Direito - Ajuris - Escola Superior da Magistratura
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imes r e v i s t a A r t i g o Artigos A Proteção Ambiental, a Propriedade Privada e um Novo Paradigma José Blanes Sala ...................................................................................................................................................... 5 Mídia e Direito Estela Cristina Bonjardim ..................................................................................................................................... 12 A Universidade, o Estudo do Direito e a Nova Realidade Carlos João Eduardo Senger .................................................................................................................................. 39 A Incômoda Solução Chamada Ação Afirmativa Sandro César Sell ................................................................................................................................................... 53 Atos de Concentração no Segmento de Autopeças: Casos Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle e Dana-Echlin Antonio Celso Baeta Minhoto ................................................................................................................................ 65 Papel do Ensino Jurídico no Futuro da Advocacia Luiz Flávio Borges D’Urso ...................................................................................................................................... j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 82 3 D ireito A r t i g o D ireito Expediente Revista IMES Direito – Uma publicação do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul Ano III – n. 6 janeiro/junho 2003 Fechamento desta edição: Produção Pró-Reitoria Comunitária e de Extensão Coordenadoria de Comunicação Maio/2004 Diretor da Mantenedora Coordenador Editorial José Maria Trepat Cases Marco Antonio Santos Silva Vice-Diretor da Mantenedora Marcos Sidnei Bassi Reitor Laércio Baptista da Silva Pró-Reitor de Graduação Carlos Alberto Macedo Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa René Henrique Licht Pró-Reitor Comunitário e de Extensão Joaquim Celso Freire Silva 4 Conselho Editorial Álvaro Villaça Azevedo Armador Paes de Almeida Cândido Rangel Dinamarco Francisco Léo Munari Giselda Maria Novaes Hironaka Nelson Mannrich Rui Geraldo Camargo Viana Teresa Ancona Lopes Vicente Grecco Filho Conselho Técnico Professores do Curso de Direito Coordenador do Curso de Direito José Maria Trepat Cases Jornalista Responsável Roberto Elísio dos Santos MTb 15637 Produção Editorial Rosemeire Carlos Pinto Diagramação e Revisão Know-How Editorial Impressão HM Indústria Gráfica e Editora Ltda. Tiragem: 500 exemplares Revista IMES Direito Av. Goiás, 3.400 São Caetano do Sul - SP - Brasil Tel.: (11) 4239-3259 Fax: (11) 4239-3216 E-mail: [email protected] O IMES, em suas revistas, respeita a liberdade intelectual dos autores, publica integralmente os originais que lhe são entregues, sem com isso concordar necessariamente com as opiniões expressas. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o A PROTEÇÃO AMBIENTAL, A PROPRIEDADE PRIVADA E UM NOVO PARADIGMA José Blanes Sala Mestre e Doutor em Direito Internacional pela USP. Professor de Direito Internacional no Imes e na Universidade São Judas Tadeu. R E S U M O ABSTRACT O Direito Ambiental supõe uma reformulação global e radical do sistema jurídico moderno e, conseqüentemente, também dos seus conceitos centrais, sobretudo no que tange ao conceito de propriedade privada. Neste artigo, expõe-se de forma rápida e sintética a opinião de diversos autores que escreveram no final da década de 1990 propondo um novo paradigma para o mundo do Direito. Alertam todos eles para a necessidade de uma redefinição da idéia de liberdade que contenha um duplo limite: o social e o ambiental. The enviromental law assumes a global and radical reformulization of a modern legal system and, consequently, also of its central concepts, over all, the way it refers to the concept of private property. In this article, the opinion of differents authors, who wrote about this theme at the end of the 90´s, is exposed of an agile and synthetic way, considering a new paradigm for the world of the law. They alert for the necessity of a redefinition of the freedom idea that contains a double limit: the social and the enveroimental one. 1 UM NOVO PATAMAR DE COMPLEXIDADE “A pesquisa científica sobre as inter-relações entre sociedade e meio ambiente encontra-se em rápida evolução em todo o mundo” – é assim que Freire Vieira1 inaugura o seu estudo sobre as ciências sociais no Brasil e a problemática ambiental durante a década de 1980. “A interdependência dos diversos fatores envolvidos cria um novo patamar de complexidade, que coloca em cheque as esferas de competência tradicionalmente associadas a disciplinas 1 científicas isoladas”, diz ele. Efetivamente, esse novo patamar de complexidade vai exigir da ciência jurídica um esforço inusitado para adequar-se à nova realidade ambiental, do qual são testemunhas diversos autores que escrevem no final da década de 1990 propondo um novo paradigma para o mundo do Direito. Ao longo deste trabalho os iremos citando, junto com as suas abordagens novidosas e, às vezes, não isentas de polêmica. Freire Vieira, em seu trabalho, apresenta-nos um apanhado das contribuições associadas ao campo da sociologia, alertando para o desafio FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e as ciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais e desenvolvimento sustentável, p. 103 e ss. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 5 D ireito de que este tipo de pesquisa “... parece consistir na adoção de uma diretriz preventiva, capaz de balizar a concepção e a implementação de estratégias que compatibilizem os objetivos simultaneamente socioeconômicos, culturais, político-institucionais e ambientais da dinâmica de evolução das sociedades modernas”. A resposta para as mudanças na concepção jurídica não tardaria em concretizar-se com a preconização de um novo modelo teórico do Direito, mais acorde com a realidade ambiental e que fosse capaz de estruturar-se de forma mais orgânica, adaptando-se ao caleidoscópio socioeconômico, cultural e político. Trata-se de um modelo, até certo ponto, de produções inesperadas e de recentíssima gestação. Precisamente por esse fato, ainda disforme e primigênio, quer dizer, hesitante e um tanto contraditório. Não é, pois, uma nova temática do Direito, como vinha sendo considerado de início, dada a sua focalização exclusivamente técnica. Também não se prende apenas ao fator econômico desenvolvimento, como se pretendeu mais recentemente... Vai exigir a demolição de uma série de conceitos jurídicos anteriores que, na verdade, se apóiam em estruturas filosóficas e de visão de mundo. Assim o querem demonstrar alguns autores recentes que passaremos a analisar a seguir, acompanhando os principais tópicos de suas afirmações. 2 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE “... em que medida é possível a conciliação entre o desenvolvimento econômico e a proteção ao meio ambiente, e mais: até que ponto prevalece o interesse da proteção ambiental ou o interesse do desenvolvimento econômico? A pergunta é 2 6 A r t i g o relevante, na medida em que as imensas legiões de miseráveis do terceiro mundo dificilmente percebem que as suas condições de vida são o produto e conseqüência de uma determinada forma de desenvolvimento econômico, que produz como resultado previsível a pauperização e marginalização da imensa maioria da população no mundo.”2 É assim que Bessa Antunes, um dos nossos juristas mais conhecidos nesta área, introduz a nova visão do desenvolvimento sustentável, concepção que tem em vista a tentativa de conciliar a preservação dos recursos ambientais e o desenvolvimento econômico. Pretende-se que, sem o esgotamento desnecessário dos recursos ambientais, haja a possibilidade de garantir uma condição de vida mais digna e humana para milhões e milhões de pessoas, cujas atuais condições de vida são absolutamente inaceitáveis. Na verdade, como ele próprio afirma, esta nova visão procura colocar o Direito Ambiental no contexto do Direito Econômico. E a efetivação do princípio de proteção ao meio ambiente como princípio econômico implica, obrigatoriamente, a mudança de todo o padrão de acumulação de capital, a mudança do padrão e do conceito de desenvolvimento econômico. O fator econômico deve ser encarado como desenvolvimento e não como crescimento. O desenvolvimento se distingue do crescimento na medida em que pressupõe uma harmonia entre os diferentes elementos constitutivos. Já o crescimento tem o significado da preponderância e prioridade da acumulação de capital sobre os demais componentes envolvidos no processo. O reconhecimento da natureza econômica das normas de Direito Ambiental vai trazer consigo uma inegável e rápida repercussão na con- BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental, p. 15 e ss. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o ceituação do Direito de Propriedade. Os bens ambientais – estejam submetidos ao domínio público ou privado – são considerados de interesse comum. Então a função social da propriedade passa a ter como um de seus condicionantes o respeito aos valores ambientais. Quer dizer que a propriedade não utilizada de maneira ambientalmente sadia não cumpre a sua função social. Neste sentido, cumpre citar a lição de Gomes Canotilho, ao comentar a jurisprudência ambiental portuguesa, e relacionar a proteção ao meio ambiente e ao direito de propriedade: “Neste final de milênio parece indiscutível que as exigências de proteção ao ambiente natural ou construído (proteção da natureza, proteção ao patrimônio cultural), vêm colocar (ou recolocar) dois problemas de particular importância: (1) o das relações recíprocas entre a garantia institucional da propriedade e do direito fundamental da propriedade, por um lado, e o da proteção do ambiente, por outro; (2) o da conformação jurídica destas relações pelo legislador e pelos tribunais. A primeira idéia a realçar é a do reforço da vinculação social da propriedade por motivos ecológicos. Esta tendência desenha-se com nitidez a partir dos finais dos anos sessenta. A intensificação dos vínculos incidentes sobre a propriedade obriga, porém, a novos esforços dogmáticos no sentido de saber em que casos deve o proprietário suportar ‘medidas autorizativas de compressão ecológica’ sem qualquer direito a ‘compensações patrimoniais’. É neste contexto que se situa a recente fórmula da juspublicística alemã: ‘determinação do conteúdo da propriedade com o correspondente dever de indenização’”.3 3 3 DA PROPRIEDADE PRIVADA AO USUFRUTO ECOLÓGICO Na verdade, hoje, com relação ao conceito de propriedade e outros conceitos básicos do Direito, como a liberdade ou a igualdade, o já reconhecido Direito Ambiental coloca-se de duas forma básicas: a primeira considera que os problemas suscitados ao sistema jurídico pelas demandas emergentes da crise ecológica são de índole estritamente técnica. E estas demandas são resolúveis mediante a extensão – com alguns retoques – dos conceitos e instrumentos do sistema jurídico ao novo objeto: o meio ambiente. Por este ponto de vista, ele apenas conteria a novidade de um objeto de regulamentação inédito. Na segunda forma, que Garrido Peña desenvolve em interessante trabalho, o Direito Ambiental supõe uma reformulação global e radical do sistema jurídico moderno e, conseqüentemente, também dos seus conceitos centrais. A novidade consistiria não apenas no objeto, como também no sujeito e nos instrumentos de intervenção jurídica. O citado autor deixa claro, de início, que para ele os principais valores que o sistema jurídico oferece atualmente são a liberdade e a propriedade. “De esta caracterización inicial de la teoria jurídica del valor moderno se desprenden dos construcciones/representaciones de la libertad que tienen una grave incidencia en la oposición entre la ontología jurídica y el paradigma ecológico: por un lado está la representación ilimitada e incondicionada de la libertad (infinita y absoluta), y en segundo lugar, la representación subjetivista de la misma (la libertad GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental, p. 96. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 7 D ireito como obra del sujeto). Estas dos representaciones e la libertad son congruentes con la absolutización de la propiedad como la forma jurídica que hace posible la producción infinita del sujeto ilimitadamente libre. Esta libertad ilimitada y subjetiva legitima la desigualdad radical que supone la propiedad privada. Los efectos ambientales y sociales de sistemas legitimados sobre concepciones individualistas e incondicionados de la libertad son ya del todo conocidos.”4 Para Garrido Peña, então, “la misma fuerza que realiza la explotación social es la que ejecuta el programa de expolio y depredación del medio natural. Fuera del sujeto propietario solo hay materia inerte, lista para ser dominada y mercantilizada.” Portanto, citando Ferrajoli, lembra que “cuando una libertad individual transgride el consenso constituyente sobre esta regla de oro de la igualdad de libertades usurpando la libertad del otro, entonces no estamos ante un ejercicio de libertad sino de poder.5 A este límite le llamaremos el límite social de la libertad individual”. Assim, esclarece que, do mesmo modo que o sujeito individual não deve ser ilimitadamente livre ou proprietário, o sujeito generacional também não pode dispor de liberdades que anulem as liberdades e a vida das gerações vin- 4 5 8 A r t i g o douras. “Por tanto, en unos casos el límite al ejercicio de la libertad es social y en otros es ambiental.” Daí a necessidade de uma redefinição da liberdade, que contenha um duplo limite: o social e o ambiental. Esta redefinição nos acompanha até uma ética e uma ontologia da finitude na qual a individualidade se representa como autonomia. Para Garrido Peña, “la propiedad privada es una institución que está intimamente vinculada con el concepto del sujeto moderno y la representación de la libertad como ilimitada, característica también de la modernidad. Aquello que se tiene en propiedad se puede gozar y usar sin límites, sin más límites que la voluntad del propietario. Las libertades de los otros y los recursos naturales se ven amenazados por una institución que hace de cada propietario un soberano y un déspota. Es necesario pues limitar esta institución hasta la línea en que ponga en peligro las libertades de los otros o las condiciones ecológicas de reproducción de la vida”. Este autor considera que os recursos naturais não devem, em uma perspectiva ecológica, ser considerados coisas, mas entidades vivas com as quais se interage. É preciso ir além dos direitos reais a fim de procurar formas que reflitam essa limitação e provisionalidade da relação sustentável de possessão dos recursos naturais. Por isso, propõe, “existen en nuestra tradición jurídica figuras e institutos mas cercanos al modelo de libertad (finita y ecológica) que el que representa la pro- GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología política redefine conceptos centrales de la ontología jurídica tradicional: libertad y propiedad. O novo em direito ambiental, p. 213 e ss. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal, p. 908. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o individual, como os tradicionais, nem um direito social, correspondente à segunda geração do direito. Essa evolução para a terceira geração dos direitos traz problemas para a estrutura da teoria jurídica. É um direito difuso, difícil de limitar. Ao contrário dos direitos liberais, que são uma garantia do indivíduo diante do poder do Estado, e ao contrário também dos direitos sociais, que consistem basicamente em prestações que o Estado deve ao indivíduo, o direito difuso ao meio ambiente consiste num direito-dever, na medida em que a pessoa, ao mesmo tempo em que é titular do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, também tem a obrigação de defendê-lo e preservá-lo (...) é um direito ‘erga omnes’ em duas direções. Primeiro porque todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não existe um ‘status’ que atribua a titulariedade desse direito. Segundo porque as obrigações que se referem àquela expectativa são de todos; e aqui falamos todos no sentido de que não é apenas ao Estado que cabe velar pelo meio ambiente, mas todas as pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas, têm o dever de preservar um meio ambiente adequado para a sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações”.6 piedad privada. Una mezcla entre dos figuras venerables: el usufructo y el fideicomiso. De estas figuras surge un modelo de propiedad disminuido y limitado. Se trataria de una especie de usufructo fideicomisario”. A proposta deste autor consistiria em um usufruto ecológico, realizando-se sobre uma dupla limitação ambiental: a limitação física (a finitude dos recursos naturais) e a limitação generacional. Do sucesso da limitação ética, política e jurídica (generacional) depende que possa evitar-se o limite físico. Nesse sentido, o usufruto ecológico deve entender-se mais como uma função garantista dos direitos generacionais e da vida (biodireito) do sujeito difuso biosfera (o qual supõe os direitos individuais de todos os membros em potência da espécie) do que como um instituto novo ou reformado dos já existentes. Uma função intermediária entre os direitos reais modernos e os direitos difusos e biocêntricos do futuro. 4 OS DIREITOS HUMANOS DE TERCEIRA GERAÇÃO As considerações sobre a propriedade nos levam como que pela mão aos direitos difusos. A defesa dos interesses difusos, não estando baseada em critérios de dominialidade, entre sujeito ativo e objeto jurídico tutelado, dispensa uma relação prévia de direito material. Como explica com pertinência Cardoso Borges, “o direito ao meio ambiente traz dificuldades para a teoria jurídica porque não é um direito 6 5 A CRÍTICA AO ANTROPOCENTRISMO E UM NOVO PARADIGMA PARA A TEORIA JURÍDICA A citada autora também afirma com Garrido Peña que não basta que se crie um novo ramo do Direito, autônomo, com princípios e instrumentos próprios, como é o Direito Ambiental, porque a disciplina vai continuar imersa em um CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX. O novo em direito ambiental, p. 20 e ss. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 9 D ireito sistema jurídico inadequado para o novo milênio, pois sua estrutura e muitos dos seus institutos ainda lembram o século XIX. As circunstâncias atuais requerem um Direito muito diferente do Direito daquela época, principalmente no que tange à economia, ou aos interesses individuais, grande objeto de proteção no passado. Como diz Benjamin: “se a dimensão ambiental não for suficientemente incorporada no sistema jurídico como um todo, o Direito Ambiental e as normas ambientais dificilmente serão aplicados”.7 Neste sentido é de se destacar o esforço realizado com a recentíssima edição do novo Código Civil brasileiro, o qual estabelece que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”,8 bem como a criação do Estatuto da Cidade em busca de regras municipais de gerenciamento do território, tendo em vista o desenvolvimento regular da urbe em atenção ao meio ambiente artificial.9 No entanto, trata-se de esforços isolados, inseridos de forma ainda deficiente dentro do sistema jurídico. O fato é que se tem um Direito que é ambiental e todo um sistema jurídico não ambiental. Então, a recepção dessa dimensão ambiental pelo sistema jurídico pode representar o novo paradigma para a teoria jurídica. Assim o aponta Cardoso Borges: 7 8 9 10 A r t i g o “sem dúvida, a ciência moderna, principalmente as naturais, sofre esta mudança paradigmática do pensamento positivista, cartesiano, mecanicista, para um pensamento holista, orgânico. Também as ciências humanas, e aí o direito, questionam a onipresença da ética antropocêntrica, que tem o homem como centro de todas as coisas, mas convergindo para uma complexidade mais ampla, fruto da colaboração de várias vertentes”. E assim também o reconhece Bessa Antunes, alertando, contudo, para o perigo de eventuais exageros: “A questão que se coloca é a de não confundir a superação do antropocentrismo com uma modalidade de irracionalismo, muito em voga atualmente, que, colocando em pé de igualdade o Homem e os demais seres vivos, de fato, rebaixa o valor da vida humana e transforma-a em algo sem valor em si próprio, em perigoso movimento de relativização de valores. O que o Direito Ambiental busca é o reconhecimento do Ser Humano como parte integrante da Natureza. Reconhece também, como é evidente, que a ação do Homem é, fundamentalmente, modificadora da Natureza, culturizando-a. Entretanto, o Direito Ambiental afirma a negação das concepções passadas, pelas quais, ao Ser Humano, competia subjugar a Natureza. Não. O Direito Ambiental estabelece a normatividade da harmonização entre todos os componentes do mundo natural culturizado, no qual, a todas luzes, o Ser Humano desempenha o papel essencial”. BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina, p. 104. Artigo 1.228, § 1º da Lei n. 10.406/02. Lei n. 10.257/01. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: RT, 1995 – volume 0 – outubro a dezembro. BESSA ANTUNES, Paulo. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. FREIRE VIEIRA, Paulo et al. A problemática ambiental e as ciências sociais no Brasil. Dilemas sócio-ambientais e desenvolvimento sustentável. Campinas: Unicamp, 1993. GARRIDO PEÑA, Francisco. De como la ecología política redefine conceptos centrales de la ontología jurídica tradicional: libertad y propiedad. O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. CARDOSO BRASILEIRO BORGES, Roxana. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX. O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. GOMES CANOTILHO, J. J. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica de jurisprudência ambiental. Coimbra: Coimbra Ed., 1995. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Barcelona: Trotta, 1995. PEÑA FREIRE, Antonio. La garantía en el Estado constitucional de Derecho. Barcelona: Trotta, 1997. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 11 imes r e v i s t a A r t i g o ATOS DE CONCENTRAÇÃO NO SEGMENTO DE AUTOPEÇAS: CASOS COFAP-MAGNETTI-MARELI-MAHLE E DANA-ECHLIN Antonio Celso Baeta Minhoto Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor do IMES de Teoria Geral do Direito Público. Advogado atuante em São Paulo. R E S U M O ABSTRACT Análise de dois casos de concentração mercadológica, em que os supostos ganhos econômicos advindos do ato de concentração foram relativizados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, atraindo indagações sobre a condução da questão. The two mercadological concentration cases analise, on which the supposed economical gains brought by de concentration act were minimized by the Cade, atracting real interrogations about the quality of the conduction’s case. 1 INTRODUÇÃO O campo de estudo delineado pelo tema contempla ao menos alguns aspectos do chamado Direito da concorrência. Contudo, cumpre notar, já de plano, que tivemos por preocupação primeira ou mesmo primordial a análise do tema da forma mais didática e clara possível, por vezes correndo o risco de perder alguma profundidade, em homenagem a um entendimento mais claro e simples de alguns elementos. Por outro lado, o trabalho presente pretende ser, muito embora de forma bastante dirigida e sem traço de pretensão exagerada, uma contribuição efetiva, prática, para todos aqueles que intencionam estudar o assunto em tela, notadamente na esfera acadêmica, mais especificaj a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 mente em relação aos chamados atos concentracionais e à defesa da concorrência. Antes de adentramos ao estudo específico do ato de concentração referido, alguns pontos do Direito concorrencial, e de economia mesmo, devem ser trazidos a lume aqui, sob pena de que eventual análise singular do ato de concentração em si mostre-se por demais divorciada de seu real contexto. São itens fundamentais à presente exposição. 2 MERCADO E MERCADO RELEVANTE: NOÇÕES E CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS A palavra mercado traz consigo, basicamente, duas idéias: a primeira, relacionada a uma 65 D ireito concepção física, material, do que seria mercado, diz-nos que “mercado é lugar público, ao ar livre ou em recinto fechado, onde se vendem e se compram mercadorias” ou, ainda no mesmo sentido mas de forma mais simples, “lugar onde se comerciam gêneros alimentícios e outras mercadorias”.1 A segunda concepção, e a que mais interessa a esse trabalho, é de cunho subjetivo e dá conta de que mercado seria “o conjunto de pessoas e/ou empresas que, oferecendo ou procurando bens e/ou serviços e/ou capitais, determinam o surgimento e as condições dessa relação;”2 ou, de uma forma mais singela, ensina-nos Maria Helena Diniz ser o mercado “a esfera das relações econômicas de compra e venda, das quais resulta o preço, havendo ajuste”,3 e por fim, “conjunto de operações sobre determinada mercadoria, ou certos valores vendáveis”.4 O mercado, pois, mostra-se como o palco em que se inter-relacionam os vários atores que o compõem, segundo normas – fundamentalmente de conduta – criadas por estes próprios atores e também pelo Estado, que nessa relação, em regra, pode sempre intervir. Se a conceituação de mercado exibe-se de forma bastante tranqüila, o mesmo já não se pode dizer do próximo instituto a ser estudado, sucedâneo jurídico do primeiro e rigorosamente fundamental no estudo da concorrência, ou seja, o mercado relevante. 1 2 3 4 5 6 66 A r t i g o Para efeitos de avaliação do exercício do poder econômico, é fundamental constatar se esse exercício de poder efetivamente é capaz de limitar, dificultar ou inviabilizar a concorrência. Tal exercício, por sua vez, deve demonstrar relevância, termo que, já de plano, mostra dificuldades de aceitação entre alguns doutrinadores que apodam tal idéia como uma tradução imperfeita ou mesmo idiossincrática da palavra inglesa relevant, donde se originou o termo em português, sendo que, no idioma natal, o termo guarda mais proximidade com a idéia de pertinência e propósito do que com nossa concepção de importância. Tal distinção adquire especial relevo quando se verifica que, de fato, a idéia de mercado relevante traz consigo a noção de uma manifestação “na qual os produtos dele integrante (do mercado) são, em conjunto, objeto da concentração de ofertas e procuras que caracterizam a própria noção econômica de mercado”.5 Se delimitar a parte axiológica ou semântica do que seria mercado relevante já se mostra difícil, mais tormentosa ainda é a tentativa de tentar caracterizar de forma intrínseca o que seria mercado relevante. A concepção mais “popular”6 ou mais veiculada é igualmente contestada por vários doutrinadores, notadamente economistas, que nela vêem um tentativa de simplificação da temática que não consegue nem esgotar o tema nem aproximar-se de uma concepção mais científica. Grande dicionário larousse cultural e Novo dicionário Aurélio, respectivamente. Novo dicionário Aurélio. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 3, p. 254. Enciclopédia saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 52, p. 268. BRUNA, Sérgio Varella.O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp, 1996, p. 71. Esta concepção é advinda do Direito americano e foi criada, ou melhor, sedimentada por iterativa jurisprudência, estando ali disposto que “mercado relevante é composto de produtos que razoavelmente possam ser substituídos um pelo outro quando empregados nos fins para os quais são produzidos, sempre levando em conta o preço, a finalidade e a qualidade destes produtos” (citado por BARBIERI FILHO, Celso. Disciplina jurídica da concorrência: abuso do poder econômico. São Paulo: Resenha Tributária, 1984, p. 113.) j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Ocorre que a concepção citada, oriunda da jurisprudência americana e, reconheça-se, amplamente aceita por boa parte da doutrina (especialmente os juristas), foi classificada por alguns economistas, de forma mais técnica, como elasticidade cruzada da procura, que, por sua vez, nada mais é que o estabelecimento de um certo equilíbrio mercadológico em face de um dado produto, gerado pelo equilíbrio obtido na variação de procura.7 A adoção, sem maiores considerações, da concepção expressa de elasticidade cruzada da procura como fator determinante e baliza para delimitação, avaliação e demais considerações técnicas sobre o mercado relevante de um caso concreto, levou, como já dito, alguns doutrinadores a se insurgirem contra tal situação, chegando Hovencamp a afirmar que “os juízes, muitas vezes, utilizam-se equivocadamente do conceito de elasticidade cruzada da procura, porque não compreendem exatamente suas limitações”.8 O professor americano tem suas razões para afirmar o mencionado, já que diz – e tem boa parcela de razão nisso – que o entendimento jurisprudencial não leva em conta itens fundamentais, economicamente falando, para definir o mercado relevante do caso concreto, tais co- 7 8 9 10 11 mo o grau de semelhança dos produtos, lucros monopolísticos e movimentações já ocorridas no passado, envolvendo os produtos comparados.9 O primeiro item referido, por exemplo, traz a essencialidade em traçar diferenciações estruturais entre produtos que efetivamente não comportam substituição entre si. Assim, muito embora esponjas sintéticas e máquinas de lavar louça sejam ambas utilizadas para a lavagem de pratos, pouco ou nenhum grau de substituição se verifica entre ambos os produtos, pelo que se pode concluir, ao menos com razoável segurança, que eles não integram o mesmo mercado relevante.10 Por outro lado, e muito embora não se possa negar a fundamentalidade da análise econômica no Direito concorrencial, é preciso notar que tal postura não pode nem deve engessar a efetiva prestação jurisdicional ou, ao menos, a efetiva resposta às demandas relativas ao exercício do poder econômico postas nas mãos do julgador, seja ele juiz togado ou funcionário público à frente de um procedimento administrativo. Não se pode negar, igualmente, a relativa dificuldade em se conceituar e mais ainda em se definir mercado relevante em matéria de Direito concorrencial, ainda que tal dificuldade, como vimos com a declaração de Hovencamp, não seja exclusiva do caso brasileiro.11 A expressão elasticidade cruzada da procura é mencionada por BRUNA, op. cit, p. 69. Cf. HOVENCAMP, Herbert. Federal antitrust policy: the law of competition and its practice, 1994, p. 99, apud Bruna, op. cit., p. 76. HOVENCAMP, apud Bruna, op. cit., p. 77-78. O exemplo utilizado é de BRUNA, op. cit., p. 78. A dificuldade apontada é real. Um dos maiores doutrinadores da área do Direito comercial, BULGARELLI, Waldirio, em sua obra Concentração de empresas e direito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997, p. 126, diz, a respeito do mercado relevante, que “a noção de mercado relevante é ainda buscada pela doutrina nacional com afã (...) já no que concerne a mercado relevante, pensa-se em ‘relevant market’, em mercado afetado, sendo de levar em conta a decisão da Suprema Corte daquele país (EUA), referindo-se a ‘areas of effective competition’, portanto alcançando relações com bens, tempo, espaço e, ainda, produtos, demanda, preço”. Nada obstante o notório brilhantismo do autor em apreço, o fato é que seus comentários pouco ou nada respondem efetivamente quanto às características formais e intrínsecas de mercado relevante. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 67 D ireito Feita a ressalva, o fato é que, para um trabalho direcionado e de fundo jurídico como o presente, importa saber que mercado relevante delimita um dado espaço geográfico e envolve uma determinada gama de produtos, serviços e agentes econômicos, sendo que todos esses elementos, relacionando-se entre si, irão determinar uma função de equilíbrio tal que esta servirá como norte para uma avaliação da existência ou não da chamada concorrência perfeita (demanda inelástica) ou, por outro lado, de qualquer tipo de desequilíbrio decorrente do exercício do poder econômico por um dos agentes componentes desse mercado, capaz de afetar esse mesmo mercado de forma significativa. Para o caso brasileiro, vemos que a chamada norma antitruste em vigência, Lei n. 8.884/94, estipula em seu artigo 54, § 3º, a percentagem de 30% do mercado relevante como norte para avaliação do impacto do caso a ser examinado. Ao mesmo tempo, e no mesmo trecho da norma citada, há a fixação de outro critério para a subsunção de quaisquer atos potencialmente limitadores e/ou prejudiciais à concorrência, desta feita o faturamento bruto anual, que será tomado em face de qualquer dos partícipes do ato sob exame, pelo limite mínimo de R$ 100.000.000,00 (cem milhões) de Ufir. Portanto, os critérios da lei são bastante claros e diretos: faturamento e parcelas ou fatia do mercado relevante. Nesse último, será especialmente importante notar o âmbito geográfico da percentagem declinada (30%) em face do mercado destacado, ou seja, forçosamente se deverá determinar de que mercado relevante se estará falando, interno ou externo (nacional ou internacional), o que representa sensível destaque na avaliação de qualquer ato de concentração, uma vez que uma dada empresa pode possuir 50% do mercado nacional em seu setor 68 A r t i g o econômico mas, internacionalmente, esta participação pode representar 2 ou 3%. Encerrando este tópico, podemos afirmar, então, que havendo substitubilidade entre produtos razoavelmente similares – que, portanto e obviamente, comportem substituição entre si – e, por outro lado, delimitando-se geograficamente o âmbito em que se dará o ato a ser analisado, ter-se-á um mercado relevante pela frente. 3 CONCENTRAÇÃO HORIZONTAL E CONCENTRAÇÃO VERTICAL Pois bem, uma vez superada a análise e conceituação de mercado relevante, importa nesse momento adentrarmos ao exame do ato concentracional em si, sua natureza, características e aspectos mais relevantes para nosso estudo. Primeiramente, cumpre introduzir a seguinte pergunta: a concentração é uma figura/instituto jurídico ou econômico? Como uma tendência quase natural quando se trata de comentar elementos constituintes do direito Concorrencial, a seara econômica toma um espaço não só maior, mas também mais preponderante em qualquer análise. Aqui não é diferente. Aliás, os próprios juristas e doutrinadores da área jurídica reconhecem, mesmo fora do Direito antitruste, que a análise em geral de qualquer instituto ou objeto, ainda que em uma abordagem jurídica, deve ser precedida pelo estudo de sua natureza prática, ou não jurídica, chegando um ilustre doutrinador italiano a afirmar que “non si avventurino, mai ad alcuna tratazzione giuridica se non conoscono a fondo la struttura técnica e la funzione econômica dell´istituto che è l´oggetto dei loro studi (...) é una slealtà scientifica, è un difetto di probità parlare de um istituto per fissarne la disciplina giuridica j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o senza conoscerlo a fondo nella sua realtà (...) lo studio pratico della sua natura deve preccedere quello del diritto”.12 Destarte, a concentração, de uma forma lata ou genérica e para o aspecto aqui buscado, é toda forma de ampliação de poder econômico conseguido ou atingido pela empresa, através do incremento de seu faturamento direto, ou seja, a empresa aumenta seu faturamento pela ampliação de sua parcela no mercado (aquisição, compra, associação etc, de outras empresas de seu ramo de atuação) ou incorpora cadeias produtivas constituintes da feitura de seus produtos (insumos) à sua própria linha de produção original. Nessa definição já temos os elementos da diferenciação entre concentração vertical e concentração horizontal, o que nos torna aptos a tentar estudar cada uma separadamente. 3.1 Concentração Horizontal Nesta modalidade, verifica-se a concentração pela junção, seja em que modalidade for, de uma empresa em face de outra ou outras, todas componentes de um mesmo nicho ou setor econômico. Assim, por exemplo, se um dado produtor de peças para lataria de automóveis que detenha 20% de participação em seu mercado econômico unir-se (adquirir, associar-se, fundir-se etc.) a um seu concorrente que detenha 15% do mesmo mercado de produtos, teremos manifesto o fenômeno da concentração horizontal, em que ocorrerá um incremento 12 13 14 no faturamento de ambas as empresas – que passarão a ser uma só – bem como um inevitável aumento de participação no mercado daquele produto específico, no caso peças para latarias de automóveis, levando a nova empresa a deter 35% de tal mercado. Muito embora a concentração horizontal não apresente maiores dificuldades quando se busca simplesmente entendê-la, é preciso cuidado para não simplificá-la de forma rasteira ou superficial. No exemplo dado, em que a somatória das participações singulares das empresas que se uniram tornou-as possuidoras de uma participação maior de mercado, da ordem de 35%, poderíamos ser levados a crer que o abuso do poder econômico, que a limitação ou prejuízo à concorrência13 estariam patentes, mas não é bem assim. Todas as normas jurídicas devem ser interpretadas. Isso é ponto pacífico e dispensa maiores digressões, já que tal assertiva é espécie de princípio do Direito. A lei não existe em si, mas na concretude de sua aplicação ao caso materialmente posto à sua frente, reclamando sua aplicação prática. A partir dos fatos se terá como, em que medida, de que forma, com que intensidade e modo se dará a aplicação das previsões contidas na norma positivada.14 Pois bem, para a questão retro-referida, desse modo, o que se verifica como eixo fundamental na avaliação do ato concentracional é, em um primeiro ponto, para qual base geográfica mercadológica se está aplicando a análise do caso. Se, ao adotarmos o exemplo declinado, VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão: Giufrè, 1931, v. 1, p. 63. Cf. prevê o artigo 20, I, Lei n. 8.884/94. Cf. Superior Tribunal de Justiça: “A interpretação das leis é obra de raciocínio mas também de sabedoria e bom senso, não podendo o julgador ater-se exclusivamente aos vocábulos mas, sim, aplicar os princípios que informam as normas positivas” (STJ – REsp. n. 3.836, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 18.12.90). j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 69 D ireito aplicarmos a concentração operada para um mercado geográfico extremamente restrito – a cidade de São Paulo ou Rio de Janeiro, por exemplo –, 35% de participação pode se mostrar uma concentração excessiva, pode configurar um abuso de poder econômico e dificultação da concorrência (como vimos), especialmente se os outros 65% estiverem pulverizados em várias participações menores de outras empresas. Resultado diametralmente oposto será obtido se, para efeitos de análise do ato concentracional do exemplo, adotarmos o mercado nacional como base geográfica mercadológica, em que os 35% de concentração de um mercado local irão tornar-se ou poderão tornar-se algo como 1,2 ou 5%, ficando, assim, em um patamar e em uma caracterização que passarão longe de uma concentração de mercado excessiva e de um exercício abusivo do poder econômico. 3.2 Concentração Vertical Nessa modalidade de concentração, a empresa aumenta seu tamanho e faturamento pela aquisição (adquire, associa-se, funde-se etc.) de uma outra empresa, ou empresas que não são de seu ramo de atuação de uma forma direta, mas empresas que produzem insumos e itens componentes de seu produto final. Adotando-se o exemplo citado da empresa de peças para lataria, poderíamos adaptar à concentração vertical da seguinte forma: imagine-se que referida empresa somente operasse a parte de manuseio da chapa de aço, dobrando-a, furando-a, pintando, enfim, moldando-a e modificando-a a fim de obter a peça final, valendo-se, portanto, da aquisição da chapa de aço já pronta. Se esta mesma empresa adquirisse sua 15 70 A r t i g o fornecedora de chapas de aço, ou seja, a empresa metalúrgica que lhe fornece as chapas de aço para seu beneficiamento, estaria praticando um ato de concentração vertical, vez que estaria agregando um item de insumo de sua cadeia produtiva para sua própria exploração e produção. Aqui no caso da concentração vertical, além das ressalvas geográficas já feitas com relação à concentração horizontal – muito embora se reconheça que na concentração horizontal a definição geográfica do mercado relevante a ser analisado seja mais importante do que na concentração vertical –, ainda se deve fazer as ressalvas contidas no § 1º do artigo 54 da lei antitruste em vigência no país, ressalvas essas que visam preservar atos concentracionais que, muito embora possam ser vistos em um primeiro momento como abusivos ou lesivos à concorrência, trazem consigo uma carga tal de benefícios que a concentração toma uma espaço menor e a melhora do mercado para aquele produto, ou produtos, passa a ser mais vantajosa e até desejável. O raciocínio passa a ser o de se admitir a concentração operada em prol de uma melhora substancial do mercado em uma acepção ampla (aumento da produtividade; melhora da qualidade dos produtos/serviços que propiciem eficiência e desenvolvimento tecnológico), sendo que a avaliação destes benefícios está sujeita ao mesmo órgão previsto na lei em foco, inclusive com imposição de condições prévias (compromisso de desempenho).15 4 CASO COFAP NO CADE Como se vê, os conceitos declinados são itens básicos e indispensáveis no trato do tema Cf., respectivamente, artigo 54, § 1º, alíneas a, b e c, artigo 58, ambos da Lei n. 8.884/94. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o ou temas aqui expostos. Isto porque, sem a compreensão do que seja mercado, impossível seria esmiuçar o significado de abuso de poder econômico, principalmente, sabendo-se que a análise da repressão aos abusos do poder econômico não comporta referência apenas a um só mercado, senão a vários, que se relacionam mutuamente, em maior ou menor grau. Assim, ao mesmo tempo em que se pode falar de um mercado de alimentos, pode-se referir a um mercado de carnes, mas também ao de carne bovina, ao de carne suína, ao de aves, de frangos ou mesmo perus.16 Dessa forma, para que possamos apurar qual o nível de concorrência e o volume de poder econômico pelos agentes desfrutados, interessante é saber se esse exercício de poder é capaz de impor barreiras, limites ou entraves ao concorrente. Por sinal, esse é o propósito do presente estudo, que leva em consideração a aquisição do controle de 70,08% do capital votante e 28,38% do capital total da empresa Cofap – Companhia de Peças Fabricadora de Peças, pela Magnetti Marelli S.p.A. e sua real conseqüência para o mercado de autopeças, tendo em vista que, em razão da constituição de Magnetti Marelli Participações S/C Ltda., por Magnetti Marelli S.p.A e Mahle GMH, garantiu-se à sociedade constituída o controle (31%) sobre todas as atividades de anéis da Cofap, segmentos de produção e comercialização de amortecedores, centro de pesquisa e atividades comerciais relativas ao mercado de reposição. Levado o caso à apreciação do Cade (ato de concentração n. 080.12.007154/97-38), justificaram as requerentes se tratar de operação 16 absolutamente normal, exigência até do novo modelo de mercado mundial, decorrente da globalização e da abertura comercial, que impelem à formação de estratégias de fusões, aquisições e joint ventures, como forma de incrementar a competitividade e a sobrevivência da indústria automobilística nacional. Mais à frente, no item posterior, analisaremos a situação da indústria de autopeças frente a outra fusão, desta feita, entre as empresa Dana e Echlin. 4.1 Desconcentração Vertical No caso em destaque, um dos pontos controversos era o da possível concentração vertical na área de usinagem e fundição, uma vez que a Cofap possuía uma unidade fabril nesse campo. Contudo, informa o relatório do caso que “as consulentes informaram que, em 01/07/98 foi firmado ‘Protocolo de Intenções para Realização de Negócio entre a Cofap e a Indústria de Fundição Tupy, que tem como objetivo a venda da unidade de fundição da primeira para a última no prazo de trinta dias”. Prosseguindo, diz a relatora do caso: “A se confirmar a venda, remédios antitruste, tais como a alienação deste negócio, não seriam mais necessários”. Como não bastasse, os requerentes, ancorados em estudos técnicos do setor em destaque, lembram que BRUNA, op. cit., p. 45. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 71 D ireito A r t i g o “(...) a fundição constitui-se em um mercado maduro, de baixa rentabilidade, inibindo investimentos, sendo estes de alto valor. Por con- participação total nos segmentos original e de seqüência, temos na Cofap a operação deste segmento com tecnologia amplamente defasa- mesmo restringirem o volume de peças vendidas da e altos custos de produção (em especial de insumos e de mão de obra), o que impede a causando sérios prejuízos aos seus concorrentes”. mesma de concorrer com outros grandes produtores mundiais”. Portanto, é interessante observar que a estratégia da Cofap em apresentar a venda de sua unidade de usinagem – que talvez já lhe fosse desinteressante de todo modo – serviu como uma valiosa demonstração de boa vontade, como uma exibição de que ela, Cofap, é uma empresa que concorre de forma leal. Se esta imagem é ou seria real, já é um outro ponto, mas o fato é que seus objetivos foram alcançados. reposição. Assim, se as empresas envolvidas na operação praticarem preços diferenciados ou ou não cumprirem prazos de entrega, estarão Nada obstante o relatado, as montadoras não se opuseram ao negócio pretendido pelas partes. De acordo com a GM, a empresa não produz amortecedores e tem como única fornecedora a Cofap. Porém, afirma que o “fornecimento de amortecedores, tanto no âmbito nacional como internacional, poderia ser realizado pelas empresas MONROE, ARVIN, SACHS e DELPHI, que têm condições de oferecer custo e qualidade e possuem disponibilidade de oferta para atender as nossas necessidades”. 4.2 Participação em Grupo Concorrente Outro ponto de relevância repousa no fato de que a Cofap, após a união com a Magnetti Marelli, seria então controlada por uma subsidiária do Grupo Fiat, o que poderia causar problemas de fornecimentos de seus produtos às montadoras concorrentes da Fiat no Brasil e, como informa o relatório, “ficariam (as montadoras), pois, na dependência de fornecimento de sua concorrente para a obtenção dos produtos necessários ao seu pro- Quanto aos efeitos da operação, acreditam que a “associação tende a aumentar a competitividade entre as empresas, com melhorias dos níveis de tecnologia e qualidade do produto”. A Volkswagen informou que não tem produção cativa dessas peças e possui como fornecedores, além da Cofap (39% dos amortecedores), a MONROE (48%) e a SACHS (13%). Esclareceu, ainda, que cesso produtivo. Além dos produtos em análise, 72 preocupa, por exemplo, o caso dos amor- “se um dos fornecedores aumentar os preços tecedores, que, embora não façam parte do ou interromper a produção existe viabilidade mercado relevante, constituem o principal de aquisição de amortecedores nas outras duas produto da Cofap, que detém cerca de 70% da fontes locais. Caso este problema ocorra com j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o as três fontes, existem empresas no exterior que, após um período de desenvolvimento da peça e dependendo de negociações comerciais, estariam aptas a fornecerem”. Justamente pela declaração das próprias montadoras, a relatora do ato de concentração em questão disse, ao final, que “a parcela da operação relativa ao segmento de amortecedores não é razão de maiores preocupações para as principais concorrentes da Fiat”. Aqui tomam assento algumas influências mais palpáveis do que hoje se usa denominar globalização econômica. As compradoras principais da Cofap – montadoras de veículos – declaram taxativamente sua independência em relação à eventual tentativa de manipulação de preços ou fornecimento pela empresa em tela, alegando facilidade em acessar os mesmos produtos fornecidos pela Cofap em qualquer outro ponto do globo. A frase emitida pelos representante da Volkswagen é paradigmática: “se um dos fornecedores aumentar os preços ou interromper a produção (...) existem empresas no exterior que, após um período de desenvolvimento da peça e dependendo de negociações comerciais, estariam aptas a fornecerem”. A título ilustrativo, vejamos alguns dados técnicos sobre a empresa em análise: Principais Clientes da Cofap no Brasil EMPRESAS/GRUPO % SOBRE O FATURAMENTO Fiat Automóveis S/A 17,01 General Motors do Brasil 11,44 Volkswagen 9,13 Grupo Roles 6,90 Grupo Sama 5,24 Grupo Real 4,03 D. Paschoal S/A 3,98 Mercedes Benz do Brasil 2,75 Grupo Natacci 2,65 Grupo Guatil 2,49 Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle) j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 73 D ireito A r t i g o Principais Clientes da Cofap No Mundo EMPRESAS/GRUPO % SOBRE O FATURAMENTO Chrysler (EUA) 18 Fiat (BR) 14 General Motors (BR + AR) 7 Grupo Roles (BR) 6 Volkswagen (BR, AR, MX) 5,8 Delphi (GM/BR) 5,5 Grupo Sama (BR) 4,6 D. Paschoal (BR) 4 SM (VW/BR) 2,2 Ford (BR/AR) 1,7 Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle) 4.3 Do Ganho em Produtividade e Tecnologia Como sabemos, o artigo 54 da Lei n. 8.884/94 é uma espécie de receptáculo da idéia de tolerância da perda de concorrência por qual- quer meio, se verificado o ganho, para o mercado, de aspectos relevantes como produtividade ou o desenvolvimento tecnológico porventura gerado pela aprovação do ato. Para o caso em foco, apurou-se que tais vantagens eram as seguintes: 1) Aporte de novas tecnologias 2) Aumento das exportações, através da inserção nos canais de comercialização do grupo Marelli, permitindo que a Cofap/Marelli seja um fornecedor global 3) Aumento da qualidade em razão das novas tecnologias 4) Economias resultantes da maior racionalização dos investimentos e do melhor aproveitamento dos recursos despendidos com P&D 5) Maior competitividade a partir da maior especialização e conseqüente possibilidade de a Cofap/Marelli ser um co-designer em escala mundial 6) Maior nível de P&D na área de amortecedores e o incremento das exportações desse produto, e 7) Maiores níveis de investimentos, produção, exportação e tecnologia de sistemas de escapamentos e amortecedores Fonte: Requerentes (Cofap-Magnetti-Mareli-Mahle) 74 j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Portanto, trata-se aqui da aplicação, ao modo brasileiro é certo, da regra da razão do Direito concorrencial americano, admitindo e tolerando atos concentracionais que, em um primeiro momento e em uma acepção puramente técnica – jurídico-econômica –, se mostram como condenáveis e insuscetíveis de aprovação. Mas, da análise de seus efeitos, se pode buscar benefícios que compensem a perda de concorrência mercadológica. 4.4 Mercado Nacional e Mercado Internacional Como vimos, o próprio mercado consumidor mais substancial dos produtos Cofap – montadoras de veículos – não se opôs ao ato de concentração em exame, alegando facilidade de acesso às peças automotivas em apreço, mormente no exterior. Nesse sentido, o voto da relatora do Cade apoiou-se francamente na internacionalização dos mercados e especialmente na força do capital globalizado, invocando, estudo do BNDES para concluir que a fusão – ou, em melhor conceituação, a aquisição da Cofap pela Magnetti – seria também recomendável pela chamada força advinda da globalização econômica que estaria forçando as empresas, especialmente aquelas situadas nos chamados países em desenvolvimento, a se unirem com parceiros comerciais mais fortes, com atuação mais abrangente em escala mundial e com recursos ou ao menos acesso a recursos financeiros mais representativos. senvolvimento são vistos como a área de maior crescimento – muitas empresas estão ameaçadas. As vultuosas exigências de capitalização e de investimentos para a ocupação de espaços nesta nova cadeia, o volume crescente de importação e a concorrência com novos fabricantes internacionais, trazidos pelas próprias montadoras, são alguns dos aspectos que mais afetam as empresas existentes no país. O resultado desse contexto é a fragilização das posições de mercado de tradicionais firmas de capital nacional atuantes no setor.” E a relatora arremata, declarando sobre o ponto em destaque que “a abertura da economia a partir dos anos noventa, se trouxe inegáveis benefícios à dinâmica da concorrência no setor automotivo, também exige que as empresas de autopeças se adaptem às novas condições de mercado e às pressões competitivas advindas de concorrentes internacionais. São condições essenciais à sobrevivência destas empresas a necessidade de reduzir custos, se integrando no esquema de global source e folow source para a produção de carros mundiais e produzir produtos de padrão de qualidade internacional, o que exige aportes tecnológicos e financeiros significativos”. De fato, como destaca o referido estudo do BNDES: Todo o relatado nesse item adquire contornos mais interessantes ainda quando se vislumbra que o Cade, através de sua relatora designada para o caso, adotou o mercado nacional como a área geográfica de atuação das requerentes, dizendo: “Apesar das expectativas de crescimento da indústria automobilística, inclusive com a entrada de novas montadoras – os países em de- “Quanto à dimensão geográfica, embora fosse possível cogitar uma definição mais ampla que as fronteiras nacionais, em razão dos fatores já j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 75 D ireito expostos sobre a tendência à concorrência global e as facilidades às importações de autopeças, e aprofundados no AC 84/96, defino, conservadoramente, o mercado geográfico como o nacional”. cado mundial como parâmetro de defesa do mercado nacional e não como arena de atuação das empresas unidas pelo ato analisado. E em outro ponto: Algumas conclusões vem à tona no caso em destaque: “Não obstante as possibilidades de importações sejam amplas, em particular devido às baixas alíquotas efetivas de importação decorrentes da política governamental para o setor, os fluxos internacionais de comércio, como demonstram os dados de market-share presentes no parecer da Seae, não são muito significativos. Os dados sugerem que as montadoras apenas instrumentalizam as facilidades à importação atualmente vigentes na negociação de preços e qualidade dos produtos obtidos de seus fornecedores, em geral localizados próximos a elas.” Esse aspecto parece, a toda evidência, ter pesado na interpretação da fusão em questão, uma vez que o mercado relevante adotado, em termos geográficos, foi nacional, mas a inserção desse mercado específico no mercado mais genérico foi tratada como mundial, o que se apresenta quase que como um paradoxo, exibindo, por outro lado, as modificações sentidas nas relações econômicas mundiais e na força adquirida pelo capital internacionalizado Assim, foi reconhecido o impacto da chamada globalização, foi reconhecida a necessidade até de ocorrer a concentração pretendida, porém, e paradoxalmente, foi afastada a adoção de mercado geográfico internacional, talvez porque o escopo seja justamente proteger o mercado interno ou, em outra construção, fortalecer as empresas aqui atuantes e não municiá-las para atuação mundial. Adota-se o mer76 A r t i g o 4.5 C o n c l u s ã o 1) Em vista das tendências recentes do setor automobilístico (fornecimento global e produção enxuta), somadas à necessidade de conhecimentos tecnológicos específicos e de uma série de custos irrecuperáveis (no caso de blocos e cabeçotes de ferro), tal opção seria a mais ineficiente do ponto de vista privado, e, em última análise, do ponto de vista dos consumidores finais. 2) No segmento de escapamentos, não gerou a operação concentração significativa, não apenas em razão de deter a Marelli ínfimos 3% do mercado, mas também porque os custos de entrada são relativamente baixos, gozando as montadoras de amplo acesso ao mercado internacional, o que limitaria o sucesso de qualquer estratégia anticoncorrencial. 3) No segmento de amortecedores, também não vislumbrou o Cade barreiras significativas à entrada. Isto porque, as necessidades de reduzir custos, integrar-se no esquema de global source e follow source para a produção de carros mundiais e produzir produtos de padrão de qualidade internacional, o que exige aportes tecnológicos e financeiros vultosos, são condições essenciais à sobrevivência destas empresas; 4) Por fim, vislumbram-se eficiências capazes de compensar os danos à concorj a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o rência causados pela operação nesse caso específico. A uma, porque o negócio de blocos e cabeçotes de ferro não integra o core bussines da Marelli ou da Mahle; a duas, porque a venda dos negócios de fundição da Cofap para a fundição Tupy representa fator positivo, pró-competitivo, por diminuir os efeitos de concentração na operação original. Pelas motivações retrotranscritas, aprovou o Cade a operação, o ato de concentração em questão, sem restrições. 5 QUESTÃO DANA-ECHLIN: BREVES COMENTÁRIOS As empresas mencionadas também promoveram um ato de concentração fundindo-se, ato esse aprovado pelo Cade sem restrições. Não é o escopo desse trabalho analisar a fundo esse outro ato mas, a partir dos dados a seguir fornecidos, refletir sobre o mercado de autopeças como um todo e analisar, do mesmo modo, não apenas a concentração horizontal, a aquisição de concorrentes participantes de um mesmo mercado relevante, mas a concentração no número de itens de peças existentes no mercado como um todo. Portanto, faremos primeiramente um raio-x, um perfil das empresas em apreço, inclusive com os atos concentracionais em que ambas estiveram envolvidas antes do ato em foco. Assim: Dana Corporation: Empresa norte-americana, com sede em Toledo, Ohio, possui aproximadamente 50.000 empregados e apresentou, em 1997, um faturamento de U$ 8,3 bilhões no 17 mundo e R$ 576.800.000,00 no Brasil. É considerada pela Seae como um dos maiores fabricantes de peças para veículos do mundo. Estão sob o controle do grupo, no Brasil, as seguintes empresas: Dana-Albarus S.A. Indústria e Comércio (fabrica colunas de direção, conjuntos e componentes de juntas universais, anéis de pistão para motores, sanfonas, mancais, coxins, dutos de ar e retentores de borracha); Dana Indústrias Ltda (fabrica conjuntos e componentes de eixos diferenciais traseiros, juntas de motor e chassis rodantes); SM – Sistemas Modulares Ltda (atua no fornecimento de serviços de montagem dos sistemas de suspensão); Albarus Sistemas Hidráulicos Ltda (fabricante de bombas de engrenagem, válvulas, cilindros e sistemas hidráulicos); ATH Albarus Transmissões Homocinéticas Ltda (fabricante de conjuntos e componentes de juntas homocinéticas); Nakata S.A. Indústria e Comércio (fabrica amortecedores e componentes de suspensão e foi adquirida pelo grupo Dana em abril de 1998); Albarus Comercial Exportadora (atua na importação e exportação dos produtos do grupo). Nos últimos 5 anos, a DANA participou das seguintes operações: aquisição da divisão de eixos diferenciais leves da Rockwell do Brasil S.A.,17 aquisição de 60% de participação do capital social da Simesc, em dezembro de 1994; aquisição da empresa Indústrias Orlando Stevaux Ltda; aquisição da Nakata S.A. Indústria e Comércio. Echlin Inc.: Empresa norte-americana, com sede em Branford, Connecticut. No último exercício apresentou um faturamento de US$ 3,6 bilhões e conta com 15.600 funcionários. Sua única subsidiária no Brasil, a Echlin do Brasil Indústria e Comércio Ltda, foi fundada em 1945 A Rockwell, por seu turno, adquiriu, em meados dos anos 80, o controle acionário da Fumagalli, indústria nacional de autopeças, sediada em Limeira, SP. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 77 D ireito A r t i g o e possui 870 empregados. Em 1997, obteve um faturamento de R$ 73,3 milhões. Nos últimos 5 anos, a Echlin participou das seguintes operações: aquisição dos ativos de mercado da Mecano em 1997 (aprovada pelo Cade); aquisição dos ativos de mercado da Brosol, em 1998 (em análise no Cade). Os produtos relevantes indicados pelas requerentes são: bombas de água, bombas de combustível, carburadores e injeção, kits para reparo de carburadores, produtos elétricos, tubos e mangueira para direção hidráulica e freios do veículo. Vejamos sua participação mercadológica: Bombas de Água EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Echlin do Brasil 36,5 Columbia 20,0 Iochpe Maxion 9,2 Indisa 6,2 Schadek 1,4 TMR (*) 1,4 Vetori 0,8 VMG (*) 0,8 Montadoras 22,6 Outras 1,0 (*) Produto importado. Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) Bombas de Combustível EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Echlin do Brasil 95,3 Outros importadores independentes 4,7 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) Carburadores e Injeção EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Echlin do Brasil 66,1 Magnetti Marelli 33,9 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) 78 j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Kits para Reparo de Carburadores EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Echlin do Brasil 28,5 Magnetti Marelli 27,0 Vogel 20,0 Seaverte 10,3 Outras 14,2 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) Tubos para Direção Hidráulica EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Paranoá 30,5 Dayco 17,9 Echlin do Brasil 16,8 Getoflex 13,7 Aeroequip 9,5 Outras 11,6 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) Mangueiras para Freios EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Getoflex 29,8 Saad 25,1 FH 19,9 Vinke 14,2 Echlin do Brasil 2,8 Outras 8,3 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 79 D ireito A r t i g o Produtos elétricos EMPRESAS PARTICIPAÇÃO EM 1997 (%) Bosch 22,8 Echlin do Brasil 13,1 NGK 7,5 ZM 7,4 3RHO 7,4 Dani 5,7 Top 5,7 Marília 5,4 Siemens 5,0 HL 4,3 Bergson 2,8 IKRO 2,4 Olimpic 2,1 Facobrás 1,8 Outras 6,6 Fonte: Requerentes (Dana-Echlin) 80 Nada obstante o poderio exibido, a Seae emitiu parecer favorável ao ato, chamando a atenção para os seguintes pontos: doras, cuja tendência é exigir a entrega de estruturas montadas e não somente componentes isolados” (fls. 165). “(i) as autopeças fabricadas pela Echlin e pela Dana se complementam no produto final (automóvel); (ii) o grupo Dana terá na Echlin um importante fornecedor de peças de reposição e o pleno conhecimento dos canais de distribuição para o mercado de reposição, o que resultará em economias de escopo; e (iii) que ao incorporar a Echlin, o grupo Dana avança no sentido de tornar-se um fornecedor de nível I, ou de elite, no atendimento às monta- Diante disso, conclui que a operação não gera qualquer tipo de concentração e é passível de aprovação. A SDE, por seu turno, segue a mesma linha e alinhava os seguintes pontos: “(i) a operação não provoca alteração na estrutura do mercado de autopeças como um todo uma vez que não eleva o poder de mercado j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o da adquirente, nem resulta em concentração de mercado; (ii) não existem barreiras relevantes à entrada de novos concorrentes, exceto as exigências impostas pelas montadoras aos fornecedores de autopeças”. Em vista disso, sugere a aprovação sem restrições da operação. A operação em foco foi aprovada sem restrições e nota-se que o Cade, calçado nos pareceres da Seae e da SDE, entendeu que a união das requerentes traria ganhos ao mercado de uma forma geral, aplicando aí, não de forma declarada, é certo, as previsões do artigo 54, § 1º e seus incisos, da Lei n. 8.884/94. Vê-se que a concentração foi francamente tolerada, em prol de um ganho – efetivo ou não, real ou não – trazido pela mesma concentração. 6 COMENTÁRIO FINAL Como já citamos no preâmbulo desse tópico, todas as operações citadas envolvendo as reque- rentes foram aprovadas pelo Cade. Dana-Echlin, juntas, terão, somente no Brasil, faturamento em torno de R$ 650.000.000,00, 6.000 empregados, porém, mais do que isso, as requerentes irão causar sensível concentração no mercado de autopeças, uma vez que juntas produzirão uma gama vasta de componentes e com alta participação em cada mercado individual. Esse é o ponto interessante aqui: a análise ou pelo menos a admissão de que é possível haver transferência de poder econômico dentro do mesmo grupo de empresas, com francas possibilidades de interferência em um dado mercado, como é o presente caso (mercado de autopeças). Ou seja, o ato de concentração em questão, dado o aumento no poderio econômico, no acesso à tecnologia e a recursos por vezes até subsidiados, pode levar a uma perda de concorrência no fabrico de um dado item em que hoje as empresas envolvidas possuem pequena participação, o que, pelos fatores exibidos, possivelmente virá a desequilibrar esse mercado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: Edusp, 1996. BULGARELLI, Waldirio. Concentração de empresas e direito antitruste. São Paulo: Atlas, 1997. ENCICLOPÉDIA saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 52. VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale. Milão: Giufrè, 1931, v. 1. Site do Cade: www.cade.org.br DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 3. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 81 imes r e v i s t a A r t i g o A INCÔMODA SOLUÇÃO CHAMADA AÇÃO AFIRMATIVA Sandro César Sell Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Sociologia Política pela UFSC. Graduado em Direito e Ciências Sociais (UFSC). Advogado. Professor de Introdução ao Direito e Sociologia Jurídica na Universidade do Vale do Itajaí. R E S U M O ABSTRACT Este artigo tem por objetivo mostrar que as dificuldades de implementar medidas de ação afirmativa no Brasil não são jurídicas, mas culturais. This article has the objective to show that brasilian juridical order accept the affirmative acion, but not the brasilian culture. 1 INTRODUÇÃO É possível que nenhuma engenharia social contemporânea tenha trazido tanta polêmica quanto aquela que, mediante expedientes como cotas previamente definidas ou políticas de acesso preferencial, promete a inclusão eqüitativa de negros, deficientes, índios e mulheres nos espaços socialmente valorizados. São as chamadas medidas de ação afirmativa, que representam a tentativa de alguns Estados de matriz liberal de corrigir a falácia da meritocracia, segundo a qual, em um Estado em que a Constituição valoriza, sobretudo, a liberdade, as desigualdades devem ser atribuídas a diferentes graus de esforço e talento individual.1 A pobreza e a riqueza, em 1 tais Estados, são atribuídas a opções (esforçar-se mais ou menos), fatos genéticos (possuir maior ou menor grau de inteligência) ou a eventos aleatórios (sorte ou azar). No entanto, quando as análises estatísticas começaram a mostrar que a pobreza tinha cor (de tonalidade escura) ou que o poder tinha sexo (masculino), a idéia de que o sucesso era uma questão de competência individual ficou seriamente questionada. E se não ficasse, o questionamento deveria dirigir-se ao consenso contemporâneo de que as diferenças de cor, raça ou sexo não são relevantes para sustentar distinções de capacidades mentais entre os diferentes grupos humanos. Consenso que desde a Declaração da Unesco sobre as Raças, de 1948, estava fir- Dizemos Estados liberais porque, nos Estados socialistas, a máxima da meritocracia era substituída pela regra: “De cada um conforme suas possibilidades; a cada um conforme suas necessidades”. Máxima igualmente falaciosa – ao menos em sua operacionalidade. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 53 D ireito memente estabelecido – e que os anos e a ciência só têm feito reforçar.2 Por ironia, foram os EUA, o país do “sonho americano” (a ideologia de que todos podem tudo se estiverem dispostos a lutar por seus ideais), que, no início da década de 1960, popularizaram as políticas de ação afirmativa, como uma incômoda forma de superar o déficit entre as promessas de acesso universal às riquezas pelo esforço e a vida real permeada por critérios pré-modernos de ascensão social (cor, sexo, raça, estirpe). Era incompatível com a ideologia do “querer é poder” a distância social que separava os negros dos brancos, as mulheres dos homens. Se deixada às suas próprias regras competitivas (que incluem, além da competência, também a fraude, o preconceito e a discriminação), a sociedade não conseguiria sequer proporcionar uma aparência de justiça capaz de convencer os discriminados a continuar acreditando no sistema social. Foi necessária a intervenção estatal corretiva. E eis aí o paradoxo representado pela ação afirmativa: para combater a falta de eficácia da doutrina meritocrática, precisou-se romper com ela, garantindo o acesso privilegiado de indivíduos que, por algum motivo repugnado pelo Estado (comumente o preconceito e a discriminação)3 não conseguiriam, por si só, fazerem-se presentes nas posições sociais cobiçadas. Dessa conjuntura, emerge a idéia das discriminações positivas. O que, de certa forma, seguia na con- 2 3 54 A r t i g o tramão das transformações ético-políticas da modernidade ocidental, cuja direção era a de superar a política de privilégios de qualquer ordem em benefício de políticas de igualdade de todos na lei e perante a lei. No âmbito constitucional, a doutrina do colour blind, segundo a qual a Constituição é cega para discriminações de cor, exemplificava a positivação da tendência à igualação formal. Neste afã, quebrando uma linearidade histórica, as vítimas dos preconceitos ancestrais (de cor, sexo, raça) passaram a não mais clamar pelo simples fim de qualquer forma de discriminação. Mas reivindicavam, elas próprias, diferenciações que as beneficiassem e que servissem de confirmação oficial de que políticas estatais baseadas na neutralidade quanto a cor, raça ou sexo representavam uma omissão criminosa diante dos reflexos das discriminações passadas sobre o presente. As discriminações desumanas haviam deixado seqüelas que caberiam aos Estados combater, caso contrário, manter-se-ia funcionando o perverso círculo da exclusão pelo preconceito. Muitos questionaram se “privilégios corretivos” eram menos odiosos do que os vetustos privilégios de honra e sangue. Temiam que as ações afirmativas se tornassem o patrocínio do ócio e da mediocridade a expensas do esforço e do talento. Afora o labor pessoal e o adequado uso dos dons naturais, a sociedade ocidental havia assentado que só o direito de herança, a sor- No que se refere ao termo “raça”, ele hoje sequer dispõe de funcionalidade biológica (basta lembrar que as diferenças entre indivíduos da mesma “raça” podem ser maiores do que as existentes entre indivíduos de “raças” diferentes), além do que, a história depõe contra seu emprego (racismo, nazismo etc.). Não obstante, neste artigo, utilizaremos este termo em respeito tanto ao seu uso popular quanto por ser utilizado em nossa Constituição. É bom ter clara a diferença entre preconceito e discriminação. Preconceito consiste em um erro de julgamento que distorce a realidade dos fatos. É um fenômeno cognitivo. Já a discriminação – no seu sentido sociológico – é o ato de, a partir de preconceitos, restringir os direitos de outrem. Assim, acreditar que as mulheres são más motoristas é um preconceito; negar-lhes emprego de chofer por isso é discriminação. Já em Direito, como veremos, o termo discriminação assume outros significados. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o te, a caridade ou as políticas públicas isonômicas eram legítimas beneficiadoras de indivíduos em amargas condições sociais: fossem negros, índios ou brancos, homens ou mulheres. Criar políticas públicas ou exigências legais orientadas sexual ou racialmente era injusto e uma subversão das regras do jogo democrático. Para o pensamento tradicional, o problema das discriminações calcadas no preconceito era matéria que estaria suficientemente equacionada pela sua proibição oficial. Não seria uma questão de políticas públicas específicas, mas de sanção penal. Sanção que, no Brasil, tornou-se simbolicamente das mais enfáticas e praticamente das mais inócuas. Das mais enfáticas porque o crime de racismo, por exemplo, é caso excepcional de crime não apenas constitucionalmente definido (art. 5o, XLII), mas também reforçado pela anacrônica característica da imprescritibilidade penal – a possibilidade ad eternum de o Estado perseguir o réu. Já na prática, a dificuldade de diferenciar a ocorrência do crime de racismo em face de outros tipos penais,4 aliada ao caráter fluido da discriminação racial à brasileira (travestida, muitas vezes, em piadas, brincadeiras e condutas de interpretação duvidosa – o chamado “racismo cordial”), tornou rarefeita a eficácia do tão simbólico crime. Não obstante a ineficácia da mera punição ao crime de racismo como forma de combater as práticas discriminatórias, ela ainda é preferida – por legisladores, intérpretes e população em 4 5 geral – às medidas de ações afirmativas. E os dois principais pontos de apoio a essa preferência são a valorização social dos sistemas meritocráticos e a idéia de que o princípio constitucional da igualdade repudia qualquer sistema de cotas. No que segue, analisaremos como o pensamento jurídico contemporâneo tem lidado com a questão das flexibilizações do princípio da igualdade que o torna receptivo às medidas afirmativas. Antes, no entanto, vamos analisar mais detidamente o que é o mérito, principal cânone justificador da ascensão legítima em nossa sociedade. 2 MERITOCRACIA E JUSTIÇA Na pré-modernidade ocidental, a “pureza e qualidade do sangue” eram considerados critérios suficientes para legitimar a ascensão e permanência de alguém no topo das posições de poder e prestígio social.5 Com a substituição do conceito de honra – a marca dos diferentes – pelo de dignidade – a marca universal da igualdade (Taylor, 1994), operada na época das revoluções burguesas, tornava-se preciso justificar, em termos de talento pessoal, a posse de uma posição socialmente elevada. Montesquieu (1987:102) escrevera: “para que um homem esteja acima da humanidade, pela honra de linhagem a ele atribuída, é preciso que os outros paguem caro demais”. A honra de uns implicava Veja-se sobre isso o julgamento no STF do HC n. 82.424-2, considerado pelo Ministro Marco Aurélio como um dos mais importantes da história da Suprema Corte pátria, e cuja questão versava sobre se o paciente, autor e editor de livros considerados como expressando prática de crime racial contra o povo judeu, pelo TJRG, de fato cometera tal crime (ficando, assim, sujeito à imprescritibilidade do art. 5o, inc. XLII) ou se cometera não o crime de racismo, mas o de discriminação – com supedâneo constitucional no inciso XLI do artigo 5o (que, então, já estaria prescrito). Por 8 votos a 3, o STF denegou o HC. Não sem razão nos restringimos ao Ocidente, porque a China já fazia uso de critérios meritocráticos para o recrutamento de funcionários públicos e certas posições de “honra” desde 206 a.C. (Cf. BARBOSA, Lívia. Igualdade e meritocracia. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p. 23). j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 55 D ireito o servilismo de muitos, e incentivava, também, a indolência do honrado e o reprimir dos talentos dos submetidos. A sociedade perdia duplamente. Nos Estados Unidos, o precoce desprestígio do nobre rebuscado (que representava o colonizador inglês)6 e a ascensão ovacionada dos self made men são a versão mais enfática dessa passagem da política da honra para a do mérito pessoal. Em nosso meio, recentemente, a decadência dos socialites de estirpe e o simultâneo culto aos “emergentes” (que se fizeram, presumivelmente, à custa de trabalho, sorte, empreendimentos ousados e um assumido desprezo pela alta cultura) dão uma versão caricatural, mas não menos contundente, dessa passagem. É difícil negar que uma cultura que prefere os mais realizadores, os mais talentosos e os mais esforçados apresenta uma abertura à mobilidade social maior do que aquelas em que as posições são fixadas a partir do nascimento ou do casamento. Privilegiar o talento e não a linhagem é também um poderoso incentivo para que a sociedade usufrua pessoas talentosas que, em busca de recompensas individuais, podem vir a promover o bem coletivo. Em uma ética utilitarista, em que as políticas públicas devem se organizar segundo princípios que tragam o máximo de benefícios ao maior número de pessoas, premiar por méritos é não apenas uma aposta razoável, como, talvez, a única justificável. Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa seriam um prejuízo público, ao ajudarem a ascensão de pessoas que, por si só, não ascen- 6 56 A r t i g o deriam, além de ser um “meio artificial” de gerenciar a sociedade. Mas o que é um prejuízo público? Certamente isso só poderá ser respondido se soubermos qual é o presumível ganho social que se deixou de obter. Essa é a razão pela qual Dworkin (2000:446) sustenta não haver mérito em sentido abstrato, que o mérito deve ser entendido como a posse de um meio capaz de permitir à sociedade atingir algum de seus fins. O talento atlético pode ser um mérito, se for socialmente importante à obtenção de vitórias em competições esportivas; a inteligência é ordinariamente um mérito, já que possibilita, em tese, a resolução de problemas sociais. E a cor negra poderia ser um mérito? Sim, desde que pudesse ser vista como um meio capaz de permitir o alcance de um fim socialmente valorizado. Há fortes indícios de ganhos sociais gerais caso a sociedade privilegiasse as minorias sociológicas, como os negros. No clássico artigo The epidemic theory of ghuettos and neighborhood effects on dropping out and teenage childbearing (1991), Jonathan Crane, com grande apoio estatístico, sustenta que, quando em uma determinada população o número de modelos sociais econômicos (pessoas que sejam, pelo menos, de classe média) chega a uma proporção muito baixa (algo em torno de menos de 5% da população total), a violência, o consumo de drogas, o abandono escolar e a gravidez na adolescência crescem explosivamente. Estudos qualitativos, como o realizado por Willis (1991) na Inglaterra, parecem sugerir efeitos análogos quando os jovens não encontram base concreta para acreditar que Críticas que encontram ressonância tanto no sucesso que a doutrina do darwinismo social fez naquele país (no qual os mais bem-sucedidos nos negócios tornaram-se, por antonomásia, os “mais aptos”), como na crença, anterior, na fórmula de Benjamin Franklin de que é da frugalidade e da operosidade (duas características das quais os nobres eram desprovidos) que se constrói uma sociedade de homens ricos e virtuosos. O impacto de idéias como a de Franklin foram magistralmente analisadas no clássico de WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1985. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o vale a pena lutar para ser alguém na vida. Assim, privilegiar as minorias seria uma forma de se obter benefícios gerais e públicos. Mas, o segundo argumento, que diz que os negros ascenderiam “por meios artificiais”, talvez neutralizasse seu efeito de “modelo social”, pois os negros, por exemplo, socialmente bemsucedidos, após a implantação de medidas de ação afirmativa, seriam vistos como indivíduos ajudados. Tal crítica padece, no entanto, do erro de supor que o sucesso predominante dos brancos é algo naturalmente conquistado. Se a ação afirmativa restringe artificialmente a concorrência que os negros terão de enfrentar para serem bem-sucedidos, a discriminação racial historicamente também vem ajudando a reduzir a concorrência ante as posições que os brancos procuram alcançar. E, a não ser que se encare a discriminação racial contra os negros como algo natural (o que tem sido comum), por trás da predominância dos brancos na sociedade há uma política artificial que os favorece. A diferença da ação afirmativa para essas políticas igualmente artificiais (socialmente desenhadas) está no fato de que aquela é explícita e tem, pelo menos, uma razoável presunção de justiça, enquanto essas são sub-reptícias e perpetuadoras de desigualdade. Portanto, a não ser que se elabore um conceito de mérito abstrato (que seria tão fluido a ponto de não ter muita utilidade), e não de mérito para determinado fim (que bem pode ser o de combate à discriminação racial), a promoção privilegiadora de determinadas pessoas a partir de critérios como raça ou gênero pode ser veículo de justiça, desde que esteja a serviço do combate ao preconceito. Ademais, mesmo se abandonarmos o conceito utilitarista de justiça e buscarmos o conceito de justiça como igualdade, não há estranheza j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 no que é valorizado pela ação afirmativa, já que ela simplesmente corrige – com eficácia discutível, é verdade – as desigualdades pré-ordenadas, ao ponderar, no critério de avaliação, a maior dificuldade presumida que aquele indivíduo negro teve, por exemplo, de enfrentar para chegar até o momento da inscrição no concurso. Conforme se extrai da leitura de Singer (1984), uma nota média de um negro no vestibular pode bem representar um potencial de superação maior do que a nota máxima daqueles cuja vida escolar não foi marcada por preconceito, discriminação e exclusão social. 3 AS DISCRIMINAÇÕES E O DIREITO Todos são iguais perante a lei, diz o princípio da igualdade, consignado na grande maioria das Constituições contemporâneas. Segundo alguns, estaria aí evidenciado o óbice principiológico às políticas de ação afirmativa. Para outros, o aludido princípio vedaria apenas e tão-somente as discriminações atentatórias ao conceito de igual dignidade humana, permitindo que se discriminasse sempre, e apenas, quando a resultante de tal processo fosse uma redução das desigualdades sociais. Assim, a prisão especial (CPP, art. 295) seria uma discriminação atentatória ao princípio isonômico – e como tal, não recepcionada por nossa Constituição atual –, já a prioridade na tramitação de processos em que figure como parte ou interveniente alguém idoso (Estatuto do Idoso, art. 71) estaria correta, uma vez que tem por escopo permitir uma mais imediata prestação jurisdicional àqueles que, na média, dispõem de menos tempo para aguardá-la ou usufruir seus resultados. O fato é que discriminar, ou seja, dar tratamento jurídico diferenciado a casos aparentemente iguais, é uma das tarefas mais corriqueiras no Direito, pois, como lembra Alexy (1997:384), 57 D ireito tratar a todos, e sob todos os aspectos, de forma igualitária levaria à criação de normas injustas, disparatadas e disfuncionais, uma vez que as pessoas diferem em suas posições jurídicas (um eleitor é diferente de um candidato), situações de fato (homens são diferentes de mulheres) e em suas ações (um criminoso é diferente de um inocente). Diante disso, o problema das discriminações estabelecidas pela lei resume-se, na lição de Bandeira de Mello (1997:13), em saber quais os limites que adversam este exercício normal, inerente à função legal de discriminar. A busca de limites aceitáveis para as operações de discriminação jurídica tem levado à construção de teorias sobre os critérios que diferenciam uma discriminação legítima de uma discriminação legalmente vedada. Vejamos o que dizem sobre isso alguns autores de inegável influência no pensamento jurídico atual. Para o jurista alemão Robert Alexy (1997), o que a máxima da igualdade proíbe são os tratamentos arbitrariamente desiguais. Valendo-se dos critérios freqüentemente utilizados pelo Tribunal Constitucional Alemão, diz que a arbitrariedade ocorre quando não há uma razão suficiente para justificar a desigualação operada. Assim, toda distinção que não é razoável, atinente à natureza das coisas ou concretamente compreensível estaria vedada. Pode-se operar discriminações, não se pode é operá-las a partir de critérios bizarros ou irrazoáveis. Essa é, para Alexy, a versão atenuada do princípio da igualdade, porque permite a desigualdade desde que haja razões suficientes para promovê-la. Assim, poder-se-ia tratar negros e brancos de forma diferenciada, desde que presente alguma razão suficiente para realizar tal diferenciação. Mas Alexy vai além: sustenta um dever do Estado em tratar desigualmente os cidadãos quando há razão suficiente para isso. 58 A r t i g o Nesse sentido, os cidadãos têm um direito prima facie a serem tratados de forma juridicamente desigual com vistas a seu benefício, desde que as razões que apresentem para que se opere tal diferença a justifiquem. E tal justificativa deve ser suficientemente forte a ponto de permitir, para o caso, a quebra da igualdade formal de todos. Dessa forma, uma política de ação afirmativa (como a de cotas reservadas para negros em universidades) seria não só aceitável como devida, desde que as razões em favor dessa desigualdade pudessem desbancar o peso dos princípios que exigem um igual tratamento de todos na lei e perante a lei. Em síntese, o Estado alexyano deve tratar a todos de forma igualitária, repudiando quaisquer diferenciações, a menos que suficientes razões sejam apresentadas em favor de um tratamento desigualitário. O norte-americano Ronald Dworkin, por sua vez, enfrentando a questão da ação afirmativa no seu país, cuja Constituição abrigou, durante a maior parte da história, concepções escravagistas e segregacionistas, pretende demonstrar por que há inconstitucionalidade na discriminação racial baseada em preconceitos, mas não nas discriminações raciais que sustentam as medidas de ação afirmativa. Pela 14a Emenda à Constituição dos EUA, está vedado que qualquer Estado negue a uma pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. Isso significa, para Dworkin (1999: 455), que as leis e disposições políticas hão de demonstrar igual interesse pelo destino de todos. Tal emenda, embora não especifique o que deve ser entendido por igualdade, exige que cada órgão governamental possua uma concepção plausível desse princípio, capaz de garantir a igual proteção legal de todos diante de qualquer um ou de qualquer um diante de todos. É a idéia do direito de igualdade como um trunfo individual, oponível erga omnes. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Sendo dever de cada órgão – legislativo, administrativo ou judiciário – basear suas decisões em uma certa concepção de igualdade, Dworkin (2000:445) analisa as concepções ordinariamente apresentadas: suspeitas. É 1) Teoria das classificações suspeitas aquela que nega qualquer direito especial contra a discriminação, feita a partir de qualquer critério, só vedando distinções não-razoáveis. Como as classificações raciais historicamente têm sido feitas sem essa base de razoabilidade, elas são tidas como suspeitas. Mas essa suspeita é um impeditivo meramente relativo. Bastaria mostrar que segregar os negros, por exemplo, traria amplos benefícios públicos para que tal segregação fosse tida como razoável. Assim, em se provando que a separação dos freqüentadores de casas noturnas por critérios raciais seria capaz de diminuir a violência urbana, dir-se-ia haver razoabilidade nesta distinção, autorizando-a. O critério que inspira esta teoria é claramente utilitarista: uma discriminação é razoável em função do grau de benefícios públicos por ela gerados. 2) Teoria das categorias banidas banidas. Para essa teoria, a Constituição negaria a utilização de certas categorias para fazer distinções, independentemente de seu resultado. Estaria banido das autorizações constitucionais o emprego de termos como cor e raça enquanto operadores de diferenciação jurídica, independentemente de seus objetivos ou resultados. Aqui não haveria diferença entre medidas de ação afirmativa e políticas segregatórias baseadas em ideologias que pregam a inferioridade dos negros: ambas as políticas estariam vedadas. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 3) Teoria das fontes banidas. Para essa teoria, não se analisaria nem o resultado da política discriminatória, nem as categorias que ela utiliza, mas sua relação com direitos individuais e preconceitos. Assim, mesmo políticas discriminatórias que trouxessem um benefício máximo à maioria das pessoas estariam vedadas se fossem calcadas em preconceitos – já que é um direito individual (oponível contra toda a sociedade) não ter um negro, por exemplo, de se sacrificar para promover o bem-estar coletivo, sob o patrocínio de preconceitos. Mas se uma política discriminatória não se baseasse em preconceito, mas em seu combate, não haveria sua vedação em tese. Com efeito, tal política, em um regime democrático, poderia ser traduzida como uma restrição que os privilegiados fazem a si próprios (diminuindo suas vagas nas universidades, por exemplo) na busca de resultados sociais mais justos (distribuição mais eqüitativa de vagas entre os diferentes grupos sociais). Dworkin é partidário da teoria das fontes banidas como a única que leva os direitos a sério. Com efeito, a primeira teoria tem um caráter marcadamente utilitarista: se os benefícios da segregação forem altos, seria dito haver razoabilidade em manter políticas de separação racial, e o direito dos prejudicados à igualdade seria desconsiderado. A segunda teoria (das categorias banidas) simplifica demais a questão, impedindo que se separe uma medida desigualitária em sua execução, mas igualitária em seus fins, de uma teoria marcadamente racista. Por essa teoria, uma medida de ação afirmativa equivaleria a uma medida de segregação racial nos moldes históricos das sociedades de passado escravocrata. 59 D ireito Já a teoria das fontes banidas, ao sustentar que o que não pode prevalecer são as preferências baseadas em preconceitos, deixa qualquer distinção por categoria no âmbito das possibilidades, permitindo separar adequadamente uma medida que quer fazer valer o direito das minorias das medidas que querem prejudicá-las. A exemplo de Dworkin, o jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli (2001) também classifica os diversos modelos de que dispõe o juiz para decidir acerca das distinções que podem ser conduzidas em um regime que tenha no princípio da igualdade sua pedra angular. Tais modelos são expostos a seguir. 1) Indiferença jurídica das diferenças diferenças. Nesse modelo não se atribui qualquer relevância jurídica às diferenças. Deve o legislador/juiz proceder como se elas não existissem (color blind). Mas, ao não tutelar preferencialmente as categorias mais vulneráveis da sociedade (negros, mulheres, idosos etc.), o Direito, quer admita ou não, está tutelando os mais fortes, já que tudo de que estes necessitam é a própria ausência de direito (abstenções de Estado) para fazer valer sua superioridade política. São os que vivem em situação socialmente precária que dependem, prioritariamente, de que o Direito lhes empreste à tutela, como forma de resistirem à opressão dos grupos socialmente poderosos e fortes. 2) Diferenciação jurídica das diferenças diferenças. Nesse modelo há uma hierarquização das diferentes identidades, atribuindo a algumas status jurídico privilegiado, e a outras, sujeições discriminatórias. É o regime adotado pelos Estados que valorizam o homem mais do que a mulher, o branco mais do que o negro etc. Estados marcadamente discriminatórios e funda60 A r t i g o mentados em concepções arcaicas sobre a natureza das diferenças entre os fenótipos humanos. Corresponderia, tal doutrina, à tutela jurídica dos preconceitos. 3) Homogeneização jurídica das diferenças ças. Aqui as diferenças são desconsideradas para que cedam lugar a uma identidade normativa, única que o Estado admite como relevante. Assim, não existem o branco ou o negro, mas apenas o cidadão universal. O problema é que esse “modelo universal” é construído à imagem e semelhança do modo de vida dos dominantes: homens brancos. À vitimização pelo preconceito ou discriminação é dada pouca ou nenhuma relevância. É possível notar que, neste caso, há uma “universalidade de fachada”. A despeito de não dar relevância às diferenças, reduzindo-as a denominadores comuns, o Direito patrocina determinado modo de vida que serviu de standard à formação do modelo que passou a ser considerado universal, deixando de levar a sério os problemas enfrentados pelas categorias sociais oprimidas. 4) Igual valorização jurídica das diferenças ças. Nesse último modelo, o Estado tutela as diferenças de forma igualitária, permitindo seu livre desenvolvimento. Para isso, empresta-lhes a força equilibrante dos direitos fundamentais. Diz o autor (2001:76): “A igualdade diante dos direitos fundamentais resulta assim configurada como o igual direito de todos à afirmação e à tutela da própria identidade, em virtude do igual valor associado a todas as diferenças que fazem de cada pessoa um indivíduo diverso dos demais e de cada indivíduo uma pessoa como todas as outras.” j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Trata-se do direito à igual dignidade; do reconhecimento de que as diferenças existem e que são bases legítimas para reivindicar a tutela do Estado para continuarem a existir. É esse último modelo o defendido por Ferrajoli, que, especificamente no referente à ação afirmativa, acredita que ela pode ser usada como um corretivo à tese da homogeneização. Como já dito, o Direito, ao pretender tratar todas as diferenças a partir de um único critério (sujeito abstrato universal), acaba beneficiando as identidades que foram tomadas como modelo para a constituição desse sujeito (ao qual se atribui abstração e universalidade). Portanto, seria aceitável, com fundamento no princípio da igualdade, a existência de normas que selecionem positiva e transitoriamente (enquanto necessário) certas identidades que, por se afastarem do modelo padronizado pelo Direito, amargam a desigualdade de tratamento no mundo dos fatos. Embora não esteja tratando diretamente das políticas de ação afirmativa, a análise que Celso Antônio Bandeira de Mello (1997) faz do princípio da igualdade pode-nos esclarecer como tais políticas dialogam com o ordenamento jurídico pátrio. Para esse autor, uma diferenciação de tratamento jurídico é intolerável não só quando resulta de uma norma que individualiza prévia e absolutamente seu destinatário (concedendo a alguém um privilégio pessoal e único ou perseguindo-o de forma pessoal e individualizada), como quando não há correlação lógica entre a base material de diferenciação (sexo, raça, idade etc.) e o regime jurídico diferenciador correspondente. Diz Bandeira de Mello (1997:17): “(...) que as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula da igualdade apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.” A análise da quebra ou não do princípio igualizador seguiria, para Bandeira de Mello, as seguintes etapas: 1) Determinar o fator de desigualação (sexo, raça, altura...); 2) Analisar os regimes jurídicos diferenciados por força daqueles fatores (“às mulheres é vedado...”, “aos descendentes de escravos será concedido...”, “não serão admitidos candidatos com altura inferior a...”); 3) Analisar se há correlação lógica entre as etapas I e II, entre a diferença considerada e o regime jurídico diferenciador (“às mulheres é vedado ingressarem na Academia de Polícia”; “Aos descendentes de escravos serão concedidas bolsas de estudo para compensar a situação social em que freqüentemente se encontram hoje...”; “Para ingresso na Marinha, o candidato deve ter altura mínima de 1,63 m...”); 4) Analisar se tal correlação lógica é compatível com as prescrições constitucionais (a igualdade constitucional entre homens e mulheres não proibiria a vedação de ingresso destas em academias de polícia? A categoria “descendentes de escravos” não seria uma discriminação pela cor vedada pela Constituição, ainda que estatisticamente se possa provar que a herança do período escravocrata lhes traz embaraços econômicos presentes? A exigência da altura mínima para ingresso na Marinha seria aceitável em um regime constitucional que diz que é dever do Estado integrar até deficientes em seus quadros 61 D ireito de pessoal, quanto mais pessoas levemente abaixo da altura padrão?). Em resumo, para se saber se uma norma faz uma discriminação legítima ou arbitrária, é preciso ver se ela não discrimina de forma absoluta seu destinatário e se há razoabilidade entre a diferenciação feita e os objetivos pretendidos, que devem, ainda, ser, pelo menos, não vedados pela Constituição. Dessa forma, há um amplo leque de possibilidades de criação de regimes jurídicos diferenciados legítimos, permanecendo como inválidos aqueles que não sejam capazes de cumprir os requisitos supra descritos. Quanto às políticas de ação afirmativa (no seu modelo mais simples, de cotas), não haveria vedação a priori, já que não individualizam prévia e absolutamente seus destinatários (ao contrário, estendem-se a toda uma classe de pessoas) e têm por escopo reduzir a desigualdade (o que corresponde a um princípio basilar do Estado brasileiro). Em conclusão a este tópico, parece claro que os citados autores atestariam a justiça interna, nos ordenamentos dos Estados democráticos de direito, da aplicação de medidas de ação afirmativa, desde que tais políticas: 1) Não estivessem baseadas em preconceitos; 2) Operassem apenas em situações nas quais a aplicação ortodoxa do princípio da igualdade se mostrasse ineficaz veículo de justiça; 3) Fossem realizadas como flexibilizações razoáveis do princípio da igualdade; 4) Ponderassem valores fundamentais concorrentes do ordenamento jurídico em questão; 5) Garantissem a dignidade do ser diferente mediante o combate à desigualdade de oportunidades sociais. 62 A r t i g o 4 APONTAMENTOS FINAIS A despeito dos que defendem, no Brasil, a doutrina do color blind, não há dúvida de que quando a Constituição Brasileira, por exemplo, veda distinções por cor, raça ou sexo, está direcionada à proibição das distinções inferiorizantes e não daquelas cujo objetivo é a redução das desigualdades. Para confirmar o sentido dessa interpretação, basta proceder a um inventário do porquê histórico de palavras como cor e raça figurarem em nosso texto constitucional: sem dúvida, para combater as distinções que tomavam os diacríticos raça ou cor como fonte de hierarquização social. E, como lembra Coelho (1997:44): “Refazer a pergunta sobre quais foram os problemas sociais que ensejaram determinada resposta normativa, é, portanto, um recurso hermenêutico a mais, que não pode ser desprezado, sobretudo quando se pretenda descobrir a razão subjacente a um enunciado normativo cujo significado se nos apresente, de alguma forma, problemático.” Nossa Constituição não proíbe distinções por origem, raça, cor, sexo ou idade, veda-as, isto sim, quando baseadas em preconceitos (art. 3o, IV). Veda-as quando constituem práticas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais ou quando constituem prática de racismo (art. 5o, XLI e XLII). Veda-as, ainda, quando são usadas para dificultar o acesso ou aviltar o salário dos trabalhadores negros, mulheres e idosos (art. 7o, XXX). Mas aceita-as quando são favoráveis aos menos protegidos socialmente: proteção do mercado de trabalho para a mulher (art. 6o, XX), reserva de vagas aos portadores de deficiência (art. 37, VIII) etc. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Tanto o sentido da proibição das citadas distinções, verificado em nossa Constituição, limita-se ao seu uso preconceituoso que poucos – se é que os houve – ousaram alegar que a reserva de vagas para portadores de deficiência física representava uma contradição no TextoMor. E por que não representa? Porque seu objetivo é uma maior isonomia final na sociedade e não o de perpetuar distinções odiosas. Da mesma forma, o recente Estatuto do Idoso é pródigo em reservar vagas para pessoas com mais de 60 anos (3% nos programas habitacionais; 5% das vagas nos estacionamentos; 10% dos assentos nos coletivos urbanos etc.). Também neste caso ninguém alegou inconstitucionalidade. A verdade é que a reserva de vagas aceita em nosso país vai da participação obrigatória de mulheres em candidaturas a cargos políticos à reserva de espaços privilegiados aos presos de “primeira classe”, abrangidos pela mais que discutível rubrica da prisão especial. Diante, então, de um país tão receptivo a sistemas de cotas, como justificar que tal expediente seja visto com tanta desconfiança quando os beneficiários são os negros? É claro que j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 há problemas de operacionalidade adicional nas cotas raciais. Afinal, quem é negro no Brasil? Em um país de miscigenação como o nosso, o número varia entre 5 e 45% da população!, conforme sejam, ou não, somados os que se auto-intitulam, junto ao IBGE, como pardos ou descrições afins (mulatos, caboclos etc.). Quanto de “negritude” é preciso possuir para exercer legitimamente o direito às cotas? Haveria perícia para isso? Negros ricos também fazem jus ao privilégio a expensas dos interesses de brancos pobres? Talvez sejam essas questões relativas à operacionalidade o que tem impedido que o debate sobre as ações afirmativas no Brasil saia da fase embrionária, ou que não passe de mera exegese da doutrina norte-americana sobre o assunto. Expediente, este último, comumente utilizado para nos fazer sentir em sintonia com o debate universal dos grandes temas, sem que precisemos lidar com os óbices apresentados em suas concretizações. É mais um caso em que a tão sonhada fantasia de pureza no Direito procura nos inocentar diante de nossa dificuldade em lidar com a miscigenação da realidade. 63 D ireito A r t i g o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. BARBOSA, L. Igualdade e meritocracia. Rio de Janeiro: FGV, 1999. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado, 2003. CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1999. CRANE, J. The epidemic theory of ghuettos and neighborhood effects on dropping out and teenage childbearing. American Journal of Sociology, Chicago, n. 5, mar. 1991. DWORKIN, R. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel Derecho, 1989. MELLO, C. A. B. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 1997. MONTESQUIEU, C. L. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1987. SELL, S. C. 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Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o A UNIVERSIDADE, O ESTUDO DO DIREITO E A NOVA REALIDADE Carlos João Eduardo Senger Co-coordenador e Professor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito do Curso de Direito do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul (SP). Doutorando pela Universidade do Museo Social Argentino, Buenos Aires, Argentina. Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Consultor Jurídico e Advogado. R E S U M O ABSTRACT O tema abordado tem como idéia cerne trazer ao debate acadêmico uma preocupação com o real sentido e projeção da instituição denominada universidade ou do ensino universitário, focado em um prisma de modernidade, e de um mundo globalizado, como notável centro produtor e difusor de conhecimentos e cultura, principalmente de posicionar seus eixos estruturais fundamentais dentro dessa nova realidade global que vivemos, com as naturais expectativas e que detém inequívoca influência na ordem mundial. São contingências detectadas nos dias atuais com implicações e sérios reflexos na ordem social, se consolidando numa seqüência de lições, nos impulsos e aos estímulos das universidades mais antigas, responsáveis pela floração e base desta contingência moderna, quanto as idéias produto do avanço cultural, e da veiculação dos seus ideais na construção de uma consciência de cultura da humanidade, do individual para o global, no rumo da sonhada integração, voltada para a prosperidade social mais humana, a repercutir nos vários segmentos sociais e, por conseqüência, de forma mais intensa no próprio estudo do Direito, por suas profundas raízes sociais. The boarded theme has as idea sifts bring to the academic debate a preoccupation of the real sense and projection of the denominated institution University or of the academic, focused teaching in a modernity prism, and of a globalized world, as notable producing and diffuser center of knowledge and culture, mainly to locate its basic structural axles inside of this new global reality that we live with the natural expectations and that detains unequivocal influences the world order. They are limitations detected in the current days with implications and serious reflexes in the order social, consolidating itself in a lessons sequence, in the pulses and to the stimulus of the older, responsible universities for the florescence and base of this modern contingency, how much the product ideas of the cultural advance, and of the propagation of its ideals in the construction of a culture conscience of the humanity of the individual for the global, in the direction of the dreamt integration, come back toward the social for prosperity more human being, to rebound in the several social segments and for consequence of more intense form in the own study of the right, for their profound social roots. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 39 D ireito 1 INTRODUÇÃO Inicia-se o presente artigo com uma recomendação da Comissão Internacional de Educação da Unesco sobre a Educação para o século XXI, presidida por Jacques Delors, no sentido de que: “La utopía orientadora que debe guiar nuestros pasos consiste en lograr que el mundo converja hacia un mayor entendimiento mutuo, hacia un mayor sentido de la responsabilidad y hacia una mayor solidaridad, sobre la base de la aceptación de nuestras diferencias espirituales y culturales. Al permitir a todos el acceso al conocimiento, la educación tiene un papel muy concreto que desempeñar en la realización de esta tarea universal: ayudar a comprender el mundo y a comprender a los demás, para comprenderse mejor a sí mismo”. Recorrendo à elucidação da história sobre a matéria focalizada, importante é o pensamento da lavra do emérito professor Waldemar Martins Ferreira ao afirmar em seu livro que: “Nenhum jurista pode dispensar o contingente do passado a fim de bem compreender as instituições jurídicas dos dias atuais”.1 A universidade pode ser entendida como um centro de cultura superior orientado por uma liberdade acadêmica e de conseqüente autonomia. O vocábulo tem origem na palavra latina universitas, e segundo F. J. Caldas Aulete em 1 2 3 4 40 A r t i g o seu notável léxico, tem o significado de: “a totalidade das pessoas e das coisas, universalidade (qualidade do que é universal, geral), reunião de escolas da ordem mais elevada...”,2 com o detalhamento dado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira em seu novo dicionário: “universalidade. Instituição de ensino superior que compreende um conjunto de faculdades ou escolas para a especialização profissional e científica, e tem função precípua garantir a conservação e o progresso nos diversos ramos do conhecimento, pelo ensino e pela pesquisa”,3 e extraído no léxico espanhol de Julio Casares em seu Dicionário ideológico: “universidad. Instituto publico donde se cursan ciertas facultades, y se confieren los grados correspondientes. Instituto publico de enseñanza donde se acian los estudios mayores de ciencias y letras”,4 cumprindo assim afirmar que o ensino, a ministração do saber e do conhecimento, representam o principal objetivo institucional da entidade denominada universidade, abrangendo todos os ramos da instrução superior no nível universitário, qualificando-se como uma pessoa jurídica ficta integrada por uma comunhão de pessoas, a quem se outorgara alhures também a denominação de corporação. O propósito de enfocar-se o tema é justamente em razão da sua atualidade, e de oportunizar uma colocação mais avançada de parte da comunidade acadêmica interessada, para carrear-se, ao campo amplo e fecundo das idéias, a instauração de reflexões e debates acerca do desenvolvimento ideal das universidades na ministração do ensino superior nos dias atuais, aspectos considerados áridos e polêmicos, plenos de preocupações ex vi deste aceno real de mo- História do direito brasileiro, p. 11. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, p. 1.389. Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.430. Diccionario ideológico de la lengua española, p. 1.072. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o dernidade globalizante que está a envolver toda a sociedade onde vivemos, a repercutir em todos os seus segmentos ativos, com indiscutível sorte de influências, quer na área pública quer na área privada, e muito mais na educação ideal a ser transmitida às novas gerações. O sentido da empreitada é, de forma modesta, possibilitar uma visualização da importância e magnitude que está a representar para o ensino superior em si, e o ensino do Direito, revolvendo um pouco da sua história, e através das entidades é que se propõe realizá-lo, sobretudo nos grandes aglomerados educacionais compostos de universidades e de centros universitários em nosso país. Busca-se fixar a sua evolução no decorrer dos tempos e das épocas, tendo em vista as suas metas, e principalmente como um centro produtor e difusor perene na construção de conhecimentos, na aplicação constante do saber, e com a responsabilidade de exercer uma verdadeira revolução na manipulação e desenvolvimento da alta tecnologia, tudo ao matiz do inelutável progresso social e dos avanços no campo científico. 2 A UNIVERSIDADE EM SI A universidade como uma instituição formal, ao que nos indicam os predicamentos da história, pode ser considerada como uma invenção do período medieval, tendo como embrião os estudos gerais mais precisamente na baixa Idade Média (1150-1474), e que nos seus primórdios era considerada uma comunidade integrada de professores e alunos para a busca do saber, bem como para transmitir os resultados desta investigação e conhecimento. Nasceu assim: organizaram para atrair professores e pessoas mais dotadas de cultura às reuniões de estudos em comum, a fim de estabelecer suas cátedras (tribuna de conhecimentos) em suas respectivas cidades; e, b) de uma reunião de professores, que se uniam para formar um foro acadêmico, na permutação e intercâmbio de idéias, e que se denominavam de reuniões acadêmicas. Etmologicamente, a palavra cátedra vem do grego kathedra, de onde deriva a expressão “cadeira”, em um sentido de lugar, usada pelos bispos e autoridades clericais nas suas catedrais e pelos professores nas universidades, e de onde naturalmente falavam para a sua platéia. Estas organizações tomaram a forma de associações, que se tornaram comuns na baixa Idade Média (associações, corporações de ofícios), mais relacionadas com o sentido de “grêmios”, isto é, de agremiações, e justamente nesta forma de associação e nesta mesma ordem de idéias é que nascem as universidades como pessoas fictas com a feição de uma corporação, composta de estudiosos (professores) mais experientes, reunidos em uma cidade para transmitir seus conhecimentos, inclusive com estatutos de organização aprovados e com regras estabelecidas, que eram de todo respeitadas pela comunidade integrante: professores e alunos. No dizer de Jacques Verger em seus estudos especializados, a) em seu momento inicial, como uma corporação de discípulos afeiçoados que se 5 “A la época de creación de las universidades no existia lo que hoy conocemos como enseñanza primaria o ensenãnza secundaria, ni, por lo tanto, la enseñanza superior. La enseñanza estaba abandonada a la iniciativa privada y local, com un prestigio social y político limitado...”5 Gentes del saber en la Europa de finales de la Edad Media, p. 51. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 41 D ireito Assim, as universidades nasceram como verdadeiros espaços de investigação e de estudos que, em resumo, se caracterizaram: a) pelo trabalho docente constante na busca do saber; b) pela integração do conhecimento, e com isso acabando por regulamentar o ofício do intelectual; e c) tendo a ciência como centro de toda investigação e pesquisa. Outra peculiaridade marcante desde o seu nascedouro, é a idéia fixa de liberdade acadêmica e de autonomia universitária, componentes que em sua estrutura representavam a ampla reflexão na possibilidade de definir seus fins e objetivos, na elaboração de seus próprios planejamentos e programas; máxime, no sentido de garantir o livre exercício da investigação, da atuação dos docentes, e do acesso indispensável às fontes de informação. É certo que a universidade medieval apareceu principalmente na preparação de formas mais racionalizadas, intimamente relacionadas com o exercício da autoridade da igreja Católica, do governo e da sociedade, dando oportunidade ao surgimento: das escolas monásticas, ligadas às abadias e aos monastérios; das escolas episcopais, capitulares ou catedralícias que se desenvolviam nas cidades havidas como sedes das dioceses religiosas, e que mantinham uma dependência direta para com os bispos clericais. Impõe-se considerar que, neste período decantado como obscuro da alta Idade Média, a igreja Católica era um núcleo social dos mais organizados ao seu mister sacerdotal, daí advindo a relevância de sua atuação. Por sua vez, com os monarcas, surgiram as escolas pala- 6 42 A r t i g o tinas, também chamadas palacianas, sendo a primeira criada no ano de 777 pelo imperador Carlos Magno – voltada para a educação intelectual – que convocou para suas atividades renomados pensadores e estudiosos de sua época, constando dos seus registros e dos anais históricos que esta escola foi transferida para Paris por Carlos Calvo, e que é considerada por alguns pesquisadores como um antecedente remoto e expressivo para a criação da tradicional Universidade de Paris. Nestas escolas, e nas primeiras universidades, em seus currículos e nas matérias aplicadas aos seus programas e estudos, já correspondiam a evolução do trivium – estudos de gramática (latim), retórica (artes) e lógica ou dialética (o estudo do pensamento com base no filósofo grego Aristóteles), que era considerado o caminho triplo da busca da sabedoria; e do quadrivium – que correspondia a aritmética, geometria, astronomia e música, havido como o caminho quádruplo para o desvendar do conhecimento, classificadas como todas as sete artes liberais (uma criação da alta Idade Média (7111150), como nos lembra o culto professor argentino Abelardo Levaggi: “Desde fines del período, las ciudades, en processo de repoblación, organizaran sus propias escuelas...”6 se incorporando às mesmas os estudos: da teologia, da medicina e do direito, ressaltando-se como dado de singular expressão que a música ocupou um lugar de destaque em razão justamente dos cânticos nos ofícios e no culto cristão que integrava, e segundo o entender muito apropriado dos pensadores gregos, como um meio para a perfeição do espírito. Dessa forma, observa-se claramente que as primeiras universidades se formaram a partir Manual de historia del derecho argentino, p. 336. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o da própria experiência, com um predomínio bem claro do conhecimento empírico, com sua gradativa e lenta instituição como organização. Com o natural domínio da igreja Católica à época, a sua cúpula, por meio do papado, em meados do século XIII, no propósito de converter as universidades em modelos de instituições cristãs formalizadas, unificou-as sob a forma de estudos gerais, protegidas e controladas pelas autoridades eclesiásticas, com a direção da Igreja incentivando o seu desenvolvimento em novas universidades, tendo, como objetivos bem definidos, o sentido deliberado de dar qualificação ao seu pessoal religioso e consolidar um poder cultural de parte da Igreja, para tanto lhes fornecendo proteção e segurança, buscando também alcançar uma projeção voltada para um aspecto mais internacionalizado. Nas carreiras profissionais havia componentes laicos, com disciplinas de Direito Civil, Direito Canônico e estudos de medicina, e como isso o papado tinha como preocupação e intenção criar um clima de harmonização entre as crenças contraditórias das diversas ordens religiosas, na firme disposição de fortalecer o poder do papado, e também no propósito de incorporar pessoas mais eruditas e afinadas para assumir um status clerical. Dado expressivo deve ser registrado: nesse mesmo tempo, as universidades também contaram com o apoio igual da autoridade civil, por meio dos imperadores, dos reis e das autoridades municipais, que tiveram praticamente a mesma idéia da adotada pela Igreja, precipuamente na formação de pessoas súditas para serem os colaboradores do poder, inclusive criando outras universidades, as quais tiveram maior proliferação nos séculos XIV e XV, estimuladas por financiamentos, o que contribuiu para aumentar ainda mais os núcleos de estudos e a própria população estudantil. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 3 AS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES As grandes universidades organizadas no período medievo baixo e de maior expressividade são: a de Paris, de Bologna, de Oxford e de Cracóvia na Polônia, apontadas como as mais antigas da Europa: Universidade de Paris. Apareceu no século XII, formada a partir de professores e alunos pertencentes à escola da famosa catedral de Notre Dame e de outras escolas de Paris. Por força dos movimentos de enfrentamento entre alunos e autoridades civis, ficou marcada por um episódio bastante triste e com a morte de muitos alunos. Esta universidade foi um centro de estudos, considerada a mais destacada da Idade Média, especialmente pelos estudos profundos de teologia e filosofia. Tinha um caráter acentuadamente eclesiástico (religioso), e um dado expressivo é que Santo Tomas de Aquino pertenceu a ela. Universidade de Bologna. Surgiu também no século XII como escola episcopal especializada em Direito Canônico, Municipal, e em Direito Civil. Formou-se a partir de uma associação voluntária de estudantes que foram ouvir Werner Irnério, professor de Direito e monge religioso, ministrar seus conhecimentos. O registro marcante dessa universidade é que foi a primeira a ensinar o Direito, e servir de padrão às demais. O prestígio de Bologna à época se deve a que era um ponto de confluência de rotas comerciais e de peregrinos do norte até Roma. A pesquisa aos anais nos informa que o imperador Felipe I tinha interesse na aplicação das leis romanas para atender suas pretensões como imperador, pois os estudantes de Bologna eram pessoas adultas, que financiavam a universidade e a controlavam elegendo o seu reitor. 43 D ireito Constituiu-se em um centro de interesse de estudos do Direito, por ser a primeira a estudar o Direito Romano; e pela proteção que teve do imperador, Bologna se notabilizou, e teve o afluxo de pessoas estudantes que ali formaram uma comunidade, inclusive com pessoas vindas de outros lugares, destacando-se pelos estudos de Direito Canônico, Direito Civil, assumindo a recuperação do Direito Romano, considerado o feito mais importante, atribuído ao monge e professor Werner Irnério e seus discípulos, que formaram o grupo denominado glosadores. A respeito, assinala o professor Levaggi: “El hallazgo fortuito em Italia, a fines del siglo XI, de un manuscrito del Digesto, la obra ignorada en los siglos anteriores, le permitió a Irnerio y a sus discípulos acceder a la jurisprudencia clásica e inaugurar la ciencia jurídica medieval...”7 Universidade de Oxford. Igualmente, surgiu no século XII. A presença estudantil concorria nas escolas religiosas, conventos e monastérios. Característica marcante dessa universidade é que em 1209 registra um movimento estudantil com a morte de muitos alunos, e em conseqüência, alunos e professores decidiram abandonar a cidade, alguns se mudando para Paris e Cambridge, e nesta cidade inglesa formaram uma nova universidade. Os que permaneceram em Oxford tiveram o reconhecimento eclesiástico para o ensino, com a proteção do bispado, acabando por se destacar no ensino da teologia e das ciências. Oxford, como pequena cidade inglesa, adquiriu prestígio por ser à ocasião a sede da ad- 7 44 A r t i g o ministração real e das cortes religiosas, o que animou estudiosos e juristas a emigrarem para esta cidade e ensinar o Direito. Em pouco tempo, a escola era conhecida como de leis, única na Inglaterra a atrair estudantes da Europa. 4 OS MODELOS DE UNIVERSIDADES E SEUS OBJETIVOS A maioria dos sistemas de educação tiveram origem a partir de grandes modelos universitários classificados como históricos: a) o sistema napoleônico da universidade profissional; b) o sistema alemão da universidade científica/educativa; c) o sistema britânico da universidade educativa; e d) o sistema norte-americano da universidade/organização. Em abordagem, sucinta cada um apresenta suas características: Sistema Napoleônico. Ao já assinalado, é considerado o mais antigo. O Estado passou a utilizar a universidade como ferramenta de progresso e modernização da sociedade, com um sistema fortemente centralizado, e com reduzida autonomia, pois o objetivo do Estado francês na oportunidade, em face da carência pós-revolucionária, era de formar profissionais para o próprio Estado e para a sociedade. Sistema Alemão. É um modelo científico educativo, tendo organizado a universidade como uma instituição vocacionada para a investigação e a formação científica dentro do ideal humanista, baseada no enciclopedismo e na liberdade do ensino e da expressão. Idem, p. 68. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Este sistema é dotado de autonomia fora da intervenção do Estado, porém sua autonomia era garantida pelo Estado, com o dado interessante de que os alunos deveriam trabalhar em seminários, e o professor os aceitava como preparados. Sistema Britânico. Modelo educativo até o final do século XVIII, na Grã-Bretanha existiam as tradicionais universidades de Oxford e Cambridge. Em Oxford surgem os colleges como alojamentos para estudantes de menores recursos, transformando-se em comunidades de professores e alunos, com ampla autonomia e com recursos de rendas e doações. Impõe-se dizer que, nos colleges do século XIX, a educação superior pertencia a uma classe social considerada privilegiada, mantendo as normas e estilo de vida britânicos, e este modelo assume os paradigmas da universidade educativa. Oxford e Cambridge, pelos seus custos, passam a ser universidades de elite, em um sistema tutorial: os pais confiam os filhos à universidade, e cada professor assumia a formação moral e científica de reduzido número de estudantes, tudo de acordo com as virtudes cívicas e morais, e os princípios da igreja Anglicana. Surgem outras universidades, mas o sistema inglês mantém a tradição como um sistema universitário baseado na ampla autonomia institucional destinado ao desenvolvimento intelectual e à realização pessoal de seus alunos, que deviam residir no campus universitário, praticando também uma vida em convivência. Este sistema se modificou e democratizou-se na segunda metade do século XX. Sistema Norte-Americano. As primeiras universidades seguiram o modelo britânico, pois Harvard, a mais tradicional, foi criada em 1636 no mesmo modelo de Cambridge, com o mesmo sistema tutorial. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 No século XX, com a Segunda Guerra Mundial, a universidade americana se transformou em um centro de investigação mais ativo na produção de novos conhecimentos, constituindo-se mais em uma empresa de serviços com orientação prévia quanto à área de investigação, modelo que corresponde a uma sociedade concentrada para o desenvolvimento econômico e, principalmente, de inovação tecnológica. O detalhe importante, como organização, é que trabalha com a lei de mercado em um sistema de educação superior destinado às massas, dando inteiro destaque às noções de saber útil, concorrendo com um sentido nitidamente pragmático. 5 O ENSINO DO DIREITO Sem desconsiderar os estudos já realizados no período romano, praticamente o embrião de tudo, remontando a textos isolados, desde o século XII, nas cidades de Bologna, Ravena, Modena e Piacenza, passou-se a estudar o Direito Romano a partir dos velhos manuscritos justinianeos descobertos. À ocasião, o Direito Romano não estava vigente na Europa, e seu estudo despertou interesse de estudiosos, professores, juízes e governantes, quando Werner Irnério, conotado como o “farol do direito”, veio de descobrir no museu da cidade de Pisa um manuscrito do Digesto de Justiniano, que classificou como uma grande “revelação jurídica”, uma “lembrança de Deus”, passando a estudá-lo com seus discípulos Acursio e Azo. Irnério, como professor, separou o ensino da jurisprudência clássica da retórica, e passou a ensinar as leis romanas. Irnério e seus discípulos realizaram as glosas do texto descoberto partindo do seu teor, do conhecimento da letra e das palavras, e se 45 D ireito apoiando na autoridade da lei, preparando uma reedição em cinco volumes do Corpus Juris Civilis de Justiniano, composto do Código, do Digesto, das Institutas e das Novelas, sendo responsável pela formação da Escola dos Glosadores, onde Acursio foi o incumbido e responsável pela compilação denominada “magna glosa” ou “glosa ordinária”. E assim o Corpus Juris Civilis foi incorporado em seus estudos, o que correspondeu ao embrião da crítica reproduzida pelos Comentaristas surgidos no século XIII com Cyno de Pistoia, Bartolo de Sassoferrato, e que se utilizaram do mos italicus, método italiano de ensino e aprendizado do Direito, criando a opinio comunis doctorum por meio da compilação das opiniões de parte de Baldo de Ubaldi, cujas regras comuníssimas passaram a formar o Direito comum, adotadas como argumento de autoridade e fonte de criação do Direito dos juristas, que se espargiu e evoluiu em toda Europa, em uma mescla das regras comuns consolidadas com os usos e costumes de cada país, e com isso criando o seu próprio direito. Esclarece Levaggi: “El critério de los juristas bajomedievales fue, pues, el de maxima aplicación posible del Derecho común y, correlativamente, el de la mínima aplicación del Derecho próprio. De esta manera, los Derechos de la mayoria de los reinos europeos se incorporaron al sistema del Derecho común”8 O método de ensinamento era oral e em latim, na utilização dos textos romanos, pois o latim correspondia a língua da bíblia, por ser a língua 8 46 A r t i g o das escrituras, da cultura erudita e também a língua dos ensinamentos. Como meios, utilizaram pequenos manuais da obra de Aristóteles, especialmente dos tratados de lógica, constando que o homem letrado medieval tinha uma tendência natural de ordenar suas idéias sob a forma de silogismos e de transformar as mesmas em figuras de silogismo corretas ou não corretas, dentro dos argumentos de seus próprios adversários. O livro em si surgiu no século XIII com a utilização do papel, e por ser caro, as universidades estruturam-se em lhe destinar recintos próprios, isto é: bibliotecas para consultas, e encadernação para evitar furtos. Quanto aos professores, as universidades da Idade Média passaram a formar seu corpo para a satisfação de suas necessidades e aumento do número de alunos. O professor respondia com cinco características básicas: respeito reverencial às autoridades; grandes autores e pensadores em que se apoiavam na atividade docente; domínio do método dialético calcado na universalidade do saber e do conhecimento; o ensinamento deveria basear-se na ótica cristã, ordem do mundo criada por Deus; os professores eram em sua maioria eclesiásticos, com dois graus de formação: bacharel e catedráticos. Portanto, desde suas origens, as universidades contaram com uma estrutura institucional, como uma federação de escolas, e cada escola ofertava um ciclo completo de disciplinas, dirigidas por um professor, e com um diretor de estudos, responsável pela escola. Cada faculdade se dedicava a um ramo do conhecimento, com professores que estudavam a mesma Idem, p. 80. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o matéria, com quatro cursos: Teologia, Direito, Arte e Medicina. elle la presencia de estudiantes portugueses em Italia, quienes a sua regresso volcaron su saber como catedráticos y consejeros (Juan de Dios, 6 Juan de las Reglas), como a la de juristas italia- A UNIVERSIDADE E O ENSINO nos em Portugal. La fundación de la Univer- DO DIREITO EM PORTUGAL Em face das ligações entre o Brasil e Portugal, não poderíamos deixar de mencionar Portugal, e pelos laços de colonização entre os dois países, sugestivo é o esclarecimento trazido pelo prestigioso professor historiador José de Lima Lopes a respeito, e que bem orienta o surgimento da universidade em Portugal: “a criação do ‘studium generale’ pelo rei D. Dinis em 1290 mostra a distância que separava Portugal das origens do movimento universitário. De fato, a universidade portuguesa difere de Paris e Bolonha pelo seu caráter não espontâneo, ou seja, pela criação por ordem régia (...) O ‘studium’ é transferido para Coimbra em 1308 e retorna a Lisboa em 1338, por ordem de D. Afonso IV; em 1354 volta a Coimbra e ali fica até 1377 quando, sob D. Fernando I, volta a Lisboa. Conforme Saraiva (1995) a universidade portuguesa era ‘vagabunda’, que até o século XVI não tinha sede fixa, nem instalações próprias, nem mestres prestigiados e cujos diplomas valiam pouco, mesmo dentro das fronteiras do Reino”.9 sidad de Lisboa-Coimbra (hacia 1290) favoreció la difusión del Derecho común...”10 Sobre o Direito, segundo dizem os estudiosos, a história do Direito brasileiro é mais antiga do que a própria história do Brasil, pois grande parte da sua evolução deve-se ao Direito português, já que este teve vigência no Brasil desde o começo da colonização, com a nítida influência da civilização da Europa na colônia portuguesa da América. A propósito, traz-se novamente a palavra do inesquecível mestre das arcadas Waldemar Martins Ferreira: “O que, de verdade, sucedeu, quanto às instituições jurídicas, foi o que Silvio Romero teve como acertado chamar – a bifurcação brasileira, ou seja, o transplantio do organismo jurídico-político português para esta parte do continente sul-americano”.11 7 A UNIVERSIDADE E O ENSINO DO DIREITO NO BRASIL A respeito de Portugal, acrescenta ainda o eminente professor e historiador argentino Levaggi: “La penetración del Derecho común comenzó en el siglo XIII y fue progressiva. Contribuyó a 9 10 11 Os estudos do Direito no Brasil surgem através da bifurcação denominada brasileira, que corresponde à vigência de preceitos da organização jurídica portuguesa no continente sulamericano, especificamente no Brasil. O direito na história: lições introdutórias, p. 125. Op. cit., p. 83. Op. cit., p. 25. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 47 D ireito A r t i g o Com a declaração da Independência do Brasil, segundo nos resgata a história, os brasileiros acabavam de perder o único centro de cultura superior do mundo de língua portuguesa: a Universidade de Coimbra, pois a primeira geração de legisladores brasileiros ali é que se haviam formado. A propósito afirma Lima Lopes: Em 1854, pelo Decreto n. 1.386, os cursos jurídicos passaram a denominar-se Faculdades de Direito, e neste mesmo ano o curso da cidade de Olinda transferiu-se para Recife. As faculdades de Direito, em uma reforma de 1879, foram divididas em dois cursos: Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, com currículos acrescidos, anotando-se que a freqüência aos cursos era livre. “(...) Os brasileiros de primeira geração de le- Após a proclamação da República em 1889, houve uma nova reforma educacional, restaurando a presença obrigatória dos alunos aos cursos, e o modelo de Coimbra acabou por receber as modificações seguindo os padrões europeus e de acordo com as necessidades brasileiras. gisladores e juristas são fruto desta idéia geral, pois foram socializados em Coimbra neste ambiente. Ali aprenderam o direito e aprenderam o que seria um curso de direito.”12 Em sua excelente monografia comentando os parâmetros políticos fundamentais norteadores, diz Aurélio Wander Bastos: “(...) em primeiro lugar, a história da instalação dos cursos jurídicos no Brasil (...) é basicamente a história das conciliações que se deram entre as elites imperiais e determinadas frações A elite de juristas desta época vem das duas Faculdades, a exemplo de Augusto Teixeira de Freitas e Clóvis Bevilácqua. Como dados relevantes da criação intelectual brasileira, em 1856 aparece a Consolidação das Leis Civis de Augusto Teixeira de Freitas, e em 1916 o Código Civil de Clóvis Bevilácqua, dois autênticos monumentos do estudo do Direito em suas épocas. das elites civis; em segundo lugar, a fração derrotada das elites civis sempre esteve numa posição optativa entre a sua proposta e as propostas oficiais da elite imperial ou as da sua fração que tinha acesso direto ao Estado”.13 Dessa forma, em razão de uma efetiva necessidade, das divagações e desencontros da política, pela carta de lei de 11 de agosto de 1827 elaborada pelo Império, foram criados os cursos jurídicos no Brasil: um em Olinda e outro em São Paulo, cujos parâmetros eram então nos mesmos moldes de Coimbra. 12 13 48 8 OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI Como desafios para o século XXI, ex vi do crescimento da população estudantil e de um fluxo mais intenso, adentramos em um processo de massificação das universidades – fenômeno que surgiu justamente a partir da Segunda Grande Guerra, e que influenciou sobremaneira a qualidade dos ensinamentos, obrigando as universidades a diversificarem seus recursos docentes para dar cumprimento a seus objetivos, diante da ocorrência de novos paradigmas ao desenvolvimento. Op. cit., p. 229. O ensino jurídico no Brasil, p. 8. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Diante dessa massificação, como era natural, acresça-se que a premente necessidade de adequação das universidades, e a evolução das idéias da Idade Média para a Idade Moderna, foram aspectos determinantes para uma reforma rápida dos princípios universitários. Já no século XIX na Alemanha iniciou-se um movimento estabelecendo formas para a execução de tarefas de investigação fundamental e de adestramento profissional reservadas à classe intelectual, organizadas com uma rígida relação hierárquica em torno do professor titular da cátedra. No entanto, a demanda de técnicos e profissionais causou profunda transformação nas universidades: de uma fase de instituição fechada somente para o atendimento das elites, para uma educação de massa, com significativo aumento da população universitária, que via na universidade uma forma de prosperação social e de democracia na vida universitária. Bem a propósito nos elucida o professor argentino Eduardo Martinez Márquez: “El professional que contemplamos, por el contrario, deberá reunir positivamente esta triple condición humana de creatividad: responsabilidad plena, ante toda nueva situción, con conciencia de tener en la mano su propio destino, y en alguna medida, también el de dos demás; busqueda activa y razonada de solución, con la possibilidad fundada de encontrarla, y participación solidária en la evolución social, con personalidad propia que no sucumba a la fácil tentación de masificación”.14 14 15 Não há a menor dúvida de que a universidade do século XXI, em seus estudos, tem como sérios desafios: a) submeter-se à democratização; b) satisfazer uma população de estudantes, como consumidores de serviços; c) ao mesmo tempo dar conta dos novos movimentos sociais, em razão da globalização da cultura e do pensamento; e d) atentar para as dificuldades quanto aos recursos docentes, sem perder a constante busca da transmissão da verdade e do conhecimento científico atualizados, com certo tempero até de uma previsão de futuro. Sobre as perspectivas da universidade, ilustra ainda o professor Eduardo Martínez Márquez, já citado: “Todos sabemos que la universidad, en la sociedad contemporánea, debe ser la fuente fecunda de autênticos recursos humanos (...). Esta incumbencia, este compromisso esencial de la universidad de hoy, la obriga a estar siempre en función prospectiva, a ‘futurizar’ como ahora se dice: porque los hombres e mujeres, que hoy salen de sus claustros, han de ser los professionales e investigadores da la sociedade de mañana. He aqui el problema máximo de la universidad de todos los tiempos (...). El profissional del tercer milenio no acabará nunca su carrera, porque se hallará naturalmente en educación abierta y permanente, siempre pendiente del último descobrimiento, y en actitud de constante revisión, bajo el signo de los tiempos”.15 Universidad auténtica, p. 178. Idem, p. 176-180. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 49 D ireito 9 CONCLUSÃO Levando-se em conta ser a universidade um verdadeiro centro produtor e difusor perene na construção de conhecimentos, na aplicação constante do saber, e com a responsabilidade de exercer uma verdadeira revolução na manipulação e no desenvolvimento da alta tecnologia na incessante busca do bem-estar social, do progresso social e dos avanços no campo científico, a conclusão deste tema pode ser resumida em duas grandes vertentes que por certo estão a preocupar a comunidade acadêmica dirigente e as instituições universitárias do país, diante da: 9.1 Nova Realidade No campo técnico e científico, ante os efeitos da globalização, importante é destacar alguns pontos na reforma do pensamento, e da necessidade da interdisciplinaridade já manifestada no século XX, e agora, no século XXI, sob nova denominação a da transdisciplinaridade, o que implica naturalmente uma reforma dos paradigmas vigentes da universidade. Convém ficar esclarecido que a interdisciplinaridade adotada pela nova inteligência já tentara resolver o problema do conhecimento com o auxílio de outros ramos do saber, através de uma reforma dos programas. E a transdisciplinaridade por seu turno, ter sua atenção voltada para as mudanças, por posicionar todo tipo de informação em seu contexto e principalmente no global, onde está originalmente inserta. Para tanto, deve-se dizer que, diante do mundo globalizado, a reforma da universidade tem como objetivo a reforma do pensamento, a redundar numa plena utilização da inteligência na busca do saber, e a corresponder uma clara formulação de inovações em atenção aos paradigmas a prevalecer, ou seja, uma nova 50 A r t i g o forma de se organizar o conhecimento, pois o avanço deve ir mais longe para que o pensamento capte as multirrelações, as interações, as implicações solidárias, o sentir conjuntural, tudo dentro do panorama social, cujas realidades são cada vez mais comuns e por incrível que pareça, francamente dissidentes. Torna-se indiscutível concluir pela ingente e imperiosa necessidade de um pensamento organizador que atente para a relação recíproca entre o todo e as partes, como sucedâneo inovador de uma nova forma de pensar. Cumpre ficar esclarecido que vivemos mais um momento dos tempos das reformas na implantação de uma estrutura universitária mais adequada, mais estimuladora, para sairmos de uma tradição arraigada nos aspectos formais do “mesmismo” cômodo, e ao talante exuberantemente egocêntrico do “achismo” de muitos, tudo ao fiel propósito de mudanças de mentalidade de parte dos educadores, tendo em vista o mesmo empirismo de outrora aos dados já consolidados e vigentes nos dias atuais, na direção da conquista segura da eficiência dentro do binômio indiscutível, em consonância com o ensino ideal e para o êxito da aprendizagem. 9.2 Novas Necessidades e Tendências É de se reconhecer, a ocorrência de novas aberturas nos ensinamentos do direito, ligados aos campos dos novos direitos referentes: ao conceito mais atualizado de sujeito/cidadão; direito da criança e do adolescente; direito das mulheres; direito dos idosos; direito dos indígenas; da discriminação; do bio-direito, novo direito à vida; direito do consumidor; direito ambiental in genere ; direitos relacionados com a reprodução animal; o direito relativo às alterações genéticas; os públicos virtuais na sociedade da informação; o direito comunitário (da união de j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o países – Comunidade Européia, Mercosul); o da globalização e etc., que se refletem em razão das novas necessidades e tendências. Não restam dúvidas também, que diante do irreversível avanço tecnológico a possibilitar uma infra-estrutura, e com acentuada velocidade no âmbito das informações, nos deparamos com uma autêntica reformulação didático/ pedagógica, compatível com o fluxo destas necessidades, onde se mescla o tradicional com a nova ordem motivadora, e que vá de encontro com as expectativas e os novos padrões exigidos pelas gerações, e que são alcançados por toda esta tecnologia, anteriormente sob sonhos, e hoje sob inequívoca realidade, assim como: o sistema semi-presencial, a universidade virtual e o ensino a distância, pois, a tecnologia digital, a informatização e a difusão dos programas pessoais, as comunicações e sua difusão, a velocidade das informações e os recursos propiciados pela Internet, estão a provocar mudanças expressivas no processo de educação e na ministração do conhecimento, com sérios reflexos nas próprias mudanças comportamentais. A universidade que se rotule de moderna não pode ficar alheia a toda essa messe de mudanças, e a essa parafernália tecnológica, inclusive criando e organizando seu próprio laboratório de meios e difusão, na utilização efetiva da sofisticada tecnologia já preexistente e à disposição. Em conseqüência, dentro de uma linearidade do crescimento universitário físico e de novos paradigmas, estão nascendo os programas de educação à distância, que acabarão tornando-se uma nova realidade educacional, a universidade virtual extremamente acessível, dando atenção mais eficiente ao fluxo da demanda, e, sobretudo, mais competitiva e menos onerosa. Como conseqüência de tudo, temos a união das telecomunicações com a informática que fez nascer a telemática, com um universo imenso de processos interativos à distância, a exemplo do videotexto, do banco de dados, do correio eletrônico entre outros, pois a informática, unindo-se ao vídeo, possibilita a videomática, que compreende o vídeo interativo. Para tanto, as universidades ou centros universitários a congregar expressiva comunidade estudantil, e que pleiteiam erigir-se como modernos núcleos difusores de uma educação moderna, serão forçosamente compelidos a desenvolver tecnologias de meios para propiciar um aprendizado de todo eficiente, por uma sistema presencial parcial, e para que haja uma iteratividade mais proveitosa, mais intensa, levando-se em conta a dificuldade de locomoção do aluno nos maiores centros urbanos – local de trabalho, moradia e escola –, e o real aproveitamento que pode ter no âmbito de seu micro caseiro, hoje mais ou menos universalizado como sonho necessário de consumo. Assim, a informática, com ferramenta de trabalho adequada, possibilita novas formas de comunicação através ainda do: teletexto, videotexto, hipertexto, hipermídia, integradas ao sistema de multimídia, como um conjunto de dispositivos que possibilitam a reprodução simultânea de textos, desenhos, sons e seqüências audivisuais. É certo que tudo está a representar a solução pedagógica para a educação ter melhor qualidade e eficiência, o que implicará seriamente uma arrojada reestruturação dos planos de estudos e seu desenvolvimento para o exercício das novas profissões, e com tudo isso estando enquadrado o próprio aperfeiçoamento do estudo do Direito. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 51 D ireito A r t i g o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Wander Aurélio. O ensino jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. CALDAS AULETE, J. F. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3. ed. São Paulo: Melhoramentos. CASARES, Julio. Diccionário ideológico de la lengua española. 1. ed. Barcelona: Gustavo. CATENACCI, Imerio Jorge. Introdución al derecho. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2001. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 52 LEVAGGI, Abelardo. Manual de historia del derecho argentino. Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1998, t. 1. LIMA LOPES, Reinaldo José. O direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. MÁRQUEZ, Eduardo Martinez. Universidad auténtica. Buenos Aires: Delpa1ma. MARTINS FERREIRA, Waldemar. História do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951, t. 1. VERGER, Jacques. Gentes del saber en la Europa de finales de la edad media. Madrid: Complutense, 1999. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 D ireito A r t i g o MÍDIA E DIREITO Estela Cristina Bonjardim Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestranda em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP/SP. Formada em Direito pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de São Bernardo do Campo. Formada em Jornalismo pelo IMES. Delegada de Polícia 3a classe lotada junto à Delegacia Seccional de Polícia de São Bernardo do Campo. Professora Universitária desde 1995 junto à Universidade do Grande ABC – UniABC/São Caetano do Sul e junto ao Instituto Municipal de Ensino Superior – IMES/São Caetano do Sul desde 1998. R E S U M O ABSTRACT O presente trabalho pretende mostrar como os meios de comunicação de massa e a lei podem coexistir de forma harmoniosa. This article wants to show how mass media and law can live together in peace. 1 SOBRE A LIBERDADE Ao afirmar que “a razão é a origem de toda a liberdade”, Santo Tomás de Aquino refere não só que suas raízes estão no próprio sentimento humano, como também reconhece o direito de liberdade como fundamental, como o único direito original que pertence a cada homem pela simples razão de sua humanidade, donde facilmente se conclui que qualquer indivíduo sem liberdade sente-se mutilado. Esse é o motivo de se buscar a origem da liberdade no próprio nascimento do homem, como manifestação do instinto pessoal. “O ato de desobediência de Adão e Eva rompeu o laço primordial com a natureza e os transformou em indivíduos. A desobediência foi o primeiro ato de liberdade, o início da história humana.”1 1 2 12 A liberdade, porém, não se pode limitar ao pensamento, já que está definitivamente vinculada à liberdade de expressar o pensamento. Só se pode falar em liberdade quando podemos livremente expressar aquilo que pensamos. “Sem liberdade não existe moral, porque, não existindo livre escolha entre o bem e o mal, entre a devoção ao progresso comum e o espírito de egoísmo, não existe responsabilidade. Sem liberdade não existe sociedade verdadeira, porque entre livres e escravos não pode existir associação, mas somente domínio de uns sobre os outros. A liberdade é sagrada como o indivíduo, cuja vida ela representa.”2 Como vimos, a liberdade guarda amplo conceito que, por sua amplitude, confunde-se com Erich Fromm, Meu encontro com Marx e Freud, p. 156. Giuseppe Mazzini, Deveres do homem, p. 125. Apud Darcy Arruda Miranda, Comentários à Lei de Imprensa, v. 2. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o vários conceitos igualmente amplos, como verdade, moral, direito e responsabilidade, além de outros. 1.1 Liberdade de Pensamento Sob qualquer enfoque, o conceito da livre manifestação do pensamento representa um princípio que paira sobre todos os demais em termos de importância, não porque se relacione com eles, mas porque os protege, sem que por eles seja protegido. Assim, quando o governo de um país declara que respeita os direitos humanos, protege a sua população contra discriminação de ordem racial, de cor, de religião, mas censura os meios de comunicação de massa, anuncia muito, porém nada respeita, porque suprime a liberdade de verificar se o que declara é realmente verdadeiro. Por outro lado, se confere à imprensa liberdade e independência, naturalmente haverá a fiscalização da existência e eventual violação das demais liberdades. Essa importância foi retratada por Rui Barbosa, ao afirmar que: de liberdade. Quando se fala em sistemas políticos, por exemplo: quaisquer que sejam, a livre manifestação do pensamento tem muito que ver com eles, não podendo ser considerada menos importante. Um sistema político em que os detentores do poder atribuam importância secundária à livre expressão do pensamento não pode, com o tempo, conviver pacificamente com seu próprio povo. A liberdade é inata ao homem. Mais do que um direito, é um sentimento incompatível com qualquer sistema ou teoria que se repute infalível e, por isso, não aprecie qualquer outra alternativa que não sua supressão. Marx, sentindo-se uma das vítimas da perseguição pelo poder, escreveu: “A natureza de uma imprensa censurada é a monstruosidade disforme da falta de liberdade. O governo ouve apenas a sua própria voz; ele sabe que está ouvindo a sua própria voz; não obstante, ele se fortalece na auto-ilusão de que está ouvindo a voz do povo e exige também do povo que mantenha essa auto-ilusão”.4 “De todas as liberdades, a do pensamento é a maior e mais alta. Sem ela todas as demais deixam mutilada a personalidade humana, asfixiada a sociedade, entregue à corrupção o governo do Estado”.3 Cercado de tanta grandeza, o princípio da livre manifestação do pensamento se deixa envolver por outros conceitos, como verdade, moral, política, o que se acentua quando a liberdade de pensamento se confunde com outros tipos 3 4 Se um indivíduo de pensamento discrepante pode ser considerado inimigo do regime – o que é a tônica dos sistemas políticos totalitários – a liberdade de comunicação, nessa hipótese, representa um perigo e uma preocupação. Até o século XVIII, emitir opinião e divulgá-la era praticamente privilégio dos reis e da Igreja e, não se pode esquecer, a comunicação foi um dos setores da vida humana mais violentamente modificados pela revolução tecnológica. Rui Barbosa, Ruínas de um governo, p. 118. João Féder, Crimes da comunicação social, p. 24. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 13 D ireito Afinal, é inegável que “nos últimos 100 anos a humanidade aperfeiçoou técnicas muito eficientes de expressão. O pregador, o panfletário, o orador e os mestres exercem sempre muita influência; mas, em nossos dias, a página impressa do jornal, a palavra falada do comentarista de rádio, o filme cinematográfico e a tela da TV tornaram-se instrumentos de poder quase infinito. Não é difícil compreender a tentação dos governos ou grupos dentro dos Estados de distorcer ou explorar tais instrumentos para fins particulares”.5 Nesse sentido, conclui Harold Lasky, em seu livro A liberdade: “A história ensina-nos que o caminho para a tirania passa sempre pela estrada da supressão da liberdade de pensamento e de expressão”.6 1.2 Liberdade de Comunicação “Não há liberdade individual sem liberdade coletiva, pois não há liberdade concreta histórica sem comunicação.” 7 A comunicação que se processa através dos veículos de comunicação social é a mais legítima forma de expressão do pensamento, já que tais veículos – a imprensa, o rádio e, mais tarde, a TV – representam a liberdade coletiva de um povo, na medida em que são portadores de idéias e mensagens múltiplas e divergentes, que traduzem os sentimentos desse povo. 5 6 7 14 A r t i g o Antes do surgimento da imprensa, o homem viveu períodos de rigorosa regulamentação repressiva da manifestação do pensamento, fosse ela escrita ou não. Seu aparecimento fez com que, já no século XVI, os poderes civis e religiosos se unissem para conter a propagação de idéias, daí surgindo a luta, até hoje não terminada, pela liberdade de comunicação. A Inglaterra foi berço dessa luta, tendo, em 1641, o Parlamento imposto a Carlos I que abolisse a chamada “Câmara Estrelada”, que exercia o controle sobre todas as publicações. Tal medida favoreceu o aparecimento de diversos jornais, embora ainda nenhum diário. Dois anos mais tarde, porém, a censura foi reativada, atendendo a reivindicação da Companhia dos Livreiros, até que em 1695 foi definitivamente abolida na Inglaterra. Tais fatos antecederam o primeiro ato de reconhecimento legal da livre manifestação do pensamento, inserido no artigo 12 da Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, que previa: “A liberdade de imprensa é um dos escudos mais poderosos da liberdade e que somente os governos despóticos podem entravar”. A Declaração data de 1776 e a Inglaterra já tinha, desde 1712, seu primeiro jornal diário, o Daily Current, circulando livremente. Em 1789 adveio a Declaração francesa, que dispôs, em seu artigo 11, que: “a liberdade de comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem; portanto, todo homem pode falar, escrever, imprimir livremente, devendo responder pelo abuso a essa liberdade nos casos determinados pela lei”. Derrick Sington, Liberdade de comunicação, p. 9. João Féder, op. cit., p. 25. Décio Pignatari, Informação, linguagem, comunicação, p. 105. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o No mesmo ano, surge a Constituição dos Estados Unidos, preceituando, na sua Primeira Emenda: “O Congresso não fará qualquer lei que restrinja a liberdade de palavra ou de imprensa”. Tais acontecimentos, marcantes para o reconhecimento da liberdade de comunicação, não levaram ao desaparecimento dos obstáculos. Na própria França, Napoleão, quando assumiu o comando da nação, declarou: “Se soltar o freio da imprensa não ficarei três meses no poder”. Ficou anos no poder, durante os quais a imprensa não foi mais do que mera propaganda ditada pelo Imperador. Foi a Revolução de 1848 que devolveu a liberdade à imprensa francesa, mesmo assim, não impedindo opressões futuras. Tais opressões, é claro, não se limitaram à França, mas atingiram a atividade da imprensa em muitos outros países, onde os governos procuravam se justificar invocando um suposto interesse social maior que o da livre manifestação do pensamento. Assim se deu com Stalin, Hitler, Mussolini, Salazar, Franco e com Getúlio Vargas, entre outros. Senão, vejamos. O artigo 125 da Constituição Russa de 1936 colocou em primeiro plano, ou seja, acima da liberdade, “os interesses dos trabalhadores” e o “fortalecimento do regime socialista”. A Constituição de 1977 passou a prescrever, no artigo 50: “de acordo com os interesses do povo e a fim de fortalecer e desenvolver o regime socialista, são garantidas aos cidadãos da URSS as liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de realização de comícios, desfiles e manifestações de rua. O exercício das liberdades políticas é garantido pela concessão aos trabalhadores e às suas organizações de edifícios públicos, ruas e j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 praças, pela ampla difusão da informação e pela possibilidade de utilização da imprensa, rádio e TV”. Em 1978, por sua vez, a Constituição da China dispunha, em seu artigo 45, que: “Todos os cidadãos têm liberdade de expressão, de correspondência, de imprensa, de reunião, de associação, de desfile, de manifestação e de greve. Têm também direito a recorrer à grande competição de idéias, à livre expressão do pensamento, aos grandes debates e a escrever ‘dazibao’ (jornais de parede)”. Na doutrina fascista, Mussolini dizia, em 1928, que “o jornalismo italiano é livre porque serve somente uma causa, um regime”. E continuava: “Num regime totalitário, que surge de uma revolução triunfante, a imprensa é um elemento desse regime e uma força a serviço desse regime”. No nazismo, o direito individual é considerado apenas um elemento da comunidade, submetido à ordem estabelecida pelo Führer de acordo com a concepção de bem comum que ele próprio, discricionariamente, determina. Dietrich, Presidente da Federação dos Jornalistas da Alemanha, dirigindo-se ao povo italiano em uma saudação a Hitler durante uma visita a Veneza, afirmou: “O nazismo se orgulha de haver libertado o povo alemão da liberdade de imprensa”. A Carta da Espanha de 1945 dizia que todo cidadão tinha direito a exprimir livremente sua idéias... desde que não atentassem contra os princípios fundamentais do Estado. E a Cons15 D ireito tituição portuguesa de 1933 proclamava a mesma liberdade, mas previa “que uma lei repressiva podia impedir a perversão da opinião pública enquanto força social e salvaguardar a integridade moral do cidadão”. A Constituição brasileira de 1937 foi menos sutil ao dispor, incisivamente, no artigo 122, XV, que: “A lei pode prescrever, com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinema e da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação”. Fernando Morais assim se pronuncia sobre a situação da imprensa em Cuba, em uma indicação de que a lição de Napoleão foi proveitosa: “Quando perguntei a um influente jornalista cubano se lá existe liberdade de imprensa, ele deu uma gargalhada e respondeu: ‘Claro que não’. E completou, com naturalidade: ‘Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês. Só um idiota não é capaz de ver que a imprensa está sempre a serviço de quem detém o poder. E aqui em Cuba quem detém o poder é o proletariado. Estamos todos os jornalista cubanos, portanto, a serviço do proletariado’”.8 1.3 O Caminho da Liberdade Terminada a II Guerra Mundial, representantes de quase todas as nações assinaram, em dezembro de 1948, em Paris, durante a Assem- 8 9 16 A r t i g o bléia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que prevê, em seu artigo 19, com especial clareza: “Todo homem tem direito a liberdade de expressão. Este direito inclui o de não ser molestado por causa de suas opiniões, o de investigar e receber informações e pareceres e o de difundi-los sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de expressão”. Daí em diante fortaleceu-se, cada vez mais, a convicção geral de que a nenhuma forma de governo é legítimo subtrair de seu povo o direito de ser livremente informado. Por causa dessa convicção, a Comissão sobre Liberdade de Imprensa anunciou, em Chicago: “A liberdade da palavra e de imprensa está próxima do significado central de toda a liberdade. Onde os homens não podem comunicar livremente seus pensamentos uns aos outros, nenhuma outra liberdade está segura. Onde existe liberdade de expressão, está sempre presente o germe de uma sociedade livre e tem-se à mão um meio para todas as extensões da liberdade. A expressão livre, portanto, é única entre as liberdades como protetora e promotora das outras; a prova está em que, quando um regime se encaminha para a autocracia, a palavra e a imprensa figuram entre os primeiros objetos de restrição ou controle”.9 John Stuart Mill, em seu trabalho clássico sobre o valor da liberdade, apresenta uma feliz A ilha, p. 73. Charles Steinberg (Org.), Meios de comunicação de massa, p. 199. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o exposição sobre o respeito que deve merecer a opinião individual, por mais solitária que se apresente: “Se toda a humanidade, com exceção de uma só pessoa, tivesse certa opinião, apenas essa pessoa tivesse opinião contrária, a humanidade não teria mais razão em silenciá-la do que ela à humanidade”.10 E João Féder nos explica os motivos: “Primeiro porque, se silenciamos uma opinião, podemos estar silenciando a verdade. Segundo, mesmo uma opinião errada pode conter parte da verdade que nos permita alcançá-la em sua totalidade. Terceiro, mesmo se a verdade total for a opinião geral, essa opinião não poderá ser sustentada em bases racionais antes de ser testada e discutida. Quarto, quando uma opinião de domínio geral não é criticada de tempos em tempos, perde sua vitalidade e efeito. E é precisamente sobre as opiniões predominantes que a liberdade de comunicação exerce sua função. Para dizer que a regra imposta é a melhor, para 2 11 12 Com a evolução que experimentou ao longo de nosso século, a comunicação social estabeleceu, com o comportamento humano, vínculo de incrível intimidade. Tanto é assim que devemos admitir que “todos nós dependemos dos produtos da comunicação de massa para a grande maioria das informações e diversão que recebemos em nossa vida. É particularmente evidente que o que sabemos sobre números e assuntos de interesse público depende enormemente do que nos dizem os veículos de comunicação. Somos sempre influenciados pelo jornalismo e incapazes de evitar esse fenômeno. Pouco podemos ver nós mesmos. Os dias são muito curtos e o mundo é enorme e muito complexo para podermos cientificar-nos de tudo o que se passa aplaudir a sabedoria do rei e a bondade da rai- nos meandros do governo. O que pensamos saber, na realidade, não sabemos, no sentido de nha, a liberdade seria dispensável”.11 que saber representa experiência e observação”.12 O PAPEL DA MÍDIA NO SÉCULO XX Ninguém pode duvidar de que a criação da palavra alterou o destino dos homens. A palavra impressa deu função visual à pontuação, com que se preocuparam os compiladores de Shakespeare, no século XIX. A impressão criou 10 dificuldades, pois tornou mais rígidas as regras da linguagem, ao mesmo tempo em que trouxe vantagens assombrosas, pois a memorizava e difundia, coisas até então impossíveis, já que não existiam o rádio e a TV. Como dizia Edmund Carpenter, a palavra passou a pertencer ao mundo objetivo, passou a ser vista. Cada vez mais concordamos que, nos dias presentes, aquilo que não penetrou o sistema de notícias nem foi por ele divulgado é como se realmente não tivesse acontecido. Na moderna “aldeia global”, de fato, só tem valor aquilo que nós conhecemos, e nós, a cada dia, limitamo-nos Sobre a liberdade, p. 16. Op. cit., p. 31. William Rivers e Wilbur Schramm, Responsabilidade na comunicação de massa, p. 27. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 17 D ireito a conhecer apenas aquilo que a comunicação social informa. O que mais preocupa o mundo de hoje são os efeitos causados pela comunicação de massa, pela comunicação que alcança não a um ou a uma centena, mas praticamente a todos e sobre eles exerce sua influência. Afinal, a imprensa a partir da metade do século XV, o rádio a partir de 1920 e a TV a partir de 1928 tiveram sempre marcante presença junto aos mais importantes acontecimentos que a História registra. É impossível negar o mérito dos gazeteiros de antigamente (a palavra jornalista foi empregada pela primeira vez apenas em 1704, no Journal de Trévoux, na França); contudo, também não se pode comparar o alcance que tinham suas idéias com o que podem ter no presente. Hoje, não apenas os jornais ultrapassaram as fronteiras nacionais, como ganharam, nessa expansão, novos companheiros, com o revolucionário apogeu alcançado pelo rádio e pela TV. E é por termos alcançado essa posição que Richard Fagen, ao final de seu livro Política e comunicação, lança a seguinte questão: “Basicamente, a questão crucial é: quem controlará os novos instrumentos de comunicação e para que fins eles serão usados?” Nos sistemas denominados “liberal” e de “responsabilidade social”, nos quais a livre manifestação do pensamento, em maior ou menor escala, por curtos ou longos períodos de tempo, tem conseguido sobreviver, em que pese não haver terminado a batalha pela conquista da liberdade, já se verifica, paralelamente, uma série de preocupações, que só se pode encontrar nos 13 18 A r t i g o países em que as liberdades são concretamente amparadas. Essas mesmas preocupações, via de regra, têm servido para justificar o cerceamento da livre manifestação do pensamento. Dentre as várias questões, surge a seguinte: a publicação de notícias sobre a vida particular fere o direito de privacidade do indivíduo? Ou seja, a livre manifestação do pensamento e a ordem legal são inconciliáveis? É o que pretendemos verificar. 2.1 Liberdade de Imprensa e a Lei Há como se regulamentar a liberdade de imprensa sem feri-la? Tal indagação tem merecido análise aprofundada, particularmente nos Estados Unidos, onde os grandes choques entre a liberdade de informação e os direitos dos cidadãos esbarram sempre na aplicação da Primeira Emenda Constitucional, que, como já mencionado, sustenta claramente: “O Congresso não promulgará nenhuma lei que reduza a liberdade de expressão e de imprensa”. O raciocínio que se segue ao enunciado é o seguinte: se o Congresso não pode aprovar lei que restrinja a liberdade de imprensa e se para ampliá-la a lei é desnecessária, não há como se falar em lei. O fundamento de tal raciocínio estaria na incompatibilidade entre lei e liberdade. Não parece, porém, ser a melhor conclusão, pois mesmo a liberdade deve ser juridicamente regrada, já que não é o único direito do cidadão, sob pena de não se obter uma disciplina social. “Não há dúvida que todas as liberdades estão sujeitas à lei, sub lege libertas; porque todos são suscetíveis de equívocos, desvios e excessos, mercê dos quais podem se converter em privilégio de uns para opressão de outros.”13 A. Brunialti, La libertá nello Stato Moderno, p. 176. Apud João Féder, Crimes da comunicação social. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Rui Barbosa, que era um apaixonado da imprensa, esperava vê-la consolidada como forma de expressão do pensamento, livre das retaliações pessoais, das quais não foi apenas testemunha, mas também vítima. A idéia era a de que, a partir do momento em que cada um passasse a assinar o que escrevesse, responsabilizando-se pelo seu escrito, desapareceria o modo afoito e apaixonado de escrever, típico da fase dos panfletos ou das publicações anônimas. Por essa razão, Rui Barbosa concordava não haver qualquer demérito em se submeter a imprensa a uma lei. E dizia: “A lei e a nossa consciência são os dois únicos poderes humanos aos quais a nossa dignidade profissional se inclina”. O espírito de que a lei sufocaria a existência da liberdade tem sido invocado apenas quando a lei exorbita em sua função. Quando justa, a lei é sempre bem aceita, ou pelo reconhecimento de sua necessidade, ou porque estamos totalmente condicionados a viver cercados de regras por todos os lados. “Onde existe o social, aí existe o jurídico. Sendo a liberdade um conceito social, é ela regulada pelo Direito, que a abrange completamente e a condiciona em certa bitola. Apanhando-a in natura, como um fato, como liberdade natural, transforma-a em liberdade jurídica. A liberdade de imprensa é uma forma de liberdade de pensamento que consiste no direito de externar e divulgar idéias, independentemente de censura prévia. A interferência do Estado na li- 14 15 berdade de imprensa não encontra justificativa senão quando ela ultrapasse os limites de um legítimo exercício e lese direitos alheios, sendo, porém, de notar-se que o Estado não pode jamais arrogar-se a decisão do que é falso e verdadeiro, porque, como meio que é, sua missão deve restringir-se apenas à de garante dos direitos de cada cidadão.”14 Não podemos esquecer que quase todos os sistemas de comunicação de massa se sujeitam a certas formas de controle básico, como modo de proteger os indivíduos contra difamações, proteger autores e editores, preservar o Estado de ações ameaçadoras e subversivas. E os próprios profissionais da imprensa concordam com tais restrições, por ser necessário garantir que não se difamem inocentes, não se sacrifique a propriedade literária, não se desobedeça à moralidade comum. “E ainda pode ser que concordássemos com essas restrições porque nos tenhamos acostumado a elas”.15 Podemos mesmo dizer que o objetivo primordial da lei é estabelecer o equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade. A responsabilidade dos profissionais da comunicação social só pode ser efetiva se definida em lei. Negar essa necessidade corresponde a admitir que tais indivíduos sejam perfeitos, infalíveis, dom que não só esses profissionais não possuem, como a nenhum homem foi dado. “A liberdade de imprensa tem três etapas a destacar: a primeira, a do privilégio, aquela em que só o governo podia possuir a tipografia e só ele podia imprimir; a segunda fase, a da censura prévia, quando o governo censurava Aniz José Leão, Limites da liberdade de imprensa, p. 19. William Rivers e Wilbur Schramm, op. cit., p. 80. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 19 D ireito os escritos antes da sua publicação. E, atualmente, a terceira fase, atingida como manifestação mais legítima da aspiração democrática dos povos, a da censura a posteriori, isto é, da responsabilidade depois da publicação do escrito, apurada não pela Polícia, mas pelo Judiciário. Essa terceira fase significa a adoção do regime da responsabilidade que todos os verdadeiros jornalistas desejam, pois que não querem injuriar, caluniar ou difamar. Não desejam os jornalistas, conscientes de sua missão, o abuso, o excesso, mas a responsabilidade pelo que escrevem.”16 O jornalista, como qualquer outro ser humano, pode, de boa-fé, cometer erros que provoquem prejuízos materiais ou morais a alguém. Se de má-fé utiliza os meios de comunicação social, transforma-os em um perigo à sociedade. Todas as atividades devem ser exercidas tendo como suporte normas jurídicas impostas pelo superior interesse coletivo, e os veículos de comunicação social não podem estar à margem dessa realidade, por isso também devem se submeter ao imperativo da lei, sob pena de se violentar o princípio da livre manifestação do pensamento que pretendem representar. A lei há que ser justa, dando tratamento justo às partes envolvidas em um confronto de opinião. Como bem arrematou Marx, em série de artigos publicada no Rheinische Zeitung: “Por que somente a liberdade de imprensa deveria ser perfeita entre todas as imperfeições das instituições humanas? Por que um sistema 16 17 20 A r t i g o de Estado imperfeito exigiria uma imprensa perfeita?”.17 2.2 Liberdade de Informação nas Constituições Diz-se que, quando morre a liberdade de imprensa, nenhuma outra sobrevive. Essa verdade, porém, não dispensa a manutenção da hierarquia das liberdades, porque a violência contra qualquer uma delas compromete seu conjunto e desfigura a sociedade democrática. A liberdade de imprensa sempre se refaz após longos ou curtos períodos de ditaduras, como observamos no Chile e na África do Sul atualmente. No caso da África do Sul, porém, ainda que a liberdade de imprensa sobrevivesse, o ódio racial, que elimina uma das liberdades, seria bastante e suficiente para quebrar a harmonia que uma comunidade livre exige. Esses dois países, como ocorre em vários outros, possuem textos constitucionais que amparam a liberdade de imprensa, mas a prática nega essa liberdade. Isso mostra que não é a lei, em verdade, que assegura o exercício da liberdade de informar, e, menos ainda, o fato de estarem inscritos nas Constituições os princípios gerais dessa liberdade. A questão, mais profunda, faz nascer entre os profissionais da comunicação a seguinte reflexão: responsabilidade sem lei específica para os meios de comunicação ou uma legislação democrática atualizada? Independentemente da existência ou não de lei específica para os meios de comunicação, todas as Constituições fixam os limites das liberdades públicas e individuais, e, muito especialmente, a de informação. Freitas Nobre, Lei de Imprensa, p. 16. João Féder, op. cit., p. 54. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o O melhor termo parece ser liberdade de informação e não liberdade de imprensa, porque o surgimento de novos veículos de comunicação ampliou o campo da publicidade, através do rádio, da TV, das agências noticiosas etc. No exercício de tal liberdade, ninguém exclui a interferência do Estado por meio do Poder Judiciário, com o objetivo de defesa do interesse coletivo, sem ferir os direitos inalienáveis do cidadão. Afinal, “o verdadeiro sentido de função social da imprensa envolve a defesa da vida privada dos indivíduos, ou seja, seu direito à privacidade; o direito das pessoas acusadas em quaisquer meios de informação de responderem a tais acusações, bem como garantir a defesa da sociedade, segundo os princípios gerais de moral, mas, ao mesmo tempo, assegurando ao jornalista o direito de livre acesso às fontes de informação, e a escala completa de uma verdadeira liberdade, limitada apenas contra os abusos de seu exercício”.18 As Constituições são em geral muito claras a respeito da liberdade de informação, mesmo quando contam com uma legislação específica sobre o tema. A Constituição francesa de outubro de 1958, com as modificações que sofreu em 1960, 1962, 1963, 1974 e 1976, é um desses exemplos. Seu preâmbulo consagra: “O povo francês proclama solenemente sua vinculação aos direitos do homem e aos princípios da soberania nacional, tais como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e 18 complementada pelo preâmbulo da Constituição de 1946”. Essa vinculação define o compromisso com a liberdade de pensamento e de imprensa. No entanto, a França possui uma legislação de imprensa que data de 1881 e tem inspirado numerosos outros países. As Constituições da França, Inglaterra e Estados Unidos têm sido a fonte de quase todas as outras. A norte-americana, de setembro de 1787, com 26 Emendas em mais de 200 anos, dispensa legislação ordinária para os delitos de imprensa. 2.3 A Importância da Lei Brasileira Apesar das falhas e distorções de nossa Lei de Imprensa ela foi, durante os vinte anos de ditadura, o caminho mais suave para a defesa dos profissionais da comunicação. Assim se pronunciou a respeito a jornalista Célia Romano, em reportagem para o jornal O Estado de S. Paulo, de 08.02.1987: “a mesma lei utilizada pelos militares para censurar, serviu também, nestes vinte anos, para que os advogados de defesa garantissem o direito da informação”. A atual Lei de Imprensa, que surgiu juntamente com a Lei de Segurança Nacional, em fevereiro de 1967, foi discutida e votada no Congresso Nacional, mas sua promulgação não lhe dá característica democrática, tamanhas as pressões do regime ditatorial e do Executivo. Freitas Nobre, Imprensa e liberdade, p. 38. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 21 D ireito A liberdade de imprensa tem características muito especiais, sui generis, porque, sendo uma liberdade especial, é usufruída apenas pelos que a possuem ou controlam. Quando a nossa legislação de imprensa – a Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967 – formalmente assegurou a livre manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, independentemente de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometesse, sabia-se que seria difícil a manutenção desses princípios no sistema ditatorial de então. Embora resultante de uma proposta de governo militar, porém, a Lei respondeu a uma tendência que já se verificava em vários países, que, mesmo não possuidores de uma lei de imprensa – como a Inglaterra, a Argentina e os Estados Unidos –, já deparavam com a dificuldade do enquadramento desse tipo de infração em sua legislação inadequada e desajustada. A própria universalização do Direito da Informação é conseqüência dos princípios adotados pelas nações, por meio da Declaração da ONU de 1948, que prevê essa liberdade “sem limitações de fronteiras” e “por qualquer meio de expressão”, conforme seu artigo 19. O Sindicato dos Jornalistas da França, por ocasião de um Seminário realizado em fevereiro de 1973, emitiu a seguinte Carta de Princípios: “A liberdade de imprensa isoladamente não garante, em uma sociedade moderna, a informação aos cidadãos. Hoje se afirma uma necessidade nova, uma exigência contemporânea: o direito à informação. A multiplicidade das fontes de informação, a potência e a diversi- 19 22 A r t i g o dade dos meios de comunicação, a necessidade de opções individuais e coletivas implicam para cada um a possibilidade de informar-se completamente dos fatos significativos da vida política, social, econômica e cultural e o direito de informação para todos”. Verifica-se, hoje, que mesmo os países que se dizem desprovidos de uma lei de imprensa possuem decretos, portarias, legislação fragmentada que procuram consolidar as disposições legais. O ideal é que se preserve a liberdade de imprensa, da impressão à circulação, da redação à emissão da notícia, da filmagem à transmissão, do desenho à exibição do cartaz, consolidando toda a legislação que trata dessas atividades em uma lei de informação ou de imprensa que sirva à verdade e à credibilidade da notícia. 2.4 Perspectivas O poder dos veículos de informação, segundo alguns estudiosos, está formando uma nova sociedade. “A transformação que ora ocorre, especialmente nos Estados Unidos, já está criando uma sociedade cada dia mais diversa da predecessora industrial. A sociedade pós-industrial está criando uma sociedade tecnetrônica: sociedade moldada, social, cultural, psicológica e economicamente pelo impacto da tecnologia eletrônica, em especial na área dos computadores e das comunicações. O processo industrial já não é mais a principal determinante da mudança social, alternando costumes, a estrutura social e os valores da sociedade”.19 Zbigniew Brzezinski, Entre duas eras, p. 24. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Se nos preocupa a idéia de que os meios de comunicação vão se tornando um novo fascínio da sociedade, deve nos preocupar mais ainda a constatação de que toda essa capacidade geradora de normas, hábitos, atitudes e, por que não, da maneira de agir de toda a humanidade se concentra nas mãos de uns poucos. O jornalista tem, nos dias atuais, maior poder de influenciar a realidade, o que, possivelmente, está criando, na opinião pública, a imagem do jornalista como um novo senhor, todo poderoso, que personifica o veículo de informação. E se, de sua parte, o Estado teme uma demasiada liberdade, de outra, os profissionais da comunicação empenham-se a fundo pela conquista de uma liberdade concreta, livre de ameaças, procurando consolidá-la independentemente do consentimento do poder. Essa luta, já secular e de desfecho aparentemente distante, é, no fundo, não uma luta classista ou de alguns segmentos da sociedade. Quando a imprensa reclama irrestrita liberdade de informar está defendendo, antes de tudo, um direito que pertence ao povo, o de ser livremente informado para, tudo sabendo, melhor decidir. A moral, por sua vez, deixa de ser o ponto prioritário dos estudiosos da comunicação social. Ao seu lado, já se examina, com crescente interesse, o choque entre o direito de informar e o direito de privacidade e a constante preocupação com a difusão da violência através dos meios de comunicação. São mais atuais do que nunca as palavras de Aldous Huxley em Regresso ao admirável mundo novo, de 1959: 20 21 “A comunicação com as massas, em uma palavra não é boa nem má; é simplesmente um poder e, como qualquer outro poder, pode ser bem ou mal-empregado. Utilizados de uma maneira, a imprensa, o rádio e o cinema são imprescindíveis para a sobrevivência da democracia. Utilizados de modo diverso, encontram-se entre as armas mais poderosas do arsenal dos ditadores”.20 O que dizer então da informática, que possibilita a divulgação instantânea da sabedoria reunida no mundo? Os efeitos da revolução tecnológica que estamos vivendo são muito mais profundos do que qualquer mudança social que tenhamos experimentado no passado. Por isso, muitos afirmarem que a automação, em si, representa a maior das mudanças da história da humanidade. Em artigo publicado em 1978, Karl Hugo Pruys já questionava: “No ano 2000 os veículos de comunicação serão para nós paraíso ou inferno? O aperfeiçoamento dessa máquina de sonhos que é a TV unirá os povos do mundo num diálogo internacional ou levará ao total isolamento o ser humano?”21 O paraíso ou o inferno que os veículos reservam para o amanhã dependerão do grau de liberdade de que disponham na difusão das idéias, reacendendo o velho combate com os detentores do poder. Para alguns estudiosos, estes sempre exigirão que os meios de comunicação social sejam submetidos a um controle, a uma vigilância exercida em nome de certos prin- Regresso ao admirável mundo novo, p. 63. João Féder, op. cit., p. 179. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 23 D ireito cípios, de defesa de uma ordem moral, da segurança do Estado, do direito de privacidade e da honra do indivíduo. Tal controle, defendem, nega ao direito de informação a sua condição de direito fundamental do homem, direito natural de que é titular toda pessoa humana, em qualquer tempo ou país. Nessa medida, a luta pela livre manifestação do pensamento, acreditam, será tão árdua no futuro como foi no passado. A não ser que se confirme a previsão mais otimista de Alvin Toffler, de que a atual revolução superindustrial alterará tudo o que nos afeta e, ao contrário de criar um modelo repressivo, a tecnologia exigirá do homem que saiba sobreviver ao exercício da plena liberdade, “num contexto de avanço científico espetacular, elegante e, todavia, aterrorizante”.22 3 LIMITAÇÕES LEGAIS. RESTRIÇÕES. CONTROLE JURISDICIONAL DA LEGALIDADE 3.1 Função Social e Censura na História Como poderoso instrumento de formação da opinião pública, a imprensa tem o direito de informar e o de exercer com liberdade sua atividade. Por outro lado, tem o dever de fazê-lo com respeito à verdade e aos direitos dos cidadão, desempenhando, na realidade, uma importante função social. Por esse motivo, a Constituição Federal, no capítulo dos direitos e garantias individuais, no inciso IX de seu artigo 5o, dispõe que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. E é exatamente para preservar essa liberdade 22 24 A r t i g o de comunicação que também dispõe, no artigo 220, § 2o, que não se admitirá censura de natureza política, ideológica ou artística. A censura, pois, por ser incompatível com a normalidade democrática, e para que a imprensa possa exercer com liberdade e segurança sua função social, é repudiada pela Constituição Federal. E a censura que se veda é aquela exercida previamente pelos órgãos administrativos ou mesmo pela lei, regulamentos ou atos normativos, sob pretexto político, ideológico ou artístico, como dispõe o último preceito constitucional citado. A censura inaceitável é aquela que surgiu historicamente antes mesmo da edição do primeiro jornal ou primeiro livro. Na Roma antiga, os circuli (manuscritos de oposição política ao governo) eram clandestinos, já que apenas os órgãos oficiais tinham autorização para serem distribuídos ao povo. A imprensa foi duramente perseguida pela inquisição católica. No século XVI, leis chegaram a proibir a edição de qualquer livro sem a licença real. Em seu “guia do perfeito censor”, o Papa Alexandre VI chegou a afirmar, evidenciando o interesse político de controle à liberdade de pensamento e opinião, que “a censura é a arte de descobrir nas obras literárias as intenções malévolas”, que “o ideal é descobrir essas intenções, mesmo que o escritor não as tenha”, que “o censor deve estar persuadido de que cada palavra duma obra contém uma alusão pérfida”, que “ao encontrar tal alusão, o censor deve cortar a frase” e que, “se a alusão pérfida não for descoberta, o censor deve cortar a frase do mesmo modo, porque as alusões dissimuladas são as mais perigosas”. Idem, p. 180. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o A censura política e ideológica sempre foi utilizada pelos detentores do poder, ao longo da história, como instrumento de controle das liberdades dos povos. E sempre que prevaleceu, a liberdade e a democracia foram suprimidas. Cabe lembrar o que Marx afirmou sobre a liberdade de imprensa: “A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. É a franca confissão do povo a si mesmo, e sabemos que o poder da confissão é o de redimir. A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria”.23 Não é à toa que a carta de princípios da Inter American Association dispõe que “sem liberdade de imprensa não há democracia”. Porém, igualmente não há democracia sem respeito à legalidade, principalmente no que se refere aos princípios constitucionais. 3.2 Ordem Constitucional e Controle da Legalidade No Brasil, a Constituição Federal assegura à imprensa liberdade de informação jornalística no artigo 220, § 1o, garantindo-lhe a necessária liberdade para o desempenho de sua função social. Contudo, a liberdade de informação jornalística não é um direito absoluto, irrestrito 23 24 ou sem limites. É um direito que merece garantia, mas que deve ser limitado para que sejam preservados outros bens, valores e direitos tão relevantes e necessários à democracia como a própria liberdade de imprensa. Tanto é assim que a própria Constituição Federal prevê como direitos e garantias invioláveis a liberdade, a vida, a segurança, a propriedade, a honra. A liberdade de imprensa não é um direito superior a todos os demais e nem pode se impor de forma ilimitada, subjugando outros direitos que também sustentam a democracia. Portanto, cabe à Constituição Federal, que garante a liberdade, fixar seus limites em face da existência e garantia dos demais direitos tutelados pela ordem jurídica, buscando-se o equilíbrio, como quer Serrano Neves: “nem imprensa intocável nem restrição odiosa”.24 E como a Carta Magna repudia a censura, qualquer restrição à liberdade de informação jornalística deve ser extraída do próprio texto constitucional. Aí entra o Poder Judiciário, a quem a Constituição dá o poder de controlar os abusos da liberdade de informação jornalística, bem como os abusos da atuação de qualquer outra instituição ou Poder, pelo exercício da jurisdição. Assim, o controle da legalidade que pode ser exercido sobre a liberdade de informação jornalística, no Brasil, compete, democraticamente, ao Poder Judiciário. 3.3 Controle Jurisdicional da Legalidade Em um primeiro momento, cabe à própria imprensa fazer o seu controle, a partir de uma Karl Marx, Liberdade de imprensa, p. 42. Direito de imprensa, p. 24. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 25 D ireito postura ética e responsável, inspirada na legalidade e evitando os abusos. Em 1993, demonstrando consciência da função social da imprensa, o jornal Folha de S. Paulo, em editorial denominado Imprensa questionada, assim se expressou: “Na atual conjuntura, qualquer denúncia, mesmo que desacompanhada de provas, assume ares de verdade inquestionável. A imprensa, por isso mesmo, é obrigada a redobrar os cuidados na averiguação dos fatos que, de resto, jamais podem ser ignorados pelo bom jornalismo. O questionamento que começa a surgir agora sobre o comportamento dos meios de comunicação é saudável. Seria imperdoável que o jornalismo, a partir da discutível qualificação de ‘quarto poder’, se sentisse acima do bem e do mal. Quando questionada, a imprensa se obriga, mais ainda do que em momentos menos conturbados, a cercar o seu noticiário de todas as cautelas, para não atingir a honra de inocentes. Se esse comportamento for rigorosamente seguido por todos os meios de comunicação, todos eles ganharão e, acima de tudo, se beneficiará o leitor”.25 A manutenção da ordem democrática deve ser perseguida pela imprensa como forma de manter o seu livre desempenho, com a consciência de que a liberdade de informação jornalística não pode ultrapassar os limites da legalidade, ameaçando e lesando direitos. Cabe a ela, pois, coibir os abusos que ameacem a legalidade e os princípios democráticos, evitando atitudes lesivas ao patrimônio moral, à imagem ou a quaisquer outros direitos do cidadão. 25 26 A r t i g o A função primordial do Poder Judiciário é a de compor conflitos de interesses em cada caso concreto, pela aplicação da lei. Assim, quando surge conflito de interesses envolvendo, de um lado, a imprensa e sua liberdade de informação jornalística e, de outro, o cidadão e seus direitos civis e constitucionais, cabe ao Poder Judiciário compor o conflito, impondo, se necessário, limites à atuação da imprensa em prol dos direitos do cidadão eventualmente lesados ou ameaçados de lesão. E nenhum outro Poder do Estado pode impor limites à atuação da liberdade de atuação dos veículos de comunicação, de acordo com o artigo 5o, XXXV, da CF, quando dispõe que cabe ao Poder Judiciário o monopólio do controle jurisdicional. Desse modo, qualquer restrição ou limitação imposta aos meios de comunicação pelos Poderes Legislativo ou Executivo, contrariando as normas constitucionais, constitui inaceitável censura. Aliás, dispõe o artigo 220 da CF que a lei não poderá de forma alguma embaraçar a liberdade de informação jornalística. Sendo assim, o Executivo, o Legislativo e o próprio Judiciário não podem editar provimentos, decretos, portarias, quaisquer atos normativos para impor restrição à atividade da imprensa. Apenas o Poder Judiciário pode e deve coibir abusos praticados pela imprensa, quando provocado por interessado, no curso de um processo legal, observando os limites impostos pela lei e pelo próprio texto constitucional. Não se trata, em hipótese alguma, portanto, do exercício de um poder arbitrário, de atuação de censura, mas, sim, da atuação de um Poder chamado a compor um conflito concreto de interesses, dentro da ordem constitucional e demo- Jornal Folha de São Paulo, São Paulo 11 de nov. 1993. Caderno 2, p. 2. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o crática, que assegura à imprensa todas as garantias de defesa, do duplo grau de jurisdição e de uma decisão embasada em princípios constitucionais. pelo Poder Judiciário a faculdade de recorrer a juízo para se defender, legal e processualmente, da intervenção jurisdicional. São vários os princípios que norteiam o controle jurisdicional da atividade da imprensa: • Princípio do duplo grau de jurisdição: sempre que um Juiz ou Tribunal toma uma decisão, há possibilidade do reexame dela pelos órgãos jurisdicionais de outra instância de julgamento. Assim, sempre que qualquer órgão judicial impõe restrições ou limites à imprensa, pode o veículo atingido requerer o reexame da decisão pelo órgão de instância superior. • Princípio da proteção judiciária: prevê o artigo 5o, XXXV, da CF que não se pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. Por meio dele, portanto, cabe ao Poder Judiciário intervir até mesmo na imprensa para evitar a prática de qualquer ato que viole ou lese direitos; basta, pois, uma ameaça a direito para que o Poder Judiciário possa ser provocado e, acionado, possa intervir, constitucionalmente, para afastar tal ameaça, inclusive proibindo publicações jornalísticas, edições de livros e quaisquer outras formas de comunicação escrita ou falada, sem que tal atividade se revista de “censura”. • Princípio do direito de ação: consagrado no artigo 5o, XXXV, da CF, confere a todo cidadão o direito público e subjetivo de invocar a atividade jurisdicional por ocasião de qualquer lesão ou ameaça a direito. Assim, qualquer pessoa que tenha um direito sem lesado ou ameaçado pela atividade da imprensa poderá invocar a tutela jurisdicional do Poder Judiciário, que deverá prestar a tutela que dite os limites para o exercício da liberdade de informação jornalística no caso concreto. • Princípio do direito de defesa: assegurado no artigo 5o, LV, CF, é uma verdadeira garantia constitucional à liberdade de informação jornalística, na medida em que confere à empresa jornalística eventualmente atingida por restrição imposta j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 • Princípio do devido processo legal: previsto no artigo 5o, LIV, CF, garante aos veículos de comunicação que, para exercer o controle jurisdicional da legalidade, o Poder Judiciário deve agir sempre de acordo com as normas e princípios processuais vigentes, não cabendo a ele impor limites ou restrições de modo discricionário, arbitrário, ou espontaneamente. • Princípio da iniciativa da parte: consagrado no artigo 2o do CPC, garante que o Poder Judiciário, para intervir de qualquer forma na atividade da imprensa, não pode agir de ofício, devendo fazê-lo apenas quando provocado pelo interessado, a saber, alguém que alegue que um direito seu está sendo ameaçado ou lesado por determinada publicação ou edição jornalística. Como se vê, não há qualquer semelhança entre censura e controle jurisdicional da legalidade, já que a primeira é arbitrária e inconstitucional e a segunda apenas atinge a liberdade de informação jornalística dentro dos limites e forma estabelecidos na Constituição. A imprensa, portanto, é inatingível pela censura, mas não é imune ao controle jurisdicional, pois não 27 D ireito pode, impunemente e sem nenhum controle, ameaçar e lesar direitos, violando, com isso, a ordem constitucional e democrática. acordo com o sistema democrático e com os princípios do Estado de Direito.”26 Assim é que, se um veículo de comunicação está prestes a publicar matéria jornalística relacionada com determinada pessoa, que se sente atingida ou ameaçada em sua honra ou imagem – direitos garantidos pela Constituição Federal –, se presentes estão o fumus boni iuris, pela existência de elementos que comprovem a verossimilhança do alegado, e o periculum in mora, pela probabilidade de ocorrência de um dano de difícil reparação, o Poder Judiciário deve agir, ainda que de forma precária, concedendo a medida cautelar pleiteada, com a conseqüente suspensão da publicação até que, no processo de conhecimento, depois do pleno exame das alegações, seja possível decidir sobre sua procedência ou improcedência. O que não se pode é confundir o livre exercício do direito de crítica e de opinião, que é democrático e necessário, com a injúria, o desrespeito ao cidadão, a deliberada intenção de ofender, como se o direito de informação jornalística fosse absoluto e superior a todos os demais também constitucionalmente assegurados. Para isso, o controle jurisdicional da legalidade é medida extremamente salutar. É importante que a opinião pública saiba que o controle da legalidade, exercido exclusivamente pelo Poder Judiciário, é imprescindível para a manutenção da democracia, tanto quanto o é para a garantia da liberdade de informação jornalística. Como afirmava o poeta Bertolt Brecht, “a justiça é o pão do povo, às vezes bastante, às vezes pouca; às vezes de bom gosto, às vezes de gosto ruim; quando o pão é pouco, há fome, e quando o pão é ruim, há descontentamento”. “Para que o Poder Judiciário possa servir ao povo o pão diário da justiça, sem tardança, com gosto bom, com sabedoria, em abundância e saudável, há de ser constitucionalmente forte e independente, há de ser compreendido e respeitado, há de ser prestigiado e acatado em suas decisões jurisdicionais, prolatadas de 26 28 A r t i g o 4 JORNALISMO RESPONSÁVEL E ALGUMAS QUESTÕES ÉTICAS 4.1 A Primeira Emenda Norte-Americana e o Jornal Responsável A Primeira Emenda assegura a liberdade de expressão, ou de informação, sem indicar qualquer restrição ao seu pleno exercício, aparentemente protegendo tanto o discurso irresponsável quanto o responsável, o que leva a crer que não pode ser o único alicerce do jornalismo responsável, mesmo porque não é a lei que determina o que é certo ou errado, mas apenas proclama o que já é reconhecido como tal. É possível se ter uma imprensa ao mesmo tempo livre e responsável, desde que compreenda seu próprio papel e o desempenhe bem. A imprensa independente, que é garantia da democracia, não dispensa que se empreendam esforços sérios no sentido de definir suas responsabilidades. E as raízes da responsabilidade estão no fato de serem os jornalistas seres individuais e sociais cujas ações inevitavelmente afetam os demais. José Henrique Rodrigues Torres, A censura à imprensa e o controle jurisdicional da legalidade, RT 705, p. 32. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o “O próprio fato de que temos a capacidade ou o poder de influenciar ou sermos influenciados pelos outros, de modo profundo, para o bem ou para o mal, exige que nos comportemos de modo reciprocamente responsável, para que a própria sociedade subsista.”27 Existe um velho ditado, entre os comunicadores norte-americanos, que afirma que uma imprensa verdadeiramente livre é aquela que é livre para deixar de lado o seu dever de ser responsável. Para o conhecido jornalista Vermont Royster, “a responsabilidade deve estar na consciência de cada um de nós”,28 o que mostra que as questões de responsabilidade se reduzem a questões de consciência, que são irrelevantes para o ideal de uma imprensa livre, daí por que dizer que não há conexão necessária entre a liberdade e a responsabilidade da imprensa. Uma imprensa livre não se pode afastar do bem-estar da comunidade, como reconheceu a Associação Americana de Editores de Jornais no início desse século, ao promulgar os seus “Cânones do Jornalismo”: “a liberdade de imprensa quer dizer liberdade de todas as obrigações, exceto a de se manter fiel ao interesse público”. A Primeira Emenda, portanto, é o compromisso do Estado para com a liberdade de expressão, cabendo a ele, Estado, criar incentivos para o jornalismo responsável, a partir da definição do que seja “interesse público”, resultando daí o fortalecimento do direito à informação. 27 28 Não se pode esquecer do consenso que existe em torno das instituições ou pessoas cujo poder afeta a vida de outras, no sentido de que têm obrigações de utilizar esse poder de maneira a atender aos interesses dos que são por elas atingidos, daí a necessidade da responsabilidade na atividade jornalística. 4.2 O Direito de Saber Outra questão ética bastante discutida se refere à exigência dos jornalistas de acesso total à informação, sob a alegação de que o público tem o direito de saber. Os que são contrários a esse amplo acesso defendem que o “direito de saber”, muitas vezes, mascara o verdadeiro interesse dos jornalistas, que é o de vender informações para obter lucro e, além disso, que o público não precisa ter acesso a certas informações. Não se pode ignorar que os veículos de comunicação realmente “vendem” informações atrás de audiência e lucro comercial. Por outro lado, os que pensam em restringir a distribuição de informações podem estar defendendo seus próprios interesses, facilitando o processo decisório para os líderes, entre os quais costumam se incluir. O ideal é que, em quaisquer circunstâncias, o “direito de saber” do povo seja mais amplo do que limitado, encarado não como um privilégio, mas como uma necessidade para o exercício da democracia. “A distribuição da informação pela mídia é, em um sentido bastante real, uma realocação do poder. Caso seja feita de um modo amplo, ela reduz o poder de uma minoria ao colocar a informação nas mãos de todos aqueles que Louis W. Hodges, Definindo a responsabilidade da imprensa, in Deni Elliot (org.), Jornalismo versus privacidade, p. 19. Theodore L. Glasser, A responsabilidade da imprensa e os valores da primeira emenda, p. 86. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 29 D ireito estão interessados em transformar o monopólio do poder em algo difícil de manter. Os monopólios do poder são um anátema em uma sociedade participativa.”29 4.3 A Questão da Honestidade e do Uso de Métodos Ilícitos na Obtenção da Informação Edwin Newman é um jornalista da Rede NBC News e, em artigo intitulado A responsabilidade do jornalista, colocou a seguinte questão: “Qual o nosso grau de honestidade? Não muito baixo, eu acho. Mas é necessário compreender que a determinação do que seja uma notícia nem sempre envolve considerações de honestidade (...) Obviamente, não se deve permitir que sejamos usados ou manipulados, embora isso também possa às vezes acontecer. Porém, os problemas são mais complexos”.30 Não se pode esquecer que a notícia é um negócio dos mais competitivos. As empresas jornalísticas existem para gerar lucros, ou fazer parte de uma estrutura em que outros setores geram lucro, como é o caso das redes de televisão. Essa competição certamente provoca abusos, pode levar à divulgação apressada de informações que, mais tarde, acabam sendo desmentidas, resultando, invariavelmente, em sensacionalismo. O autor ilustra a situação com o seguinte exemplo: em 1979, um alarma nuclear em Three Mile Island levou às manchetes de um poderoso jornal americano a seguinte chamada: 29 30 31 32 30 A r t i g o “Nuvem nuclear se espalha”. No segundo dia, a manchete era “Vazamento escapa ao controle”. No terceiro, era: “Corrida contra o desastre nuclear”. E no quarto: “Situação melhora”, o que indica a prática de “um jornalismo barato, que explora o medo. Para a maioria das pessoas este tipo de coisa é fácil de reconhecer”.31 Outro tema que merece atenção em diversos códigos de ética jornalística é a obtenção de informações por meio de métodos considerados “ilícitos”, preocupação presente em cerca de 30% dos códigos. O julgamento do que seja um método ilícito de obtenção de informação comporta uma certa dose de subjetividade. Eventualmente, jornalistas têm se apresentado omitindo sua atividade profissional, para poderem investigar aspectos relevantes de determinado assunto. Nessa medida, obtêm gravações e fotografias clandestinas e omitem dados sobre sua própria identidade para a revelação de fatos que, de outra forma, talvez não chegassem ao conhecimento do público. “Há dúvidas sobre tal comportamento, mas também há perguntas. A realidade transparece fulgurante pela informação das fontes oficiais? O jornalismo deveria limitar-se às declarações das fontes? É necessário desconfiar das palavras das fontes? Seria pertinente ouvir várias e, de todas, desconfiar, ou fazer um mosaico de versões às quais seriam anexados documentos e imagens? (...) E, neste caso, quem forneceria os dados e documentos? Um funcionário de algum organismo que manteria sigilo, conforme prevê a maioria dos códigos?”32 John C. Merril, Três teorias sobre a responsabilidade da imprensa e as vantagens do individualismo pluralístico, p. 71. Edwin Newman, A responsabilidade do jornalista, in Robert Schmuhl (org.), As responsabilidades do jornalismo, p. 33. Idem, p. 34. Francisco José Karam, Jornalismo, ética e liberdade, p. 102. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o São muitas as questões que surgem nesse ponto. Pela sua dimensão pública, o jornalismo exige que, na informação, esteja presente a pluralidade de versões e a maior transparência possível da realidade, e que a informação vá além de poucas declarações ou documentos parciais. “Muitas vezes, a insistência do profissional, considerada por fontes como invasão, pode ser tida como indispensável no sentido de proteger a cidadania e garantir que o público diverso não seja logrado somente pelas declarações oficiais ou submetidas ao interesse particularizado de empresas, governo, organismos públicos e privados ou interesse pessoal no caso de assunto de menor abrangência, mas com relevância social.”33 De acordo com o enfoque, portanto, o jornalista pode ser considerado um invasor da privacidade alheia, um “chato insistente”, que interfere em assuntos particulares, ou um profissional extraordinário, merecedor de prêmios. Em muitos casos, é certo, se olharmos bem no centro da produção de seu trabalho, encontraremos o emprego de métodos pouco claros para a obtenção dessas informações, que vão, hipoteticamente, desde a gravação de conversas telefônicas de ministros e chefes de Estado, à fotografia de articulações clandestinas entre crime e governo, entre máfia e Igreja. “Isto, submetido à ética individual, acaba tornando-se um pêndulo que balançará não de acordo com o tempo, mas de acordo com quem tiver mais força para puxá-lo para seu lado.”34 33 34 35 O ideal é que haja políticas públicas para a informação, com acesso, discussão e controles sociais sobre ela, caminhos que contribuem eficazmente para a concretização da liberdade e da responsabilidade da atividade jornalística. “A produção de saber restrita a uma área ou a concentração crescente de poder devem ter seus limites ultrapassados pelo trabalho jornalístico de mostrar, em escala global e imediata, o movimento de todos estes setores em que se movem e desdobram cotidianamente a realidade, as pessoas, os fatos, as versões (...) e sua produção e resultado, com conseqüências nos próprios saber e poder.”35 4.4 Outras Questões Éticas: o Poder e a Privacidade, o Dever de Denúncia, a Violência e a Qualidade Em 1920, dizia Rui Barbosa, em Conferência pronunciada na Bahia: “O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram ou não queiram, os que se consagram à vida pública até à sua vida particular deram paredes de vidro.(...) Para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério”. Qualquer sociedade democrática exige harmonia entre conceitos bastante antagônicos e Idem, p. 103. Idem. Idem, p. 107. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 31 D ireito igualmente importantes: de um lado, a liberdade de imprensa e o direito à informação e, de outro, o direito à vida privada e o dever de respeitar a intimidade do ser humano. A dificuldade em se equilibrar os pratos nasce da relação unilateral que tradicionalmente se estabelece no tratamento desses dois direitos humanos fundamentais, quando, na verdade, o que reclamam é justamente a adoção de mecanismos de harmonização. Se qualquer ação humana tivesse de ser submetida à mais ampla publicidade, não se poderia falar em liberdade. De fato, um dos grandes desafios do nosso tempo é a preservação do âmbito ideal de privacidade. Nenhuma pessoa é verdadeiramente livre se não merecer a tutela da inviolabilidade de sua privacidade. Como trataremos adiante, até mesmo presumíveis criminosos – porque não passam de presumíveis enquanto não houver condenação definitiva – têm direito à privacidade, que deve protegê-los das investidas dos meios de comunicação em divulgar fatos de sua vida íntima e de seus familiares. E quando se fala em direito à privacidade, invariavelmente surge a questão das ações praticadas por pessoas públicas, que têm transcendência pública, como é o caso, por exemplo, dos governantes. “O leitor tem o direito de conhecer o tipo de filosofia ou ideologia defendida por um político, sua competência ou incompetência, sua honestidade ou desonestidade, sua visão do mundo, seu passado. Analogamente, os aspectos da vida privada que, de modo claro e direto, possam afetar o interesse público, não devem ser omitidos em nome do direito à 36 37 38 32 A r t i g o privacidade.(...) Se assim não fosse, tudo o que teríamos para ler na imprensa seriam amontoados de declarações emitidas pelas próprias fontes interessadas.”36 Não se deve invocar o direito à privacidade para protestar contra a divulgação de informações verdadeiras que registram atitudes incompatíveis com a dignidade da função pública, já que se espera decoro das pessoas no exercício do poder. O que divide o direito à informação do direito à privacidade é o bem comum, o interesse público. “O relacionamento entre governantes e a mídia não pode ficar condicionado aos esquemas de um show. As figuras públicas precisam superar a tentação do espetáculo. E os meios de comunicação social, independentemente do virtuosismo dos atores, não podem ser pautados pelo brilho da passarela política. Por isso, é cada vez mais importante debater e aprofundar os contornos éticos que envolvem o mundo da informação.”37 4.4.1 Dever de Denúncia “A imprensa tem relevante papel de denúncia, de contraponto. Essa função, no entanto, nada tem a ver com a curiosidade agressiva, com o afã de escândalo ou com atitudes de retaliação.”38 O dever de denúncia, que é inerente à atividade jornalística e extremamente salutar ao exercício da democracia, não se pode confundir com sensacionalismo, que transforma fatos em instrumentos de espetáculo. Carlos Alberto Di Franco, Jornalismo, ética e qualidade, p. 77. Idem, p. 78. Idem, p. 29. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o Alguns setores da mídia exploram a miséria humana, convertendo-a em bandeira de marketing. Era o que ocorria, certamente, no extinto (?) Aqui Agora, do SBT, que, em um dos inúmeros exemplos que poderíamos citar, ao mostrar imagens do suicídio de uma jovem, precedidas de inúmeras chamadas, afrontou as balizas do Código de Ética da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT). Não estamos livres, porém, desse lamentável tipo de jornalismo, ultimamente bastante exercitado por vários programas da TV brasileira, na acirrada disputa por pontos de audiência. A pretexto de mostrar “a vida como ela é”, arma-se um desfile de horrores, daquilo que a natureza humana é capaz de produzir de mais sórdido. E o espectador, verdadeiro refém dessa leviandade eletrônica, mergulha na mais absoluta alienação e perplexidade, acompanhando a disputa que travam as diversas emissoras de TV, que se superam, a cada novo dia, especializando-se na arte de explorar as tragédias humanas. “À imprensa de qualidade”, conclui Carlos Alberto Di Franco, “cabe o dever da denúncia. Ao jornalismo de espetáculo, dominado pela obsessão mercadológica, restará o julgamento da opinião pública”.39 4.4.2 Mídia e Violência No início da década de 1990, a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo realizou, em conjunto com a Revista Veja, uma ampla pesquisa sobre a televisão brasileira, que visava contabilizar todas as cenas e diálogos que, dentro da programação de uma semana das principais redes, se referissem a sexo e violência. 39 40 Naquela semana, concluiu-se, foram disparados 1.940 tiros na TV brasileira, houve 886 explosões, 651 brigas, 1.145 cenas de nudez, 188 referências ou imitações a trejeitos homossexuais e 72 termos chulos. Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, existe lei federal proibindo pornografia e programas obscenos, o Communications Act. As próprias emissoras também têm seus códigos internos, que são rigorosamente observados. Tudo a refletir o nível de responsabilidade social da mídia eletrônica daquele país. Por aqui, no entanto, qualquer tentativa de normatização logo soa como voz dos setores conservadores, que pretenderiam cercear a liberdade de expressão. Para o jornalista José Castello, “torpedeados os valores, é todo um universo que desmorona. Tornamo-nos, todos, homens sem pudor. Não são apenas os marginais organizados em falanges para o que der e vier que se deixam dirigir por essa razão cínica”.40 Na verdade, o sistemático bombardeio de sexo e violência que invade nossas casas a cada dia e banaliza esses conceitos gera uma verdadeira moral da delinqüência. 4.4.3 A Qualidade Como o direito à informação é, inegavelmente, um requisito da democracia. A opinião pública sabe que necessita de um jornalismo investigativo, isento, ancorado na liberdade de expressão e no direito à informação, como for- Carlos Alberto Di Franco, op. cit., p. 31. Idem, p. 40. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 33 D ireito ma de banir a cultura do acobertamento, denunciar e pôr fim a tudo o que não sirva à democracia. Dessa forma, dependemos da liberdade e do nível técnico e ético da imprensa, dependemos de uma postura responsável e que busque, acima de tudo, a qualidade. Como lembrou Cláudio Abramo, “a ética do jornalista é a ética do cidadão. O que o jornalista não deve fazer que o cidadão comum não deva fazer? O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir”. A imprensa não é feita por super-homens. É feita por seres humanos, falíveis como todos nós. Apenas esperamos que seja conduzida por homens de bem. 5 LIMITES DO DIREITO DE INFORMAÇÃO Como vimos, o direito de informação, apesar de amplo, constitucional e fundamental à democracia, tem os seus limites. E nem sempre a demarcação desses limites é fácil, já que se confrontam o direito da coletividade à informação e aquela esfera do indivíduo que o público, e conseqüentemente a imprensa devem respeitar. Dadas a freqüência e a intensidade dos conflitos de interesse, nos dias de hoje acentua-se a tendência de definição de uma área de intimidade ou reserva que não deve ser liberada ao público sem o consentimento do interessado. Assim é que o direito de informação deve ser o mais amplo possível, enquanto não colidir 41 34 A r t i g o com interesses considerados igualmente fundamentais. Afinal, o interesse da coletividade em ser informada impõe a si mesmo um limite, quando a divulgação de fatos venha a destruir a pessoa humana em sua dignidade. “O direito à informação existe em função do desenvolvimento da personalidade e não para a sua destruição.”41 Em 1960, o Prof. Willian Prosser, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, escreveu trabalho intitulado Privacy, divulgado na California Law Review, no qual distinguiu em quatro categorias diversas os ataques à intimidade da vida privada de forma a reclamar quatro tipos de reação: 1) proteção do indivíduo contra a intrusão no seu retiro ou solidão ou em assuntos privados; 2) proibição de divulgar ao público fatos privados, especialmente os que podem causar algum embaraço ao interessado; 3) reconhecimento da ilegalidade de publicações que exponham as pessoas sob uma falsa imagem, mesmo não difamatória; 4) proteção contra as apropriações, por terceiros, de certos elementos da personalidade individual com ânimo de lucro, tendo como caso freqüente a apropriação do nome ou da imagem ou de ambos a uma só vez sem consentimento do interessado e para anunciar algum produto. Uma decisão do começo deste século, proferida pelo Tribunal da Geórgia, concluiu que o direito à intimidade é limitado pelo direito de René Ariel Dotti, Proteção da vida privada e liberdade de informação, p. 177. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o expressão do pensamento, com destaque para a imprensa. Consta de parte da decisão essa atualíssima lição: “Os que têm garantido o direito de expressão, oral, escrita, e de imprensa, não devem abusar de tal direito. Nem aquele que detém o direito à intimidade deve abusar dele. A lei não permitirá o abuso nem de um nem de outro. A liberdade de expressão e de imprensa tem sido um instrumento útil para manter o indivíduo dentro dos limites de sua conduta legal, decente e adequada. E o direito à intimidade pode ser utilizado convenientemente dentro de seus limites para manter os que falam, escrevem e editam dentro dos limites legítimos das garantias constitucionais de tais direitos. Pode-se usar de um deles para moderar o outro; mas nenhum dos dois pode ser legalmente usado para destruir o outro”.42 As limitações reciprocamente impostas, é bom frisar, não resultam da hierarquia das liberdades em conflito, já que não há superposição, mas das circunstâncias de que se reveste cada situação concreta. Em algumas delas, deve prevalecer o direito à intimidade; em outras, deve ser prioritário o direito à informação. O direito à vida íntima das pessoas, que não é ilimitado, deve conciliar-se com o exercício da liberdade de informação, quer decorra do interesse público ou dos interesses de particulares. 5.1 Limitações nos Diplomas Legais Os textos que declaram a existência autônoma do direito à vida privada fazem sempre referência às limitações, embora não as tra- 42 gam de modo detalhado nas situações concretas. Assim ocorre na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, em seu artigo 12, reconhece este direito contra as ingerências arbitrárias, admitindo, implicitamente, suas limitações. Já o artigo 8o da Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais dispõe: “1 – Toda pessoa tem direito ao respeito de sua vida privada e familiar, de seu domicílio e de sua correspondência. 2 – Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício desse direito senão quando esta interferência esteja prevista em lei, e constitua uma medida que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, a segurança pública, o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e as liberdades dos demais”. A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, art. 4o), somente faz referência à proteção legal contra os “ataques abusivos” à vida privada e familiar (e também à honra e reputação). O mesmo se diga do Pacto das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos (Nova Iorque, 1966). Em 1967, O Congresso de Juristas dos Países Nórdicos, realizado em Estocolmo, fixou diversas hipóteses de limitação do direito à intimidade da vida privada. Considerou-se, então, como limites necessários para o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos de pessoas, grupos ou do Estado: Idem, p. 180. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 35 D ireito 1) o “interesse público” (assim entendido como segurança nacional, segurança pública, da defesa, da ordem, da prevenção do crime, da proteção da saúde ou da moral); ção, na busca por uma “ordem sossegada”, que é a paz. 2) o “interesse privado” (defesa de interesses de outras pessoas ou grupos de pessoas naturais). É tarefa das mais árduas legislar sobre o assunto, pelas graves complexidades que envolvem o problema e também pela diversidade enorme quanto às situações concretas que pode apresentar. Some-se a isso, como ensina René Ariel Dotti, A Constituição de Portugal, de 1976, em seu artigo 33 dispõe que a lei estabelecerá garantias efetivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. É em torno dessa legislação complementar que convergem as grandes preocupações dos juristas. “a difusão cada vez maior dos instrumentos, dos meios e dos métodos da técnica com os progressos que lhe são inerentes, de modo a formar tantas hipóteses de conflito quantas aparecem e se movimentam nas figuras de um caleidoscópio”.44 A importância de limitar as esferas de reação das liberdades está ligada à necessidade de que coexistam, para poderem ser exercidas simultaneamente. Porém, como lembra o mestre René Ariel Dotti, Por esses motivos, não se têm apresentado fórmulas legislativas que, a um só tempo, contemplem todas as situações de conflito, propondo as soluções adequadas. “toda a problemática de limitação às liberdades públicas poderá conduzir a um regime de insegurança na medida em que o predomínio absoluto e permanente de uns direitos sobre os outros, além de atentar contra um pressuposto natural de equilíbrio, fomenta necessariamente áreas de antagonismo, que vão desaguar nas tentativas – geralmente violentas – de alteração do ordenamento injusto”.43 O freqüente conflito entre o direito à vida privada e a liberdade de informação baseia-se na concepção de segurança. A segurança atua para limitar não somente a intimidade das pessoas, mas também para restringir o direito à informa- 43 44 36 A r t i g o Uma evidência dessa realidade é a solução dada pelo Código Civil português, de 1966, ao conferir tutela autônoma e direta da intimidade, em seu artigo 80: “1 – Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem. 2 – A extensão da reserva é definida conforme a natureza dos casos e a condição das pessoas”. A disposição citada vem inserida no capítulo que trata dos direitos da personalidade reconhecidos no sistema de Portugal e mostra que não se podem obter fórmulas legais que esgotem o tema. O direito à informação e o respeito à vida privada não podem ser conduzidos em plano Idem, p. 184. Idem, p. 188. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o absoluto, sob pena de se ter o sacrifício de um deles em favor do outro. Daí a necessidade de serem limitados em seu exercício na busca por uma fronteira de equilíbrio. Atualmente, embora não completamente resolvidos os problemas que representam a má aplicação da lei e a existência de lacunas, existe um princípio maior, que norteia a função judicante. É nesse sentido que a Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro dispõe que, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5o). O preceito permite que os pronunciamentos da Justiça alcancem a maior variedade de situações concretas, por meio de uma atuação que garanta o direito à liberdade não apenas às partes envolvidas no conflito, mas também ao Juiz, que não deverá restringir-se ao quadro es- 45 tabelecido pela lei, como se a enxergasse através de uma fresta. O aplicador do Direito não pode ser reduzido à condição de personagem de Fedor Dostoieviski em Recordações da casa dos mortos: “a nossa prisão ficava na extremidade da fortaleza, à beira da muralha. Quando através das frinchas da paliçada procurávamos entrever o mundo, distinguíamos apenas um estreito retalho de céu e uma alta plataforma de terra, invadida pelas ervas daninhas, que as sentinelas percorriam noite e dia. E dizíamos imediatamente para conosco que, por mais anos que passassem, veríamos sempre, olhando através das frinchas da paliçada, a mesma muralha, a mesma sentinela e o mesmo retalho de céu – não o céu da fortaleza, mas sim outro, um céu mais longínquo, um céu livre”.45 Recordações da casa dos mortos, p. 13. j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 37 D ireito A r t i g o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA MIRANDA, Darcy. Comentários à Lei de Imprensa. São Paulo: RT, 1969, v. 1-2. MARX, Karl. Liberdade de imprensa. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1980. BARBOSA, Rui. 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Ao encontro da intenção do regime militar de minar pólos centrais da resistência democrática, entre os quais se inseria a Ordem dos Advogados do Brasil, vanguarda da mobilização social, os cursos de Direito, alguns de curta duração, com escopos esterilizados, espalharam-se por todo o território, oferecidos por escolas movidas a interesses mercantilistas. O resultado desse quadro revela-se na estatística que se apresenta hoje ao País: são quase 800 cursos de Direito em funcionamento, contra 69, em 1960. Uma realidade que causa perplexidade se comparada aos dados dos Estados Unidos, onde o número de faculdades de Direito está estacionado em 180 instituições de ensino superior. A proliferação de faculdade no Brasil lança no mercado milhares de bacharéis, dos quais só o Estado de São Paulo recebe 15 mil por ano, que correspondem a apenas a 20% do total, porque os demais não passam no exame de 82 Ordem, que busca aferir se o bacharel reúne condições profissionais mínimas para atuar, uma vez que terá em suas mãos os bens maiores da criatura humana: a honra, a vida e a liberdade. Ao lado da saturação do mercado de trabalho, os advogados passaram a conviver com o descumprimento constitucional do múnus da advocacia e com leis que restringem suas atividades profissionais, como ocorre nos juizados de pequenas causas. Não por acaso, o papel do advogado na sociedade política tem decrescido. É nessa moldura que a seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil está interferindo oportunamente. A meta é requalificar o ensino jurídico, resgatando o ideário dos cursos de ciências jurídicas e sociais, criados em Olinda e em São Paulo, em 11 de agosto de 1827. O esforço pela recomposição dos níveis de qualidade do ensino do Direito começa pelo combate a escolas e cursos defasados e improvisados, destituídos de visão do futuro, estruturados e com quadros docentes precários. Lembre-se, a propósito, de que a OAB tem amparo legal para atuar nesse sentido, em função de decreto (n. 3.860, de 09.07.2001) que confere poder ao Conselho Federal da entidade para se manifestar a respeito da criação de instituições de ensino superior da área. A OAB j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 imes r e v i s t a A r t i g o tem poder opinativo sobre a abertura de novas faculdades de Direito; mas a Ordem de São Paulo quer mais, deseja ter poder de veto, porque consideramos inadmissível que o Ministério da Educação autorize o funcionamento de cursos para atuar de forma improvisada em auditórios da Câmara Municipal ou em salas de cinema e utilizem o artifício de locar bibliotecas e corpo docente de fachada, pois aquele que administrará as aulas será um professor sem a devida qualificação. Outra grande questão voltada ao ensino jurídico, com implicações no futuro da Advocacia, reside no fato de que hoje prepara-se o profissional para litigar, quando o futuro do Direito está na composição. A mediação, a conciliação e a arbitragem abrem novos campos de trabalho para a Advocacia. Trazem um novo conceito à prática do Direito, com ênfase no diálogo e no entendimento entre as partes; todavia, há que se tornar obrigatória a presença do advogado, uma vez que essas formas de solução de conflitos constituem mecanismos jurídicos, e o leigo não conhece o Direito. Pela conciliação, também será possível contornar a morosidade da Justiça, matéria que não foi contemplada pela Reforma do Judiciário, que, embora trate de matérias relevantes e oportunas, não emprestará celeridade à Justiça. Um exemplo dessa morosidade está no “tempo morto do processo”, cuja dimensão pode ser retratada por 550 mil processos em grau de recurso, aguardando distribuição na j a n e i r o / j u n h o — 2 0 0 3 Justiça paulista, o que demora de quatro a cinco anos de espera. Uma recente proposta de contribuição à melhoria do ensino jurídico foi encaminhada pela seccional paulista à Frente Parlamentar dos Advogados na Câmara dos Deputados e ao Conselho Federal da OAB, visando a antecipar a inscrição do estagiário na Ordem, que atualmente acontece nos dois últimos anos. Nossa proposta é que ele ingresse nos quadros da OAB a partir do 2° ano do curso de Direito. Com a carteira da Ordem, o estagiário amplia seu mercado de trabalho, porque adquire a prerrogativa de retirar processos nos tribunais, assinar petições junto com um advogado e participar de audiências, atividades essenciais à formação plena do futuro profissional. Com a antecipação do estágio, o bacharel chegará ao mercado de trabalho com uma bagagem de conhecimentos práticos maior, que, somada ao conhecimento conceitual e teórico dos bancos escolares, tende a torná-lo um advogado mais capacitado para postular em nome do cliente. A somatória dessas propostas no plano educacional visa a valorizar a profissão do advogado, que passa necessariamente pela qualidade de ensino jurídico, fundamental para aquele que chega a um mercado de trabalho cada dia mais concorrido, tendo de responder à ânsia e às necessidades dos jurisdicionados, que ainda esperam pela democratização, melhoria e agilização da Justiça. 83