riqueza que apresentam melhores condições de vida e uma diversificação social na periferia, chegando a exercer relativa centralidade na própria periferia; e outros municípios-renda e produção, que se dividem entre aqueles com dinâmica demográfica mais estável, com Tabela 1 –RMRJ – Taxa de crescimento anual Município 1991-2000 2000-2007 0,74 0,58 0,56 0,45 1,67 -0,31 -3,74 1,49 0,60 1,19 -0,01 -1,46 1,08 0,46 Belford Roxo* Japeri* Magé Paracambi Queimados* – – 0,79 1,18 – 1,45 1,62 1,74 0,67 0,94 Guapimirim* Itaborarí Itaguaí Mangaratiba Maricá Seropédica* Tanguá* – 1,58 -3,51 3,72 5,71 – – 2,36 2,03 2,18 2,33 4,62 1,51 1,20 Rio de Janeiro Niterói Duque de Caxias Nilópolis Nova Iguaçu São Gonçalo São João do Meriti Fonte: Microdados do Censo de 2000 e Contagem de 2007. * Os municípios que não apresentam dados foram emancipados de outros municípios metropolitanos a partir de 1990. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 91 Érica Tavares da Silva escolha estritamente racional por parte dos uma importância cada vez maior com as mu- indivíduos quanto a relações custo/benefício danças socioespaciais observadas no espaço sobre a mobilidade. Na atualidade, há um con- urbano-metropolitano. junto heterogêneo e complexo de fatores que impactam os movimentos populacionais ou mobilidade espacial – para a migração, que também abarca um movimento familiar, podese apontar, por exemplo, as perspectivas em relação à cidade, as possibilidades que a cidade apresenta. Os deslocamentos da população estão relacionados à produção da existência, onde a temporalidade social decorrente das condições econômicas e sociais se reflete nas condições de vida da população em cada contexto espacial e temporal. (Jardim e Ervatti, 2006) Para a dinâmica demográfica, a distribuição espacial da população, os movimentos A migração geralmente é considerada migratórios e os deslocamentos pendulares, como movimentos que implicam mudança de torna-se relevante relacioná-los com as mu- residência, mas essa mudança pode ocorrer em danças econômicas e sociais; afinal, como distintas distâncias, inclusive por movimentos mostrado em outros trabalhos (Silva, 2009), intraurbanos. Geralmente, os estudos conside- ganham maiores contornos as diferenças nos ram por migração a mudança de residência em padrões demográficos segundo áreas internas nível municipal, os censos consideram três as- às metrópoles, juntamente com movimentos pectos da migração: o lugar de nascimento; o intraurbanos e intermunicipais. lugar de residência anterior, segundo o tempo Nesse contexto, os deslocamentos tem- ininterrupto de residência atual; e o lugar de porários se tornam mais que uma característi- residência anterior há exatamente cinco anos ca da vida metropolitana, passando mesmo a antes da data de referência da pesquisa (IBGE, serem indicadores dessa articulação e do seu 2000). Para nossa reflexão aqui, estamos con- espaço de atividade. O deslocamento tempo- siderando essa última dimensão. rário é o movimento que ocorre para fins de Já o movimento pendular é estudado es- trabalho ou estudo com retorno ao município sencialmente sob uma pergunta do censo que de origem, o que chamamos de mobilidade diz: “qual município ou país estrangeiro em ou deslocamento pendular, está geralmente que trabalha ou estuda?”, sendo assim, o mo- ligado à expansão de uma determinada região vimento se refere às pessoas que se deslocam que exerce uma influência em termos de cen- com certa regularidade para trabalhar ou estu- tralidade, em boa parte das vezes, do merca- dar em algum município que não seja o seu de do de trabalho. A mobilidade residencial e a residência – não abrangendo também desloca- mobilidade cotidiana têm relação direta com a mentos intramunicipais. mobilidade pendular; faz parte da distribuição espacial da população. Trabalhamos primeiramente com a migração no nível do município, para depois A migração é uma das componentes de- considerarmos a participação dos imigrantes mográficas, juntamente com a mortalidade e segundo os grandes tipos socioespaciais. Ape- a fecundidade. A mobilidade espacial assume sar dos problemas com desmembramentos 92 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro municipais, fica visível a perda populacional líquida de migração entre os dois períodos), para o núcleo da região metropolitana, o Rio os municípios apresentaram uma diminuição de Janeiro é o município que mais perde po- dessa taxa. Os municípios de São João de pulação por migração (apesar de em núme- Meriti (com taxa bastante reduzida de 0,81), ros absolutos ainda crescer), mas em termos São Gonçalo, Nova Iguaçu e Duque de Caxias proporcionais, a taxa líquida também mostra apresentaram taxa positiva, entretanto, com uma perda expressiva de Niterói, de 1986 valores mais reduzidos proporcionalmente para 1991 e mais ainda de 1995 para 2000 em relação à sua população de mais de cinco (Tabela 2). Com exceção de Nilópolis, os de- anos, se comparados aos demais municípios mais municípios apresentaram ganho popula- abaixo, na Tabela 2. cional através da migração. Entre os demais O outro bloco de municípios, que são com saldo positivo, com exceção de Manga- municípios-renda com indicadores mais in- ratiba e Maricá (que aumentaram sua taxa feriores de bem-estar individual e coletivo, Tabela 2 – RMRJ – Indicadores de Migração (saldo e taxa), 1991 e 2000 1991 2000 Município Saldo Taxa Saldo Taxa -215.921 -9.606 -4,28 -2,38 -154.611 -12.619 -2,86 -2,94 10.700 4.173 33.846 30.190 9.349 1,79 2,90 2,91 4,25 2,44 9.605 -3.036 22.004 1..413 3.296 1,38 -2,15 2,65 2,01 0,81 Belford Roxo* Japeri* Magé Paracambi Queimados* – – 9.821 1.515 – – – 5,76 4,58 – 19.554 4.269 9.767 598 3.169 5,03 5,76 5,28 1,61 2,90 Guapimirim* Itaborarí Itaguaí Mangaratiba Maricá Seropédica* Tanguá* – 19.064 7.109 1.611 5.486 – – – 13,07 7,05 10,01 13,03 – – 4.783 19.509 4.144 3.585 13.720 6.624 2.412 13,98 11,53 5,63 15,87 19,51 11,26 10,25 Rio de Janeiro Niterói Duque de Caxias Nilópolis Nova Iguaçu São Gonçalo São João do Meriti Fonte: Microdados Censos Demográficos de 1991 e 2000. * Os municípios que não apresentam dados foram emancipados de outros municípios metropolitanos a partir de 1990, portanto, não constavam como município de residência anterior para 1986. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 93 Érica Tavares da Silva apresenta também saldo positivo e taxa lí- pessoas com mais de cinco anos) vai aumen- quida de migração maior, atraindo propor- tando conforme diminui a posição das áreas cionalmente mais população (exceção para na hierarquia socioespacial; 5 Niterói é que se Paracambi, com taxa menor nesse grupo). Os destaca com as áreas superiores, à exceção demais municípios do último bloco, que são do núcleo – município do Rio de Janeiro –, por municípios em expansão e apresentam uma isso estamos considerando esses municípios- dinâmica demográfica diferenciada em rela- renda conjuntamente. 6 Já em 2000, há uma ção aos outros municípios da periferia, tive- participação um pouco maior dos imigrantes ram taxas bastante elevadas, revelando uma núcleo-periferia nas áreas superiores e médias; atração bastante considerável. nas áreas operárias diminui e nas áreas popu- Portanto, podemos observar que a divisão que realizamos no início do trabalho, lares permanece semelhante – com maior taxa de imigração para esse tipo de fluxo. considerando condições de geração e apro- Para o movimento realizado da periferia priação de riqueza dos municípios e condições para o núcleo, os valores são mais reduzidos, de bem-estar, tem relação com a mobilidade mas a posição fica inversa, uma vez que dimi- populacional, pois os municípios-renda estão nui a participação dos que saíram da periferia perdendo população; os municípios-mix es- para o núcleo, conforme diminui a posição na tão recebendo população, mas não na mesma hierarquia, ou seja, entre aqueles que saem da medida que os demais municípios, que estão periferia e vão morar no Rio de Janeiro (mo- atraindo mais pessoas. Cabem, assim, maiores vimento menos comum) há maior participação investigações sobre esse movimento, especial- nas áreas superiores, lembramos que essa taxa mente quais são suas origens. é a proporção de imigrantes que fizeram esse Considerando a migração por origens e movimento em relação à população de mais segundo a tipologia socioespacial, calculamos de cinco anos. De 1991 para 2000, essas taxas a taxa de imigração (por mil devido ao número aumentam ligeiramente. de pessoas) em cada espaço e segundo o ti- Já entre os que realizaram movimentos po de fluxo realizado, em 1991 e em 2000. Em na própria periferia, o comportamento é seme- 1991, a taxa de imigração (coluna referente ao lhante entre os que saíram do núcleo para a total na Tabela 3) foi maior nas áreas popula- periferia (apenas com valores um pouco meno- res, em 2000 também. Analisamos primeira- res) – vai aumentando a participação de imi- mente os movimentos intrametropolitanos. grantes conforme diminui a posição na hierar- Quanto ao tipo de fluxo realizado para quia socioespacial. Portanto, podemos notar os imigrantes recentes na RMRJ, de 1986 para que os movimentos que envolvem a periferia, 1991 e de 1995 para 2000, entre os que saíram os migrantes apresentam maior participação do núcleo para a periferia – um movimento em relação à população nas áreas operárias intrametropolitano recorrente nas últimas dé- e mais ainda nas áreas populares (que tam- cadas (cf. Silva e Rodrigues, 2009) – há uma bém predominam na periferia), em 2000, essa maior taxa de imigração nas áreas populares. participação também aumenta, ou seja, há um Em 1991, a participação de imigrantes (por mil maior movimento em direção à periferia. 94 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Considerando agora movimentos para socioeconômicas desses imigrantes – o que além da região metropolitana, para aqueles podemos constatar por sua maior participação que tiveram como origem do movimento o nas áreas superiores. próprio estado do Rio de Janeiro (com exce- Primeiramente, podemos concluir que as ção da RMRJ), as participações são maiores, condições de mobilidade operam distintamen- tanto nas áreas superiores como nas popula- te, conforme a origem e o destino do movi- res – podendo expressar na verdade dois tipos mento e provavelmente conforme as condições de movimento em direção à região metropo- socioeconômicas das pessoas e dos lugares. litana com origem nos demais municípios do Primeiro, nos movimentos intrametropolitanos, estado – aqueles que apresentam condições destaca-se o destino para a periferia, mas essa de residir em espaços superiores e aqueles periferia apresenta-se bastante diversificada, que vão residir em áreas populares. onde podemos perceber que há um movimento Há uma participação considerável entre mais expressivo para áreas populares na peri- aqueles que realizaram movimento interesta- feria – em termos de proporção de imigrantes dual, ou seja, pessoas que vieram de outras sobre a população das áreas. Na RMRJ, ainda UFs e estão residindo na RMRJ, o que aumen- há uma participação considerável de imigran- tou em 2000; além disso, a taxa para esse ti- tes que não vêm da própria região, entre estes, po de fluxo é bem maior nas áreas superiores. os valores são mais elevados nos dois extre- Em outros trabalhos (Silva, 2009), mostramos mos da hierarquia socioespacial – nas áreas que a participação de imigrantes nordestinos superiores e populares. Para os imigrantes que ainda é elevada nesse movimento, apesar de vieram de fora do estado, há uma maior con- terem ocorrido alterações nas características centração no município do Rio de Janeiro. Tabela 3 – RMRJ: Taxa de Imigração (por mil) segundo Tipo Socioespacial 1991 e 2000 Tipos socioespaciais NúcleoPeriferia PeriferiaNúcleo PeriferiaPeriferia Intraestadual Interestadual Total 19,9 8,3 8,1 12,9 25,2 9,6 9,7 10,3 55,8 30,5 45,8 67,2 9,8 3,5 3,1 5,6 45,3 21,7 22,6 30,0 70,8 43,3 53,4 84,0 1991 Superior Médio Operário Popular 3,9 5,0 15,6 22,4 4,3 3,6 1,7 1,2 Superior Médio Operário Popular 6,4 6,3 12,5 22,3 4,9 4,8 2,9 1,4 2,5 4,1 11,7 20,3 2000 4,5 7,0 12,4 24,6 Fonte: Microdados Censos Demográficos de 1991 e 2000. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 95 Érica Tavares da Silva Sobre o deslocamento temporário, va- emanciparam nos anos 90 também apresen- mos considerar o Censo Demográfico de 1980, tavam expressiva saída de pessoas em 2000, pois a pergunta sobre “município de trabalho provavelmente boa parte desse movimento de- ou estudo” não ocorreu no Censo de 1991; pa- veria ocorrer em direção ao município do qual ra o Censo de 1980, não temos a tipologia, tra- foi desmembrado. balhamos assim apenas no nível do município, Trabalhos recentes sobre a região metro- mas, em 2000, consideraremos a mobilidade politana do Rio de Janeiro, como os de Lago segundo os grandes tipos. (2008; 2009), mostram que alguns municípios A primeira constatação também comum estão apresentando uma maior “retenção” de em outras áreas metropolitanas é a forte imo- sua população, pois em relação a 1980 há uma bilidade no município-núcleo, com pouca saída menor proporção de pessoas que saem para de pessoas para trabalhar em outro município, trabalhar em outro município, especialmen- a maior parte reside e trabalha no Rio de Ja- te o núcleo metropolitano – isso indica que é neiro. Niterói apresenta um mix de mobilidade, importante considerar também a imobilidade de onde saem muitas pessoas para trabalhar em alguns municípios que, para alguns auto- (geralmente para o Rio, cf. Silva, 2009) assim res, estariam despontando como “novos cen- como a cidade recebe também muitos traba- tros” na região metropolitana. Em trabalhos lhadores, inclusive o percentual de entrada au- anteriores (Ribeiro e Silva, 2008; Silva, 2009), menta de 1980 para 2000 (47,1% de pessoas mostramos que, apesar disso, as condições no que vinham de outro município apenas para nível do indivíduo são melhores para aqueles trabalho em relação à população total que só que ainda saem da periferia para trabalhar no trabalha). Em 1980, municípios da Baixada núcleo, em relação aos que ficam – o que reve- Fluminense apresentavam altíssimas taxas de la a complexidade dessa análise sobre moradia repulsão, muitas pessoas saíam para trabalhar e padrões de mobilidade espacial. em outro município, especialmente no Rio de A taxa de mobilidade (saída de pessoas) Janeiro – inclusive durante bastante tempo es- segundo tipo socioespacial e fluxos também ses indicadores contribuíram para a reflexão a revela algumas distinções, no geral, aumen- respeito das cidades-dormitório. Já em 2000, ta a saída de pessoas para trabalhar em ou- essa saída se torna mais suavizada, apesar tro município conforme diminui a posição na de ainda expressiva, apresenta algumas alte- hierarquia socioespacial (Tabela 5). Também rações com maior percentual de pessoas que aqui os movimentos que se destinam à pe- residiam e trabalhavam nesses municípios que riferia seguem esse padrão geral, até porque sempre foram considerados periféricos; além são predominantes. Para aqueles que saem do disso, eles passam também a atrair popula- núcleo para trabalhar e/ou estudar na periferia ção especialmente da própria periferia. Para (menores proporções), aumenta a taxa de saí- os demais municípios, Magé, Paracambi e Ita- da conforme aumenta a posição. Para os movi- guaí diminuem a proporção de trabalhadores mentos que ultrapassam a RMRJ, também se que saem, enquanto Itaboraí, Mangaratiba podem observar diferenciais nas áreas superio- e Maricá aumentam. Os municípios que se res e populares, que apresentam maior saída. 96 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Tabela 4 – RMRJ – Movimento Pendular para Trabalho – 1980 e 2000 1980 2000 Saída do município Entrada no município Reside e trabalha no município Rio de Janeiro Niterói 1,0 29,3 11,5 21,3 99,0 70,2 1,5 27,1 22,0 47,1 98,5 72,4 Duque de Caxias Nilópolis Nova Iguaçu São Gonçalo São João do Meriti 50,5 65,6 56,8 50,5 67,1 4,7 5,6 1,0 1,6 2,7 50,7 35,2 44,7 49,6 33,5 35,2 52,4 40,5 39,6 50,8 11,4 13,0 6,8 4,4 8,3 65,6 48,8 60,6 60,8 50,1 Belford Roxo* Japeri* Magé Paracambi Queimados* – – 35,5 28,2 – – – 1,0 2,8 – – – 65,3 73,7 – 52,1 57,3 34,7 21,2 47,4 4,8 3,5 3,5 8,5 8,6 49,3 44,8 66,1 79,6 54,2 Guapimirim* Itaborarí Itaguaí Mangaratiba Maricá Seropédica* Tanguá* – 33,5 25,0 8,9 17,9 – – – 1,4 3,4 6,6 1,6 – – – 67,1 75,9 90,5 82,2 – – 24,0 38,1 22,3 11,1 21,8 28,8 33,4 5,7 5,8 12,9 22,7 5,2 6,3 5,6 76,6 62,8 78,1 89,8 78,2 72,4 67,6 Município Saída do município Entrada no município Reside e trabalha no município Fonte: Microdados Censos Demográficos de 1980 e 2000. * Os municípios emancipados de outros municípios metropolitanos a partir de 1990. Tabela 5 – RMRJ – Taxa de Mobilidade (por mil) segundo Tipo Socioespacial 2000 Tipos socioespaciais Superior Médio Operário Popular NúcleoPeriferia PeriferiaNúcleo PeriferiaPeriferia Intraestadual Interestadual Total 4,3 4,6 2,6 0,7 25,2 26,3 58,4 61,8 4,5 13,1 21,0 29,6 2,8 1,5 1,3 2,6 4,7 2,9 4,7 6,9 41,5 48,4 88,0 101,6 Fonte: Microdados Censo Demográfico de 2000. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 97 Érica Tavares da Silva Se observarmos a proporção de pessoas socioeconômicas operam distintamente no ní- que realizam movimento pendular por AED e vel do território e no nível do indivíduo, pois segundo o tipo socioespacial dessa área, tam- apesar de estarem relacionados, observamos bém podemos apreender algumas diferenças. que municípios e áreas com melhores condi- No Rio de Janeiro, a imobilidade é expressiva, ções socioeconômicas e de inserção no mer- pois a maior parte das áreas não chega a ter cado de trabalho tendem a ter menores taxas 1% de pendulares, entretanto, aquelas que de saída de pessoas, ao contrário, pessoas com apresentam uma participação mais conside- melhores condições socioeconômicas (como rável de pendulares são áreas médias, operá- rendimento e escolaridade) parecem ter maior rias e especialmente superiores. Em algumas potencial de mover-se – ou de escolher quanto áreas médias e operárias de outros municí- a fazê-lo ou não (Silva, 2009). pios, como Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Buscando relacionar a migração intra- São Gonçalo, Nilópolis e São João de Meriti metropolitana, que foi considerada anterior- (aqueles cinco municípios mix com condições mente, com o movimento pendular intrametro- médias de vida que destacamos anteriormen- politano, cruzamos o município de origem da te e que Lago também destaca), também há migração com o município de destino do movi- uma proporção maior de pendulares. Apesar mento pendular. A ideia é tentar apreender se disso, também há um percentual considerável aqueles que mudaram de residência passaram de pendulares em alguns espaços populares a trabalhar em outro município também ou se na periferia. permaneceram trabalhando no município do Isso nos leva a retomar uma hipótese, qual saíram, passando a ter que se deslocar que ainda pretendemos explorar mais, de que com frequência. Na RMRJ, podemos observar existem lógicas diferenciadas operando sobre que, já em 1980, entre aqueles que saíram do a mobilidade espacial, alguns se movimentam Rio de Janeiro e foram morar em outro muni- por terem condições de escolha, uma gama cípio da RMRJ, 64,4% deslocavam-se para de opções, nas quais a mobilidade pode se trabalhar no Rio, já em 2000, temos que mais apresentar como uma alternativa interessante. de 50% ainda faziam esse movimento. Para os Talvez um outro grupo se movimente por cons- demais tipos de fluxos, o percentual de imi- trangimento, pela busca de oportunidades de grantes que trabalhavam no município de ori- emprego ou estudo quando não encontra pró- gem da migração7 aumenta razoavelmente de ximo ao local de residência ou quando não tem 1980 para 2000, entretanto, para o movimento condições de inserção caso haja. Além disso, núcleo-periferia, apesar da diminuição, essa temos a hipótese também que as condições taxa permanece bem mais expressiva. 98 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro Tabela 6 – RMRJ – Taxa de deslocamento para trabalho no município de origem da migração – 1980 e 2000 Tipo de fluxo 1980 2000 Núcleo-periferia Periferia-núcleo Periferia-periferia 64,4 5,6 17,8 51,2 7,4 19,0 Total 19,3 15,1 Fonte: Microdados Censos Demográficos de 1980 e 2000. Percebe-se então que, apesar de estar das áreas superiores, médias, operárias e ocorrendo uma “certa” dispersão residencial, populares, realizou-se também uma análise em esse olhar deve ser mais cuidadoso ao anali- nível municipal, considerando os municípios- sar inserção ocupacional e postos de trabalho renda, que exercem maior centralidade na na RMRJ, essa observação vale para outras RMRJ (Niterói, Rio de Janeiro); municípios de regiões metropolitanas também (cf. Silva e natureza mista entre apropriação e geração de Rodrigues, 2009). Segundo estudo de Vignoli riqueza que apresentam melhores condições (2008), avaliando a distribuição desigual no de vida e uma diversificação social na periferia, território metropolitano dos grupos socioe- chegando a exercer relativa centralidade na conômicos, é possível descrever padrões de própria periferia (Nova Iguaçu, Duque de Ca- mobilidade segundo essa diferenciação social. xias, Nilópolis, São João de Meriti e São Gon- Para o autor, há uma segmentação territorial çalo); e outros municípios-renda e produção, na localização das pessoas segundo grupos que se dividem entre aqueles com dinâmica sócio-ocupacionais, e que, além disso, há uma demográfica mais estável, com menores ritmos segmentação na localização dos postos de de crescimento, e outros com características trabalho. diferenciadas, especialmente em termos de crescimento populacional mais elevado. Tanto em 1991 como em 2000, as di- Considerações finais ferenças entre estes grupos de municípios e entre as áreas superiores, médias, operárias e Neste trabalho, procuramos delinear algumas populares são consideráveis. Para a mobilidade mudanças ocorridas na organização socioes- espacial, pode-se notar que a divisão reali- pacial do território da Região Metropolitana zada apenas para melhor compreensão dos do Rio de Janeiro, buscando associá-las com municípios, considerando condições de gera- os movimentos populacionais e os desloca- ção e apropriação de riqueza dos municípios mentos temporários. Associada a uma análise e condições de bem-estar, tem relação com a Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 99 Érica Tavares da Silva mobilidade populacional, pois os municípios- distintamente conforme a origem e o destino renda estão perdendo população; os municí- do movimento e, provavelmente, conforme pios-mix estão recebendo população, mas não as condições socioeconômicas das pessoas e na mesma medida que os demais municípios, dos lugares. Para os imigrantes que vieram de que estão atraindo mais pessoas. fora do estado, há uma maior concentração Na migração intrametropolitana, os no município do Rio de Janeiro. Além disso, movimentos que envolvem a periferia apre- apesar de estarem ocorrendo movimentos de sentam maior participação em relação à po- pessoas e famílias com origem nas áreas cen- pulação nas áreas operárias e mais ainda nas trais, muitas dessas pessoas foram residir fora áreas populares (que também predominam do núcleo, por exemplo, mas ainda permane- na periferia), em 2000, essa participação cem trabalhando nesse espaço. também aumenta, ou seja, há um maior mo- De maneira geral, é possível confirmar vimento em direção à periferia. Quanto ao que existem relações entre a organização do movimento com outros municípios do estado, território baseada em uma categorização so- as participações são maiores, tanto nas áreas cioocupacional com a dinâmica populacional superiores como nas populares, o que nos faz em espaços internos à área metropolitana. sugerir a hipótese de mobilidade socialmen- Para a mobilidade, podemos também sugerir te diferenciada, apesar do fluxo semelhan- que há esquemas diferentes operando sobre te, onde alguns escolhem se mover, outros os grupos em movimento, que devem conside- podem ser constrangidos a fazê-lo. Sendo rar tanto o nível do território quanto as condi- assim, as condições de mobilidade operam ções do indivíduo. Érica Tavares da Silva Cientista social e Demógrafa, Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil). [email protected] Notas (1) Estudo desenvolvido por Mammarella e Lago (2009), como resultado das pesquisas desenvolvidas pelo Observatório das Metrópoles-INCT sobre a organização socioespacial nas metrópoles brasileiras. (2) São estes os grupos: 1) Dirigentes: grandes empregadores, dirigentes do setor público, dirigentes do setor privado; 2) Intelectuais: profissionais autônomos de nível superior, profissionais empregados de nível superior, profissionais estatutários de nível superior, professores de nível 100 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 Organização socioterritorial e mobilidade residencial na RM do Rio de Janeiro superior; 3) Pequenos empregadores; 4) Ocupações médias: ocupações de escritório, ocupações de supervisão, ocupações técnicas, ocupações de saúde e educação, ocupações de segurança, jus ça e correio, ocupações ar s cas e similares; 5) Trabalhadores do Terciário: trabalhadores do comércio, prestadores de serviços especializados; 6) Trabalhadores do Secundário: trabalhadores manuais da indústria moderna, trabalhadores manuais da indústria tradicional, trabalhadores manuais de serviços auxiliares, trabalhadores manuais da construção civil; 7) Trabalhadores do Terciário Não Especializado: prestadores de serviços não especializados, empregados domés cos, ambulantes e biscateiros; 8) Agricultores. (3) Segundo as autoras, “uma caracterização ampla de cada um dos pos socioespaciais acima referidos, levando em conta o perfil sócio-ocupacional predominante em cada agrupamento, significa, basicamente, que: as áreas de pos “superiores” se definem pelas maiores densidades das categorias dos dirigentes e dos profissionais de nível superior, sendo que, em alguns casos, os pequenos empregadores e as ocupações médias dividem importância com elas. As áreas de po “médio” são marcadas por uma forte presença das ocupações médias, muito embora elas não se encontrem tão concentradas num determinado po como as demais categorias, uma vez que uma das caracterís cas dos estratos médios é a sua maior dispersão residencial no território. Essa dispersão revela misturas sociais variadas, seja com as categorias de profissionais, seja com as ocupações terciárias ou secundárias. Já as áreas de pos “operários” definem os espaços onde a moradia dos trabalhadores do setor secundário da economia têm significado esta s co relevante. Quando a moradia dos operários se mistura socialmente no território, isso ocorre, via de regra, com os setores populares, representados pelos trabalhadores manuais pouco qualificados, da construção civil e do terciário não especializado. Estes úl mos, por sua vez, se cons tuem nas categorias definidoras das áreas de po “populares”, enquanto as áreas de pos “agrícolas”, minoritárias em todas as regiões metropolitanas e localizadas em zonas onde a produção primária ainda é muito significa va, se definem, essencialmente, pelas densidades excessivamente elevadas de trabalhadores ligados ao mundo agrícola” (cf. Mammarella e Lago, 2009). (4) O estudo citado de Ribeiro, Rodrigues e Correa (2008) não trabalha com os municípios de Mangara ba e Maricá, pois partem do estudo dos GEUBs (Ruiz e Pereira, 2007). (5) É preciso ressaltar que as áreas superiores e médias têm menor expressividade na periferia, esses valores também se jus ficam pela própria composição das áreas na periferia, mas ressaltamos que aqui estamos considerando em termos de taxa, o que rela viza essa ocorrência. Em 2000, exceto Rio de Janeiro e Niterói, há apenas uma área de po superior no Centro de Nova Iguaçu; quanto às áreas médias, aparecem em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São Gonçalo e Nilópolis (há apenas uma área média em cada um dos municípios a seguir: São João de Meri , Maricá e Itaboraí). Todas as demais AEDs da RMRJ foram operárias ou populares em 2000. (6) Há alguma discussão, que merece ser explorada, sobre estudos que devam considerar Niterói juntamente com o Rio de Janeiro, em termos de núcleo ou centralidade principal na RMRJ. (7) Proporção de imigrantes intrametropolitanos que realizam movimento pendular para trabalho no município de origem da migração sobre o total de imigrantes intrametropolitanos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 101 Érica Tavares da Silva Referências ERVATTI, L. R. (2003). Dinâmica Migratória no Estado do Rio de Janeiro na Década de 90: Uma Análise Mesorregional. Dissertação de Mestrado. IBGE/ENCE. IBGE (2000). Censo Demográfico – 2000 – Migração e deslocamento: resultados da amostra. Rio de Janeiro. JARDIM, A. de P. e ERVATTI, L. R. ((2006). Migração pendular intrametropolitana no Rio de Janeiro: a condição de renda das pessoas que trabalham ou estudam fora do município de residência em 1980 e 2000. XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais. LAGO, L. C. (2008). “O mercado de trabalho na metrópole do Rio de Janeiro: a ‘periferia’ que virou ‘centro’”. Anais do Encontro da ABEP. ______ (2009). “A periferia metropolitana como lugar do trabalho: da cidade-dormitório à cidade plena”. Congresso da LASA, 2009. MAMMARELLA, R. e LAGO, L. C. (2009). “Tendências na organização social do território das metrópoles no período 1991-2000”. 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 85-103, jan/jun 2010 103 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI: centralidade renovada ou periférica?* The functional center of Campo Grande at the beginning of the 21st century: renewed or peripheral centrality? Cristina Lontra Nacif Gisele Teixeira Antunes Resumo O presente artigo pretende refletir sobre alguns aspectos da reconfiguração socioespacial em processo na zona oeste na metrópole do Rio de Janeiro, área que concentra a maioria das indústrias do município, com destaque para Campo Grande, centro funcional reconhecido. Vale ressaltar que o bairro está sendo impactado pelas obras de infraestrutura como a do Arco Rodoviário Metropolitano, a expansão do Porto de Itaguaí, simultaneamente com novos lançamentos do mercado imobiliário e implantação de novas indústrias, que juntos criam a expectativa de desenvolvimento socioeconômico na região. Assim, pretendemos apontar, ainda que preliminarmente, se tais investimentos estariam reafirmando e reconfigurando a centralidade de Campo Grande e ao mesmo tempo se estamos diante da alteração ou continuidade do clássico modelo centro-periferia. Abstract The paper focuses on some aspects of the ongoing socio-spatial reconfiguration of the western area of Rio de Janeiro, an area that contains most of the city’s factories. Campo Grande, for example, is a recognized functional center. It is important to highlight that the neighborhood is being affected by infrastructure constructions, such as the Metropolitan Beltway, the expansion of Porto de Itaguaí, along with new releases of the real estate market and implementation of new factories, which, together, create an expectation of socio-economic development in the area. Therefore, we would like to discuss, albeit preliminarily, if such investments would be reconfiguring and reaffirming the centrality of Campo Grande and, at the same time, if we are facing a change or the continuity of the classic center-periphery model. Palavras-chave: Campo Grande; centralidade; região metropolitana; zona oeste; centro-periferia. Keywords: campo grande; centrality; metropolitan area; west zone; center-periphery. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Introdução Tal compreensão sobre a área de estudo e fatores de atração de investimentos (como indústrias, capital e serviços) e população po- O presente trabalho pretende analisar a reorga- derão contribuir para a definição de diretrizes nização socioespacial que vem se configurando de desenvolvimento da região respeitando em alguns bairros da Zona Oeste da cidade do suas características e evitando erros já diag- Rio de Janeiro, uma vez que a área concentra nosticados em outros municípios e regiões a maioria das indústrias do município e his- afetadas por grandes projetos urbanos e pro- toricamente é reconhecida pela centralidade cessos rápidos e descontrolados de industriali- exercida sobre alguns municípios da Baixada zação e renovação imobiliária. Fluminense como: Nova Iguaçu, Seropédica, Campo Grande está inserido na periferia Duque de Caxias e Itaguaí. Vale destacar que oeste da metrópole do Rio de Janeiro. O termo esses municípios estão recebendo obras de metrópole remete a aglomerações urbanas com infraestrutura como o Arco Rodoviário Metro- milhões de habitantes e com capacidade de in- politano (rota de escoamento da produção do ter-relacionar economicamente muitas cidades, Complexo Petroquímico do Estado do Rio de sendo em essência concentrações multifuncio- Janeiro – Comperj), expansão do Porto de Ita- nais (Ascher, 1995). As metrópoles concentram guaí, entre outros, o que torna a região mais parte das riquezas, do poder econômico, dos atrativa para os investimentos privados como: capitais, do processo de acumulação, do PIB, parques industriais que já estão sendo instala- das categorias sociais mais abastadas e os em- dos nos respectivos distritos industriais e para pregos mais qualificados. Concentram também as novas estratégias do mercado imobiliário. as maiores desigualdades sociais, abrigando Essas transformações têm consolidado a tran- simultaneamente o “melhor” e o “pior” da so- sição rural/urbano dessa região e reconfigura- ciedade contemporânea (Moura, 2001). do as relações da Região Metropolitana do Rio A categoria centralidade, por sua vez, de Janeiro e, assim, redefinindo a organização conforme já há muito anunciado por estudio- socioespacial da Zona Oeste carioca. sos, como Henri Lefebvre (1974) e Manuel Cas- O tema se torna interessante não somen- tells (1989), contribui de forma decisiva não só te para a compreensão das transformações já para a compreensão da estrutura urbana como em curso, mas pelo notório crescimento do in- das relações cidade/sociedade subjacente à teresse das grandes construtoras pelos bairros análise. Assim, tal aparato metodológico con- que integram a Zona Oeste, tradicionalmente tribui, seja para observar os padrões tradicio- consumidos apenas pelas classes menos favo- nais, seja para identificar os novos padrões de recidas através da adoção do processo de au- localização de usos e atividades. Tais padrões toconstrução, loteamentos irregulares e popu- orientados por diferentes processos socioeco- lares e programas habitacionais, mas também nômicos tem produzido centralidades dispersas pela contribuição nas pesquisas sobre a Zona como também, em muitos casos, uma espécie Oeste, em especial no bairro de Campo Gran- de “deslocamento” dos centros tradicionais. de, tão pouco explorado até então. Dentre as diversas centralidades econômicas, 106 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI de lazer e entretenimento, cívicas, entre ou- capitalista na sua fase concorrencial, e, já na tras, que se apresentam com diferentes mor- metade do século XX, apresentava mudanças fologias, talvez a centralidade produzida pelas quanto às características da sua formação atividades comerciais e de serviços seja uma inicial e ao uso intensivo do solo, verticaliza- das mais expressivas pelos padrões de sociabi- ção, presença de atividades voltadas para a lidade ensejados. O comércio é por excelência gestão pública e privada, entre outros itens. uma atividade urbana e, apesar das inúmeras A descentralização, por sua vez, está associa- possibilidades das compras por meios eletrô- da a fatores que, historicamente, inibiram ou nicos, dificilmente aquele comércio tradicional expulsaram atividades da área central como exercido através do contato face a face deixará aumento do preço da terra, congestionamento, de existir no futuro. Nas nossas cidades, essa dificuldade de espaço para expansão, entre ou- imbricação do comércio com a cidade é uma tros. Ao mesmo tempo, a descentralização foi consequência direta dos requisitos de centra- incentivada pelo crescimento das cidades em lidade e acessibilidade que definem sua locali- termos demográficos e espaciais, ampliando as zação, orientados pela lógica da economia de distâncias entre as novas áreas residenciais e a aglomeração. Os locais de exercício do comér- área central, criando condições para a criação cio e da prestação de serviços permitem que as de filiais nos bairros. pessoas realizem necessidades a eles associa- No final da década de 1990, a análise das, colaborem na veiculação de informações da centralidade urbana no interior das cidades e inovações e incentivem laços e padrões de podia, segundo Sposito (1997), ser observada sociabilidade (Salgueiro, 2009). a partir de diferentes dinâmicas: Nos clássicos O direito à cidade e A re- ● As novas localizações dos equipamentos volução urbana, Henri Lefebvre defende que o comerciais e de serviços concentrados e de direito à cidade é o direito à centralidade ur- grande porte determinam mudanças de impac- bana: seria ela que faria convergir as diferen- to no papel e na estrutura do centro principal ças e as singularidades, promovendo tanto as ou tradicional, o que provoca uma redefinição suturas quanto as rupturas do tecido urbano. de centro, da periferia e da relação centro- As centralidades urbanas, para o autor, promo- periferia. vem o encontro, a associação e o embate de ● A rapidez das transformações econômicas distintos grupos sociais, o que seria próprio da que se expressam, inclusive, através das for- vida urbana. mas flexíveis de produção impõe mudanças na No plano da estrutura interna das cidades, centralização e descentralização são processos que se manifestam nas formas espaciais estruturação interna das cidades e na relação entre as cidades de uma rede. ● A redefinição da centralidade não é um da área central e do(s) núcleo(s) secundário(s), processo novo, mas ganha novas dimensões, respectivamente. considerando-se o impacto das transformações Tradicionalmente, segundo Corrêa atuais e a sua ocorrência não apenas nas me- (1999), a formação da área central, ou simples- trópoles e nas grandes cidades, mas também mente centro, atendeu à formação da cidade nas cidades de porte médio. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 107 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes ● A difusão do uso do automóvel e o aumen- ● O termo periferização, portanto, não quer to da importância do lazer e do tempo dedi- dar conta apenas de um locus, mas de um pro- cado ao consumo redefinem o cotidiano das cesso de segregação e diferenciação social no pessoas e a lógica de localização e do uso dos espaço que tem causas econômicas, políticas equipamentos comerciais e de serviços. e culturais. Vários autores apontaram as mudanças ● Não obstante, consolida-se como inerente na produção do espaço intraurbano, entre eles ao padrão periférico a representação da peri- Manuel Castells (1999) para quem as altera- feria caracterizada enquanto espaço da repro- ções técnico-informacionais da sociedade em dução precária da força de trabalho, portanto rede estaria alterando a morfologia social e espaço da carência. portanto espacial das sociedades, criando pos- ● Apesar de alguns trabalhos chamarem a sibilidades de alteração do padrão de localiza- atenção para o fato de a segregação social ção de atividades urbanas. Mais recentemente, não poder ser representada na estrutura nú- não podemos deixar de lembrar as contribui- cleo-periferia, sendo necessário operar com ções do estudo de Frúgoli Jr. (2000) sobre as a concepção de uma estrutura polinucleada, tradicionais e novas centralidades de São Pau- consolida-se a imagem de espaços socialmente lo, e de Mariana Fix (2007) ao analisar, entre homogêneos. outros aspectos, as alianças e estratégias dos ● A dinâmica de crescimento periférico é lida diferentes agentes e atores na produção do es- a partir de dois tipos de perspectivas analíti- paço urbano paulista. cas: como a projeção, no nível do espaço, do A discussão que envolve a relação cen- processo de acumulação e como modelo de tro-periferia foi recuperada e sistematizada por representação da hierarquia social vigente na Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (1994), quando sociedade brasileira. o autor apresentou elementos analíticos que ● De maneira geral, a intervenção seletiva do fundamentavam e definiam o paradigma do Estado na alocação dos investimentos urbanos padrão periférico na explicação da dinâmica é tomada como mecanismo central do padrão da organização metropolitana: periférico de crescimento, embora em muitos ● Em primeiro lugar, o par centro-periferia, de noção operatória de pesquisa, torna-se um conceito utilizado para entender o processo de trabalhos se faça alusão à importância dos agentes dos mercados fundiário e imobiliário e suas respectivas práticas. expansão da estrutura interna das metrópoles. Diante do exposto, tentaremos iden- Tal processo se caracteriza pela existência tificar os fenômenos sócio-ocupacionais em de um movimento de expulsão/atração – de- processo no bairro de Campo Grande, área de pendendo da orientação teórica do trabalho – certa maneira identificada com os municípios para a periferia. Consequentemente, admite-se vizinhos quando observada na perspectiva da a ideia de mecanismos de seleção ao acesso espacialidade do fenômeno metropolitano e ao núcleo. dotado de atrativos de centralidade. ● 108 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI Informações complementares absorvido cerca de 200.000 novos residentes na década de 1990. Campo Grande possui área territorial de Segundo estudo do Observatório de Me- 46.996 hectares onde residem 896.856 habi- trópoles (2005) realizado com informações do tantes, sua densidade bruta de 19,1 habitantes ano de 2000, Campo Grande é um dos três por hectare é uma das mais baixas do municí- pontos de contraste com seu entorno dentro pio.1 Este bairro da zona oeste, do município da RMRJ na categoria de análise sócio-ocupa- do Rio de Janeiro, está localizado a menos de cional. Este estudo identificou Campo Grande 30 km de alguns municípios fluminenses como: como áreas de tipo médio (em um universo Nova Iguaçu, Seropédica e Itaguaí. amostral entre: Superior; Superior Médio; Mé- Os dados demográficos indicam que seu dio; Médio Inferior; Popular; Popular Operário; crescimento foi acentuado, tendo apresentado Popular Agrícola e Popular Inferior), inserido taxa de 22%, na década de 1990, a segunda em uma região periférica de perfil tipicamente maior do município, superada somente pela popular e operário. No centro de Campo Gran- Barra da Tijuca. É a região que tem o maior de, 9% dos ocupados eram profissionais supe- contingente populacional da cidade, tendo riores e outros 9%, técnicos de nível médio. Figura 1 – Mapa de localização Fonte: Fundação Cide. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 109 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Campo Grande faz parte do conjunto radiocêntrico de todas as ligações e a relação identificado por Duarte (1974), no seu tradicio- de dependência com o centro metropolitano, nal estudo sobre os centros funcionais da cida- principalmente para o acesso ao trabalho e à de do Rio de Janeiro, envolvendo a descentra- educação, continuava expressivo. lização das atividades terciárias na década de A partir da década de 1960, com a im- 1970. Na época, ele foi considerado um centro plantação dos distritos industriais em Campo de relevância e baixa capacidade de atração de Grande e Santa Cruz, e a instalação de grandes populações não locais, mas capaz de atender empresas, como a siderúrgica Cosigua-Gerdau, às necessidades cotidianas de seus moradores. a Michelin e a Vale-Sul, entre outras, criaram- A formação de Campo Grande teve im- se atratividades significativas. pulso a partir da segunda metade do século Cabe registrar que a localização de in- XIX, com a implantação, em 1878, de uma es- dústrias nas periferias metropolitanas, que tação da Estrada de Ferro D. Pedro II. O trans- visava atrativos fiscais e mão-de-obra mais porte ferroviário foi, então, a atratividade que barata, ocorreu junto com o processo de de- transformou essa região tipicamente rural em sindustrialização da Metrópole do Rio de Ja- urbana, ao facilitar o acesso ao centro da cida- neiro, fenômeno esse recorrente em outras de. Em 1894, a empresa particular Companhia metrópoles nacionais, que passaram a se de- de Carris Urbanos ganhou a concessão para dicar prioritariamente ao comércio e serviços explorar a linha de bondes de tração animal, especializados. e, a partir de 1915, os bondes de tração animal Atualmente, a zona oeste do Rio de Ja- foram substituídos pelos elétricos, permitindo neiro é a área que apresenta o maior índice maior mobilidade e integração entre os núcleos de industrialização da cidade, devido, princi- semiurbanos já formados. Esse evento, segun- palmente, às iniciativas governamentais de do Fróes e Gelabert (2004) acentuou o aden- isenção de impostos e vantagens geradas pela samento do núcleo central de Campo Grande disponibilidade de terras mais baratas, da loca- e estimulou a formação de uma significativa lização estratégica e oferta de mão-de-obra. É atividade comercial. o caso de novas empresas como a Siderúrgica Posteriormente, a implantação da estra- CSA, interessada também na facilidade de es- da de ferro e a abertura da Avenida Brasil, em coamento da produção, devido à proximidade 1946, facilitaram o acesso aos bairros da Zona do Porto de Itaguaí. Oeste, o que se traduziu em atrativo para a po- Nos esquemas gráficos a seguir pode- pulação de baixa renda em busca, entre outros mos visualizar a localização dos empreendi- fatores, de terras baratas para fins de estabe- mentos ligados ao Comperj, o traçado do Arco lecimento de moradia. Mas, dado o modelo Rodoviário e a localização de Campo Grande. 110 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI Figura 2 – Intervenções e empreendimentos Fonte: http://www2.petrobras.com.br/Petrobras/portugues/comperj.asp Figura 3 – Distâncias entre Campo Grande, o Porto de Itaguaí e distritos industriais Fonte: Google. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 111 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Em Campo Grande, a centralidade tam- em basicamente dois polos comerciais: o bém tem sido reforçada pela presença de calçadão às margens da linha férrea e nas grande número de agências de um expressivo proximidades do West Shopping (Estrada do número de bancos, que se fazem presentes Mendanha). Tabela 1 – Agências bancárias em Campo Grande, 2009 Bancos Itaú Código Agência / Endereço 0283 4077 4878 5577 6124 7759 7953 - Rua Viúva Dantas Estrada do Mendanha Av. Cesário de Melo Estrada Rio do A Rua Augusto Vasconcelos Rua Barcelos Domingos Estrada do Mendanha Bradesco 3248-4 0552-5 2751-0 0582-7 3431-2 0868-0 2974-2 - Av. Cesário de Melo Rua Augusto Vasconcelos Estrada do Mendanha Av. Nelson Cardoso Rua Coronel Agostinho Rua Barcelos Domingos Av. Cesário de Melo Caixa Econômica Federal 3358-8 0208-9 2955-6 4087-8 - Av. Cesário de Melo Av. Cesário de Melo Rua Viúva Dantas Rua Campo Grande Real Banco do Brasil 0350 - Av. Cesário de Melo 1384 - Estrada do Mendanha 1652 - Av. Cesário de Melo 02020 - Rua Augusto Vasconcelos 02860 - Rua Coronel Agostinho 72370 - Av. Cesário de Melo Santander 1526 - Estrada do Mendanha 1534 - Rua Aurélio Figueiredo HSBC 0309 - Rua Agostinho Coelho Fonte: sites bancos, acesso em 31/10/2009. 112 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI conforme podemos observar nas tabelas Soma-se ao que foi dito o fato de que, abaixo. segundo pesquisa realizada em 2008, para fins de identificação de estoque de imó- De acordo com o estoque do IPTU de veis residenciais e não residenciais, Campo 2008 a tipologia loja representa 32% do total Grande era o oitavo no ranking de bairros de unidades não residenciais da cidade, en- com salas comerciais e o terceiro em lojas, quanto a tipologia sala detém quase 40%. Tabela 2 – Total de unidades não residenciais Tipologias não residenciais Número de unidades Total de unidades % de unidades 210.125 100,00 Tipologia lojas 67.377 32,07 Tipologia sala 83.949 39,95 Outras tipologias 58.799 27,98 Fonte: IBAM. Serviços de Apoio à Elaboração de Estudo de Viabilidade Econômico-Financeira do Plano Geral de Revitalização da Região Central do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. Tabela 3 – Unidades de salas comerciais por bairro em 2008 (bairros que totalizam 80% do total) Bairro Total de unidades % do total de unidades % acumulado 36.691 43,71 43,71 Barra da Tijuca 7.470 8,90 52,60 Copacabana 5.800 6,91 59,51 Tijuca 3.455 4,12 63,63 Ipanema 2.274 2,71 66,34 Méier 2.008 2,39 68,73 Botafogo 1.728 2,06 70,79 Campo Grande 1.506 1,79 72,58 Madureira 1.350 1,61 74,19 Recreio dos Bandeirantes 1.178 1,40 75,59 Taquara 1.078 1,28 76,88 Leblon 1.063 1,27 78,14 Flamengo 989 1,18 79,32 Bonsucesso 943 1,12 80,45 Centro Fonte: IBAM. Serviços de Apoio à Elaboração de Estudo de Viabilidade Econômico-Financeira do Plano Geral de Revitalização da Região Central do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 113 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Tabela 4 – Unidades de lojas por bairro em 2008 (bairros que totalizam 50% do conjunto) Bairro Total de unidades % do total de unidades % acumulado Centro 4.837 7,18 7,18 Copacabana 3.591 5,33 12,51 Campo Grande 2.998 4,45 16,96 Tijuca 2.716 4,03 20,99 Madureira 2.365 3,51 24,50 Barra da Tijuca 2.030 3,01 27,51 Ipanema 1.729 2,57 30,08 Botafogo 1.572 2,33 32,41 Bangu 1.451 2,15 34,57 Penha Circular 1.352 2,01 36,57 Méier 1.301 1,93 38,50 Taquara 1.168 1,73 40,24 Penha 1.158 1,72 41,95 Realengo 1.080 1,60 43,56 São Cristóvão 967 1,44 44,99 Bonsucesso 943 1,40 46,39 Olaria 933 1,38 47,78 Vila Isabel 907 1,35 49,12 Leblon 889 1,32 50,44 Fonte: IBAM. Serviços de Apoio à Elaboração de Estudo de Viabilidade Econômico-Financeira do Plano Geral de Revitalização da Região Central do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. 114 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI A Figura 4 ilustra a vitalidade de Campo Grande, em um sábado típico de compras. Center,2 que podem ser visualizados nas imagens a seguir. Outra informação importante no enten- O West Shopping por sua vez, em funcio- dimento da dinâmica do bairro diz respeito aos namento desde 1997, está em expansão e pre- recentes lançamentos de edifícios comerciais tende dobrar sua capacidade de lojas, cinemas como o Plaza Officer da CHL, o West Medical e estacionamento. Figura 4 – Calçadão de Campo Grande Foto: Arquivo pessoal 10-10-09. Figura 5 – Empreendimento da Delta incorporações Fonte:http://www.deltaconstrucoes.com.brhttp://www.westmedicalcenter.com.br/category/radical-r2/ Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 115 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Figura 6 – Plaza Officer e Atlantis Park Fonte: http://www.chl.com.br/site/ (Plaza Officer na primeira imagem, com salas comerciais com metragem a partir de 22m² e lojas todas com opção de vaga de garagem. E Atlantis Park com apartamentos de dois e três quartos. Figura 7 – West Shopping Fonte: http://www.westshopping.com.br/ e arquivo pessoal 116 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI Tais investimentos induzem e são induzi- Campo Grande conta com vários cursos de dos pelo aumento populacional do bairro nas graduação em diferentes instituições como o últimas décadas. No entanto, a procura maior Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos,3 a para fins de moradia não tem repetido a de- Faculdade Bezerra Araújo, 4 Faculdades Inte- manda tradicional por terrenos para autocons- gradas Campo-Grandenses,5 UniverCidade, 6 trução ou conjuntos habitacionais. Edifícios Universidade Estácio de Sá,7 Centro Univer- multifamiliares ou condomínios residenciais sitário Estadual da Zona Oeste (UEZO, As- têm se apresentado como um grande inves- sociada. à Faetec), 8 além de cursos técnicos timento por parte das construtoras que até também voltados às demandas da indústria.9 então não se interessavam pela região, mas Do conjunto, merece destaque a UEZO, inau- que agora veem na facilidade do crédito e na gurada em 2005, com cursos de graduação oferta de emprego uma ótima oportunidade em Biotecnologia, Tecnologia e Gestão em de negócio. Construção Naval e Offshore, Tecnologia em Produção de Fármacos, Tecnologia em Produ- Depois de muitos anos sem nenhum lançamento, de ficar em 5º lugar em 2007 (atrás de Jacarepaguá, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes e Del Castilho) e de receber 196 unidades lançadas entre janeiro e julho deste ano, Campo Grande “receberá mais de três mil unidades no 2º semestre de 2008, em empreendimentos para todas as faixas de renda, com financiamento de até 100%, taxa de juros abaixo de 12% ao ano mais TR (Taxa Referencial)” e prazo de pagamento de até 30 anos. Segundo dados divulgados pela Ademi: a previsão é que até 2010 sejam criadas mais 1.920 unidades. A grande novidade é a migração de construtoras que até então escolhiam a Zona Sul ou a Barra da Tijuca. (Ibam, 2008) ção de Polímeros, Tecnologia em Produção Siderúrgica e os cursos de Tecnologia e Gestão para Indústria de Petróleo e Gás da Estácio de Sá, voltados ao que tudo indica para as novas demandas do setor de petróleo no estado do Rio e na região. No que diz respeito aos equipamentos voltados para os deslocamentos diários da população, o bairro possui um terminal rodoviário administrado pela Companhia de Desenvolvimento Rodoviário e Terminais – Coderte. Neste encontram-se as linhas de ônibus que fazem as ligações entre os bairros da Zona Oeste, Zona Norte, Centro do Rio, algumas linhas intermunicipais e uma interestadual (Rio–São Paulo). Ao que parece, os fatores de atração da Fora do terminal, devido ao esgotamento população, não são mais necessariamente os de sua capacidade, localizam-se vários outros baixos preços dos imóveis – algumas áreas do pontos finais de ônibus que fazem ligações im- bairro encontram-se bem valorizadas e com portantes entre Campo Grande e: Seropédica, empreendimentos voltados para a classe mé- Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Itaguaí, ou a dia e média alta –, mas sim a oferta de comér- Ilha da Madeira onde se localiza o Porto de cio, serviços, lazer, educação e emprego. Itaguaí. Muitas indústrias fretam ônibus parti- Quanto ao reforço da centralidade atribuída aos estabelecimentos educacionais Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 culares para levar seus empregados aos locais de trabalho.10 117 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Figura 8 – Fluxos de origem e destino à Macrozona 9, em 2004 (parte da Zona Oeste) Fonte: Plano Diretor de Transporte Urbano da Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro, 2004. Este esquema gráfico demonstra que os O bairro conta ainda com trens dos ra- trajetos iniciados na Macrozona Oeste tem co- mais Santa Cruz e Japeri, ambos com destino mo principais destinos a área central da cidade à Central do Brasil administrados pela Super- do Rio de Janeiro (incluindo nesta a Central do via e transporte complementar (alternativo), Brasil e a Praça Mauá), em segundo lugar está como vans legalizadas pelo Departamento de Duque de Caxias, em terceiro pode-se des- Transportes Rodoviários – Detro, com trajetos tacar Barra-Recreio, quarto Zona Sul, quinto nos limites do bairro, outros trajetos entre Jacarepaguá. As ligações de transporte entre bairros ligando Campo Grande a Santa Cruz, a Baixada Oeste e o Extremo-Oeste não pos- Bangu, Realengo e alguns trajetos intermuni- suem destaque, talvez pela grande presença cipais como Campo Grande–Itaguaí e Campo do transporte alternativo nessas ligações e Grande–Seropédica. transportes particulares como o fretamento de É importante lembrar, no que se refere ao ônibus e carros de passeio. Contudo, é notória acesso das populações pobres ao mercado de a capacidade de geração de emprego e oferta trabalho, que o grau de imobilidade pode re- de serviços na Zona Central do Rio. presentar a estagnação econômica (economia 118 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI de subsistência) ou a capacidade de gerar institucionalidades. Assim, observamos, ini- emprego de uma localidade (maior dinamis- cialmente, que os empreendimentos industriais mo econômico) segundo Lago (2007b). Nesse e a infraestrutura logística em implantação na contexto, a imobilidade dos trabalhadores de Região Metropolitana produzirão impactos em Campo Grande estaria associada a um dina- Campo Grande, e tendem a atrelar a reorga- mismo econômico dos subcentros periféricos, nização socioespacial desse centro funcional através da expansão do capital e do mercado muito mais com os municípios vizinhos do que de trabalho para os setores médios. Tal dina- com outros bairros da periferia do Rio de Janei- mismo geraria, ainda, uma economia informal ro, criando possibilidades de alteração da rela- de serviços de baixa qualificação, diminuindo ção centro-periferia com os setores centrais do assim a necessidade ou mesmo a distância do Rio de Janeiro. deslocamento diário de boa parte da população da área em estudo. A importância do centro funcional de Campo Grande pode ser reafirmada não só pe- No entanto, ainda de acordo com a ci- la presença de imóveis voltados para ativida- tada autora, morar próximo dos centros e de comercial como pela presença de agências subcentros é um fator central de inserção no bancárias. No primeiro caso, conforme apon- mercado de trabalho (formal e informal), em tado anteriormente o bairro era, em 2008, o função dos custos com transporte e do próprio oitavo no ranking de bairros cariocas com sa- mercado de trabalho, marcado pela instabili- las comerciais e o terceiro em lojas. Quanto às dade do emprego e da renda. A consolidação agências bancárias, Campo Grande conta com e qualificação do centro funcional provocam a 30 agências que representam os oito principais valorização da terra, o que tende a dificultar o bancos atuantes no país. acesso da população mais pobre, que procura Também é inegável a presença do setor terras mais baratas em periferias cada vez mais imobiliário com a construção de edifícios ha- distantes. bitacionais, comerciais e empresariais diferenciados do padrão tradicional de loteamentos periféricos e da autoconstrução de moradias, Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI: centralidade renovada ou periférica? criando possibilidades de atratividade e alteração da paisagem local. Não podemos deixar de destacar também as iniciativas governamentais, como o programa habitacional, “Minha Casa Minha Vida”, em Campo Grande, que visa facilitar o Para falar das transformações recentes obser- financiamento e subsidiar parte da habitação vadas no bairro de Campo Grande, é preciso para as famílias de baixa renda, mas que não buscar informações na região Metropolita- chega a atender à parcela da população de na com apoio na percepção da espacialidade renda mais baixa, como as famílias com menos do fenômeno metropolitano para além das de cinco salários mínimos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 119 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes No entanto, a localização dos novos em- Já o reforço do centro funcional de Cam- preendimentos, principalmente os comerciais, po Grande está apoiado, principalmente: nos poderá reproduzir o modelo centro-periferia novos e “modernos” empreendimentos imo- no bairro ao acabar destinando os espaços biliários que alteram a paisagem construída 11 “requalificados” às pessoas de “qualidade”. local, nos cursos técnicos alinhados com as Ilustra o que foi dito o fato de que temos novas demandas da área industrial, especial- presenciado, simultaneamente ao reforço da mente siderurgia, metalurgia, petróleo e gás, centralidade de Campo Grande, um crescen- e na implantação de indústrias. Mesmo cien- te aumento do preço da terra acompanhado tes de que os “altos funcionários” podem es- de seletividade ao acesso, principalmente na tar em “qualquer lugar”, até mesmo nas cen- área central (mais infraestruturada). tralidades tradicionais, as facilidades criadas Assim, nossas observações finais vol- pelas inovações técnico-informacionais, con- tam-se para o entendimento de que começam forme destaca Manuel Castells (1989), essas a se apresentar na área estudada: 1) vestí- indústrias geram uma real oferta de emprego gios de mudanças no padrão de interações e para os níveis médio-técnicos e tecnológicos, dependência do centro funcional de Campo podendo atrair e fixar parcela dos trabalhado- Grande com as demais centralidades da re- res na área de estudo e fortalecer o setor de gião Metropolitana e do município do Rio de comércio e serviços. Janeiro; 2) que o reforço da centralidade de Mas não foram identificados indícios Campo Grande aponta para uma continuida- suficientes para caracterizar uma inversão de do modelo centro-periferia e 3) que Campo do padrão centro-periferia envolvendo a pre- Grande, ao que parece, pode ser interpretado sença de atividades características das áreas como uma centralidade periférica renovada. centrais como sedes de empresas e serviços A primeira observação se refere ao grau especializados ou equipamentos públicos e de imobilidade, representado especialmente privados capazes de inverter os deslocamen- pelos custos de transportes, que ao mesmo tos e as interações do centro para a perife- tempo aumentam a informalidade e criam ria, delineando assim em Campo Grande um possibilidades de ampliação do mercado for- reforço da centralidade que pode ser inter- mal de trabalho nas regiões periféricas e, au- pretada ao mesmo tempo como renovada e mentando, portanto, o dinamismo econômico periférica. nos subcentros. Reforça o que foi dito o regis- Mas estamos cientes de que esse é um tro do número de agências bancárias em Cam- tema instigante e que carece ainda de muitas po Grande, apontado anteriormente. pesquisas. 120 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 Centro funcional de Campo Grande no início do século XXI Cristina Lontra Nacif Arquiteta urbanista. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,Brasil. [email protected] Gisele Teixeira Antunes Arquiteta urbanista. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. [email protected] Notas (*) Este ar go é fruto do desdobramento de um Trabalho Final de Graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, desenvolvido em parceria pelas autoras, em 2009. (1) De acordo com os dados do Censo 2000. (2) O West Medical conta com salas des nadas a consultórios médicos, a par r de R$ 160 mil, com área de 45m². Além do West Medical, a Radical R2 Engenharia também lança no bairro um empreendimento residencial de três quartos + reversível com alto padrão de acabamento. (3) Graduação: Administração (Administração de Empresas), Ciências Contábeis, Ciências Econômicas, Ciência da Computação (Informá ca), Comunicação Social (Jornalismo e Publicidade), Direito, Educação Física, Física, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Geografia, História, Letras (Literaturas de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Inglesa), Matemá ca, Pedagogia, Sistemas de Informação. (4) Cursos Graduação: Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Nutrição. (5) Graduação: Matemá ca; Ciências Sociais; Computação; Geografia; História; Letras (Espanhol, Francês, Inglês, Literaturas de Língua Portuguesa); Pedagogia (Administração Escolar, Orientação Educacional, Pedagogia, Supervisão Escolar); Sistemas de Informação. (6) Cursos de Graduação: Administração; Direito; Marke ng; cursos superiores de Tecnologia: Gestão Financeira; Gestão Comercial; Tecnologia em informá ca. (7) Curso de Graduação: Administração, Ciências Contábeis, Direito, História, Letras Pedagogia e Sistemas de Informação e Cursos Politécnicos: Tecnologia e Gestão para Indústria de Petróleo e Gás; Tecnologia em Logís ca Empresarial; Recursos Humanos; Redes de Computadores. (8) Graduação: Biotecnologia, Tecnologia e Gestão em Construção Naval e Offshore, Tecnologia em Produção de Fármacos, Tecnologia em Produção de Polímeros, Tecnologia em Produção Siderúrgica, Tecnologia em Sistemas da Informação; Formação de professores (Educação Infan l e Ensino Fundamental) e Normal Superior. (9) Cursos Técnicos: Informá ca, Indústria, Mecânica, Eletrônica, Eletrotécnica, Segurança do Trabalho, entre outros. (10) Estes passam em pontos e horários determinados e são exclusivos para funcionários. (11) Maiores detalhes ver o ar go A luta por Espaço escrito por Jean Pierre Garnier publicado no Le Monde DiplomaƟque, Brasil de março de 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 121 Cristina Lontra Nacif e Gisele Teixeira Antunes Referências ASCHER, F. (1995). Metápolis ou l’avenir des villes. Paris, Odile Jacob. CAETANO, P. F. (2008). Comperj e Arco Metropolitano no Rio de Janeiro: Grandes Projetos LogísƟcos como Vetores de PolíƟcas Públicas no Território Fluminense. Pesquisa desenvolvida no âmbito do grupo de pesquisa GeTERJ (Gestão Territorial no Rio de Janeiro). CAMPOS, C. (2008). Campo Grande aquecido. O Dia. Rio de Janeiro, 10 de agosto. CASTELLS, M. (1989). The informaƟonal city: informaƟon technology, economic restructuring and the urban-regional process. Oxford, Basil Blackwell. ______ (1999). A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo, Paz e Terra. CORRÊA, R. L. (1999). O espaço urbano. 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Disponível em: h p://www.sectran.rj.gov.br/terminais/terminais_intermunicipal.asp# - Acesso em 23 de outubro de 2009. Texto recebido em 9/nov/2009 Texto aprovado em 27/fev/2010 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 105-123, jan/jun 2010 123 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal Antagonism between employment and housing in Brazil’s Federal District Beatriz Teixeira de Souza Rômulo José da Costa Ribeiro Resumo Este trabalho trata da análise de distribuição de empregos no Distrito Federal e sua relação com a localização das moradias. O Distrito Federal, em função do seu processo de formação e planejamento, apresenta-se como um modelo clássico de centro-periferia, os empregos concentrados na região central e a maioria da população habitando nas áreas periféricas. Essa situação é claramente ocasionada devido ao fato de a concentração de empregos públicos, na esfera federal, encontrar-se na área central (mais de 190.000 empregos), conhecida como Região Administrativa I. Essa região, por ser tombada como patrimônio não pode receber novas habitações, concentra menos de 10% da população do DF. O crescimento populacional faz com que se tenha que habitar em áreas periféricas, distantes dos empregos. Abstract This paper deals with the analysis of job distribution in Brazil’s Federal District and its relationship to the location of the houses. The Federal District, due to its formation and planning process, is a classic center-periphery model, jobs being concentrated in the central area and most of the population inhabiting the peripheral areas. This situation is clearly caused by the fact that public jobs in the federal sphere are concentrated in the central area (more than 190,000 jobs), known as Administrative Area I. As this is a listed area, it cannot receive new houses, and concentrates less than 10% of the population of the Federal District. Due to the population growth, people must inhabit the peripheral areas, which are distant from the jobs. Palavras-chave: planejamento urbano; moradia; emprego; dispersão urbana; relação centro-periferia. Keywords: urban planning; houses; jobs; urban sprawl; center-periphery relationship. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro Introdução exemplo concreto, sendo mesmo considerada A definição do que é a cidade não é uma ta- do (Ribeiro, 2008). como a segunda cidade mais dispersa do mun- refa simples. Palco de inúmeras intervenções, O Distrito Federal tem se mostrado, se- por vezes contraditórias, ela requer análises gundo diversas pesquisas (Ribeiro et al., 2005; espaciais bem definidas, muito embora sua lei- Holanda, 2002, entre outros), como um modelo tura não deva ser feita apenas por este ângulo. clássico de cidade industrial ou monocêntrica, Questões sociais e econômicas não devem ser com forte concentração de empregos na zona ignoradas do contexto do qual fazem parte, central e a população, principalmente a de me- tratando-se mesmo de um emaranhado de fa- nor renda, localizando-se em área periféricas, tores concorrentes. cada vez mais distantes dos empregos. Essa O mundo, hoje predominantemente ur- lógica perversa é fruto de seu planejamento, bano, proporciona um desafio à sua própria organização e tombamento, que praticamente existência, impondo necessariamente modelos “forçam” uma ocupação segregacionista. de vida diferentes daqueles que foram adota- O presente estudo busca comprovar tal dos até os dias atuais. A necessidade premente realidade, na qual a forte dispersão urbana de novos valores a serem adotados irá ditar as afeta a localização de moradias, pondo-as lon- novas formas de consumo e, consequentemen- ge das áreas de emprego. te, de vida para um futuro próximo. A busca por melhores condições de vida subentende a busca por uma cidade sustentável, que proporcione qualidade de vida em seu sentido mais amplo. A dispersão urbana e a moradia A dispersão urbana é a antítese dessa proposta, apresenta-se como descompasso O processo de dispersão urbana é complexo entre essa configuração urbana e o ideal de e diversificado. Apesar de muito presente nas uma cidade sustentável, que promova a aces- cidades contemporâneas de todo o mundo, é sibilidade ao pleno gozo dos direitos e deveres nas formações metropolitanas mais recentes fundamentais de seus cidadãos. A dispersão que ela se torna mais evidente. Em todos os (“separação”) urbana implica elevados custos, casos, no entanto, elas não são idênticas; ao não só financeiros, mas principalmente sociais. contrário, cada região ou país apresenta suas O caso do Distrito Federal (Brasília e especificidades e problemas distintos, os quais cidades do entorno) se apresenta como um contribuem em maior ou menor grau para esse exemplo desse tipo de estrutura urbana, em- fenômeno. bora suas motivações tenham sido, em geral, A crescente urbanização ao longo da diversas daquelas cidades comumente concei- segunda metade do século XX contribuiu para tuadas como dispersas. Pelas particularidades mudanças importantes em todos os quadran- de sua história, Brasília se apresenta como um tes do mundo, inclusive no que diz respeito aos 126 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal modos de vida atuais, os quais são tipicamente Reis (2007) acredita que há cinco gran- urbanos até mesmo para áreas denominadas des mudanças responsáveis pela dispersão ur- rurais. bana ao redor do mundo, quais sejam: A situação de domicílio da Pesquisa Na- ● Grandes migrações rural-urbanas em vá- cional por Amostras de Domicílios (PNAD), de rios continentes, reforçadas pelo significativo 2007, já oferece avanços nesse sentido ao con- crescimento demográfico; siderar a situação rural como a abrangência da população e domicílios recenseados fora dos limites das sedes municipais e distritais, incluin- ● Surgimento de regiões com população to- talmente urbanizada; ● Intensificação da industrialização e cres- do os aglomerados rurais de extensão urbana, cente dispersão das unidades produtivas em os povoados e os núcleos. Dessa forma: todo o mundo; A dicotomia rural-urbano, que considerava o urbano com lócus das atividades não agrícolas – indústria – e que atribuía ao rural as atividades agrícolas, vem perdendo a sua importância histórica. O que se observa é uma crescente heterogeneidade de atividades e opções de emprego e renda não agrícolas, o que tem contribuído para que a população residente no meio rural tenha maior estabilidade econômica e social. (Campanholha; Silva apud Patarra, 2007, p. 192) ● Universalização dos mercados ou polos de produção e de seus padrões técnicos, com suas centralidades específicas; ● Universalização de modos de consumo pa- dronizados, ou seja, o consumo de massa. Entre os diversos pesquisadores sobre dispersão urbana, parece ser pacífico o entendimento da “união” entre o urbano e o rural, a qual é fruto direto das relações de produção estabelecidas em todo o mundo após a segunda metade do século XX, particularmente as transformações ocorridas a partir de 1970, Patarra (2007) quis demonstrar a di- década considerada como marco para a pas- ficuldade de apontar definições muito claras sagem de uma reestruturação produtiva após entre o que é urbano e o que é rural, uma o capitalismo fordista, que implicou abertura vez que o espaço desigualmente distribuído dos mercados nacionais e um novo parâmetro é produto de outras forças que não aquelas de economia globalizada. definidas por regiões administrativas, as quais Dentro desse contexto, a abertura eco- não proporcionam informações suficientes para nômica brasileira proporcionou a inserção do o entendimento entre as relações de produção país no círculo internacional, ao mesmo tempo entre as cidades de uma mesma região ou as em que alimentou ainda mais as desigualdades inter-relações fora dela. A dispersão urbana sociais já existentes. Segundo Ferreira (2007), aparece, então, como produto dessas forças, percebe-se uma assimetria entre essa nova for- que serão melhor discutidas por meio da base ma de crescimento da economia mundial e o teórica fornecida por Bertaud e Malpezzi surgimento de novos grandes bolsões de po- (2003), a qual é utilizada para o fim a que se breza em países em desenvolvimento, como é destina este trabalho. o caso do Brasil. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 127 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro Enfim, o impacto da globalização sobre o autor utiliza a densidade populacional por meio urbano e a geografia do espaço torna-se quilômetro e o consumo de terra (espaço urba- objeto de inúmeras análises e conjunturas. De no por habitante) por quilômetro. Isso revela fato, a ideia do “global” se impõe, no mundo aspectos de ocupação do espaço, mas deixa atual, em sua forma mais acabada e eficaz. San- a desejar quanto à compreensão da situação tos (2008) já discutia os níveis de compreensão socioeconômica. dessa nova conjuntura (o mundial, o do território O autor afirma que as organizações dos Estados e o local), quando afirma que ela se espaciais das cidades são moldadas por for- concretiza por meio da desmaterialização do di- ças de mercado que interagem, em maior ou nheiro e do seu uso instantâneo e generalizado. menor grau, com os instrumentos de gestão As fronteiras estão abertas e destinam modifi- manipulados pelo planejamento urbano, quais cações nos modos de vida nestes três níveis. No sejam: leis do uso do solo, investimentos em entanto, é localmente que os fragmentos dessa infraestrutura primária e impostos. Considera, rede mundialmente conectada ganham uma di- portanto, a influência política de governos lo- mensão única e socialmente concreta. cais na condução de caminhos e soluções para De uma forma geral, a percepção de qualquer cidade. Santos poderia ser aplicada a qualquer con- Sendo a cidade fruto de fatores inter- texto geográfico, sendo possível traçar certos dependentes, faz preponderar soluções não panoramas urbanos em cada país ou região. planejadas do ponto de vista estritamente téc- Contudo, a análise da dispersão urbana requer nico, mas principalmente político. Na grande estudos mais aprofundados, visto que as espe- maioria dos casos, a cidade é, de fato, produ- cificidades de cada localidade exigem interpre- to direto de decisões políticas com pouco ou tações particularizadas. nenhum conteúdo técnico. É bem verdade que Dessa forma, tendo em mente a relação não há uma fórmula para a “cidade perfeita”, entre economias e sistemas de redes mundial- mas é possível, por meio de objetivos prede- mente conectados, podem-se discutir as várias finidos, estabelecer soluções e condições coe- vertentes teóricas de explicação para o fenô- rentes com a cidade que se quer implementar. meno da dispersão urbana. Ainda que direta- Dessa forma, Bertaud e Malpezzi (2003) mente relacionada às intervenções locais, é não só acreditam ser a cidade o palco das ma- também fruto da relação dessas redes em nível nifestações do mercado, mas também posicio- mundial. Esse é um fator de suma importância nam a fragmentação ou consolidação desse para a compreensão do problema, visto que segundo o direcionamento adotado para a não é produto isolado e inerte, mas flexível e produção de uma dada estrutura urbana. Isto dinâmico, tratando-se, portanto, de foco para quer dizer que a configuração da cidade pode inúmeras discussões no Brasil e no mundo. contribuir ou não para a performance da atua- Bertaud (2004) propõe uma forma dife- ção do mercado, sendo, para isto, necessária a rente de análise urbana, na qual são estudados atuação do planejador urbano como intermé- parâmetros urbanos em função de distâncias dio para o fim a que se destina o propósito de 1 ao Centro de Comércio e Serviços (CCS ). O 128 uma cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal Para a análise desses padrões, é de fun- Isso quer dizer que fatores econômicos damental importância o conhecimento sobre a influenciam nos níveis de densidade da popu- forma da cidade. Independentemente da his- lação, fazendo com que ela oscile para mais ou tória da formação de determinada estrutura menos densa conforme sua suscetibilidade às urbana, é possível discernir o CCS, região na forças de mercado atuantes naquela região ou qual é concentrada a maioria das atividades país. que definem a economia que move o desenvolvimento de uma cidade. Dentre as cidades que compõem a amostra estudada, Brasília aparece como a segun- Assim, dependendo da localização do da cidade menos densa da América Latina, CCS, as cidades podem ser classificadas em ficando atrás apenas de Curitiba. A Cidade do 2 3 monocêntricas ou policêntricas . De certa for- México e o Rio de Janeiro apresentam-se como ma, pode-se dizer que toda cidade surgiu de as mais densas da América Latina, apesar de uma estrutura monocêntrica, ao redor de uma estarem posicionadas em uma média mundial atividade econômica predominante, e que a aproximada de 95 pessoas/hectare. partir daí se dissolveu em estruturas menores, Por meio de mapas e censos demográfi- constituindo novos aglomerados edificados cos é possível traçar um perfil mais ou menos mais ou menos densos em relação ao centro fiel da densidade populacional de uma deter- primariamente constituído. Esses novos aglo- minada área. A importância desse dado tem merados, por sua vez, podem constituir-se em relação com a detecção do tipo, quantidade novos pontos de referência, formando novas e forma das viagens diárias percorridas pela centralidades dispersas. Em alguns casos, é população da cidade que se ter como objeto possível perceber, nesse processo, o desloca- de estudo. Portanto, é importante considerar, mento do grau de importância do antigo cen- nessa avaliação, a localização dessa popula- tro para uma nova área que abrigue novas ati- ção no período entre meia-noite e seis horas vidades econômicas e, portanto, novas oportu- da manhã, período em que se pressupõe con- nidades de emprego e renda. siderar as pessoas em casa e não no trabalho Bertaud e Malpezzi (2003) efetuaram (Bertaud, 2004). Dessa forma, podem-se de- uma pesquisa entre 49 cidades ao redor do terminar os pontos de partida e chegada das mundo, com o intuito de comparar a densida- viagens diárias, ou seja, a movimentação das de populacional de cada uma delas. O resulta- pessoas no deslocamento de suas casas para do, demonstrado no Gráfico 1, permite inferir o trabalho e vice-versa. O estudo de Bertaud duas questões. A primeira delas é que cidades (ibid.) contemplou diversas cidades distribuí- muito densas não têm correlação direta com o das ao redor do mundo e confirma que as tamanho e nem tampouco com a renda média maiores densidades populacionais estão loca- da população de cada cidade estudada. A se- lizadas nas áreas próximas ao CCS, onde está gunda, é que existe uma forte relação da den- concentrada maior oferta de empregos. sidade populacional com a posição e o grau de Na maioria das cidades monocêntricas, importância econômica de uma determinada fica claro que as concentrações populacionais cidade no continente em que se está inserido. ao redor do CCS são ainda mais intensas do Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 129 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro Gráfico 1 - Comparação média da densidade populacional em áreas construídas em 49 áreas metropolitanas Atlanta Houston Portland (Oregon) Chicago San Franc. Bay San Francisco Washington Los Angeles Cape Town Stockholm Berlin Tolouse New York Ljubijana Jabotabek (Jak) Johannesburg Marseille Curitiba Brasília Bangkok London Budapest Riga Cracow Buenos Aires Warsaw Prague Paris Sofia Mexico City Rio de Janeiro Tunis Singapore St. Petersburg Jakarta Municip. Ahmedabad Abidjan Beijing Tehran Yerevan Barcelona Metro. Addis Adaba Moscow Bangalore Hyderabad Tianjin Seoul+new towns Shanghai Seoul Guangzhou Hong Kong Mumbay (Bombay) Asia Africa Europe Latin America USA DENSIDADE (pessoas/hectare) Fonte: Bertaud e Malpezzi (2003, p. 9) que naquelas policêntricas, onde a distribuição Ribeiro (2008) ampliou a amostra de populacional tende a ser mais igualitária e dis- Bertaud de 49 para 62 cidades, introduzin- tribuída nos espaços dispersos na periferia do do várias capitais brasileiras, e assim mostra, centro. no Gráfico 2, a relação entre a dispersão e a Esse resultado mostra que a maioria das popula ção urbana de cada cidade. Pode-se cidades tem tendência a ter uma forma mais verificar a tendência da maioria das cidades compacta, e uma pequena parte (apenas 5 analisadas para compacidade. Esse gráfico cidades, Hong Kong, Capetown, Brasília, Belo mostra que o grau de compacidade não tem Horizonte e Bombay) apresenta uma tendência correlação direta com o tamanho da popu- à forte dispersão espacial. lação, uma vez que a distribuição mostra-se 130 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal aleatória, com um coeficiente de correlação de que apresenta índice de dispersão norma- Pearson (r) igual a 0,007 e o seu respectivo co- lizado igual a 1,0, e pode ser considerada a 2 eficiente de determinação (r ) é 0,00005, o que mais compacta dentre as cidades analisadas, indica que essas variáveis não se influenciam. com uma população de aproximadamente Outros fatores podem estar relacionados à 11.000.000 de pessoas. Por outro lado, tem- dispersão, tais como fatores culturais, históri- se a cidade de Bombay, na Índia, com índice cos, ambientais, etc. de dispersão normalizado igual a -1,0, e po- Têm-se cidades com número de ha- de ser considerada a mais dispersas dentre bitantes muito próximos, mas com índices as cidades analisadas, com uma população de dispersão muito diferentes, como, por de aproximadamente 10.000.000 de pessoas exemplo, a cidade de Shanghai, na China, (Ribeiro, 2008). Gráfico 2 – Relação entre o Índice de Dispersão Normalizado e a População em Área Urbana. Verifica-se que não há um comportamento homogêneo para os dados, nem a formação de agrupamentos Fonte: Ribeiro (2008). Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 131 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro O Gráfico 3 mostra a relação entre a essas variáveis não se influenciam. A maioria dispersão e a área urbana construída. Verifica- das cidades apresenta alta compacidade, não se, da mesma forma como ocorre no Gráfico importando o tamanho de sua área urbana (Ri- 2, não ser possível identificar tendências ou beiro, 2008). agrupamentos, apesar de ter apresentado uma A maioria das cidades brasileiras encon- correlação positiva, essa é muito baixa para tra-se numa faixa intermediária da normaliza- expressar de fato alguma relação entre essas ção, mas com tendência para maior compaci- variáveis (r = 0,131). O coeficiente de determi- dade. Três cidades apresentaram valores iguais 2 nação também se mostra muito pequeno (r = ou menores que 0,00: Belém (0,00), Belo Hori- 0,017), o que indica, como anteriormente, que zonte (-0,24) e Distrito Federal (-0,60). Gráfico 3 – Relação entre o Índice de Dispersão Normalizado e a área urbana construída. Verifica-se que não há um comportamento homogêneo para os dados, nem a formação de agrupamentos Fonte: Ribeiro (2008). 132 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal As capitais brasileiras analisadas das capitais há maior densidade populacional próxima ao CCS. A cidade de Salvador apresenta a maior densidade populacional (219,36 hab/ha) a 3 km do seu CCS, e para a cidade de As 13 capitais brasileiras analisadas apresen- Florianópolis a sua maior densidade popula- tam comportamento heterogêneo, o que im- cional (23,33 hab/ha), também a 3 km do seu possibilita seu agrupamento. Esse fato deve-se CCS, foi o menor resultado encontrado para as provavelmente à época de sua fundação, his- cidades analisadas. tória de formação, evolução de cada centro, Apenas Brasília apresenta comporta- aspectos ambientais e físicos do local de ins- mento inverso, a população aumenta à medida talação dessas cidades. Em síntese, esse fato que a distância do CCS aumenta. Isto se deve possivelmente deve-se à situação de formação às políticas públicas perversas, que em nome específica de cada centro, sendo uns com qua- da preservação do projeto do Plano Piloto, se 500 anos, outros com menos de 80 anos. acabam por fomentar a ocupação de espaços Na maioria das cidades prevalece a re- vazios periféricos, o que favorece uma ocupa- dução da população em função da distância ção fragmentada do espaço e causa uma rede ao CCS, comportamento semelhante ao en- urbana desconexa. Como resultado geram-se contrado para a maioria dos centros mundiais forte segregação espacial e exclusão social: as analisados por Bertaud e Malpezzi (2003). Po- áreas com famílias de menor poder aquisitivo de-se observar pelo Gráfico 4 que na maioria localizam-se distantes do Plano Piloto, pois Gráfico 4 – Comparação da densidade populacional em urbanas construídas em relação ao afastamento do CCS, para as capitais brasileiras analisadas Distrito Federal – 2000 pessoas/hectare pessoas/hectare Belém – PA – 2000 Distância do CBD (km) Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 Distância do CBD (km) 133 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro Natal – RN – 2000 pessoas/hectare pessoas/hectare Fortaleza – CE – 2000 Recife – PE – 2000 Salvador – BA – 2000 pessoas/hectare Distância do CBD (km) pessoas/hectare Distância do CBD (km) Distância do CBD (km) Rio de Janeiro – RJ – 2000 São Paulo – SP – 2000 pessoas/hectare Distância do CBD (km) pessoas/hectare Distância do CBD (km) Distância do CBD (km) 134 Belo Horizonte – MG – 2000 pessoas/hectare pessoas/hectare João Pessoa – PB – 2000 Distância do CBD (km) Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal pessoas/hectare Florianópolis – SC – 2000 pessoas/hectare Curitiba – PR – 2000 Distância do CBD (km) Distância do CBD (km) pessoas/hectare Porto Alegre – RS – 2000 Distância do CBD (km) Fonte: Ribeiro (2008). quanto mais próximo dele, mais elevados são se mais onerosa, pois há uma distância maior a os custos de moradia e de consumo em geral. ser coberta para gerar uma interligação com as Esse comportamento inverso propicia maior redes preexistentes. número de pessoas distantes do CCS, conse- O aumento do custo de transporte pode quentemente, longe do mercado principal de ser verificado pelo Índice de Passageiros por empregos, interferindo positivamente no ele- Quilômetro (IPK), que, em linhas gerais, indi- vado custo de deslocamento cotidiano na cida- ca a média de passageiros transportados por de, seja por meio de automóveis, seja de trans- quilômetro de linha de ônibus. Quanto menor porte coletivo. Quanto mais distantes do CCS o IPK, mais caro se torna o transporte, o que maior é o gasto da população para deslocar-se, pode indicar distâncias longas a serem percor- bem como aumenta também o gasto público, a ridas com baixa quantidade de passageiros. No implementação de infraestrutura básica torna- caso do Distrito Federal, cidade com menor IPK Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 135 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro (Gráfico 5), comumente não há troca de passa- Isso corrobora a afirmação de que quanto geiros durante o percurso. A maioria entra nos maior a dispersão urbana, maior será o custo pontos iniciais e desloca-se até o ponto final, com transporte, uma vez que se tem o deslo- a rodoviária do Plano Piloto. Segundo dados camento por maiores distâncias custeado por da Pesquisa Domiciliar de Transporte de 2000, uma quantidade menor de passageiros. Mais cerca de 44,92% dos empregos do Distrito uma vez, pode-se verificar que o Distrito Fe- Federal encontram-se no Plano Piloto, sendo deral, que se apresenta como a capital mais que menos de 10% da população do DF habita dispersa, dentre as analisadas, também apre- nessa localidade (Codeplan, 2006). senta o menor IPK, confirmando o resultado da A correlação entre o índice de dispersão correlação. normalizado e o IPK para as 13 capitais ana- Essa grande dispersão na ocupação do lisadas apresenta um resultado significativa- espaço da capital brasileira refletiu e reflete mente positivo, 0,57. O resultado mostra que diretamente nas condições de ocupação de sua os dois índices têm uma relação direta forte: população. Como o centro da capital, o Plano quanto maior a dispersão menor a quantida- Piloto, ainda é visto como melhor local para de de passageiros por quilômetro percorrido. moradia, tanto pela qualidade urbana como IPK Gráfico 5 – Variação do IPK para as 13 capitais brasileiras. Para João Pessoa, dado de outubro de 2003; para o Distrito Federal, Natal, Belo Horizonte e Florianópolis, dado de outubro de 2002; para o Rio de Janeiro, dado de outubro de 2001; para as demais localidades, dados de outubro de 2000 Distrito Federal Rio de Janeiro Recife Natal Belém São Paulo Fortaleza Salvador Florianópolis B.Horizonte Curitiba João Pessoa Porto Alegre Fonte: http://ntu.org.br/banco/estatisticas, 2006. 136 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal pela proximidade dos empregos, portanto o entre R$8.000,00 a R$10.000,00, sendo que custo de moradia nesse local torna-se muito al- os imóveis estão todos vendidos, mesmo os to. Assim, a população com menor renda passa vendidos “na planta”). Essa demanda aca- a ocupar as cidades periféricas, por muito tem- ba forçando a ocupação irregular de áreas po conhecidas como cidades-satélites. Algu- públicas, o parcelamento de chácaras que são mas dessas cidades adquiriram grande status, transformadas em condomínios e a invasão devido à qualidade urbana, isso força, nova- de reservas e áreas de proteção ambientais. A mente, a população que não tem condição de moradia para a classe média é escassa ou está custear sua vida nesses locais a procurar áreas a preços muitas vezes inacessíveis, e essa par- cada vez mais distantes e com menor qualida- te da população torna-se o grande alvo dos lo- de urbana e ambiental. O que revela esta cruel teamentos e condomínios irregulares, gerando realidade: a população menos favorecida tem novas áreas urbanas. Essas novas áreas, por menos acesso à qualidade urbana e ambiental, não terem planejamento, acabam por se tornar como em outras cidades brasileiras, mas aqui prejudiciais à natureza, devido aos desmata- de maneira particularmente perversa. mentos, impermeabilizações de ruas e acessos Esse é o típico exemplo de uma dinâmica que se repete em ambientes urbanos mercan- e pelo uso indiscriminado de recursos hídricos subterrâneos. tilizados, onde o preço da terra tem compo- O Plano Piloto, por ser patrimônio histó- nentes precisos na sua composição. De fato, rico da humanidade, acaba por ver “engessa- Brasília, em princípio, apenas radicaliza esse da” a possibilidade de crescimento habitacio- mecanismo, no qual a especulação imobiliária nal, fazendo com que as cidades a sua volta em torno do CCS eleva absurdamente os valo- inchem e ampliem seus limites, incluindo em res. Como exemplo tem-se o bairro Noroeste, sua área urbana o que anteriormente era área ainda nem implantado, que será localizado na rural. Isso gera consequências socioambien- Asa Norte do Plano Piloto, no qual o preço no tais muito sérias, a começar pelo aumento da metro quadrado já inicia entre R$8.000,00 a poluição atmosférica pela emissão de gases R$10.000,00. Em oposição, têm-se imóveis em poluentes provenientes da grande circulação cidades mais afastadas, como o Gama, no qual de veículos. Em função dessa grande quanti- o metro quadrado não excede R$1.000,00. dade de empregos concentrada em Brasília e da grande dispersão das cidades do DF, isto é, muitos espaços vazios entre as áreas urbanas, Moradia e emprego no Distrito Federal gerando uma rede urbana desconexa, o transporte por veículos torna-se o único meio de acesso aos empregos, visto que mais de 90% da população encontra-se longe deles. No Distrito Federal, a demanda por moradia Em média, a maioria da população do torna-se cada vez maior, em função da baixa DF está a 20 km do polo concentrador de em- oferta de imóveis e do seu alto custo (em cer- pregos. O aumento da circulação de veículos, tos lugares o preço do metro quadrado varia além de elevar a quantidade de poluentes no Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 137 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro ar, também eleva a temperatura, em função divisão por grupos representativos de uma de- da emissão de gases aquecidos pelos veículos. terminada área, a qual teve a colaboração do Nas áreas de maior circulação de pessoas e Departamento Intersindical de Estatística e Es- veículos e concentradoras de empregos, como tudo Socioeconômicos (Dieese), que conside- o Setor Comercial Sul e o Centro de Taguatin- rou como parte de um mesmo grupo parcelas ga, verifica-se uma quantidade de metais no da população com rendas similares. Assim, o ar muito acima do que permite a legislação Dieese dividiu a população do DF, segundo Re- (Bitencourt, 2004; Dâmaso, 2004). Nos mes- giões Administrativas (RA), em três grupos de mos lugares, valores de temperatura ficaram renda: mais altos se comparados às áreas em seu ● Grupo 1: Grupo de Regiões Administra- entorno imediato. Cabe ressaltar que dentre tivas de renda mais alta, 345.338 habitantes todas as cidades do DF, Taguatinga é a úni- (Brasília, Lago Sul e Lago Norte); ca que, de fato, coloca-se com grande centro ● Grupo 2: Grupo de Regiões Administrati- atrator, enquanto as outras podem ser classi- vas de renda intermediária, 920.785 habitan- ficadas como cidades-dormitórios. Situação tes (Gama, Taguatinga, Sobradinho, Planaltina, reforçada pela transferência do governo local Núcleo Bandeirante, Guará, Cruzeiro, Candan- para lá, saindo do Plano Piloto, aumentando, golândia e Riacho Fundo); assim, o fluxo veicular para Taguatinga. ● Grupo 3: Grupo de Regiões Administrati- De fato, atualmente, existe um expres- vas de renda mais baixa, 830.411 habitantes sivo número de pessoas morando em núcleos (Brazlândia, Ceilândia, Samambaia, Paranoá, urbanos na periferia de Brasília, muitos deles São Sebastião, Santa Maria e Recanto das criados por uma política de erradicação de Emas). favelas, ou “invasões”, que se deu ao longo de todo o processo de sua formação. A mais visível consequência desta política se traduz nas grandes distâncias a serem percorridas, diariamente, por essa população, a qual possui sua situação agravada pelas altas tarifas do transporte público, conforme já frisamos anteriormente. Pode-se notar que o número de RA totaliza 19, que são as que foram criadas até 1997 e abarcam todo o DF. De 1997 até o presente, foram criadas mais 11 RA, totalizando 30, mas essas novas, apesar de existirem na lei, não possuem delimitações, que seriam recortes das 19 preexistentes. Dessa forma, o Dieese, assim como diversos outros órgãos, ainda usam as 19 RA, por possuírem delimitação. Cabe lem- Emprego e moradia no DF brar que o governo do DF está fazendo esforços para definir os novos limites. O problema aqui reside no fato de que Diante das bases de pesquisa apresentadas, a classificação por renda não constitui, neces- é necessário fazer algumas observações acer- sariamente, parâmetro para análise da quali- ca das informações obtidas como fonte para dade de vida de uma população. Essa variável este trabalho. A primeira delas diz respeito à demanda estudos mais profundos para o seu 138 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal pleno entendimento e não será possível tratá- apesar de positivo, indicando que a densida- la de forma abrangente. Assim, pretende-se de populacional aumenta com a distância do avaliar somente parte dessa variável, uma CCS, esse resultado mostra uma baixa corre- vez que o custo social gerado pela dispersão lação entre as variáveis, o que impede maio- urbana influencia na relação do ser humano res inferência. O resultado pode ter sido in- com seu entorno e, consequentemente, com a fluenciado pelo fenômeno, comum no DF, dos cidade. condomínios horizontais fechados, que têm Portanto, a classificação por grupos se espalhado pela capital federal e são cons- feita pelo Dieese não permite concluir sobre tituídos por população das mais diferentes a totalidade das condições de sustentabilida- classes de renda, e que ocupam, na maioria de da população considerada, mas sim uma dos casos, áreas ilegais, sendo os terrenos dos análise parcial das condições de vida de um mais diferentes tamanhos (variando entre 200 conjunto de pessoas pertencente a um mesmo e 5.000m2). grupo, por meio do deslocamento diário dessa população. Visto os problemas inerentes aos dados utilizados, em um primeiro momento talvez Outra generalização feita no levanta- fosse possível concluir que o Distrito Federal mento dos grupos diz respeito à localização possui uma configuração urbana policêntrica das cidades consideradas em um mesmo gru- do ponto de vista de sua organização espacial, po. Uma vez que a análise da dispersão leva uma vez que podem ser considerados outros em consideração o tempo gasto entre o local pontos de atração populacional. Entretanto, de moradia e trabalho, o local de partida sofre faz-se necessário enfatizar a diferença en- alterações significativas em relação ao centro tre cidade dispersa e cidade descentralizada, de serviços e empregos, o Plano Piloto. Gama as quais possuem conceitos completamente e Planaltina, por exemplo, são cidades que se diversos. encontram fisicamente opostas, mas, contra- A cidade descentralizada é uma cidade ditoriamente, pertencem a um mesmo grupo policêntrica; a cidade dispersa não. A diferen- (Grupo 2). A correlação entre a distância do ça entre uma e outra está basicamente no fato CCS e a renda dos chefes de família (obtida a de na primeira existirem além do CCS, outros partir do Censo Demográfico de 2000) apre- polos de serviços e empregos, com diferentes sentou como resultado -0,66, que indica que pesos de atração. Na segunda, existe apenas quanto maior a distância do CCS menor é a um CCS com peso suficiente para concentrar renda do chefe de família. Esse resultado, al- grande parte das oportunidades de emprego, tamente significativo, reforça claramente o o qual atende a maioria da população localiza- argumento que apresentamos sobre a discre- da de forma dispersa e irracional. pância existente entre a localização de empre- Este é o caso do DF. O grupo 1 possui gos e a população, quanto mais pobre mais maior influência para a análise da dispersão, distante do emprego. Calculou-se também a uma vez que detém mais de 190 mil ocupados correlação entre a densidade populacional e trabalhando na Administração Pública. Isso a distância ao CCS, o resultado foi 0,16, que, significa que a Esplanada dos Ministérios, Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 139 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro centro do poder administrativo federal e dis- interpretação desse fato seria o incremento de trital, recebe um contingente populacional atividades autônomas e informais na popula- maior do que os CCS dos grupos 2 e 3, ou ção do Grupo 1, as quais não foram computa- seja, as viagens diárias percorridas pela po- das na avaliação de atividades econômicas da pulação do DF acontece de sua periferia para Codeplan. Outro ponto importante que pode o seu interior. ter ocasionado esse efeito foi a transferência Segundo dados da Companhia de Pla- de parte do governo do DF para Taguatinga nejamento do Distrito Federal (Codeplan), em (Grupo 2), mas para verificar isso seria neces- 2008, Brasília (Grupo 1) contava com apenas sária uma pesquisa mais profunda com os ser- 16% do total da população do DF, sendo que vidores que estão trabalhando nessa RA, a fim 74% da população economicamente ativa, re- de identificar seus locais de moradia, e assim, presentada pelos Grupos 2 e 3, trabalhava no confirmar nossa conjectura, mas isso não foi o Grupo 1. enfoque deste trabalho, que procurou, neste Em números relativos, é possível inferir, momento, analisar dados secundários. ainda, que a população residente no Grupo Além disso, o envelhecimento da po- 2 possui uma maior dependência do CCS do pulação residente no Grupo 1 (visto que foi a Grupo 1 do que o Grupo 3. A parcela de mo- primeira região ocupada quando da instalação radores do Grupo 2 que trabalha no Grupo 1 é da capital) pode estar gerando esse efeito, maior do que os moradores do Grupo 3, inde- cerca de 42% dos habitantes têm mais de 35 pendentemente da densidade populacional de anos, maior percentual entre os grupos. Uma cada um dos grupos. vez que ao se aposentarem esses indivíduos É possível perceber ainda que, entre 1992 deixam de contar como população ocupada, e 2008, os moradores do Grupo 1 que traba- mas continuam a habitar na referida região, lham nesse mesmo grupo diminuiu ao longo com isso diminuindo a população economica- desse anos (Gráfico 6). Com os dados dispo- mente ativa na área, cerca de 10% dos habi- níveis para esta pesquisa, não seria possível tantes têm mais de 60 anos, maior percentual o entendimento dos motivos pelos quais isto entre os grupos. No entanto, para a verificação ocorreu, visto que os CCS dos Grupos 2 e 3 não dessa suposição seria necessário estudo mais receberam contribuição dessa população em específico, cuja abordagem não é o foco deste seus postos de trabalho. Uma suposição para a trabalho. 140 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal % de pessoas ocupadas que trabalham no Grupo 1 Gráfico 6 - Distribuição das pessoas ocupadas segundo o local onde trabalha e reside Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3 Linear (Grupo 1) Linear (Grupo 2) Linear (Grupo 3) Local de residência por ano Considerações finais Além da ocupação do espaço, a dispersão urbana implica também a resolução de Diante dos dados disponibilizados, fica claro o problemas sociais, os quais deveriam ser ana- caráter excludente de que se revestiu a política lisados de forma conjunta com a ocupação habitacional no Distrito Federal durante toda desse espaço. O Estado deveria agir na busca a sua formação. Ainda que parcial, a análise de sociedades mais justas e igualitárias, ten- ora apresentada permite concluir que Brasília do isso como foco de atuação em sua gestão imprime em sua população altos custos sociais pública. e econômicos, visto que a cidade dispersa se- Para o caso de Brasília, acreditava- grega e exclui. Não seria possível pensar em se que a distância física seria suficiente para sustentabilidade sem integração e socializa- afastar a pobreza e os problemas sociais exis- ção, uma vez que esse conceito vai além da tentes no núcleo da capital federal, o Plano Pi- questão ambiental, trazendo consigo valores e loto. Nos últimos anos, no entanto, a pobreza hábitos condizentes com a busca da qualidade e a violência no DF têm se agravado, muito em de vida. função da própria segregação espacial a que a Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 141 Beatriz Teixeira de Souza e Rômulo José da Costa Ribeiro população do entorno está sujeita. Conforme forma a avaliar as possibilidades de ocupação Bertaud e Malpezzi (2003), o poder do plane- mais condizentes com uma cidade sustentável jador urbano está essencialmente no fato de que permita a interação entre as pessoas. O buscar aquilo que a cidade se propõe ser. As- estudo aproximado das áreas com potencial sim, ele está também sujeito às prioridades de integrador permitiria direcionar as ações pú- atuação do Estado. blicas para a sustentabilidade no seu sentido Portanto, pensar Brasília em uma cidade mais amplo, se assim for a vontade do Esta- sustentável suscita inúmeros questionamentos do. Portanto, o planejamento ou o planeja- quanto à possibilidade de isso efetivamente dor tem que pensar na ordem social urbana e ocorrer. Poder-se-ia pensar, no entanto, em co- ambiental em conjunto se quiser atingir essa mo torná-la menos segregada e excludente do sustentabilidade. ponto de vista espacial, ainda que observados Além disso, deve-se avaliar a relação das os limites de seu tombamento pela Organiza- cidades do entorno do DF, pois essas têm alta ção das Nações Unidas para a Educação, Ciên- dependência socioeconômica da Capital Fe- cia e Cultura (Unesco). deral, aumentando mais ainda a segregação A pergunta que se faz é se as áreas de (devido a distâncias cada vez maiores a se- expansão urbana hoje presentes no DF contri- rem percorridas para chegar aos empregos) e buem ou não para o aumento dessa segrega- onerando os serviços públicos como hospitais ção. O estudo relativo a esse problema deveria e escolas, cabendo ao DF arcar com os custos contemplar análises de legislações vigentes, de desse ônus. Beatriz Teixeira de Souza Arquiteta e urbanista. Empresa JC Gontijo S/A. Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Rômulo José da Costa Ribeiro Geólogo. Universidade de Brasília. Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Notas (1) Possui o mesmo significado do CBD – Central Business District. (2) Possuem apenas um centro atrator, concentrador de comércio e serviços, e consequentemente de empregos. (3) Possuem mais de um centro atrator, concentrador de comércio e serviços, e consequentemente de empregos, aumentando a dispersão da população em função dessa atra vidade. 142 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 O antagonismo entre emprego e moradia no Distrito Federal Referências ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EMPRESAS DE TRANSPORTE URBANO, NTU (2006). Disponível em: <h p:// ntu.org.br/banco/esta s cas>. Acesso em 27 abr 2006. BERTAUD, A. (2004). The spaƟal organizaƟon of the ciƟes: deliberate outcome or unforessen consequence? Disponível em: <h p://repositories.cdlib.org/iurd/wps/WP-2004-01> Acesso em 20 mar 2009. BERTAUD, A. e MALPEZZI, S. (2003). 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 125-143, jan/jun 2010 143 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais no aglomerado urbano de Brasília* Residential segregation and reproduction of social and spatial inequalities in the Brasília urban conglomerate George Alex da Guia Lúcia Cony Faria Cidade Resumo Com a proximidade das comemorações dos 50 anos de transferência da capital federal para o Planalto Central, o Aglomerado Urbano de Brasília vem ganhando importância no cenário econômico nacional, convivendo com um impasse entre crescimento demográfico, políticas territoriais desarticuladas e uma forte influência do Estado na estruturação socioespacial. O objetivo deste estudo é analisar os padrões de segregação residencial com foco no contexto socioeconômico e nos padrões de distribuição espacial dos grupos sociais. No quadro de uma economia terciária ampliada, observou-se a consolidação de um gradiente social, descendente do centro para os núcleos periféricos, destacandose uma intensa relação entre posição social, acesso a bens e serviços e tipo de emprego. Abstract With the nearby celebration of the 50 years since the change of the federal capital to Central Highlands, the Brasilia Urban Conglomerate is gaining ground in the national economic scene, having to face a stalemate between demographic growth, unarticulated territorial policies and the strong state influence on social and spatial structuring. The main goal of this study is to analyze the patterns of residencial segregation focusing the social and economic framework and the spatial distribution patterns of social groups. In view of an enlarged service economy, the study observed the consolidation of a social gradient, descending from the center to the peripheral nuclei, with a strong relation between social position, acess to goods and services, and job type. Palavras-chave: aglomerado urbano de Brasília; segregação residencial; tipologia sócio-ocupacional; políticas territoriais. Keywords: Brasilia urban conglomerate; residential segregation; social and occupational typology; territorial policies. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade Introdução participantes do Aglomerado, cujo dinamismo territorial é capitaneado pela capital federal. Se por um lado Brasília e sua área de influên- Com a proximidade das comemorações dos cia apresenta-se como influente polo de de- 50 anos de transferência da capital da cida- cisão do país, por outro, caracteriza-se pela de do Rio de Janeiro para o Planalto Central, forte concentração de população e renda no o Aglomerado Urbano de Brasília1 (ver Mapa núcleo da rede. Brasília concentra 72,7% de 1) consolida-se como um polo de organização toda a população e 90,3% do PIB de toda a e gestão territorial na escala nacional. O Dis- sua rede de influência. trito Federal e sua área de influência funcio- De forma simplificada, pode-se afirmar nal abrangem 288 municípios, entre os quais que o Aglomerado Urbano de Brasília vive, quatro classificados como capitais regionais. O desde a sua implantação no Planalto Central, conjunto conta com mais de 9,68 milhões de um impasse entre o crescimento demográfi- habitantes, o que equivale a 2,5% da popula- co, o oligopólio de terras e a forte presença ção brasileira e a 4,3% do PIB brasileiro. Esse do Estado na estruturação socioespacial. Tal peso a coloca entre as nove maiores aglomera- impasse aponta para uma dupla realidade: a) ções urbanas de caráter metropolitano do país, a de centro urbano consolidado, concentra- sendo também seu maior centro de gestão ter- dor de renda e população e b)uma periferia ritorial federal (IBGE, 2008). regional formada por municípios de baixa O papel do Distrito Federal, aqui no- dinâmica econômica, com elevadas taxas de meado também de Brasília, como centro de migração e mobilidade pendular, indicadores gestão territorial federal deve-se à presença do forte descasamento espacial entre local de do governo federal e do peso das ligações moradia e trabalho. Nesse contexto, mudan- empresariais principalmente com os Estados ças foram operadas ao longo do processo de do centro-sul do país. A economia de Brasília formação dessa aglomeração metropolitana, fortalece-se cada vez mais com o crescimento tendo como resultado uma organização do es- do setor empresarial, principalmente o terciá- paço segmentada e o alto grau de dependên- rio, muito impulsionado pelo peso da Admi- cia entre os municípios do Entorno e Brasília, nistração Pública que passou de 48,3% em reforçando as tendências de metropolização 2002 para 49% do emprego em 2006 (IBGE, observadas em outras cidades do país. 2007). Pesquisas do IBGE (2007) apontam que Se por um lado as comemorações do cin- os servidores públicos detêm 65% da massa quentenário de transferência da capital apon- salarial, embora representem apenas 40% da tam para uma imagem de cidade ideal, com população economicamente ativa empregada elevada qualidade de vida, por outro, as políti- no Distrito Federal. A concentração da oferta cas de gestão do território de Brasília parecem de empregos, principalmente nos serviços e contribuir para o agravamento da segregação no setor público no Distrito Federal, descola- residencial e da segmentação espacial. Ten- se das características do mercado de traba- dências recentes sugerem aparentes mudanças lho predominantes nos demais municípios em direção a um padrão cuja segmentação 146 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... reproduz, nas mais diversas escalas, a clássica da ação estatal na alocação de postos de tra- relação centro-periferia. balho e moradia foram determinantes para a É importante ressaltar as especificida- conformação de um gradiente social de rendas des do processo de ocupação dessa porção descendentes do centro para a a periferia e do território brasileiro se comparada a outras com elevados níveis de segregação socioespa- grandes cidades e metrópoles nacionais. Bra- cial. O estudo procurou verificar em que me- sília, aqui tomada como marco lógico do pro- dida o acesso a bens e serviços urbanos está cesso de interiorização brasileira, destaca-se diretamente vinculado a tendências de segre- não pelas especificidades relacionadas ao seu gação residencial e segmentação territorial. processo de criação e construção, mas pelas Para atingir esses objetivos, o estudo possibilidades de ordenamento territorial da- analisou a diferenciação social por meio de ca- das pela quase inexistência de antecedentes tegorias sócio-ocupacionais para o ano 2000. relacionados à ocupação territorial urbana e A metodologia adotada foi a análise da estru- pela propriedade pública de grande parte das tura social, por meio de uma tipologia socio- terras destinadas à nova capital. espacial, construída com o auxílio de análise No contexto da urbanização brasileira, fatorial e de conglomerados, utilizando micro- mesmo com as condições favoráveis a um pro- dados e áreas de ponderação do Censo 2000 cesso diferenciado da tradição urbana e social como unidades de análise. do país, Brasília não fugiu à regra geral. A pro- Na próxima seção, apresentamos um priedade pública da terra e a forte presença breve histórico da formação e desenvolvimen- estatal como “força motriz” da economia local to do Aglomerado Urbano de Brasília desta- passaram a ser utilizados como instrumentos cando suas especificidades no contexto socio- de organização socioespacial seletivos e ex- econômico, as ações de gestão do território, as cludentes. O processo estendeu-se a toda a mudanças da estrutura produtiva, o mercado região que hoje conforma o Aglomerado Urba- de trabalho e os impactos socioespaciais dos no. Dessa forma, este texto tem como objetivo processos de mobilidade populacional. Na analisar os padrões de segregação residencial seção seguinte apresentam-se os resultados no Aglomerado Urbano de Brasília à luz dos da análise fatorial e de conglomerados para processos de mobilidade populacional e das a estrutura social do Aglomerado Urbano de políticas de gestão territorial colocadas em Brasília. Em seguida, apresentamos os resul- curso desde a sua formação. tados da tipologia sócio-ocupacional à luz da O estudo adota um quadro interpretativo segregação residencial e da segmentação ter- que enfatiza o contexto socioeconômico e os ritorial por meio de indicadores de acesso aos resultados do processo de urbanização, postos bens e serviços urbanos, tipo de emprego e de sob a forma de relações entre padrões de dis- composição sociodemográfica. Por fim, faz-se tribuição espacial e de urbanização dos grupos um balanço dos resultados empíricos obtidos, sociais. De maneira específica, objetiva compre- à luz dos mecanismos de reprodução das desi- ender em que medida fatores como a influência gualdades socioespaciais. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 147 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade Mapa 1 – Aglomerado Urbano de Brasília Fonte: IBGE (elaboração própria). 148 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... Ações de gestão do território: expansão, estagnação e alterações do espaço construído produtiva consolidou-se em atividades do setor primário, com destaque para a pecuária extensiva, praticada em grandes áreas de pastagens naturais e lavoura de subsistência, prolongando-se até a primeira metade do século XX. O longo período caracterizado pela presença do Em larga medida, o processo de ocupação da governo federal restrita a ações militares de região Centro-Oeste é caracterizado pela dis- delimitação e proteção das fronteiras territo- persão da sua rede urbana, heterogeneidade riais, deu lugar às políticas de ocupação terri- das dinâmicas territoriais e fragmentação dos torial baseadas no discurso do primeiro perío- seus espaços intraurbanos. Esses processos do desenvolvimentista da "Marcha para o Oes- têm raízes históricas. As primeiras formas de te”.3 Contudo, a intervenção estatal de maior ocupação do território pós-descobrimento têm impacto social e econômico no leste goiano foi a expansão e a estagnação como palavras- a transferência da capital federal coadunada chave para o entendimento da dispersão de com o projeto de integração nacional. sua rede urbana, fragilidade e forte relação de Diferentemente de Goiânia, Brasília sur- dependência funcional com a economia cafeei- ge no Planalto Central como um polo de de- ra da região Sudeste. senvolvimento regional, de atração de fluxos Podem-se identificar momentos de ex- populacionais, atuando como um “centro de pansão da ocupação territorial e ampliação das gravidade” ao redor do qual orbitam realida- redes de cidades e povoados funcionalmente des tipicamente agrárias. A transferência da dispostos para atender à lógica, primeiramen- capital federal para o Planalto Central gerou te, de produção do sistema de mineração e, expectativas e diversas intervenções estatais num segundo momento, da economia cafeeira. que mudaram por completo o cenário socioeco- Nesse processo surgiram os povoados de Minas nômico da região. Para Silva (1997), no período de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte de “preparação do terreno para a construção”, (1727), transformado, em 1732, em distrito de a economia local passou a ser movimentada, Meia Ponte e, em 1890, em Pirenópolis; Santa nos municípios goianos de Corumbá de Goiás, Luzia (1746), hoje Luziânia2 ; e Santo Antônio Planaltina e Luziânia, pela intensa especulação do Descoberto (1750). A ocupação do território das terras de qualidade agrária, decorrentes intensificou-se no século XIX, com a expansão da proximidade física com o quadrilátero do dos povoados já existentes e com a ampliação Distrito Federal. Observou-se um rearranjo es- da rede urbana pela criação de novos núcleos pacial em direção às rodovias de ligação com urbanos, tais como Mestre d'Armas, posterior- Brasília (BR-040 e BR-060), conformando uma mente Planaltina (MMA, 2003). nova estrutura territorial por meio da oferta de A estagnação e o isolamento geográfico no período pré-década de 1930 estão direta- terras para uso urbano em distritos tipicamente rurais (ibid., p. 48). mente vinculados à decadência das minas de No que se refere às ações de gestão ouro na região do leste goiano. A estrutura do território, antes mesmo da construção da Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 149 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade capital federal, a incorporação de terras ao se- do governo federal. As políticas habitacionais tor produtivo foi caracterizada pela emergên- de Brasília entre 1970 e 1980, por meio da So- cia de dois agentes na organização espacial ciedade Habitacional de Interesse Social-SHIS, do Aglomerado Urbano de Brasília: o Estado promoveram a construção de mais de 60 mil 4 e os loteadores descapitalizados. Ambos têm moradias, consolidadas nas cidades de Ceilân- como principal atributo a constituição de uma dia, Taguatinga, Gama e Guará 1 e 2 (SEDUH, região marcada por um oligopólio de terras: de 2004). O modelo polinucleado (Plano Piloto e um lado, a propriedade pública de grande par- cidades-satélites), presente desde a transfe- te das terras de Brasília; de outro, fazendeiros rência de famílias para Taguatinga, em 1958, latifundiários das terras do entorno do quadri- tomou forma definitiva ao longo das décadas látero da capital federal. de 1970 e 1980, com ampliação do estoque O Estado brasileiro, por meio de práticas domiciliar em quase 151 mil domicílios. Em re- territoriais comandadas pelo governo federal, lação ao restante do Aglomerado Urbano, os teve no planejamento técnico e racionalista o financiamentos do BNH foram alocados princi- controle de todas as etapas de construção e palmente nos distritos de Valparaíso de Goiás implementação da nova capital: projeto, ur- e Cidade Ocidental, no município de Luziânia, banização e ocupação seletiva do território de com vistas a atender, de forma emergencial, a Brasília. Os latifundiários, por meio de práticas crescente demanda por moradia. Uma das prin- territoriais comandadas pelos fazendeiros e cipais ações de gestão do território foi a cria- líderes políticos locais, tiveram o controle da ção da Companhia Imobiliária – Terracap, em intensa produção de loteamentos semiurbani- 1972. Encarregada de fazer a gestão de 60% zados. Isso ocorreu principalmente nos municí- das terras de Brasília, a entidade consolidou o pios de Luziânia e Planaltina de Goiás, onde a caráter oligopólico do mercado de terras dessa propriedade individual de latifúndios permitiu porção dinâmica do território brasileiro. Para uma promoção imobiliária que passou a ser Campos (1988), foi essa iniciativa institucio- fragmentada e também ordenada pelas gran- nal que acentuou a separação da propriedade des vias de ligação à nova capital. fundiária do capital imobiliário. Para o autor, o Dentre as ações de gestão do território mercado concorrencial criado era regido pela do poder estatal, destacam-se as políticas ha- lógica do capital incorporador, mediado pelo bitacionais e o oligopólio estatal das terras de rito das licitações de terras públicas, que des- Brasília. No que se refere às políticas habita- locavam o poder de gestão do território para cionais, pode-se afirmar que estas estão dire- os interesses dos incorporadores imobiliários. tamente vinculadas às ações de erradicação de Se em Brasília a oferta de terras era re- favelas. A oferta de moradias no Plano Piloto gulada pelo Estado, nos municípios do entorno de Brasília era seletiva e voltada para os funcio- goiano o mercado concorrencial de terras era nários públicos. Os trabalhadores e o lumpen regido pelo interesse dos latifundiários e líde- derivado da construção da nova capital passa- res políticos locais. Para se ter uma ideia da ram a se localizar em grandes assentamentos dinâmica do mercado de terras, em cidades co- habitacionais distantes da sede administrativa mo Luziânia e Planaltina de Goiás, a oferta era 150 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... Tabela 1 – Número de lotes por habitante – Entorno goiano – 1977 Luziânia Planaltina Total Nº de loteamentos Nº de lotes População total 300 250.000 32.807 833,33 7,62 11 25.238 8.972 2.294,36 2,81 311 275.238 41.779 885,01 6,59 Lote/loteamento Lotes/habitante Fonte: PEOT, 1977. de 7,62 lotes/habitante e 2,81 lotes/habitante, respectivamente (ver Tabela 1). Tal índice demonstra a velocidade e a ação fragmentada Fluxos migratórios, periferização e segmentação espacial e desarticulada de estruturação de grandes áreas residenciais, em sua maioria descapita- A análise da formação do Aglomerado Ur- lizadas e descoladas dos centros locais de pos- bano de Brasília à luz dos efeitos dos fluxos tos de trabalho. migratórios sobre o processo de segmentação Ao longo da década de 1980, diversas espacial permite compreender em que medi- ações de gestão do território entraram em da as ações de gestão do território afetaram curso sem, contudo, romper com as dinâmicas as atuais condições de distanciamento entre espaciais já determinadas desde a implantação local de moradia e localização dos postos de 5 da nova capital federal no Planalto Central. O trabalho. que se observou foi o aprofundamento e a con- No que se refere aos deslocamentos po- solidação da pobreza nas áreas desprovidas de pulacionais, a constituição da nova estrutura dinâmica de mercado de trabalho. econômica nacional pelo Plano de Metas de A realidade de constituição do Aglome- JK determinou, por meio das grandes inver- rado Urbano de Brasília está diretamente vin- sões na infraestrutura de serviços, energia e culada às formas de gestão dos intensos fluxos transportes, intensos fluxos migratórios em di- migratórios e aos crescentes volumes de deslo- reção aos centros urbanos e industriais do Rio camentos populacionais intrametropolitanos, de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, apre- observados na contemporaneidade sobre o sentando processos de metropolização e peri- território. Fluxos migratórios e distribuição das ferização da população geralmente migrante atividades produtivas implicam processos dife- e pobre. O plano, através da implantação de renciados de segmentação espacial, objeto da novo padrão de acumulação, foi fundamental próxima seção. na transformação da ocupação e na mudança Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 151 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade do papel da região Centro-Oeste na economia nova capital somava mais de 50 mil. No ano de nacional, contrapondo uma economia baseada 1960, quando da inauguração da capital, soma- na pecuária extensiva e na agricultura de sub- vam 127.000 pessoas 6 (Paviani, 1985, p. 60). sistência a uma economia integrada à nacio- Nesse período, o Distrito Federal e os muni- nal. Isso foi facilitado pela abertura de novas cípios do entorno goiano (com destaque para fronteiras agrícolas, baseadas na agricultura Luziânia) caracterizam-se como áreas recepto- comercial e na bovinocultura de caráter inten- ras de imigrantes, com intensidades e composi- sivo e tecnificado (IPEA, 2002, pp. 165-169). ções migratórias diferentes.7 A década de 1970 Dentre as ações, destacam-se a interiorização constituiu um ponto de inflexão nessa trajetó- da economia com a construção de um polo ria demográfica. Se, por um lado, Brasília pas- de desenvolvimento regional em Brasília, que sou a crescer cada vez com menor intensidade, redirecionou boa parte dos fluxos migratórios por outro, o que se observou foi uma expansão até então existentes. territorial e a formação do Aglomerado Urbano Para se ter uma ideia do volume dos des- de Brasília, com a expansão demográfica dos locamentos populacionais, em 1956, o número municípios de Luziânia, Planaltina de Goiás e de trabalhadores pioneiros na construção da Santo Antonio do Descoberto (ver Gráfico 1). Gráfico 1 – Taxa de crescimento anual demográfico Aglomerado Urbano de Brasília – 1960-2000 Fonte: IBGE, Censos Demográficos 1960, 1970 e 1980. Notas: * Os municípios que compõem o Aglomerado Urbano de Brasília são desmembramentos dos existentes em 1970. 152 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... As tendências de periferização observadas no final de década de 1960 consolidaram- São Paulo e Rio de Janeiro (25,3% e 22,4% respectivamente). se entre 1970 e 1980. Nesse período, a taxa O impacto da mobilidade populacional média anual de crescimento de Brasília foi sobre o território de Brasília e municípios do de 8,15%, e dos municípios limítrofes foi de entorno goiano foi traduzido em relações en- 9,03%. Pode-se afirmar que, nesse período, tre as pessoas (relações de produção) e entre Brasília passou a contribuir de forma decisiva essas e seu ambiente físico; e, ainda, em alte- para as elevadas taxas de urbanização dos mu- rações na estrutura produtiva e no mercado de nicípios goianos. trabalho. Ao longo da década de 1970, Brasília registrava uma emigração de 6.650 pessoas para o estado de Goiás, passando nas décadas seguintes para 15.634 pessoas ao ano, consolidando Luziânia, Planaltina e Santo Antonio do Descoberto como o principal espaço de concentração de emigração do Distrito Fe- Mercado de trabalho e alterações na hierarquia social no aglomerado urbano de Brasília no ano 2000 deral e receptáculo das demandas por moradia não atendida em Brasília. No período de 1980 a 1990, Brasília reforçou a tendência de Após sucessivos quadros de expansão econô- transferência populacional para os municípios mica, na década de 1980, a sociedade brasilei- do entorno goiano, com destaque para o mu- ra, principalmente os trabalhadores nas áreas nicípio de Santo Antonio do Descoberto, cuja metropolitanas, conviveu com o aprofunda- taxa anual de crescimento alcançou 18,01%. mento da pobreza, a precarização do trabalho Nesse sentido, pode-se afirmar que Brasília, e a consolidação de grandes bairros dormitó- diferentemente das demais regiões metropoli- rios. Contudo, no contexto de paralisia do in- tanas brasileiras, apesar de não ter como base vestimento industrial que assolava boa parte de sua economia o setor secundário, exerceu do país, a região Centro-Oeste destacou-se pe- forte atração populacional, desde a sua cons- lo crescimento econômico a partir de ilhas de trução pelas atividades desenvolvidas na cons- produtividade voltadas, em sua ampla maioria, trução civil até o desenvolvimento do setor de para a oferta de produtos agropecuários para serviços, especificamente aqueles vinculados à o comércio exterior (IPEA, 2002, pp. 35-36). administração pública. Segundo Cidade (2003), embora a região Cen- Como impactos resultantes da atrati- tro-Oeste tenha se tornado a nova fronteira vidade e expulsão populacional, estudos do agrícola do país, o modelo adotado privilegiou IBGE (2003), apontam que no Aglomerado a modernização do setor agrícola e a integra- Urbano de Brasília 24,13% da população re- ção competitiva, acentuando ainda mais o de- sidente trabalha ou estuda em outro muni- semprego, a miséria e as migrações em direção cípio, comportamento próximo às médias às cidades grandes (ibid., p. 172). Nesse duplo observadas nas regiões metropolitanas de contexto, de estagnação econômica nacional e Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 153 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade expansão da fronteira agrícola, o Aglomerado compreendida pelas cidades de Taguatinga, Urbano consolidou a histórica centralidade de Guará, Cruzeiro, Núcleo Bandeirante, Candan- Brasília como núcleo de gestão territorial. Nas golândia, Riacho Fundo, Sobradinho, Planalti- suas primeiras décadas, Brasília era classifica- na e Gama, têm-se 31% da oferta de empre- da, segundo estudos do IBGE, como capital gos com 43% da população total. regional, passando em 1996 a ser considerada O descasamento espacial do local de como “cabeça de rede”, culminando em recen- moradia e de trabalho é maior se olharmos pa- tes estudos como metrópole nacional de nível ra as franjas de Brasília. Para Miragaya (ibid.), 1B, juntamente com o Rio de Janeiro, enquanto nos municípios do entorno goiano, estima-se São Paulo é considerado 1A (IBGE, 2008). que a sua PEA no ano 2000 seja de 308 mil; 8 Uma breve análise da PEA, nas décadas desse total 29% compõe a taxa de desempre- de 1980, 1990 e 2000, demonstra que houve go. Para o autor, apesar de não se ter pesqui- redução de pessoas ocupadas no setor primá- sa PED para estes municípios, estima-se que rio no Aglomerado Urbano, confirmando as 60% do total da PEA trabalha em Brasília. tendências de urbanização da economia obser- Tal descasamento casa-trabalho é condição vadas desde a sua formação. Comparando-se fundamental para a compreensão das fortes as três décadas, observa-se que no Aglomera- pressões por infraestrutura de transportes do Urbano de Brasília, o setor terciário apre- atualmente observadas, ampliando cada vez sentou elevado aumento das pessoas ocupa- mais a demanda por recursos públicos na área das: passou de 46,94% em 1980 para 75,33% de transportes públicos. Se observadas à luz no ano 2000. da tomada de decisão governamental de in- Em 2000, o Aglomerado Urbano de Bra- vestimentos, o que se observa é um cenário sília conforma uma PEA aproximada de 1,53 concorrencial entre investimentos nas áreas milhões de pessoas, com 278 mil pessoas de saneamento ambiental e qualificação dos desempregadas, correspondendo 22,5% da espaços públicos com pressões por recur- PEA. Em Brasília, a PEA corresponde a 875 mil sos para vias e tecnologias para transportes pessoas sendo que desse total 29,5% estão públicos. ocupadas no setor público, 47,7% no setor de Examinando a hierarquia sócio-ocupa- serviços, 3,7% na construção civil, 3,9% na in- cional do Aglomerado Urbano, verifica-se dústria de transformação e 0,9% na atividade que a estrutura social do Aglomerado Urba- 9 agropecuária e mineral. no de Brasília nada mais é que a resultante Outra característica do mercado de tra- de sua história política, econômica e social. balho de Brasília é a elevada concentração No ano de 2000,observa-se que 28,5% da espacial dos postos de trabalho. Segundo população ocupada pertence ao grupo de Miragaya (2000), 52% do pessoal ocupado setores médios, que, se somados aos grupos residente em Brasília encontra emprego na do proletariado do secundário e do terciário, região compreendida pelo Plano Piloto, Lagos correspondem a 43% do total de trabalha- Sul e Norte, os quais concentram apenas 14% dores. Isso significa que a estrutura social do do total da população de Brasília. Na região Aglomerado Urbano apresenta-se polarizada 154 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... entre os setores médios, seja superior (no ca- metropolitana em praticamente todos os ín- so o grupo de setores médios propriamente dices socioeconômicos utilizados na análise. ditos) ou inferior (no caso os grupos do prole- Quanto ao capital econômico, comparando-se tariado secundário e terciário) e o conjunto de os rendimentos do grupo de setores médios trabalhadores pertencentes aos extremos da com renda acima de 20 s.m. (34,23%) com o hierarquia social (grupo dirigente, intelectual, grupo dirigente (36,35%), pode-se notar que a de um lado e subproletariado agrícola de ou- diferença é de apenas 2,12%. Quanto ao capi- tro) (Gráfico 2). tal escolar da população com mais de 15 anos Um dos conjuntos de trabalhadores que de estudo, comparando-se o grupo dos Setores contribui para o aparente rompimento do siste- Médios, que participa com 15,77%, e o gru- ma causal escolaridade-rendimento é formado po Intelectual, com participação de 69,13%, pelas categorias do grupo dos setores médios. pode-se verificar que a clássica relação entre Com participação de quase 30% da popula- apropriação de capital escolar e econômico de- ção ocupada, o grupo dos setores médios é ve ser relativizada quando se trata do Aglome- o que apresenta proporções acima da média rado Urbano de Brasília. do ro let -p o iad ar et ol Pr ar et Pr ol ar ia ciá r do Se do iad o qu Su b Te r nd cu M ur en ab te io io ár io éd es ia gu lec tu al te en Di r ig In Pe Oc up aç õe sa gr íco las Gráfico 2 – Distribuição da população ocupada, por grupo sócio-ocupacional Aglomerado Urbano de Brasília – 2000 Fonte: IBGE, microdados do Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 155 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade No que se refere aos grupos populares, segmentação espacial, a seguir verificaremos o conjunto formado pelo proletariado do se- o rebatimento espacial da estrutura social no cundário, do terciário e subproletariado, que espaço intrametropolitano do Aglomerado Ur- somados correspondem a 58% do total da po- bano de Brasília. pulação ocupada, caracteriza-se, ao contrário dos setores médios, pelo reforço do sistema causal entre renda e escolaridade, dado que no cômputo geral esse conjunto concentra-se entre aqueles que apresentam a menor renda, os menores níveis de escolaridade e as piores A estrutura socioespacial do Aglomerado Urbano de Brasília nos anos 90 condições de moradia.10 Conforme observado, os diversos grupos Diversos trabalhos (Ribeiro, 2004; Ribeiro e La- sociais se espalham pelo Aglomerado Urbano go, 2000; Préteceille, 2003) evidenciam que o de Brasília segundo dois movimentos distin- território das metrópoles brasileiras se organiza tos, um que o aproxima das demais cidades segundo oposições e distâncias sociais no es- brasileiras e outro que o diferencia e reforça paço. Classes detentoras de capital econômico a sua particularidade no cenário nacional. O e social dominam trechos privilegiados das ci- primeiro movimento sugere que a distribuição dades, onde se concentra a oferta de serviços espacial dos grupos sociais se dá por meio das e equipamentos urbanos, oposta às áreas mais oportunidades e capacidade dos indivíduos de periféricas com trabalhadores manuais, detento- apropriação dos recursos urbanos, sociais e res, muitas vezes, apenas da força de trabalho. econômicos, o que determinaria a sua locali- Tal constatação leva à ideia de um espaço dual, zação residencial em determinadas porções do com um mercado de trabalho refém de mudan- território do Aglomerado Urbano. O outro mo- ças tecnológicas e níveis diferenciados de acesso vimento pondera o modelo de “livre competi- ao mercado de trabalho. Com isso, a compreen- ção” acima e aponta que o Estado, com suas são da segregação residencial está diretamente políticas de gestão do território foi determi- vinculada ao conteúdo social dos espaços. nante para: 1) a constituição de uma socieda- A diferença das possibilidades de acesso de segmentada espacialmente e hierarquizada a bens e serviços, segundo os grupos sociais, de acordo com o capital econômico, escolar e dá origem a uma ocupação urbana também com o setor de emprego e; 2) a consolidação balizada pelas mesmas distinções. A diferen- da centralidade econômica e populacional do ciação social se reflete na hierarquização do Distrito Federal distribuída em uma estrutu- espaço ocupado na cidade, onde a segrega- ra urbana polinucleada, com claras distinções ção socioespacial pode ser evidenciada pelas espaciais do local de residência, que, criterio- relações entre a posição na hierarquia social samente representadas, apontam o grau de e a desigual apropriação dos recursos urbanos segregação social ali existente. existentes. Para uma melhor compreensão da A tipologia socioespacial para o ano segregação residencial e dos estágios de 2000, mostra um espaço geograficamente 156 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... segregado, onde a hierarquia social, em nível população ocupada, distribuídas principal- macro, descende do centro de empregos e ser- mente ao redor da porção nordeste e sudeste viços do Aglomerado – A Região Administrati- da Bacia do Paranoá e em trechos das áreas va de Brasília – para a periferia.11 centrais das cidades satélites, como é o caso Conforme indica o Mapa 2, os espaços de Gama, Taguatinga e Sobradinho. do tipo superior correspondem a apenas A presença de espaços do tipo médio- 3,14% (4 AED´s) do total de unidades espa- superior na área central da cidade satélite do ciais, onde se concentram 8,28% da popu- Gama é explicada pela forte representação dos lação ocupada do Aglomerado Urbano. Em dirigentes do setor privado, de professores de termos de distribuição espacial, esse tipo nível superior e ocupações de escritório, com concentra-se no interior da Bacia do Paranoá, densidade próxima ao dos espaços superiores. cujos limites representam maior proximidade As categorias de ocupações médias de Saúde e ao centro econômico do Aglomerado Urbano. Educação e as de Segurança Pública, Justiça e Os espaços do tipo médio superior correspon- Correio são as que apresentam as maiores re- dem a 19% (24 AED´s) do total de unidades presentações do Aglomerado Urbano, cerca de espaciais, concentrando cerca de 18,85% da 3 vezes maior que a média metropolitana. Mapa 2 – Tipologia socioespacial do Aglomerado Urbano de Brasília Legenda cinza claro– espaços do po superior, médio superior e médio cinza escuro– espaço do po popular, popular operário e popular agrícola Fonte: IBGE,microdados do Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 157 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade A análise dos tipos socioespaciais que no campo da estrutura social, da distribuição compõem o Aglomerado Urbano de Brasília, espacial dessas desigualdades, por meio de indica que os grupos dirigentes e intelectuais uma tipologia social do espaço. De forma es- foram identificados como os que estão mais pecífica, as análises chamam a atenção para concentrados no espaço do tipo superior o fato de que há fortes relações entre a hie- (40,96% e 31,82%, respectivamente), com rarquia social, a concentração de empregos e destaque para os dirigentes do setor público a posição social. Quanto à hierarquia social, o (48,32%) e os profissionais estatutários de que se observou foi um gradiente descendente nível superior (37,94%). A concentração das a partir do centro principal, onde se localizam elites dirigentes não é fruto de recentes pro- os espaços superiores, para as áreas mais peri- cessos de “autossegregação”, conforme obser- féricas e para os espaços populares. vado em estudos realizados em outras regiões 12 metropolitanas. Uma particularidade do Aglomerado Urbano, dada pela expressão do setor público Na análise dos dados sobre a distribuição na economia local, é a concentração nos es- nos tipos socioespaciais das classes populares, paços do tipo superior e médio-superior de observa-se que os espaços do tipo popular con- servidores públicos estatutários, com forte centram cerca de 70% da população ocupada representação dos dirigentes do setor públi- nos grupos do proletariado do secundário, do co e dos profissionais estatutários de nível terciário e o subproletariado. Nos espaços do superior. A correlação positiva entre o setor tipo popular e operário, o percentual sobe pa- de emprego e localização residencial enfatiza ra 78%, o que representa, de certa forma, um os aspectos relativos ao processo de organi- constrangimento espacial dado pela posição zação do espaço metropolitano de Brasília social e, por consequência, pelo nível de renda, como um conjunto urbano marcado pela con- dado que a maioria dos empregos concentra- centração de servidores públicos estatutários se nos espaços do tipo superior, o que obriga nas unidades espaciais próximas ao centro aos grupos populares elevados custos de des- econômico e a dispersão dos demais traba- locamento casa-trabalho. lhadores, em todo o território do Aglomera- A composição interna dos espaços do do13 (ver Mapa 3). tipo médio é a que apresenta maior heteroge- Segundo Morais e Cruz (2003), ao con- neidade social. Nesse tipo de espaço, além das trário do que acontece em setores de comércio, categorias dos setores médios, destacam-se serviços e de construção, ser um empregado no o proletariado do secundário, do terciário e o setor público reduz a chance de se tornar mo- subproletariado, o que permite afirmar que é rador de áreas de urbanização precária e de fa- o tipo que mais se aproxima da média metro- velas. Para os autores, uma hipótese para esse politana, por mais que as categorias dirigentes tipo de segmentação socioespacial deve-se ao estejam sub-representadas. fato de o governo brasileiro (federal, distrital e As análises realizadas estabeleceram municipal), além de pagar maiores salários que um quadro sobre a reprodução das desigual- a média para os trabalhadores de baixos níveis dades socioespaciais articuladas à tradução, de escolaridade e de oferecer mais estabilidade 158 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... Mapa 3 – Percentual de pessoas ocupadas no setor público* Aglomerado Urbano de Brasília, 2000 Legenda cinza claro – alta concentração (de 21 a 34%) cinza pon lhado – média concentração (de 12 a 20%) cinza escuro – ausência/baixa concentração (de 0 a 11%) Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). * Entenda-se por pessoas ocupadas no setor público aquelas sob o RJFP ou militar (federal ou distrital). e previdência social melhor que qualquer outro incidência em espaços do tipo médio, popular e setor de emprego, garante renda permanente popular operário.14 A questão que se levanta é: maior (ibid., pp. 6-10). em que medida a estrutura social é influencia- No caso do Distrito Federal, o governo da pelo setor de emprego dos grupos sociais? local, além de pagar maiores salários que os Examinando as diferenças de renda pe- demais setores de emprego, costumava prover la proxy de servidores públicos verifica-se que apartamentos funcionais aos servidores públi- estes equivalem, em média, a 3 vezes a mais cos, quando da implementação e consolidação que os não servidores públicos. Em Brasília, a da capital federal. Atualmente, tem oferecido diferença é de 2,25 vezes, e no entorno goiano habitações para os “altos escalões”, o que faz é de 2,65 vezes superior do que no Aglomera- com que esta população ocupada tenha, além do (ver Tabela 3). Com isso, verifica-se que há de elevados salários, uma espécie de subsídio uma relação direta entre áreas de maior con- não pecuniário, reduzindo drasticamente a sua centração de grupos dirigentes e dos setores Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 159 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade Tabela 3 – Rendimento bruto médio segundo o setor de emprego Aglomerado Urbano de Brasília Rendimento bruto médio (em R$) segundo o setor de emprego Municípios e Brasília Público Não Público Proporção Total Aglomerado Urbano (Brasília+Entorno Goiano) 1.473.755 528.275 2,65 Brasília 2.187.440 781 3,05 Entorno Goiano 760.070 338.430 2,25 Águas Lindas de Goiás 659.550 348.210 1,89 Cidade Ocidental 972.890 457.470 2,13 Luziânia 755.520 346.830 2,18 Novo Gama 880.530 383.770 2,29 Planaltina 552.510 323.990 1,71 Santo Antonio do Descoberto 637.610 316.980 2,01 1.225.040 466.980 2,62 Valparaíso de Goiás Fonte: IBGE, microdados do Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). médios, com a predominância de moradores Urbano. Observa-se que as condições de sa- empregados pelo setor público. Nas áreas mais neamento no DF reproduzem o histórico pro- pobres, a renda do setor público tende a “orbi- cesso de urbanização promovida pelo governo tar” em torno da média metropolitana e a ser federal. em média 3 vezes superior do que em outras Em 2000, a maioria dos domicílios do Dis- localidades, o que sugere que, nas áreas pe- trito Federal apresentava saneamento adequa- riféricas, há uma distinção fundamental entre do, distribuindo-se em quase todas as unida- os moradores que são servidores públicos e os des espaciais. Nesse sentido, morar no espaço que não são. do tipo popular operário como Samambaia ou A relativa complexidade da estrutura Santa Maria, área periférica em Brasília, possi- socioespacial é marcada pelos variados graus bilitava acesso ao saneamento adequado, em- de correspondência com o acesso aos recur- bora a distância casa-trabalho fosse maior que sos urbanos. No que se refere às condições de as unidades espaciais do tipo popular, locali- saneamento, os resultados apresentaram dois zadas próximas às áreas centrais. A expansão cenários distintos: 1) relativo a Brasília e 2) re- da oferta de serviços básicos de saneamento e lativo aos demais municípios do Aglomerado coleta de lixo ocorreu nas áreas incorporadas, 160 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... Mapa 4 – Domicílios com saneamento adequado (%) Aglomerado Urbano de Brasília Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). primeiramente pelo Estado, e de forma secun- recursos urbanos. Nos municípios do entorno dária pelo capital imobiliário. Espaços do tipo goiano há uma correlação direta entre espaços popular, promovidos por loteadores descapita- do tipo popular, popular agrícola ou operário, lizados, como a Vila Estrutural, Vila Varjão, Ita- promovidos pelos loteadores descapitalizados puã, Mestre D’Armas, Arapoangas, ao contrá- e baixos índices de domicílios com saneamento rio, por serem ocupações recentes e irregulares adequado. apresentam os menores índices de saneamen- A segmentação espacial observada an- to adequado, equivalentes aos observados nos teriormente, que separava assentamentos loteamentos clandestinos do entorno goiano. promovidos pelo Estado daqueles promovidos O segundo cenário demonstra uma situa- pelos loteadores descapitalizados, quando ção perversa de correspondência entre a estru- analisada à luz da tipologia habitacional, não tura sócio-ocupacional e a apropriação dos permanece. Há elevados graus de correspon- Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 161 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade dência entre o tipo de domicílio e a estrutura de Valparaíso de Goiás, o quadro indica que a sócio-ocupacional em todo o Aglomerado proximidade ao Distrito Federal e às rodovias Urbano. A maior concentração de domicílios de acesso podem ser um dos indicadores da como cômodo, que representa uma perversa ocorrência desse tipo de domicilio. alternativa, na forma de aluguel ou coabita- Em síntese, a organização socioespacial ção de famílias em um mesmo domicílio, está do Aglomerado Urbano sugere que a maior diretamente relacionada com o espaço do tipo proximidade geográfica ao centro de empre- popular e popular operário (ver Mapa 5). No gos corresponde a maiores oportunidades de caso das cidades do Distrito Federal, a incidên- trabalho e melhores condições de vida urbana. cia dos domicílios do tipo cômodo é maior nas O Aglomerado Urbano apresenta diferenças cidades de Ceilândia, Planaltina e Guará. Nos que refletem o histórico da ocupação e das municípios goianos de Águas Lindas de Goiás, ações de gestão do território, cuja diferencia- nos loteamentos em Luziânia e na expansão ção leva ao importante papel do Estado no Mapa 5 – Distribuição espacial dos domicílios segundo o tipo Aglomerado Urbano de Brasília Polígono AUB Limites municipais Incidência de domicílios tipo cômodo Baixo Médio baixo Médio Médio alto Alto Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000 (elaboração própria). 162 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... aprofundamento das desigualdades de acesso 15 pelo governo federal (cidades-satélites) com aos recursos urbanos, independentemente do um mínimo de ordenamento territorial e com tipo socioespacial. acesso a recursos urbanos e, 2) por loteamentos populares que se caracterizavam pela propriedade fundiária e ausência de recursos Conclusão urbanos mínimos. As mudanças na organização socioespacial resultantes das ações de gestão do território e dos agentes econômicos A atual cartografia social do Aglomerado Ur- no Aglomerado Urbano de Brasília na última bano não representa apenas os resultados da década sugerem que a estrutura social, apa- transferência dos “problemas urbanos” do Dis- rentemente, rompe com o sistema causal de trito Federal para o entorno goiano e sim a in- renda e escolaridade, dado que o grupo dos corporação definitiva do território do entorno setores médios corresponde a cerca de 30% da goiano à dinâmica metropolitana capitaneada população ocupada e se apropria de 34,23% por Brasília. Nesse sentido, pode-se afirmar dos rendimentos acima de 20 salários mínimos. que não há ruptura na organização socioespa- Uma das explicações obtidas pelas análises pa- cial da região, mas, ao contrário, consolidam- ra o aparente rompimento do sistema causal se tendências expressas desde a gênese da for- deve-se à forte presença do poder estatal no mação metropolitana. Destacam-se o processo quadro ocupacional da população do Aglo- de periferização na direção sudoeste e nordes- merado Urbano. Ser um empregado no setor te, dos segmentos populares, a concentração público eleva a chance de apresentar maiores das elites dirigentes nas áreas residenciais do salários, que chegam a ser três vezes maiores Plano Piloto e adjacências e a formação de que os demais trabalhadores, independente- um anel pericentral, que mescla segmentos mente do nível de escolaridade e da posição na superiores dos setores médios com parte das ocupação. A forte presença de setores médios categorias de intelectuais, dirigentes do setor em todas as unidades espaciais sugere uma privado e a pequena burguesia. relativização da segregação. A segregação so- No nível dos agentes econômicos, o que cial no Aglomerado Urbano de Brasília é forte- se observou foi um processo de concentração mente influenciada pelo setor de emprego da econômica no Distrito Federal. A dinâmica do população ocupada, particularmente o caráter quadro ocupacional foi marcada pelo avanço público ou privado, o que indica que a hierar- do setor terciário na economia do Distrito Fe- quização social, no caso do Aglomerado Urba- deral e entorno goiano. A segmentação territo- no, por si só não foi suficiente para demonstrar rial e a segregação residencial resultante foram em que medida a estrutura social representa a caracterizadas, por um aspecto, pela polariza- segregação socioespacial. ção entre local de trabalho e de moradia. Por Por fim, embora a oferta de alguns equi- outro, pela diferenciação socioespacial capi- pamentos públicos se distribua de forma re- taneada pelas ações estatais e dos loteadores lativamente equitativa, o que se observou no descapitalizados: 1) periferização promovida Aglomerado Urbano foi o aprofundamento de Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 163 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade tendências dadas desde a sua formação. So- espaços do tipo popular agrícola, recomenda- bressai o contínuo processo de periferização se o controle da ocupação urbana e investi- dos pobres, em direção ao entorno, e o for- mentos na área de saneamento ambiental. talecimento da autossegregação de parte dos Uma mudança estrutural seria a revisão das setores médios, intelectuais e dirigentes nas densidades demográficas no Plano Piloto de áreas centrais do Distrito Federal e em suas Brasília, que mesmo tombado como patrimô- proximidades. nio histórico e artístico nacional e da humani- A sugestão de políticas públicas para dade ainda apresenta grandes vazios urbanos, reverter o quadro de segregação residencial e cujo uso poderia ser voltado para a habitação. as desigualdades socioespaciais é a de focar Como medida de reforçar a proposta anterior, ações para fortalecer novos polos de dinamis- que tem como foco diminuir o descasamento mo econômico, principalmente voltados para entre local de trabalho e moradia, a política a ampliação do setor secundário e terciário da habitacional de Brasília deveria rever e con- economia, próximos às áreas eminentemente siderar a proposta de Lucio Costa, feita em residenciais e sem concentração de empre- 1985, no que se refere à consolidação de cida- gos. Outro ponto é a articulação entre plano des lineares ao longo das principais vias próxi- de transporte público e as políticas habitacio- mas ao Plano Piloto de Brasília. nais. Quanto à política habitacional, deve-se Com vistas a ampliar o acesso aos ser- fomentar ação entre a oferta do mercado imo- viços urbanos básicos, poder-se-ia estruturar biliário a ação estatal e o quadro de demanda um mecanismo legal de consórcio público pa- habitacional existente no Aglomerado Urbano, ra fortalecimento institucional dos municípios considerando-se os ciclos de vida e a renda fa- do entorno goiano e ações compartilhadas miliar. Uma possível estratégia é a produção de inversão em infraestrutura urbana entre de moradias para aluguel social ou programas o governo federal, do estado de Goiás e de de subsídios para locação por parte do Esta- Brasília. do para a população jovem, como acontece Por fim, pode-se afirmar que Brasília com países como Portugal (Programa Porta nasceu duplamente sob o signo da vanguarda. 65 – Jovem), em locais com concentração de Primeiramente, por ser símbolo do urbanismo empregos e maior diversidade na oferta ti- racionalista, moderno e componente de um pológica de imóveis para jovens solteiros ou projeto de integração nacional. Em segun- casais, diminuindo com isso o descasamento do lugar por nascer metrópole, “antecipan- casa-trabalho e a elevada mobilidade pendu- do” estruturas socioespaciais marcadas pela lar de longa distância atualmente observada dispersão populacional em áreas urbanas hie- no Aglomerado Urbano, principalmente nos rarquicamente organizadas em sua escala de espaços do tipo médio e popular. Para os organização socioeconômica. 164 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... George Alex da Guia Arquiteto e Urbanista. Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Ministério da Cultura. Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Lúcia Cony Faria Cidade Arquiteta. Universidade de Brasília. Brasília, Distrito Federal, Brasil. [email protected] Notas (*) Este trabalho tem como base a dissertação de mestrado defendida em março de 2006 in tulada PolíƟcas Territoriais, segregação e reprodução das desigualdades socioespaciais no Aglomerado Urbano de Brasília. (1) Para este texto, a unidade territorial adotada tem como base os estudos realizados pelo IPEA (2002), de onde foram excluídos três municípios: Formosa, Alexânia e Padre Bernardo, em virtude das baixas taxas de crescimento, nível de centralidade fraco e perfil econômico baseado na agropecuária. Nesse sen do e para fins deste estudo, o Aglomerado Urbano de Brasília é composto por sete municípios goianos (Luziânia, Valparaíso de Goiás, Santo Antonio do Descoberto, Novo Gama, Cidade Ocidental, Águas Lindas de Goiás e Planal na) mais o Distrito Federal. (2) Neste período, finais do século XVIII, a vila de Santa Luzia era apenas um povoado em expansão devido às minas auríferas. Com o passar do tempo, a vila passou à categoria de cidade, denominada Luziânia, concentrando a sede do poder eclesiás co e polí co local. Desempenhou, por este mo vo, papel de centro polí co da Microrregião do Leste goiano, disputando com Pirenópolis a primazia local (Da Guia, 2003). (3) A principal ação do programa Marcha para o Oeste no estado de Goiás foi a transferência e construção da capital, de Goiás Velho para Goiânia. A construção da cidade planejada de Goiânia reforçou o processo de interiorização da economia brasileira e gerou um surto de desenvolvimento local, com fluxos migratórios de diversas regiões do país e cons tuição de um centro socioeconômico no eixo Goiânia-Anápolis (Silva, 1997, p. 40). (4) A figura do loteador descapitalizado foi u lizada por diversos estudos sobre a estruturação interna das cidades do Rio de Janeiro (Lago, 2000) e Belo Horizonte (Mendonça, 2002). A u lização para o caso do Aglomerado Urbano de Brasília deve-se, em parte, à ação dos fazendeiros na apropriação da renda gerada pela proximidade com o canteiro de obras da nova capital. Ribeiro (1994) aponta que, no caso do Rio de Janeiro, o “loteador descapitalizado realiza a operação sem inves r previamente uma grande soma de recursos, o mínimo para iniciar o negócio. Este agente era o próprio proprietário da terra ou um corretor que com ele se associava, não havendo, portanto, compra anterior da gleba. A sua estratégia de comercialização se orientava pelo obje vo de realizar rapidamente as primeiras vendas, oferecendo os lotes a baixo preço e a prestações compa veis com a baixa capacidade de endividamento do comprador. E se o negócio fosse bem-sucedido, o loteador vendia os lotes restantes em condições mais favoráveis, por um preço superior e em prazo mais curto, em função da valorização proporcionada pelas primeiras ocupações (...)” (ibid., pp. 11-12). Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 165 George Alex da Guia e Lúcia Cony Faria Cidade (5) Diversos planos e projetos focados na gestão do território foram empreendidos, destacam-se os Planos de Estruturação e Ordenamento Territorial de Brasília-PEOT de 1977, o POUSO e o POT da década de 1980. (6) Uma parcela da expansão demográfica pode ser creditada à transferência de funcionários públicos do Rio de Janeiro para nova capital. Outra parcela resultou da vinda de trabalhadores para a construção civil e de pequenos comerciantes e, ainda, do incremento vegeta vo em ascendência – 139.762 nascidos no Distrito Federal entre 1960 e 1970 (Paviani, 1985, p. 60). (7) Tomamos emprestada a classificação demográfica do espaço proposta por Mendonça (2002). Para a autora, a associação entre crescimento populacional e saldo de mobilidade populacional resulta em uma classificação de áreas segundo a sua capacidade de retenção de população. A configuração proposta pela autora é a seguinte: áreas altamente expulsoras, áreas expulsoras, áreas altamente receptoras, áreas receptoras, áreas expulsoras para fora e áreas receptoras de fora (p. 121). (8) Entenda-se por PEA como a População Economicamente A va. Trata-se da parcela da População em Idade Economicamente A va – PIA que está ou ocupada ou desempregada. Para maiores detalhes ver Nota Técnica 01/2003 da Fundação Seade e Dieese. (9) Como tomada de decisão metodológica, optou-se por manter os dados rela vos às pesquisas realizadas no ano 2000, base do estudo das categorias sócio-ocupacionais. Estudos recentes da PED-DF apontam crescimento da PEA e da ocupação, com ampliação do setor público, inclusive com incremento na diferença de rendimento com o setor privado (Dieese, 2009) (10) O grupo que apresenta a menor renda é o subproletariado, com cerca de 44,29% de sua população apropriando até ½ salário mínimo. (11) Observam-se alguns espaços em áreas mais periféricas que apresentam qualidades do po médio e médio superior, como é o caso do núcleo original de Sobradinho e Gama Centro. Contudo, mesmo a presença desses espaços, em nível metropolitano, não descaracteriza um espaço metropolitano organizado como um gradiente de pos sociais em trajetória descendente a par r do centro principal. (12) Conforme aponta Vianna (2005), a autossegregação, enquanto segregação voluntária é, no Distrito Federal, um processo recente marcado pela ocupação de áreas lindeiras à EPCT, como é caso dos condomínios do Grande Colorado e do Jardim Botânico. (13) O setor de emprego é fator de diferenciação social e espacial determinante, dado que a remuneração bruta de um servidor público é 3 vezes maior que os trabalhadores não públicos. (14) Sob o aspecto das determinantes da segregação socioespacial nas regiões metropolitanas brasileiras, ver Morais e Cruz (2003). (15) As análises realizadas mostram que as ações de gestão do território cons tuíram diferenciados padrões de urbanização marcados pela “periferização ins tucionalizada” das populações de menor poder aquisi vo em cidades-satélites, no Distrito Federal, e a profusão de loteamentos em terras par culares nos municípios goianos do entorno goiano. 166 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Segregação residencial e reprodução das desigualdades socioespaciais ... Referências ALONSO, W. (1964). LocaƟon and land use: toward a general theory of land rent. Cambridge, Harvard University Press. BASSETT, K. e SHORT, J. R. (1980). Housing and residenƟal structure: alternaƟve approaches. Londres, Routledge & K Paul. CAMPOS, N. (1988). A produção da segregação residencial em cidade planejada. Dissertação de Mestrado. Brasília, UnB. CIDADE, L. C. F. (1999). Planejamento, desconcentração e produção social do espaço no Distrito Federal. 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Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. Brasília, UnB. Texto recebido em 9/nov/2009 Texto aprovado em 8/mar/2010 168 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 145-168, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais* Exploring the consequences of metropolitan segregation in two socio-spatial contexts Luciana Teixeira de Andrade Jupira Gomes de Mendonça Resumo A análise de dois distintos processos de segregação socioespacial presentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte busca responder em que medida a homogeneidade ou a heterogeneidade social impactam as oportunidades no mercado de trabalho. Se os dados não nos permitem a determinação de causa e efeito, eles podem indicar algumas hipóteses, tanto contra quanto a favor da tese do efeito território. Ao norte da metrópole observa-se a reprodução da pobreza em município tradicionalmente periférico e homogeneamente pobre. No sul, observa-se a expansão de área de loteamentos fechados, onde a migração dos ricos, que simultaneamente atrai os mais pobres, conforma um contexto mais heterogêneo, ainda que segregado. A questão que permanece é se, em contextos em que a heterogeneidade é marcada pela segmentação e pela polarização social, como na área dos “condomínios”, são possíveis as trocas e a integração social. Palavras-chave: segregação socioespacial; estrutura de oportunidades; contexto social heterogêneo; periferia; Região Metropolitana de Belo Horizonte. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Abstract The analysis of two different processes of sociospatial segregation in the Metropolitan Area of Belo Horizonte aims to explore to what extent social homogeneity or social heterogeneity has an impact on labor market opportunities. The data do not allow us to determine cause and effect relations, but they can indicate some hypotheses, both against or in favor of the thesis of territory effect. To the north of the metropolis we can observe the reproduction of poverty in a traditionally peripheral and homogeneously poor city. In the south we can observe the expansion of gated communities, where the migration of wealthy people, which simultaneously attracts the poorer ones, composes a more heterogeneous, even though segregated, context. The question that remains is whether interchanges and social integration are possible in a context where heterogeneity is marked by segmentation and social polarization, as it is in gated communities. Keywords: socio-spatial segregation; structure of opportunities; heterogeneous social context; periphery; Belo Horizonte Metropolitan Area. Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça O objetivo deste artigo é analisar dois distintos processos de segregação socioespa- trabalhadores da mina de ouro Morro Velho, hoje desativada. cial presentes na Região Metropolitana de Be- A questão que buscamos responder é lo Horizonte (RMBH), assim como seus efeitos em que medida a homogeneidade ou a hetero- sobre a população de baixa renda. O primeiro geneidade social impactam as oportunidades deles teve lugar no eixo norte, a partir da dé- no mercado de trabalho ou, se utilizarmos os cada de 1970, constituindo um dos polos do conceitos desenvolvidos por Kaztman e Fil- modelo de estruturação centro-periferia, com gueira (2006), em que medida as diferentes a formação de municípios “dormitórios” para composições sociais presentes nos dois muni- a população pobre. O segundo teve lugar no cípios significam estruturas de oportunidades eixo sul, a partir da década de 1990, com a diferenciadas.1 autossegregação de grupos de alta renda nos A tese de Kaztman e Filgueira é que a condomínios residenciais fechados, atraindo homogeneidade das regiões pobres contribui em seguida a população de baixa renda em para enfraquecer a capacidade de formação de busca de empregos pouco qualificados, como capital social e, por consequência, fragiliza as os domésticos. condições para o desenvolvimento individual e Apesar de cada um desses tipos de se- coletivo: gregação socioespacial ter seu auge em épocas Para os pobres urbanos espacialmente segregados e com laços trabalhistas frágeis parecem confluir pelo menos dois processos que reduzem as suas chances de acumular capital social. Por um lado, seu isolamento em relação a outros estratos da sociedade. Por outro, as dificuldades para constituir instituições e redes sociais locais que deem suporte a esse capital. (2006, p. 15) diferentes – respectivamente décadas de 1970 e 1990 –, o segundo não substitui o primeiro. Ambos convivem atualmente na RMBH, mas localizam-se em regiões distintas e atingem diferentes grupos sociais. Escolhemos para análise dois municípios mais representativos desses processos: Ribeirão das Neves, no eixo norte, e Nova Lima, no eixo sul. Como se mostrará a seguir, o primeiro se caracteriza por uma forte homogeneidade A hipótese é que para os mais pobres uma social. É, por excelência, o território da pobre- fonte de capital social são as interações que za. Já o segundo vem sendo retratado como o ocorrem em contextos sociais mais heterogê- município dos ricos, devido em grande parte à neos. Nesses lugares, os vizinhos constituem forma ostentatória com que esse grupo ocupa fonte importante de informação e contatos o espaço. Mas, como procuraremos mostrar, sociais. trata-se de um município marcado por uma Os dois municípios objeto de análise grande heterogeneidade, uma vez que a ri- neste trabalho apresentam situações propí- queza, inclusive a representada pela moradia, cias para as respostas a essas indagações, gera emprego e atrai trabalhadores de baixa especialmente no que se refere aos impac- qualificação. Além desses novos habitan- tos de contextos sociais mais ou menos tes, há também os antigos, muitos deles ex- heterogêneos. 170 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais Região Metropolitana de Belo Horizonte: processos diferenciados A capital é a contraface do processo de periferização, constituindo-se um espaço mais elitizado, com melhor infraestrutura e, devido ao alto custo do solo, menor demanda relativa de moradia, o que se reflete no seu crescimento A metropolização de Belo Horizonte é, segun- abaixo da média metropolitana, tendência es- do alguns autores, um fenômeno que se inicia sa que se aprofundará nas décadas seguintes. já na primeira metade do século passado (Tei- O caso mais emblemático da periferiza- xeira e Souza, 2003). No entanto, a década de ção da RMBH na década de 1970 é Ribeirão 1970 é reconhecida pela literatura como a de das Neves, cuja taxa de crescimento foi de sua maior intensificação, quando cresce a mo- 21% a.a, mais que o quádruplo da RMBH. O bilidade residencial de trabalhadores da capi- segundo município nessa hierarquia foi Con- tal para os municípios do entorno. Contagem tagem, com taxa de 10% a.a, bem inferior a e Betim, dois municípios de eixo industrial a de Ribeirão das Neves. Nesse mesmo período, oeste da capital, recebem parte dessa popu- os municípios do eixo sul apresentavam cres- lação, mas será no eixo norte, constituído por cimento negativo ou muito abaixo da média municípios sem tradição industrial – com exce- metropolitana. Três fatores contribuíram para ção de Santa Luzia – e com baixa regulação do que este eixo ficasse relativamente imune aos uso do solo, somada ao baixo valor da terra, processos de expansão metropolitana e em es- que a imigração se revelará mais intensa, em pecial ao parcelamento do seu solo para mora- especial no município de Ribeirão das Neves. dia: as dificuldades de acesso, a ação do órgão Esses dois eixos, oeste industrial e norte, são de planejamento metropolitano preocupado os que melhor expressam a dinâmica metropo- com as questões ambientais – como os ma- litana dessa década. Suas taxas de crescimento nanciais de água – e, por fim, a concentração foram, naqueles anos, superiores às da capital da propriedade das terras pelas empresas (3,6% a.a.) e da RMBH (4,6% a.a.), conforme mineradoras. demonstra a Tabela 1. A RMBH foi instituída São muitas as consequências desse oficialmente em 1973, com 14 municípios. processo de segregação que a literatura de- Nas décadas seguintes foram acrescidos mais nominou centro-periferia. A mais perversa 20 municípios. Desses 34 municípios, muitos foi a exclusão dos trabalhadores das áreas evidenciam uma baixa integração à dinâmica com melhor infraestrutura urbana e oferta de metropolitana (Observatório das Metrópoles, serviços e de trabalho agravada pela falta de 2004). Por essa razão e pelos objetivos deste um transporte público barato e de qualidade. trabalho a Tabela 1 foca apenas 13 municípios. Vejamos agora o processo nas duas décadas Já a linha RMBH apresenta a população total seguintes, concentrando nossa análise nos relativa aos municípios que formavam a RMBH municípios dos eixos norte e sul que faziam em 1991. Como os novos municípios anexados parte da RMBH no período. depois deste ano são pouco populosos, seu impacto no resultado final é pequeno. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Se entre 1970 e 1980 a RMBH cresceu 4,6% a.a, na década de 1980 o crescimento 171 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça Tabela 1 – Região Metropolitana de Belo Horizonte Crescimento Populacional 1970-2000 1970 1980 1991 2000 Tx. cresc. 1970-1980 Tx. cresc. 1980-1991 Tx. cresc. 1991-2000 1.235.030 1.753.520 2.020.161 2.238.526 3,57 1,30 1,15 37.815 84.193 170.934 306.653 8,33 6,65 6,71 111.235 280.477 449.588 538.017 9,69 3,38 2,02 19.508 37.701 92.675 160.583 6,81 8,52 6,32 9.707 64.727 143.853 246.846 20,89 7,53 6,18 Santa Luzia 25.301 59.893 137.825 184.903 9,00 7,87 3,32 Vespasiano/São José da Lapa(1) 12.429 25.046 54.868 91.422 7,26 7,39 5,84 Brumadinho 17.874 17.964 19.308 26.614 0,05 0,66 3,63 Nova Lima 33.992 41.217 52.400 64.387 1,95 2,21 2,32 Rio Acima 5.118 5.073 7.066 7.658 -0,09 3,06 0,90 1.717.216 2.609.520 3.436.060 4.259.163 4,56 2,53 2,41 Município Belo Horizonte Principais municípios do eixo oeste Betim Contagem Ibirité/Sarzedo/Mário Campos(1) Principais municípios do eixo norte Ribeirão das Neves Principais municípios do eixo sul Total geral da RMBH(2) Fonte: IBGE, Censos Demográficos. (1) Municípios desmembrados na década de 1990. (2) Total de municípios que formavam a RMBH em 1991. cai para 2,5% a.a., e em 1990 para 2,4% a.a. RMBH e mais alto que o de Belo Horizonte, res- Essa desaceleração é perceptível em todos os pectivamente, 2,2% e 3,1% a.a. municípios que, na década de 1970, apresen- O processo de metropolização de Be- taram altas taxas de crescimento populacio- lo Horizonte resultou em particularidades e nal. Mas Ribeirão das Neves, Santa Luzia e na pluralidade do crescimento periférico: em Vespasiano ainda apresentaram altas taxas de primeiro lugar, pelo movimento clássico de crescimento: respectivamente 7,5%, 7,9% e expulsão para a periferia com a constituição 7,4% a.a. No eixo sul, Brumadinho permane- das cidades dormitórios no eixo norte; em ceu praticamente estagnado demograficamen- segundo, por uma estruturação econômica, te; já em Nova Lima e Rio Acima verificou-se ditada pela ação estatal, que definiu um eixo um crescimento da população próximo ao da industrial-residencial periférico, a oeste; em 172 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais terceiro lugar, por uma periferização das clas2 ses médias para os condomínios fechados do eixo sul. 3 A história de Nova Lima remonta ao século XVII e à atividade mineradora: primeiro o ouro e depois o ferro. É, portanto, uma cidade Essa periferização da moradia de parte muito mais antiga que a capital do estado e dos estratos médios e altos, que se disseminou município polo da Região Metropolitana, a pla- pelas metrópoles brasileiras a partir da década nejada Belo Horizonte, inaugurada em 1897. de 1990, é na verdade um fenômeno recente, Como foi mostrado anteriormente, apesar de uma vez que até então esses estratos prefe- sua proximidade com a capital, Nova Lima não 4 riam as áreas centrais. Mas o importante a ser se transformou em uma cidade dormitório por destacado aqui é que o grupo propulsor des- diversos fatores. Mas, desde a década de 1970, se processo territorial e social depende, para parte de seu território passou a ser desmem- a manutenção de suas casas e de seus estilos brada em lotes de grandes dimensões para o de vida, de um número relativamente alto de lazer, nos finais de semana, de moradores de empregados domésticos e de outros prestado- Belo Horizonte. Até a década de 1980, raros fo- res de serviços. Esses trabalhadores, limitados ram os que optaram pela moradia permanente pelo alto valor do solo na região, encontraram nesses loteamentos, em função do seu relativo em alguns espaços residuais do município de isolamento. Esse cenário muda na década de Nova Lima seu lugar de moradia, conformando 1990, atraindo novos e mais ricos moradores um espaço heterogêneo e bastante polarizado, para os condomínios. Esses vêm, na sua quase com densidade alta nas áreas residenciais dos totalidade, de Belo Horizonte (Andrade, 2003, estratos de baixa renda (loteamentos abertos) 2006). e baixa nas dos estratos de alta renda (lotea- Há, aqui, uma combinação de fatores mentos fechados, denominados “condomí- de expulsão de Belo Horizonte, que se dife- nios”) (ver Mendonça e Perpétuo, 2006). rencia da expulsão para as regiões ao norte: Se na segregação centro-periferia a dis- a saturação do espaço físico da capital, princi- tância física colaborava para a manutenção palmente para a construção de casas, e o au- da distância social, fundamento dessa ordem mento da insegurança e da criminalidade estão urbana desigual, na autossegregação nos con- entre os principais. Por outro lado, os condo- domínios fechados são construídas barreiras mínios passam a contar, na década de 1990, físicas e sociais que fazem com que a proxi- com um conjunto de atrativos muito valorizado midade física não seja vista como socialmente problemática.5 Apesar de essas duas formas de segregação – centro-periferia e autossegregação dos grupos de alto status – se fazerem presentes na maioria das cidades brasileiras (e latinoamericanas), algumas especificidades históricas de Nova Lima e de Ribeirão das Neves nos ajudam a entender melhor esse processo. no mercado de terras da região: proximidade Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 da natureza, tranquilidade, privacidade e segurança. O antigo isolamento é rompido com melhorias viárias e a oferta de serviços nas imediações dos condomínios; conjuntamente, eles promovem a conurbação com Belo Horizonte. Mais uma vez, observa-se aqui uma convergência entre os interesses privados – imobiliários e de comércio e serviços – e a ação do poder 173 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça público. Este último, através da prefeitura mu- pelo município; atualmente, abriga indústrias nicipal, desencadeou uma ampla campanha de de pequeno porte, galpões, lojas que atendem atração de empresas e de moradores com alto aos condomínios e muitas residências para a poder aquisitivo. Entre os incentivos estavam a população mais pobre, em geral prestadores redução de impostos e a duplicação das pistas de serviços nos condomínios; 6) por fim, há al- da antiga e sinuosa estrada que liga a sede do guns povoados, sendo o mais importante deles o distrito de São Sebastião das Águas Claras, com muitas pousadas, restaurantes e antiga população que vive da agricultura e que hoje também encontra emprego nessas novas atividades de lazer. O território de Ribeirão das Neves constituiu-se também de forma fragmentada, embora em menor grau. Seu intenso crescimento na década de 1970 é expressão de um processo nacional de segregação nas metrópoles brasileiras, em um momento de grande fragilidade das políticas de regulação do solo. Entre os seus principais sujeitos estão os agentes imobiliários, que atuaram indireta e diretamente sobre o município, no primeiro caso deixando grandes vazios urbanos nas áreas mais centrais da RMBH dotadas de infraestrutura, como forma de valorizá-los para posterior comercialização e, no segundo caso, agindo diretamente na criação de loteamentos precários, nas periferias mais distantes, muitos deles clandestinos e sem nenhuma infraestrutura. Ao processo de parcelamento do solo seguiuse a autoconstrução e a construção por “ajuda mútua”, reunindo família e amigos nos finais de semana. Essas periferias eram, na expressão de Cymbalista, “o lugar aonde as pessoas chegam antes da cidade” (2006, p. 44). Desta maneira, formou-se uma conurbação com os bairros situados a norte de Belo Horizonte, constituindo em Ribeirão das Neves a região conhecida como Justinópolis. Esta é hoje uma área de ocupação densa e município a Belo Horizonte. Essa ocupação, em várias e diferenciadas etapas, acabou por conformar um espaço muito fragmentado, para o qual contribuiu a grande extensão territorial do município – 429,7 km² (bem maior que a área da capital e de Ribeirão das Neves, respectivamente, 331,9 km² e 154,6 km²). Aliada à extensão, tem-se a preservação de suas qualidades naturais, grande atrativo para os condomínios. Seis são os territórios que podem ser identificados em Nova Lima: 1) a Região das Seis Pistas, na fronteira com Belo Horizonte, que concentra faculdades, hospitais, hotéis, escritórios, prédios residenciais de alto luxo, restaurantes e outros serviços e constitui hoje uma nova centralidade; 6 2) um conjunto de condomínios ao longo da rodovia MG-30, que liga Belo Horizonte à sede do município; 3) a antiga sede ou área central, com serviços e comércio local, e residências de seus antigos moradores, muitos deles ex-trabalhadores da mina de ouro, hoje desativada; 4) um outro conjunto de condomínios localizado nas margens da rodovia BR-040 (ligação Belo Horizonte-Rio de Janeiro); entre estes condomínios encontra-se um loteamento aberto, o Vale do Sol, que além das residências de estratos médios abriga um relativamente sofisticado centro gastronômico; 5) situado em área próxima a esse segundo conjunto de condomínios está o Jardim Canadá, um antigo loteamento que durante décadas ficou abandonado, sendo reativado em função dessa nova atração exercida 174 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais cujos vínculos são muito mais fortes com Belo respeito ao trabalho: quase metade da sua po- Horizonte do que com a sede de Ribeirão das pulação que trabalha o faz em Belo Horizonte 7 Neves. (FJP, 2004). Na realidade, menos da metade da Mas se a periferia de Ribeirão das Neves população trabalhadora exerce sua ocupação foi esse território abandonado pelo estado e no próprio município. É digno de nota, ainda, desbravado pelos agentes imobiliários, no seu que 7% se desloca para trabalhar em Conta- núcleo central, a sede do município, o estado gem, no eixo oeste industrial (Tabela 2). já se fazia presente pelo menos desde 1938, Nova Lima também apresenta um signi- quando ali foi instalada a Penitenciária Agrí- ficativo grau de dependência, mesmo se con- cola de Ribeirão das Neves, hoje um comple- siderado todo o município: 1/3 dos que traba- xo penitenciário. Antes de se constituir como lham o fazem em Belo Horizonte. No desloca- “cidade dormitório”, Neves foi, e continua sen- mento por motivo de estudo, relativamente a do, a “cidade presídio” da RMBH. Essas duas Ribeirão das Neves, mais pessoas se deslocam funções, presídio e dormitório, têm um efeito de Nova Lima para a capital. Também o des- bastante negativo sobre sua imagem. locamento para compras e/ou lazer apresenta Ribeirão das Neves como um todo apre- fluxo significativo para Belo Horizonte: 1/3, no senta um alto grau de dependência em relação caso de Nova Lima, e 1/4, no caso de Ribeirão a Belo Horizonte, principalmente no que diz das Neves.8 Tabela 2 – Nova Lima e Ribeirão das Neves Origem dos deslocamentos, por motivo, 2001 Nova Lima Origem Destino/motivo Trabalho Num. Abs. Estudo Ribeirão das Neves Lazer/compras % Num. Abs. % 8.153 32,58 5.103 24,52 Contagem 431 1,72 – 0,00 – 0,00 Esmeraldas – 0,00 – 0,00 – Nova Lima 15.767 74,71 Belo Horizonte Raposos Ribeirão das Neves Todos os destinos 54 – 63,01 15.551 Num. Abs. Trabalho Num. Abs. Lazer/compras % % 48,52 9.301 11,83 998 25,29 6.599 7,42 408 0,52 91 2,30 0,00 228 0,26 – 0,00 136 3,45 1.128 59,15 364 0,41 – 0,00 – 0,00 – 0,00 – 0,00 – 0,00 86,61 2.677 67,82 564 % 29,58 43.146 0,22 – 0,00 134 7,04 0,00 – 0,00 – 0,00 36.729 25.023 100,00 20.815 100,00 Estudo Num. Abs. 41,30 68.098 1.907 100,00 88.932 100,00 78.623 100,00 Num. Abs. % 3.947 100,00 Fonte: Fundação João Pinheiro, Pesquisa de Origem e Destino, 2004. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 175 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça não é isso que se capta dos dados sobre os Homogeneidade versus heterogeneidade imigrantes recentes, ou seja, aqueles habitantes que não residiam no município em 1995. O Quadro 1 permite observar que, em Nova Lima, Como já se indicou, o município de Ribeirão embora haja entre os imigrantes recentes alto das Neves é bastante homogêneo na compo- percentual de pessoas mais escolarizadas e de sição de sua população, enquanto Nova Lima empregadores, grande parte é constituída por demanda uma investigação mais detalhada de grupos sociais de baixa renda e de baixa esco- sua composição social, uma vez que esta se laridade. Diferentemente, nota-se em Ribeirão apresenta bem mais complexa. das Neves que os indicadores sociais da po- Dada a extensão dos espaços ocupados pulação total são praticamente os mesmos da pelos condomínios e a atenção que eles e seus população que chegou recentemente ao muni- moradores recebem dos meios de comunica- cípio, caracterizando-se expressivamente por ção, a impressão que se tem é que a expansão grupos de baixa renda e baixa escolaridade. metropolitana no eixo sul é caracterizada ape- A entrada de migrantes de diferentes ori- nas (ou mesmo predominantemente) por seg- gens sociais, que revela a dinâmica mais recen- mentos populacionais de alta renda. Ainda que te de Nova Lima, somada à população que há estes sejam os definidores dessa expansão, mais anos reside no município, resultou numa Quadro 1 – Nova Lima e Ribeirão das Neves Alguns indicadores dos diferenciais socioeconômicos dos imigrantes recentes (*) em relação à população total, 2000 Nova Lima Indicadores Renda total da população ocupada Ribeirão das Neves População total Imigrante recente População total Imigrante recente (total = 100%) (total = 100%) (total = 100%) (total = 100%) % do pessoal ocupado com total de rendimentos igual ou menor que 1 SM 20,76 13,51 22,11 21,97 % do pessoal ocupado com total de rendimentos igual ou maior que 30 SM 2,48 7,86 0,10 0,17 2,75 8,50 1,24 1,10 % de pessoas com 3 anos de estudo ou menos (**) 17,27 17,48 25,87 25,29 % de pessoas com 12 anos de estudo ou mais 8,96 23,97 1,53 1,40 População ocupada % de empregadores Escolaridade (*) Imigrantes recentes são aqueles habitantes que não moravam no município em julho de 1995. (**) Pessoas com 10 anos ou mais de idade – estão incluídas as que frequentaram curso de alfabetização. Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000 – dados trabalhados. 176 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais composição social mais heterogênea, ainda dos dois municípios. Observa-se, na Tabela 3, que, como veremos, mais da metade do total que a mescla social é significativamente maior de domicílios do município possui renda até na sede de Nova Lima – excetuando-se os 5 salários mínimos (ver Tabela 4). Na compa- empresários, dirigentes públicos e privados e ração com Ribeirão das Neves, as diferenças os pequenos empregadores, todos os demais tornam-se mais nítidas. Os estratos médios grupos sociais desse município (intelectuais, (mais de 5 até 20 SM) têm representação su- trabalhadores de ocupações médias e traba- perior em Nova Lima; o grupo com mais de 20 lhadores do secundário e do terciário) têm uma SM é quase inexistente em Ribeirão das Neves participação próxima da média metropolitana. e atinge 10% dos domicílios em Nova Lima. Ou Na sede de Ribeirão das Neves, ao contrário, seja, Ribeirão das Neves é homogeneamente apenas os grupos sociais constituídos por tra- pobre, enquanto Nova Lima tem uma repre- balhadores manuais têm participação próxima sentação mais significativa de grupos de renda ou acima da média metropolitana. média e alta (quase a metade dos domicílios). O espaço periférico de Nova Lima, cons- Outra forma de se aferir a composição so- tituído predominantemente pelos loteamentos cial dos dois municípios, assim como a sua dis- fechados dos segmentos de média e alta renda tribuição territorial, é considerar as categorias (a mais significativa exceção é o Jardim Cana- sócio-ocupacionais construídas no âmbito do dá), apresenta-se como espaço altamente po- 9 Observatório das Metrópoles e suas respec- larizado, do ponto de vista social. Os grupos tivas representações nas sedes e nas periferias dirigentes e intelectuais têm representação Tabela 3 – Densidade(*) de representação dos grupos sócio-ocupacionais pelo Núcleo Central (NC) ou Periferia (P) – 2000 Trab. do terciário Trab. da indústria Trab. do terciário não especializado Total 1,13 0,93 1,03 1,05 1,00 1,31 0,65 0,86 1,02 1,52 1,00 0,48 0,20 0,59 1,10 1,36 1,46 1,00 0,20 0,35 0,16 0,64 1,20 1,33 1,36 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 Trab. agrícolas Dirigentes NC de Nova Lima 0,13 0,46 0,67 0,83 P de Nova Lima 0,31 2,17 0,56 NC de R. das Neves 1,18 0,27 P de R. das Neves 0,99 RMBH 1,00 Localização Pequenos Ocupações Intelectuais empregadores médias (*) A densidade representa a participação de cada grupo no conjunto da população ocupada do município, em relação à média metropolitana. Quanto maior o número, maior é a concentração do grupo social. Fonte: IBGE – dados trabalhados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 177 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça expressivamente acima da média metropoli- Renda, trabalho e desemprego tana (o dobro, no caso dos dirigentes), assim como os trabalhadores do terciário não espe- Além do que foi dito anteriormente sobre a cializado, com destaque para os empregados distribuição desigual da renda, é importante domésticos. A participação dos demais traba- destacar a situação de maior pobreza e vulne- lhadores situa-se próxima ou abaixo da média rabilidade em Ribeirão das Neves. Em ambos metropolitana. os municípios, mais de 50% da população re- O contrário ocorre com os espaços pe- cebe menos do que 5 SM (ver Tabela 4), mas é riféricos de Ribeirão das Neves: a participa- significativa a concentração de 74% de domicí- ção dos dirigentes (empresários e dirigentes lios de Ribeirão das Neves nesse grupo, assim públicos e privados), dos pequenos emprega- como apenas 1,18% no grupo com mais de 20 dores e dos intelectuais é quase cinco vezes salários mínimos. menor do que a média metropolitana. Também Se observarmos a taxa de desemprego as ocupações médias estão sub-representadas. aberto, isto é, a proporção dos que procuram Os trabalhadores manuais da indústria e do emprego no conjunto da população economi- terciário apresentam, ao contrário, participa- camente ativa (PEA10 ), veremos que também ção acima da média metropolitana. De fato, esta é maior em Ribeirão das Neves (em to- em Ribeirão das Neves, os espaços centrais e das as faixas etárias). No conjunto, a taxa de periféricos apresentam composição social bas- desemprego é 23% em Ribeirão das Neves e tante semelhante. 19% em Nova Lima. Destaca-se, em ambos os Tabela 4 – Nova Lima e Ribeirão das Neves Renda total do domicílio, 2000 Faixa de rendimento domiciliar Município Até 5 SM Mais que 5 até 20 SM Mais que 20 SM Total Nova Lima 53,36 36,56 10,07 100,00 Ribeirão das Neves 74,46 24,36 1,18 100,00 Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000. 178 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais municípios, o desemprego entre os adolescen- domésticos, e os que trabalham por conta- tes e jovens de 15 a 24 anos de idade: taxas de própria, em Ribeirão das Neves este trabalha- desemprego de 34% e 35%, respectivamente, dores alcançam quase a metade da população para Nova Lima e Ribeirão das Neves, o que ocupada (47%), enquanto que em Nova Li- não necessariamente significa que esses jovens ma 40% estão nesta situação.11 Importante estejam frequentando a escola – em Nova Li- também registrar que, entre os empregados ma existem 2.768 adolescentes e jovens nessa domésticos, não têm sua carteira assinada faixa etária que não estudam nem trabalham, 47,3% em Nova Lima e 53,37% em Ribeirão que correspondem a 21% do total de jovens das Neves. nesta faixa etária. Em Ribeirão das Neves, os Ribeirão das Neves apresenta uma par- adolescentes e jovens nessa situação somam ticipação da PEA na PIA bastante alta na faixa 16.127 (30% do total de jovens). etária de 15 a 17 anos, o que indica a maior Também a precarização do trabalho é presença de pessoas jovens no mercado de maior em Ribeirão das Neves: o percentual trabalho ou procurando emprego. Nas outras de empregados sem carteira assinada é de faixas as diferenças não são tão marcantes. A 22%, em contraposição a Nova Lima, onde é explicação para a maior diferença em relação de 15,5%. Se somarmos todos os que traba- à primeira faixa etária pode ser buscada na lham sem carteira, incluindo os empregados menor frequência dos jovens de Ribeirão das Tabela 5 – Posição na ocupação da População Ocupada em Nova Lima e Ribeirão das Neves, 2000 População Ocupada Nova Lima Num. Abs. Ribeirão das Neves % Num. Abs. % 1 - Trabalhador doméstico com carteira de trabalho assinada 1.950 7,6 5.984 6,5 2 - Trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada 1.751 6,8 6.848 7,5 3 - Empregado com carteira de trabalho assinada 12.419 48,4 40.051 43,8 4 - Empregado sem carteira de trabalho assinada 3.975 15,5 19.986 21,8 707 2,8 1.137 1,2 4.452 17,3 16.175 17,7 41 0,5 243 0,3 8 - Não remunerado em ajuda a membro do domicílio 245 1,0 759 0,8 9 - Trabalhador na produção para o próprio consumo 42 0,2 353 0,4 25.681 100,0 91.535 100,0 5 - Empregador 6 - Conta própria 7 - Aprendiz ou estagiário sem remuneração Total Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000 – dados trabalhados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 179 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça Tabela 6 – Participação da PEA na PIA Município TX de participação TX de participação TX de participação TX de participação da PEA na PIA de 15 da PEA na PIA de 18 da PEA na PIA de 25 da PEA na PIA de 60 a 17 anos, 2000 a 24 anos, 2000 a 59 anos, 2000 anos e mais, 2000 Nova Lima 35,46 78,34 73,57 19,25 Ribeirão das Neves 46,37 78,53 75,08 20,93 RMBH 40,73 77,61 76,03 20,26 Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano. Neves na escola. Nessa faixa, 78% dos adolescentes de Ribeirão das Neves estão na escola, Educação enquanto em Nova Lima são 87%. É justamente sobre os adolescentes (15 a 17 anos) que Indicadores sociais também mostram que a incidem os efeitos da recente precarização do população de Ribeirão das Neves apresenta trabalho. baixo nível de ativos.12 A Tabela 7 mostra, na Em Ribeirão das Neves, outro dado que primeira coluna de cada faixa etária, a porcen- demonstra sua maior precariedade é a neces- tagem de crianças e adolescente frequentando sidade de seus moradores deslocarem-se dia- a escola; já a segunda coluna mostra se essas riamente para outro município para trabalho pessoas estão no nível (fundamental ou mé- ou estudo (movimento pendular) – quase a dio) adequado à sua idade; a última coluna, metade dos trabalhadores vão diariamente pa- por sua vez, mostra a porcentagem de pessoas ra Belo Horizonte (Tabela 2). Ainda que esse de 18 a 24 anos frequentando curso superior. seja um indicador da metropolização de uma Para as crianças de 7 a 14 anos, o acesso à região, ele também mostra a dependência de escola é praticamente universal, com dados certos municípios em relação à cidade polo e superiores a 96,41% – na segunda coluna os sua incapacidade de gerar empregos e prover números caem um pouco, em virtude talvez serviços educacionais. E, sendo seus morado- de uma pequena porcentagem dessas crianças res pessoas com baixa renda, a necessidade de não estarem ainda no curso fundamental. Já deslocamento é um fator que deprecia ainda a diferença da terceira para a quarta coluna é mais a renda familiar ou então atua como um bem maior e muito provavelmente se deve à limitador naqueles casos em que o emprega- defasagem escolar, ou seja, aos adolescentes dor arca com os custos do transporte. que ainda estão no ensino fundamental e não 180 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais Tabela 7 – Frequência à escola (%), 2000 Crianças de 7 a 14 anos na escola Crianças de 7 a 14 anos frequentando o fundamental Adolescentes de 15 a 17 anos na escola Adolescentes de 15 a 17 anos frequentando o ensino médio Pessoas de 18 a 22 anos frequentando curso superior Nova Lima 98,23 93,56 86,92 45,69 7,43 Ribeirão das Neves 96,41 92,13 77,88 37,36 0,56 Município Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano. no ensino médio. A última coluna mostra aqueles com 18 a 22 anos que frequentam curso su- Homicídios perior. A participação dos jovens de Ribeirão das Neves nesse grau é inferior a 1%. A situação de Ribeirão das Neves e a de No- O percentual de pessoas com mais de va Lima distinguem-se profundamente quan- 25 anos analfabetas em Ribeirão das Neves é do comparamos a incidência de homicídios.13 12,78%, quase o dobro de Nova Lima, 6,74%. Entre os anos de 1998 a 2002, a taxa média Nesse mesmo grupo etário a média de anos de de homicídios por 100 mil habitantes em Nova estudo dos moradores de Ribeirão das Neves é Lima foi de 4,2 e a de Ribeirão das Neves 39,3, 4,78% em contraposição aos 6,78% de Nova ou seja, nove vezes maior. O Mapa da Violência de 2007 (OEI, 2007) Lima. Esses baixos resultados educacionais po- mostra, para os anos de 2002 e 2004, uma rea- dem indicar uma continuidade da pobreza, pois lidade ainda mais preocupante para Ribeirão os filhos, ainda que atinjam um nível educacio- das Neves. Nesses anos, o município registrou nal superior ao dos seus pais, provavelmente uma taxa média de 58 homicídios por 100 mil não conseguirão atingir os mesmos níveis dos habitantes, o que o coloca entre os 10% dos outros jovens da RMBH, o que os colocará nu- municípios com as maiores taxas médias de ma posição de desvantagem na competição homicídios por 100 mil habitantes, ocupando no mercado de trabalho, pelo menos para os a 97ª posição num conjunto de 556 municí- trabalhos melhor remunerados e que exigem pios brasileiros. Na RMBH, Ribeirão das Ne- maior nível educacional. ves ocupa a terceira posição, depois de Betim Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 181 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça (63,7) e de Contagem (58,4). Quando se consi- Sanzone fala de uma integração seletiva e Soa- deram os homicídios da população jovem, sua res de uma integração subalterna que, se já foi taxa por 100 mil habitantes sobe para 109,1 aceita pelos pais dos jovens pobres, não é mais o que corresponde a 89ª posição no conjunto aceita por estes últimos. O grande desafio está dos 10% municípios com maior incidência de em combinar geração de emprego e renda com 14 homicídios na população jovem (OIE, 2007). a sensibilidade para o imaginário jovem e para Como várias pesquisas já mostraram, são jo- suas linguagens culturais específicas. Na falta vens pobres matando outros jovens pobres.15 de condições para realização de suas expecta- Pesquisas recentes sobre jovens no Brasil revelam uma mudança nos seus valores, evi- tivas, muitos jovens optam pela inatividade ou mesmo pela criminalidade. denciando uma significativa ruptura geracional. As primeiras constatações nessa direção aparecem na pesquisa da antropóloga Alba Zaluar na Cidade de Deus na década de 1980. Algumas conclusões Se para os pais o trabalho, ainda que precário e pouco especializado, conferia a identidade de A comparação entre as condições sociais de trabalhador honesto e provedor da família, que dois municípios situados nas fronteiras da ca- se contrapunha à identidade negativa de vaga- pital, Belo Horizonte – um na fronteira pobre bundo, os filhos não viam nessa vida de pobre- e outro na fronteira rica, um expressão do mo- za e restrições grandes virtudes; ao contrário, delo de segregação centro-periferia, outro de passaram a rejeitá-la. Pesquisas mais recente um modelo mais recente e mais fragmentado, (Sanzone, 2003) mostram essa mudança de social e territorialmente – coloca como ques- valores de forma até mais profunda. Os jovens tão de fundo as consequências desses dois de hoje, mais educados e mais reivindicativos modelos para a população mais pobre, ou seja, de seus direitos de igualdade, têm uma repre- o problema da superação da pobreza e, mais, sentação do trabalho diferente da de seus pais. da integração social. O que estes consideravam trabalho, os filhos Nas décadas de 1960/70 as regiões me- veem como bicos e ocupações subservientes tropolitanas atraíram muitos migrantes em como é o caso do trabalho doméstico, aceito função de maior oferta de empregos e da pos- pelos pais e rejeitado pelos filhos. A demanda sibilidade da aquisição da moradia na periferia por igualdade e a rejeição a relações oligár- distante – uma integração, ainda que seletiva, quicas fazem parte hoje do universo cultural a certa urbanidade metropolitana. Passadas desses jovens pobres que tiveram mais acesso mais de duas décadas, os indicadores sobre à escola, um dos espaços onde esses valores a população de Ribeirão das Neves revelam foram difundidos. maior instabilidade em relação ao trabalho e As pesquisas de Luiz Eduardo Soares maior déficit em relação à renda e à educação, (2003) e de Sanzone (2003) problematizam as considerando esta como um dos requisitos demandas de integração por parte desses jo- mais fundamentais para o acesso ao trabalho vens e os canais institucionais para alcançá-las. digno e melhor remunerado. Soma-se a isso 182 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais um ambiente de desagregação social e de utilizados, os contatos desses moradores com medo com o crescimento da criminalidade. E, outros grupos sociais fora do bairro. ainda que vários de seus indicadores tenham Acresce-se a isso tudo a mais recente evidenciado melhora, isso ocorreu de forma forma de apartação social: a estigmatização generalizada na RMBH e em quase todo o país, dos territórios da pobreza como territórios da o que enfraquece as chances dessa população criminalidade. Assim como o estigma vincula- ante outros grupos sociais, pois, se as melho- do ao comportamento de um indivíduo tende rias atingem a todos, as distâncias e as desi- a abarcá-lo como um todo (Goffman, 1980), gualdades não diminuem. o estigma de um território estigmatiza a to- Outro cenário revelado pelos dados de dos que ali residem. Ribeirão das Neves sofre Ribeirão das Neves é uma forte homogeneida- duplamente desse estigma, primeiro por ser a de da sua população e de seu território; ape- “cidade-presídio” da RMBH e, segundo, por sar de os efeitos da homogeneidade serem de suas altas cifras de criminalidade violenta. difícil aferição e de os dados aqui apresenta- Dessa forma, o crime passa a ser vincula- dos não validarem qualquer conclusão nessa do à pobreza, com consequências perversas direção, a hipótese levantada por outros estu- para todos os seus moradores. As maiores evi- dos (Kaztman, 2007) pode ser aqui reproduzi- dências dessa situação são as dificuldades que da: a falta de convivência próxima e cotidiana os moradores de bairros estigmatizados como com pessoas em situações mais vantajosas, violentos têm para conseguir empregos e pa- seja profissional, educacional ou culturalmen- ra se relacionar com pessoas de outros grupos te, entre outros aspectos, não gera condições sociais. para que se vençam as dificuldades do contex- Aqui chegamos a uma questão cara a es- to, assim como não propicia efeitos concretos, te trabalho, mas de difícil verificação, até mes- como indicação para trabalho, possibilidades mo devido à natureza dos dados disponíveis. de continuidade dos estudos, entre tantas Pode-se falar de um efeito agravante do terri- outras. tório sobre a pobreza? Como alertam Kaztman Estamos nos referindo aqui a um dos e Retamoso (2005), deve-se ter o cuidado de contextos da vida social dessas pessoas, o não confundir causa com consequência ou, bairro ou o local de moradia, mas é importan- nos termos deste trabalho: Ribeirão das Neves te ter em vista que ele não esgota todas as é mais pobre e vulnerável porque para ali se possíveis relações, inclusive com outros grupos dirigem pessoas mais pobres ou porque a reu- sociais em outros contextos, pois, como os da- nião de muitas pessoas pobres configura um dos do movimento pendular mostram, muitos contexto social pouco propício à superação da moradores de Ribeirão das Neves deslocam-se pobreza? diariamente para o trabalho ou estudo. Por- Se os dados não nos permitem a deter- tanto, preferimos o conceito de homogeneida- minação de causa e efeito, eles podem nos in- de social, capaz de descrever a intensidade da dicar algumas hipóteses, tanto contra quanto a segregação, ao de isolamento, uma vez que favor da tese do efeito território. Em primeiro não podemos controlar, com os dados aqui lugar, não há dúvida de que Ribeirão das Neves Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 183 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça atraiu e continua atraindo, ainda que em menor aos de Ribeirão das Neves. É importante tam- escala, os mais pobres, devido principalmente bém frisar as suas diferenças quantitativas, ao baixo valor da terra. Mas quando analisa- uma vez que Nova Lima não experimentou com mos os dados relativos às crianças e aos jovens a mesma intensidade de Ribeirão das Neves a é possível perceber que não há um rompimen- migração de pobres. to significativo em relação à situação dos pais, A questão anteriormente colocada em ou seja, o que se verifica é uma reprodução da relação a Ribeirão das Neves é pertinente tam- pobreza, com o agravante do crescimento da bém para Nova Lima, ou seja, não é possível criminalidade. E se a criminalidade de maior saber, com base nos dados aqui analisados, incidência nesses espaços são os crimes contra a intensidade das trocas que se operam entre pessoas (entre estes, os homicídios), que têm os diferentes estratos populacionais que com- como vítimas e réus preferenciais os jovens, põem o ambiente mais heterogêneo de Nova isso evidencia o envolvimento com a criminali- Lima e, principalmente, os seus efeitos. Mas a dade de uma parcela da população que, como presença de faculdades e de outras atividades também afirmam Kaztman e Retamoso (2005) culturais são indicadores positivos de um am- para o Uruguai, nasceu e foi socializada nesse biente mais plural culturalmente. contexto, ou seja, esses jovens não tomaram, Mas além de saber se essas trocas efe- eles mesmos, a decisão de ali se radicarem, o tivamente ocorrem, interessaria conhecer a que reforça a hipótese do efeito território, pelo sua natureza, em especial entre patrões e menos para esses grupos mais jovens. empregados domésticos, assim como entre Depreende-se, pois, que a continuidade moradores de territórios com barreiras físicas, da pobreza em Ribeirão das Neves, passadas como são os condomínios fechados. Ainda mais de duas décadas, pode ser um forte indi- que a empregada doméstica brasileira já te- cador dos efeitos perversos da homogeneidade nha conquistado alguns direitos, entre eles a social. Como diz Kaztman (2007), opera nesses carteira de trabalho, o que pressupõe um con- contextos uma “sinergia negativa”, e quanto trato amparado em leis e com conteúdo mais menor os contatos entre as diferentes classes impessoal, no dia-a-dia as relações são mar- sociais, menores são os problemas comparti- cadas por forte conteúdo tradicional e hierár- lhados e maiores as distâncias. Isso contribui quico (Soares, 1999), que pode incluir inclusive para conformação de visões estereotipadas do a inobservância da lei – segundo os dados do outro, como a do rico ostentoso e a do pobre Censo Demográfico de 2000, cerca de metade criminoso. dos trabalhadores domésticos de Nova Lima Nova Lima experimenta outro tipo de não tinham carteira assinada. Essa relação migração, a dos ricos, que simultaneamente de submissão pessoal e de atribuição rígida atrai os mais pobres que, somados aos grupos e tradicional de lugares sociais consolidados sociais médios, conformam um contexto muito não impede as trocas, mas certamente não mais heterogêneo, ainda que segregado. Seus atua como elemento facilitador. A segmenta- indicadores sociais, assim como a oferta de ção do território pelo fechamento dos condo- serviços educacionais, são bastante superiores mínios, cujas cancelas impedem a entrada e a 184 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais livre circulação das pessoas pelos espaços por Retomando a nossa questão inicial, natureza públicos (como ruas e praças), mas quais os efeitos desses dois tipos de segrega- por convenção (também não amparada por ção? A resposta não é simples, e dificilmente lei) fechados, é outro elemento que impede as poderíamos, em contextos de segregação com trocas em bases minimamente igualitárias. Os forte conteúdo de separação de classes, falar lugares ideais do encontro e das trocas entre de efeitos positivos. A maioria dos autores que esses grupos seriam os espaços e as institui- estudam a segregação nas cidades latino-ame- ções públicas (a mais fundamental a escola, ricanas destaca a sua “malignidade”, como mas também os transportes, os serviços de dizem Sabatini, Cáceres e Cerda (2000). Re- saúde, entre outros), mas estes estão de tal sultados semelhantes podem ser encontrados forma segmentados que as trocas só se efeti- em Kaztman (1999) a respeito de Montevidéu vam entre iguais. e na comparação realizada por Ribeiro (2007) Disso se conclui que os dois tipos de se- entre trabalhadores com mesma escolaridade gregação socioespacial – na escala macro e vivendo em áreas faveladas e não faveladas, na escala micro – colocam barreiras físicas e/ os primeiros sempre com rendimentos supe- ou sociais que dificultam as trocas e as apro- riores aos últimos. Nesse caso, soma-se à se- ximações. No primeiro caso, pelas grandes gregação a estigmatização das favelas, o que distâncias físicas interpostas entre os ricos e os leva a práticas discriminatórias no mercado de pobres e, no segundo, pela separação desses trabalho. mesmos grupos sociais por barreiras físicas e Essas considerações não invalidam a hi- segmentação dos serviços. Portanto, os efeitos pótese de efeitos diferenciados nos dois casos positivos que poderiam advir do contexto mais aqui analisados. O que os dados mostram é heterogêneo de Nova Lima podem estar sen- que a maior homogeneidade de Ribeirão das do anulados na medida em que os grupos de Neves propicia a reprodução da pobreza e, maior status econômico, educacional e cultural mais recentemente, a desintegração social, constroem barreiras ao convívio e às trocas em analisada aqui pelo indicador da criminalida- condições minimamente igualitárias. Como diz de. Já Nova Lima apresenta indicadores bem Castel, “integrados, vulneráveis e desafiliados mais positivos, mas a questão que permanece pertencem a um mesmo conjunto, mas cuja é se, em contextos em que a heterogeneidade unidade é problemática” (1998, p. 34). Dito de é marcada pela segmentação e pela polariza- outra forma: em situações tão desiguais, que ção social, como na área dos condomínios, são destinos e valores podem ser compartilhados? possíveis as trocas e a integração social. Luciana Teixeira de Andrade Socióloga. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. [email protected] Jupira Gomes de Mendonça Arquiteta e urbanista. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 185 Luciana Teixeira de Andrade e Jupira Gomes de Mendonça Notas (*) Este trabalho foi realizado no âmbito da pesquisa Observatório das Metrópoles/Ins tuto do Milênio/CNPq. Uma versão preliminar foi apresentada no Seminar on Spa al Segrega on and Labor Market, realizado em Aus n, de 13 a 15 de fevereiro de 2008. (1) “As estruturas de oportunidades se definem em termos de probabilidades de acesso a bens, serviços ou a a vidades que incidem sobre o bem estar dos lugares […]” (Kaztman e Filgueira, 2006, p. 7). (2) Para análises mais detalhadas deste fenômeno na RMBH ver Andrade (2003). (3) Trata-se, na realidade, de uma expansão da centralidade metropolitana, uma vez que não se deslocam apenas moradores, mas também serviços. Além disto, a distância entre essa área e a área central e mais rica de Belo Horizonte é pequena: o deslocamento por automóvel é de aproximadamente 20 minutos. (4) Isso não significa que os condomínios sejam uma criação recente, a diferença é que antes sua ocupação era bastante rarefeita e eles se des navam, em especial, ao lazer nos finais de semana, não funcionando como moradia principal. (5) Essa proximidade sica é na verdade bastante rela va, uma vez que as áreas dos condomínios são muito extensas e um condomínio faz fronteira com outro, protegendo-se mutuamente. No caso dos que ficam na fronteira externa, tem sido u lizado o expediente de manutenção de um cinturão verde. (6) Esse po de centralidade difere da centralidade tradicional onde se concentram, além do comércio e dos serviços, as funções públicas e os grandes espaços públicos. As novas centralidades são esvaziadas dessa dimensão pública, nelas preponderando os espaços de consumo, com os shopping centers. (7) Esse é um aspecto da metropolização também presente em Nova Lima. Os principais vínculos dos moradores dos condomínios não se dão com a Sede de Nova Lima, mas com Belo Horizonte (Andrade, 2003), seja por relações anteriormente construídas, seja porque a sede oferece apenas comércio e serviços locais. (8) É importante ressalvar que, no caso dos deslocamentos por mo vo de compras/lazer, foi considerado somente o primeiro deslocamento; nos demais mo vos, a pesquisa considerou o des no final. (9) Nessa pesquisa, as categorias socioespaciais são a base da representação hierárquica da sociedade brasileira. A sua construção está suportada na ideia de centralidade do trabalho na estruturação e no funcionamento da sociedade. Para maior detalhamento, ver Ribeiro e Lago (2000) e Mendonça (2002). (10) A PEA é o somatório dos que trabalharam na semana de referência do Censo e aqueles que buscavam emprego. (11) Dada a quan dade de profissionais de nível superior em Nova Lima, parte dos trabalhadores por conta própria pode ser cons tuída de consultores e outros profissionais de alta renda. Nesses casos, a informalidade não é um indicador de precariedade. 186 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Explorando as consequências da segregação metropolitana em dois contextos socioespaciais (12) A noção de a vos representa o conjunto de recursos manipulados pelas famílias que lhes permitem “um aproveitamento efe vo das oportunidades que oferecem o Estado, o mercado e a comunidade para te acesso às condições de vida que se consideram dignas em um momento determinado” (Kaztman e Filgueira, 2006, p. 21). (13) O homicídio tem sido u lizado como um dos principais indicadores da criminalidade nas cidades brasileiras em função da sua gravidade e também por ser uma das esta s cas criminais mais confiáveis. (14) Nova Lima não foi contemplado nessa esta s ca, pois não está entre os municípios com maior incidência de homicídios. (15) Além do maior risco de perda da vida ou de submissão a outros pos de violência, a criminalidade acaba gerando mais gastos para as famílias cujos cônjuges trabalham e que não podem deixar seus filhos sem o cuidado de alguém. Referências ANDRADE, L. T. de (2003). “Segregação socioespacial e construção de iden dades urbanas”. In: MENDONÇA, J. G. de e GODINHO, M. H. de L. (org.). População, espaço e gestão na metrópole. Belo Horizonte, PUC Minas. ______ (2006). “Es los de vida nos condomínios residenciais fechados”. In: FRÚGOLI, H., ANDRADE, L. T. de e PEIXOTO, F. (org.). As cidades e seus agentes: práƟcas e representações. Belo Horizonte/ São Paulo, PUC Minas/Edusp. CASTEL, R. (1998). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes. COSTA, H. S..M.; COSTA, G. M.; MENDONÇA, J. G. de e MONTE-MÓR, R. L. de M. (2006). Novas Periferias Metropolitanas: a expansão metropolitana em Belo Horizonte – dinâmica e especificidades no Eixo Sul. 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 169-188, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas* Anthropology in the analysis of urban peripheral situations Maria Gabriela Hita John E. Gledhill Resumo Através da análise sobre a diferenciação existente entre distintas áreas pobres da cidade de Salvador, os caminhos que distintas redes sociais traçam entre distintos espaços da cidade, a importância de contextos e histórias particulares em conformar a capacidade de moradores de favela de atuar coletivamente, e a emergência de novos tipos de atores políticos e comunitários, sugere-se que uma análise sociologicamente mais ampla, focada numa análise mais etnográfica de como as pessoas vivem, pode oferecer tanto uma melhor compreensão de como e por que distintas “situações urbanas periféricas” diferem entre si, como oferecer melhores pistas para a reformulação de políticas públicas, iluminando importantes mudanças espaciais, sociais, políticas e simbólicas de significados de “situações urbanas periféricas” nessa metrópole. Abstract Through the analysis of the differentiation that exists between different poor areas of the city of Salador, the paths that distinct social networks trace between different zones of the city, the importance of particular contexts and histories in shaping the capacity of slum dwellers to act collectively, and the emergence of new kinds of political and community actors, we suggest that a more holistic sociological analysis, based on a more ethnographic analisis of how people live, can offer both a better understanding of how and why distinct “peripheral urban situations” differ from each other and also offer a better basis for reformulating public policies, illuminating important spatial, social, political and symbolic changes in the meanings of “peripheral urban situations” in this metropolis. Palavras-chave: marginalidade; informalidade e desigualdade; redes sociais; organização comunitária; novos atores; política urbana. Keywords: marginality; informal and inequality; social networks community organization; new actors; urban policy. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill Neste artigo, utilizamos o estudo do caso bairros populares são iguais. A qualquer mo- do Bairro da Paz, um bairro popular (periférico) mento, membros de uma família podem ser na cidade de Salvador-Bahia, e com predomí- encontrados vivendo em áreas diferentes que nio de população afrodescendente, para refle- a do interior de uma mesma ou de distintas tir sobre algumas possíveis mudanças de signi- cidades. Famílias extensas podem dispersar-se ficados espaciais, sociais, políticos e simbólicos para depois juntar-se de novo à mercê de di- que precisam ser levados em conta para se ferentes necessidades conjunturais, como a do ter uma melhor compreensão sobre as diver- desejo de aumentar oportunidades de trabalho sas situações urbanas e periféricas existentes ou pelos tipos de serviços; redes associativas e quando se compara a experiência de distintas tipo de organização que uns lugares oferecem favelas e bairros populares brasileiros. em detrimento de outros, para se aproximar de Partimos do suposto de que, apesar da suas redes de relações e afetos, ou pelo ampa- estigmatização social que recebem as zonas ro prestado por parentes com maiores recursos de concentração de pobreza urbana, geral- em fases críticas, mostrando quão persistente mente associadas ao crime e aumento de e providencial continua sendo o apoio de ami- violência – fato inegável, mas também fruto gos e parentes em situações de pobreza extre- da criação do imaginário de “outros” menos ma. Isso nos faz ter que ponderar as diferentes pobres sobre esses lugares –, pode-se e deve- habilidades e necessidades que alguns grupos se também privilegiar pesquisas, seguindo um ethos mais etnográfico, a heterogeneidade de situações periféricas urbanas e modos de viver a pobreza. Distintas situações históricas de como esses lugares foram constituídos e desenvolvidos, assim como o tipo de organizações sociais e políticas que caracterizam distintas favelas, ou, usando outro tipo de exemplos, considerando os motivos que levam distintas famílias a se reunirem em um mesmo local (ou não), são importantes elementos que nos ajudam a pensar as distinções e especificidades do que entendemos por “situações periféricas” em contraponto à força homogeneizadora que os iguala e reduz a ser simplesmente mais um dos espaços socialmente segregados e estigmatizados da cidade em sua categoria de serem simplesmente “pobres”. Para os indivíduos e as famílias que vivem nessas áreas classificadas como de segregação espacial, nem todas as favelas ou domésticos, em detrimento de outros, são 190 capazes de exercer ao aceitarem e buscarem sobreviver agregados, em grupos domésticos extendidos. Pessoas costumam circular por distintas casas e bairros, através de seus trajetos, circuitos e tipo de relações que desenvolvem, e desse modo os distintos lugares e bairros populares vão sendo configurados de acordo com o tipo de pessoas que os habitam ou visitam, assim como as relações de conflitos e alianças que se constroem em seu interior.1 Origens da diferença social entre favelas brasileiras podem ser individuais, idiossincráticas e contingentes. Contudo, também é importante observar fatores estruturais mais amplos que condicionam esses processos e contribuem na produção de variação entre distintas “situações periféricas urbanas”, no tempo e no espaço. Para isso, é vital a observação etnográfica de como alianças, conflitos e divisões internas ocorrem no interior de distintas comunidades Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas e como se organizam ou deixam de fazê-lo pa- de sucesso em programas de desenvolvimen- ra resolver seus diversos tipos de problemas. to local, promovidos por parcerias privadas e Numa situação em que um indivíduo ou gru- estatatais ou aproveitar-se das oportunidades pos de moradores podem ser “capturados” por oferecidas pelos mercados informais, assim co- interesses ou cosmovisões de distintas redes mo para entender por que outras comunidades políticas, religiosas e ideológicas, desde uma fracassam apesar da importância de certos in- análise em escala maior se poderia pensar que vestimentos públicos. algumas dessas fontes de conflito e divisão sejam externas ao próprio local, como também o são geralmente; entretanto, o impacto vai variar em casos particulares, a depender da resposta e tipo de engajamento político que esses Situações periféricas: do otimismo ao pessimismo distintos lugares desenvolvam sobre assuntos do dia-a-dia e sociedade em geral. Por isso, Atuais pesquisas sobre organização popular precisamos estar atentos tanto para a confi- vêm reeditando velhas preocupações sobre a guração do contexto social específico em que auto-organização dos moradores dos assenta- indivíduos que formam cada local e comunida- mentos irregulares que se formaram nas zonas des de baixa renda atuam, identificando quem periféricas durante o processo de urbanização são e como pensam, assim como para fatores em massa dos anos 60 e 70 na América Lati- mais amplos, regionais, nacionais e transnacio- na. No Brasil, muitas pesquisas têm polarizado nais que impactam esses lugares de distintas o debate, motivadas pelo desejo de dissipar o maneiras e que nos ajudam a explicar como e retrato pintado de que os pobres sejam “uma por que esses contextos de pobreza diferem classe perigosa” ou que sua “ameaça à higie- entre si. ne e saúde pública das cidades” seja suficiente Neste artigo, argumentamos que a expe- justificativa para explicar a formulação de po- riência subjetiva de ser pobre não é idêntica em líticas de segurança pública, que ao invés de todas as periferias de Salvador e que se corre o resolvê-los, o que fazem é estigmatizar mais sério risco de perder variáveis cruciais se não zonas de pobrezas como segregadas e proble- considerarmos algumas das razões disso ocor- máticas. Além disso, a retórica do “desenvolvi- rer. É preciso compreender melhor, por exem- mento participativo e sustentável ” das “novas plo, como as diferenças nas condições sociais políticas de redução de pobreza” contemporâ- internas e nas relações externas das comuni- neas se inspiram em projetos políticos anterio- dades, juntamente com diferentes histórias de res que invocam a ideia de Paulo Freire de que formação de cada lugar, afetam sua capacida- os expertos podem aprender dos pobres. Ao de de organização comunitária. A coerência mostrar que pessoas que vivem em assenta- da organização comunitária, por sua vez, é mentos irregulares são socialmente heterogê- importante para determinar quais “lugares” e neos, com capacidade de auto-organização ca- situações periféricas são potencialmente mais paz de explicar o modo como eles sobrevivem aptas de se engajar com maior possibilidade e em alguns casos até lograr certa mobilidade Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 191 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill social e que não estão desinteressados de seus modo de organização social de cada contexto direitos políticos, pesquisadores como Janice e favela, numa relação que não vê os seus há- Perlman (1976) não apenas humanizaram as bitos e modo de vida apenas como limitantes, favelas, como também têm contribuído para mas como uma parte essencial e criativa de importantes mudanças na prática e política, enfrentar situações precárias que precisam ser ao lado do impulso que movimentos sociais e a levadas em consideração. Mesmo se o novo ala mais radical da igreja católica tem produzi- tipo de alojamento não constituísse um pro- do nessa mesma direção. blema para muitos moradores, devido à maior Mas o efeito pulverizador de economias distância que terão de suas oportunidades de neoliberalizantes da década perdida dos anos emprego, ainda podem ser vistos como sen- 80 na América Latina tem limitado o impacto do jogados em um “depósito de gente” onde desse corpo de conhecimentos acadêmicos apenas os mais desesperados desejarão viver. que tem sido pouco absorvido pela percepção Além disso, modelos de habitação popular que social mais ampla da sociedade. Nos anos 90, não estejam bem adaptados às dinâmicas e as favelas passaram a ser vistas como espaços práticas familiares e desenvolvimento dos mo- mais estigmatizados do que antes, em contex- dos de sociabilidade dos respectivos grupos tos onde o aumento da criminalidade e a vio- alvos terminam por fracassar e são principais lência passam a ser mencionados não apenas responsáveis por promover o declínio de seus desde a perspectiva das classes médias, mas diversos tipos e níveis de sociabilidade, mes- também por membros da mesma classe traba- mo quando os baixos custos e melhoria de lhadora que não vivem em áreas urbanas iden- serviços de novas moradias oferecidas possam tificadas como “favelas” (Caldeira, 2000). estar acima do promédio ou do que o público Algumas políticas municipais brasileiras alvo tinha antes dessas intervenções. Esse foi o responderam a essa problemática criando pro- caso da construção do complexo habitacional gramas de requalificação de favelas, equipan- da Cidade Tiradentes, num dos extremos mais do melhor os espaços públicos e oferecendo distantes do centro da cidade de São Paulo melhor infraestrutura. O projeto “Favela-Bair- (Almeida et al., 2008). Além disso, o cresci- ro”, do Rio de Janeiro, construído por arquite- mento da insegurança econômica e a falta de tos progressistas e planejadores urbanos, é um moradia ao alcance da maioria, mesmo para bom exemplo disso (Soares e Soares, 2005). aquelas pessoas que têm, apesar dos baixos Projetos como esse favorecem a construção de salários, um emprego regular, fará com que apartamentos de tijolos de baixo custo para assentamentos irregulares continuem sempre substituir os barracos originalmente autocons- a crescer e continuando a aparecer nas mais truídos na formação da maioria das invasões diversas zonas metropolitanas. urbanas latinoamericanas, relocando algumas Os “problemas sociais” que fazem de tais delas, mas muitas das famílias beneficiárias assentamentos alvos de intervenções também das novas casas continuam insatisfeitas com se multiplicaram, em parte pelo crescimento do esse tipo de construção. A insatisfação revela consumo e tráfico de drogas, mas também de- a necessidade de relacionar a habitação ao vido à novas sensibilidades que surgem tanto 192 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas de cima quanto de baixo, em temas como o da neoliberal nas oportunidades econômicas e violência doméstica. Nem todas as intervenções padrões de sociabilidade dos cidadãos mais estatais no combate à violência foram bem re- pobres. Ambos os aspectos têm produzido cebidas entre os mais pobres e muito menos diagnósticos mais pessimistas sobre o futuro têm-se mostrado ser muito efetivas: entre ou- da pobreza urbana do que os encontrados na tras, por exemplo, estão aquelas focadas nos literatura anterior à década de 1990. direitos da criança, que combatem o trabalho Uma reflexão e autocrítica sobre o oti- infantil desde perspectivas de classes médias e mismo da literatura anterior no que diz respeito que vêm provando ser bastante contestáveis. ao possível futuro de assentamentos formados Apesar do desejo de boa parte dos pais de por ocupações ilegais ou invasões é o que en- aumentar o acesso de seus filhos à educação, contramos na análise de Susan Eckstein (1990), sua maior preocupação é a de mantê-los vivos que compara o destino de bairros ocupados e afastados do risco de aproximação ao tráfico por grupos de baixa renda dentro da cidade de drogas e participação em gangs, objetivo ao de outros, tipo favela, mais afastados do que o engajamento em atividades laborais pre- centro da cidade do México, na década de 80. coce parece mostrar ser mais eficaz do que a Assumia-se que “áreas urbanas degradadas e insuficiente e de má qualidade oferta educacio- centrais” eram ocupadas por populações em nal para os mais pobres existente no Brasil. trânsito, e que essas populações seriam elimi- Um desafio importante é matizar a visão nadas mediante a renovação e “gentrificação” que crescentemente conecta o tema da pobre- desses lugares. Eckstein mostrou, entretanto, za aos problemas de segurança pública, asso- que algumas dessas áreas, como a que ela ob- ciando a criminalidade e violência urbana dire- servou, têm logrado escapar desse destino ao tamente com a pobreza, em vez de considerar possuírem uma elevada capacidade de auto- os efeitos mais profundos das estruturas atuais organização coletiva e logrando permanecer da desigualdade social sobre a juventude da no local como produto da força popular, suas periferia urbana (Sapori 2007, p. 101) e as res- tradições culturais e do florecimento de uma ponsibilidades de atores localizados em outros economia informal que se beneficiou da sua lo- níveis sociais, nacionais e internacionais. Os re- calização centralizada e do seu maior acesso a cursos destinados a programas de redução da membros de outras classes sociais. Retomare- pobreza no Brasil vêm aumentando significati- mos alguns elementos desse argumento mais vamente desde 2002 e sob a presidência do PT adiante para pensar o nosso exemplo e suas (Partido dos Trabalhadores), sob o governo de implicações. Nos casos discutidos por Eckstein, 2 Luis Inácio “Lula” da Silva. Apesar de certos entretanto, ela mostra que favelas localiza- esforços de reforma nessa direção, a instala- das em regiões mais afastadas, mesmo quan- ção de forças policiais militarizadas (com uma do tenham recebido maiores investimentos e merecida reputação de abusarem da violência apoios públicos, em contraste, pareceram ter extrajudicial em favelas) têm sido o outro lado um desenvolvimento atrofiado, com a queda da moeda das políticas estatais. Outro desafio de recursos e do emprego, aumento do crime é o de compreender o impacto do capitalismo e da violência, e ampliação da diferença entre Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 193 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill os que são donos das casas e aqueles que pre- conflituoso, não tem maior impacto político, cisam alugar uma casa numa vizinhança cuja e os moradores dessas áreas não têm, na sua atração original para morar foi o de ter ofereci- visão extremamente pessimista, outra es- do terras e moradias mais baratas. perança além da de escapar desses lugares A análise dessa autora sobre o impacto estigmatizados. que o crescimento da precarização econômica pode ter na capacidade de organização popular e nos padrões de sociabililidade é também abordado nos rescentes escritos de Löic Wacquant (2007), no que ele denomina um “subproletariado precarizado”. Wacquant frequen- Relações sociais, cultura, políticas: a necessidade de reconhecer a diversidade temente invoca a experiência brasileira como importante caso paralelo a ser levado em As ideias de Wacquant são relevantes para en- conta, mesmo focando quase toda sua análi- tender algumas “situações sociais e periféricas se em situações (de certa maneira distintas) urbanas” do Brasil e nós compartilhamos com da pobreza nos Estados Unidos e França.3 As ele sua conclusão geral sobre as decorrências pessoas em situação de precarização tratada contraproducentes das políticas de “contenção por Wacquant estão consignadas em espaços punitiva” das populações, que o capitalismo urbanos segregados, despindo-os da possibili- neoliberal tem condenado a uma condição de dade de serem “lugares” socialmente signifi- insegurança econômica crônica. Mas nos con- cativos para seus moradores. Ao estigma terri- trapomos ao pessimismo de sua análise, por torial que sofrem essas vizinhanças adicionam- motivos tanto empíricos quanto teóricos, e se os estigmas da pobreza, etnicidade e raça, concordamos com Perlman (2004), quanto a portanto reforça a justificação das estratégias precisarmos rejeitar uma visão desses lugares de contenção produzidas pelos sistemas prisio- como sendo simplesmente e inevitavelmente nal e de segurança pública. Nesse contexto, as “depósitos de gente” relegada para morar em possibilidades de organização e formação de espaços segregados, mesmo sob as condições redes de sociabilidade são debilitadas na sua contemporâneas que mencionamos acima. perspectiva, porque muitos moradores tentam Pelo pouco interesse que ele mesmo parece diminuir a indignidade de seu próprio senso ter em assuntos culturais, Wacquant foca-se de serem estigmatizados por culpar o outro demasiado no passado e no que se perdeu: ou o vizinho pelo crime ou atividades antisso- a solidariedade e o senso comunal do antigo ciais que existem no bairro, um fenômeno que gueto estadunidense desaparece no “hiper- é muito comum nas favelas brasileiras, e que gueto” pós-industrial, e a banlieue francesa geralmente se agrava pelas diferenças sociais não tem nada em comun com o velho Red entre diferentes ondas colonizadoras que atra- Belt onde as pessoas sentiam orgulho em sua identidade como membro de uma classe trabalhadora organizada. No caso brasileiro, ainda precisa pensar em novos projetos políticos em vessam distintas vizinhanças e comunidades. Na opinião de Wacquant, esse subproletariado precarizado, interiormente fragmentado e 194 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas processo de desenvolvimento, e que são dificil- com intervenções de expertos locais e interna- mente descartáveis como insignificantes pelo cionais (Mosse, 2005). Conceitos como os de impacto que tiveram no avanço da democra- “marginalidade avançada” também obscure- cia, diminuindo graus de discriminação racial cem o fato de que os pobres têm vidas que e exigindo direitos para os pobres em cidades transcendem sua condição de pobreza, ao me- capitalistas. Eles têm continuamente emergin- nos por parte do tempo. E nossa pesquisa no do em diversas favelas. Esses projetos têm sido Bairro da Paz, em um bairro popular que conta estimulados tanto por intervenções de diferen- com população aproximada de 60.000 mora- tes ONGs quanto pelos espaços produzidos por dores na terceira maior capital brasileira, na novas estratégias de governabilidade neolibe- cidade de Salvador, no estado da Bahia (me- ral (Gledhill, 2005), e, nos atrevemos a dizer, trópole com mais de três milhões de pessoas), por políticas públicas desejáveis. A principal sugere que a experiência subjetiva de ser e razão de todo esse pessimismo pareceria de- viver na pobreza não é idêntica em cada um ver-se a que as favelas são vistas como lugares dos lugares e favelas desta e nem de outras ci- onde a esperança morre e projetos de constru- dades. Ao não considerar por que isso é assim, ção do lugar não são avaliados como possíveis, corre-se o risco de perder variáveis cruciais. Em devido aos altos graus de estigmatização que particular, e como resposta ao vazio criado pe- sofrem. Contudo, defendemos que modos de la maioria das análises sobre “nova pobreza”, “cultura popular” existentes, ressignificados, nós também precisamos compreender melhor às vezes novos e até inspirados transnacional- como diferenças na conformação social de dis- mente, podem vir a animar novas formas de tintos lugares e a organização interna deles, organização e projetos políticos entre comu- ao lado de diferentes histórias de formação nidades pobres e urbanas. Também sustenta- desses assentamentos populares, afetam a sua mos que atividades econômicas informais não capacidade de alcançar um grau de coerência ilegais podem trazer melhores recompensas e unidade interna que lhes permita entrar em econômicas, maior segurança e maior senso de negociações sobre projetos para o desenvol- dignidade que muitos dos mal pagos empregos vimento local com ONGs, organizações e re- regulares, e que dados sobre a vida associati- presentantes do poder público e políticos com va contemporânea de muitas pesquisas vêm relativa autonomia. apontando que a sociabilidade nem sempre O contexto original em que se iniciou es- colapsa na extensão que as mais pessimistas ta pesquisa foi o do início da implantação de visões da “nova pobreza” pressupõem. programas sociais do governo de Lula (Fome Uma coisa é negar o romantismo do Zero e subprogramas como bolsa família, au- agenciamento popular, e outra bem diferente é xílio gás, bolsa escola, etc.) e pela necessidade negá-la, em sua totalidade. Como etnografias de uma avaliação do impacto qualitativo des- das práticas de desenvolvimento vêm mostran- ses programas nessa comunidade mediante a do, projetos de desenvolvimento social formam aplicação de metodologias de teor etnográfico. e são formados pelas respostas socialmente Desde 2005, e como fruto da parceria com o diferenciadas de grupos alvos que se engajam CEM-Cebrap, 4 nossa equipe vem realizando Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 195 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill pesquisas etnográficas no Bairro da Paz entre construído com base num novo discurso sobre famílias, distintas de suas redes sociais e outras o direito de reconhecimento dos “quilombos formas de associativismo religioso e secular. urbanos” (Hita, no prelo). Mas desde 2007 também passamos a oferecer Tanto esta pesquisa quanto os atores assessoria técnica e logística, na parceria que da comunidade em si, estão conscientes das se iniciou com um novo e representativo cor- limitações desse tipo de “participação co- po comunitário, que se estabeleceu nesse ano munitária” e das premissas neoliberalizantes no Bairro: o Fórum Permanente de Entidades de muitas das atuais ofertas e intervenções 5 Sociais do Bairro da Paz. O surgimento desse governamentais, com especial foco e difusão Fórum reflete um desejo popular de articular de parcerias público-privadas. Entretanto, o distintos fragmentos da organização existente principal propósito desse Fórum é negociar e nessa comunidade para, unidos novamente, re-editar parte da história do bairro, e de seu lograr alcançar maiores vantagens nas nego- mito fundador, como o de lugar de resistência, ciações de suas demandas junto ao poder pú- pelo que se tem produzido um novo e comba- blico para o desenvolvimento de infraestrutura tivo tipo de cultura política, que continua a local. Ainda que o Conselho de Moradores do desconfiar dos interesses de concessões desde Bairro seja uma das mais poderosas facções cima e não abandona sua capacidade de conti- nesse Fórum pelo fluxo de recursos públicos e nuar avaliando e formulando novas demandas privados que mediatiza para a comunidade, há desde baixo (ibid.). As posturas adotadas por outras lideranças e grupos que vêm encontran- diversos ativistas dessa comunidade sugerem do espaço de atuação nesse novo corpo, como que eles têm consciência de como políticos líderes vinculados a ONGs católicas que de- operam e não podem ser reduzidos a simples senvolvem projetos no bairro e têm investido reprodução de modos clientelísticos de ve- na infraestrutura interna, mas também mem- lhas formas políticas, embora o Fórum tenha bros de grupos culturais e jovens com projetos logrado integrar um significativo número de orientados para a cultura afro-brasileira tais homens e mulheres idosos, que se sentem per- como os de música e dança. Estes últimos vêm feitamente cômodos com esse modelo de rela- apresentando firmes críticas a modos tradicio- ção com o poder público acima mencionado. nais de fazer política e modos de administrar O que, ao mesmo tempo, é fruto de várias de assuntos da comunidade do seu atual Conse- suas ambiguidades. Jovens negros manifestam lho de Moradores, e têm distintos objetivos e uma consciência aguda de sua “identidade ne- interesses que vão desde promover desenvol- gra” e simpatizam com políticas e o estilo ra- vimento de Ações Afirmativas e culturais até, dical de movimentos negros norte-americanos, em certos casos, políticas baseadas na ideia mas se sentem atraídos também por modelos de que descendentes de escravos têm direito de consumo de construir seus selfs difundidos à terra e um lugar na cidade como recompensa por uma sociedade de mercado neoliberal, por injustiças passadas. Desde esta perspecti- com aspirações de mobilidade social a alcan- va e discurso, o Bairro da Paz não é apenas um çar mediante cursos oferecidos por parcerias lugar, mas um lugar particular que precisa ser público-privadas. Ao mesmo tempo que eles 196 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas manifestam críticas agudas ao capitalismo glo- refletia sua resistência militar antes de começa- balizado e à corrupção difundida e à falta de rem a receber limitadas promessas e garantias uma ética de serviço público dentro do sistema de investimentos de infraestrutura do estado de partidos políticos brasileiros, reproduzem e políticos da cidade, a partir de 1987, depois estilo de vidas que reproduzem o sistema que da queda da ditadura militar e de que forças criticam. com inclinação esquerdista assumissem o governo. Mesmo quando a mudança de nome para Bairro da Paz significou uma boa vontade Configurando um lugar e sua gente de colaborar com as autoridades no controle de crescimento do lugar, o mito fundacional da comunidade, fruto da luta inicial continua sendo reeditado e é central para a nova cultura Até espaços segregados e periféricos têm his- política que está se consolidando no Bairro da tórias que os podem chegar a transformar em Paz (Hita, no prelo). Além do mais, a mudan- lugares. Uma importante, mas não única, iro- ça do contexto político significou apenas uma nia na história do Bairro da Paz é a de que de breve interrupção da dominância de políticos uma invasão popular do que foi inicialmente bahianos até um passado muito recente: o da um espaço periférico na cidade se transformou máquina política de Antônio Carlos Magalhães em um espaço rodeado de riqueza. (doravante ACM), que subiu como prefeito de Após terem invadido terras registradas Salvador em 1967 como recompensa por seu no nome da família Visco, nos limites urbanos apoio à “revolução” militar de 1964. Ele foi de- de onde hoje se situa o Bairro da Paz, os então pois governador do estado, cargo ocupado por “invasores” (ocupantes ilegais) dessa área, três mandatos, alternando-os com posições no clamavam seus “direitos à cidade” nos anos governo federal. 80, desafiando as tentativas governamentais A administração de ACM esteve de- de expulsão à força e deslocamento para outra terminada a evitar que favelas destruíssem o periferia da cidade com maior concentração de desenvolvimento de novos centros para a ad- pobreza. Nesse processo de resistência foram ministração de negócios e do poder público apoiados por políticos de esquerda, o Movi- nas zonas marcadas por área residencial pa- mento de Defesa dos Favelados e organizações ra população de alto valor aquisitivo, que se católicas: entre as mais importantes delas na- desenvolveu logo depois da instalação dessa quele momento estava o CEAS (Centro de Es- “invasão” nas proximidades da Orla Atlânti- tudos de Ação Social), uma ONG jesuíta com ca e sob uma das margens da Av. Paralela. A inspiração na teologia da liberação criada em Paralela é o principal acesso da cidade para o 1967 para promover educação e organização aeroporto, às margens da qual essa invasão se popular ao longo da região nordestina.6 No iní- encontra, a poucos quilômetros do novo centro cio, e como referência à Guerra Falklands entre administrativo que ACM inaugurou no início Argentina e Inglaterra, essa invasão era conhe- dos anos 1980. Desde o começo, ACM dedicou cida pelo nome de “Malvinas”. Esse apelido seus esforços para reinventar Salvador como Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 197 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill um moderno polo de turismo internacional, capital intensivo de industrialização, nos quais serviços e negócios. O fato de que esta elite os centros da acumulação do capital perma- economicamente modernizadora, porém so- neceram fora da Bahia. O desenvolvimento de cialmente conservadora que ele representava, Salvador como um destino de turismo global via nas visíveis favelas de áreas centrais um impulsou novos empregos no setor terciário dos maiores empecilhos para esse projeto fica e teve outro efeito cultural e socialmente sig- também perceptível quando ele ainda estava nificativo. Mas não resolveu os problemas do no cargo de prefeito nos anos 60, e falava da mercado de trabalho se contraindo ante uma necessidade de expulsar os pobres, pretos e população urbana que continuava a crescer pessoas de classe trabalhadora do decaden- devido à migração rural a áreas urbanas e ao te centro histórico de Salvador, o Pelourinho, crescimento natural (Guimarães, Agier e Cas- para “devolvê-lo à cidade” requalificado e tro, 1995; Gordilho, 2000; Almeida, 2006). gentrificado. Porém este último projeto de Oportunidades de emprego no Bairro da modernização se atrasou, até 1990, quando o Paz continuam sendo muito precárias, mas es- capital requerido foi finalmente viabilizado e se assentamento tem certas vantagens quando quando o Pelourinho foi declarado um lugar de comparado com outros, pela sua maior pro- patrimônio mundial pela Unesco (Dantas Neto, ximidade de residências de alto poder aquisi- 2006, p. 306). tivo, oficinas do governo e uma universidade Uma característica significativa da inva- privada, que oferecem trabalho na construção são das Malvinas é que sua remoção do local civil e procuram prestadores de serviços menos contava com o apoio de ambientalistas que se qualificados. Isso não impede a persistência da opunham a que este e novos assentamentos imagem de favela associada pela mídia com o humanos nessa zona de mata atlântica fossem crescimento da violência armada e tráfico de permitidos, para proteger e transformar em re- drogas e de ser classificada como uma das tre- serva natural a floresta que ali havia. De modo ze vizinhanças mais perigosas na região metro- indireto, a permanência dos moradores dessa politana pela polícia militar. O acordo político comunidade no lugar terminaram por apoiar conquistado em 1987 (no suscinto e primeiro os interesses do capital imobiliário que anos governo esquerdista baiano no comando de depois conseguiram instalar condomínios hori- Waldir Pires) dissolveu a ameaça de serem zontais de luxo nos arredores dessa comunida- expulsos da Paralela, mas ofereceu garantia de. O contexto era tal que os mais pobres não da posse da construção das casas apenas aos tinham como conseguir casas através do mer- moradores da área central em uma determi- cado habitacional e programas habitacionais nada poligonal, onde a situação dos títulos de limitados foram destinados a famílias traba- posse da terra continuam até hoje obscuros. lhadoras com rendas mais elevadas (Gordilho, Entretanto, e desde então, têm ocorrido lentas 2000; Valença, 2007). Os salários eram baixos melhorias, tanto no acesso a serviços quanto e o emprego precário, em um contexto de pro- ao desenvolvimento de infraestrutura interna. cesso de modernização econômica baseada ini- A relativa estabilidade dessa situação reflete cialmente no petróleo, petroquímica e limitado as mudanças ocorridas nos critérios adotados 198 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas para a política habitacional para os mais po- por conta própria”. A maioria (61%) eram bres, que ao invés de expulsão se passa a trabalhadores manuais sem habilidades, 13% apostar na requalificação desses assentamen- trabalhadores manuais habilidosos e 22,5% tos urbanos. E passou-se a estimular a “par- trabalhadores não manuais na categoria deno- ticipação popular” no planejamento urbano minada “menor habilidade”. 17% trabalhavam que reconhece a capacidade dos mais pobres em serviço doméstico e 11,5% tinham mais de de exercerem seus direitos e responsabilidades um trabalho, que é um padrão muito comum como cidadãos. A última mudança é a de que em populações de baixa renda. Ainda que mobilizações populares como as do Bairro da essa seja uma comunidade de trabalhadores Paz têm feito uma importante contribuição à pobres, 34% daqueles que estavam desempre- pressão que vem de baixo para cima (Teixeira, gados durante a entrevista tinham trabalhado 2001; Caldeira e Holston, 2004). entre um período de um mês ou um ano antes, e 42,5% conseguiram trabalho na maior parte dos cinco anos anteriores. Os ainda desempre- Repensando a “nova marginalidade” e a segregação espacial gados podem realizar alguns trabalhos casuais, tendo parceiros ou recebendo ajuda financeira de parentes que não trabalham na comunidade, apesar de que as rendas das famílias e a renda per capita estejam inevitavelmente rela- No que concerne ao perfil de inserção no em- cionadas às variações na estrutura das casas, prego dessa comunidade e às condições de como a frequência de trabalhadores e de con- emprego e desemprego de seus moradores, sumidores; em famílias extensas, nucleares ou algumas imagens serão de grande ajuda para incompletas, etc. Mesmo quando, no Bairro da fornecer um aproximado perfil socioeconômi- Paz, as principais fontes de obtenção e acesso co da comunidade hoje. Dos chefes de casas a um emprego sejam resultado das recomen- entrevistados por survey realizado por outro dações de amigos dos desempregados, alguns grupo de pesquisa do Cebrap no Bairro da Paz, deles tentaram buscar trabalho apresentando- em agosto de 2006, 30% trabalhavam dentro se diretamente aos empregadores potenciais. do bairro, seguidos dos que se dirigem para A média total da renda das casas com pessoas regiões das proximidades, em residências das empregadas era equivalente a 1,7 salários mí- classes médias em Itapuã e praias da Orla Ma- nimo, enquanto a das casas desempregadas rítima, sendo esta segunda zona um lugar mais era de 1,1 salário mínimo. comum de trabalho (com valores de 10% pa- A maior parte dos indicadores utiliza- ra cada uma das duas últimas zonas citadas). dos no survey do CEM-Cebrap sugere um me- Apenas 36% se declaram ser trabalhadores nor nível de bem-estar econômico no Bairro assalariados (e destes, somente 62% apresen- da Paz do que na Cidade Tiradentes, o bairro tam condições formais de emprego), compara- periférico em São Paulo no qual se aplicou o do com uma proporção muito maior, 46,5%, mesmo instrumento na mesma época do ano.7 que se autodescreviam como “trabalhadores Em termos de renda, os dados equivalentes Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 199 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill no caso de Cidade Tiradentes foram 3,3 e 2,5 têm três a quatro quartos, e 39% têm cinco ou salários mínimos, respectivamente. Diferenças mais, mas quase 90% utilizam apenas um ou de renda refletiram diferenças entre as duas dois quartos como dormitórios. Os moradores comunidades nas qualificações escolares dos usam os prédios que eles mesmos constroem moradores e nas suas respectivas estruturas para uma grande variedade de formas de pro- ocupacionais, mas também é importante notar dução de pequena escala e para as atividade que um número significativamente maior das comerciais, e quase metade dos entrevistados famílias do Bairro da Paz foram abrangidas descreveu-se como "trabalhador por conta por programas sociais do governo, 45% contra própria" (comparado com 36% que eram tra- 12,5%, respectivamente. Dados sobre renda balhadores assalariados). Trinta por cento de também precisam ser matizados por conside- todos os residentes entrevistados também rações adicionais sobre a atividade econômica trabalhou no interior do bairro. Isso sublinha a “informal” que oferecemos na sequência. Além importância dos investimentos que as próprias disso, as taxas de participação em movimentos pessoas pobres fazem em assegurar a sua sub- sociais foram significativamente mais elevadas sistência. Para muitos, trabalho na denomina- no Bairro da Paz que na Cidade Tiradentes, da “economia informal” pode ser uma opção resultado que põe em questão a relação, com preferível por uma série de razões, variando frequência postulada pelas análises da “nova de alguma possibilidade de melhor salário, um pobreza”, entre maiores graus de precarieda- senso de independência e por evitar relações de econômica e redução da capacidade para com empregos que são identificados como auto-organização política. degradantes socialmente. E nossa pesquisa À primeira vista, a pobreza relativa do mostra que, assim como em muitos outros Bairro da Paz aparece ainda como autoevi- contextos, níveis de prosperidade econômica e dente, mas é preciso ponderar que estatísticas social das casas são influenciados por um pa- desse tipo não contam a história completa de rentesco mais amplo e redes sociais nas quais prosperidade e precariedade social de distin- casas participam individualmente. A qualidade tos locais. O perfil que acabamos de desenhar de vida no Bairro da Paz foi frequentemente claramente mostra um alto grau de “informa- comparada favoravelmente por seus morado- lização” e diversos modos de ganhar a vida res também associada a outras razões, ao ser trabalhando por “conta própria”. Ainda assim, comparada ao de outras vizinhanças de baixa nós deveriamos resistir à tentação de conside- renda de Salvador, como a da baixa densidade rar modos “informais” de ganhar a vida menos de ocupação (o que pode influenciar variáveis satisfatórios, dadas as oportunidades econô- sociais como a incidência e níveis de conflito micas que podem abrir, do que maneiras “for- entre vizinhos). A visão externa desse lugar é mais” de emprego em setores caracterizados afetada negativamente pelo fato que a socie- por baixos salários e onde os benefícios podem dade mais ampla, em geral, o identifica com ser igualmente limitados. o crescimento da violência armada, associa- Por exemplo, o survey do CEM-Cebrap da com o tráfico de drogas: apesar de que o mostrou que 43% das casas no Bairro da Paz Bairro da Paz está longe de ser a favela mais 200 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas perigosa de Salvador, onde houve mortes per- neopentecostais. Grupos batistas têm sido petradas por grupos armados de fora do bairro liderados por um pastor bastante ativo, cujo e residentes reclamam constantemente da in- principal papel tem se refletido na agenda de seguridade física. autoconstrução da sua igreja e nas suas cone- Por outro lado, conflitos internos de ou- xões com a administração da atual prefeitura, tra ordem sempre existiram no seu interior, liderada por um prefeito que também é evan- alguns deles associados a crises de lideranças gélico, e que derrotou nas eleições de 2005 a que refletiram os impactos de políticas clien- máquina de ACM e ganhou o segundo turno telísticas. Projetos de diversas ONGs e diferen- em 2008. Também devido à importância que ças econômicas internas que existem em toda todos esses conflitos têm para os atores e li- e qualquer favela são aqui centrais para seus deranças do bairro é que o esforço atual de moradores, ainda que possa ser esse lugar transcendê-los parcialmente emergiu. O Fórum percebido de um modo relativamente diferen- Permanente está aumentado a “voz política” ciado por outros dos atores mais outsiders, e dessa comunidade, em particular ante a atual por aqueles atravessados por marcadores co- administração da cidade e do estado, que des- mo as religiões e pelo crescimento de igrejas de 2007 está sob o comando de um governa- evangélicas, das quais encontramos mais de dor do PT de Lula. 40 no Bairro da Paz. Outro tipo de conflito que Isso nos traz de volta ao papel de orga- interessa aqui destacar foi o do colapso da nizações jovens, cujo desenvolvimento é re- anterior associação de moradores, anos atrás, sultante de uma ampla reflexão e da extensa com lideranças acusadas de comportamento classificação de projetos sociais e programas corrupto e não democrático, o qual abriu es- emergentes que agora produzem um novo im- paço para a emergência do atual Conselho de pacto na vida de pessoas pobres sob os mais Moradores, que apesar de ser mais transpa- variados tipos: dos mais tradicionais modos rente, também recebe críticas. ONGs católicas de caridade a uma ampla gama de oferta de exercem um papel proeminente na vida da co- serviços agenciados por distintas ONGs ou munidade, mas as suas diferenciadas posições projetos. O Bairro da Paz possui muitos gru- vão desde uma postura assistencialista mais pos de capoeira, reggae, hip-hop, rock, pago- conservadora até uma mais radical, que ins- de e forró e grupos dedicados a vários estilos piram projetos baseados em perspectivas da de dança, incluindo a afro-brasileira maculelê teologia da liberação. 8 e grupos de teatro. Boa parte dessas ativida- Os grupos católicos podem coexistir de des estão ligadas aos projetos de patrocínios modo relativamente tranquilo com grupos as- de “valorização cultural”, como o Jovem em sociados aos 15 terreiros de candomblé ins- Ação, que traz a dança juntamente com a ca- talados, um dos quais tem uma creche pouco poeira, teatro, hip-hop e dança afro autoex- financiada. Mas os membros do candomblé ploratória. A valorização da cultura também têm se queixado das agressões recebidas dos tem sido ativada graças aos esforços de mui- membros de igrejas evangélicas como a Uni- tas ONGs atuando no bairro para promover versal Reino de Deus, a mais poderosa das autoestima e capacidade de cidadania entre Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 201 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill pessoas jovens e tem produzido a emergência federais e municipais assim como de ONGs, os de jovens como novos atores políticos nessas jovens têm se tornado conscientes de que eles comunidades carentes. têm mais voz e uma influência potencial no O Jovem em Ação é uma rede que desenvolvimento das suas comunidades atra- articula distintos grupos culturais sob a guia vés do produto de seus trabalho, paixões e es- do CEAS e é um dos mais críticos contra o forços para os quais agora conseguem maio- Conselho de Moradores, apesar de que alguns res apoios por parte do estado e município. dos jovens em dança afro ainda participem do O desenvolvimento do ativismo de gru- Conselho. Entretanto, é o Fórum Permanen- pos jovens que promovem aspectos da cultura te (como espaço de diálogo e de decisões de afro-brasileira e que agora recebem um posi- distintas entidades) o corpo que parece estar tivo reconhecimento público tem ajudado de proporcionando uma possibilidade mais aber- uma maneira importante nas lutas dos mora- ta e tentadora para a maioria desses grupos dores para combater formas de violência sim- de jovens e outras entidades de participar e bolicamente prevalecentes na sociedade mais poder incidir nas decisões importantes sobre ampla, quer dizer, uma violência simbólica questões do interesse geral e da comunida- que explica a persistente desigualdade social de. Apesar de que a dança afro-brasileira se em termos de modelos racializados sobre as desenvolveu a partir do grupo de capoeira do incapacidades “naturais” das pessoas pobres, mestre Paulo dos Anjos, internacionalmente assim “enegrecendo” as posições subalternas famoso, e residente do Bairro da Paz, poucos na estrutura de classes. Esse é um importan- desfrutam de patrocínios e sua sobrevivência te senso no qual podemos falar de mudanças como grupos culturais geralmente depende de significados do ser “periférico” relativo ao da ajuda mútua (como o dividir o uso de ins- do estabelecido centro sociocultural e políti- trumentos, no caso de bandas). Isso também co de uma elite branca que domina a socie- pode tê-los encorajado a se juntarem e dis- dade baiana. Essas mudanças parecem ser cutir os problemas comuns e interesses fora um dos fatores que oferecem uma revivida da instituição de representação comunitária “esperança” e orientação em direção a um estabelecida, apesar de que a experiência do futuro melhor nos projetos políticos das pes- Fórum tem mostrado que divisões ainda exis- soas que vivem em situação de precariedade tem, tanto entre eles como em grupos dife- socioeconômica. rentes, enquanto alguns outros membros sim- Por outro lado, e nos dirigindo a um plesmente querem performar e ganhar um su- olhar mais macro, Salvador também vem se porte de vida. Todavia, em um ambiente onde tornando mais “policêntrica” com o tempo. a cultura afro-brasileira tem sido fortemente O Bairro da Paz não é mais, como no início, associada com a promoção de igualdade ra- uma periferia espacial na nova ordem urbana cial, e mais do que nunca há uma expansão referida acima. Localizado na principal arté- de programas focados no “empoderamento ria ligando o aeroporto aos centros adminis- institucional” de jovens negros, com fundos trativos, comerciais e turísticos da cidade, os 202 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas valores reais do lote de terra nessa área de vizinhança cresceram substancialmente desde que a invasão e a favela agora se encontra ro- Colocando o Bairro da Paz num contexto mais amplo deada não apenas por condomínios e a Faculdade de Tecnologia e Ciências, mas também Para mostrar as implicações desta conclusão, uma ampla classificação de “novos projetos é importante terminar com uma rápida com- de economia” que atualmente são estendidos paração do Bairro da Paz com outras favelas. com a construção do parque tecnológico em Como temos visto, favelas são encontradas processo de implantação numa área próxima em diferentes locais de Salvador, distribuídas a essa comunidade. Relações entre ricos e po- ao longo de três grandes vetores de expansão bres têm tido lugar e têm sido influenciadas espacial que refletem um padrão particular da pelos interesses do mercado de trabalho e transformação econômica e social produzida de investimentos privados de projetos sociais pela mudança histórica de Salvador e sua re- nesse bairro. Os vizinhos mais ricos alimen- gião metropolitana na segunda metade do sé- tam certo medo ao crime que possa vir dessa culo XX (Moreira de Carvalho e Corso Pereira, vizinhança e o fantasma da ainda possível ex- 2006). pulsão do local paira no imaginário do Bairro Espaços diferentes ofereceram distintas da Paz, que poderia ser resultado agora de vantagens e desvantagens, não apenas em mais sutis estratégias de mercado. No com- termos de oportunidades de trabalho, longas bate a esse fantasma, a tradição militante do distâncias ao trabalho (que mudaram em re- Bairro da Paz continua sendo central para o lação a reconstruções econômicas sucessi- fortalecimento de sua autoimagem como uma vas), mas também em termos de densidade comunidade de luta. A ligação de alguns de e natureza das casas. O ambiente construído seus principais atores políticos com ONGs e pelos pobres era um produto de suas práti- projetos filantrópicos críticos os mantém em cas sociais, particularmente em termos de uma postura relativamente séptica e cautelo- dinâmicas de estruturas de famílias extensas, sa, de considerável aversão a uma total coop- frequentemente nesse contexto baiano muitas tação pelos interesses estatais. A variedade vezes construídas ao redor do foco de mulhe- de formas de ligação e a pluralidade de ato- res/mães/avós (onde membros masculinos res e forças sociais envolvidas no seu interior circulam mais que os femininos), e também convidam-nos a realizar uma reflexão mais como resultado de uma série de práticas e matizada sobre o que o conceito de “pobreza possibilidades familiares que os tipos de esco- urbana” pode obscurecer e um olhar etnográ- lhas que pessoas fazem e que refletem sobre fico orientado a processos e relações sociais é que tipo de vida diária se pode ou deseja ter, capaz de salientar, quando rompe com a ideia pautado por modos de relacionamento que de comunidades fechadas pela segregação atravessam distintos tipos de associações reli- espacial. giosas, seculares ou de outros tipos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 203 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill Apesar de que há uma própria geografia A Boca do Rio fica numa praia que era muito social interna e existem diferenças entre situa- mais aproveitada pela comunidade artística e ções sociais de moradores de áreas distintas progressista de Salvador na década de 1970 e nesse bairro (que se relacionam aos padrões recentemente tem sofrido novos desenvolvi- internos de conflitos), e como resultado dos mentos a favor da ocupação de pessoas mais acordos alcançados entre lideranças da comu- ricas como, por exemplo, a construção de uma nidade e autoridades públicas que prometeram importante área de recreação e shoppings centers e de um impactante centro de convenções. Mãe Edileusa não apenas permaneceu na sua casa original em Boca do Rio, onde duas filhas suas e três netos fizeram parte de uma unidade corresidencial, mas também se aproveitou da oportunidade oferecida pelos esforços iniciados pelo governo da cidade para desalojar os invasores das “Malvinas” e assim logrou ter direito a uma terceira “casa”, em 1983, quando a prefeitura deslocou boa parte dos invasores das Malvinas para casas públicas construídas em Fazenda Coutos, no subúrbio ferroviário. Criada por seus avós, cujas respectivas mortes a forçaram a trabalhar como empregada doméstica aos onze anos, Mãe Edileusa não só arranjou um terreiro, mas também completou o treinamento de assistente de enfermagem deixando a seus descendentes três propriedades. Aceitando todas as oportunidades nos espaços urbanos que ela pôde operar, Mãe Edileusa, e com o modo de operar de sua extensa e coesa rede familiar, logrou aumentar os prospectos para a próxima geração. O fato de que a reprodução da família tome lugar nesse ambiente urbano extensivo e diversificado também significa que parentes permanecem juntos, podendo se separar residencialmente ou não na próxima geração e que podem voltar a se juntar a depender das necessidades e dos recursos que podem ser mobilizados a cada nova conjuntura, isto é, dependendo do tipo de relações internas que se desenvolvem entre pais, investimento público em retorno da regulação do futuro crescimento da localidade, o Bairro da Paz é hoje muito menos denso do que outras favelas dessa mesma cidade. Dado o fato de que indivíduos podem se mover entre espaços diferentes de maneiras que refletem a natureza de relações de propriedades assim como sistemas de parentesco, afinidade e modelos alternativos para grupos residenciais, o que emerge dessa larga figura comparativa não é uma situação urbana periférica homogênea, mas uma série de outros fatores distintos de ser pobre, construindo famílias e ganhando sobrevivência em um complexo emaranhado de situações que são em parte determinadas pelas tramas de relações entre os moradores da favela e as áreas que estão ao seu redor. Um exemplo etnográfico que ajuda a ilustrar as amplas complexidades que emergem quando focamos nosso estudo em estratégias de famílias individuais para ocupar o espaço urbano e seus significados sociais é o de Mãe Edileuza. Uma mãe de santo que administrou a creche do Bairro da Paz associada a um terreiro de candomblé, que ela fundou bem antes de seu início de história nesta invasão e numa comum estratégia de buscar separar o terreiro fisicamente do espaço de moradia da sua família de sangue. A casa original de Mãe Edileusa estava localizada em outra invasão, na parte ocupada por classes mais baixas na vizinhança da Boca do Rio, na Orla Atlântica. 204 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas filhos, irmãos, emparentados e vizinhanças, o Subúrbio Ferroviário, está focada na oposi- especialmente no contexto social e cultural dos ção a essas construções e no seu intento de pobres afro-brasileiros de Salvador, e no de ca- projetar uma imagem pública mais positiva do sas matrifocais, onde o vínculo mães e filhos e bairro, apesar de que necessariamente não se- da agregação em famílias extensas é tão cen- ja sempre uma imagem pura, “conformista” ou tral (Hita, 2004). principal em condições contemporâneas.9 Mas, Existem processos de segregação social analiticamente e em muitos outros sentidos, parcial na cidade, mas é importante não per- substantivamente, segregação social como der de vista as implicações que a proximidade conceito talvez obscureça mais do que escla- física disseminada entre residências de ricos e reça sobre dinâmicas sociais em andamento de pobres pode significar em distintas situações. vida urbana, dada a importância de mobilidade Por exemplo, uma das casas de candomblé entre espaços urbanos de membros de casas do Bairro da Paz é patrocinada por ricos e li- pobres e a maneira que tipos específicos de deranças famosas e pertence a um pequeno interações entre residentes de favelas e outros círculo de “terreiros de elite” que são objeto setores sociais jogam um papel importante em principal das políticas oficiais de patrocínio da modelar os caminhos no qual muitas dessas cultura e herança afro-brasileira (Parés, 2006). comunidades pobres se desenvolvem (Hita e Mesmo que esse terreiro esteja “em”, mas não Duccini, 2008b). seja “do” Bairro da Paz, porque é assim como Nossa análise também busca apontar os seus moradores o percebem. Diferente des- para a importância de cada história política e se, os outros templos de candomblé do bairro contexto particular de modelar o desenvolvi- possuem uma natureza bem distinta (em ter- mento (e capacidade de agir coletivamente) de mos tanto de suas práticas religiosas quanto favelas. Advogamos por um foco mais neutrali- de recursos financeiros) e eles exercem um zado sociologicamente na maneira que as pes- papel importante na geopolítica interna da soas vivem suas vidas e se relacionam com o comunidade. outro quando constroem espaços e lugares nos Também há uma quantidade significa- quais habitam a cidade. Uma visão mais clássi- tiva de trabalho simbólico ainda sendo feito ca das metas do trabalho etnográfico, que pre- por outros setores da sociedade soteropolita- tende fazer um estudo da vida social como um na – incluindo aguns que se encontram longe todo, em todas as suas dimensões, pode aju- de serem afluentes, motivados pelo temor de dar-nos melhor e com mais frequência a enten- serem vítimas do crime, pela sua própria in- der como situações periféricas urbanas diferem seguridade social e por um desejo de afastar- em maneiras que são importantes, tanto para se da “marginalidade” – que busca manter a as pessoas que nelas vivem quanto para as po- estigmatização desses lugares onde moram líticas públicas de desenvolvimento que podem os pobres e que procura desenhar suas fron- oferecer melhores resultados a essas pessoas teiras, segregar e periferalizar. Boa parte das também. Se nos permitimos o enquadramento ações políticas empreendidas pela comunidade de nossa análise pelas categorias da pobreza e no Bairro da Paz, e também em zonas como a marginalidade sem explorar as possibilidades Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 205 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill desta visão mais holística das vidas, das prá- podem sempre emergir e ser cultivadas com o ticas e das identidades dos atores sociais, apoio de contribuições acadêmicas e práticas nós nunca iremos entender por que algumas de fora das comunidades pobres, nós quere- pessoas parecem mais dispostas a comprar mos precisar o tipo de holismo etnográfico e pelo menos em alguns aspectos o “pacote” analítico que pode detectar as bases de novas do desenvolvimento social e relações de po- formas de posturas e ações políticas, novas der público construtivos para obter maiores bases de esperança, na vida do dia-a-dia de vantagens, enquanto outros não. Isso parece comunidades e nos aspectos aparentemente particularmente importante no caso como o apolíticos do fluxo de mudanças sociais nacio- do Bairro da Paz, no qual as relações constru- nais e mundiais. Mesmo classificando pessoas tivas permanecem distantes do sentido popu- como pobres como um ponto de partida (co- lar subservente e não crítico. Em um sentido, mo se isso fosse um tipo de posição subjetiva claro está, não há atores de unidades coleti- transcedente) corremos o risco de esquecer- vas aqui (mesmo que haja organizações para mos a necessidade de descobrir, etnografica- “falar” pela comunidade). Entender o quão mente, o que são os sentidos que na verdade frágil balanças de forças contra-hegemônicas animam suas vidas. Maria Gabriela Hita Socióloga. Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. [email protected] John E. Gledhill Antropólogo. Manchester University. Manchester, Lancashire, Reino Unido. [email protected] Notas (*) Partes do argumento em versão inglesa foram apresentadas no seminário “Differentiating Development”, organizado por Soumhya Venkatesan e Thomas Yarrow e financiado pelo Wenner-Gren Founda on for Anthropological Research, em Buxton, Inglaterra, em setembro de 2008. (1) Ver em Hita e Duccini (2008b) uma análise mais extensa das trajetórias, circuitos e redes que disntas famílias e grupos religiosos do Bairro da Paz desenvolvem, apontando o modo como eles vão construído um novo lugar da cidade e iden dade: a do Bairro da Paz. (2) Ver análise mais detalhada do impacto desses programas em Gledhill e Hita, 2009. 206 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 Antropologia na análise de situações periféricas urbanas (3) Kowarick (2003) compara e contrasta as dis ntas maneiras de diagnos car as questões de marginalidade econonômica e exclusão do “direito de ter direitos” nos Estados Unidos, França e Brasil, mostrando que resultam das dis ntas perspec vas sobre as causas de desigualdades sociais e o papel do Estado que caracterizam as três nações. Produto de suas histórias específicas, essas ideias têm fortes efeitos tanto sobre os debates acadêmicos quanto sobre as polí cas públicas e controvérsias midiá cas. (4) Nossa pesquisa fez parte de um estudo compara vo que inclui projetos similares no Rio de Janeiro e São Paulo, financiado pelo CEM-Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), pelo que agradecemos ao Dr. Ronaldo Almeida e respec va ins tuição pelas parcerias e apoios recebidos e à Fapesb (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia) pelo financiamento da pesquisa local. (5) O trabalho junto ao Fórum Permanente de En dades e a pesquisa de Salvador veram o apoio financeiro da Fapesb. (6) O CEAS aconselhava os moradores nas estratégias de assegurar-lhes direitos permanentes na fixação do assentamento escolhido nos anos 80 e promovendo o desenvolvimento da primeira forma de organização que representou o bairro no início, uma Associação de Moradores. (7) Agradecemos ao CEM-Cebrap a socialização do relatório de trabalho com análise de dois surveys no documento: Adrian Gurza Lavalle e Bruno K. Kotmasu (março de 2008): “Associa vismo e redes sociais: condições determinantes de acesso a polí cas sociais pela população de baixa renda”. (8) A Santa Casa da Misericórdia (fundada em 1549) e a Fundação Dom Avelar, lideradas por uma missionária italiana, controlam as 6 mais importantes creches do Bairro da Paz e oferecem cursos ar s cos e técnicos para jovens, que realizavam até 2008 em parceria com a Cidade Mãe, ins tuição que teve início em 1993, promovida pela prefeita Lídice da Ma a, com financiamento da Unicef. Pessoas vinculadas à Santa Casa não têm uma visão homogênea, e a postura mais radical do CEAS, mencionada antes como a outra faceta da igreja católica, é uma que con nua a va dentro do bairro, apesar de eles terem se afastado parcialmente do atual Conselho de moradores que subs tuiu a associação anterior. O CEAS passou a se focar mais recentemente no suporte de grupos jovens de afro-brasileiros, cujos líderes têm sido, com frequência, bastante crí cos ao novo Conselho. (9) Mesmo alguns evangélicos que casaram com a teologia de alcançar prosperidade material através de autoavanço e empreedimento, agora estão ligados com polí cas de raça e ação afirma va, ao invés de buscar estratégias de “branqueamento”, por exemplo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 207 Maria Gabriela Hita e John E. Gledhill Referências ALMEIDA, P. H. (2006). “A economia de Salvador e a formação de sua região metropolitana”. In: CARVALHO, I. M. M. de e PEREIRA, G. C. (eds.). Como anda Salvador e sua região metropolitana. Salvador, Editora da UFBA. ALMEIDA, R. de; D’ANDREA, T. e DE LUCCA, D. (2008). Situações periférias: etnografia comparada de pobrezas urbanas. Novos Estudos. São Paulo, Cebrap, n. 82, pp. 109-130. CALDEIRA, T. P. R. (2000). City of walls: crime, segregaƟon and ciƟzenship in São Paulo. Berkeley, University of California Press. CALDEIRA, T. P. R e HOLSTON, J. 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 189-209, jan/jun 2010 209 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole: um estudo de caso da Região Metropolitana de Campinas Urbanism, demography and the ways of living in the metropolis: a case study in the Metropolitan Region of Campinas Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves José Marcos Pinto da Cunha Resumo Inserindo-se na linha de estudos chamada de “heterogeneidade da pobreza urbana”, este trabalho pretende investigar um dos aspectos centrais de tal heterogeneidade, que diz respeito às distintas formas de morar numa metrópole; buscamos, a partir da ótica dos estudos demográficos, somar esforços para melhor entendimento dessa realidade. Parte-se do pressuposto de que a composição e produção do espaço urbano e toda sua heterogeneidade – e desigualdade –, em particular os assentamentos populares, são também, em parte, reflexo das características sociodemográficas específicas da população residente. A investigação tem como objetivo analisar a relação entre as diferentes etapas do ciclo vital familiar (ou curso de vida individual) e condição migratória com as alternativas habitacionais desenvolvidas para alcançar uma moradia. Abstract Palavras-chave: demografia; mobilidade residencial; planejamento urbano; assentamentos urbanos; segregação residencial. Keywords: Demography, residential mobility, urban planning, urban settlements, residential segregation Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Developed within the research line called “heterogeneity of urban poverty”, this study aims to investigate a central aspect of this heterogeneity that concerns different ways of living in a metropolis. Based on the perspective of demographic studies, we hope to contribute to a better understanding of this reality. We start from the assumption that the composition and production of urban space and all its heterogeneity - and inequality -, particularly the popular settlements, are also partly a reflection of socio-demographic characteristics that are specific to the resident population. The research aims to analyze the relationship of the different stages of the family life cycle (or course of individual life) and immigration status with housing alternatives that are developed so that people have a place to live. Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Introdução A escolha do tema deste artigo deve-se à urgente necessidade de pesquisas acerca de questões urbanas tão atuais quanto históricas no Brasil, como a intensa expansão e adensamento de áreas habitacionais precárias, bem como o caráter segregador da alocação socioespacial da população pobre. Ao buscar articular algumas noções da demografia à tradição dos estudos urbanos, este trabalho pretende tratar da influência de alguns aspectos sociodemográficos na conformação espacial de uma região metropolitana emergente, no caso, a Região Metropolitana de Campinas. Mais especificamente, trata-se de identificar possíveis influências de certas características demográficas sobre a incidência de diferentes formas de morar observadas na metrópole, com ênfase especial aos assentamentos precários.1 habitabilidade do domicílio, da infraestrutura de seu entorno e, especialmente a composição demográfica da população residente. Não é difícil imaginar como essa última questão teria impacto sobre os tipos de políticas e/ou ações a serem adotadas de forma a atingir mais eficiência no atendimento às necessidades da população. Tal simplificação é, na maioria das vezes, justificada pela carência de informações confiáveis e detalhadas sobre esses assentamentos (Ferreira et al., 2007, p. 3). O relatório sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) no Brasil aponta claramente a necessidade de melhoria da quantidade e qualidade das informações existentes sobre o tema: [...] as fontes disponíveis, como o Censo Demográfico e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, trazem um número limitado sobre esses quesitos, em especial no que se refere aos assentamentos precários. (ODM, 2007) A ideia da presente linha de investigação foi também motivada por outra constatação: É justamente nesse sentido que esse a carência conceitual da literatura acadêmica artigo também busca contribuir, ao lançar referente aos assentamentos urbanos popu- mão de uma pesquisa domiciliar realizada lares. Essa carência conceitual muitas vezes em 2007, que permite um aprofundamento acaba por considerar como grupos “homogê- na caracterização e, sobretudo, diferenciação neos” populações e tipos de assentamentos dos domicílios em suas diferentes dimensões. que, empiricamente, percebem-se bastante A partir desses dados será possível não ape- heterogêneos. nas incrementar e inovar em algumas destas, Grande parte das categorizações existen- como também incorporar novas dimensões, tes leva em consideração, basicamente, a particular mente, a demográfica, que, como condição fundiária e ambiental desses assen- se mencionou, é por hipótese de trabalho ele- tamentos, pouco atentando para dimensões mento importante para uma mais apurada ca- igualmente importantes, como as condições de tegorização de assentamentos. 212 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Segregação e as diferentes formas de morar Ou seja, a segregação urbana é entendida como manifestação espacial da forma como se organiza a sociedade, caracterizando-se por uma tendência de agrupamento no espaço de Parte-se da hipótese de que existe uma re- grupos sociais homogêneos, “e seria também lação entre o perfil sociodemográfico da o resultado de uma desigualdade socioespacial população e o modo como esta equaciona a expressando-se na organização territorial da questão de moradia no meio urbano. Mais es- cidade” (Pasternak, 2004, p. 92). Obviamente, pecificamente, acredita-se haver influência de tal processo tem como um dos seus principais certos atributos demográficos, como é caso reflexos a heterogeneidade dos assentamen- do ciclo vital familiar e a condição migratória, tos humanos e, portanto, seu entendimento sobre a trajetória e a mobilidade residencial também pode levar à melhor compreensão da das camadas mais empobrecidas, no espaço complexidade das formas de morar existentes intraurbano, especialmente em uma região nas grandes aglomerações urbanas. metropolitana. Sendo assim, pode-se tam- Segundo Lago (2003), o debate acadê- bém dizer que tais características influenciam mico e político no Brasil em torno do tema da o processo de segregação socioespacial. Em- segregação nas grandes cidades tem a ilegali- bora deva-se reconhecer que a trajetória e a dade urbana como um dos parâmetros centrais mobilidade residencial das camadas mais em- na definição das “clivagens socioespaciais” em pobrecidas são condicionadas por questões discussão (p. 2, aspas do autor). estruturais, entre elas o comportamento dos Alguns autores brasileiros apontam, por mercados – particular mente o fundiário – e exemplo, certo descompasso entre as teorias ur- a ação (ou não ação) do Estado, não se de- banísticas internacionais, amplamente aceitas, ve desmerecer o fato de que estas também e a realidade urbana nacional. Maricato (1996) apresentam estreita relação com fenôme- coloca a expressão “ideias fora do lugar”. nos e comportamentos demográficos como Refere-se ao ideário do planejamento urbano são os casos da mobilidade territorial e a importado e fielmente reproduzido no Brasil, nupcialidade. fazendo contraponto ao “lugar fora das ideias”, De fato, como mostram alguns estudos que consiste em grande parte da realidade ur- (Cunha, 1994, Caiado, 2004, Jakob, 2003 e bana – ilegal, oculta, ignorada – apartada de Cunha et al., 2006b), ao responderem a dife- teorias, leis, planos e gestão, e desse mesmo rentes incentivos e/ou constrangimentos, o ideário estrangeiro (Ferreira, 2000, p. 9). perfil demográfico das pessoas ou das famílias Assim, as cidades parecem “partidas” que ocupam o território tende a diferenciar-se em duas porções (Ribeiro, 2000), uma delas segundo o lugar que ocupam, acirrando ainda é a cidade formal, destinada às classes mé- mais o processo de diferenciação sociodemo- dia e alta, que se equipara a outras cidades gráfica que, como se sabe, é a base para da se- do mundo desenvolvido no que concerne aos gregação socioespacial, ao menos nos termos investimentos e à qualidade da infraestrutu- em que aqui consideramos. ra, habitação, serviços. A outra é a chamada Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 213 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha cidade informal, onde pobreza e invisibilidade persistem e avançam (Maricato, 1996). Na verdade, no debate acadêmico sobre o tema, tal diferenciação não parece tão A urbanização no Brasil, e particular- consensual. Por exemplo, como Ribeiro e La- mente em suas áreas metropolitanas, tem as- go (1994), Bógus (1992) e Rolnik et al. (1990) sumido um padrão definido pela segmentação alertam para a crescente dificuldade de con- e diferenciação social, demográfica, econômica siderar a distinção centro-periferia. Ribeiro e ambiental. Tal padrão caracteriza-se também (2000) acredita que com as atuais transforma- pela baixa qualidade de vida urbana e pelo ções socioeconômicas, as cidades podem até crescimento físico elevado, expansão periférica estar mais homogêneas quando examinadas e todas as consequências que isso implica: de- em escala macro; porém, apresentam-se mais ficiências na infraestrutura urbana e nos equi- fraturadas, em escala micro (ibid., p. 47). pamentos sociais, produção de vazios urbanos Por outro lado, Marques e Torres (2005) infraestruturados, retenção especulativa de argumentam que há diversidade em espaços solo, entre outras. homogêneos. Entretanto, a estrutura geral da Como mostram vários autores metrópole continua a ser caracterizada por (Gottdiener, 1993; Kowarick, 1980; Bonduki inúmeros espaços homogêneos social e es- e Rolnik, 1979 e 1982; Ribeiro e Lago, 1999; pacialmente separados entre si, configurando Santos 1996; Maricato, 1996; Ribeiro 1997; uma intensa segregação entre áreas ricas e entre outros), o entendimento desse fenômeno pobres. Ao mesmo tempo, entretanto, espa- e, particularmente, de uma de suas principais ços igualmente pobres por vezes apresentam expressões, a segregação socioespacial, pas- características muito diferentes entre si no que sa por uma compreensão de aspectos como a diz respeito a equipamentos públicos ou carac- formação do preço do solo urbano e a conse- terísticas relativas a diferentes intensidades de quente geração de renda fundiária urbana. mazelas urbanas como desemprego e violência Mais que isso, há também que se ter em (Marques e Torres, 2005). conta um debate mais contemporâneo sobre os Abramo (2003) chama a atenção para o “caminhos” da diferenciação socioespacial de fato de as cidades brasileiras serem bastante nossas metrópoles. De fato, discussões e deba- segmentadas e heterogêneas no que diz res- tes sobre a formação de uma cidade dual (Sas- peito à composição e alocação da população e sen, 1991, Mollenkopf e Castells, 1992), assim dos equipamentos em seu espaço geográfico, como os impactos da reestruturação produtiva sendo a dificuldade ao acesso a terra, e conse- sobre o urbano (Harvey, 2005, Castells, 1999) quentemente à moradia, um dos fatores cau- são questões que devem nortear qualquer es- sadores de tal realidade (p. 2). tudo sobre fenômenos urbanos. Assim, podemos inferir que, apesar do De fato, não só internacionalmente, mas debate existente sobre a dificuldade atual de também no Brasil, tem sido intensa a discussão, se manter a clássica dicotomia centro-perife- por exemplo, se o padrão “centro-periferia” co- ria, dado um presumível crescimento da hete- mo observado no passado, em particular nos rogeneidade de ocupação do tecido urbano, o anos 70, ainda seguiria vigente. fato é que a segmentação socioespacial ainda 214 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole permanece bastante visível na maioria das sobre políticas visando mitigar, reduzir ou, no aglomerações urbanas brasileiras. melhor dos casos, eliminar o déficit habitacio- Além disso, a despeito dos investimentos nal existente em nossas cidades. realizados pelo poder público na ampliação Em segundo lugar, porque se acredita da cobertura da infraestrutura urbana (como que o maior poder aquisitivo, ao implicar a am- saneamento básico, iluminação pública entre pliação do leque de alternativas habitacionais, outros), fato gerador de melhorias na quali- também tem impactos sobre a estrutura de dade do ambiente urbano e de sua população, incentivos e/ou constrangimentos envolvidos observa-se o contínuo crescimento da segre- nas decisões sobre onde morar. Como se pode gação residencial. Ou seja, além das caracte- constatar em estudos, por exemplo, sobre os rísticas físicas dos domicílios, suas localizações condomínios fechados também devem ser levadas em conta de forma a se ter um melhor diagnóstico da situação. Dessa forma, confirma-se a afirmação anterior, acerca da necessidade de novos olhares sobre a organização do espaço urbano e a formulação de pesquisas que resultem em da- [...] Além de serem distantes, segregados e seguros, supõe-se que os condomínios fechados sejam universos autocontidos. Os moradores devem ter ao seu dispor quase tudo o que precisam para que possam evitar a vida pública da cidade. (Caldeira, 2001, p. 267) dos mais eloquentes sobre aspectos que ainda permanecem, de certa forma, pouco claros. Dessa forma, é muito provável que os Ou seja, a heterogeneidade das formas de as- elementos demográficos também tenham in- sentamentos humanos deveria levar em conta fluência sobre a máxima do “quem casa quer também a qualidade dos serviços básicos se- casa” e que valham para qualquer estrato gundo sua distribuição espacial no tecido ur- social. No caso dos estratos mais abastados, bano, a acessibilidade, enfim, elementos que estarão mais diluídos e, provavelmente, não se destacam cada vez mais com o aumento da segregação socioespacial. serão tão decisivos quanto para a população de mais baixa renda. Partimos da visão de Bourdieu e Passeron (1982), para os quais os atores sociais estão Urbanismo e demografia: em busca de um novo olhar para o “morar na metrópole” inseridos espacialmente em determinados campos sociais, dessa maneira, a posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político) condiciona seu posiciona- Os assentamentos urbanos populares constituem objeto de estudo principal deste artigo. A opção pelo estudo das formas de morar dos estratos socioeconômicos mais empobrecidos se deve, em primeiro lugar, por sua relevância social, haja vista o impacto que isso pode ter Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 mento espacial e, na luta social, identifica-se com sua classe social: [...] É na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espa ço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado. (Ibid., 1982) 215 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Contudo, além dessa questão primordial, cômodos cedidos por familiares, dividindo o que é o posicionamento socioeconômico, con- lote paterno. Muitas vezes, o passo seguinte sidera-se que os condicionantes da produção para estes, entre as alternativas habitacionais do espaço urbano, entre eles os mercados de possíveis, é o embrião de uma casa, construído trabalho e de terra, afetam diferencialmente o numa periferia mais distante. indivíduo ou a família, segundo o estágio do ciclo de vida, a composição por sexo e idade, a condição migratória, etc. Portanto, particularmente para os estratos sociais mais baixos,2 esses atributos deveriam ser considerados como fatores importantes que interfeririam sobre a definição de como e onde morar. Nele, a família, com ajuda de parentes, amigos e conterrâneos, no que ironicamente se chama de tempo livre, durante 25 ou trinta anos, lentamente, vai ampliando ou reformando uma casa plena de significados. (Kowarick, 1991, p. 4) O autor demonstra, assim, a intensa re- Na verdade, parte-se do pressuposto de lação entre o acesso à moradia e as caracte- que os comportamentos demográficos, embora rísticas pertinentes à dinâmica demográfica – não possam ser considerados condicionantes particularmente os diferentes estágios do ciclo centrais dos processos de produção do espaço de vida familiar ou cursos de vida. urbano – estes claramente estruturais –, são, Em relação a outros aspectos da dinâmi- no mínimo, reflexos desses processos, guar- ca demográfica e distribuição da população no dando uma relação muito estreita com os mes- tecido urbano, Pasternak observa a influência mos, inclusive podendo retroalimentá-los. da composição etária da população na ocupa- Um exemplo disso seriam os processos ção espacial da cidade de São Paulo, exemplo de formação das grandes áreas periféricas que que seguramente pode ser replicado para ou- são expressão, por um lado, do custo do solo tras grandes cidades brasileiras: urbano nas áreas mais centrais, mas também, por outro lado, da ação das redes ou movimento sociais que acabam por incentivar o adensamento de tais áreas. Nesse sentido, tendemos a concordar com a Wisner (2003) quando afir- [...] a estrutura etária varia por anel ocupa do; há um nítido envelhecimento da população nas áreas centrais, enquanto que a proporção de jovens na periferia é maior que em outros anéis. (2001, p. 3) ma que “pessoas com características similares tendem a se assentar na mesma ou em áreas similares” (tradução livre). Pasternak também alerta para a necessidade de se pensar as novas formas de habitar Kowarick (1991) observa que indivíduos geradas por questões estritamente pertinentes sós e casais jovens sem filhos mais frequen- ao campo demográfico, como queda das taxas temente se dispõem a “morar de aluguel” em de fecundidade e maior esperança de vida, que favelas e cortiços, uma vez que sua localização se acentuaram a partir de meados dos anos geográfica mais central pode constituir aspec- 80. Segundo a autora, rebatimentos urbanos to facilitador da sua inserção e permanência de tais indicadores são observados de forma no mercado de trabalho. Já casais jovens, com inequívoca na maneira como alguns padrões filhos ainda pequenos, não raro, ocupariam de sociabilidade vêm se alterando, como a 216 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole redução do tamanho dos domicílios e o surgi- família como unidade básica de análise, por mento de novos arranjos familiares (Pasternak, entendermos que é dentro desse núcleo que se 2001, p. 3). determinam muitas das decisões relativas – e No que se refere à condição migratória, essenciais – à sobrevivência de seus atores. vários estudos mostram os diferenciais existen- Segundo estudo de Bilac (1997), a famí- tes entre migrantes e não migrantes no que se lia e seus desdobramentos constituem clássico refere à inserção desses indivíduos no merca- tema de estudo nas ciências sociais, particular- do de trabalho. Sobre essa situação, Batista e mente no campo das migrações: Cacciamalli apontam: A migração traz a necessidade de inserção em um mercado de trabalho no local de destino, onde os atributos pessoais e produtivos podem ter valores distintos daqueles verificados no local de origem. A existência de grandes distinções na estrutura ocupacional entre as regiões pode fazer com que homens e mulheres migrantes tenham acesso diferenciado ao mercado de trabalho local, quando comparados à população não migrante. (2009, p. 98) Já Cunha e Dedecca (2000) mostram que de fato existem diferenças significativas em termos da inserção dos imigrantes na RM de São Paulo. Embora o estudo mostre que os migrantes encontravam-se, em geral, mais empregados que os não migrantes, a face perversa dessa realidade era que os primeiros apresentavam um perfil ocupacional que apontava maior precariedade na forma dessa inserção. Estas análises claramente explicitaram o papel da família e das relações familiares como condicionantes importantes ao longo de todas as etapas do processo migratório: da decisão de morar, dos arranjos econômicos necessários à implementação desta decisão, à integração do migrante à sociedade urbana. (Lopes, 1964, Durham, 1973 in Bilac, 1997, p. 177) Em outro texto, Bilac ressalta a importância da família enquanto esfera da produção e reprodução, e a forma como esta é impactada por toda e qualquer intempérie socioeconômica. Dentre esses fatores que impactam a família podemos citar a busca por moradia e o fato de esta ser inacessível para muitos (2006, p. 58). Assim, entendemos que, de acordo com as modificações ocorridas na composição familiar, entre outros fatores, pelas sucessivas etapas do ciclo vital, as necessidades habitacionais do grupo familiar se alterarão, o que pode se tornar fator de mobilidade espacial do grupo ou individual. A família como unidade de análise Desta forma, sem desconsiderar os condicionantes clássicos dessa mobilidade residencial, em geral ligados à dinâmica dos mercados Diversos estudos indicam que a localização de terra e de trabalho, não se pode deixar de residencial constitui um dos elementos mais considerar que as etapas do ciclo vital familiar, importantes no universo familiar dos po- bem como a composição dessas famílias, pos- bres urbanos (Abramo, 2003). Reconhecen- sivelmente acabarão tendo peso significativo do a importância de tal relação, colocamos a sobre a decisão final de mudança. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 217 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Ou seja, trata-se de resgatar para o não apenas dependem, em boa medida, das âmbito intraurbano a instigante proposta de- ofertas imobiliárias, mas também das ligações senvolvida por Singer (1980) para explicar a que tais zonas possuem com o resto da região, migração rural-urbana que diferenciava as particularmente com aquelas áreas onde se causas – estruturais – que afetavam grupos concentram as atividades produtivas. ou, em seus termos, classe sociais, dos moti- De fato, a importância da mobilidade vos – estes individuais – que teriam impacto pendular em nossas metrópoles atesta, em sobre a decisão final. grande medida, que a decisão de morar, via de É bom lembrar que, especificamente regra, também leva em conta a possibilidade no que se refere às “preferências habitacio- de acesso físico às oportunidades oferecidas nais” – se é que se pode dizer que a popu- pela metrópole (Ojima, 2007). lação enfocada nesse estudo tem esse poder E, assim, acreditamos que impulsionadas garantido –, existem ao menos duas formas, por transformações endógenas inerentes às não necessariamente contraditórias, que tra- etapas do ciclo vital, movimentos migratórios duziriam certas opções: a primeira e talvez a e/ou por fatores exógenos, como inserção ou mais comum, não apenas no caso da RM de exclusão do mercado de trabalho, influência 3 Campinas, mas em outras RM’s do estado de de redes de relacionamento, ações públicas São Paulo, diz respeito ao custo da moradia como remoção de áreas de risco, tais famílias expresso no preço dos terrenos ou nos alu- movam-se na busca do lócus disponível que guéis das áreas e municípios mais centrais das seja mais apropriado, ou condizente, com as regiões; a segunda ligada à facilidade de aces- intermitências de suas necessidades locacio- so ao mercado de trabalho a partir do local de nais, traçando a trajetória da pobreza urbana moradia. 4 nas metrópoles brasileiras. Embora aparentemente contraditórias, já que a primeira forma implicaria o distanciamento das pessoas das áreas mais centrais, e a segunda poderia implicar localizações mais centrais – mesmo que em condições Outra “mirada” demográfica: a condição migratória e direito à moradia mais precárias como favelas, cortiços e ocupações –, ambas guardam lógicas semelhantes. Ainda que o direito à moradia seja um con- Ou seja, tanto num caso como em outro, senso entre todas as esferas da sociedade, e, a questão central seria buscar locais acessíveis para os brasileiros, um direito constitucional para se morar, sendo tal acessibilidade tra- desde 1988, a realidade urbana revela-se di- duzida tanto em termos do custo de moradia versa. Segundo Maricato, o uso ilegal do solo quanto em termos da possibilidade de acesso a e a ilegalidade das construções atingem mais bens, serviços, e, claro, ao trabalho. Na verda- de 50% das construções nas grandes cidades de, mesmo no caso da formação das periferias, brasileiras, o que gera total incompatibilidade estas não se apresentam de forma aleatória no entre a chamada cidade legal e a cidade real. espaço metropolitano (Cunha, 1994), já que (1996, p. 16) 218 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Em conjunto com outras formas de as- E o que se observa é que tal situação sentamentos urbanos, estimuladas pelo estado só se agravou com o passar do tempo, como ou pela iniciativa privada, os espaços constituí- demonstram Patarra e Cunha, usualmente dos de forma irregular, por ocupação espontâ- migrantes são vistos como pobres e excluídos nea ou mesmo por produção imobiliária fora socialmente, além do que tenderiam a atrair dos moldes impostos pelas municipalidades, mais migrantes em função das redes de rela- constituem um “mosaico” de situações dentro cionamento estabelecidas no local de origem da cidade. (1987). Segundo Ferreira et al., a multiplicidade Ainda, conf irmando t al situação, de tipos de assentamentos urbanos precários Preteceille e Valladares explicitam o atual es- são, em grande parte, produto da falta de tigma de marginalidade sofrido pelos migran- ações públicas habitacionais: tes nos grandes centros: [...] as diversas soluções habitacionais precárias das quais a população de baixa renda com frequência lança mão pela baixa oferta de programas públicos e por não dispor dos recursos necessários para acessar soluções via mercado. ( 2007, p.2) O favelado, o morador da favela, passou a simbolizar o migrante pobre, semi analfabeto, biscateiro, incapaz de se integrar e se adaptar ao mercado de trabalho da cidade moderna, industrial. (2000, p. 377) Levando em conta que a dificuldade Todavia, longe de uma característica da por parte das camadas mais empobrecidas ao modernidade, essa parece ser uma questão acesso à terra tem origens bastante distan- histórica no Brasil. Segundo Maricato (1997), ciadas dos dias atuais, como aponta Maricato o fato de a terra ser inacessível às popula- (1997), o senso comum do migrante recém- ções mais pobres remonta ao nosso passado chegado como principal gerador e replica- mais longínquo, à época da abolição da es- dor dessa realidade pode (e talvez deva) ser cravatura, quando a propriedade da terra foi questionado. regulamentada pela Lei de Terras. A proprie- Aliás, esse tipo de preconceito já foi de- dade da mão-de-obra escrava foi substituída nunciado em pelo menos um estudo do gênero pela propriedade do meio de produção (ter- no qual a questão central era o mercado de ra), assegurando a hegemonia econômica e trabalho. Nele Cunha e Dedecca, ao sugerirem política à Coroa Portuguesa e à elite branca, “uma abordagem sem preconceito”, contesta- negando o acesso a terra às camadas mais vam a visão de que os problemas observados empobrecidas da população. Já no século XX, no mercado de trabalho seriam devidos à mi- no início da década de 1930, período efetivo gração. A análise mostra que: do processo de urbanização brasileiro, a segregação socioespacial progressivamente vai se revelando a partir da alocação de negros, brancos pobres e migrantes nas franjas urbanas (ibid., p. 37). Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 [...] a migração para a Região Metropolitana representa relativamente pouco para o crescimento da PIA e da PEA. Ademais, as possibilidades de inserção dos novos residentes são crescentemente 219 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha contingenciadas nos segmentos mais precários do mercado de trabalho, em razão das dificuldades econômicas da região e seus efeitos de bloqueio do processo de mobilidade social observado em décadas anteriores. Tais dificuldades reduzem acentuadamente as oportunidades de trabalho nos segmentos ocupacionais mais formalizados. (2000, p. 116) Uma proposta para categorização de assentamentos urbanos populares usando a demografia É notório que o tema dos assentamentos ur- Ou seja, responsabilizar o migrante por banos precários carece de conceituação mais estas e outras mazelas sociais, além de injusto, criteriosa e detalhada. De acordo com a litera- seria, no mínimo, um reducionismo intencional tura pesquisada, são usadas para fins de clas- visando escamotear os reais problemas de nos- sificação desse verdadeiro mosaico de situa- sa sociedade. ções habitacionais três categorias principais E é esse um dos pontos cruciais deste que analisam basicamente as condições do trabalho: melhor delinear os diferentes perfis assentamento segundo sua situação jurídica sociodemográficos, em termos das etapas do (fundiária), urbanística e ambiental. ciclo vital, bem como das condições migra- Contudo, na diversidade de assenta- tórias mais frequentes entre as diferentes mentos precários, encontramos tipos que não modalidades habitacionais destinadas às ca- se encontram circunscritos a essas condições. madas mais carentes da população. Dentro Ferreira et al. observam: da hipótese fundamental desta linha de pesquisa, tais características constituir-se-iam importantes fatores geradores da heterogeneidade de tipos de assentamentos urbanos precários. Não se pode esquecer que o perfil demográfico acaba sendo não apenas um elemento importante para a diferenciação de tais assen- [...] a questão da habitação precária envolve diversas situações distintas como favelas, loteamentos clandestinos e irregulares e cortiços, marcados também por intensa heterogeneidade interna [...], mesmo os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público em décadas recentes por vezes apresentam avançado estado de degradação. (2007, p. 3) tamentos, mas principalmente uma chave para o reconhecimento da diversidade de situações Alfonsin et al. (2002) demonstram que a que devem ser consideradas para efeitos de complexidade do tema vai muito além das ca- planejamento e implementação das políticas racterísticas jurídicas da propriedade. Citam a públicas. Afinal, estas são voltadas para as imensa variedade de irregularidades urbanas pessoas que se organizam em famílias, apre- existentes no Brasil as quais abarcam desde sentam um histórico migratório, encontram-se áreas precárias destinadas às populações de em momento distintos de suas vidas e, portan- mais baixa renda, até os condomínios fechados to, apresentam necessidades diferenciadas, e privatização da orla marítima, modalidades entre elas a habitação. praticadas pelas altas e médias classes sociais. 220 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Como colocam os autores acima, não Dentro de uma variada gama de possi- é possível afirmar que a condição de proprie- bilidades de apreender os fatores relacionados dade, do domicílio ou terreno, seja suficiente à heterogeneidade socioespacial observada para identificar as diferentes formas de as- nas grandes metrópoles, este trabalho leva em sentamentos precários presentes nas cidades. conta diferentes dimensões que basicamente Muito embora o próprio IBGE utilize a situação comporiam um assentamento urbano, usando de propriedade para caracterizar os chamados a Região Metropolitana de Campinas como es- aglomerados subnormais. tudo de caso. O diferencial da presente proposta é que, Para a construção da categorização além de ampliar as possibilidades de capta- de assentamentos serão abordadas duas ção das condições de regularidade fundiária e dimensões consideradas centrais, que se- estrutura urbanística do local em função dos rão complementadas por uma terceira di- dados disponíveis, também estabelece uma mensão – a demográfica – considerada relação entre essas características com as con- igualmente importante. Elementos a serem dições socioeconômicas e demográficas da po- considerados: pulação residente, mensuráveis através de in- a) Condições estruturais do domicílio e seu dicadores selecionados. Dessa forma, através entorno : qualidade construtiva do domicílio e os equipamentos urbanos existentes no entorno, indicando não só aspectos importantes e tradicionalmente captados, como as condições de saneamento básico, mas, principalmente, a frequência dos serviços públicos como abastecimento de água, coleta de lixo e condições de manutenção das ruas. b) Situação fundiária do terreno e domicílio : existência de irregularidade(s) no tocante à questão da segurança de posse (sobre o lote e/ou domicílio). Demonstrando a maior ou menor situação de vulnerabilidade dos residentes em relação à possibilidade de permanecer no local ou serem removidos pela falta ou inadequação da documentação de posse do imóvel. c) Características demográficas : aspectos relacionadas ao momento do ciclo vital, arranjos familiares, sexo, idade e condição migratória que, por hipótese, estariam ligadas às diferentes possibilidades de acesso e mobilidade habitacionais. da análise da relação entre essas dimensões, busca-se categorizar as possíveis variações existentes entre assentamentos urbanos. O desenvolvimento dessa categorização se beneficia das informações provenientes do questionário por amostragem domiciliar, relativo à pesquisa Dinâmica Intrametropoli- tana e Vulnerabilidade Sociodemográfica nas Metrópoles do Interior Paulista: Campinas e Santos, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos de População (NEPO). Os questionários foram aplicados por sorteio em cerca de 3.600 domicílios em diferentes pontos das regiões metropolitanas de Campinas e Baixada Santista,5 no segundo semestre de 2007. O caráter inovador do questionário utilizado permite maior visibilidade das diferentes dimensões que compõem o cenário da diversidade das “formas de morar”,6 o que permite aplicar um critério alternativo de classificação, utilizando informações inéditas relativas à frequência dos serviços de água potável e coleta de lixo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 221 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Dimensões construtivas, locacionais e fundiárias: um olhar a partir do enfoque das necessidades atendidas • Paredes internas total ou parcialmente revestidas (NBS), sem revestimento (NBI); • Abastecimento de água por acesso à rede geral de com canalização interna (NBS), outras formas de abastecimento (NBI) O uso das informações listadas anteriormente • Destinação do esgoto por rede geral, fos- foi esquematizado em duas etapas. Uma pri- sa séptica ou fossa rudimentar (NBS), outras meira análise dos dados usou o método das formas (NBI); “Necessidades Básicas Insatisfeitas” (NBI). Proposto por pesquisadores da CEPAL, tem a • Instalação sanitária exclusiva ao domicílio (NBS), comum (NBI); finalidade de mensurar as condições de vida • Domicílios sem presença de analfabetos da população latino-americana, em especial funcionais (NBS), com analfabetos funcionais (NBI). Uma vez recodificadas tais variáveis em respostas dicotômicas (zero para NBS e 1 para NBI), foi feita o somatório das mesmas, tendose chegado a uma nova variável que define duas grandes categorias de domicílios: aqueles que somaram zero, isto é, não apresentaram nenhuma inadequação segundo os parâmetros adotados, e aqueles que pontuaram de um a seis, por apresentarem uma ou mais inadequações.7 A segunda etapa desse processo investiga a inadequação oculta pelas metodologias mais tradicionais de análise. Metodologias que se baseiam apenas em indicadores referentes à cobertura da infraestrutura urbana, na presença do Estado por meio do aparelhamento urbano, sem averiguar se haveria simetria na qualidade dos serviços que tais equipamentos devem prestar à população. Portanto, separamos numa base de dados apenas os domicílios que não pontuaram na etapa anterior. Ou seja, aqueles considerados satisfeitos em suas necessidades básicas, e os reclassificamos utilizando variáveis que suas carências relacionadas ao acesso a bens e serviços considerados mais elementares para a sobrevivência de indivíduos e grupos. Visa, portanto caracterizar a pobreza, ainda que, como ressalvam Feres e Mancero esta seja, “um termo de muitos significados e envolve inúmeras situações” (2001, p. 7). Foi escolhido o critério do NBI (aqui chamado NBI_Convencional) para que nessa primeira etapa da classificação fossem separados numa categoria os domicílios que se encontrassem em condições de inadequação habitacional e social. Para tal, alguns ajustes foram necessários em relação aos pressupostos originais propostos pela CEPAL a fim de adequá-los à região onde foi feita sua aplicação (RMC). Desta forma, em sua construção foram utilizadas as seguintes variáveis: • Densidade domiciliar: número de moradores por cômodo usado como dormitório. Nesse caso, foram considerados satisfeitos (NBS) naqueles domicílios em que esse número é menor ou igual a 3 pessoas, e insatisfeitos (NBI) aqueles onde tal indicador é superior a 3; 222 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole abordavam a qualidade de alguns serviços e as essas variáveis, de maneira a ter elementos condições de manutenção da via em que está que referendassem (ou não) a relevância de localizado. A finalidade seria abrir esse grupo tais dimensões para melhor se conhecer ou em duas categorias: aqueles não adequados especificar e heterogeneidade das situações sob tais critérios (que chamamos de NBI_Am- de morar. pliado) e aqueles atendidos também nesses. As variáveis utilizadas foram: 8 • Frequência do fornecimento de água (to- Evidências da análise univariada: dos os dias o dia todo ou irregular); • Periodicidade da coleta do lixo (todos os Com a finalidade de testar nossa hipótese ini- dias/ mais de uma vez por semana ou uma vez cial, ou seja, de que poderiam existir padrões por semana/ irregular); de comportamentos sociodemográficos por • Qualidade da rua (pavimentada com/sem buracos ou terra batida com/sem cascalho). detrás de certas categorias de assentamentos urbanos, foram analisados alguns cruzamentos de informações derivadas da pesquisa domiciliar.9 A dimensão demográfica como elemento relevante A Tabela 1 demonstra, primeiramente, a esperada aderência entre a escolaridade do responsável e a classificação dos domicí- Às dimensões consideradas anteriormente, a lios adotada. O que se observa é que quanto saber, as condições estruturais e do entorno, mais se avança nos anos de estudo maior é a agregou-se uma terceira, a demográfica. proporção dos domicílios em condições mais Nesse caso, na medida em que o interes- satisfatórias. O mesmo ocorre com relação se maior do estudo era verificar a relevância ao NBI_Ampliado, muito embora nesse caso de certos aspectos demográficos na classifica- a distribuição entre domicílios NBI e domicí- ção dos assentamentos, optamos por analisar lios NBS seja semelhante, o patamar daqueles o comportamento (ou regularidade) de alguns intermediários é pouco maior, principalmente indicadores demográficos para as categorias no grupo de maior escolaridade (10,4%). O anteriormente definidas. que pode significar que mesmo mais escola- Dessa forma, para as variáveis escola- rizados esses indivíduos ainda apresentam al- ridade, tempo de residência, condição migra- guma inadequação no que diz respeito à sua tória, número de mudanças intramunicipais, moradia. número de municípios prévios, grupo etário Com as Tabela 2 a 5 busca-se identifi- e sexo, buscou-se identificar regularidades de car a relação em situações inadequadas de cada um deles dentro dos grupos de domicí- habitação e a condição migratória, tendo lios identificados. Ou seja, a ideia foi identi- como hipóte se que a mobilidade residencial ficar a existência de algum padrão quanto a nas metrópoles brasileiras, sobretudo aquela Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 223 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Tabela 1 – Escolaridade do responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições domiciliares, RMC, 2007 Escolaridade do responsável NBI_Convencional NBI - % NBS - % Analfabeto / Primário completo 17,2 82,8 Primário completo / Ginásio incompleto 16,4 Ginásio completo / Colegial incompleto Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (382) 17,5 82,5 100,0 (228) 83,6 100,0 (555) 15,2 84,8 100,0 (419) 18,8 81,2 100,0 (259) 18,3 81,7 100,0 (196) Colegial completo / Superior incompleto 12,4 87,6 100,0 (458) 8,9 91,1 100,0 (389) Superior completo / Pós-Graduação 4,9 95,1 100,0 (169) 10,4 89,6 100,0 (161) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. envolvendo mudança de municípios, embora de inserção social e produtiva dos indivíduos, tenha sido utilizada para a solução de ao me- mas também para a aquisição de informações nos um aspecto da segurança habitacional – sobre as possibilidades oferecidas na região, a posse –, não tem sido capaz de atacar um particularmente em termos habitacionais. aspecto fundamental, que é a qualidade das De fato, a Tabela 2 mostra que os respon- formas de morar. O conhecido e tradicional sáveis por domicílios migrantes mais antigos binômio loteamento popular a autoconstrução (acima de 20 anos de residência) apresentam e, nas últimas décadas, também a figura das o menor percentual de incidência de NBI_Con- ocupações são processos muito comum nas vencional. Muito embora esse resultado esteja RMs que, como já observado, pouco também dentro do esperado, chama a atenção, no en- avançaram na redução de seus processos de tanto, o fato de que os migrantes mais recen- segregação socioespacial e, principalmente tes (com menos de 10 anos de residência) pa- seus efeitos mais nefastos. recem não apresentar a pior situação, ficando O primeiro indicador utilizado é o tempo essa para aqueles com duração de residência de residência do responsável pelo domicílio. nos municípios onde foram entrevistados entre Recordemos que se supõe que o tempo de resi- 10 e 19 anos. dência no município seria elemento importante Tendo em vista a hipótese de partida, é não apenas para incrementar as possibilidades difícil compreender esse resultado, contudo, 224 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Tabela 2 – Tempo de residência do responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições domiciliares, RMC, 2007 Tempo de residência NBI_Convencional NBI - % NBS - % 0 a 9 anos 17,9 82,1 10 a 19 anos 23,6 Mais de 20 anos 12,1 Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (258) 12,2 87,8 100,0 (194) 76,4 100,0 (265) 25,4 74,6 100,0 (189) 87,9 100,0 (563) 13,4 86,6 100,0 (475) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. isso pode sugerir o impacto de dois aspectos que definitivamente deve passar por uma re- revelados pela pesquisa de campo realizada visão e, portanto, merecer novos olhares. De (Cunha, 2009): o primeiro que mostra que mais qualquer forma, novas análises seriam neces- de 61% dos migrantes que chegam à RMC vão sárias para se chegar a uma resposta mais de- residir em casas alugadas, fato que vale até finitiva. mesmo para aqueles que no momento da en- Analisando a condição migratória a par- trevista já residiam nas áreas mais periféricas tir do componente espacial (Tabela 3), obser- e com piores condições; o segundo diz respeito vamos que entre os não migrantes do muni- ao impacto das redes sociais no processo mi- cípio onde foi realizada a entrevista, o maior gratório que pode aliviar, de certa forma, as percentual dos chefes de domicílio está na necessidades habitacionais iniciais desses mi- categoria NBS. O interessante desses dados grantes até a sua solução mais definitiva que, é observar que justamente o migrante intra- como já se frisou, não seria necessariamente metropolitano apresenta-se com os maiores a melhor em termos qualitativos. Os mesmos percentuais de NBI_Convencional (66,5%), o dados mostram que para os migrantes respon- que, se por um lado volta a desabonar o (pre) sáveis pelos domicílios que viviam nas áreas conceito de que o migrante de longa distância mais carentes da região, quase 20% deles na seria o principal agente da precariedade habi- chegada foram residir em casas de parentes. tacional, por outro lado, corrobora o papel dos De alguma maneira, esse resultado po- movimentos migratórios internos na metrópole deria contribuir para questionarmos a ideia, como fomentadores da segregação socioespa- comentada anteriormente, sobre o mito do cial (Cunha et al., 2006b). migrante recente como agente propagador Como já comentado, tal resultado tam- da precariedade habitacional, concepção esta bém espelharia a necessidade dos mais pobres Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 225 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Tabela 3 – Condição migratória do responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições domiciliares, RMC, 2007 Condição migratória NBI_Convencional Total NBI_Ampliado NBI - % NBS - % Total NBI - % NBS - % Não migrante 17,2 81,8 100,0 (737) 9,0 91,0 100,0 (394) Migrante intra metropolitano 66,5 33,5 100,0 (176) 13,6 86,4 100,0 (82) Migrante extra metropolitano 21,3 78,7 100,0 (910) 15,7 84,3 100,0 (977) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. de migrar internamente na metrópole rumo às Vulnerabilidade”10 (ZV’s) como o método das periferias, a fim de obter moradia mais con- Necessidades Básicas Insatisfeitas são mais dizente com seus ganhos, fugir do aluguel ou altos os percentuais de proprietários nas áreas alcançar um local com alguma segurança de mais carentes (65,4% dos domicílios NBI con- posse. É provável que isso ocorra porque, ao tra 58,6% dos NBS), e de domicílios alugados menos do ponto de vista habitacional, tal mo- naquelas de maior poder aquisitivo (30,8% bilidade poderia implicar uma espécie de “as- dos domicílios NBI contra 12,8% dos NBS). censão social” a partir da redução do que vem Nesse sentido, a “segurança habitacional”11 sendo chamado “(in)segurança habitacional”. estaria minimamente garantida. Deve-se lembrar que a possibilidade de mobi- Outra maneira de abordar a mesma lizar-se, muitas vezes, pode ser considerada questão seria a partir da observação da re- como um ativo para os indivíduos reduzirem lação existente entre os domicílios classifica- suas vulnerabilidades(Kaztman et al., 1999). dos segundo NBI e o número de mudanças De fato, estudos anteriores sobre algumas RMs (Cunha, 1994 e 2006, Jakob, 2003, realizadas pelo responsável dentro do próprio município. Caiado, 2004) mostram que, ao contrário Nesse caso, os dados sugerem que do que se esperaria, são justamente os mais a mobilidade espacial apresenta-se ligada pobres e migrantes que adotam a opção da à capacidade econômica dos indivíduos e, “propriedade” com maior intensidade, ten- portanto, uma possível melhoria de vida (ao do em vista o padrão de ocupação periférica menos vista do ponto de vista habitacional), de nossas metrópoles. No caso específico da uma vez que justamente são aqueles mais RMC, a análise dos dados sobre proprieda- empobrecidos (NBI) os menos móveis no es- de do imóvel e domicílios alugados mostra paço intramunicipal. A análise da Tabela 4 que tanto utilizando o critério das “Zonas de mostra que os responsáveis por domicílios 226 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Tabela 4 – Número de mudanças intramunicipais feitas pelo responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições domiciliares, RMC, 2007 Número de mudanças intramunicipais NBI_Convencional NBI - % NBS - % 0 18,7 81,3 1 14,6 2 3 ou mais Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (285) 14,1 85,9 100,0 (224) 85,4 100,0 (440) 13,9 86,1 100,0 (345) 14,5 85,5 100,0 (537) 14,6 85,4 100,0 (435) 13,5 86,5 100,0 (561) 13,4 86,6 100,0 (449) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. menos atendidos (NBI_Convencional) estão aqueles que vieram diretamente para a RMC. mais concentrados entre aqueles que não ha- Ou seja, a relação entre migração e precari- viam realizado qualquer mudança de domicílio zação habitacional parece configurar-se não 12 dentro do município onde residiam (18,7%). necessariamente a partir de simples condição Por último, observarmos os dados refe- migratória (“migrante” ou “não migrante”), rentes ao número de municípios onde os che- mas principalmente em termos das trajetórias fes já moraram, a fim de verificar, ainda que estabelecidas pelos primeiros. Os dados suge- de maneira indireta, se a trajetória migratória rem que a intensa mobilidade para e dentro destes apresenta alguma influência sobre suas da metrópole não é capaz de garantir uma situações habitacionais (Tabela 5). Novamen- ascensão social, ao menos no que se refere à te, nesse caso, parece haver fortes indícios de habitação. que pessoas com trajetórias migratórias mais Na Tabela 6, partimos para análise da complexas tenderiam a apresentar piores con- relação entre condições habitacionais e o ci- dições habitacionais se consideradas a partir clo vital familiar aqui considerado a partir da proxy, ou seja, a idade do responsável pelo domicílio. Assim, percebemos, uma vez mais, que o fator tempo é bastante determinante no alcance de melhores condições habitacionais. É observado que nas categorias NBI (tanto para NBI_Convencional como NBI_Ampliado) encontramos as maiores concentrações de responsáveis por domicílio nas faixas intermediárias (30 a 49 anos, 24,8% e 20,1% do NBI_Ampliado, já que no Convencional as diferenças não se mostram significativas. Tal resultado em nada contradiz os anteriores. Especialmente no caso da migração intrametropolitana, sabendo que muitos destes também são migrantes externos, é perfeitamente esperado que tais migrantes apresentassem mais municípios prévios de residência quando comparados, por exemplo, com Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 227 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha Tabela 5 – Número de municípios onde o responsável pelo domicílio morou, segundo categorias de condições domiciliares, RMC, 2007 Número de municípios NBI_Convencional NBI - % NBS - % 1 15,7 84,3 2 16,4 3 4 ou mais Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (451) 9,7 90,3 100,0 (348) 83,6 100,0 (725) 13,1 86,9 100,0 (551) 14,5 85,5 100,0 (385) 17,9 82,1 100,0 (310) 14,5 85,5 100,0 (253) 17,5 82,5 100,0 (211) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. Tabela 6 – Grupo etário do responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições habitacionais, RMC, 2007 Grupo etário do chefe NBI_Convencional NBI - % NBS - % 18 a 29 anos 16,6 83,4 30 a 39 anos 24,8 40 a 49 anos Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (181) 13,0 87,0 100,0 (138) 75,2 100,0 (322) 20,1 79,9 100,0 (231) 18,8 81,2 100,0 (396) 17,1 82,9 100,0 (298) 50 a 59 anos 12,9 87,1 100,0 (368) 11,2 88,8 100,0 (305) 60 e mais 7,9 92,1 100,0 (554) 11,6 88,4 100,0 (480) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. 228 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Tabela 7 – Sexo do responsável pelo domicílio, segundo categorias de condições habitacionais, RMC, 2007 Sexo do responsável NBI_Convencional NBI - % NBS - % Masculino 16,6 83,4 Feminino 10,1 89,9 Total NBI_Ampliado Total NBI - % NBS - % 100,0 (1355) 15,9 84,1 100,0 (1069) 100,0 (468) 8,8 91,2 100,0 (384) Fonte: Pesquisa domiciliar, Projeto Vulnerabilidade, Nepo/Unicamp, 2007. respectivamente). Já entre os responsáveis chefiados por mulheres, em geral, viúvas ou pertencentes a grupos etários mais avançados, separadas. há maior concentração daqueles em melhores De fato, os dados já divulgados pelo pro- condições habitacionais (NBS), também para jeto responsável pelo levantamento domiciliar ambas as categorias. aqui utilizado mostram que 67,6% das mulhe- Ou seja, também a partir dessa variável res responsáveis por domicílio na RMC (que fica claro que, sobretudo para a população de representam 26% dos domicílios) possuíam baixa renda, a questão habitacional tende a mais de 50 anos de idade (Cunha, 2009). ser um elemento muito ligado ao curso de vida, de pessoas e de famílias. Analisando a composição da população Evidências da análise multivariada segundo o sexo dos responsáveis pelo domicílio (Tabela 7), destaca-se que o grupo feminino Todas as variáveis analisadas individualmente apresenta percentuais maiores em domicílios na seção anterior foram incorporadas em um NBS do que o masculino. Isto é, pode-se in- modelo de regressão logística sendo a variável ferir que a chefia feminina se concentra mais independente dicotômica relativa à condição em domicílios de melhores condições habita- de NBI (valor 1) e NBS(0). Dessa forma, seria cionais. Esse fato, ao mesmo tempo em que possível controlar o efeito de cada uma dessas desmitifica, ainda que parcialmente, a relação variáveis sobre a condição habitacional tendo entre chefia feminina e pobreza, parece asso- sido controlados os efeitos das demais. De fa- ciar-se à composição mais envelhecida do gru- to, deve-se reconhecer a existência de corre- po de domicílios NBS (ver Tabela 6), que tem lação entre situações de migração e pobreza, entre os seus principais condicionantes os dife- por exemplo, ou dessa última com momentos renciais de mortalidade entre homens e mulhe- distintos do ciclo vital, razão pela qual seria res que implica a existência de mais domicílios importante aferir se os atributos avaliados Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 229 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha teriam ainda assim algum impacto, mesmo ZV1, a mais segregada e vulnerável, implica que na presença de outros. ter 4 vez mais chances de ser NBI – como O Quadro 1 mostra os resultados da apli- também atenua, em certa medida, as diferen- cação do modelo para a variável NBI_Conven- tes chances de jovens e velhos apresentarem 13 cional para duas situações: a primeira consi- NBI distintos. Enquanto no primeiro caso os derando a variável de segregação socioespa- jovens apresentam 5 vezes mais chances, es- cial (as Zonas de Vulnerabilidade) e a segundo se valor aumenta para mais de 6 vezes quan- sem essa variável. do a variável ZV não é considerada. Muito Basicamente, o modelo nos mostra que, provavelmente a correlação existente entre de fato, a idade do responsável do domicílio precariedade socioespacial e o momento do tem impacto importante sobre a probabilida- ciclo vital que permitiria, por exemplo, viver de de que o indivíduo apresente precariedade em bairros mais consolidados poderia expli- habitacional. De fato, para os responsáveis car esse resultado. mais jovens, as chances são maiores em re- Conclusões semelhantes podem ser reti- lação aos mais velhos (acima de 60 anos). É radas a partir da observação da variável edu- interessante notar que ao se controlar pela cação, que mostra as maiores probabilidades variável de segregação (as ZVs) essa variável de que chefes menos educados estejam em não apenas se mostra importante – morar na situação desvantajosa com relação àqueles Quadro 1 – Modelo de regressão logística ajustado para a variável dependente “condição de NBI_Convencional” utilizando variáveis independentes sociodemográficas, RMC, 2007 Com variável ZV Variável Zonas de Vulnerabilidade Idade do responsável Educação Tempo de residência no município Categorias Estimador Wald Sem variável ZV Pr> chis-quare chis-quare exp(est) Estimador Wald Pr> chis-quare chis-quare exp(est) ZV_1 1,453 5,313 0,021 4,276 18 a 29 anos 1,649 17,594 0,000 5,200 1,923 25,592 0,000 6,843 30 a 39 anos 1,399 16,928 0,000 4,051 1,747 29,052 0,000 5,737 40 a 49 anos 1,267 17,171 0,000 3,551 1,504 26,019 0,000 4,500 50 a 59 anos – – – – 0,596 3,904 0,048 1,815 Primário incompleto 2,324 9,024 0,003 10,215 2,771 13,467 0,000 15,981 Ginásio incompleto 2,083 7,616 0,006 8,025 2,424 10,686 0,001 11,286 Colegial incompleto 1,614 4,323 0,038 5,023 1,879 6,043 0,014 6,545 10 a 19 anos 0,473 3,041 0,081 1,605 0,573 4,614 0,032 1,774 Constante -5,624 30,462 0,000 0,004 -5,333 37,933 0,000 0,005 Obs.: *** p-val < 0,001 – ** p-val < 0,05 “–” = categoria com coeficiente não significante. 230 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole que possuem formação universitária completa migratória, e as diferentes formas de assen- (categoria de referência). Da mesma forma, es- tamento propostas. Mesmo considerando que sa diferença acentua-se ainda mais quando a no modelo multivariado esses aspectos per- variável de segregação não é utilizada. deram importância (particularmente em favor Finalmente, a única variável demográfi- das variáveis sociais, como educação e lugar ca considerada que mostra algum efeito indi- de residência), ainda assim pode-se dizer os vidual significativo sobre a condição de NBI é resultados apresentaram boas indicações de o tempo de residência no município. De fato, que, em consonância com nosso argumento, o modelo mostra que para aqueles que vivem o demográfico também conta para definir as no município entre 19 e 20 anos apresentam diferentes formas de morar na metrópole. 1,6 mais chances de serem NBI se comparado Como seria de se esperar, as áreas mais à categoria de referência (mais de 20 anos). consolidadas da metrópole são, de certa forma, O interessante é que, como já apontado na “reservadas” para aqueles indivíduos e famí- seção anterior, esse efeito não aparece para lias que há mais tempo chegaram aos seus mu- aqueles com menos de 10 anos de residên- nicípios de residência. Fato que revela a lógica cia. Como comentado, esse fato precisaria ser perversa que impera no processo de ocupação avaliado com mais detalhe para uma melhor de nossas cidades, que praticamente “fecha” compreensão. as áreas de melhor infraestrutura para a popu- Infelizmente, quando colocadas no mo- lação mais pobre e com menos tempo na re- delo todas as demais variáveis, em particular gião. Não obstante, os resultados aqui obtidos aquelas relativas à condição migratória, não se não foram definitivos em mostrar que os mais mostraram estatisticamente significantes para recentes (com menos de 10 anos de residência) interferir na probabilidade do responsável pelo eram os que piores condições apresentavam, domicílio ser ou não NBI. No entanto, acredita- percebe-se que indiscutivelmente essa variável se que pelos indicativos da análise univariada faz diferença para se prever a condições de essa relação deveria ser melhor explorada de precariedade nas formas de morar. forma a que fosse possível estabelecer a partir No mesmo grupo dos domicílios melhor de que mecanismos a migração teria impacto atendidos, encontramos maior percentual de sobre a condição de moradia. mulheres como responsáveis pelos domicílios. Tal fato por um lado coloca em cheque a ideia da existência de uma relação direta entre che- Considerações finais fia feminina e pobreza. E, por outro lado reforça a necessidade de melhor avaliar essa questão, já que se sabe que boa parte dessas mu- De forma geral, é possível concluir que os lheres encontra-se em estágio mais avançado dados aqui apresentados vão ao encontro de do ciclo de vida familiar, muitas delas vivendo muitas das hipóteses levantadas. Encontramos na ausência de um cônjuge, por exemplo, em fortes indícios sobre a relação entre aspec- função da viuvez. Tanto é assim que na análise tos demográficos, particularmente condição multivariada, ao contrário da idade, a variável Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 231 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha sexo do responsável não se mostrou significa- tentados a fazer – a responsabilidade das ma- tiva para prever a condição habitacional. zelas do tecido urbano; na verdade, os dados Os dados levantados também destacam mostram que também nessa situação encon- a relação positiva entre o fator tempo de resi- tra-se um número ainda mais significativo de dência e a qualidade habitacional. Nesse caso, migrantes de longa data. a variável aparece como significativa também Na verdade o que nossa análise revela é no modelo multivariado, o que mostra que que não apenas o movimento migratório, mas não se trata apenas de avançar ou não no ci- também tempo de residência pode se traduzir clo de vida para se atingir melhor condição de em ativos para algumas famílias no sentido de moradia. Em se tratando da condição de mi- melhorarem sua posição em termos habitacio- grante, o tempo transcorrido desde a chegada nais. Claro que os mecanismos subjacentes a no município representa elemento importante essa relação não estão revelados neste traba- a ser considerado. lho, dos quais destacaríamos a forma de inser- Na categoria intermediária, dos domicí- ção no mercado de trabalho, a quantidade e lios que tinham suas necessidades básicas aten- qualidade das informações adquiridas, etc. No didas, porém, com algumas carências menos entanto, parece não haver dúvidas que tais visíveis por serem reveladas (aqui se chamada atributos são aspectos essenciais. Deveriam, NBI, do NBI_Ampliado), encontramos indícios portanto, ser levados em conta não apenas de que a mobilidade intrametropolitana e in- nas análises, mas também em ações concretas termunicipal era fator de impacto negativo na que visem resolver ou minorar os problemas na qualidade habitacional. Isto é, possivelmente dimensão habitacional. ao buscar moradia própria, para fugir do alu- Assim, o aprofundamento dessas rela- guel e/ou para ter “segurança de posse”, esses ções, bem como a identificação dos mecanis- responsáveis por domicílio acabariam por se mos a partir dos quais as características demo- submeter a condições piores de moradia. gráficas atuam sobre a dinâmica habitacional Finalmente, entre aqueles que mais so- são aspectos importantes, que precisam e me- frem com as assimetrias do aparelhamento recerão maior atenção na continuidade desta urbano, segregação social e residencial, os linha de trabalho. domicílios que ainda não conseguiram atingir Assim, além de sua contribuição para o de- os “mínimos sociais” esperados, encontra- bate acadêmico, espera-se que esta análise pos- mos o maior percentual de migrantes recen- sa informar e talvez inspirar formas alternativas tes e, portanto, de famílias e pessoas mais de se pensar o problema habitacional em nossas jovens. metrópoles, quem sabe permitindo intervenções No entanto, alertou-se para o fato de e ações mais eficazes, uma vez que estes conhe- que tal constatação não significa transferir çam de forma mais detalhada a realidade do para a migração recente – como muitos ficam “espaço social” que pretendem atender. 232 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves Arquiteta Urbanista. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil. [email protected] José Marcos Pinto da Cunha Demógrafo. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil. [email protected] Notas (1) Cabe esclarecer que, para assentamento urbano precário, usaremos a definição proposta pelo UN Habitat: “um grupo de indivíduos morando debaixo do mesmo teto que careça de pelo menos um (em algumas cidades dois ou mais) dos seguintes atributos: segurança da posse, qualidade estrutural e durabilidade da construção, acesso a água potável, acesso a esgotamento sanitário e espaço suficiente para morar” (ODM, Relatório Nacional de Acompanhamento, 2007, p. 116). (2) Cabe esclarecer que o caráter restrito do mercado de terra urbanizada e a inexistência de linhas de crédito para população de baixa renda adquirir moradia são fatores centrais na alocação (e segregação) dos pobres no tecido urbano. Contudo, nesse momento, manteremos o foco nos aspectos sociodemográficos da questão por se tratar do obje vo principal do estudo proposto. (3) Por exemplo, os dados de pesquisa domiciliar de 2007 mostram que 7,7% das famílias alegam mo vos ligados ao custo de morar para a mudança de domicílio. (4) Em toda bibliografia levantada, é notória a centralidade da influência do mercado de trabalho na vida e sobrevivência da população, “produção e reprodução” das esferas familiares, em especial para as camadas mais empobrecidas. (5) Para maiores informações sobre a fonte de dados, consulte: www.nepo.unicamp.br/ vulnerabilidade (6) Salienta-se que o ques onário buscou inovar com relação aos quesitos coletados, incluindo informações diferenciadas e pouco comuns em levantamentos desse po. Tais domicílios foram escolhidos através de uma amostra aleatória, especialmente desenhada para captar a heterogeneidade espacial da região, sobretudo em termos do grau de vulnerabilidade das famílias. (7) Cabe ressaltar que a escolha de esse método se deu pelo fato de esse indicador não medir apenas a proporção de domicílios que não estão na situação ideal, mas sim a proporção daqueles que estão em situação insustentável. (8) Inicialmente havia sido incluída uma variável sobre a existência de documentação que comprovasse a propriedade do terreno no qual estava construído o domicílio. Todavia, por questões metodológicas, esta foi re rada. O fato é que tal questão apresentava grande número de não respostas (aproximadamente 26,0%), o que reduzia de forma significa va a amostra, prejudicando as possibilidades de análise. Uma vez removida essa variável, em uma nova análise, constatou-se alteração significa va em relação aos dados sobre migração: aumento no percentual de migrantes extrametropolitanos (de 46,1% para 68,95) e redução dos não migrantes (de 42,2% Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 233 Izabella Maria Zanaga de Camargo Neves e José Marcos Pinto da Cunha para 24,0%), %), já o percentual dos migrantes intrametropolitanos não sofreu grande impacto (7,1% para 11,7%). A entrada do grupo extrametropolitano na segunda amostra indica que este foi o grupo que mais se absteve de responder sobre a documentação do imóvel onde reside, possivelmente por não possuírem informações, ou mesmo documentação, adequadas. 9) As tabelas foram organizadas de forma a categorizar os domicílios e assim permi r comparações entre algumas caracterís cas sociodemográficas dos responsáveis pelos domicílios em 03 grupos principais: aqueles não atendidos em suas necessidades básicas (NBI da coluna NBI_Convencional) e os demais domicílios da amostra (NBS do NBI_Convencional). Na segunda coluna (NBI_Ampliado), foram suprimidos do banco de dados esses domicílios mais carentes, classificados como NBI do NBI_Convencional, e então aplicados os critérios rela vos à qualidade dos serviços públicos (NBI_Ampliado) a fim de obtermos dois outros grupos de domicílios, aqueles chamados intermediários no que se refere ao atendimento de suas necessidades habitacionais (NBI do NBI_Convencional) e os demais considerados totalmente atendidos (NBS). (10) As ZV’s são estratos criados a par r das informações das áreas de ponderação do Censo Demográfico de 2000 a par r do conceito de vulnerabilidade social. Para a RMC, forma propostas quatro ZV sendo a mais vulnerável a ZV1 e a menos a ZV4. Para maiores detalhes sobre o procedimento ver Cunha et al., 2006(a) ou Cunha, 2009. (11) Segundo a Agenda Habitat (1966), o termo moradia digna contempla o conceito de habitação de interesse social: habitação além das funções de abrigo, o que inclui o acesso às a vidades urbanas, às condições de saneamento básico e à garan a de posse. Nesse caso específico, a noção de “segurança habitacional” refere-se à garan a dos residentes permanecerem no local ante a impossibilidade de pagar o aluguel por mo vos vários como morte, desemprego, adoecimento do chefe do domicílio; bem como em relação à ações de despejo/remoção como reintegração de posse. (12) Embora seja analisado nesse momento, há que se considerar que, em muitos casos, essa mobilidade esteja associada à caracterís ca anteriormente analisada, ou seja, o tempo de residência no município. Contudo, não deixa de ser interessante notar que a relação mobilidade e condições habitacionais parece ser significa va. (13) Infelizmente, não foi possível ajustar o modelo para o “NBI_Ampliado” em função do volume de registros com valores missings que poderiam deturpar os resultados. 234 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 211-237, jan/jun 2010 Urbanismo, demografia e as formas de morar na metrópole Referências ABRAMO, P. (2003). A dinâmica do mercado informal de solo e a mobilidade residencial dos pobres, versão preliminar. Rio de Janeiro, UFRJ/IPPUR. ALFONSIN, B. M. et al. (2002). Regularização da terra e da moradia: o que é e como implementar? São Paulo, Ins tuto Polis. BATISTA, N. F. B. e CACCIAMALI, M. C. (2009). Diferencial de salários entre homens e mulheres segundo a condição de migração. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 26, n. 1, pp. 97-115. BILAC, E. D. (1997). “Arranjos domés cos e condição migratória”. In: PATARRA, N. et al (org). Migração Condições de Vida e Dinâmica Urbana: São Paulo 1980 – 1993. 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A cidade conhecida propagandeada pelos órgãos oficiais como capital do primeiro mundo, capital ecológica, entre outros títulos, registra duas décadas de ocupações irregulares de terrenos para moradia. Os vigorosos movimentos por ocupação do espaço urbano eclodiram em vários pontos da cidade, entre 1988 e 1992, com destaque para as ocupações do Xapinhal e Ferrovila. A experiência vivenciada pelos trabalhadores pobres foi singular em cada localidade, no entanto, as lutas populares, questionaram a estrutura dominante e articularam setores sociais heterogêneos. Longe de o poder público conseguir sanar o déficit habitacional para a população pobre, a partir de 2006, Curitiba sofreu nova onda de ocupações de terrenos urbanos. A primeira década do século XXI está se encerrando com o assombroso número de 254 ocupações irregulares e 13 mil famílias vivendo em área de risco. Abstract In this article, the goal is to revisit the history of poor workers’ fight for a place to live in the city of Curitiba, State of Paraná. The city, advertised by official bodies as a first world capital, ecological capital, among other titles, registers two decades of irregular occupations of land for housing. The vigorous movements aiming at urban space occupation exploded at various points of the city between 1988 and 1992, like Xapinhal and Ferrovila. The poor workers’ experience was unique in each locality; however, these popular struggles questioned the dominant structure and articulated heterogeneous social sectors. As the public power could not solve the poor population’s housing deficit, from 2006 onwards, Curitiba suffered a new wave of urban land occupations. The first decade of the 21st century is ending with the astonishing number of 254 irregular occupations and 13,000 families living in a risk area. Palavras-chave: movimentos sociais; ocupações urbanas; trabalhadores. Keywords: social movements; urban occupations; workers. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Celene Tonella Introdução Em cada caso que compôs a matéria-prima dos movimentos por moradia, o desespero era sempre o mesmo: trabalhadores pobres da A proposta de investigar Curitiba remete quase periferia da capital que estavam na fila da Com- que imediatamente a aspectos de seu plane- panhia de Habitação (Cohab) havia muito tem- jamento urbano e a imagens criadas para ela, po e que não conseguiam mais pagar aluguel por força da eficiente ação política de um gru- ou já estavam morando de favor em casa de po que fez do city marketing, a cidade pensada parentes. O drama individual pode ser mono- como mercadoria, o grande aliado na projeção tonamente multiplicado por milhares de famí- da cidade ao longo de décadas. Neste artigo lias. O dado concreto da ausência de moradias olha-se a cidade a partir da periferia e da luta para atender às camadas populares, somado dos trabalhadores pobres pela conquista de um ao entendimento por parte dos envolvidos nas lugar para morar, diante de um planejamento lutas de que o acesso à moradia é um direito urbano segregador, que conduz à concentra- primordial, foi elaborado em nível mental e o ção de terras urbanas. resultado da equação foi o reconhecimento da Serão abordadas, na primeira parte do justeza em ocupar os terrenos. Em outras pa- artigo, as mobilizações ocorridas na busca lavras, ocorreu a releitura do direito liberal na por um lugar para morar pelos trabalhadores perspectiva do movimento: o direito à moradia pobres por iniciativa de múltiplos sujeitos, a sobrepõe-se ao direito à propriedade. partir de 1988. Na segunda parte trataremos Outra característica que marcou o mo- de um período mais recente, com processos de vimento por ocupação coletiva de terras foi a ocupações irregulares na periferia, e a conse- capacidade que teve em produzir efeitos multi- quente reação de agentes públicos e privados, plicadores e difusores, quer por iniciativa dire- ocorridos a partir de 2006. ta das lideranças, quer como um exemplo a ser No ano de 1988, a periferia de Curitiba seguido. Parte dos integrantes dos órgãos do viu brotar, na calada da noite dos meses de governo e da imprensa e vários políticos bus- temperatura mais quente, centenas de acam- caram caracterizar as ocupações como fruto de pamentos em terrenos públicos e privados. Ini- oportunistas que criaram a "indústria das in- ciou-se um vigoroso movimento popular pela vasões"; mas o fato é que, a partir da primeira conquista do espaço urbano. O ano de 1989 fe- ocupação na região, em 1988, que passou a chou com mais de 180 ocupações em terrenos ser conhecida como Xapinhal, ocorreu em Curi- públicos e quase 40 em terrenos particulares, tiba um efeito "bola de neve" de ocupações num total de 10 mil famílias acampadas nes- de terrenos públicos e particulares que come- sas áreas. O violento processo de segregação çaram a pipocar, de forma organizada ou de urbana, ancorado num padrão capitalista de forma espontânea. desenvolvimento periférico (Kowarick, 1988), Na segunda parte do artigo, o enfoque fez com que milhares de pessoas desencadeas- recai na nova onda de ocupações ocorridas a sem movimentos de luta pela conquista de um partir de 2006 e intensificada nos anos seguin- lugar para morar. tes. Foram realizados levantamentos de dado 240 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba em órgãos oficiais – Cohab-CT, Coordenação estabelece uma relação direta entre o local de da Região Metropolitana de Curitiba (Comec), moradia e o tipo de habitação com a forma de Escritório Regional da Companhia de Habita- integração das pessoas no mercado de traba- ção do Paraná (Cohapar) e Instituto de Pesqui- lho. Há situações bastante diferenciadas. sa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), A primeira delas é aquela do migrante consultas em documentos e matérias publica- recém-egresso do meio rural e que se diri- das em jornais. ge para a periferia dos municípios de porte Constatou-se que, após duas décadas médio em busca de formas alternativas de da explosão de ocupações irregulares na pe- sobrevivência. Estes trabalhadores, expulsos riferia curitibana, a falta de regulamentação de seu habitat ancestral, não possuem as fer- e a ocorrência de novas ocupações permane- ramentas mentais1 necessárias para sobrevi- cem como a realidade da população pobre, ver num espaço hostil. Nas palavras de Chauí com agravantes que mesclam precariedade (1986), os migrantes são submetidos à invali- e violência policial. Segundo a ONG Terra de dação cultural pelo processo de trabalho, há Direitos, um em cada cinco habitantes de Curi- uma desqualificação do conhecimento trazido tiba e Região Metropolitana moram em área do campo e das pequenas cidades. O equipa- de ocupação urbana. As ações e reações do mento social, na situação de citadino, torna- movimento por moradia que nortearam as se inútil e o migrante se vê forçado a adquirir ocupações ocorreram em paralelo a ações novos. Num trabalho de 1976, Durhan discute governamentais de nível municipal e federal que, para o trabalhador obter colocação para viabilizar políticas públicas habitacionais no mercado de trabalho, ele precisa não só como o PAC e o Programa Morar em Curiti- aprender novas técnicas como adquirir pa- ba. Ao mesmo tempo, foram detectadas ações drões culturais novos, que se manifestam por de segmentos sociais vinculados aos grandes meio de novas normas de relações sociais e proprietários de terrenos e do legislativo mu- de valores. nicipal no sentido de criminalizar o movimento por moradia. Descontando-se a crescente dificuldade em se colocar no mercado formal de trabalho por conta da falta de empregos, o trabalhador migrante enfrenta adicionalmente o problema O que querem os pobres, afinal? de ter o reconhecimento legal de sua condição. Isto é, à medida que o trabalho se organiza burocraticamente, exige-se do trabalhador uma qualificação mínima, ele necessita oferecer O modelo brasileiro de urbanização, dotado documentos para o empregador: carteira de de uma dinâmica excludente e segregadora, identidade, carteira profissional, título de elei- produz e reproduz as favelas e as chamadas tor, certificado de reservista para os homens, "habitações subnormais" que abrigam aque- etc. (Durhan, 1976). Diante de tamanhos esfor- les que nem sequer tiveram acesso ao terreno ços, a tendência generalizada é o subempre- periférico e/ou à casa própria. Essa dinâmica go e a marginalidade ocupacional: serventes Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 241 Celene Tonella de pedreiro, "chapas" (carga e descarga de e lançados num estado da natureza”, onde caminhões), catadores de entulhos e papéis, predomina “o caos permanente nos atos mais jardineiros e diaristas. simples de sobrevivência ou de convivência” É uma população parcialmente descar- (p. 97). tável na dinâmica do mercado capitalista, são Um segundo fluxo ocorre quando traba- cidadãos de segunda categoria, uma popula- lhadores se dirigiram à capital na expectativa ção sobrante, gente que se tornou não em- de se integrar ao mercado formal de trabalho, pregável (Telles, 1998 apud Yasbek, 2001) ou já que as oportunidades apareciam como pro- parcialmente integrados a um mercado pre- missoras diante do marketing da boa quali- carizado. Executam tarefas necessárias para dade de vida e da expectativa de abertura de a sociedade, mas não desfrutam a dignidade novos postos de trabalho, materializados no concedida pelo trabalho formal e são facil- novo parque automotivo da Região Metro- mente substituídos. politana, ao final da década de 1990, viram Castel (1999), ao analisar o processo suas expectativas desmoronarem por inúme- de desfiliação social, isto é, o rompimento ros fatores que serão apontados ao longo do de vínculos sociais que garantem proteção e artigo. identidade aos sujeitos, aponta que, na socie- A essa população, relegada a uma exis- dade atual, o desemprego e a precarização do tência de miséria, com seus reduzidos salários trabalho representam um “déficit de lugares” ou subempregos e sem uma política social efi- ocupacionais na estrutura social. Segundo o ciente por parte do poder público para suprir autor, com esse déficit de lugares surgem os as mínimas carências, resta como alternativa “supranumerários”, ou os “inúteis para o mun- habitacional a periferia dos assentamentos do”, ou seja, o desempregado de longa dura- precários.3 De acordo com Véras e Bonduki: ção, os “velhos” de 50 anos, os jovens em bus- [...] conceitualmente, a habitação deve ser encarada no seu duplo aspecto: abrigo (teto, parede, piso) e como inserção no espaço urbano, e aí, com seus complementos de infraestrutura, transporte, equipamentos sociais, abastecimento, localização e paisagem. (1986, p. 40) ca do primeiro emprego. Surgem duas categorias: os que nunca se incluíram e os que estão perdendo os direitos.2 Para além dos extremos “jovens” e “velhos”, a especificidade do caso brasileiro demonstra a existência de um ciclo perverso em que o empregado de hoje é um possível desempregado ou subempregado de amanhã. Ora, a habitação é mais que isso, confere estabilidade e segurança às famílias e se Santos (1999), ao tratar da contratuali- apresenta como um elemento de cidadania. A dade moderna, aponta para sua crise marcada pessoa com moradia tem condições de melhor pela predominância dos processos de exclusão enfrentar os desafios colocados pela vida co- que faz com que aqueles formalmente cida- tidiana: passa a comprovar endereço na pro- dãos percam direitos antes mesmos de usufruí- cura por emprego, comprar a crédito e receber los; “são de fato excluídos da sociedade civil cartas. 242 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba Há que se apontar uma mudança nessa busca do lugar para morar. O processo de ocupação das periferias obedecia mais ou me- Primeira fase de ocupações: Xapinhal e Ferrovila nos à mesma dinâmica: uma ocupação paulatina, silenciosa, as famílias iam chegando, O período 1964-1982 foi marcado pelo plane- vindas do campo, das cidades do interior e jamento tecnocrático, cuja principal caracterís- de bairros antigos mas periféricos. Kowarick e tica era buscar implementar uma racionalidade Bonduki usaram a expressão "laissez-faire ur- ao espaço urbano. O modelo, que vinha desde bano" para designar as políticas públicas em o Plano Serete, concluído em 1965, era o de São Paulo no pré-1964. Elas se caracterizaram uma cidade que se expandiria linearmente, a pela não intervenção no processo de fixação da partir do centro tradicional, pelas chamadas população recém-egressa do campo, quando (vias) "estruturais". Essa concepção de pla- "levas populacionais se fixaram onde e como nejamento sofreu uma interrupção em função puderam no cenário metropolitano" (Kowarick das mudanças políticas que levaram à prefei- e Bonduki, 1986, p. 133). tura, por duas gestões, membros do PMDB. Em O que marcou os anos de 1980-1990, 1982, o PMDB elegeu o governo do estado e o foi a luta coletiva pela posse da terra urbana prefeito indicado foi Maurício Fruet. Em 1985, através da organização que precede a ocupa- com o restabelecimento das eleições diretas ção, nos moldes do movimento rural. Até a para os prefeitos das capitais, Roberto Requião década de 80, o primeiro passo dado pelas fa- elegeu-se prefeito. Nesse período, houve um mílias mais carentes para o acesso à moradia redirecionamento técnico e também político no era individual – comprar um lote a baixo custo traçado urbano. A análise técnica apontou que (muitas vezes em loteamentos clandestinos ou a cidade não se expandia de forma linear, mas construir um barraco em alguma área disponí- pontual: havia o núcleo do Juvevê, do Portão, vel). Como esses espaços começaram a ficar da Vila Hauer, do Bacacheri. A nova proposta escassos, soluções coletivas começaram a ser recebeu o nome de Projeto Aldeamento e ba- pensadas. seou-se num desenvolvimento plurilinear, que Rolnik (1990) utiliza o conceito esgota- daria estímulo a centros de convivência no pró- mento do padrão periférico de crescimento, prio bairro. Houve uma retomada do planeja- útil para esclarecer parte do processo de mobi- mento urbano nos moldes tecnocráticos com o lização recente das camadas populares para ter retorno de Jaime Lerner à prefeitura, em 1988 acesso ao direito de moradia. O esgotamento (Tonella, 1997). do padrão periférico ocorre quando há uma di- A luta pela regulamentação dos lotea- minuição relativa da oferta de lotes populares mentos clandestinos foi a primeira luta que e de loteamentos clandestinos. marcou o cotidiano da população recém- Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 243 Celene Tonella estabelecida na cidade, já na década de 1970. Movimento de Associações de Bairro de Curi- Num quadro de fragilidade dos diversos mo- tiba e Região Metropolitana – MAB. Em 1983, vimentos sociais, ganhavam destaque os mo- ocorreu o II Encontro de Bairros e Favelas de vimentos reivindicatórios pela posse da terra, Curitiba, que contou com a participação de 79 moradia, luz, água, saneamento. A partir de associações de moradores (ibid.). 1977, ocorreu a formação das primeiras asso- No que diz respeito, especificamente, à ciações de moradores em Curitiba: a primeira questão do déficit de moradias, soluções não foi a de Vila Formosa, vindo em seguida as as- surgiram em nenhuma das administrações do sociações de Vila Maria e Vila Nossa Senhora período. Ao analisar os dados fornecidos pe- da Luz. Essas associações foram passos im- la Cohab-CT, constatou-se que os números portantes dentro do movimento popular, pois, eram pouco animadores. No longo período embora a mobilização não fosse intensa, seus compreendido entre os anos de 1967 e 1988, estatutos serviram de base para as entidades detecta-se uma média anual de apenas 1.833 posteriores, fundadas entre 1978 e 1979, ba- unidades entregues, entre casas, lotes e apar- sicamente, na região sul da cidade (Garcia, tamentos. Isso significa, concretamente, que, 1990). O povoamento desordenado da região muito embora posturas diferenciadas tenham sul, nas décadas de 1970 e 1980, fez crescer sido tomadas ante a questão do planejamento o número de loteamentos clandestinos, e a urbano, nenhuma das propostas logrou resol- legalização de lotes continuou sendo a prin- ver o déficit habitacional. cipal batalha do movimento popular durante A Cohab de Curitiba apontava, em anos. Muitos moradores de bairros periféricos 1989, a existência de 40 mil famílias cadastra- levaram décadas para conseguir a legalização das, com renda abaixo de 3 salários mínimos, do lote. à espera de financiamento para moradia. Não Em 1980, houve um salto organizacional havia qualquer perspectiva de atendimen- importante: as primeiras associações de mo- to das demandas por conta de uma política radores decidiram levar uma luta conjunta e nacional de habitação e, pelo contrário, não fundaram o Conselho de Representantes, cuja havia qualquer linha de crédito para o finan- primeira comissão executiva foi formada pelo ciamento de habitações populares. Ao mesmo presidente de cada associação de moradores tempo, o espaço urbano estava intercalado mais dois representantes de cada uma. Essa por grandes estoques de terrenos desocupa- iniciativa resultou, em 13 de julho de 1980, na dos ou com potencial construtivo ocioso. organização do I Encontro de Bairros e Fave- Registrava-se uma grande oferta de lotes las de Curitiba, com 35 associações presentes. urbanizados, valorizados por sua localização Em 1982, surgiram duas entidades ligadas à (como na ZR-2), mas com preços de mercado luta por moradia: a União Geral dos Morado- inacessíveis para a população de baixo poder res de Bairros, Vilas e Jardins de Curitiba e o aquisitivo (Tonella, 1997). 244 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba O início das ocupações: Xapinhal e Ferrovila terminou, em janeiro de 1989, com a inflação na casa de 37% (Amorim, 1994) 4. Diante desse quadro de desesperança, em 1988, ocorreu a primeira ocupação numa O movimento popular, ante o quadro expos- área particular, denominada Sítio Cercado. to para o setor, começou a se organizar ainda Nessa ocupação, os números finais apontaram durante a gestão de Roberto Requião e a ela- a participação de 16 associações de morado- borar propostas concretas. Ao mesmo tempo, res, 3.200 famílias e mais de 10 mil pessoas. surgiu, em todo o território nacional, a ban- Os organizadores do movimento sabiam que deira pela reforma urbana, motivada, basica- era muito difícil permanecer naquele terreno mente, pela articulação popular em torno da particular, o objetivo principal era interagir apresentação de emendas populares para a com o poder público, isto é, a intenção era Assembleia Nacional Constituinte, mas todas pressionar o poder público para que apontas- as condições objetivas estavam presentes pa- se alguma solução, como a realocação para ra os acontecimentos que se seguiram, a par- outra área. tir de 1988. Todo o processo levou aproximadamente Nesse ano, ocorreu a ocupação da área dois anos para se concretizar e, para viabilizá- conhecida por Xapinhal, fruto de um trabalho lo, reuniões periódicas foram realizadas nas organizado por 16 entidades comunitárias dos comunidades formadas a partir de um núcleo bairros Xaxim, Pinheirinho, Sítio Cercado e Alto básico que se confunde com a Comunidade Boqueirão. O movimento levou dois anos para Eclesial de Base da Igreja Católica. Finalmen- se concretizar; teve início em 1986, e seu obje- te, optaram pela ocupação, numa madrugada tivo central era resolver o problema de moradia de domingo, 9 de outubro de 1988, e cerca de para a população desses bairros. Numa região 400 famílias de baixa renda ocuparam a área repleta de espaços vazios (citam-se a cifra de particular escolhida, na região do Boqueirão. 400 alqueires ou 1.000 hectares), a população A estratégia de ação adotada pelo movimento, estava vivendo no que se pode considerar uma de ocupar a área sem prévia divulgação e na nova modalidade de moradia, fruto do deses- madrugada de um final de semana prolongado pero: os cortiços da periferia. (10 de outubro era feriado), impediu que me- O momento da conjuntura política e didas policiais fossem tomadas no sentido de econômica nacional era o do início dos planos expulsar os ocupantes com base no flagrante, econômicos. O Plano Cruzado, criado em feve- que se justifica até 24 horas após o fato ocor- reiro de 1986, começou a desmoronar no final rido. Assim, ninguém deveria saber o local... desse mesmo ano e início de 1987: os preços, só mesmo a coordenação do movimento pela moradia. Nos dias posteriores a 9 de outubro, a imprensa não pôde compreender, ou não quis compreender, a dinâmica da ocupação. Os jornais registravam apenas que, a cada noite, inclusive dos aluguéis, descongelaram e os salários não acompanharam o ritmo, sofrendo perdas. Em junho de 1987, foi substituído pelo chamado Plano Bresser, que registrou uma inflação inicial de 3,05% em julho de 1987, mas Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 245 Celene Tonella aumentava o número de famílias. Por exemplo, No dia 24 de outubro de 1988, o prefeito no dia 12 de outubro foi noticiada a presença Roberto Requião, do PMDB, deu ordem para de 600 famílias. O afluxo de famílias para a que se evitasse, a qualquer custo, o despejo área atingiu uma dimensão tal que extrapolou das famílias que ocuparam o terreno e que a em muito as expectativas daqueles que se pre- diretoria de Alternativas Habitacionais da Se- pararam longamente para o acontecimento. No cretaria de Desenvolvimento Social fizesse jus total, foram oito levas de ocupação, chegando ao nome, ou seja, estudasse alternativas à si- a ocupar a totalidade da área de 441.000 m2. tuação (Tonella, 1997) Após a perda de controle de entrada das Em reunião na Secretaria, com a pre- famílias, começou um processo interno de or- sença de representantes dos ocupantes, dos ganização. Dez dias depois, o acampamento 15 proprietários, da prefeitura e de líderes contava com mais de 10 mil pessoas divididas de partidos na Câmara de Vereadores, ficou em oito grupos. Dos oito grupos formados, acertado um período de 12 dias para se achar cada um tinha de 100 a 380 famílias e cada uma solução para os acampados. As soluções, grupo elegeu um coordenador para cada vinte no momento, passavam pela possibilidade de famílias. O grupo manteve um escritório pa- transferência das famílias para outros terrenos ra centralizar as informações e, para evitar o da Cohab, pela desapropriação, com ressarci- "inchamento" interno de cada grupo, foi feito mento, da área ocupada, ou ainda a compra um cadastramento com a relação de todos os direta pelos próprios ocupantes, desde que componentes. fosse viável ao seu baixo padrão de vida. A prática da democracia interna foi outro Ocupações posteriores ocorreram próxi- fator importante para a coesão dos acampa- mas à ocupação do Xapinhal: Jardim Natal, em dos. Dos oito grupos resultou a Coordenação dezembro de 1990, envolvendo 540 famílias; Geral do Acampamento do Xapinhal, com 54 Jardim Cristo Rei, em 25 de novembro de 1990, membros. As decisões mais importantes eram envolvendo um número aproximado de 490 tomadas em Assembleia Geral pela maioria famílias. Em 23 de agosto de 1991, ocorreu a dos acampados. A partir desse momento de ocupação da Vila Osternak por cerca de 400 luta foi criada a Associação Nossa Senhora da famílias. O episódio ficou conhecido como o da Luta. II Ocupação do Xapinhal, pois foi organizado O processo de negociação para a ten- pela Associação do Xapinhal (Tonella, 2005). tativa de retirada dos ocupantes da área teve Outro movimento de grande envergadu- início dois dias depois, com reuniões marcadas ra foi a ocupação da Ferrovila, em setembro na Cohab, Prefeitura e com o governo do esta- de 1991. Ele também imprimiu mudanças de- do. Uma delas ocorreu na Secretaria Municipal finitivas no cenário urbanístico curitibano. No de Desenvolvimento Social entre dois proprie- início de 1991, o movimento popular tomou a tários e os advogados dos ocupantes. No iní- decisão de cobrar a promessa feita em campa- cio, não se sabia ao certo o número de proprie- nha de um lote para cada família, dessa vez tários da vasta área, a imprensa falou em nove coordenado pela entidade denominada União e, mais tarde, confirmou-se o número de 15. Geral dos Bairros. 246 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba Foi no bojo de toda a agitação de co- bairro Portão. As autoridades, principalmente brança das promessas de campanha que as com o intuito de dar satisfação à opinião públi- entidades congregadas em torno da União ca, viram-se obrigadas a reagir, nem que fosse Geral dos Bairros começaram a voltar os olhos em nível de discurso. O pedido de reintegração para o espaço da Ferrovila, terreno localizado de posse foi feito pelos proprietários logo após na parte sul da cidade, que pertencia à Rede a ocupação, em 10 de outubro de 1991, mas os Ferroviária Federal, que, por sua vez, o repas- esforços dos oficiais de justiça foram em vão. sou à prefeitura na época da gestão de Rober- Em 12 dezembro, o juiz concedeu nova liminar, to Requião. Esse espaço foi fruto de cuidadoso com reforço policial, e, também dessa vez, a planejamento por parte do IPPUC no sentido expulsão não se efetivou. de transformá-lo em área habitacional. O pro- As cidades, à medida que cresciam e jeto inicial recebeu o nome de Moradias Eixo atraíam pessoas de fora, foram criando meca- da Rede. Até 1991, o espaço estava quase que nismos de exclusão social, diferentes a cada completamente abandonado, mas a Cohab época, mas num continuum baseado na opo- estava iniciando um programa de habitação sição cidade legal/cidade clandestina (Rolnik, envolvendo as empresas localizadas no eixo 1990). No processo que teve como palco a ci- da rede, que consistia em "repassar, pratica- dade de Curitiba, a população pobre, que ficou mente a preço zero, terrenos para as empre- à margem das benesses advindas com o cres- sas construírem apartamentos para revender cimento planejado, colocou em xeque, no pe- a seus funcionários" (depoimento). A primeira ríodo de 1988-1992, ao mesmo tempo, o poder empresa a aceitar o negócio foi o Banco Ba- público, as elites econômicas, particularmente merindus, que construiu quatro conjuntos de o setor formado por especuladores imobiliários, apartamentos e, na época da ocupação, du- e a racionalidade técnica do planejamento, ca- zentas unidades já haviam sido entregues aos pitaneada por Lerner e os técnicos do IPPUC. seus funcionários, duzentas outras estavam em Contradições urbanas não explicam, por negociação; e, ainda, a empresa Ico Comercial si só, questões específicas. Os movimentos sur- já havia pago pela fração do terreno que se- giram porque catalisaram, de forma singular, ria por ela financiado. A ocupação ocorreu no experiências e carências cujo resultado final foi feriado de 7 de Setembro e os jornais tiveram o conflito seguido de negociação. As ocupa- conhecimento em seguida: "Invasão. 3.500 fa- ções provocaram impacto no traçado urbano mílias ocupam 5 áreas de Curitiba" ( O Estado do Paraná, 8/9/91, p. 16). A ocupação adquiriu visibilidade e foi motivo de grande atenção por parte da imprensa, pois não foi concentrada num bairro periférico, a ponto de não incomodar o ritmo cotidiano da metrópole, pelo contrário, ela atravessou de forma longitudinal 14 Km de cidade, sem excluir bairros mais estruturados, como o caso do curitibano e forçaram mudanças de atitudes Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 por parte das autoridades no trato com a população organizada. Os episódios envolvendo, muitas vezes, milhares de pessoas, impediram a ação de forças repressivas. Ocupações de terrenos urbanos sempre ocorreram, a diferença está no tempo e na forma da ação. Essa afirmação é constatável pela grande mobilização da imprensa em torno dos acontecimentos e pela 247 Celene Tonella rapidez das autoridades em tentar "solucionar condições de vida. As respostas se equivalem e o caso", ao menos em nível dos discursos. totalizam 88,1%. Na busca de solução do problema de Forçada pelas circunstâncias, a Prefeitu- moradia, inúmeras forças agiram em concerto ra Municipal de Curitiba, no mês de setembro para fazer o movimento caminhar – partidos, de 1991, o mesmo da ocupação da Ferrovila, igreja, associações. A partir do fortalecimento lançou o projeto do Bairro Novo, que previa a desses movimentos, foi inaugurado um novo construção imediata de milhares de residên- patamar de negociações com os órgãos públi- cias populares. A manchete do jornal dizia: cos. Um exemplo contundente dessa afirma- "Lerner desapropria uma área para atender 30 ção foi o avanço ocorrido em Curitiba no que mil famílias carentes". O prefeito assinou o De- diz respeito à participação das entidades re- creto Municipal n. 536, pelo qual desapropriou presentativas na elaboração de critérios para a uma área como sendo de interesse social na inscrição na Cohab e na negociação e escolha região sul, no Boqueirão. Ele negociou os ter- de lotes por meio do Projeto Lote Povo. Conta, renos com 25 grandes proprietários, avaliados nessa relação, o nível de preparo dos compo- à época em Cr$300 milhões ( Gazeta do Povo, nentes do movimento que, ao longo de diver- 25/9/91). O projeto pretendia atender a 10 mil sas lutas, foram acumulando experiência em famílias imediatamente. Falar no atendimento negociações com as autoridades e dominando a 30 mil famílias significava resolver o proble- o saber especializado no campo do urbanismo. ma de habitação em Curitiba, se efetivamente O perfil de renda familiar dessa popu- concretizado, já que as ocupações anteriores lação foi reunido por meio de levantamento envolveram um número aproximado de 15 efetuado pela Cohab-CT em período posterior, mil famílias. A soma resultava exatamente no 1991, com dados mais minuciosos. A pesquisa número de famílias que estava à espera de lo- abrangeu 900 famílias. No que diz respeito à tes da Cohab. A promessa e o início de obras renda familiar, o resultado foi a concentração arrefeceu um pouco o processo de ocupação de renda entre menos de um salário mínimo desencadeado, mas não bastou para eliminar (6,3%), de um a dois salários (32,6%), de 2 o problema fundiário na capital do estado. a 3 salários (29,1%), e de 3 a 4 salários 14% Ocupações continuaram a ocorrer. (Cohab-CT, 1991). Em 8 de janeiro de 1993, foi instalada, Finalmente, eis alguns dados que valem na Câmara Municipal de Curitiba, uma Co- a pena registrar para se aquilatarem as expec- missão Parlamentar de Inquérito para apurar tativas das pessoas acampadas em relação à os responsáveis pelas "invasões" de terrenos cidade. A maioria, 541 famílias, ou 60,11%, em Curitiba e região metropolitana – CPI das residia em Curitiba havia mais de 4 anos e me- Invasões –, mas o ponto nodal continuava nos de 5, 37,42% estavam há menos de 4 anos a ser o caso Ferrovila. A polêmica girava em e apenas 2,47% estavam há mais de 5 anos. torno de quais pessoas eram as responsáveis Quando arguidas sobre as motivações que as pela ocupação da Ferrovila. Vereadores liga- fizeram optar pela imigração, responderam: a dos ao Partido dos Trabalhadores e ao PMDB, procura do emprego ou a busca de melhores juntamente com o presidente da União Geral 248 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba dos Bairros, foram acusados de serem os men- o que consideravam uma armadilha. Todavia, tores intelectuais do episódio. por caminhos tortuosos, que passaram, inclusi- Só foi possível compreender os acontecimentos que envolveram a CPI pelos jornais ve, pelo providencial desaparecimento do relatório da CPI, a questão foi em parte resolvida. e por meio de depoimentos, pois, segundo o presidente da Comissão, o então vereador Mauro Moraes, o relatório havia desaparecido. O episódio não eliminou a questão e, em 5 de outubro de 1993, foi proposto um Pacto de A persistência das ocupações urbanas Cooperação Social a partir desta mesma CPI: O ano de 2008 fechou com a ação violenta [...] esta Comissão concluiu pela importância de apresentar à sociedade curitibana um Pacto compromissório entre várias forças sociais de nossa sociedade local, com vistas ao encaminhamento de soluções concretas ao problema de moradia (Câmara Municipal de Curitiba, s/d). de reintegração de posse no bairro do Campo Comprido. Em 24 de outubro foram desalojadas 1.500 famílias (cerca de 6 mil pessoas) que ocuparam a área em setembro do mesmo ano, terreno de propriedade particular da Varuna Empreendimentos Imobiliários (Végas, 2008). A força policial mobilizada para a situação se Segundo a minuta do Pacto, em sua cláu- mostrou extremamente desproporcional. Se- sula primeira, participariam representantes das gundo a imprensa, mil integrantes da tropa de seguintes instituições: 1) Câmara Municipal de choque, da cavalaria e do 13º. Batalhão da Po- Curitiba; 2) Cohab-CT: 3) Líderes de Partidos lícia Militar (PM) estiveram na ação e usaram Políticos; 4) Vereadores; 5) Associações de bombas de efeito moral e balas de borracha. Moradores; 6) Federação da Associação de Os moradores montaram barricadas e Moradores; 7) Representante da Associação colocaram fogo em pneus para evitar a deso- dos Inscritos na Cohab; 8) Centrais Sindicais; cupação. A ação violenta da força policial e o 9) Cúria Metropolitana; 10) Ordem dos Advo- resultado de 3 pessoas feridas, inclusive um gados do Brasil; 11) Polícia Militar do Paraná; profissional da imprensa, e o afastamento do 12) Copel; 13) Sanepar. coronel da polícia militar contribuíram para Chama a atenção a ausência de repre- publiscizar o que seria a ponta do iceberg do sentantes dos proprietários fundiários. Pode- conflito fundiário em Curitiba. Tal afirmação é se especular que os proponentes do pacto con- validada pela fala do Secretário de Segurança sideravam que qualquer solução que cessasse Pública do governo Requião: as ocupações beneficiaria imediatamente os proprietários. De qualquer forma, a proposta não se concretizou nesses termos e como queria o presidente da Comissão. Representantes do Partido dos Trabalhadores e do movimento popular não quiseram assinar um pacto social, Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 [...] a conduta da polícia foi inadmissível e injustificável. Nos seis anos que estou como secretário de segurança já foram realizadas 230 reintegrações de posse e nenhuma delas foi tão violenta como a última. (Végas, 2008, p. 1) 249 Celene Tonella O próprio secretário não descartou a São exemplos que, somados aos dados violência usada, já que afirmou que as outras listados abaixo, contribuem para compor um reintegrações de posse “não foram tão violen- quadro de extrema precariedade e urgência tas” (ibid.). O local palco dos acontecimentos na implementação de política habitacional em carrega um histórico de disputa pelo espa- Curitiba. ço urbano. Campo Comprido já fora local de Segundo dados atualizados pela Cohab- ocupação em 1993, com 586 moradias instala- CT, Curitiba conta com 302 ocupações irregu- das em área irregular. lares.5 Os dados acima apontam o crescente Em agosto de 2007, ocorreu outra ação número de famílias morando em locais ina- de despejo em um terreno de 220 m², localiza- dequados, sendo que 13 mil vivendo em área do na Vila Osternack, no bairro Sítio Cercado. de risco. Somem aos dados os 87 loteamentos A ocupação ocorreu para a construção da sede clandestinos e 56 áreas do Prolocar (programa da Associação dos Moradores do Sambaqui. A de assentamento executado pela Prefeitura em desocupação envolveu ação violenta por parte meados da década de 1980, onde as famílias da Guarda Municipal. A ONG Terra de Direitos permanecem com um documento precário). e a União Nacional por Moradia Popular enca- O número de pessoas nas 397 áreas levan- minharam uma denúncia contra a Prefeitura de tadas é de 241.014 ou 13,4% de um total de Curitiba para a Organização das Nações Uni- 1.797.408 (estimativa de 2007) da população das (ONU), por violação dos direitos humanos. de Curitiba. Quadro 1 – Ocupações irregulares em Curitiba por ano, domicílios e número de habitantes Anos Domicílios Habitantes 1996 32.094 129.212 2000 37.483 144.432 2001 38.808 148.140 2002 40.065 151.604 2003 41.337 155.126 2004 42.610 158.647 2005 43.882 162.169 2006 45.155 165.690 2007 46.428 169.174 2008 47.733 172.773 2009 55.460 207.652 Dados de 1996-2000 são Censos Demográficos. Dados de 2001 a 2009 são estimativas. Fonte: IPPUC (www.ippuc.org.br). 250 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba A lista de inscritos na Cohab-CT é de 60 moradia seria em torno de 40 mil reais, o que mil famílias à espera de moradia. Até mesmo tornaria inviável o pagamento, sem subsídios, esse direito de se inscrever como postulante a para a população na faixa de zero a três salá- uma moradia por meio dos programas gover- rios-mínimos.6 namentais é retirado de parte dos trabalhado- Trata-se de um constrangimento que res, desses desfiliados sociais, nos termos de perpassa toda a política habitacional brasilei- Castel. Segundo a coordenação do Movimento ra e que limita as iniciativas do Ministério das Nacional da União por Moradia Popular, “mui- Cidades. O agente e principal operador dos ta gente não consegue se inscrever na fila da recursos do FGTS, a Caixa Econômica Fede- COHAB porque não atinge a renda mínima ral, é subordinada ao Ministério da Fazenda necessária” (Wroniski, 2008). Segundo infor- e age como um banco que é (Bonduki, 2008). mações de técnicos da Cohab-CT, o tempo de Os programas habitacionais estão disponíveis espera na fila varia e as famílias com renda desde que o interessado possa comprovar ren- entre três e seis salários são atendidas mais ra- da e, mesmo que o postulante tenha condições pidamente porque há programas habitacionais de comprovação de renda, não há programas existentes para esse perfil de renda, o custo da que atendam a faixa até três salários. Gráfico 1 – Renda Média dos Responsáveis por Domicílios em Curitiba, RMC, Paraná e Brasil – 2007 Fonte: IBGE/Censo Demográfico – 2000. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 251 Celene Tonella Curitiba se destaca em termos de renda 25,3%, à classe D, 5,94% pertence à classe E média se comparada à renda de sua Região e 6,2% aparece sem rendimentos. Os números Metropolitana e com o Brasil, conforme Grá- estabelecem um paralelo entre a renda e os fico 1. A média elevada não significa a ine- habitantes de moradias precárias: a estimati- xistência de bolsões de pobreza. Em relação va é de 13,4% da população morando em área à distribuição de renda segundo as classes com algum problema e, a soma das classes E sociais, observa-se que 15,2% corresponde à com os “sem rendimentos”, a percentagem de classe A; 29% à classe B; 18,4%, à classe C, 12,1% aproxima-se desse número. Gráfico 2 – Estimativa da distribuição de renda, por classes, em Curitiba Fontes: IBGE/Censo Demográfico - 2000; IPPUC. Gráfico 3 – Taxa média anual de crescimento populacional – 1970 a 2007 Fonte: IBGE, 2007. Elaboração: Agência Curitiba de Desenvolvimento S.A./Informações Socioeconômicas www.agencia.curitiba.gov.br 252 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba Curitiba é hoje a sétima cidade mais uma população de 2,42 milhões de habitan- populosa do Brasil, com crescimento de 1,7% tes. A estratégia adotada ocorreu no sentido entre 2007 e 2008, o que soma, em um ano, de consolidar uma economia competitiva. mais 30 mil pessoas, ainda que esteja ocorren- Grandes empresas do setor automobilístico, do um decréscimo nas taxas de crescimento, como Volvo, Renault, Peugeot e Audi, foram conforme o Gráfico 3. Há uma dinâmica local atraídas com incentivos fiscais para a região. que não está separada da dinâmica metropoli- A expectativa de oportunidades de emprego tana, que, por sua vez, aproxima-se de outras criadas pela instalação dessas indústrias atraiu regiões metropolitanas: Rio de Janeiro, São milhares de pessoas, que acabam povoando a Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador, capital e as regiões próximas. A partir de 1996, Fortaleza, Belém e Recife. Essas nove regiões o governo estadual passou a oferecer genero- do Brasil têm uma dura realidade em comum: sos incentivos fiscais para favorecer o desloca- crescimento desordenado, violência, bolsões mento industrial. A definição para a instalação de extrema pobreza e desemprego. Ribeiro foram as cidades do entorno da capital. O Pa- aponta para a situação de ingovernabilidade raná passou a abrigar, em pouco tempo, um das metrópoles brasileiras, pautada nos itens expressivo polo automobilístico, com as novas referentes: a) ao tamanho e complexidade plantas da Volkswagen-Audi, da Renault e da dos problemas; b) do quadro de fragmenta- Chrysler (Dulci, 2002). O governo do Paraná ção institucional e desinteresse político e c) a associou-se à Renaut, em 1996, responsabili- inexistência de valores que impulsionem ações zando-se por 45% do total dos investimentos. coletivas (2004). Mas o que atrai enormes con- O governo ofereceu a infraestrutura, além da tingentes populacionais para esses polos? O malha rodoviária e ferroviária, aeroporto in- desenvolvimento industrial e o avanço tecnoló- ternacional e o Porto de Paranaguá. A cidade gico dos meios de transporte e das comunica- mercadoria funcionou novamente, entrou no ções são alguns dos motivos. pacote de atrativos a boa qualidade de vida e Esse é o lado perverso do modelo do city a disponibilidade de mão-de-obra qualificada. marketing adotado globalmente. Segundo Sanchez, a partir dos anos 1990, as cidades passaram a ser “vendidas” de modo semelhante e, sob a égide do poder político local, “perfila-se através dos processos de reestruturação urbana (como exigência da economia competitiva) e através da construção de imagem para vendê-la” (2001, p. 32). Acoplada ao movimento de construção de uma imagem de cidade vendável, ocorreu outro movimento, por parte do governo estadual, mas voltado para a Região Metropolitana de Curitiba, formada por 25 municípios, com Quando inaugurada, em 1998, gerou 2 mil em- Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 pregos (Guedes e Faria, 2002). A Chrysler inaugurou sua fábrica em julho de 1998, em Campo Largo, município da RMC. O governo ofereceu isenção de impostos e tarifas por dez anos , além de fornecer infraestrutura de acesso e recursos do Fundo Estadual para o Desenvolvimento Econômico. A mídia local, segundo Guedes e Faria (ibid.) divulgou que o governo do estado investiu o dobro do valor do investido pela Chrysler. O argumento tão utilizado pelas autoridades de geração de postos de trabalho, 400 no total, pelo 253 Celene Tonella montante, não justificava tal investimento. A um grande contingente de pessoas dos seto- imprensa, profeticamente, avaliou que, em res hegemônicos da economia (Bógus, s/d, vinte anos, a fábrica, obsoleta em termos tec- pp. 19-20). nológicos, poderia ser fechada e que outro país anfitrião seria inevitavelmente selecionado para a nova planta. Muito antes do profetizado, em 2001, a Chrysler anunciou o fechamento da fábrica e assumiu débitos ficais de aproxima- O que querem os movimentos de luta por moradia? damente 55 milhões de dólares (ibid.). Coerente com a política de atração de Nos moldes do que ocorreu em 1992, a Câ- indústrias do setor automobilístico e se colo- mara Municipal de Curitiba teve requerimento cando com um dos principais protagonistas da para a instalação da Comissão Parlamentar de “guerra fiscal” do período, o governo do es- Inquérito (CPI). O vereador que encaminhou tado doou para a Audi, em 1997, um terreno, o pedido afirmou que “tem algo estranho por também na RMC. A fábrica foi inaugurada em trás dessas invasões” e que “temos que pensar 1999 e gerou cerca de 3,5 mil empregos dire- na segurança de quem vive nessas áreas. Ge- tos. Em 2001, anunciou o fechamento de seu ralmente há marginais que se infiltram neste terceiro turno e iniciou um programa de demis- meio”.7 Outro vereador ponderou que é fruto sões voluntárias, que envolveu 605 emprega- da “verdadeira situação de miséria por que dos (ibid.). passa a população brasileira (...) mas que, por A reflexão central em torno da opção de vezes, tais ocupações têm outros interesse, o atrair indústrias para a RMC é que indústrias que precisa ser averiguado pela CPI”.8 Os ele- de alta tecnologia não trazem como principal mentos de criminalização da ação popular e de vantagem a geração de emprego e não absor- interesses não legítimos (entendam-se interes- vem trabalhadores com baixa qualificação. ses de algum grupo político) estão presentes Elevado número de trabalhadores e baixa qua- nas falas dos edis. São reações bastante re- lificação são os dois elementos-chave a serem correntes diante de tais fatos, e o movimento valorizados em uma situação em que os ges- popular esboçou reações à atitude da Câmara tores investem em redução dos desequilíbrios de Vereadores. sociais. Conforme aponta Bógus (s/d), citando Em março de 2007, um conjunto de enti- Castel (1997) e Preteceille (1994), após a crise dades lançou em Curitiba o documento “Nota do fordismo, as novas formas de produção têm pública dos movimentos sociais pela moradia características excludentes e apresentam-se e contra a criminalização da luta pela mora- incapazes de gerar empregos que correspon- dia” (Conam, 2007). A nota manifesta preo- dam aos quesitos de qualidade e quantidade cupação a respeito de como a questão da mo- da força-de-trabalho: em países periféricos radia está sendo tratada pela imprensa e pela como o Brasil, com baixos índices de qualifica- bancada governista da Câmara Municipal. O ção de mão-de-obra, tem emergido uma nova documento lista os pontos de reivindicações forma de exclusão que alija, definitivamente, do movimento: 1) o fim dos despejos forçados; 254 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba 2) o fim da criminalização dos movimentos so- “novas lentes analíticas passaram a iluminar ciais e das pessoas que necessitam de mora- outro tipo de atores como alicerces da expan- dia; 3) assinatura do termo de compromisso são democrática” (2004, p. 36). Apontam a “Curitiba Livre de Despejos” pela Prefeitura emergência de entidades articuladoras, como de Curitiba e Estado do Paraná, apresentada ONGs e Redes e movimentos sociais de cará- durante missão da Comissão de Especialistas ter mais amplo, com caráter redistributivo, sobre Despejos Forçados da AGFE/ONU; 4) pelo lado das transformações. No caso em te- políticas habitacionais inclusivas, para todos la, correspondem a entidades articuladoras a os níveis de renda e especialmente para po- ONG Terra de Direitos, Ambiens Cooperativa, a pulação de renda entre 0 e 3 salários mínimos; Coordenação dos Movimentos Sociais do Para- 5) uma política de ocupação dos vazios urba- ná e a Marcha Mundial das Mulheres. Quanto nos de Curitiba destinados à especulação; 6) a entidades de movimentos sociais de caráter aplicação dos instrumentos jurídicos previs- redistributivo: Confederação Nacional de As- tos no Plano Diretor de Curitiba como IPTU sociações de Moradores (Conam), Central de progressivo, regulamentação das Zonas de Movimentos Populares (CNP) União Nacional Interesse Social, regularização fundiária e ur- de Moradia Popular (UNMP) e Movimento Na- banização de ocupações, com participação da cional de Luta pela Moradia (MNLM) sociedade; 7) a regulamentação do Conselho Se, de um lado, o legislativo municipal Municipal da Cidade de Curitiba e do Conse- tende a criminalizar a luta por moradia, de ou- lho Estadual das Cidades, nos termos da Lei tro, há uma conjuntura nacional que desenha Estadual 15.229/2006; 8) a implementação uma política de habitação de interesse social. do Fundo Municipal de Habitação de Interes- No plano institucional, a criação do Ministério se Social; 9) a extinção imediata da “CPI das das Cidades, em 2003, significou mais um ga- invasões”; 10) um debate sobre déficit público nho para todos os segmentos envolvidos com de moradias e ação especulativa do mercado as lutas urbanas, pois, pela primeira vez, tem- imobiliário em Curitiba. se uma proposta de integração de todas as À diferença do período anterior, quando políticas urbanas, apontando para a superação o movimento popular por moradia foi condu- do recorte setorial da habitação, do saneamen- zido por entidades organizadas e de abran- to, dos transportes e mobilidade urbana para gência local, nessa nova fase, o movimento integrá-los, levando em consideração o uso e popular assume características, já apontadas a ocupação do solo. A estrutura do Ministério por Lavalle, Castelo e Bichir, de ser conduzido das Cidades é apontada hoje como uma novi- pelas entidades articuladoras e movimentos dade, não só em território brasileiro mas em sociais de caráter redistributivo. O autor tra- toda a América Latina. Sua importância au- balha com as continuidades e transformações menta quando se constata que, no passado re- ocorridas no campo dos movimentos sociais a cente, a marca da política urbana foi ausência partir dos anos de 1990. Defende que os movi- de planejamento e desarticulação. mentos sociais continuaram a ocupar palpável Conforme definia o texto base do Fó- centralidade na ação coletiva, apesar de que rum Nacional pela Reforma Urbana, para a II Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 255 Celene Tonella Conferência das Cidades (2005), o momento é o Plano Nacional da Habitação (Planhab). O de construção de uma Política Nacional de De- Plano soma-se a um conjunto de ações e me- senvolvimento Urbano. A política pressupõe didas de natureza institucional, econômica e um entendimento do processo de urbanização jurídica que têm por objetivo dar corpo e con- brasileira permeado por distorções propícias a sistência ao Sistema Nacional de Habitação. um modelo de acumulação capitalista centra- No ano de 2007, ocorreu a adesão de estados da na desigualdade e que se transforma em e municípios ao SNHIS. A adesão é condição mecanismos de espoliação urbana. Deverá, necessária para o fortalecimento da nova or- necessariamente, apresentar uma proposta ganização institucional do setor, tendo como de superação dos desequilíbrios em diferentes compromisso a elaboração de seus Planos de patamares e permitir o acesso à cidade, levan- Habitação de Interesse Social, além da cons- do-se em conta as especificidades de gênero, tituição do Fundo de Habitação de Interesse raça, etnia e de classe. A eficácia da proposta Social e seu Conselho Gestor. somente terá sucesso se for tratada como uma A qualidade das moradias existentes pa- proposição em diálogo com os movimentos ra a população com essa faixa de renda apre- sociais e a sociedade de maneira geral. senta inúmeras deficiências: algum tipo de Um divisor de águas na luta por moradias carência de padrão construtivo, situação fun- de interesse social foi a aprovação, pelo Sena- diária, acesso aos serviços e equipamentos ur- do, em 2005, do Projeto de Lei 2.710/92, de banos, entre outros. A ausência de infraestru- iniciativa popular, que criou o Sistema Nacio- tura urbana e saneamento ambiental é o maior nal de Habitação de Interesse Popular. O pro- problema e envolve 10,2 milhões de moradias, jeto se transformou na Lei Federal 11.124/05, ou seja, 32,1% do total de domicílios urbanos que instituiu o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS/ FNHIS) e seu Conselho Gestor, criando as condições legais e institucionais para a consolidação do setor habitacional como política de Estado. Esse projeto tramitou por 14 anos, mas, apesar da demora, significou uma vitória, pois, segundo Fleury (2006), vigorou [...] o entendimento de que o projeto originado de iniciativa popular constituiria exceção ao princípio de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, sendo o projeto sancionado pelo Presidente da República. duráveis do país têm pelo menos uma carência de infraestrutura (água, esgoto, coleta de lixo e energia elétrica), sendo 60,3% nas faixas de renda de até 3 salários mínimos. A implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no início de 2007, causou apreensão, já que foi uma iniciativa do executivo federal, mas pouco articulada aos planejamentos das pastas envolvidas. O Programa busca dinamizar a economia e pressupõe uma série de investimentos em infraestrutura (energia, rodovias, saneamento básico, habitação). Saneamento e habitação (urbanização de assentamentos precários) foram itens Já como resultado do novo sistema, a Secretaria Nacional de Habitação estruturou 256 privilegiados, havendo rápida canalização de recursos para estados e municípios. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba Mapa 1 – Bacias onde foram iniciadas obras do PAC Fonte: Cohab-CT; Gazeta do Povo, de 15/6/08. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 257 Celene Tonella O Programa Morar em Curitiba – Plano de Pavimentação e Drenagem (de 31 de maio bres, aproxima-a dos números negativos que caracterizam a vida metropolitana brasileira. de 2009), com a relação de obras a serem Prover o item habitação social é função executadas pela Cohab-CT, prevê atuação em do poder público e este, em Curitiba, ao longo 59 áreas irregulares da cidade e atendimento dos anos, foi incapaz de apresentar soluções a 10.232 mil famílias. São recursos do municí- eficazes ao movimento popular. Em 1992, dian- pio e do governo federal As famílias morando te da onda de ocupações, Lerner apresentou em áreas de risco terão prioridade. Seis bacias como solução o Bairro Novo, que pretendia ze- hidrográficas serão alcançadas pelo progra- rar a fila daqueles que buscavam por moradia. ma: Rio Belém, Rio Iguaçu, Rio Vila Formosa, Quase duas décadas depois, o problema 9 não foi solucionado, os dois momentos abor- O levantamento citado teve como recor- dados, a primeira onda de ocupações entre te as seis bacias hidrográficas que atravessam 1988 e 1992 e aquelas ocorridas a partir de Curitiba. O número estimado de moradores 2006, possuem componentes que se asseme- nessas áreas de risco, próximas a rios e cór- lham e persistem no tempo. Comparar momen- regos, é de 50.574 pessoas. O mapa contém tos distintos cronologicamente contribui para as áreas em que parte da população será re- um melhor entendimento da lógica a que está locada. A maioria dos moradores deve ficar sujeita a questão urbana no Brasil. Ribeirão dos Padilha, Rio Atuba e Rio Barigui. no mesmo terreno, recebendo título de posse. Diante da ausência de políticas habita- Quem vive em área de risco será transferido cionais eficazes para os trabalhadores pobres, para conjuntos habitacionais. notadamente daqueles que se encontram na faixa salarial entre zero e três salários mínimos, a opção foram as ocupações de terrenos Considerações finais urbanos. Elas ocorreram, em grande parte, apoiadas pelo movimento popular, seja por entidades de caráter mais local, como associa- O artigo apontou semelhanças na forma do ções de moradores ou por aquelas entidades tratamento da questão urbana em dois perío- articuladoras, como ONGs e Redes e movimen- dos distintos da trajetória curitibana, o período tos sociais de caráter mais amplo, com caráter compreendido entre 1988 e 1992 e um mais redistributivo, como demonstrado. recente, com processos ocorridos a partir de 2006. Outro paralelo entre os dois períodos é a atitude por parte de alguns segmentos e, mais A face mais conhecida de Curitiba, de expressivamente, por parte de representantes uma metrópole com excelente qualidade de da Câmara Municipal que persistem na crimi- vida e com projetos urbanísticos arrojados, faz nalização dos trabalhadores pobres, ao ins- com que se diferencie positivamente em rela- taurarem CPIs para o combate ao que denomi- ção a outras metrópoles brasileiras. Entretan- nam de “indústria de invasões”. Essa forma de to, os aspectos aqui tratados, vinculados à pre- olhar a movimentação das camadas populares cariedade habitacional dos trabalhadores po- não é privilégio das elites curitibanas. Ainda 258 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Duas décadas de ocupações urbanas em Curitiba que comparando períodos distintos, Ribeiro pondera: [...] podemos identificar semelhanças entre a questão urbana nesta virada do milênio e a do início do período republicano. Hoje, como naquela época, com efeito, as elites olham assustadas a cidade e identificam na sua suposta desordem a causa dos seus problemas sociais. Ontem a crise sanitária era a consequência dessa desordem. Hoje é a violência. Nos dois momentos, a desordem emana dos espaços das camadas populares e de suas práticas. Ontem, os cortiços. Hoje, as favelas e as periferias pobres das metrópoles. (2004, p. 17) O que se apresenta como novidade são as possibilidades de investimentos acelerados por programas governamentais de vulto como o PAC e o Minha Casa, Minha Vida. No caso do PAC, boa parte dos recursos está destinada para obras de infraestrutura para a produção, no entanto, setores como saneamento e habitação também foram privilegiados e dirigidos para a urbanização de assentamentos precários. A expectativa é que ocorra uma mudança significativa no processo de produção de habitação social não apenas em Curitiba e Região Metropolitana, mas no país como um todo. Celene Tonella Cientista social. Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil. [email protected] Notas (1) Roger Char er (1990) discute as concepções de utensilagem ou utensílios mentais. Similarmente, ferramentas mentais referem-se ao conjunto de instrumentos intelectuais – palavras, símbolos, conceitos, etc. (2) Há teóricos que entendem o conceito de exclusão social como inadequado, já que não aponta possibilidades de mudança, de mobilidade social. O sociólogo Robert Castel (1999), por exemplo, aponta como mais adequada a noção de “desfiliação social”. Essa percepção diz respeito a um processo que envolve indivíduos a vos e não a um lugar ocupado ou vazio na sociedade. Seu ponto de par da é a questão salarial, único meio pelo qual pode haver uma reversão no quadro de desfiliação a que um sujeito está subme do. Desfiliação não é necessariamente a ausência completa de inscrição do sujeito em estruturas portadoras de um sen do. (3) Os assentamentos precários são setores censitários classificados originalmente pelo IBGE (2000) como setores especiais de aglomerados subnormais, um grupo cons tuído por um mínimo de 51 domicílios (barracos, casas) ocupando terra de propriedade de terceiros (públicas ou privadas), geralmente dispostas de maneira densa e desordenada e carentes de serviços de infraestrutura essenciais, também designados assentamentos informais, “favelas”, “mocambos”, “alagados”. As áreas tratadas neste trabalho não coincidem necessariamente com os setores censitários do IBGE, muitas ocupações surgiram após a realização do censo demográfico. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 259 Celene Tonella (4) O ar go aponta para o período de 1981 a 1991, a ocorrência de: 8 programas de estabilização; 15 polí cas salariais; 54 controles de preços; 18 polí cas cambiais; 21 propostas de negociação da dívida externa; 11 índices diferentes de inflação; 5 congelamentos de preços e salários e 18 determinações para corte de gastos públicos. (5) A Região Metropolitana de Curi ba soma 800 ocupações irregulares. (6) Informações ob das em novembro de 2009. (7) Afirmação do vereador Tico Kuzma (PPS). Documento Reservado, 2007. (8) Afirmação do vereador Valdemir Soares (PR). Documento Reservado, 2007. (9) Para a Urbanização das Bacias e Produção Habitacional consta em documento do PAC – Paraná, recursos no montante de 150.000 milhões (Brasil). 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Texto recebido em 10/nov/2009 Texto aprovado em 15/mar/2010 262 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 239-262, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio: as periferias como campos de concentração a céu aberto Beyond the prison-building: peripheries as borderless concentration camps Acácio Augusto Resumo Os investimentos em políticas assistenciais que objetivam solucionar o chamado problema da “violência urbana” indicam uma via da configuração das periferias das grandes cidades ou das chamadas cidades globais como campos de concentração a céu aberto. Este artigo analisa um projeto de aplicação de medidas socioeducativas em meio aberto para os chamados adolescentes infratores como elastificação da prisão-prédio na composição desses campos de concentração em áreas consideradas de risco e/ou habitadas por jovens classificados como em situação de vulnerabilidade social. Interessa analisar o conceito sociológico de gueto, colocado por Wacquant, problematizando-o a partir da noção de campo de concentração a céu aberto proposta por Edson Passetti e da análise genealógica de Michel Foucault. Abstract Investments in assistential policies that aim to solve the so-called problem of “urban violence” indicate one form of the configuration of peripheries of major cities (or global cities): “borderless concentration camps”. This article analyses the program of application of socioeducational measures in open environments for the so-called adolescent offenders as an “elasticization” of the prison-building in the production of these concentration camps in areas considered of risk and/or inhabited by youngsters classified as “in situation of social vulnerability”. It is important to analyze the sociological concept of “ghetto”, presented by Wacquant, problematizing it through the notion of “borderless concentration camp” proposed by Edson Passetti and through the genealogical analysis developed by Michel Foucault. Palavras-chave: campo de concentração a céu aberto; prisão-prédio; polícia; abolicionismo penal; gueto. Keywords: borderless concentration camp; prison-building; police; penal abolitionism; ghetto. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Acácio Augusto Policiar e urbanizar é a mesma coisa. Michel Foucault Há uma afirmação de Foucault registra- para antecipar a ocorrência do que historica- da em 1975 em seu contundente estudo Vigiar mente se considera crime. Na atual sociedade e punir que indica uma inquietação que persiste quando, hoje, nos propomos problematizar a prisão e os encarceramentos: de controle (Deleuze, 1999; Passetti, 2003), a [...] há um século e meio que a prisão vem sempre sendo dada como seu próprio remédio ; a reativação das técnicas penitenciárias como a única maneira de reparar seu fracasso permanente; a realização do projeto corretivo como único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade. (2002, p. 223) prisão passa por mudanças em seu funcionamento que operam uma administração de sua agonia por meio de um processo de flexibilização de suas práticas austeras como maneira de perpetuar e aumentar sua ascendência sobre as pessoas. Contudo, essas metamorfoses não aconteceram especificamente em seu interior, estão ao lado, em baixo, em torno, justapostas; gravitam no entorno, em direção a uma centralidade que privilegia encarceramentos e Partir dessa inquietação colocada por uma vida controlada e moderada. Foucault implica questionar como a prisão A flexibilização das práticas discipli- ainda persiste, mesmo sendo possível o seu nares e de constituição de formas de prisão fim. Como essa instituição que é regularmente para além da prisão-prédio fica explícita ao alvo de críticas de todo tipo, vindas de todos enfrentar-se a atual formatação das periferias os lugares, segue existindo; é essa máquina como campos de concentração a céu aberto – de moer carne humana. Jornalistas, juristas, uma noção proposta por Edson Passetti (2003, advogados, sociólogos, políticos e politólo- 2006 e 2007). Essa noção permite uma aná- gos, psicólogos, enfim, quase todos elaboram lise do novo diagrama do espaço das cidades uma crítica, mais ou menos radical à prisão: na era dos controles siderais, a céu aberto. ela está superlotada, ela é desumana, ela não “A sociedade de controle policia em fluxos, recupera, é uma faculdade do crime, etc. Há pretendendo alcançar seguranças, obtendo uma insistência em criticá-la, e ela segue aí, confianças e disseminando tolerâncias” (Pas- impávida. Como? setti, 2006, p. 86). Dessa maneira, sufoca-se Para além de sua continuidade, a prisão a emergência do rebelde, do insurreto e as está acrescida de novas maneiras de controle de resistências, quando emergem, são fácil e condutas tidas como desviantes e de um inves- rapidamente capturadas. Uma prática política timento maciço em uma parcela da população que vê como transformadora e democrática 264 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio a participação nos controles plurais de quem considerados infratores que oscilam entre par- compõe esse novo campo de concentração: ticipar desses programas, servir aos chefes do atividades culturais e esportivas, acessos a de- narcotráfico e habitar instituições de reclusão terminadas áreas controlados por polícias co- como a Fundação Casa (Centro de Atendimen- munitárias, líderes comunitários e/ou agentes to Socioeducativo de Adolescentes), antiga Fe- do tráfico, escolas multiuso, atuação de ONGs, bem. Desta maneira, a crítica à prisão pode sair circulação regulada por bilhetes eletrônicos de uma retórica que alimenta e diversifica sua de transporte público/estatal, enfim, um le- continuidade, para colocar outros questiona- que infinito de opções que seduz e convoca os mentos diante da expansão das modalidades moradores de uma determinada região a não de cárcere em controles policiais das cidades. saírem do lugar, ou, caso saiam, regressarem o No interior dessas modulações de mais rápido possível após cumprir a jornada de encarceramentos estão as políticas sociais trabalho, que muitas vezes ocorre no mesmo de intervenção no espaço que operam um bairro que mora, em alguma ONG ou boca de chamado combate à violência urbana e à fumo e cocaína, ou ainda no bairro de bacanas criminalidade por meio de ações ambientais. ao lado da favela, que também tem seu acesso Desde seu início, ignoram que o termo violência controlado por câmeras e portarias de polícias urbana é apenas um produto do novo senso privadas. Enfim, controle policial da circulação comum penal, produzido pela exposição de dos fluxos de pessoas e valores materiais e intelectuais midiáticos que, em troca de uma imateriais para todo lado que se movimente. notoriedade fugaz, aceitam vir a público para O campo de concentração a céu aberto ratificar a fabricação de dados pré-pensados é um programa da sociedade de controle que em relatórios oficiais do governo (Wacquant, inclui tudo e mais um pouco, infratores ou não, 2001, pp. 52-65). Essas ações miram áreas perigosos ou não, sob o governo dos diretos consideradas de risco ou vulnerabilidade de minorias que não dispensa endurecimento social com projetos de urbanização de de penas, leis cada vez mais restritivas das favelas, policiamento de proximidade junto condutas, como a lei antifumo em São Paulo da comunidade e ações repressivas pontuais, e outros estados da federação, prisões de se- segundo as formulações da teoria da ecologia gurança máxima, como as RDMax combinadas criminal da Escola de Chicago. Historicamente, com penas alternativas, permissividades regu- essas ações estão relacionadas tanto ao ladas, dissimulações, controles eletrônicos e programa de tolerância zero , iniciado pela uma crença inquebrável em melhorias graduais prefeitura de Nova York, e depois exportado e parcimoniosas. Nesse sentido, o conceito como política criminal para Europa e América de gueto como espaço delimitado da cida- Latina (ibid), quanto ao projeto de pacificação de, proposto por Loïc Wacquant (2008), deve da cidade de Medelín, na Colômbia. ser problematizado diante da disseminação Essas intervenções no espaço urba- de políticas sociais administradas por ONGs, no privilegiam uma ação local que parta, financiadas por empresas privadas multina- sobretudo, das crianças e jovens no interior cionais e voltadas para o controle de jovens da comunidade como maneira de envolvê-los Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 265 Acácio Augusto em políticas sociais antes que “escorreguem” mesmo o projeto de urbanização das favelas para uma conduta tida como delituosa. Por cariocas, no interior do PAC (Plano de Acelera- isso interessam-se por associações de bairros, ção do Crescimento), do governo federal, sem paróquias de igrejas e ministérios protestantes esquecer os investimentos público-privados ou pentecostais, escolas estatais, como via de nos centros históricos das grandes cidades, acesso para promover atividades culturais e tomados pelos consumidores de crack : são laborais, fazendo com que as famílias se en- projetos de segurança pública e efetivação de volvam a partir de uma preocupação com seus ações policiais do Estado que buscam resso- filhos. As melhorias nas condições sociais, eco- nância na chamada sociedade civil. A combi- nômicas e educacionais dessas crianças e de nação entre assistência social, reurbanização suas famílias visam produzir a satisfação da de favelas ou de centros históricos e ação re- comunidade diante de sua condição de mora- pressiva policial dessa intervenção ambiental dia em determinado bairro ou região. Por fim, mostra que a polícia, repressiva ou assisten- espera-se a intervenção do Estado com proje- cial, é o agente privilegiado, pois o alvo é o tos de reforma urbana, recuperação de prédios controle da circulação dos fluxos. No entanto, e praças, saneamento básico e urbanização de esses planos policiais de assistência destina- favelas. Essas intervenções no campo assisten- dos às chamadas áreas de risco não são uma cial, educacional e de planejamento urbanísti- exclusividade da ação do Estado. Eles ocorrem co têm como objetivo dissuadir os moradores, precisamente como política das cidades que especialmente jovens, de cometer incivilidades, depende da ação de prefeituras, governos oferecendo alternativas para vida em bairros estaduais e federais, mas, sobretudo, do en- considerados de risco que podem, um dia, tor- volvimento da chamada sociedade civil seja narem-se seguros quando todos colaborarem. por meio de ONGs financiadas por grandes Por essa razão, para ser uma política criminal, empresas multinacionais, seja pelas inúmeras essas intervenções sociais devem estar lado maneiras de capturar, para exercício dos con- a lado com o policiamento local efetivo, para troles, os mesmo alvos que se busca controlar. o bem da cidade, da comunidade e dos seus Trata-se de uma política social que responde habitantes. aos que sofrem de melancolia do Estado de Assim, uma série de projetos assisten- Bem-Estar Social que investe cuidar, urbani- ciais e revitalização urbana que se multipli- zar, assistir, regular e gerir fluxos de pessoas e cam, voltados, direta ou indiretamente, para mercadorias, compondo tarefas que remetem o combate da violência, tomam, explícita ou à formação da polícia na Europa do século implicitamente, a teses da ecologia criminal, XVIII, como podemos acompanhar em Fou- atualizando o antigo sentido de polícia, ana- cault (2003; 2008), são atividades que devem lisado por Foucault (2007), como política so- ser desempenhadas por cidadãos e empresas cial. Considerando o modelo da cidade de Me- como expressão de sua responsabilidade so- delín na Colômbia, os projetos de urbanização cial e de sua conduta política orientada para de favelas – como o Cingapura da cidade São melhoria do ambiente e, consequentemente, Paulo ou o CDHU, do governo do estado, ou da vida no interior dele. 266 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio Gueto e prisão Em 2008, foi publicada, no Brasil, uma coletânea de artigos do sociólogo Loïc Wacquant que compõem o livro As duas faces do gueto (2008), que reúne os artigos publicados por ele ao longo do desenvolvimento de sua tese de doutorado sobre a vida dos boxeadores nos guetos estadunidenses. Nesses escritos, Wacquant procura desmitificar o uso da palavra gueto, estabelecendo-o como conceito sociológico que remonta à constituição dos guetos judeus na Europa e à atual organização socioespacial dos guetos negros estadunidenses. Nesse sentido, gueto designa áreas de segregação etno-racial imposta, que funcionam para “confinar e controlar”, ao mesmo tempo em que se tornam, para seus habitantes, “um instrumento de integração e proteção”. Na formulação de Wacquant, [...] os guetos são o produto de uma dialética móvel e tensa entre hostilidade externa e afinidade interna, que se traduz ao nível da consciência coletiva pela ambivalência. (2008, p. 82) usa do confinamento que é análogo ao de uma instituição total que desindividualiza e estigmatiza. Uma face das faces do gueto é sua função de contenção de um determinado contingente da população, previamente selecionado por estigma social que se apoia em uma formulação étnica dos potencialmente perigosos se deixados livres. Não enfatizo, aqui, o debate com Wacquant sobre a constituição desse guetoprisão, mas pretendo estabelecer uma conversação acerca dos modos de punir e controlar pessoas indesejáveis fora da prisão, encarando-os como constitutivos de uma estratégia de disseminação das modalidades de cárcere que ultrapassam e convivem com a prisão-prédio. Para além da formulação do conceito de gueto, perguntar se o que ocorre, nessa proximidade entre gueto prisão, é apenas uma analogia de áreas da cidade com uma instituição total ou o anúncio de uma outra configuração, um outro diagrama, de certas áreas da cidade. Nesse sentido, questionar se a cidade hoje se configura a partir de uma pluralidade de campos de concentração a céu aberto. Desde Foucault, podemos afirmar que a prisão não é apenas um prédio ou uma insti- E tuição destinada a castigar e corrigir desvia[...] a intensificação desenfreada de sua dinâmica excludente ganharia se fosse estudado não por analogia com os cortiços urbanos, os bairros populares ou os enclaves de imigrantes, mas com as reservas, os campos de refugiados e a prisão, enquanto representante de uma categoria mais geral de instituições de contenção de grupos despossuídos e desonrados. (Ibid., p. 91) dos, mas uma política. Uma política de defesa da sociedade contra o que ela não suporta. Por paradoxal possa parecer, essa política visa eliminar e retirar de circulação o lixo da sociedade e opera por uma lógica de reinserção desses sujeitos edificados como anormais por meio da construção do delinquente para operacionalização do regime dos ilegalismos que retroalimenta a prisão e o exercício legal Para o autor, o gueto duplica e reproduz a pri- de punir, corrigir e cuidar. Uma lógica inclusi- são, construindo um outro lugar de exclusão; va que articula polícia, prisão e delinquência, Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 267 Acácio Augusto onde um deles não existe sem os outros. Uma (Movimento de Mães pelos Direitos no Sistema inclusão diferencial que, na sociedade discipli- Socioeducativo), que atua junto às mães e aos nar, funciona como administração da exclusão jovens internados no DEGASE (Departamento dos indesejáveis (Foucault, 2002). Geral de Ações Socioeducativas), como é pos- Na sociedade de controle, essa lógica sível constatar no relato de mães apresentado inclusiva da prisão ganha novos contornos ao em seminário do Conselho Regional de Psicolo- convocar outras pessoas que não são nem pri- gia do Rio de Janeiro e publicado na forma de sioneiros, nem policiais, nem delinquentes, pa- artigo (Cunha, Sales e Canarim, 2007). ra participar de seu funcionamento. Não mais Em torno dessas associações, movimen- uma inclusão diferencial, segundo a constru- tos e ONGs, multiplicam-se os educadores so- ção biopsicossocial do delinquente, mas uma ciais, os técnicos bem intencionados, os funcio- convocação à participação que anuncia a in- nários benevolentes, os agentes comunitários, clusão de todos e mais um pouco, até mesmo os conselheiros tutelares, os policiais bem for- dos que ainda não tenham sido transformados mados, que colaboram com o bom funciona- em perigo para sociedade. Essa convocação mento das instituições austeras, policiando os à participação – característica marcante da fluxos de entrada e saída e cuidando dos que sociedade de controle sublinhada por Edson estão reclusos e contendo, dessa maneira, re- Passetti (2003; 2006; 2007) – em torno da pri- voltas e rebeliões. Paradoxalmente, ou não, por são, garante sua continuidade e operacionaliza amor aos filhos, fazem com que estes amem sua novas modalidades de cárcere, ficando ainda nova condição na prisão. Cabe ressaltar, ainda, mais evidente quando olhamos, no Brasil, pa- que os que escapam ou não possuem esse ra as prisões destinadas aos jovens e para vida cuidado policial materno e/ou filantrópico, são desses jovens nas periferias e favelas dos gran- rapidamente capturados pelas lideranças dos des centros urbanos. chamados partidos e facções do crime, comple- A prisão, hoje, foi ocupada por diversos mento indispensável para quase completa (pa- grupos e organizações da sociedade civil que se ra não ser categórico) supressão das rebeliões dedicam a ela e aos que nela vivem. Nos jornais, em instituições austeras destinadas aos jovens multiplicam-se as matérias sobre a vida prisio- detidos como adolescentes infratores. nal, que se torna alvo, também, de comissões A intensa circulação da população carce- parlamentares para viabilização de reformas e rária, e dos que vivem em torno dela, é viabi- denúncias. Tomemos o caso da AMAR (Asso- lizada, portanto, por ONGs, Fundações e Uni- ciação de Mães dos Adolescentes em situação versidades, por meio de programas de incenti- de Risco), em São Paulo, formada por grupos vo fiscal que financiam uma infinidade de pro- de mães voltados para defesa dos chamados gramas de pesquisa e assistência sob a égide adolescentes infratores. Rapidamente passaram da denúncia e fiscalização sobre os horrores da prisão para jovens e se integraram à rotina da vida prisional. Algo semelhante do que ocorreu no Rio de Janeiro com Movimento MOLEQUE do bem para todos. Soma-se a essa presença 268 constante de grupos e organizações da chamada sociedade civil, uma intensa circulação de fluxos eletrônicos que permeiam seus muros, alimentando bancos de dados e espetáculos Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio midiáticos desdobrados em matérias especiais A absorção dessa crítica neoliberal pelo nos telejornais e seriados de televisão, alimen- Estado em nível planetário, a partir da déca- tando um misto de fascínio e repulsa pela vida da de 1980, sedimenta o itinerário das atuais prisional. A imagem do medo, como sublinhara políticas de assistência social com funções Foucault (2002) em Vigiar e punir, tornou-se, policiais de promoção da prosperidade do na sociedade de controle, imagem do fascínio, conjunto de indivíduos, onde mesmo as ações da compaixão cívica e das lucratividades políti- repressivas e de administração das institui- cas e econômicas no governo das condutas. ções austeras e de controle de incivilidades Essa presença da sociedade civil está de passam a ser geridas e promovidas por um acordo com as práticas do neoliberalismo con- consórcio que agrega Estado, sociedade civil temporâneo que não postula o Estado como e iniciativa privada, como é possível cons- planejador da economia e responsável pela cor- tatar pela lei que regulamenta as Parcerias reção das desigualdades sociais, tarefa primor- Público-Privadas (Lei 11.079/2004). O inte- dial do Estado de Bem-Estar Social, chamado resse se resume em promover as práticas de pelos neoliberais de intervencionista. A crítica governo a partir da atuação direta dos pró- ao socialismo soviético, ao nacional-socialismo prios governados, para assim descentralizar e aos programas de recuperação da economia certas funções de gestão e administração, no EUA do entre guerras e na Europa do pós- mantendo inalterado o exercício de governo II Guerra Mundial, elaborada por economistas direcionado a uma centralidade móvel capaz conservadores como Friedich Hayek (1977) na de capturar qualquer ação que orbita em seu década de 1940, postula que o Estado cumpra, entorno. É dessa maneira que, hoje, mantém- somente, a função de fiador e fiscalizador das se o controle para dentro e para fora da pri- ações programáticas da chamada sociedade ci- são. Uma discutível redução da intervenção vil. Como observa Foucault (2007) em relação estatal e uma inegável governamentalização ao neoliberalismo estadunidense, isso ocorre da sociedade por meio de práticas de gover- num contexto histórico formado pelos efeitos no ascendentes e descendentes que se pau- do New Deal. A crítica a este dirigida destina- tam por uma reação conservadora que busca se também à política econômica keynesiana, restauração da família, disseminação de reli- implementada por Roosevelt entre os anos giosidade e investimento em capital humano de 1933-1934; aos projetos europeus de in- e todos atravessados por práticas de demo- tervenção econômica e social, elaborados du- cracia participativa. Seria mais preciso notar rante a guerra e implementados como planos em torno de tanta filantropia, compaixão cí- de reconstrução no pós-guerra, como o plano vica e investimento em práticas autônomas Breveridge, na Inglaterra; o crescimento dos de governo, uma disseminação das condutas programas de educação, combate à pobreza pautadas, como mostra Passetti (2007), por e à segregação, desenvolvidos desde a admi- um conservadorismo moderado, que por meio nistração Truman até a administração Johnson, da convocação à participação produz incontá- todos visto como intervencionistas que inflam veis práticas de assujeitamentos por inúmeros o Estado e sua burocracia. assujeitados. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 269 Acácio Augusto Neste vaivém, estar dentro ou fora da prisão-prédio torna-se uma situação quase indiscernível. Muito mais do que a compulsó- As periferias como campos de concentração ria reclusão de parentes amigos junto do prisioneiro, as ações de grupos e ONGs em torno A análise da periferia como campo de concen- da prisão-prédio promovem a circulação de um tração a céu aberto difere de uma leitura do campo de concentração como zona de exclusão social e territorial, como seria possível supor a partir dos estudos de Zygmunt Bauman (2003) ou como realização possível a partir de uma indeterminação jurídico-política, segundo as formulações de Giorgio Agamben (2004). De acordo com Edson Passetti (2006), o campo de concentração a céu aberto diz respeito a uma tecnologia de controle que opera não mais em lugares de confinamento fechados e/ou apartados de um fora, nem mesmo por uma delimitação territorial em relação ao centro, mas por uma administração do território por seus próprios habitantes. É um dispositivo inclusivo que amplifica as modalidades de encarceramentos e se faz, também, nas relações estabelecidas entre as pessoas que convivem sob uma governamentalidade (governo das condutas), respeitando-a e produzindo práticas de subjetivação que as imobilizam, não por uma imposição externa, mas por um desejo profundo e voluntário em se manter na condição de assujeitados por apreciarem os espaços de confinamentos a céu aberto que habitam e aprenderam a amar. Uma pesquisa recente sobre a aplicação das chamadas medidas socioeducativas em meio aberto mostra como a participação na vida prisional de um jovem se expandiu e como se amplifica a prisão para além da vida no cárcere. número cada vez maior pessoas em seus estabelecimentos, independentemente de estarem condenadas e de possuírem alguma relação direta com outros condenados. Passa-se a habitar a prisão como condição, opção, costume ou negócios, legais e ilegais. Como sublinha Wacquant em relação ao gueto estadunidense, essa relação estabelece um contínuo que liga gueto e prisão: a prisão se parece cada vez mais com o gueto e o gueto se parece cada vez mais com a prisão. No entanto, não há como tomar a experiência estadunidense como parâmetro para o que ocorre no Brasil, nem mesmo incorporar essa analogia como solução explicativa do que ocorre, simultaneamente, com a prisão e com as chamadas áreas de risco. É o próprio Wacquant, no mesmo livro, quem faz questão de sublinhar as diferenças marcantes entre o gueto negro nos Estados Unidos e as favelas brasileiras (2008, p. 84). Entretanto, quando se lida com a situação de jovens considerados infratores no Brasil, não é difícil observar uma série de práticas de controle que funcionam como estratégias de circunscrição desses jovens nas periferias, e nesse sentido, próxima de uma prática prisional. Entretanto, não configuram essas periferias como gueto que reproduz a organização de uma instituição austera, mas como campos de concentração a céu aberto que disseminam práticas de contenção de liberdade. 270 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio A Fundação Telefônica financia projetos Dito de maneira muito sistemática, es- sociais voltados para crianças e adolescentes sas ONGs atuam da seguinte maneira: elas classificados como infratores ou vivendo em se estabelecem em um bairro ou região pre- situação de risco, por meio de um projeto cha- viamente identificada como área de risco ou mado Pró-menino: jovens em conflito com a lei vulnerável, buscando antecipar qualquer pos- que mantém financeiramente ONGs minúsculas sibilidade de mobilidade do jovem, oferecendo responsáveis pela aplicação de medidas socio- cursos de informática, de desenho, de padei- educativas em meio aberto e promoção de cur- ro, etc., para ocupá-lo naquela região, com o sos profissionalizantes para jovens moradores objetivo de criar dispositivos para que ele não da periferia e cidades satélites de São Paulo. venha a se tornar um infrator. Se mesmo as- Partes dos resultados desse projeto foram pu- sim ele for pego em chamado ato infracional, blicadas no livro Vozes e olhares, como anda- passível de ser punido como medida socioe- mento da avaliação feita pelo Instituto Fonte ducativa em meio aberto, será nesse mesmo para o Desenvolvimento Social (Fonte, 2008). lugar que cumprirá a medida socioeducativa, Este projeto está instalado no Brasil desde esse eufemismo jurídico para pena. Ele passa 1999 e é um desdobramento do programa a servir como objeto da punição e insumo para Proniño, criado em sua sede espanhola e ex- pesquisas e sondagens regulares que se des- pandido pelos países da América Latina onde tinam a essa população específica. Em suma, a Telefônica tem negócios. Sua missão, como toda uma estratégia é montada para que ele está descrito em seu site, é a de saia o menos possível da região onde mora, [...] contribuir para a construção do futuro das regiões onde a Telefônica opera, impulsionando seu desenvolvimento social através da educação e utilizando para isso as capacidades distintivas do Grupo: sua extensa base de clientes e empregados, sua presença territorial e suas capacidades tecnológicas. inclusive parte desses jovens deve ser absorvida para trabalhar temporariamente nas ONGs como monitores de algum curso ou aplicadores de questionários de pesquisa a respeito da vida de infratores sob medida socioeducativa. E, ao contrário do que alguém possa pensar, tal assistência público-privada, para realização das chamadas políticas públicas ou políticas Privilegia o investimento em “projetos envol- sociais, não funciona como redutor de reinci- vendo os Conselhos dos Direitos da Criança e dência desse jovem, ou mesmo propicia que do Adolescente” para fomentar a ele escape de uma instituição de internação [...] inclusão digital como estratégia preferencial, entendendo-a como um importante meio de inclusão social de populações menos favorecidas, proporcionando, assim, a utilização das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) como um instrumento para a construção e o exercício da cidadania. (Cf. www.fundacaotelefonica.org.br) Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 ou volte a praticar um ato infracional e acabar morto. Trabalhei em parte dessa pesquisa de avaliação das ONGs financiadas pela Telefônica no Instituto Fonte, também financiado pela mesma empresa. Os resultados dessa incursão etnográfica num contemporâneo programa público-privado de controle de jovens foram 271 Acácio Augusto analisados em meu trabalho de mestrado sociedade civil, por meio de cidadãos e em- (Augusto , 2009). A produção de assujeita- presas, que realizam a prática policial como mento no interior desses programas ficou mais expressão e exercício de assujeitamentos. O evidente – para além de toda parafernália e que nos remete à diferenciação estabelecida infinitas conexões com outros, mesmo pro- por von Justi, e analisada por Michel Foucault, gramas como o Medida Legal, avaliado pelo entre os termos Politik (do alemão, política), ILANUD-Brasil (Instituto Latino-Americano das como a função negativa (repressiva) do Esta- Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tra- do contra seus inimigos internos e externos e Polizei (do alemão, polícia), como tarefa positiva do Estado e da sociedade civil para favorecer a saúde e dirigir as condutas dos que compõem a população garantindo a moralidade e obediência dos cidadãos (Foucault, 2003). Ao pensar a partir de um minúsculo programa como esse, olhando-o de dentro e para fora, e lembrar que estes sempre se desdobram em séries de programas sociais e de segurança pública que objetivam imobilizar as pessoas tidas como carentes ou vulneráveis, temos uma política do campo de concentração a céu aberto como investimento ininterrupto em manter uma determinada parte da população quieta, feliz e policiada. Enfim, uma polícia da vida. As pessoas que habitam a região vulnerável se veem enredadas em programas, aparelhos e políticas sociais que a todo o momento registram, monitoram, permitem, recusam, direcionam, redimensionam a circulação num espaço delimitado e móvel. E nesse exercício produzem novas subjetivações afeitas aos controles policiais. Como anota Passetti: tamento do Delinquente) –, por uma situação específica vivida entre os jovens envolvidos no cumprimento da medida socioeducativa e na aplicação dos questionários da pesquisa. Os jovens convocados e remunerados para aplicar os questionários de extração de dados, que receberiam tratamento estatístico posterior, eram os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa (em meio aberto ou fechado) no ano de 2005. Assim, eles se viam diante de outros adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto no ano da pesquisa, 2006, realizando o controle mútuo dos que já cumpriram sobre os que estão sob cumprimento de medida. Uma maneira policial de controlar jovens por meio dos que já estariam juridicamente livres capturados na aplicação do questionário, sobre aqueles que estão ainda cumprindo de medida socioeducativa: um como suspeito constante e o outro como controlador policial do outro. Estamos diante da vida no campo de concentração, em que todos são convocados a participar direta ou indiretamente, são incluídos nos fluxos eletrônicos de produção e vigilância em procedimentos consensuais democráticos e que caracterizam nossa época de moderação. Assim, atualiza-se o termo política pública como sinônimo de polícia e como prática que não se restringe à ação do Estado, mas que associa e aproxima ações de Estado com 272 Aparece, então, uma nova diagramação da ocupação do espaço das cidades, em que políticas de tolerância zero e de penas alternativas se combinam, ampliando o número de pobres e miseráveis visados, capturados e controlados, compondo uma escala mais ou menos rígida de punições, deixando inalterados a cifra Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio negra e os dispositivos de seletividade. Consolida-se uma nova prática do confinamento a céu aberto, e o sistema penal mais uma vez se amplia, dilatando os muros. (2006, p. 94) planetários. Estão nas periferias beneficiadas pela parafernália dos mecanismos punitivos e de assistências sociais. Mas estão, também, nos programas de revitalização de centros históricos, nos condomínios e vilas vigiados e mo- Se até a metade do século XX a admi- nitorados por polícias privadas e câmeras de nistração dos campos era um problema de seguranças, nos acessos por cartões eletrôni- administração estatal para contenção das cos de empresas, bancos e universidades, hoje populações em um determinado território, sendo gradualmente substituídos por leituras hoje vivemos um redimensionamento de suas biométricas de digitais e íris e nos acessos estratégias que não respondem apenas a um eletrônicos cifrados dos ciberespaços. As cida- problema biopolítico, mas às práticas que in- des conectadas umas às outras pelo controle vestem na participação democrática e em uma sideral do planeta redefinem seus lugares co- infinidade de programas e projetos destinados mo campos de concentração a céu aberto, não aos habitantes da periferia como campo de mais como exercício de um poder biopolítico concentração a céu aberto. As interfaces de um projeto como Prómenino conectam um jovem morador da erma periferia de uma cidade satélite de São Paulo a uma empresa multinacional de telecomunicação com sede na Europa. Diante de uma situação como essa não há mais território a ser ocupado. Não se trata de ligação direta, mas de uma conexão mediada por quase infinitos protocolos, que se desdobram em quase infinitas outras conexões que agenciam pessoas, ONGs, Institutos, pesquisadores, universidades, Estados, governos estaduais, prefeituras, secretarias, relatórios, questionários, planos, projetos, e compõem um fluxo inacabado e indeterminado capaz de incluir tudo e mais um pouco; que visa o planeta e a vida dentro para fora dele. Desdobra-se, assim, a pena de reclusão em modalidades de encarceramentos, elastificando os muros da prisão-prédio para conformação do campo de concentração a céu aberto. Este se encontra conectado por fluxos de segurança, prevenção e controles siderais de controle da população, mas, como indica Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Passetti (2003), um policiamento contínuo da vida do e no planeta, uma ecopolítica. Um ponto de partida contra os novos campos de concentração Policiar não é apenas reprimir, conter, interceptar, prender, punir. Policiar é, também, segundo suas procedências históricas e suas práticas atuais, cuidar, restaurar, refazer, ordenar, controlar e garantir circulação de pessoas e mercadorias. A emergência da polícia como uma técnica do poder biopolítico está ligada à formação das cidades modernas na Europa. Para que existisse a cidade, a urbe, criaram-se cuidados com a população dessa cidade, e também foram descobertos e inventados outros cuidados com o meio onde viviam os modernos cidadãos. Na medida em que a população se constituiu como o novo objeto 273 Acácio Augusto das tecnologias modernas de poder, pelo seu deslocamento do campo para cidade, foi preciso um investimento em saneamento básico, controle de natalidade e mortalidade, cuidados com a distribuição e armazenamento de alimentos, distribuição das moradias e controles sanitários de moradias operárias, enfim, urbanizar. E urbanizar no sentido técnico de desenvolvimento desses cuidados com a saúde da população e no âmbito moral como guia das condutas dos que vivem na cidade, para garantir a saúde moral, como bem expressa a frase: os cidadãos devem agir com urbanidade. A cidade, para existir, teve que descobrir a polícia, ou, dito de outra maneira, a política das cidades é a prática de polícia. Hoje em dia, ocorre que esses controles vão além dos cuidados com a população e se desdobram em controles eletrônicos ambientais, participações democráticas em nome da melhoria do meio; restauram o sentido da polícia como instrumento de urbanização e o ultrapassam ao postular que os cuidados policiais destinam-se para a vida no meio e que devem ser exercido por todos. Assim fazem do cidadão não o habitante da cidade, mas o morador da urbe. Diante dessa pluralidade quase infinita de controles eletrônicos, democráticos e policiais que se efetivam no Brasil a partir de projetos que têm como alvo os jovens que cumprem medida socioeducativa em meio aberto, pergunta-se: qual a pertinência da continuidade da prisão-prédio para jovens na forma de FEBEM´S, CASA’S, ou similares estaduais? Se as periferias de São Paulo ou as favelas do Rio de Janeiro não são a versão tupiniquim dos guetos negros estadunidenses, como mostra Wacquant, mas se constituem como campos 274 de concentração a céu aberto, que impacto catastrófico ou inconsequente – como argumentam os conservadores – pode causar o fim imediato das internações para jovens no Brasil? O fim da internação para jovens no Brasil é possível hoje. Temos que falar para o nosso tempo ou continuaremos a dialogar com os reformadores que perpetuaram e justificaram a prisão desde seu nascimento, nessa moderada e platônica prática do diálogo e da reforma que faz os que apreciam essa conduta agirem como conservadores. É preciso abrir conversações partindo de uma atitude que rompa com a crença incontestável nas reformas e na política. É preciso coragem tanto na produção de pesquisas universitárias como em nossa atuação como cidadãos no interior de uma democracia que os institucionalistas, no Brasil, festejam como consolidada. Não é possível pensarmos hoje, pelo menos no que diz respeito aos jovens pegos em chamados atos infracionais, em maneiras mais justas ou mais humanas de internar ou recuperar esses jovens. O que é possível, sim, é experimentar a não internação como um pouco de ar e de fumaça diante de controles tão sofisticados e sufocantes. As cada vez mais asfixiantes cidades se ocupam da fabricação de leis e regulamentações que restauram a maneira como se vive nelas, anunciam novos mesmos programas, sempre escorados em argumentações emboloradas que interceptam e capturam a possibilidade de lidar com o espaço de uma outra maneira. Ao contrário, recorrem sempre às soluções que em nome da segurança e do meio ambiente, fazem da vida nas cidades uma experiência claustrofóbica, sufocante e encarceradora. E se a democracia é, por definição, Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Para além da prisão-prédio o regime político onde é possível a contesta- representativa e participativa? Se a cidade é ção dos poderes e onde é dada a possibilida- o espaço dos cidadãos, como mostraram os de ao cidadão de interpelar os governantes, gregos, talvez ela seja um espaço possível para por que não avançarmos nessa possibilidade? abrir essa conversação. É preciso um pouco de Por que não interpelar a própria democracia possível, senão eu sufoco. Acácio Augusto Cientista social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, São Paulo, Brasil. [email protected] ; www.nu-sol.org Referências AGAMBEN, G. (2004). Estado de exceção. Tradução Iarci D. Pole . São Paulo, Boitempo. AUGUSTO, A. (2009). PolíƟca e polícia. Medidas de contenção de liberdade: modulações de encarceramento contra os jovens na sociedade de controle. Dissertação de mestrado. São Paulo, Pon cia Universidade Católica de São Paulo. BAUMAN, Z. 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Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 263-276, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo: paradoxos e perspectivas de transformação The democratic management of the metropolis in the periphery of capitalism: paradoxes and transformation perspectives Paulo Romano Reschilian Resumo Pretende-se analisar de que forma o contexto socioespacial das metrópoles brasileiras constitui-se em campo de análise, tendo em vista a criação de mecanismos de gestão e instrumentos urbanísticos dentro da perspectiva do planejamento urbano contemporâneo. Aborda-se, para tanto, a dinâmica urbana e espacialização da pobreza como indicativo da ordem territorial na qual a existência de assentamentos precários tem marcado o processo de construção social da paisagem urbana e remete à necessidade de identificar elementos que contribuam para a formulação de uma análise multidimensional do fenômeno, uma vez que se enfatiza nesse estudo a expressão da urbanização desigual que traz em si os limites à ação cidadã na contemporaneidade. Abstract This paper aims to analyze in what ways the socio-spatial context of Brazilian metropolises is considered a field of analysis, in view of the creation of management mechanisms and urban planning instruments within the perspective of contemporaneous city planning. To accomplish this, the study approaches urban dynamics and poverty spatialization as an indication of the territorial organization in which the existence of precarious settlements has been marking the social construction process of the urban scenery. In addition, these settlements reveal the need to identify the elements that contribute to the formulation of a multidimensional analysis of the phenomenon, as this paper emphasizes the expression of unequal urbanization, which brings in itself limits to citizenship actions in the contemporaneous metropolis. Palavras-chave: metrópole; planejamento urbano; dinâmica socioespacial; inclusão precária; gestão democrática. Keywords : metropolis; urban planning; sociospatial dynamics; precarious inclusion; democratic management. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Paulo Romano Reschilian Planejamento urbano e perspectivas de transformação Na medida em que a nação se urbaniza e se desenvolve na base industrial capitalista, fundamentalmente a partir da década de 1950 em diante, em que pese a convivência com o A cidade pode ser considerada o lugar onde atraso das estruturas do campo, as demandas a realização da vida em sociedade pode pro- sociais relacionadas ao consequente processo mover inúmeras condições que permitam a um de estruturação das classes médias urbanas e contingente expressivo de pessoas alcançar o fortalecimento dos movimentos sociais pas- qualidade de vida e bem-estar social. sam a pleitear a revisão, a reforma e até a re- As perspectivas vislumbradas pelas cida- volução na forma de se pensar e agir sobre o des, na história, especialmente após a Revolu- território, tendo a cidade como palco maior das ção Industrial, nas quais a ideia de progresso e reivindicações por melhoria das condições de a promoção da tecnologia permitiriam uma no- vida para um maior contingente de pessoas. va condição humana para a vida em sociedade, O debate pela reforma urbana iniciado mostraram-se limitadas diante do fato de que em 19631 acabou eclipsado pelo regime militar a riqueza produzida não só foi distribuída de no período de 1964 até 1985, sendo retoma- maneira desigual, mas não alcançou no terri- do no período de redemocratização do país, tório uma expressão que qualificasse de forma com destaque para o processo constituinte de mais equilibrada as possibilidades e oportuni- 1988. Derivado desse processo, os movimentos dades para a maioria da população. sociais pela reforma urbana conseguiram apro- A partir da emergência de problemas so- var a inserção dos artigos 182 e 183 na Cons- cioespaciais derivados da lógica de produção tituição Federal que tratam da Política Urbana capitalista, o planejamento físico-territorial e o e que estabelecem a função social da cidade e urbanismo tornaram-se campos destacados de da propriedade, bem como institui o usucapião preocupação das elites políticas e econômicas urbano, possibilitando a regularização de ex- na Europa do final do século XIX. As premis- tensas áreas ocupadas por favelas, vilas, ala- sas higienistas e sanitaristas ganharam desta- gados, invasões e loteamentos clandestinos. que nesse período e tornaram-se as bases de No entanto, a regulamentação dos ar- sustentação para os posteriores enunciados tigos da Constituição só se efetivou em 2001, funcionalistas do urbanismo moderno nas pri- com a promulgação da Lei Federal 10257/2001, meiras décadas do século XX (ver Ribeiro e denominada Estatuto da Cidade. Cardoso, 1994). As diretrizes apontadas pelo Estatuto da No caso brasileiro, podemos afirmar que Cidade em seu artigo 2º permitem perceber a ordem territorial estabelecida com o projeto que a cidade passa a ser concebida como lugar de colonização portuguesa e os desdobramen- onde sejam promovidos a qualidade de vida e tos do processo histórico da formação social o alcance da justiça social. brasileira estiveram associados às ações e ao O conceito sob o qual se fundamenta a papel do Estado na produção social do espaço análise ora em curso deriva da compreensão (ver Oliveira, 1977). de que o desenvolvimento que sustenta as 278 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo relações socioculturais no território associa-se à dimensão socioespacial. Autores como Ermínia Maricato (1996, 2000, 2001) Raquel Rolnik (1997), Flávio A promulgação da Lei pode ser conside- Villaça (1986, 2001), Milton Santos, bem co- rada o cumprimento de uma etapa do proces- mo Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1984) so de discussão em torno da reforma urbana já realizaram exaustivas análises sobre esse no Brasil que tem suas origens na década de processo. 1960, com Fórum de Reforma Urbana promo- O processo de urbanização no Brasil, que vido pelo IAB – Instituto dos Arquitetos do se acelera na década de 1970, revela a com- Brasil, em 1963, na cidade de Petrópolis, Rio plexidade dos problemas que passam a cons- de Janeiro. tituir o cenário das regiões metropolitanas e Algumas etapas merecem destaque nes- aglomerações urbanas. Um indicativo da velo- se processo de construção de um debate so- cidade desse processo e da dinâmica socioes- bre a cidade brasileira até a aprovação da lei pacial dele resultante se revela no fato de que, 10257: em 1950, a população urbana totalizava cerca Projeto de Lei n° 775/83, elaborado pelo de 18,8 milhões de habitantes representando Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano. 36% do país2 ao passo que em 2006 esse índi- ● ● Substitutivo de 1986. ce eleva-se a 81% de um total de 188.298.099 ● Projeto de Lei 181/89. milhões de habitantes.3 ● Lei nacional nº 10.257/2001 (Projeto de Instaurados ao longo desse processo, autoria do Senador Pompeu de Souza (PMDB) os modelos de planejamento praticados ti- aprovado no Senado em 1990, cuja tramitação veram perfil eminentemente técnico e foram se inicia na Câmara dos Deputados em dezem- implementados fundamentalmente na esfera bro de 1990 (projeto 5.788/90) e permanece do poder público, como setor que concentrava com a tramitação paralisada entre 1990-1997 recursos disponíveis para investir nessa ativi- devido à oposição de setores ligados aos pro- dade, somado ao fato de se crer que não havia prietários urbanos. cultura suficiente na sociedade para participar Além dos marcos legais brevemente relacionados, torna-se importante destacar a de forma direta das decisões sobre os destinos da gestão do território. forma pela qual o processo de urbanização no Entre os meados da década de 1960 e Brasil imprimiu à organização do território uma 1970 intensifica-se a hegemonia do Serfau – marca caracterizada pela expansão periférica, Serviço Federal de Habitação e Urbanismo e pela segregação socioespacial e desigualdade o Cepam – Centro de Estudos e Pesquisas de socioambiental resultantes das formas de in- Administração Municipal para as cidades de clusão precária às quais foram submetidas am- médio e grande porte do Estado de São Paulo plas camadas da sociedade, configurando as- como centros irradiadores de parâmetros de sentamentos precários desprovidos de padrões planejamento territorial aplicados em escala urbanísticos idealizados na esfera do poder nacional. público e referenciados nas premissas do planejamento urbano contemporâneo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Tal situação é característica de todo o pensamento urbanístico, desde socialistas 279 Paulo Romano Reschilian utópicos (Fourrier, Owen), passando por tec- precárias, que não conseguem ocupar as me- nocratas como E. Howard e os modernistas: lhores partes da cidade. crença no diagnóstico científico e na técnica Nesse sentido, duas questões se apresen- (Plano Diretor) como receita de solução para tam, correlatas no que tange à distância entre os “problemas urbanos”. planejamento e as transformações objetivas no Isso demonstra a supremacia da razão território que possibilitaram a configuração de tecnocrata no planejamento, que para Villaça um cenário urbano mais igualitário ou ao me- sempre acabou tendo uma forte carga ideoló- nos de minimização de contrastes. gica, e aqui no Brasil marcado pelo domínio do discurso, pois raramente foi aplicado. A primeira refere-se ao hiato entre planejamento e gestão, seja pela ausência de pro- Pode-se afirmar, em linhas gerais, que no cessos, instrumentos e mecanismos de acom- Brasil houve duas “linhagens“ de planejamen- panhamento, monitoramento e avaliação dos to: uma que se inicia nos planos de embeleza- resultados que representassem legitimidade mento, que gera os PDDIs (Planos Diretores de no corpo social, seja pela ausência de corres- Desenvolvimento Integrado) e outra, baseada pondência entre as diretrizes e instrumentos nos CIAMs (Congressos Internacionais de Ar- previstos e a alocação de recursos resultantes quitetura Moderna), que gera Brasília e uma da formulação e aplicação do orçamento no série de cidades novas de caráter moderno em âmbito do município. seu planejamento. A segunda refere-se à dificuldade de al- O resultado, historicamente construído cançar níveis de desenvolvimento socioespacial pelas práticas de planejamento, não impedi- compatíveis com a promoção de justiça social ram que se consagrasse: e de qualidade de vida para a maioria dos ha- ● O contraste entre uma parte qualifica- bitantes dos municípios brasileiros. da e uma parte que apresenta vários graus O quadro resultante da emergência de de desqualificação, em geral maior do que a problemas urbanos associados aos modelos primeira; de planejamento praticados gerou, entre ou- A reafirmação de uma estrutura e uma tros processos, o reforço das desigualdades forma urbana que reproduzem a desigualdade promovidas pelo mercado imobiliário; a legi- socioambiental; timação das posições privilegiadas do territó- ● A ameaça às regiões de preservação am- rio com o estatuto de “regular” e punindo os biental, devido às ocupações ilegais realizadas desfavorecidos com o estigma e as dificulda- de forma precária no território; des da “ilegalidade”; a elaboração de Planos ● As dinâmicas do mercado imobiliário co- Diretores gigantescos, sem relação com a ca- mo produtoras de desigualdades no preço da pacidade de investimento do poder público; a terra; legitimação indireta de remoções e despejos ● A ampliação de regiões que apresen- e o aumento da vulnerabilidade das áreas de tam fragilidades ambientais que se tornam preservação ambiental diante das ocupações a “válvula de escape” das ocupações mais predatórias. ● 280 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo Ao longo dessas últimas quatro décadas, se materializa a vida em sociedade e que se cabe destacar as tentativas de profissionais da torna a base material para o acesso às possi- área de planejamento urbano e regional, movi- bilidades de pertencer de fato à urbanidade e mentos sociais e pesquisadores em promover suas conquistas. debates e propor alternativas aos modelos es- A tese produzida por Lefebvre (1969) é tabelecidos e à solução de problemas tais co- esclarecedora quanto ao papel do espaço, ou mo já mencionados acima. seja, do território, como meio que possibilita Com a regulamentação dos postulados ao capital se reproduzir e garantir controle so- do Estatuto da Cidade, tornou-se evidente a cial a uma minoria da população habitante da preocupação contida em seus artigos 40 a 43, cidade. Sensíveis a essa compreensão, setores que busca estabelecer as diretrizes e exigên- da intelectualidade brasileira, associados mui- cias para garantir a participação popular na tas vezes a setores organizados da sociedade gestão do território. civil e movimentos sociais, passaram a empre- As Resoluções 25 e 34 do então cria- ender uma jornada na busca da reversão de do Conselho das Cidades contribuíram para um quadro de ocupação e gestão do território reafirmar e normatizar os parâmetros que que contribui cada vez mais para a segrega- consagram a participação popular na gestão ção e espoliação urbanas e formas de inclusão urbana. precária. Pensar da perspectiva da participação O cenário no qual o princípio da partici- popular é refletir sobre as possibilidades de pação popular e a perspectiva de gestão de- se transferir poder para setores mais amplos mocrática da cidade se afirmam deriva de um da sociedade em busca de sua emancipação e consenso no qual a complexidade das questões autonomia. urbanas resultantes da dinâmica socioespacial Essa possibilidade, no entanto, de trans- contemporânea requer envolvimento de dife- formação das relações sociais e promoção de rentes atores sociais na busca de legitimação efetivo exercício de cidadania apenas se mate- de ações visando o alcance de desenvolvimen- rializarão, segundo Souza (2004), quando fo- to mais equilibrado. rem alcançados estágios de desenvolvimento Torna-se importante ressaltar que, em socioespacial que puderem ser medidos pelo que pesem as diretrizes do Estatuto da Cidade grau de justiça social e níveis de qualidade de e as resoluções 25 e 34 do Conselho das Cida- vida que se lograr atingir. des no que tange à participação popular e à Mas, por que empregar o conceito gestão democrática da cidade, há um longo ca- de desenvolvimento socioespacial e que na minho a percorrer para o cumprimento de tais contemporaneidade ampliou-se para desen- pretensões. As possibilidades ou a efetividade volvimento sustentável ou socioambiental? dessas diretrizes poderão se dar na medida em Socioespacial/ambiental, na medida em que que se permita aferir na organização do terri- entendermos, como Souza (ibid., p. 61), ser o tório a amplificação dos níveis de qualidade de espaço/ambiente, palco, território, recurso em vida e de justiça social promovidos nas ações si, arena, lugar simbólico, identitário no qual de planejamento. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 281 Paulo Romano Reschilian Contudo, há uma questão que se coloca sobre a problemática urbana na sociedade bra- trabalho assalariado, na urbanização e na modernização. sileira e as possibilidades de se estabelecerem A questão da terra, do trabalho e da novas formas de gestão do território, alicerça- renda tornou-se elemento estruturante do pro- das na elaboração de planos diretores: a auto- cesso de organização da sociedade brasileira, nomia dos municípios como entes federativos especialmente no que se refere à forma de que concorrem com a União e os Estados na ocupação, apropriação e controle do território. gestão e elaboração de políticas que incidem A aceleração do processo de urbaniza- sobre o território das cidades. ção, e a maneira pela qual esse processo ocor- Especialmente nas regiões metropolita- reu, ocasionou uma concentração cada vez nas e de aglomerados urbanos, bem como em maior de renda e riqueza sob controle da elite regiões onde há ocorrência ou tendência à co- nacional, ao passo que produziu níveis de de- nurbação e questões relativas ao ambiente, ao sigualdade elevados que se tornaram explicita- transporte, à distribuição de equipamentos de dos nas aglomerações urbanas de maior densi- saúde e educação, aos problemas ambientais dade populacional e seu entorno. Esse proces- e recursos naturais, entre outros, será preciso so de urbanização conteve, em si mesmo, uma pensar como poderão ser estabelecidas formas lógica de inclusão precária (Martins, 1997), de gestão que possam abranger a escala regio- que tornou possível o processo de acumulação nal e até nacional. capitalista na qual a forma de apropriação do Cabe ressaltar a recente iniciativa de or- território urbano, quer pelos agentes imobi- ganização do Seminário Internacional de Pla- liários com ou sem a participação do Estado, nejamento Territorial no Brasil, realizado em quer pela população de baixa renda, tornou- Brasília de 11 a 13 de novembro de 2008, e se mecanismo gerador segregação espacial, que pode apontar para a preocupação de for- concentração de renda e riqueza para as elites. mulação de diretrizes de planejamento territo- Ao mesmo tempo, configurou-se um quadro rial em escala nacional. de urbanização periférica crescente, por meio da qual a inclusão precária se processou como resultado da tentativa de inserção na esfera Dinâmica urbana e espacialização da pobreza: paradoxos no contexto do planejamento produtiva de grande contingente populacional atraído pelas possibilidades de trabalho e sobrevivência. Nesse sentido, o papel das cidades se altera e configura, na medida em que a estrutura produtiva se transforma e a organização social, que se torna cada vez mais complexa, deman- As pesquisas sobre as raízes da pobreza no da um agenciamento do espaço que melhor Brasil apontam sua origem no passado colo- pudesse atender aos interesses do capital. A cidade e a urbanização decorrente dos processos de transformação da cadeia nial e na transição para uma sociedade cuja estrutura produtiva passou a se assentar no 282 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo produtiva – tanto no plano nacional quanto na Rogers (1995) aponta vários níveis dos esfera mundial – tornam-se uma base sobre a quais se pode estar excluído: a) exclusão do qual se “desenha” a segregação e o controle mercado de trabalho (desemprego de longo social por meio da apropriação da renda da prazo); b) exclusão do trabalho regular (parcial terra – urbana e rural –, do trabalho e da ri- e precário); c) exclusão do acesso a moradias queza produzida. decentes e a serviços comunitários; d) exclusão Nesse sentido, a forma de apropriação do acesso a bens e serviços (inclusive públicos); e controle do território pelas elites torna-se e) exclusão dentro do mercado de trabalho (pa- elemento estrutural para propiciar formas de ra ele, existe uma “dualização do processo de inclusão precária nas principais cidades brasi- trabalho”, ou seja, há empregos ruins, de aces- leiras, materializadas no espaço na forma de so relativamente fácil – que além de precários favelas, mocambos, cortiços e palafitas. não geram renda suficiente para garantir um A consequente industrialização e ur- padrão de vida mínimo – e há empregos bons, banização brasileira, ao longo do século XX, mas de difícil acesso, que geram níveis de ren- afirmam a cidade como lócus da desigualdade da e de segurança aceitáveis; em geral, a seg- socioambiental. mentação acontece em termos de raça, sexo, Portanto, a percepção desse complexo nacionalidade); f) exclusão da possibilidade de quadro requer uma reflexão fundamentada so- garantir a sobrevivência; g) exclusão do acesso bre as análises que percebam a multidimensio- a terra; h) exclusão em relação à segurança em nalidade da questão. três dimensões: insegurança física, insegurança Para tanto, destacam-se as considera- em relação à sobrevivência (risco de perder a ções de autores como Dupas (1999), Sposati possibilidade de garanti-la) e insegurança em (1996), Véras (1999), Lopes (2001), Martins relação à proteção contra contingências; i) ex- (1997), com o objetivo de situar algumas refle- clusão dos direitos humanos. xões sobre os conceitos de inclusão precária e/ Percebe-se que o caráter "multidimen- ou exclusão social para que se possa analisar sional" a que se refere Rogers pode possibilitar a relação entre a constituição da pobreza e a uma compreensão ampliada da questão quan- ocupação territorial. do a relacionamos às dinâmicas de ocupação Inicialmente, o amplo espectro do que se territorial e suas injunções. possa compreender por exclusão é trazido por Já Sposati (1996), trabalha com a ideia Dupas (1999, p. 20), ao apresentar a visão de de exclusão como um processo discriminatório Rogers (1995), na qual, de abrangência social/coletiva, resultante da [...] a abordagem da exclusão social é em sua essência “multidimensional”, incluindo uma ideia de falta de acesso não só a bens e serviços, mas também à segurança, à justiça e à cidadania. Ou seja, relacionam-se a desigualdades econômicas, políticas, culturais e étnicas, entre outras. Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 desigualdade social, econômica e política da sociedade brasileira. A leitura do problema apontada por Véras (1999, p. 44) baseia-se na percepção de Francisco de Oliveira, na qual o sentido mais profundo da exclusão está ligado ao desejo dos burgueses brasileiros de mostrar que os 283 Paulo Romano Reschilian dominados são diferentes, segregando-os, [...] se caracteriza, basicamente, por criar uma sociedade dupla, como se fossem dois mundos que se excluem reciprocamente, embora parecidos na forma: em ambos podem ser encontradas as mesmas coisas, aparentemente as mesmas mercadorias, as mesmas ideias individualistas, a mesma competição. [...] Apesar disso, o imaginário que cimenta essa ruptura é um imaginário único, mercantilizado, enganador e manipulável. nem se preocupando mais em legitimar sua dominação na clássica fórmula de coerção e consenso. Mas deve-se considerar, para a compreensão dessa questão, a análise de Lopes (2001, p. 147), ao dizer que... A multidimensionalidade da exclusão social implica considerar que os problemas centrais da urbe são estruturais e que suas soluções não se reduzem mais às propostas “projetivas” (embora elas ainda sejam importantes), se não que devem ser analisadas na perspectiva interativa entre os lugares próprios valorizados pelos sujeitos e grupos humanos, em contraste com as redes que hoje consolidamse no mundo, mais visíveis nas cidades globais que nas megacidades. No entanto, a questão da exclusão social abordada pelos autores acima é revista por Martins (1997), ao questionar a abordagem da desigualdade que analisa a segregação, a impossibilidade de ascensão social como resultado de políticas de exclusão. Entendemos como Martins (ibid., p. 21) que, ao mencionar as políticas econômicas atuais, menciona que São políticas de inclusão das pessoas nos processos econômicos, na produção e circulação de bens e serviços, estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata) reprodução do capital. E, também, ao funcionamento da ordem política, em favor dos que dominam. Analisando a abordagem apresentada por Martins (ibid.), entendo que a lógica da inclusão precária evoca a constituição de um imaginário social sobre a cidade e sobre a condição de cidadania que se associa à valorização do lugar em que se está ou habita. Nessa medida, os mecanismos de inclusão precária podem gerar crenças que sustentam a condição humana na cultura de miséria e violência. Cabe perguntar: o que tem caracterizado o território ocupado nas condições de precariedade e o que contribui para a manutenção da desigualdade socioambiental nas cidades? O binômio pobreza-ocupação territorial constitui-se em elemento definidor de muitas áreas de concentração populacional periférica, gerador de uma dinâmica de uso irracional do solo nas cidades brasileiras, mas cuja racionalidade do mercado afirmou, pois, para Maricato (1996, p. 58), a população trabalhadora acaba se instalando nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas desvalorizadas. Os efeitos desse processo que suscitou urbanização acelerada e aumento de pro- A compreensão de Martins (ibid., blemas ambientais urbanos no Brasil fazem p. 21) sugere a percepção de uma "nova emergir um cenário denominado por Maricato desigualdade", que (ibid., p. 89) como "bombas socioecológicas", 284 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo ou seja, "regiões que reúnem os piores indicadores socioeconômicos e ambientais, que são resultado da desigualdade e da segregação espacial". Dessa forma, a condição humana materializa, no território das cidades, degradação e agressão ambiental que demarcam uma nova geografia do espaço urbano, uma vez que, segundo Marcondes (1999, p. 153), os processos ideológica. As políticas urbanas, ignoradas por praticamente todas as instituições brasileiras, cobram um papel importante na ampliação da democracia e da cidadania. Para começar, quando se pretende desmontar o simulacro para colocar em seu lugar o real, os urbanistas deveriam reivindicar a adoção de indicadores sociais e urbanísticos que pudessem constituir parâmetros/antídotos contra a mentira que perpetua a desigualdade. de reestruturação econômica geraram fenômenos brutais de exclusão social e de marginalização, o que se traduziu numa urbanização periférica cada vez mais descontínua, evidenciada pela planimetria da área urbanizada. Outro eixo de investigação pode ser A expressão da urbanização desigual: limites à ação cidadã na contemporaneidade apontado a partir da análise anterior e que Villaça (2001, pp. 44-45) enuncia como a relação que estabelece a dominação pelo espaço e a consequente segregação, sugerindo as questões: Como a classe dominante brasileira, e talvez latino-americana, usa o espaço urbano para fins de dominação e extorsão? Isso vem se dando somente através da periferia subequipada e do centro equipado? Sobre questões desse gênero, paira um silêncio sepulcral nas análises espaciais. Pretendemos contribuir para “quebrar” esse silêncio, pois qualquer análise sobre a dominação – como a que aqui pretendemos fazer com o espaço intraurbano – não pode prescindir da investigação da ideologia enquanto instrumento coadjuvante da dominação. Maricato (2000, p. 168) confirma essa premissa afirmando que O espaço não é apenas um mero cenário para as relações sociais, mas uma instância ativa para a dominação econômica ou Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 O denominado processo de favelização, portanto, pode ser percebido como constitutivo do cenário da manifestação da desigualdade social por meio da espacialização da pobreza na dimensão do território urbano. A contribuição de Souza e Silva (2002, p. 4) é reveladora quando se trata do entendimento que se faz dessa configuração espacial. O eixo paradigmático da representação desse espaço popular é a noção de ausência. A favela é definida pelo que ela não é ou pelo que não tem. Nesse caso, é apreendida como um espaço destituído de infraestrutura urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo; sem arruamento; globalmente miserável; sem ordem; sem lei; sem regras; sem moral, enfim, expressão do caos. Souza e Silva (ibid.) também considera que a construção das representações sobre a favela é uma tendência a percebê-la como algo homogêneo diante do olhar da sociedade. 285 Paulo Romano Reschilian Para ampliar a análise sobre o fenôme4 que, apesar do domínio do crime organizado no, a noção de habitus e a práxis social dele e da violência, tornaram-se assentamentos decorrente permite identificar estratégias de permanentes nos quais se identifica uma or- reprodução (e de sobrevivência) na configura- ganização social geradora de novas estratégias ção dos assentamentos precários que se clas- de inserção, tanto econômica quanto socio- sificam como favelas, pois, segundo Lagazzi- cultural. Rodrigues e Brito (2001, p. 53), Ao mesmo tempo em que essas habitações, desviantes do ponto de vista do planejamento urbano, deixam evidente a exclusão de determinados grupos sociais dos centros urbanos, elas constituem condição indispensável para esses grupos se incluírem na vida urbana da sociedade. Kowarick (1993) diz que essas habitações passam, então, a se constituir como “fórmula de sobrevivência” do meio urbano, já que são a única solução de moradia para aqueles que não têm como pagar por um terreno em condições consideradas decentes. Além disso, é preciso salientar que tanto do ponto de vista da conformação espacial quanto pela visibilidade no espaço urbano que as identificam com tal, as favelas não podem ser entendidas como um universo homogêneo, seja como tipologia, seja como forma de constituição, seja como desenvolvimento de estratégias de reprodução. Isto porque constitui-se na história de determinados processos urbanos como determinantes para a construção do tecido social e urbano e suas transformações podem indicar aspectos de mobilidade no território e de permanência, já que o contexto regional se altera e essas formas de assentamentos passam a ter diferentes representações para seus moradores e para a sociedade da cidade em que as favelas se inserem. Exemplo dessa condição são algumas favelas localizadas na cidade do Rio de Janeiro, 286 Nesse sentido, amplificam a complexidade das questões que envolvem esse tipo de assentamento, pois convivem, lado a lado, o crime e a violência e as tentativas de inserção social e qualificação desses espaços. Portanto, a compreensão desse fenômeno deve localizar-se para além das visões estereotipadas, presentes, inclusive, nas concepções intervencionistas institucionais, pois, para Souza e Silva (2002, p. 9), Sustentadas nesses tipos de representação, as intervenções institucionais encaminhadas nas favelas, em sua maioria – tanto do poder público como as acadêmicas –, caracterizaram-se pela ignorância e/ou idealização das estratégias, criativas, complexas e heterogêneas, efetivadas pelos atores locais no sentido de melhorarem sua qualidade de vida. As intervenções, em geral, desconheceram – ou mitificaram – os mecanismos de sociabilidade; de circulação na sociedade formal; de intervenção na vida pública; de compreensão das relações sociais, nos seus mais variados níveis e, para não ser exaustivo, de interpretação das próprias situações de (sobre)vivência que os moradores foram produzindo historicamente. Pode-se afirmar que a favela – ainda que reurbanizada – suscita a permanência ou manutenção de um habitus que se configura distante da lógica presente no padrão de urbanidade idealizado. Consagra-se como forma de reinserção no território, mas não se qualifica Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo como moderno ou contemporâneo, apesar de apresentar-se como solução social e urbanística, na maioria das vezes. A pesquisa organizada por Lopes (2001) pode ser ilustrativa das questões que se tem o conceito de cidadania, tal confusão cria tensões crescentes entre segmentos ou categorias de sujeitos que produzem a urbe, criando também obstáculos para a definição dos fenômenos que os conformam. procurado evidenciar ao longo deste trabalho. Com o estudo realizado no município de Ubatuba, litoral norte do estado de São Paulo, pretendeu-se pesquisar as imagens da pobreza e sua dimensão no território, bem como identificar suas representações a partir da investigação da população moradora da favela denominada Sertão das Sesmarias. Ao refletir sobre as imagens produzidas pela população acerca de si mesma e sobre sua inserção na cidade Lopes (ibid.) identifica que a percepção da condição de exclusão é ausente e que a manifestação acerca de seus problemas sociais é difusa. A capacidade de distinguir os problemas cotidianos e de construir representações sobre o ambiente circundante associa-se à qualidade do habitat produzido. A investigação realizada sob esta abordagem revela a possibilidade de identificar elementos constitutivos que compõem a divisão do território das cidades em que se aplicam, por um lado, leis e normas urbanísticas e, por outro, permissividade, abandono, trazendo como consequência uma expansão periférica e uma ocupação à margem dos padrões preconizados. Nesse sentido, a reflexão de Lopes (ibid., p. 143) contribui para evidenciar a abordagem pretendida neste trabalho, na qual a passagem da condição de urbanita a cidadão, [...] confunde-se com os ideais de modernidade, por sua associação histórica com Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Nesse sentido, pode-se inferir que a urbanidade torna-se um ideal a ser convertido em estilo de vida. Tal condição sugere a ocorrência de uma tensão entre o que se denomina uma pragmática – assentada no princípio da propriedade privada que se materializou por meio do trabalho – e uma dogmática que pensa a urbe. Portanto, embora o ideal de urbanidade tivesse a pretensão de alcançar a universalidade, ele não se realizou para todos. Para Lopes (ibid., p. 147) Como o ideal de urbanidade não se realizou para todos, a cidadania também não. O resultado evidente disto na cidade é a pobreza, com suas consequências: a segregação urbana, a marginalidade, a favela, a violência, a segmentação, a estratificação na distribuição dos serviços urbanos. Dessa forma, a pobreza passa a ser considerada como contraparte negativa do processo civilizador da urbanidade e passa a exigir dos planejadores e do estado intervenções projetivas visando a “higienização” do espaço urbano. Mas, na maioria das vezes, tais intervenções desconsideraram o direito à cidade para aqueles considerados como contrapartida negativa do processo de urbanização moderna. Portanto, entendemos, como Lopes (ibid., p. 147), que 287 Paulo Romano Reschilian A multidimensionalidade da exclusão social implica considerar que os problemas centrais da urbe são estruturais e que suas soluções não se reduzem mais às propostas “projetivas” (embora elas ainda sejam importantes), se não que devem ser analisadas na perspectiva interativa entre os lugares próprios valorizados pelos sujeitos e grupos humanos, em contraste com as redes que hoje se consolidam no mundo, mais visíveis nas cidades globais que nas megacidades. Diante do exposto, Souza e Silva (2002, Considerações finais A produção social da paisagem na realidade histórica brasileira configurou um cenário de desigualdade socioespacial especialmente nas regiões metropolitanas brasileiras. A prática de planejamento urbano no Brasil trouxe, historicamente, a marca, seja da perspectiva do embelezamento, seja da segregação ou de um tecnicismo amparado inúmeras vezes pela aparato do Estado. p. 16) sustentam a necessidade de identificar, A partir de 1988, com a introdução na classificar e interpretar as práticas sociais nos Constituição Federal dos capítulos referentes à espaços dos favelados para que se possa ir política urbana e da posterior aprovação, em além das representações estereotipadas que 2001, do Estatuto da Cidade, e, logo em se- têm caracterizado os discursos hegemônicos guida, a criação do Ministério das Cidades em sobre os espaços populares, identificando-se a 2003, abriram-se novas possibilidades para o construção de identidades territoriais específi- alcance da gestão democrática das cidades e, cas constituídas historicamente. consequentemente, de ampliar o exercício da Desse modo, para complementar o cam- cidadania, tendo em vista a criação de meca- po de análise das estratégias de reprodução e nismos de gestão e instrumentos urbanísticos. conformação dos espaços gerados por assen- No entanto, a marca histórica da dinâmica ur- tamentos precários, a incorporação da dimen- bana e da espacialização da pobreza promo- são subjetiva faz-se necessária. tora da existência de assentamentos precários Essa possibilidade talvez ajude a enten- tem marcado o processo de construção social der por que, a despeito de inúmeras ações e da paisagem urbana. A despeito dos avanços diretrizes difundidas desde a promulgação do resultantes da política urbana derivada das Estatuto da Cidade (2001) e da criação do Mi- exigências contidas no Estatuto da Cidade e nistério das Cidades (2003), ainda se observa das diretrizes e normativas do Ministério das uma ordem territorial que expressa marcas de Cidades, o cenário das cidades e regiões me- desigualdade socioespacial tão contundentes tropolitanas sofreu poucas transformações em inúmeros municípios brasileiros, e, predo- quando se analisa a desigualdade socioespa- minantemente, nas regiões metropolitanas. cial e socioambiental existente. 288 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Gestão democrática da metrópole na periferia do capitalismo A complexidade da análise das questões co os elementos intersubjetivos que atuam na que envolvem essa não transformação efetiva configuração desse cenário e que dela surjam requer a adoção de um olhar multidimensional indicativos que possibilitem formas de ação ci- que traga à luz do debate político e acadêmi- dadã e participativa na gestão do território. Paulo Romano Reschilian Arquiteto urbanista. Universidade do Vale do Paraíba. São José dos Campos, São Paulo, Brasil. [email protected] Notas (1) O Seminário Nacional pela Reforma Urbana, organizado pelo IAB – Ins tuto dos Arquitetos do Brasil foi realizado na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, em 1963, já trazia questões rela vas à desigualdade social relacionados aos problemas urbanos existentes. (2) Fonte IBGE http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1940_1996. shtm Acesso em 11 fev. 2009. (3) Fonte h p://www.portalbrasil.net/brasil_populacao.htm Acesso em 11 fev. 2009. (4) Conceito extraído de Bourdieu (1996 e 1999) e Or z (1983). Referências BONDUKI, N. (1998). Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura Moderna, lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo, Estação Liberdade/Fapesp. BOURDIEU, P. (1996). Razões práƟcas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP, Papirus. ______ (1999). A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspec va. DUPAS, G. (1999). Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. São Paulo, Paz Terra. LAGAZZI-RODRIGUES, S. e BRITO, P. S. (2001). “As ocupações dos sem-teto na discursividade da cidade”. In: ORLANDI, E. (org.). Cidade atravessada: os senƟdos públicos no espaço urbano. Campinas, SP, Pontes, pp. 51-59. LEFEBVRE, H. (1969). Direito à cidade. 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Texto recebido em 20/jun/2009 Texto aprovado em 15/set/2009 290 Cad. Metrop., São Paulo, v. 12, n. 23, pp. 277-290, jan/jun 2010 Instruções aos autores ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL A revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema políticoinstitucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá três exemplares do número em que for publicado seu trabalho. O Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es), deve ser enviado juntamente com o artigo. NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos podem ser redigidos em português ou espanhol. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para a língua portuguesa. A fim de garantir o anonimato dos autores, os artigos apresentados não devem conter dados referentes aos autores ou indicações que os identifiquem. Os nomes dos autores devem ser informados em uma folha de rosto, constando grau acadêmico, filiação institucional, cidade, estado, país e e-mail. Os trabalhos devem ser encaminhados em CD, 2 (duas) vias impressas e a folha de rosto. Os artigos devem ser enviados em Word, digitados em espaço 1,5, fonte Arial tamanho 11, margem 2,5 cm; tabelas e gráficos em Excel; imagens em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm, sendo que os gráficos e imagens devem ser em tons de cinza. Os artigos devem ter um resumo de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e seu correspondente em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave, nas duas línguas. Os trabalhos devem ser enviados para: Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil, respeitando-se a data-limite de postagem estabelecida na chamada de trabalho. Após seu recebimento, os trabalhos serão enviados aos pareceristas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da Educ, adaptadas da ABNT, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005. Próxima Chamada de Trabalho Cadernos Metrópole v. 13, n. 25 Impacto dos Grandes Projetos nas Metrópoles As metrópoles no Brasil e no mundo têm sido palco de grandes projetos urbanos, envolvendo a reestruturação das áreas portuárias, a revitalização das áreas centrais, a promoção de eventos esportivos, entre outros. Em geral, tais intervenções são legitimadas com um discurso fundado nos benefícios gerados para a cidade e seus cidadãos. Não obstante eventuais positividades, estamos diante de investimentos de grande escala com grande impactos sobre a dinâmica das cidades. Além disso, os grandes agentes econômicos aparecem como os principais atores nos processos decisórios em torno desses investimentos e também como seus principais beneficiários. O objetivo deste número dos Cadernos Metrópole é reunir artigos que reflitam sobre os impactos dos grandes projetos na dinâmica urbana das metrópoles, o papel do Estado neste processo, sua capacidade de gerar efeitos de integração social e de contribuir na universalização do direito à cidade. Data-limite para postagem dos trabalhos: 10 de agosto de 2010 Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São Paulo – SP – Brasil. Telefax: (11) 3368.3755 Cel: (11) 9931.9100 [email protected] Exemplares nºs _________ Assinatura referente aos números _____ e _____ Nome ___________________________________________ Endereço ________________________________________ Cidade ____________________ UF _____ CEP _________ Telefone ( Fax ( ) _______________ ) _____________ E-mail __________________________________________ Data ________ Assinatura __________________________