melhor cidade
Transcrição
melhor cidade
Alda Marco Antônio, Aleksandar Mandic, Alexandre Schneider, Antônio Moreno Neto, Eleuses Paiva, Fábio Feldmann, Gilberto Kassab, Indio da Costa, Marcel Solimeo, Marcos Cintra, Paulo Simão, Reinhold Stephanes, Ricardo Patah, Samuel Hanan, Tulio Kahn, Ulisses Gamboa C o o rd e n a ç ã o - G u i l h e r m e Af i f Em busca da MELHOR CIDADE Análises, ideias e soluções para os Municípios do Brasil “ Em minha andança pelo Brasil, no contato direto com eleitores e militantes do PSD, tenho procurado enfatizar a importância da qualificação de todos os que fazem política no nosso país. Sem um trabalho consistente neste sentido, corremos o risco de afastar bons cidadãos da atividade partidária, quando todos sabemos o quanto fazem falta os idealistas e os profissionais experimentados e competentes. É neste sentido que saúdo o lançamento do livro Em Busca da Melhor Cidade, pelo Espaço Democrático. Obras como esta ajudam a despertar vocações e a mostrar que é possível, sim, contribuir para melhorar a vida dos brasileiros de hoje e do futuro. Divulgar experiências inovadoras e competentes de gestão municipal é nossa forma de colaborar com os que querem fazer mais pelo Brasil. “ Senadora Kátia Abreu (PSD-TO) 2 Em busca da MELHOR CIDADE Análises, ideias e soluções para os Municípios do Brasil Fundação para Estudos e Formação Política do PSD In memoriam Amaury de Souza (1942-2012) Cientista político, professor e intelectual apaixonado pela democracia, cuja contribuição foi essencial para a formação e concretização do Núcleo de Estudos do Espaço Democrático. 4 Este livro é dedicado a todos os prefeitos, vice-prefeitos, vereadores e administradores públicos municipais brasileiros que, ano após ano, dão uma lição de coragem, persistência e criatividade ao resolver problemas muito maiores do que aqueles que os orçamentos de seus Municípios comportam. 5 Apresentação Editor responsável: Sérgio Rondino Supervisão: Rubens Figueiredo Coordenador técnico: Rogério Schmitt Colaboração:Amaury de Souza Marcos Garcia de Oliveira Carmo Chagas Projeto gráfico: Marisa Villas Boas Capa: shutterstock / blinkblink Domingos, Guilherme Afif, 1943 Em busca da melhor cidade: análises, ideias e soluções para os municípios do Brasil / Guilherme Afif e outros 1ª ed. - São Paulo; Scriptum Editorial, 2012. ISBN 978-85-65897 -00-6 6 C o o rd e n a ç ã o - G u i l h e r m e Af i f Em busca da MELHOR CIDADE Análises, ideias e soluções para os Municípios do Brasil 1ª Edição São Paulo 2012 7 8 Índice Apresentação Guilherme Afif 10 Grandes desafios em debate Vilmar Rocha 12 Zelar pelo presente sem esquecer o futuro Gilberto Kassab 15 O Município no mundo das finanças públicas Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa 37 Novo federalismo, Município forte Samuel Hanan 61 Entre a administração pública e a política: o que fazer? Marcos Cintra 89 Município saudável, País saudável 115 Eleuses Paiva O salto educacional começa perto de casa 129 Alexandre Schneider Agricultura, motor das cidades 139 Reinhold Stephanes Senhor Prefeito, quero trabalhar 157 Ricardo Patah Urbanização e civilização: avanços e desafios 175 Paulo Simão O lixo e a rua: o Município e o meio ambiente 195 Fábio Feldmann Calçadas iluminadas: a segurança pública e o poder local 209 Tulio Kahn Área social: base de um governo responsável 227 Alda Marco Antônio A Copa, a Olimpíada e o Município: o estágio dos esportes no Brasil 237 Antônio Moreno Neto A vizinhança das mídias digitais: a Prefeitura ligada 247 Aleksandar Mandic Ficha Limpa nas eleições municipais: 269 combate à corrupção e reforma política Indio da Costa 9 Apresentação Guilherme Afif N ão existe federalismo forte com Município fraco. A concentração exagerada de recursos no Poder Central, associada à distribuição desequilibrada de tarefas, conspira contra a racionalidade administrativa, a alocação eficiente dos investimentos e a capacidade de cobrança da sociedade sobre o destino dos impostos que paga. A conta não fecha. Não há contorcionismo intelectual que explique este fato: quem faz mais fica com menos. “Tão perto dos problemas, tão longe dos recursos” poderia ser o lema dos Municípios e Estados brasileiros. Responsáveis pela prestação da maior parte dos serviços públicos considerados mais importantes pela população – saúde, educação e segurança pública, para citar apenas três - Municípios e Estados enfrentam, com imensas dificuldades financeiras, o desafio de espalhar bem estar para milhões e milhões de brasileiros em todos os cantos do País. A vida dos prefeitos está sempre cheia de demandas; o cofre, sempre vazio de dinheiro. Enquanto os países mais desenvolvidos se caracterizam pela descentralização e ação conjunta dos entes federados, no Brasil vivemos o federalismo do “você que se vire”. Todos os anos assistimos, até com um certo enfado, a uma ou mais “Marcha dos Prefeitos a Brasília”, que bem poderia ser chamada de “passeata do pires na mão”. O que são essas marchas? Administradores municipais reivindicando recursos que se acumulam nas mãos da União, que saem das cidades e não voltam mais. Ou, quando voltam, são gravadas por um injustificável e revoltante “pedágio burocrático-político”. O Brasil é um país gigantesco e muito diversificado. Dados recentes indicam que 36% dos brasileiros vivem nos mais de 4.500 Municípios com menos de 50 mil habitantes, enquanto cerca de 40% da população se espreme nas grandes regiões metropolitanas, que representam 1,9% do nosso território. Ora, o poder central não é – aliás, está bem longe de ser – onisciente. Quem entende os problemas locais são as autoridades locais. Por que, então, não aquinhoá-las com mais recursos? 10 Depois da Constituição de 1988, a União lançou mão de um truque. A nossa Carta Magna estabelece que os Fundos de Participação dos Estados e Municípios são formados pelos impostos federais. Pois bem, ao longo do tempo, Brasília foi criando uma série de contribuições – Cofins e Cide são dois exemplos – que passaram a ser excluídas do bolo a ser dividido. Os números são definitivos: em 1988, as receitas da União eram representadas por 80,27% de impostos e 19,73% de contribuições. Em 2011, as contribuições já representavam 48,5%. Fica com mais do que deveria e faz menos do que lhe é dever realizar. O caso da educação superior é emblemático. No Brasil, apenas 25% dos alunos matriculados no ensino superior estão na rede pública. São aproximadamente 1.200.000 estudantes. E, apesar de toda a concentração de recursos e as responsabilidades constitucionais que recaem sobre a União no que diz respeito ao ensino superior, a maior parte desses alunos – 56% - está nas universidades e faculdades das redes estaduais e municipais. E isso para não falar na gigantesca rede de ensino fundamental e médio, totalmente da alçada dos governos subnacionais. Essa grave distorção do nosso federalismo é um dos temas deste livro, que foi organizado pelo Espaço Democrático - a Fundação para Estudos e Formação Política do PSD. O objetivo da publicação é oferecer aos prefeitos, deputados, vereadores, administradores públicos, filiados e militantes do partido um amplo painel de experiências de gestão, ideias e propostas sobre a administração de nossos Municípios. Em seus diversos capítulos, alguns dos maiores especialistas brasileiros, quase todos coordenadores dos Conselhos Temáticos do Espaço Democrático, analisam os mais importantes temas que dizem respeito ao poder local. O resultado é um amplo retrato do nosso sistema político-administrativo, que proporciona ao leitor uma quantidade enorme de informações, associada a reflexões de autores da mais alta qualidade. Com isso, o Espaço Democrático acredita estar contribuindo para dar o pontapé inicial numa discussão vigorosa sobre os caminhos que deveremos trilhar para, no exercício da atividade política, melhorar a qualidade de vida dos brasileiros. Guilherme Afif - Presidente do Espaço Democrático, é vice-governador de São Paulo e preside o Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias Público-Privadas (PPPs). 11 Grandes desafios em debate N este livro, certamente o trabalho de maior fôlego até agora produzido pelo Espaço Democrático, pode-se observar a essência da proposta dessa entidade, criada pelo Partido Social Democrático (PSD) para dar sustentação intelectual à sua ação política. Estão reunidos nesta publicação alguns conceitos, ideias e projetos cuja soma constitui-se em relevante contribuição para o futuro de nosso País. É com esse objetivo que a fundação vem trabalhando. Em seus Conselhos Temáticos, alguns dos maiores especialistas brasileiros em questões de interesse público vêm debatendo os grandes desafios da sociedade brasileira e elaborando as propostas que vão compor o Projeto para a Nação que vamos apresentar em 2013, após a validação por seus líderes e militantes. Com o suporte do Espaço Democrático, o partido está definindo seus caminhos e os projetos que vai abraçar. O critério para a escolha será tão somente o resultado que eles trarão para toda a população. O PSD quer que o Brasil se desenvolva, social e economicamente, e não se deixará iludir por preconceitos ou amarras ideológicas. É dessa forma, contribuindo e participando vigorosamente do debate sobre temas essenciais para o desenvolvimento do Brasil, que mostraremos que o nosso partido é realmente diferente, que nasceu para atender ao desejo de avançar hoje presente na mente dos brasileiros. Exatamente por isso, a ação do Espaço Democrático não se limita aos filiados do partido. Suas portas estão abertas a todos os que querem contribuir de alguma forma, sejam autoridades, parlamentares, acadêmicos, estudantes ou profissionais de qualquer área. 12 Uma síntese dessa atividade pode ser observada nesta publicação que agora chega às mãos de leitores de todo o País. Com colaboradores de diversas áreas, alguns sem qualquer ligação com o partido, reuniram-se aqui experiências e conhecimentos extremamente úteis aos gestores municipais. Boa leitura. Vilmar Rocha - Vice-presidente do Espaço Democrático, é deputado federal licenciado e Chefe da Casa Civil do Governo do Estado de Goiás 13 Gilberto Kassab Presidente nacional do PSD e prefeito de São Paulo (2006-2012), o engenheiro e economista Gilberto Kassab foi vereador, deputado estadual e federal por São Paulo. Na história da cidade, é o prefeito que ocupou o cargo por mais tempo. 14 Gilberto Kassab Zelar pelo presente sem esquecer o f u t u r o 15 Em busca da melhor cidade 16 C Gilberto Kassab uidar bem da cidade e das pessoas que nela vivem é a missão principal de um prefeito. O que se deve esperar dele é que seja um zelador competente à frente de uma equipe de colaboradores escolhida pelo critério de qualidade e experiência, procure ouvir o que a população tem a dizer, saiba julgar bem ao definir as prioridades, se faça presente diariamente pela cidade, cuide da manutenção do que vai indo bem, mas sempre atento ao que precisa ser corrigido, que fiscalize as obras e intervenções em andamento. Assim procurei agir como prefeito de São Paulo. Durante quase sete anos, desde que assumi o cargo pela primeira vez, tive agenda de trabalho todos os dias nas ruas da cidade, sábados, domingos e feriados. Fui prefeito em tempo integral, pois para isso fui eleito. Mas é preciso ter também preocupação igual em relação ao futuro da cidade, elaborando e viabilizando projetos, planejando para as próximas décadas. Digo sempre que grande parte dos problemas que hoje enfrentamos poderia nem existir, se nas décadas anteriores os prefeitos tivessem planejado e trabalhado com o objetivo de antecipar soluções. Veio daí minha preocupação em investir no desenvolvimento de projetos de médio e longo prazo para áreas específicas da cidade, que não seriam implantados por mim, mas pelos futuros administradores de São Paulo. Nossa cidade paga hoje pela falta de visão de futuro da maioria dos seus administradores do passado. Não fiz questão de inaugurar nada, mas trabalhei para deixar para meus sucessores o que eu e meu antecessor não encontramos: planejamento contínuo, linhas mestras de ação urbanística implantadas e projetos bem encaminhados ou prontos para serem colocados em prática. Gerenciar metrópoles exige atenção ao presente com o olhar no futuro. Foi pensando em nosso cidadão e em sua vida em família que nossa gestão concentrou esforços e priorizou educação e saúde. De olho no presente e no futuro, nos propusemos a ampliar a rede de ensino municipal e abrimos 345 novas escolas - 272 entregues até dezembro/2012 e mais 73 com obras em andamento. Isso permitiu eliminar quase completamente o terceiro turno diurno – o chamado “turno da fome”, desastradamente encaixado entre o final da manhã e o começo da tarde – de 11h às 15h. Com novas escolas, pudemos ampliar o tempo de ensino em quase todas as unidades, que têm agora apenas dois turnos, cada um com uma hora de aula a mais por dia. Ao longo de oito anos de ensino, essa hora diária a mais significa para os 17 Em busca da melhor cidade Criamos mais de 150 mil novas vagas em creches. Havia 60 mil crianças nas creches municipais em 2005, quando nossa gestão começou. Hoje há 210 mil. 18 alunos pelo menos um ano a mais de aprendizado – e isso fará diferença no futuro de cada um deles. A realidade inaceitável de milhares de crianças, professores e funcionários, que tinham de frequentar 54 escolas e 159 salas de lata, é passado. Todas foram desativadas, com um investimento de R$ 100 milhões. Na linha que acho essencial seguir, que é dar continuidade aos bons programas iniciados pelos antecessores, mesmo que de outro partido, nossa gestão entregou 24 novos CEUs - Centros de Educação Unificada – projeto criado na administração anterior, que ampliamos e aperfeiçoamos, com um investimento de R$ 770,4 milhões. É importante assinalar, também, que criamos mais de 150 mil novas vagas em creches. Havia 60 mil crianças nas creches municipais em 2005. Em dezembro de 2012 já havia 210 mil. Foi um grande avanço, mas a demanda também cresceu nesse período e é preciso continuar trabalhando para reduzir a carência de vagas. Lembro ainda o Programa Ler e Escrever, cuja implantação resultou rapidamente no aumento de 70% para 85% do total de alunos alfabetizados ao final do segundo ano do Ciclo I, como parte da meta de alcançar 96% neste conceito. Deixamos a Prefeitura com essa meta praticamente atingida, beneficiando mais de meio milhão de alunos. Isso acontece na capital que mantém o maior sistema de ensino municipal do País, com quase 1,1 milhão de alunos, ou cerca de 10% dos 11 milhões de habitantes da cidade. São providências e intervenções de grande vulto, que em São Paulo tiveram equivalência em outra área fundamental, a saúde. Fiz questão de frisar, no meu Gilberto Kassab contato diário com nossa população, que cumprimos a promessa de melhorar os serviços de saúde prestados pela Prefeitura de São Paulo. Esse trabalho foi iniciado em 2005, quando o prefeito era José Serra, e prosseguiu nos anos seguintes. Encontramos a saúde pública paulistana em péssimas condições. O diagnóstico feito na ocasião apontava para a conveniência de dar ênfase à atenção básica, para diminuir a sobrecarga dos hospitais e prontos-socorros municipais. Criamos então as unidades de Atendimento Médico-Ambulatorial – AMAs – e depois as AMAs Especialidades, para dar um atendimento ambulatorial de qualidade. Ao mesmo tempo, reformamos e reequipamos as mais de 400 Unidades Básicas de Saúde. Em 2011, as 117 AMAs da Capital atingiram a marca histórica de 10 milhões e 200 mil consultas e atendimentos. Conseguimos, assim, garantir para a população a atenção básica de saúde e aliviar o trabalho nos hospitais e prontos-socorros, que passaram a ter condições de atender melhor os casos mais complexos e as emergências. No final de 2012 a cidade tinha 139 AMAS, 19 de Especialidades. A esse conjunto de providências juntou-se a ampliação do fornecimento gratuito de medicamentos para a população nos postos de saúde – mais de 246 milhões de remédios distribuídos desde 2005. E temos o programa Remédio em Casa, que sob nossa gestão garante a entrega em domicílio de medicamentos de uso constante para pacientes que sofrem de doenças crônicas – são 280 mil pacientes inscritos e 1,5 milhão de receitas atendidas no período. Acabamos com as frequentes reclamações de falta de remédios. Com o programa Rede de Proteção à Mãe Paulistana, ultrapassamos a marca dos 690 mil partos. Aqui, não se trata apenas dos partos, mas do pré-natal e da atenção aos bebês durante o primeiro ano de vida. Em seus primeiros seis anos, a Rede de Proteção à Mãe Paulistana realizou 3,8 milhões de consultas, 4,8 milhões de exames e 680 mil ultrassonografias, atendendo gestantes em 439 Unidades Básicas de Saúde (UBS), 23 Ambulatórios de Especialidades (AE) e em 37 hospitais municipais. A propósito dos hospitais municipais, assinalo que, apesar de a cidade continuar crescendo rapidamente, durante quase duas décadas a Prefeitura não ampliara sua rede hospitalar. Em nossa gestão, inauguramos os hospitais municipais de Cidade Tiradentes e M’Boi Mirim, e o SAID – Serviço de Atenção Integral ao Dependente, em Heliópolis. Também o Hospital São Luiz Gonzaga, que ia fechar, foi municipalizado. Com essas quatro unidades, acrescentamos 728 leitos à rede municipal. 19 Em busca da melhor cidade Não se pode afirmar que a saúde pública de São Paulo já chegou a um nível ideal. Ainda temos que trabalhar muito para conseguir isso e, com certeza, haverá trabalho a ser feito pelas próximas gestões. Mas posso afirmar que a qualidade da prestação de serviços de responsabilidade da saúde pública municipal melhorou, e muito. Hora de mobilizar recursos para elevar a qualidade de vida É dever do administrador de hoje, portanto, cuidar para que os problemas atuais não se agravem e tornem insuportável a vida dos paulistanos do futuro. Nem é necessário voltar muito no tempo para deixar evidente que houve a oportunidade de organizar o crescimento da capital paulista, e tal oportunidade não foi aproveitada. Basta tomar como referência a segunda metade do século 20, trazendo a análise até os dias atuais. Foi na década de 1950 que a vida da cidade de São Paulo entrou em ritmo de crescimento vertiginoso. O processo de industrialização do País, acelerado com a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, na segunda metade da década de 1940, deu o impulso que dinamizou o processo de expansão da capital paulista. Nascia a indústria automobilística. Toda a região do Morumbi, que era uma fazenda, um descampado, foi ocupada rapidamente. Naquele período, a região do Butantã ficava fora da cidade, com suas chácaras e olarias. Itaim Bibi, Vila Olímpia, Vila Nova Conceição, Alto de Pinheiros... todos esses bairros hoje densamente habitados e altamente valorizados pertenciam à zona rural, faziam parte do cinturão verde de São Paulo. As três décadas seguintes foram tempos em que os administradores paulistas deixaram de projetar os problemas que a cidade enfrentaria a partir de 1980 até os dias atuais. Não é o caso, agora, de culpar os prefeitos daqueles tempos. Eles tiveram suas razões para agir como agiram. Mas é o caso, agora, de mobilizar verbas – próprias ou de outras fontes, inclusive da iniciativa privada – para consolidar o processo de melhoria da qualidade da educação e da saúde; para socorrer as vítimas das enchentes que ocorrem nos verões; para transformar as favelas em comunidades saneadas; para criar soluções que aliviem os congestionamentos que a população enfrenta todos os dias; para combater a criminalidade nos movimentados pontos de comércio popular, os prefe- 20 Gilberto Kassab ridos pelos ambulantes ilegais que vão ali vender suas mercadorias pirateadas, contrabandeadas ou provenientes de roubos de cargas. Elaboramos projetos e preparamos licitações para viabilizar, em 2013 ou 2014, o início de obras que produzam efeitos daqui a cinco anos, dez anos. São obras que minha gestão concebeu imaginando apenas os benefícios que trarão para a cidade, sem perder tempo com mesquinharias, como ficar imaginando quais nomes vão aparecer na placa de inauguração ou quem vai obter votos com aquela solenidade. Temos de pensar, a sério, nos túneis por onde passarão os trilhos ferroviários hoje implantados a céu aberto, em espaços valorizados que serão mais bem aproveitados com avenidas arborizadas, ecologicamente corretas. Nesses espaços, a indústria imobiliária será orientada a construir prédios apropriados para que o trabalhador possa morar perto do seu local de trabalho. Para que esses projetos se transformem na realidade de nossos filhos e netos, é essencial que a geração atual crie as condições, trace os rumos, planeje, tome as primeiras iniciativas. Daí surgiu a convicção de que minha gestão deveria tentar resolver os problemas legados por administrações passadas, mas também propor e viabilizar soluções que garantam a qualidade de vida na São Paulo das próximas décadas. Procurei deixar, para as futuras gestões, uma visão estratégica de longo prazo, com a participação ativa da sociedade civil e em consonância com o Plano Diretor Estratégico (PDE). Com esse objetivo, a Prefeitura desenvolveu, desde 2007, o plano SP 2025, concebido para elevar a qualidade de vida da população, de forma gradativa, com impactos Tinha a convicção de que deveria tentar resolver os problemas que administrações passadas legaram, assim como propor e viabilizar soluções que garantissem qualidade de vida para as próximas décadas. 21 Em busca da melhor cidade Para entender o presente e delinear o futuro, convém lembrar que, 1920, São Paulo tinha 579 mil habitantes. Desde então, em a população cresceu mais 20 vezes. Tornamo-nos de a maior cidade do 22 Hemisfério Sul. positivos em todas as camadas sociais, especialmente as mais carentes. A iniciativa busca, também, criar as condições para o comprometimento dos governantes com a visão estratégica de longo prazo desenvolvida em conjunto com a sociedade civil. As discussões iniciais do projeto foram articuladas pela Secretaria de Relações Internacionais. Em 2008, os debates foram ampliados por meio de apresentações, com a participação de todo o secretariado municipal. Em seguida, o SP 2025 passou a ser conduzido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, criada em 2009 com competências para conduzir ações governamentais voltadas ao planejamento e desenvolvimento urbano do Município, inclusive planos de desenvolvimento de médio e longo prazos. Além do SP 2025, foi concebido também o Projeto SP 2040. Focado no mesmo objetivo de planejar e antecipar, o SP 2040 busca desenvolver uma visão e um plano estratégico de longo prazo, com horizonte de 30 anos, desenvolvido com a colaboração da Universidade de São Paulo (USP). Destaca-se, nesse contexto, a progressiva capacitação da cidade para abrigar grandes eventos. Além da Fórmula 1 e da Formula Indy, que já fazem parte do calendário anual, a Copa do Mundo de 2014 e a candidatura de São Paulo para a Expo 2020 são exemplos de oportunidades para a cidade. A construção de uma visão estratégica de longo prazo, em sintonia com a sociedade civil, estabelece um referencial para os posicionamentos da cidade, para as políticas publicas, para os agentes privados nacionais e globais, para organizações não governamentais. É apenas um ponto de partida para uma discussão que precisa continuar pelos próximos anos. Gilberto Kassab Eixos de atuação por um futuro melhor Essa reflexão inicial identifica os potenciais da cidade, mas reconhece suas deficiências. A valoração dos potenciais e a mitigação progressiva das deficiências, com foco na melhoria da qualidade de vida do paulistano, devem ser perseguidas. Cinco eixos importantes de atuação são identificados: - a promoção do equilíbrio social - a promoção do desenvolvimento urbano sustentável - a promoção da mobilidade e acessibilidade - a promoção da melhoria ambiental - a consolidação de São Paulo como Cidade Global Para entender o presente e delinear o futuro, devemos recuar ao passado e lembrar que, menos de um século atrás, em 1920, São Paulo tinha 579 mil habitantes. Desde então, a população paulistana cresceu mais de 20 vezes. Tornamo-nos a maior cidade do Hemisfério Sul, com mais de 11 milhões de habitantes. Somos hoje o núcleo de uma região metropolitana em que vivem mais de 20 milhões de pessoas. Talvez só a China e a Índia tenham registrado crescimento a taxas tão altas. Em tempos recentes, as taxas médias de crescimento anual de São Paulo foram 5,2% (década de 1940), 5,6% (década de 50) e 4,6% (década de 60). Essa evolução se manteve em ritmo acelerado até a década de 90. Durante todo esse processo de agigantamento, faltou a devida atenção à sustentabilidade. De um lado, o poder público cometeu o erro de construir conjuntos habitacionais distantes da região central, aproveitando-se do menor preço da terra nessas áreas. De outro, permitiu a ocupação irregular de áreas igualmente periféricas, com o agravante de essas ocupações frequentemente se instalarem em áreas de risco, de preservação e de mananciais. Os resultados são conhecidos. Temos hoje cerca de 3,2 milhões de pessoas vivendo em habitações precárias. Trata-se da terceira maior população urbana do Brasil, atrás apenas da própria São Paulo e do Rio de Janeiro. E a preocupação é ainda maior quando se sabe que mais de 400 mil desses paulistanos vivem em situação de perigo, em áreas de risco, segundo levantamento recente que o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) fez para a Prefeitura. Outro ponto preocupante, consequência do crescimento desordenado, é que 23 Em busca da melhor cidade grande parte da superfície da cidade se encontra impermeabilizada. Daí as enchentes tornarem-se um tormento recorrente nos meses de chuva. Também é perverso o movimento pendular que obriga grande parte da população a se deslocar diariamente das regiões periféricas para o centro expandido, rumo aos seus locais de trabalho. Assim, esses paulistanos perdem, por vezes, mais de três horas nesses deslocamentos. Apesar de todos esses problemas, São Paulo é uma cidade pujante. Grande centro financeiro, de negócios, de comércio, médico-hospitalar, de pesquisa e desenvolvimento, de formação de recursos de alto-nível, cultural, São Paulo tende a seguir sua vocação e obter um desempenho ainda melhor, caso as questões mencionadas acima sejam equacionadas. Nesse sentido, vale lembrar algumas ações que mostram o empenho em enfrentar esses desafios nas diversas frentes. De 2005 a 2010, na área habitacional, foram atendidas 206 mil famílias que viviam em áreas de risco e habitações precárias. No mesmo período, mais de 400 obras foram realizadas para eliminação ou redução do risco nessas áreas. Em 2011, a Prefeitura reservou uma verba de R$ 100 milhões para a realização de 110 intervenções de pequeno e médio portes nos setores mais críticos. Além dessas iniciativas, que respondem no curto e no médio prazo a esses desafios, São Paulo vem adotando também propostas que visam o desenvolvimento urbano sustentável. Merece destaque a Lei de Mudança do Clima, de 2009, pioneira e inovadora, que estabeleceu metas para a redução das emissões de gases de efeito estufa, em relação ao patamar expresso no inventário realizado e concluído pela Prefeitura em 2005. Estabelece diretrizes para as ações nas áreas de energia, uso do solo, construção, resíduos sólidos, transporte e saúde. Outra iniciativa já tomada é o plano municipal de manejo de águas pluviais, em desenvolvimento desde novembro de 2010, com apoio da Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica, da USP. Esse plano busca criar as metodologias para que se encontre, no longo prazo, a melhor combinação de medidas, incluindo legislação, renaturalização de córregos, parques lineares, controle de assoreamento, obras hidráulicas, entre outras, para as 100 bacias municipais. Ao mesmo tempo, desenvolvemos e/ou implementamos projetos estratégicos que se concretizarão de forma completa no longo prazo. As novas operações urbanas propostas – Lapa-Brás, Mooca-Vila Carioca e Rio Verde-Jacu Pêssego – têm por objetivo promover a ocupação de áreas centrais dotadas de infraestrutura, 24 Gilberto Kassab próximas a eixos de transporte coletivo, e também o desenvolvimento econômico da Zona Leste. O Projeto da Nova Luz, já com o respaldo da lei da Concessão Urbanística, é simbólico das iniciativas do poder público para a requalificação e reocupação do Centro. No mesmo sentido, promovemos as revitalizações do Parque Dom Pedro II e do Vale do Anhangabaú, incluindo a Praça das Artes, o programa Renova Centro, que prevê a destinação de 53 prédios para habitação principalmente de baixa renda, e a reabilitação da Biblioteca Mario de Andrade. Assim, em praticamente todos os serviços implantados pela nossa gestão, cuidamos do presente e olhamos para o futuro. Atendemos aos problemas imediatos, como a verificação da situação dos bueiros, o corte de grama, a limpeza e a pintura de guias. Ao mesmo tempo, demos o exemplo do que deve ser feito, para que os futuros administradores da cidade tenham um padrão de conduta administrativa. O ambiente entendido em seu sentido mais amplo Confiei na minha equipe de secretários e subprefeitos, mas fui até eles, regularmente, para ver de perto o que estava sendo feito, para discutir um detalhe, sugerir ou determinar modificações. Como já disse, como prefeito fui todos os dias a algum ponto da cidade, inclusive aos sábados e domingos. Saí para ver de perto as obras em andamento, para conversar com os subprefeitos e outros funcionários. Confiei na minha equipe de secretários e subprefeitos, mas fui até eles, regularmente, para ver de perto o que estava sendo feito, para discutir um detalhe, eventualmente para sugerir ou determinar modificações que me pareciam apropriadas. Penso que, numa metrópole de mais de 11 milhões de habitantes, o prefeito deve adotar o mesmo estilo de prefeitos mais atentos de cidades menores. É 25 Em busca da melhor cidade Ao me passar o cargo, Serra comentou que sentia não ter avançado, como gostaria, no combate à poluição visual. Peguei essa “deixa”, como se diz no teatro, e tomei as providências que resultaram Lei Cidade Limpa. na 26 importante ter uma noção bem clara de tudo o que está acontecendo, para tomar as providências mais indicadas em cada caso. Nos serviços de zeladoria, por exemplo, cuidamos também do nosso objetivo de ter uma São Paulo cada vez mais bem cuidada, florida e limpa. Poda e remoção de árvores, limpeza de bocas de lobo, recapeamento de ruas e serviço de tapa-buraco, manutenção de áreas ajardinadas, varrição de ruas e coleta de lixo - tudo isso faz parte dos serviços de zeladoria nas 31 Subprefeituras de São Paulo. Nasci e fui criado em São Paulo. Ao longo de cinco décadas pude acompanhar o crescimento da cidade. Lembro que, quando criança, o bairro onde morava com minha família era cortado por uma via mais larga, chamada de Estrada da Boiada, nome pelo qual é até hoje conhecida pelos moradores mais antigos. A designação fazia sentido, pois ali de fato passavam os bois a caminho do matadouro. Estou falando de uma São Paulo que ainda guardava vestígios da vida rural. Falo de quando o ar da cidade era limpo, a frota de veículos limitava-se a poucas dezenas de milhares, havia sinais de vida nos principais rios paulistanos. Infelizmente, acompanhei a deterioração causada pela ocupação desordenada do solo urbano, a multiplicação acelerada dos veículos em circulação, a proliferação das favelas e das habitações improvisadas às margens de córregos, junto aos mananciais, à beira das encostas. Criança, conheci os últimos vestígios de uma São Paulo ainda humana. Adolescente, assisti ao desaparecimento daqueles vestígios. Nos meus tempos de estudante de Engenharia e de Economia na Universidade de São Paulo, na passagem da década de 1970 para a de 80, a cidade já Gilberto Kassab aparecia nas listas das cidades mais poluídas do mundo. Foi o período em que aconteceu o despertar do mundo para a questão ecológica, a partir da conferência da ONU em Estocolmo, em 1976. Nos meus sonhos de jovem, eu imaginava um dia ter a oportunidade de contribuir para mudar a maneira como o mundo via São Paulo. Já na época, entendia o meio ambiente em seu sentido mais amplo, que abrange o ar que respiramos, a paisagem urbana, o nível do som nas vias públicas, a qualidade da água – a qualidade de vida, enfim. A oportunidade, felizmente, surgiu em março de 2006, ocasião em que assumi a Prefeitura. Ao me passar o cargo, meu antecessor, José Serra, comentou que sentia muito não ter avançado, como gostaria, no combate à poluição visual. Peguei essa “deixa”, como se diz no teatro, e tomei as providências que resultaram na Lei Cidade Limpa aprovada pela Câmara Municipal em 2007. Os especialistas que consultei, antes de apresentar à Câmara o projeto da Lei Cidade Limpa, me disseram que só havia uma posição capaz de garantir o êxito nessa tarefa: a mais radical de todas, que implicaria proibir, pura e simplesmente, todos aqueles imensos outdoors e luminosos espalhados pelas principais ruas e avenidas de São Paulo. Por que era essa a única saída? Porque a sucessão de normas baixadas pelas gestões anteriores havia criado um emaranhado legal que nem os próprios fiscais conseguiam desembaraçar. Isso deixava brechas para a proliferação da propaganda agressiva, selvagem mesmo, gerando uma permissividade visual que levou a paisagem urbana de São Paulo a ser completamente desfigurada. O radicalismo inédito da Lei Cidade Limpa teve o efeito imediato de ser entendido pelos fiscais e, melhor ainda, foi entendido e aceito pela população de São Paulo. Com o decidido apoio da opinião pública, o projeto chegou à Câmara Municipal e logo recebeu aprovação praticamente unânime (só um vereador ficou contra). Aprovada em 2007 e colocada em prática desde o início de 2008, a lei resgatou a auto-estima do paulistano. Pela primeira vez em mais de três décadas, São Paulo entrava para uma lista positiva do repertório ambiental internacional, como a primeira metrópole do mundo que conseguiu êxito rápido e efetivo no combate à poluição visual. Fazia muitos anos que não se via, na cidade de São Paulo, aprovação tão efetiva para uma lei. Todos os principais jornais deram editoriais apoiando. Intelectuais de prestígio, como o cineasta Fernando Meireles, publicaram artigos de apoio. As prin- 27 Em busca da melhor cidade cipais entidades representativas do empresariado e dos trabalhadores apoiaram. Urbanistas daqui e do exterior se manifestaram a favor. Dezenas de publicações internacionais deram reportagens extensas. Naqueles primeiros meses de 2008, em minhas constantes visitas aos diferentes bairros de São Paulo, senti a forte emoção de constatar que mesmo os comerciantes das periferias mais afastadas estavam mudando suas placas, seus outdoors, seus luminosos. Todos, em todos os bairros, estavam acatando a Lei Cidade Limpa. Os bons resultados no combate à poluição visual me animaram a enfrentar os outros tipos de poluição. A poluição do ar, por exemplo, tem sido combatida com o programa Ecofrota, conjunto de ações de melhoria do combustível utilizado na frota de ônibus municipal. Ampliamos a frota de ônibus movidos a etanol – agora com 60 veículos. Além de São Paulo, apenas Estocolmo, na Suécia, desenvolve operação comercial de ônibus movidos a etanol. Estamos entre as poucas cidades do mundo escolhidas para viabilizar o Projeto BEST – BioEthanol for Sustainable Transport, ou Etanol para o Transporte Sustentável. Não nos esquecemos, também, de dar combate ao combustível adulterado, em parceria com autoridades estaduais e federais, o que foi feito sistematicamente desde 2007 como parte de todo um conjunto de medidas concretas, tomadas para melhorar a qualidade do ar que respiramos na cidade. Os ônibus movidos a etanol reduzem em até 90% a emissão de material particulado (fumaça preta) na atmosfera, em relação aos coletivos movidos a diesel. Além disso, a utilização de álcool diminui em 80% a emissão de gases responsáveis pelo aquecimento global, e reduz em 62% a emissão de óxidos de nitrogênio (NOx), e não libera enxofre, o causador da chuva ácida. São Paulo também já tem 1.200 ônibus circulando a partir da mistura de 20% de biodiesel de grãos (B20) ao diesel comum, o que reduz em 22% a emissão de material particulado, em 13% de monóxido de carbono e em 10% os hidrocarbonetos. Cabe assinalar, nesse contexto, o fator econômico, como registram os estudos da Universidade de São Paulo: a substituição do diesel por álcool representa uma economia de aproximadamente 200 milhões de dólares na área da Saúde. Ou seja: menos poluição do ar representa pulmões mais limpos e uma expressiva economia nas despesas com a saúde. Outros 160 ônibus circulam pela Capital com 10% de diesel de cana-de-açúcar em 28 Gilberto Kassab mistura com o diesel comum. Os testes realizados anteriormente apresentaram uma redução de até 41% de fumaça preta, comparado com os veículos abastecidos com diesel B5. Com a mesma finalidade, na frota de trólebus foi iniciada a troca de 140 carros – ou 70% da frota de 200 trólebus. A SPTrans investiu ainda na renovação da frota da Cidade, realizando a troca dos veículos antigos por modelos de tecnologia mais nova, com maior capacidade e menos poluentes. Dos 15 mil ônibus da frota, 13.330 (ou 85%) foram renovados. Foi, como se percebe, um esforço constante e consistente pela melhora do ar da cidade, a partir da melhora do combustível utilizado pela frota de ônibus. Nunca é demais lembrar, também, que todos os ônibus públicos de São Paulo já utilizam um tipo mais limpo de diesel, o S50 B5. Em 2010, começamos a fazer a inspeção ambiental de todos os veículos em circulação pela cidade de São Paulo. São mais de sete milhões de veículos que passaram a circular dentro de padrões sustentáveis de emissão de gases. Implantamos essas medidas gradativamente, mas com toda segurança, sem “fogo de palha”, como se diz. Afirmo, sem medo de cair no exagero, que a cidade de São Paulo teve em nossa gestão um dos maiores programas ambientais do mundo na área de transportes. Bom para os paulistanos, bom para o planeta. Agora, a comunidade internacional já sabe que São Paulo, por tantos anos estigmatizada como uma das cidades mais poluídas do mundo, hoje leva a sério esse compromisso com o planeta. Depois de Nova York em 2007 e de Seul em 2009, São Paulo foi, em 2011, a sede da Cúpula da C-40, a entidade Em 2010, começamos a fazer a inspeção ambiental na cidade. São mais de sete milhões de veículos que passaram a circular dentro de padrões sustentáveis de emissão de gases. 29 Em busca da melhor cidade Com o novo modelo de limpeza urbana, que reúne as 40 maiores cidades do mundo. O foco da C-40 é a sustentabilidade, é a preservação da qualidade de vida do ser humano e de todos os seres vivos. Mais atenção às ruas de nossa cidade garantimos que a cidade fique mais limpa, de domingo a domingo. Além do saudável aspecto de limpeza, consolida-se a prevenção contra as enchentes e alagamentos, tão comuns no verão. 30 Sempre com a preocupação de zelar pela cidade onde nasci e que tive a honra de administrar, tomei providências para aumentar os nossos índices de limpeza. Nesse sentido, sinto-me especialmente feliz por ajudar São Paulo a ficar livre de uma tradição que se arrastava há décadas: o lixo acumulado pelas ruas na virada de domingo para segunda-feira. Isso acabou, na capital paulista, desde a segunda quinzena de dezembro de 2011, quando estive na Praça General Fernando Valente Pamplona, em Santana, para acompanhar o início dos trabalhos de limpeza pública aos domingos. Por toda a cidade, a partir de então, a limpeza pública passou a ser feita também aos domingos. O novo modelo implantou uma limpeza geral, todos os dias da semana, que inclui, além da varrição, os serviços de pintura de guias e a remoção de propagandas irregulares em postes. São parte do novo modelo, ainda, os serviços de remoção de entulho ou grandes objetos, limpeza e desobstrução de bueiros e bocas de lobo, instalação de novas lixeiras, higienização das ruas e manutenção e remoção dos resíduos dos 46 Ecopontos em funcionamento, que passaram a ficar abertos de segunda a sábado, das 6h às 22h, e também aos domingos, das 6h às 18h. Dessa maneira, garantimos que a cidade fique mais Gilberto Kassab limpa, de domingo a domingo. Além do saudável e civilizado aspecto de limpeza, consolida-se a prevenção contra as enchentes e alagamentos tão comuns no verão. Como já repeti várias vezes, essas providências não bastam para garantir proteção total contra os fenômenos da natureza, mas tenho certeza de que fizemos tudo o que era possível para evitar maiores transtornos para a população. Pelo que foi implantado, a cidade passou a ser dividida em duas áreas. A área Sudeste é atendida pelo consórcio Soma - Soluções e Meio Ambiente. A área Noroeste é atendida pelo consórcio São Paulo Ambiental. Os dois consórcios podem fazer programações harmônicas no trabalho de limpeza. Desta forma, passou a existir uma soma de esforços, para que o resultado seja potencializado. Os consórcios trabalham sob a supervisão permanente dos agentes das 31 Subprefeituras de São Paulo. Os agentes municipais têm como suporte as novas tecnologias adquiridas pelas secretarias de Serviços e de Coordenação das Subprefeituras para tornar mais ágil e eficaz o trabalho de fiscalização. As motolinks, equipadas com câmeras de vídeo, fazem a vistoria dos serviços de limpeza. Com câmeras que descem dentro de bueiros, conseguem verificar a qualidade da retirada de resíduos no interior desses locais. Outro diferencial do modelo é a abertura para a participação do munícipe, que tem agora a oportunidade de fazer críticas e sugestões por telefone ou pela internet. O cidadão pode de fato participar. Estimulamos todos a contribuir na medição da qualidade do serviço das empresas. Isso quer dizer que, além do conjunto de fiscais das Subprefeituras, podemos contar com a participação dos 11 milhões de moradores da cidade. Toda a população pode acompanhar com atenção a implantação do novo modelo de limpeza urbana, que tem alguns aspectos realmente inéditos. Como todo paulistano atento à paisagem de nossa cidade, ficava incomodado com o fato de nossas estátuas e monumentos não receberem a atenção devida e merecida. Agora, os consórcios encarregados da limpeza urbana têm , também, a responsabilidade de lavagem e conservação de logradouros e monumentos. Chamo a atenção para um ponto importante: o fornecimento e a manutenção de lixeiras, também a cargo dos dois consórcios. As prestadoras desse serviço estão colocando à disposição da população nada menos que 150 mil novas lixeiras, todas confeccionadas com material reciclável e equipadas com cinzeiro. Cada uma delas é identificada com chip ou código de barras que facilite sua identificação, por 31 Em busca da melhor cidade meio de leitura ótica. Desse modo, a Prefeitura fica mais capacitada para fiscalizar a manutenção e a higienização das lixeiras. Ressalto que a divisão da cidade em duas regiões, Sudeste e Noroeste, é a mesma que já funcionava no serviço de coleta de lixo domiciliar. É o tipo de sintonia que estava faltando em nossa cidade, em matéria de limpeza urbana. O resultado da implantação desse novo modelo, como já pôde ser observado em todo o primeiro trimestre de 2012, é a melhor qualidade dos serviços prestados na cidade. Revitalização da área central é tendência mundial Em quase todas as grandes cidades do mundo, uma prioridade que sobressai, nas últimas décadas, é a revitalização da região central. Aconteceu em São Paulo, como em dezenas de outras metrópoles, a migração da área residencial para pontos mais distantes do centro. Esse fenômeno provoca outras migrações, a do comércio, a das empresas em geral, dentro da tendência natural de aproximação entre local de trabalho e de moradia. Esse deslocamento deixa atrás de si, esvaziada, uma região com toda a infraestrutura de serviços, o centro. Vem daí a tendência de resgatar os centros históricos das maiores cidades. Por isso lançamos em São Paulo o projeto Nova Luz, de revitalização de uma área bastante degradada que constrangia a todos os paulistanos com as cenas degradantes de dependentes de drogas a zanzar pelas imediações da Estação da Luz. Desde seus primeiros meses a nossa gestão procurou soluções para aquela região nobre do centro de São Paulo. Trabalhamos a sério para combater os problemas que geraram o termo “cracolândia”, usado para designar aquele ponto da cidade em que tantos jovens, e até mesmo crianças, perambulam sem rumo, sob o efeito de drogas, especialmente o crack, do qual veio o nome pejorativo daquela região. Especialistas no assunto sustentam que o crack é a mais perigosa das drogas proibidas, porque custa barato e provoca rapidamente uma forte dependência. Na luta contra essa situação, lançamos na região, no início de 2012, uma importante inovação: o Complexo Prates, primeiro equipamento que reúne ações de Saúde Pública e de Assistência Social no tratamento e recuperação de dependentes químicos em situação de rua e vulnerabilidade social. O Complexo Prates 32 Gilberto Kassab serve para mostrarmos às pessoas que estão na rua que existe mais uma porta aberta para elas, com programas de assistência que podem ser a solução para seus problemas. Construído no bairro do Bom Retiro, o Complexo Prates é um centro especial de acolhimento, dotado de Espaço de Convivência Dia para Adultos, abrigo para menores, Centro de Acolhida 24 horas, Centro de Atenção Psicossocial III Álcool e Drogas (CAPS III AD) e a Assistência Médica Ambulatorial (AMA) 24 horas. Aliás, em relação à assistência social, tenho orgulho do programa que criamos. Ele mudou a história das ações da Prefeitura nesse setor, com a implantação do Sistema Único de Assistência Social e a ampliação do atendimento à população carente. Instalamos por toda a cidade 46 Centros de Referência da Assistência Social – CRAS, que recebem mensalmente 55 mil pessoas, e 18 Centros de Referência Especializado da Assistência Social – CREAS, que recebem 11 mil pessoas por mês. A rede municipal de Assistência Social passou a ter 1.206 serviços para toda a população carente da cidade, com mais de um milhão de atendimentos. Claro que o projeto Nova Luz não se resume a isso. Ele é uma intervenção urbana de grandes proporções. Em maio de 2010 promovemos a primeira reunião com o Consórcio Concremat/City/AECOM/ FGV. Começavam ali os entendimentos práticos com os vencedores da licitação para a elaboração do projeto urbanístico da Nova Luz. A definição do consórcio encarregado de preparar o projeto de revitalização da Nova Luz foi um primeiro passo necessário e vital. O Complexo Prates serve para mostrarmos às pessoas que estão na rua que existe mais uma porta aberta para elas, com programas de assistência que podem ser a solução para seus problemas. 33 Em busca da melhor cidade Com planos de longo prazo, a cidade deixará de ser espectadora para se tornar protagonista de seu desenvolvimento. 34 Acho oportuno ressaltar que a licitação da Nova Luz apresentou um diferencial: em vez de analisar uma proposta concreta, começamos por avaliar a capacidade técnica dos licitantes. Depois, essa capacidade foi confrontada com as características do projeto a ser executado. Demos pontos, por exemplo, para a experiência da empresa em intervenções do mesmo porte, para a prática na elaboração de estudos de impacto ambiental e para o currículo da equipe. Entre os projetos apresentados pelo consórcio vencedor estava o Lower Lea Valley, plano de reurbanização destinado a recepcionar a Olimpíada de Londres, realizada em 2012. Também foi apresentado o plano de revitalização da região central de Manchester, na Inglaterra. Tenho certeza de que fizemosuma escolha criteriosa, com reais possibilidades de resultar num plano que vai viabilizar a intervenção sonhada para a Nova Luz. Com a elaboração do projeto urbanístico, demos início à segunda fase do processo de intervenção da Nova Luz. A primeira fase foi a aprovação pela Câmara Municipal, em 2009, da lei que autoriza a concessão urbanística. Avançamos etapa por etapa, com toda segurança. Esse é um dos projetos que iniciei, como prefeito, consciente de que a festa de inauguração será de meus sucessores. Tenho consciência, igualmente, de que deixarei para eles muitos problemas que herdei e não pude solucionar por inteiro. São Paulo continuará a crescer, impulsionada pela sua pujança econômica e pela evolução demográfica de sua região metropolitana, à razão de cerca de 200 mil novos habitantes ao ano. O desenvolvimento de um plano estratégico e de projetos de longo prazo é essencial para que esse crescimento ocorra de forma equilibrada, consistente, sustentável. Só assim a cidade deixará de ser espectadora para se tornar protagonista de seu desenvolvimento. 35 Marcel Solimeo Economista e consultor, é diretor do Instituto de Economia Gastão Vidigal (IEGV), da Associação Comercial de São Paulo, e da SLB Consultores Empresariais. Ulisses Gamboa Economista da Associação Comercial de São Paulo e professor e pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). 36 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa O Município no mundo das f i n a n ç a s públicas 37 Em busca da melhor cidade 38 O Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Brasil é uma república federativa formada pelo governo central, os Estados e o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, conforme o artigo 18 da Constituição de 1988. Assim, poder-se-ia supor que os Municípios brasileiros gozam de plena autonomia, tanto no que se refere às suas fontes de receitas quanto no tocante ao gasto público. Essa, no entanto, não é a realidade, pois a própria Constituição define a estrutura tributária dos Municípios e impõe percentuais compulsórios para determinados gastos, como é o caso da educação e da saúde. Estabelece também normas para a elaboração do Orçamento, proíbe a realização de despesas sem autorização da Câmara Municipal e determina maior participação legislativa no processo de elaboração e execução orçamentária. As regras de finanças públicas estabelecidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal impõem limites para o gasto com pessoal e para o endividamento. Por outro lado, o Congresso tem aprovado leis que fixam valores mínimos para a remuneração de algumas categorias de agentes públicos, como a de professores, sem levar em consideração a capacidade de cada unidade da Federação de cumprir com essa determinação. A fixação do salário mínimo nacional não leva em conta a capacidade financeira dos Municípios, acarretando, para muitos deles, desequilíbrios em suas contas. Mais importante, no entanto, é o fato de que a participação dos Municípios no total da arrecadação tributária é muito baixa, o que faz com que sua receita própria seja insuficiente para o atendimento das necessidades básicas de sua população, tornando-os dependentes de transferências, compulsórias e voluntárias, o que limita em muito sua autonomia. No tocante às transferências não obrigatórias, cria-se uma dependência política que, muitas vezes, compromete o poder decisório do Município, pois elas só são liberadas para finalidades específicas, nem sempre condizentes com as prioridades locais. Da arrecadação tributária total, a União tem participado com cerca de 24% do PIB, os Estados perto de 9,5%, restando ao conjunto dos Municípios brasileiros um percentual próximo a apenas 1,9% do Produto Interno Bruto, conforme Tabela na próxima página. 39 Em busca da melhor cidade Tabela 1 Evolução da Arrecadação por Esfera Governamental: 1995-2010 (% PIB) Ano União Estados Municípios Total 1995 16,8% 8,2% 1,4% 26,4% 1996 17,7% 8,0% 1,4% 27,2% 1997 18,1% 7,8% 1,5% 28,1% 1998 18,9% 7,7% 1,5% 28,1% 1999 19,9% 7,8% 1,5% 29,2% 2000 20,8% 8,4% 1,5% 30,7% 2001 21,7% 8,8% 1,5% 32,0% 2002 22,8% 8,9% 1,5% 33,2% 2003 22,1% 8,9% 1,7% 32,7% 2004 22,8% 9,1% 1,7% 33,6% 2005 24,2% 9,3% 1,7% 35,2% 2006 24,1% 9,4% 1,7% 35,2% 2007 24,6% 9,2% 1,8% 35,6% 2008 24,7% 9,4% 1,8% 35,9% 2009 23,8% 9,4% 1,9% 35,0% 2010 24,1% 9,5% 1,9% 35,5% Fonte: Confederação Nacional de Municípios (2011). Pode-se observar que, embora todos os níveis de governo tenham se beneficiado do aumento da Carga Tributária como proporção do PIB, o avanço maior foi da União, não apenas porque a maior parte de seus impostos cresce mais do que proporcionalmente ao crescimento das atividades econômicas, como, também, pela possibilidade de elevar alíquotas de alguns tributos, como o IOF. Dos impostos municipais, só a receita do ISS se beneficia diretamente da expansão da economia, mas esse tributo é importante apenas nas cidades maiores como fonte de arrecadação. Em 2010 a receita tributária da União cresceu 16,5%; mesmo percentual de acréscimo se verificou nos Estados, enquanto os Municípios tiveram aumento de 15,2 % no total dos impostos recebidos. Assim, a União aumentou sua participação no “bolo tributário” de 63,8% do total 40 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa em 1995, para 67,5% em 2010, enquanto os Estados tiveram queda de 31% para 27,5%, no período, e os Municípios mantiveram mais ou menos constante sua parcela na arrecadação, em torno de 5,0%. De outro lado, o governo Federal tem se utilizado do aumento das Contribuições e de impostos não partilhados para não ter que repartir com Estados e Municípios o ganho de receita decorrente. Ao mesmo tempo, concede unilateralmente reduções de impostos, como o IPI para alguns setores, afetando a parcela da arrecadação que deveria ser partilhada. Lei de Responsabilidade Fiscal e Autonomia Municipal O Brasil viveu um longo período de inflação extremamente elevada, entremeado por “choques econômicos” que apresentavam resultados aparentemente positivos no curto prazo, mas que logo perdiam sua eficácia e, além do retorno da inflação, provocavam inúmeros problemas tanto para as empresas, devido às distorções dos preços relativos, quanto para as finanças do setor público, especialmente com as fortes demandas por correções das defasagens salariais. Além disso, a inflação corroía a arrecadação dos governos, devido ao chamado “Efeito Tanzi”, isto é, as receitas não cresciam na mesma velocidade dos preços, mas muitas despesas subiam acompanhando a inflação. Embora o mesmo efeito ocorresse com relação a outras despesas, os ajustes pelo lado dos gastos eram mais rápidos e intensos do que o aumento da receita. Um dos fatores que alimentavam o processo inflacionário era o grande descontrole das finanças públicas, maior no Governo Federal e nos Estados do que na maioria dos Municípios. Vários programas de combate à inflação, que não consideraram essa variável, fracassaram, como ocorreu com diversos Planos adotados – Cruzado, Collor, Bresser, Verão – e outras tentativas intermediárias. A partir do Plano Real, esse problema passou a ser atacado em 1995, com a Resolução 69 do Senado Federal, que estabeleceu limites para o saldo das AROs – operações de Antecipação de Receita Orçamentária. Iniciou-se então um cerco ao descontrole das contas públicas, que foi aprimorado em 1998 com a Resolução 78 do Senado Federal, que transferiu ao Banco Central o controle dos limites para operações de crédito e garantias de Estados e Municípios. Em 1999, como alguns Estados e Municípios estivessem praticamente “quebrados”, por não terem mais acesso a crédito, foi realizado um amplo esquema de refinanciamento dos débitos por parte da União, com prazo de 30 anos para amortização, juros de 9% capitalizados mensalmente, mais correção monetária pelo IGP-DI. 41 Em busca da melhor cidade A concessão de incentivos fiscais para atrair empresas pode ser válida enquanto adotada por um único município, mas perde sua eficácia se todos fizerem o mesmo. 42 Havia a possibilidade de redução da taxa de juros para 7,5% no caso de antecipação de no mínimo 30% de amortização no prazo de 30 meses. Limitouse a 13% da receita líquida o valor dos pagamentos, mas proibindo o acesso a novos financiamentos. Todo esse esquema foi consolidado com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que incorporou as regras anteriores e fixou novos parâmetros para a administração fiscal, estabelecendo como objetivo o equilíbrio e a transparência nas contas públicas. Passou a exigir a elaboração do PPA (Plano Plurianual), da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), da LOA (Lei Orçamentária Anual), estabeleceu limites para os “Restos a Pagar”, para as AROs, e reafirmou o teto de 60% da receita corrente líquida para despesas com pessoal. Fixou como meta o quociente de 1,2 entre a Dívida Consolidada Líquida e Receita Corrente Líquida para permitir novo endividamento. Embora os parâmetros fixados para os gastos com pessoal em proporção à receita estivessem bem acima do efetivamente praticado pela grande maioria dos Municípios, e as regras para o refinanciamento das dívidas também não os atingisse, para algumas cidades maiores representaram a necessidade de um pesado esforço fiscal. Como a possibilidade de atuação sobre a receita era limitada, especialmente nos períodos de maior retração da economia, e com a obrigação de pagamento de valores elevados por conta dos juros e serviços das dívidas, o ajuste teve que ser feito pelo lado das despesas, resultando, no geral, em cortes nos investimentos e, em consequência, na deterioração dos serviços públicos. As regras de administração pública consolidadas na LRF, e a renegociação das dívidas dos Municípios Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa com a proibição de novo endividamento, afetaram significativamente a autonomia municipal. Apesar disso - e mesmo limitadas pela Constituição na capacidade de criar impostos, e com dificuldades políticas para aumentar os existentes - muitas localidades procuraram melhorar sua economia com base em incentivos ficais para a atração de investimentos, como a isenção ou redução do IPTU ou de algumas taxas. Em alguns casos desencadeou-se uma “guerra fiscal” explícita, pelo uso de alíquotas menores de ISS, em cidades próximas às de maior desenvolvimento. A concessão de incentivos fiscais para atrair empresas pode ser considerada o que Keynes chamava de “sofisma de composição” – ou seja, a medida pode ser válida enquanto adotada por um único Município, mas perde sua eficácia se todos fizerem o mesmo, retornando ao ponto inicial de competição, mas com perda de receita para todos. O benefício será apenas para as empresas contempladas, à custa dos demais contribuintes. O exemplo clássico do “sofisma de composição” é o que se dá em um estádio: se um dos espectadores se levantar para ver melhor o jogo, conseguirá seu intento, mas se todos os demais fizerem o mesmo, tudo voltará à situação inicial, com a desvantagem de que todos estarão em pé. Não há dúvida de que, do ponto de vista macroeconômico, a Lei de Responsabilidade Fiscal foi um instrumento muito importante ao disciplinar o gasto público, assim como o refinanciamento das dívidas de Estados e Municípios impediu a insolvência de muitos. Parece claro, também, que aumentou de forma irreversível o poder da União, afetando fortemente o regime federativo. Somente com um novo e improvável “pacto federativo” se poderá recuperar a autonomia efetiva dos Municípios, mas, para isso, seria necessário aumentar a parcela municipal na arrecadação tributária, de forma compatível com as responsabilidades que lhe são atribuídas. Trata-se de decisão extremamente complexa, não apenas em função dos interesses estabelecidos, como, sobretudo, devido às fortes disparidades regionais e à fraqueza arrecadatória de grande número de Municípios, especialmente os de menor população. Segundo o IBGE, apenas 0,5% dos Municípios possuem população superior a 500 mil habitantes, mas respondem por 61% da arrecadação tributária do País, enquanto 25,6% das unidades municipais possuem menos de 5.000 habitantes e são responsáveis por apenas 0,7% da arrecadação fiscal brasileira. A análise da evolução das finanças municipais mostra o alto grau de dependência fiscal da maioria dos Municípios. 43 Em busca da melhor cidade Situação Fiscal Municipal Evolução dos Balanços Fiscais Municipais A Tabela 2 mostra a evolução dos balanços fiscais da soma total dos Municípios brasileiros entre 1998, dois anos antes da implementação da LRF, e 2010, último ano com informações oficiais do FINBRA-Tesouro Nacional. Tabela 2 Balanço Orçamentário da Soma dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (R$ Milhões de 2010) 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Balanço Corrente 80.313 82.290 106.226 112.662 201.952 115.269 126.861 140.202 155.918 166.232 179.469 185.870 198.085 Balanço de Capital -10.339 -11.386 10.216 -12.651 -12.752 -15.711 -14.993 -13.675 -17.141 -19.154 -20.623 -16.572 -18.112 Balanço Nominal 69.973 70.903 116.442 100.011 189.200 99.558 111.868 126.526 138.776 147.078 158.846 169.298 179.973 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Com relação ao balanço fiscal corrente, com a diferença entre receitas e despesas correntes, observa-se que durante o período 1998-2010 os Municípios brasileiros tomados em conjunto apresentaram resultados positivos, o que significa que foram capazes de gerar poupança. Por outro lado, a Tabela 2 também permite apreciar que, durante o mesmo período considerado, houve déficits no balanço de capitais, que representam a diferença entre receitas e despesas de capital. A diferença entre os saldos da conta corrente e de capital corresponde ao balanço orçamentário nominal. Essa diferença, como mostra a Tabela anterior, é positiva para a soma dos Municípios, indicando que foi gerada poupança corrente suficiente para financiar os déficits de capital, evidenciando situação fiscal relativamente confortável. Nesse sentido, inclusive, poder-se-ia afirmar que esses resultados positivos contribuíram para a geração de superávits primários do Governo Geral, o que, ao longo desse período, ajudou a reduzir suas necessidades de financiamento e a relação Dívida Pública-PIB, consolidando a situação fiscal brasileira. Estrutura e Evolução das Receitas Próprias Municipais e Transferências Intergovernamentais Durante o período 1998-2010, tal como mostra a Tabela 3, verifica-se crescimento acumulado expressivo em termos reais (valores constantes de 2010) para todos os tipos de receitas fiscais, destacando-se o incremento observado nas transferências (113,7%). 44 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Contudo, e como é de praxe nas finanças públicas municipais brasileiras, ao longo do intervalo de tempo considerado, há um forte desequilíbrio na recepção da receita própria e de transferências na esfera municipal. Essa análise será feita a seguir. Tabela 3 Evolução Real Acumulada das Receitas Fiscais (Valores Constantes a preços de 2010) dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (%) Especificação 1998 2010 Variação Acumulada 225.247 461.269 104,8% 1.1 Receitas Tributárias 46.828 81.583 74,2% - Impostos 104,0% 1. Receitas Correntes 36.821 75.098 IPTU 14.329 19.962 39,3% ITBI 3.425 7.364 115,0% ISS 19.067 40.049 110,0% 10.006 6.485 -35,2% 154.054 329.209 113,7% 74.519 145.566 95,3% Cota FPM 43.899 84.506 92,5% Cota ITR 535 719 34,5% SUS União 10.360 39.462 280,9% Outras Transferências da União 19.735 20.880 5,8% - Outras Taxas e Receitas Tributárias 1.2 Receitas de Transferência - Transferências da União - Transferências do Estado 75.464 110.927 47,0% Cota ICMS 51.208 90.627 77,0% Cota IPVA 7.739 14.025 81,2% Cota IPI Exportação 1.066 1.237 16,0% 15.451 5.039 -67,4% 15.655 65.487 318,3% 4.071 7.228 77,5% 1.3 Outras Receitas Correntes 24.363 50.478 107,2% 2. Receitas de Capital 21.132 22.877 8,3% 9.872 15.383 55,8% 246.378 484.146 96,5% Outras Transferências do Estado - Transferências do FUNDEP (Ex FUNDEF) - Outras Transferências Correntes - Transferências de Capital TOTAL Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Receitas Próprias Municipais Durante o período 1998-2010, a composição das receitas fiscais do conjunto total dos municípios evidencia que a maior parte dos ingressos provém de transferências federais e estaduais, correspondendo a menor parte à arrecadação própria municipal. De fato, como pode ser visualizado na Tabela 4, a participação da receita 45 Em busca da melhor cidade tributária própria nas receitas correntes em 2010 foi de 17,7%. Essa falta de autonomia fiscal se ampliou durante o período considerado, pois na mesma Tabela verifica-se que a importância das receitas tributárias era maior em 1998 (20,8%). Os resultados anteriores permaneceram praticamente inalterados, inclusive, se excluímos os municípios das capitais, que por sua natureza possuem maior poder gerador de receitas próprias. A divisão dos municípios por regiões, e até mesmo a exclusão de suas capitais, tampouco alterou o padrão de comportamento das finanças municipais ao longo do intervalo de tempo considerado. Tabela 4 Receitas Fiscais em Relação às Receitas Correntes dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (%) Especificação 1. Receitas Correntes Participação Receitas Correntes 1998 Participação Receitas Correntes 2010 100,0% 100,0% 1.1 Receitas Tributárias 20,8% 17,7% - Impostos 16,3% 16,3% IPTU 6,4% 4,3% ITBI 1,5% 1,6% ISS 8,5% 8,7% - Outras Taxas e Receitas Tributárias 4,4% 1,4% 1.2 Receitas de Transferência 68,4% 71,4% - Transferências da União 33,1% 31,6% 18,3% Cota FPM 19,5% Cota ITR 0,2% 0,2% SUS União 4,6% 8,6% Outras Transferências da União - Transferências do Estado Cota ICMS 8,8% 4,5% 33,5% 24,0% 22,7% 19,6% Cota IPVA 3,4% 3,0% Cota IPI Exportação 0,5% 0,3% 8,8% 4,5% - Transferências do FUNDEP (Ex FUNDEF) Outras Transferências do Estado 7,0% 14,2% - Outras Transferências Correntes 1,8% 1,6% 10,8% 10,9% 2. Receitas de Capital 1.3 Outras Receitas Correntes 9,4% 5,0% - Transferências de Capital 4,4% 3,3% Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. 46 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Transferências Intergovernamentais Por sua vez, de acordo com a Tabela anterior, a receita de transferências correntes respondeu, em 2010, por 71,4% das receitas fiscais correntes da soma dos Municípios brasileiros, mostrando aumento de importância durante o período considerado, pois em 1998 sua participação foi de 68,4%. Como é de se esperar, dada a característica redistributiva de todos esses repasses aos Municípios, em geral, quanto menor o Município, maior seria seu peso no conjunto das receitas correntes geradas. De fato, na Tabela 5 pode-se observar que as receitas de transferências das Regiões Norte e Nordeste representaram em 2010 a maior parte das receitas totais (81,6% e 82,8%, respectivamente), situando-se bastante acima dos percentuais registrados no Centro-Oeste, Sul e Sudeste (74,5%, 67,7% e 60,5%, respectivamente). Em outras palavras, a análise anterior estaria revelando que, aparentemente, as transferências estariam contribuindo para reduzir as importantes desigualdades regionais do País ao longo do período 1998-2010, embora, por outro lado, possam estar incentivando a manutenção de dependência fiscal por parte dos Municípios, que reduziram levemente sua dependência em relação às transferências correntes durante o mesmo intervalo de tempo. Nesse sentido, como argumentam Giambiagi e Além (2008), é sabido que esse esquema de repasses incentiva o aumento do número de Municípios, de tamanho cada vez menor, maximizando a recepção de recursos do Fundo de Participação Municipal (FPM). Com efeito, de acordo com os mesmos autores, entre 1980 e 2006 a quantidade de Municípios aumentou em 38%. Por sua vez, a receita de capital que é, em geral, determinada pelas transferências de capital, originadas na União e no Estado, costuma ser pouco representativa na determinação das receitas totais dos Municípios brasileiros. Por isso, optou-se por não realizar uma análise mais detalhada de sua evolução durante o período considerado. 47 Em busca da melhor cidade Tabela 5 Receitas Fiscais em Relação às Receitas Correntes dos Municípios Brasileiros por Regiões: 2010 (%) Região Norte Região Nordeste Região CentroOeste Região Sul Região Sudeste 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 1.1 Receitas Tributárias 11,9% 11,0% 15,3% 16,9% 26,0% - Impostos 10,9% 9,9% 14,1% 14,9% 24,5% IPTU 1,0% 1,7% 3,7% 4,4% 7,7% ITBI 0,6% 0,9% 2,0% 2,0% 2,1% ISS 7,9% 6,0% 6,6% 6,9% 12,7% 1,0% 1,0% 1,3% 2,0% 1,5% 1.2 Receitas de Transferências 81,6% 82,8% 74,5% 67,7% 60,5% - Transferências da União 37,5% 44,4% 33,5% 29,0% 20,5% Cota FPM 22,4% 27,2% 18,7% 18,2% 9,9% Cota ITR 0,1% 0,0% 0,7% 0,2% 0,1% 15,0% 17,2% 14,1% 10,6% 10,5% 22,2% 17,0% 26,6% 26,4% 28,1% Cota ICMS 19,1% 14,2% 21,7% 21,2% 22,7% Cota IPVA 1,8% 1,5% 2,6% 3,8% 4,3% Cota IPI Exportação 0,3% 0,1% 0,1% 0,5% 0,3% Outras Transferências do Estado 1,1% 1,2% 2,1% 1,0% 0,8% 18,9% 19,7% 12,3% 11,0% 10,8% - Outras Transferências Correntes 3,0% 1,7% 2,2% 1,3% 1,2% 1.3 Outras Receitas Correntes 6,5% 6,2% 10,2% 15,4% 13,5% Especificação 1. Receitas Correntes - Outras Taxas e Receitas Tributárias Outras Transferências da União - Transferências do Estado - Transferências do FUNDEP Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. 48 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Dada a maior importância das receitas de transferências na determinação das receitas totais dos Municípios, seria importante analisar brevemente sua evolução temporal durante o período considerado, assim como sua participação nos repasses totais (federais e estaduais). Em primeiro lugar, como também pode ser observado na Tabela 3, as maiores taxas de crescimento corresponderam às transferências da União (95,3%), principalmente as transferências relativas ao Sistema Único de Saúde – SUS (280,9%) e à cota-parte do FPM (92,5%). Também se destaca a evolução dos repasses do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB (318,3%) e das cotas parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – ICMS (77,0%) e do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA (81,2%). Com relação à participação nas transferências correntes entre 1998 e 2010 (Tabela 6), os maiores percentuais foram registrados para a cota parte do Fundo de Participação Municipal (FPM) e para a cota parte do ICMS. Trata-se de resultado importante, pois esses repasses são de uso flexível e não são vinculados, tendo aplicação universal. Também merecem destaque as transferências multigovernamentais do FUNDEB, que quase dobraram de importância, embora sua aplicação seja restrita ao ensino fundamental público na rede municipal de ensino. Despertar o espírito empreendedor local exige criatividade e trabalho. Isso reforça a necessidade de se procurar fortalecer a capacidade gerencial e administrativa dos gestores dos municípios. 49 Em busca da melhor cidade Tabela 6 Transferências em Relação às Receitas de Transferências Correntes dos Municípios Brasileiros: 1998 - 2010 (%) Especificação 1998 2010 100,0% 100,0% 48,4% 44,2% Cota FPM 28,5% 25,7% Cota ITR 0,3% 0,2% Outras Transferências da União 6,7% 12,0% 49,0% 33,7% Cota ICMS 33,2% 27,5% Cota IPVA 5,0% 4,3% Cota IPI Exportação 0,7% 0,4% Outras Transferências do Estado 0,7% 0,4% 10,2% 19,9% 2,6% 2,2% Receitas de Transferência - Transferências da União - Transferências do Estado - Transferências do FUNDEP (Ex FUNDEF) - Outras Transferências Correntes Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Uma forma alternativa de analisar a evolução da importância das transferências sobre as receitas fiscais municipais é calcular o Grau de Independência Financeira Municipal (GIFM), definido pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (FIPE), pela razão entre as receitas tributárias totais (RTRIB) e a soma dessas com as receitas totais de transferências (RTRANSF): RTRIB GIFM = (RTRIB + RTRANSF) 50 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa O significado do indicador anterior é bastante intuitivo, pois capta a evolução relativa das receitas próprias e dos repasses da União e dos Estados. No caso hipotético extremo em que o Município não recebesse nenhum tipo de transferência, GIFM seria igual a 1, enquanto no outro pólo, se o Município não fosse capaz de gerar nenhum tipo de arrecadação própria, GIFM seria zero. Desse modo, quanto maior o grau de independência do Município, mais próximo de 1 estará o indicador, e viceversa. O Gráfico 1 mostra a evolução do GIFM durante o período considerado para o total dos Municípios e para a soma que exclui as capitais. Tal como pode ser observado, apesar de haver diferenças de nível, no sentido de que a exclusão das capitais, de base tributária mais forte e máquina burocrática mais eficiente, reduz ainda mais o grau de independência financeira dos Municípios, sua evolução foi praticamente igual durante o período 1998-2010. Gráfico 1 Evolução do Grau de Independência Financeira Municipal (GIFM): Total e Exclusive Capitais 1998 – 2010: (%) 0,240 0,220 0,200 0,180 0,160 0,140 0,120 0,100 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 SOMA MUNICÍPIOS SOMA MUNICÍPIOS EXCLUSIVE CAPITAIS Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. 51 Em busca da melhor cidade Durante o intervalo 1998-2000, houve uma forte redução da independência fiscal, provocada pelos aumentos extraordinários de receitas fiscais da União, que automaticamente incrementaram os repasses obrigatórios, no contexto do ajuste fiscal implementado a partir de 1994, durante o Plano Real. Após um aumento temporário do GIFM em 2002, ao esgotar-se a contribuição das fontes não tradicionais de arrecadação federal, a autonomia fiscal permaneceu praticamente inalterada, estabilizando-se em patamares relativamente baixos (0,20 para o total dos Municípios e 0,15 para a soma que exclui as capitais em 2010). O mesmo tipo de análise foi realizado para as cinco regiões brasileiras, sem que os resultados anteriores sofressem alterações significativas. Estrutura e Evolução das Despesas Fiscais Municipais A Tabela 7 exibe a evolução temporal das despesas fiscais do conjunto total dos Municípios, permitindo observar-se que a taxa de crescimento das despesas correntes durante o período 1998-2010 foi também elevada, embora inferior ao crescimento das receitas correntes. Tabela 7 Evolução Real Acumulada das Despesas Fiscais dos Municípios Brasileiros (Valores Constantes a preços de 2010): 1998-2010 – (%) 1998 2010 Variação Acumulada 1. Despesas Correntes 144.934 263.185 81,6% 1.1 Pessoal e Encargos Sociais 102.048 130.858 28,2% Especificação 1.2 Juros e Encargos da Dívida 3.282 4.338 32,2% 1.3 Outras Despesas Correntes 39.604 127.989 223,2% 2. Despesas de Capital 31.471 40.988 30,2% 2.1 Investimentos 74.519 145.566 95,3% 8.415 6.255,7 -25,7% 176.405 304.173 72,4% 2.2 Amortização da Dívida TOTAL Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. 52 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Despesas Correntes Municipais A análise da estrutura das despesas registradas entre 1998 e 2010, indica que, no conjunto total dos Municípios, as despesas com pessoal e encargos sociais reduziram sua participação em relação às despesas totais de 57,8% para 43%, respectivamente, enquanto as relacionadas ao custeio do setor público (outras despesas correntes) se elevaram de 22,5% para 42,1% (Tabela 8). Tabela 8 Evolução Real Acumulada das Despesas Fiscais dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (%) Participação Despesas Totais 1998 Participação Despesas Totais 2010 1. Despesas Correntes 82,2% 86,5% 1.1 Pessoal e Encargos Sociais 57,8% 43,0% Especificação 1.2 Juros e Encargos da Dívida 1,9% 1,4% 1.3 Outras Despesas Correntes 22,5% 42,1% 2. Despesas de Capital 17,8% 13,5% 2.1 Investimentos 11,4% 10,9% 4,8% 2,1% 100,0% 100,0% 2.2 Amortização da Dívida TOTAL Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Por outro lado, a participação das despesas com juros e encargos da dívida sobre as despesas totais foi bastante reduzida para a soma dos Municípios, refletindo o fato de que o problema de excessivo endividamento com a União foi, em geral, mais agudo na esfera estadual. A grande importância dos gastos com pessoal constitui regra para o setor público brasileiro, sendo, em muitos casos, ponto de estrangulamento fiscal, o que levou à fixação de limites por intermédio da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Assim, a LRF determina que as despesas com pessoal não podem ultrapassar 60% da Receita Corrente Líquida (RCL). Utilizando-se a receita corrente informada pelo Tesouro Nacional como aproximação da RCL1, chega-se ao Gráfico 2, que mostra a evolução temporal da razão entre os gastos com pessoal e a RCL para os Municípios brasileiros em conjunto durante 1998-2010. 1 Não existem dados disponíveis para a RCL registrada durante o período considerado. A utilização da receita corrente, contudo, não deveria provocar grandes distorções, pois a diferença existente entre esta e a RCL é, em geral, bastante reduzida. 53 Em busca da melhor cidade Gráfico 2 Relação entre Gastos com Pessoal e Receita Corrente Líquida dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (%) 50,0% 45,3% 44,8% 45,0% 41,1% 40,0% 35,0% 29,3% 30,0% 25,0% 23,0% 28,5% 27,5% 27,5% 27,6% 27,0% 28,8% 28,4% 23,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Como pode ser observado no gráfico anterior, durante todo o período 1998-2010, e apesar das flutuações observadas, o comprometimento dos gastos com pessoal no caso dos Municípios manteve-se sempre abaixo do limite de 60%, imposto pela LRF. Despesas de Capital Municipais A Tabela 7 também permite observar que as despesas de capital são quase totalmente absorvidas pelos investimentos. A análise anterior dos balanços fiscais revelou que os Municípios brasileiros tinham sido capazes, em geral, de gerar poupança corrente, que se constitui em importante fonte de recursos próprios para financiar investimentos. Esse potencial se reveste de muita importância, principalmente no contexto de expressivas carências de infraestrutura econômica e social, que caracterizam a situação municipal, seguindo a tendência nacional. Contudo, percebe-se, a partir do Gráfico 3, que a relação entre gastos com investimento e receita corrente líquida, a chamada taxa de investimento, além de excessivamente volátil, é bastante reduzida. Esse dado é preocupante, pois implica menor produtividade geral e piora da qualidade de vida das comunidades que vivem nos 54 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa Municípios, contrastando com a capacidade existente de financiar esses investimentos com poupança corrente. Gráfico 3 Relação entre Investimentos e Receita Corrente Líquida dos Municípios Brasileiros: 1998-2010 (%) 8,5% 8,0% 7,5% 7,0% 6,5% 6,0% 5,5% 5,0% 4,5% 4,0% 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FINBRA/Tesouro Nacional. Conclusões Em um regime federativo perfeito, tendo em vista que os cidadãos vivem no Município, deveria caber a essas unidades da Federação prover todos aqueles serviços que contribuem para a qualidade de vida da população, até porque, pela proximidade, são os dirigentes municipais cobrados e pressionados pelos munícipes. Para tanto, eles precisariam dispor não apenas de recursos suficientes para atender às demandas, como os recursos deveriam ser de livre administração por parte dos governos municipais. Isso significaria que teriam que dispor de receitas próprias e de livre capacidade de endividamento que lhes permitisse oferecer os serviços de que a comunidade necessita. Embora poucos países, se é que algum, atinjam esse ideal, é possível procurar avaliar o quanto alguns se aproximam mais ou menos do regime federativo, em termos de autonomia , com base na forma como se financia a provisão de bens e serviços públicos. 55 Em busca da melhor cidade Em um regime federativo perfeito, tendo em vista que os cidadãos vivem no Município, deveria caber a essas unidades da Federação prover todos os serviços que contribuem para a qualidade de vida da população. 56 Segundo Sabaini e Jiménez (2011) “um sistema de relações fiscais estáveis e um processo de descentralização exitoso requerem um adequado sistema de financiamento para poder levar a cabo de forma adequada as funções atribuídas a cada nível de governo. No entanto, não somente é importante o nível de financiamento de cada nível de governo, senão também o ‘mix’ que combina, no caso dos governos subnacionais (Municípios), ingressos tributários e não tributários próprios, transferências intergovernamentais e, em alguns casos, a opção de endividamento” . Os mesmos autores concluem que “uma característica comum a praticamente todos os países latino americanos é o alto nível de assimetria vertical”, isto é, “a escassa importância quantitativa da arrecadação dos governos locais, em relação à pressão tributária nacional”. Para avaliar a situação do Brasil nesse aspecto, foram analisadas as finanças dos Municípios brasileiros em termos de evolução das receitas próprias e das transferências, para verificar não apenas a situação atual, como as mudanças que possam ter ocorrido nos últimos anos no tocante à autonomia. É evidente que, em um país continental como o Brasil, com acentuadas diferenças regionais, cidades de portes distintos e elevada concentração da renda, não se pode tirar conclusões com base nos números englobados. Contudo, existem normas constitucionais e da legislação, especialmente a Lei de Responsabilidade Fiscal, que restringem a autonomia financeira de todos os Municípios. Além das restrições legais, pode-se constatar que, em maior ou menor grau, todos os Municípios dependem significativamente das transferências, o que parece indicar que as bases tribu- Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa táveis de que eles dispõem são insuficientes para gerar as receitas necessárias para o atendimento das demandas da coletividade. Observa-se que o tamanho da cidade, ou mais especificamente sua densidade populacional, faz grande diferença na geração de receita própria, provavelmente pela maior participação do imposto sobre os serviços, que são o setor que mais vem crescendo nas últimas décadas. Na maioria dos Municípios, o imposto sobre a propriedade imobiliária é a principal fonte de arrecadação, mas sua produtividade em termos de receita é baixa, no geral, seja por deficiências cadastrais ou de avaliação, ou pelas dificuldades políticas de atualização dos valores dos imóveis. Apesar disso, a arrecadação do IPTU tem crescido significativamente nos últimos anos, sendo a segunda fonte de receita dos Municípios em seu conjunto, atrás da do ISS que, no entanto, é mais expressiva nos centros maiores. A dívida pública não se constituía em problema para a grande maioria dos Municípios quando houve a renegociação, pois, segundo Fioravante, Pinheiro e Vieira (2006), apenas 0,68% das cidades registravam endividamento superior a 1,2 vezes à razão DLC/RLC, parâmetro que foi fixado como limite para a renegociação. Para 81% das unidades, essa proporção era de 0,20%. Foram os grandes Municípios os principais responsáveis pelo volume dos débitos renegociados, cerca de R$ 17 bilhões, dos quais apenas São Paulo respondeu por R$ 11,3 bilhões. As condições da renegociação eram bastante favoráveis na época, porque os devedores só estavam conseguindo se financiar a taxas extremamente elevadas. Assim, correção pelo IGP-DI mais juros de 6,0%, 7,5% ou 9%, conforme o caso, representava uma vantagem para os superendividados, que enfrentavam cada vez mais dificuldade para “rolarem” suas dívidas. Com o passar do tempo, no entanto, a situação se inverteu, pois a SELIC passou a cair, enquanto o IGP-DI se elevou fortemente, provocando um efeito perverso sobre as dívidas, uma vez que as amortizações não cobriam os encargos, que eram somados ao principal. Enquanto a taxa SELIC aumentou 691,73% entre 2000 e 2010, o IGP-DI mais 9% cresceu 882,69%, o que justifica a pretensão de São Paulo de uma nova renegociação, embora se argumente que a LRF não permite isso. Com a nova queda da SELIC, a partir de 2011, essa diferença se acentuou mais ainda. Os Municípios que renegociaram seus débitos ficaram obrigados a gerar significativos “superávits primários”, o que prejudicou muito sua capacidade de investimentos, apesar do esforço fiscal que realizaram, embora os resultados do presente trabalho mostrem que a taxa de investimento municipal tem sido, em geral, baixa. 57 Em busca da melhor cidade A proposta de redução dos encargos para aplicar os recursos em investimentos nos Municípios é bastante interessante, pois uma das maiores carências do País se encontra na infraestrutura. A análise da situação fiscal dos Municípios brasileiros revelou que praticamente todos dependem de maneira significativa das transferências de receitas. As raras exceções se referem a cidades que dispõem de arrecadação derivada de alguma fonte específica, que não existe nas demais. Se, por um lado, as transferências permitem a criação e a sobrevivência de um grande número de Municípios, assegurando uma descentralização do poder, o que em princípio é saudável, de outro, estimulam a fragmentação excessiva das unidades municipais. Em muitos casos, essa fragmentação reduz a eficiência administrativa e inviabiliza a realização de investimentos em algumas áreas por falta de escala. Discute-se, também, se não desestimulam a busca por receita própria e o aumento dos gastos em alguns Municípios, e se não enfraquecem a fiscalização local quanto ao uso dos recursos, uma vez que não resultaram de sua contribuição tributária. A criação de consórcios tenta contornar o problema da escala, mas, muitos administradores não querem se “amarrar” com compromissos de prazos mais longos, ou, então, deixam de cumprir os acordos prejudicando os programas. Fortalecer os Municípios é fundamental não apenas para melhorar as condições de vida das populações, mas, sobretudo, para o aprimoramento do regime democrático, pois contribui para descentralizar as decisões e para a execução das obras e serviços. É preciso, contudo, adotar medidas que possam desestimular o excessivo desmembramento de unidades municipais. Nestes tempos de globalização, os indivíduos procuram se identificar com os grupos que lhe estão mais próximos, como a comunidade onde vivem, o que aumenta a responsabilidade dos administradores municipais para atender a todas as expectativas de seus cidadãos. Embora disponham de menos recursos do que o necessário, espera-se do Município que ofereça oportunidades de progresso a seus cidadãos, ou “fazer mais competitiva a cidade e os indivíduos que nela moram, buscando o progresso de todos e maior equidade”. A maior complexidade das demandas da população aumenta a responsabilidade e as dificuldades do administrador, e exige não apenas maior organização do setor público, como a mobilização da comunidade. Muitos Municípios possuem potencialidades não exploradas por falta de um “agente catalisador” que possa coordenar o uso de todos os recursos disponíveis, seja uma atração turística não explorada, 58 Marcel Solimeo e Ulisses Gamboa disponibilidade de alguma matéria prima importante para algum setor industrial, uma atividade artesanal ou mão de obra qualificada ou com especialização. Despertar o espírito empreendedor local, ou atrair empreendedores de fora, não com incentivos fiscais, mas com outras vantagens, exige criatividade e trabalho. Tudo isso reforça a necessidade de se procurar fortalecer a capacidade gerencial e administrativa dos gestores dos Municípios. Seria importante apoiar não apenas a capacidade gerencial e o aprimoramento do sistema tributário, como ajudar os Municípios para que possam se desenvolver. É fundamental, no entanto, a responsabilidade dos partidos políticos na escolha de seus candidatos a Prefeito e a vereadores, pois eles serão os futuros administradores dos Municípios. Selecionar com rigoroso critério os candidatos, e apoiá-los quando eleitos, pode contribuir para que os Municípios brasileiros possam melhor responder aos anseios e necessidades de suas populações. Referências • CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. A Carga Tributária Bruta Brasileira de 2010, maio. • FIORAVANTE, D.G.; PINHEIRO, M. M. S.; VIEIRA, R. S. V. e Fortalecer os municípios é fundamental não apenas para melhorar as condições de vida das populações, mas, sobretudo, para o aprimoramento do regime democrático, pois contribui para descentralizar as decisões e para a execução das obras e serviços. SANTOS, J. C. Lei de Responsabilidade Fiscal e Finanças Públicas Municipais: Impactos sobre Despesas com Pessoal e Endividamento, IPEA, Texto para Discussão 1.223, 2006. • GIAMBIAGI, F. e ALÉM, C. Finanças Públicas – Teoria e Prática no Brasil, 3ª. Edição Revista e Atualizada, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 2008. • SABAINI, J. C.; JIMÉNEZ, J. P. El Financiamento de los Gobiernos Subnacionales em América Latina: Un Análisis de Casos, CEPAL, Serie Macroeconomia del Desarrollo nº 111. 59 Samuel Hanan Engenheiro industrial e metalúrgico, foi presidente da Brascan Recursos Naturais, vice-presidente da British Petroleum no Brasil e CEO da Paranapanema Mineração. Na área pública, foi secretário de Fazenda e da Indústria, Comércio e Turismo do Estado do Amazonas, do qual foi também vice-governador entre 1999 e 2002. Coordena o Conselho Temático sobre Pacto Federativo e Tributação do Espaço Democrático. 60 Samuel Hanan Novo federalismo, M u n i c í p i o forte 61 Em busca da melhor cidade 62 O Samuel Hanan Brasil, desde a instauração da República, adotou a Federação como instrumento para a harmonização das diferenças regionais no plano político, econômico e social, em função da sua dimensão continental e das profundas diferenças existentes em seu território. São objetivos fundamentais da República, nos termos previstos na Constituição Federal de 1988 (Art.3º): “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, todos autônomos, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Além disso, todo o poder emana do povo, que o exerce como regra por meio de representantes eleitos. Com isso, o povo concede aos seus governantes um mandato, autorizando a arrecadação de tributos para receber, em troca, serviços públicos essenciais. A Federação brasileira confere grande importância aos Municípios, elevados à categoria de entidades autônomas no que diz respeito ao seu interesse peculiar, em virtude do transplante da arraigada tradição portuguesa de prestigiar as decisões tomadas nas pequenas comunidades. Os Municípios não são meros coadjuvantes, mas possuem papel de destaque na relação entre a população e o Poder Público. A Federação pressupõe a autonomia política, administrativa e financeira dos seus membros. Essa autonomia só existe quando o ente político mantém a prerrogativa de editar as suas próprias regras de convivência social, para atender aos interesses locais. Entre as regras indispensáveis encontram-se as de natureza financeira, pois sem recursos não há possibilidade de obtenção das finalidades públicas, de interesse e necessidade coletivos. Talvez a principal faceta da autonomia dos Municípios seja a autonomia financeira, que pressupõe a liberdade para criar, arrecadar, gerir e gastar seus tributos respeitados, claro, os limites constitucionais e legais. O federalismo se caracteriza, assim, pela descentralização de encargos para entes de estatura subnacional, a fim de aumentar a eficiência na prestação de determina63 Em busca da melhor cidade Os Municípios não são meros coadjuvantes, mas possuem papel de destaque na relação entre a população Poder Público eo dos serviços públicos, ante as enormes disparidades regionais verificadas em países de grandes dimensões e a maior capacidade do governo local para diagnosticar e atender às necessidades da população. Na modelagem desse tipo de Estado, a repartição de competências entre os entes federativos deve considerar não apenas a distribuição de encargos, mas também a distribuição de receitas, para que os entes federativos possuam os meios adequados para o cumprimento de suas finalidades. O federalismo fiscal, na conceituação de Sérgio Prado, é o “conjunto de problemas, métodos e processos relativos à distribuição de recursos fiscais em federações, de forma tal que viabilizem o bom desempenho de cada nível de governo no cumprimento dos encargos a ele atribuídos”1. Além disso, José Augusto Moreira de Carvalho acentua que “o federalismo fiscal tem como objetivo oferecer meios e alternativas para que o Estado possa cumprir satisfatoriamente suas finalidades. Uma proveitosa repartição de competências entre as esferas governamentais é capaz de proporcionar o desenvolvimento de determinado Estado e, por consequência, da população que nele vive. A desarmonia nesse compartilhamento provocará, no mínimo, desigualdades regionais e retardo no nível de crescimento”2. Assim, no campo da tributação, a Federação brasileira espelha-se pela convivência de três entes, autônomos e harmônicos entre si: a União, os Esta- Equalização e federalismo fiscal; uma análise comparada: Alemanha, Índia, Canadá, Austrália. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 15. 1 2 “Federalismo e descentralização: características do federalismo fiscal brasileiro e seus problemas”. CONTI, José Maurício; SCAFF, Fernando Facury; BRAGA, Carlos Eduardo Faraco (orgs.). Federalismo fiscal – questões contemporâneas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 60. 64 Samuel Hanan dos, o Distrito Federal e os Municípios. Essa convivência se materializa pela distribuição das competências tributárias entre os entes da Federação, com repartição das fontes de receita. Existem duas alternativas jurídicas para tal distribuição: ou a competência privativa (em que somente um ente pode instituir determinado tributo) ou a competência comum (em que dois ou mais entes podem instituir o mesmo tributo). A competência comum pode ou não ser concorrente. Pode-se, além disso, mesclar ambas, com a convivência de competências privativas e comuns. No Brasil, optouse pela competência privativa, com algumas poucas exceções, quando convivem competências comuns com certas restrições. Além da repartição das fontes de receita, com a discriminação rígida de competências tributárias, a Federação brasileira se caracteriza pela repartição do produto da arrecadação tributária entre os entes federativos. Essa repartição se viabiliza pelo mecanismo de participações diretas ou pelos Fundos de Participação (participações indiretas). Ocorre, todavia, que, no Brasil, verifica-se a predominância da União na arrecadação das competências tributárias. A União, sozinha, arrecada mais do que os Estados e os Municípios juntos. Em que pese isso, os Estados e Municípios são responsáveis por parcela significativa dos serviços públicos prestados à população, mormente os serviços mais essenciais. Em razão desse descompasso, o federalismo brasileiro se mostra assimétrico. Será demonstrado neste trabalho que a atrofia do sistema atual notabiliza-se pela carga tributária elevada, má distribuição das receitas tributárias, qualidade dos serviços públicos incompatível com o montante da carga fiscal, falência da infraestrutura, falta de priorização nos gastos com educação, custo excessivo e sobreposição de máquinas públicas e usura da União quanto às taxas cobradas dos Estados e Municípios nos contratos de refinanciamento da dívida pública. A Emenda Constitucional nº 18, de 1965 O atual sistema tributário brasileiro foi concebido no início da década de 1960 e instituído pela Emenda Constitucional nº 18 à Constituição de 1946. Naquele momento, foram traçadas as bases do sistema tributário atualmente em vigor. Qualquer sistema tributário pressupõe a escolha de certos eventos manifestadores de riqueza, e, portanto, de capacidade contributiva, para fazer com que sejam hipóteses legais de incidência da norma fiscal. 65 Em busca da melhor cidade No caso da Emenda Constitucional nº 18, a atividade econômica foi segmentada em suas vertentes industrial, comercial, de serviços e de detenção de propriedade. Para cada uma delas foram criadas competências tributárias privativas, respeitado o princípio federativo, com o reconhecimento e a institucionalização de três ordens tributárias, a União Federal, os Estados-Membros (e Distrito Federal) e os Municípios. A divisão fica então da seguinte maneira: (a) à União: o IR - Imposto de Renda, o IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados, o IPTR – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural; (b) aos Estados-Membros: o ICM - Imposto sobre a Circulação de Bens (depois ICMS – Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços) e o Imposto de Transmissão de Propriedade Imóvel; e (c) aos Municípios: o ISS – Imposto sobre Serviços e o IPTU – Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana. A União foi também contemplada com os Impostos de Importação e Exportação e com o IOF – Imposto sobre Operações Financeiras, cujas finalidades, em condições normais, são de caráter meramente reguladores de fluxos econômicos e financeiros, muito mais do que para fins arrecadadores. Para dar regramento ao sistema constitucional então instituído, foi editado o CTN – Código Tributário Nacional (Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966), lei de caráter nacional, aplicável à União Federal, Estados-Membros e Municípios. O CTN sedimentou o conceito de tributo e o dividiu em vinculados, que pressupõem uma atividade estatal específica, ou de serviço ou de manifestação de poder de polícia (taxas de serviço ou de polícia), e não vinculados, que dispensam uma atividade estatal específica em relação ao contribuinte, os impostos. Além disso, criou a figura da contribuição, desenhada para lidar com eventos extraordinários de repercussões econômicas passageiras. Esse instrumento foi concebido para ser usado em especialíssimas circunstâncias. Por exemplo, contribuição de melhoria para captar valorizações imobiliárias inusitadas, em virtude de obra pública urbana, ou contribuição de intervenção no domínio econômico, em situações de desarranjo econômico temporário. A materialidade das contribuições é idêntica à dos impostos, pois dispensa uma atividade estatal específica ao contribuinte. 66 Samuel Hanan Sistema tributário atual e repartição das fontes de receitas e do produto da arrecadação Atualmente, pelo que ficou estabelecido na Constituição Federal de 1988, são atribuídas aos entes federativos as seguintes competências tributárias (repartição de fontes de receita tributária): (a) União: II – Imposto de Importação, IE – Imposto de Exportação, IR – Imposto de Renda, IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados, IOF – Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou Relativas a Títulos ou Valores Mobiliários, ITR – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural e IGF – Imposto sobre Grandes Fortunas; (b) Estados e Distrito Federal: ITCMD – Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação, ICMS – Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação e IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores; (c) Municípios e Distrito Federal: IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, ITBI – Imposto sobre a Transmissão “Inter Vivos” de Bens Imóveis e ISS – Imposto sobre a Prestação de Serviços. Além disso, é exclusividade da União instituir as contribuições – como as contribuições sociais (PIS, COFINS, CSLL, a extinta CPMF e contribuições previdenciárias), contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE) e contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Os Estados, o Distrito Federal e Municípios podem instituir contribuições cobradas de seus servidores, A União arrecada mais do que Estados e os Municípios juntos, mas os eles são responsáveis por parcela significativa dos serviços públicos prestados à população. Por isso, o federalismo brasileiro se mostra assimétrico. 67 Em busca da melhor cidade A atrofia do sistema atual notabiliza-se, entre outros problemas, pela carga tributária elevada, má distribuição das receitas tributárias, qualidade dos serviços públicos incompatível com o montante da carga fiscal e falência da infraestrutura. 68 para o custeio, em benefício destes, de regime previdenciário próprio. Igualmente, os Municípios e o Distrito Federal podem instituir contribuição para o custeio da iluminação pública. Há uma preponderância das competências tributárias atribuídas à União, ainda que parcela significativa dos serviços públicos seja da incumbência de Estados e dos Municípios. Uma das formas de se contornar esse problema é pela repartição do produto da arrecadação tributária. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Estados, Municípios e Distrito Federal parcela na arrecadação de impostos federais, como o IR, o IPI e o ITR. Além disso, os Municípios participam da arrecadação estadual de ICMS e de IPVA. Porém, essa participação na arrecadação de impostos federais sofreu um grande revés, com as políticas adotadas pelo governo federal a partir da década de 1990, que priorizaram o aumento de carga tributária mediante o incremento das contribuições. Esse aumento das contribuições, com a consequente redução proporcional da arrecadação dos impostos, diminuiu o montante das receitas dos Estados e Municípios (pois há proporcionalmente menos dinheiro a ser repartido nos fundos de participação). Também foi reduzido o mínimo de investimento compulsório em educação de nível superior a cargo da União. Como se não bastasse, a maioria dos incentivos e renúncias fiscais do governo federal recai sobre impostos compartilhados com Estados e Municípios, e não sobre os impostos e contribuições exclusivas da União. Samuel Hanan A deturpação do sistema de repartição das receitas tributárias efetivada pela União e seu impacto na educação superior Desde a sua implementação, o sistema tributário criado pela Emenda Constitucional nº 18/65 foi sendo deturpado em decorrência dos sucessivos aumentos dos tributos para atender às necessidades de caixa do Estado, nas suas três esferas de poder. Esse fenômeno se manifesta, sobretudo, com a criação das contribuições, pela simples razão de que a União não precisava repartir suas receitas com Estados e Municípios. A distinção entre as contribuições e os impostos, aliás, é de todo questionável, haja vista que, como dito, sua natureza é idêntica3, e ambos independem de uma atuação estatal específica em relação ao contribuinte para ser cobrada. Além disso, tributos com finalidades meramente reguladoras, como o IOF, foram suprindo necessidades de caixa a ponto de se tornarem indispensáveis para os gastos públicos cada vez maiores. A tabela abaixo demonstra a concentração atual das receitas tributárias para a União, que arrecada mais da metade de toda a receita disponível: RECEITA DISPONÍVEL - 2011 (%) PIB (%) TOTAL UNIÃO 20,04 57,06 ESTADOS 8,66 24,66 MUNICÍPIOS 6,42 18,28 TOTAL 35,12 100 Fonte: José Roberto Afonso - O Estado de São Paulo - 11/07/2011 Um dos motivos para essa situação foi o aumento deliberado da carga tributária em relação às contribuições, com redução proporcional da arrecadação relativa a impostos, como mostram os dados a seguir: RECEITAS - UNIÃO IMPOSTO (%) CONTRIBUIÇÕES (%) TOTAL(%) 1988 80,27 19,73 100 2011 51,5 48,5 100 Fonte: Governo Federal 3 A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, por exemplo, não passa de mero adicional do Imposto de Renda Pessoa Jurídica – IRPJ. 69 Em busca da melhor cidade A primeira consequência disso, como já dito, é a redução imediata dos montantes repassados aos Estados e Municípios por meio dos fundos de participação, os quais têm por base os impostos federais. Desse modo, a União deturpou a finalidade original, instituída pelo Constituinte de 1988, de repartir as receitas tributárias entre os entes federativos de maneira mais justa e equânime. Além disso, a concentração de receitas tributárias na União gera dependência política em decorrência das transferências voluntárias. Isso porque os Estados e Municípios acabam virando extremamente dependentes das transferências voluntárias, que vêm sendo usadas como moeda de troca em barganhas políticas. Outro efeito nefasto da política adotada pela União foi reduzir os investimentos compulsórios em educação em nível superior. Explica-se: o artigo 212 da Constituição Federal de 1988 obriga a União a investir nunca menos de 18%, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Na medida em que a União migrou a arrecadação dos impostos para as contribuições, os investimentos na educação superior foram drasticamente reduzidos pelo governo federal, na realidade. O aumento da carga tributária, focado na majoração apenas das contribuições, foi uma tentativa de burlar a vontade original do Constituinte, que era a de vincular para a educação todas as receitas do ente federativo, e não apenas as receitas relativas a impostos. Tanto é que o artigo 212 da Constituição Federal de 1988 prevê, em relação aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, que os investimentos compulsórios em educação também incidam sobre a receita proveniente de transferências. Entretanto, por uma tecnicidade, o termo “impostos” que consta do disposto no artigo 212 da Constituição vem sendo interpretado restritivamente pela União que, assim, deixa de investir todas as suas receitas em educação. Como visto na tabela acima, em 1988 os impostos correspondiam a 80,27% das receitas da União. Aplicando-se sobre esse percentual os 18% previstos no artigo 212 da Constituição, tem-se que a vontade original do Constituinte era a de que a União investisse em educação, no mínimo, o equivalente a 14,45% da sua receita total. Contudo, esse cenário foi completamente distorcido, não apenas em função do aumento das contribuições, mas também por conta do advento da famigerada DRU – Desvinculação de Receitas da União, que vem se perpetuando. Pelo mecanismo da DRU, são desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31/12/2015 (de acordo com a EC nº 68/2011), 20% da arrecadação da União de impostos, contribuições sociais e CIDE’s. 70 Samuel Hanan A tabela anterior também aponta que, em 2011, os impostos representavam apenas 51,50% da receita da União. Aplicando-se, nesse novo cenário, os 18% previstos no artigo 212 da Constituição, e levando-se em consideração a DRU, chegase à conclusão que a União diminuiu para 7,416% da sua receita os investimentos compulsórios em educação (reduzida em 49%). Para se ter uma ideia da situação atual da educação superior no Brasil, apenas cerca de um quarto dos alunos matriculados estão na rede pública. Há um predomínio absoluto da iniciativa privada, nesse setor, muito em função da omissão da União nos investimentos que lhe são obrigatórios, por força de expressa disposição constitucional. Os Estados e os Municípios, por sua vez, têm feito mais do que exige a Constituição, investindo na Universidade pública, papel que seria precipuamente da União. Tanto é que a quantidade de alunos matriculados em instituições de ensino superior estaduais ou municipais é superior à quantidade de alunos matriculados em instituições federais. Os dados abaixo são esclarecedores: ENSINO SUPERIOR - BRASIL INSTITUIÇÕES 1 2 3 PÚBLICAS PRIVADAS TOTAL ALUNOS MATRICULADOS (%) 25,40 74,60 100,00 (MIL ALUNOS) 1.209,00 3.550,00 4.759,00 % POPULAÇÃO BRASILEIRA (186 MILHÕES) 0,65 1,91 2,56 ALUNOS FORMADOS (%) 25,53 74,47 100,00 (MIL ALUNOS) 193,00 563,00 756,00 % POPULAÇÃO BRASILEIRA 0,10 0,30 0,41 INSTITUIÇÕES PÚBLICAS % ALUNOS REDE FEDERAL 44 REDE ESTADUAL 44 REDE MUNICIPAL 12 TOTAL 100 Fonte: Revista Ensino Superior (11/07/2011) 71 Em busca da melhor cidade Chama a atenção o fato de que apenas 0,65% da população brasileira está matriculada em instituições públicas de ensino superior. A situação se mostra ainda mais grave quando se verifica que apenas 0,10% da população conclui o curso superior em uma instituição pública por ano! Igualmente, considerando que apenas 0,10% da população brasileira termina o curso superior em uma instituição pública por ano, e que apenas 44% dos alunos da rede pública são de instituições federais, chega-se ao estarrecedor dado de que apenas 0,044% da população brasileira conclui o curso superior em uma instituição pública federal por ano. Abre-se um parêntese para dizer que a situação da educação também se verifica na saúde. Isso porque, embora o sistema único de saúde previsto na Constituição Federal de 1988 seja tripartite (financiado por recursos das três esferas de governo), a União tem brincado de faz-de-conta em relação à sua participação. A tabela abaixo mostra o quanto o valor do reembolso da União para Estados e Municípios por meio do SUS está fora da realidade (o que aumenta o risco, inclusive, de ocorrerem fraudes): REPASSES DA UNIÃO PARA ESTADOS E MUNICÍPIOS POR MEIO DO SUS (EM R$) EXAME PARASITOLÓGICO DE FEZES SUMÁRIO DE URINA HEMOGRAMA COMPLETO 1,65 3,7 4,11 PARTO NORMAL 443,4 PARTO CESÁRIA 545,73 CONSULTA MÉDICA ESPECIALIZADA 10,00 * (*) Igual ao valor cobrado por um engraxate/ par de sapatos. Fonte: Secretaria Municipal de Saúde - Manaus Não bastasse o governo federal fazer de conta que participa dos encargos na área de saúde por meio do SUS, a União teve seus encargos diminuídos de forma dramática após 1988. Na época, a União era responsável pelos setores de siderurgia, telefonia, energia, rodovias, ferrovias etc., que passaram por processos de desestatização, mediante privatizações, concessões e outorgas. 72 Samuel Hanan Ou seja, além de aumentar sua participação no bolo da arrecadação, tanto pelo aumento da carga tributária quanto pelo aumento das contribuições, para evitar compartilhamentos com os entes subnacionais, a União reduziu seus encargos, realizando progressivamente menos tarefas. Mas os problemas do nosso pacto federativo não param por aí. Outras deficiências do pacto federativo: a elevada carga tributária e sua incompatibilidade com a qualidade dos serviços públicos, os gastos tributários federais, a regressividade do sistema e usura da União nos contratos de renegociação das dívidas dos entes subnacionais Vimos no subitem acima que a carga tributária brasileira está mal distribuída entre os entes, com grande concentração das receitas disponíveis em poder da União. Não bastasse isso, a carga tributária brasileira é uma das mais elevadas do mundo. Porém, a qualidade dos serviços públicos prestados no País é absolutamente incompatível com a quantidade de recursos que o Poder Público retira da iniciativa privada, o que gera, naturalmente, insatisfação em setores da sociedade. Em primeiro lugar, vejamos como a carga tributária no Brasil evoluiu desde a promulgação da Constituição de 1988: Não bastasse o governo federal fazer de conta que participa dos encargos na área de saúde, a União teve seus encargos diminuídos de forma dramática após 1988, mediante privatizações, concessões e outorgas. CARGA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA (% PIB) 1988 22,43 2010 35,14 Fonte: Estado de São Paulo - 11/07/2011 73 Em busca da melhor cidade Como se vê, houve um aumento de 56,66% da carga tributária no Brasil nos anos considerados. Além disso, estudos mostram que a carga tributária brasileira supera em cerca de 50% a média da carga tributária dos demais países da América do Sul: AMÉRICA DO SUL PAÍSES X CARGA TRIBUTÁRIA CARGA TRIBUTÁRIA BRUTA PAÍSES % PIB ÍNDICE BRASIL 35,13 100,00 GUIANA 31,00 88,24 BOLÍVIA 27,00 76,85 VENEZUELA 25,00 71,16 URUGUAI 23,10 65,75 CHILE 23,00 65,47 COLÔMBIA 23,00 65,47 ARGENTINA 22,90 65,19 SURINAME 22,10 62,91 PERU 15,10 42,98 PARAGUAI 12,00 34,16 MÉDIA ARITIMÉTICA 23,57 67,09 MÉDIA ARITIMÉTICA EXCLUSIVE BRASIL 22,42 63,82 Fonte: WIKIPEDIA – Carga Tributária - 15/07/2011 74 Samuel Hanan Essa carga tributária elevada, contudo, não tem se revertido em benefício da população. Em comparação com os demais países da América do Sul, o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil é apenas o sexto do continente, atrás de economias muito menores, como Argentina, Uruguai, Chile, Peru e Colômbia: AMÉRICA DO SUL CARGA TRIBUTÁRIA, ENDIVIDAMENTO E IDH PAÍSES ENDIVIDAMENTO (% PIB) CARGA TRIBUTÁRIA (% PIB) IDH BRASIL 40,70 35,13 0,718 GUIANA ND 31,00 0,611 BOLÍVIA 52,70 27,00 0,643 VENEZUELA 17,40 25,00 0,649 URUGUAI 57,00 23,10 0,765 CHILE ND 23,00 0,784 COLÔMBIA 48,00 23,00 0,869 ARGENTINA 51,00 22,90 0,775 SURINAME ND 22,10 0,646 PERU 16,60 15,10 0,723 PARAGUAI 22,20 12,00 0,640 Fonte: WIKIPEDIA –15/07/2011 e 18/07/2011 75 Em busca da melhor cidade O desempenho nacional não é melhor em comparação com as dez maiores economias do mundo. O Brasil possui a sexta maior carga tributária em termos de percentagem do PIB, mas apenas o nono IDH, à frente apenas da China: DEZ MAIORES ECONOMIAS DO MUNDO - 2010 PAÍSES PIB (US$ BILHÕES) ENDIVIDAMENTO CARGA TRIBUTÁRIA (% PIB) (% PIB) IDH FRANÇA 2.670 (5) 67 44,2 (1) 0,872 (5) ITÁLIA 2.133 (7) 104,3 42,2 (2) 0,854 (7) ALEMANHA 3.429 (4) 76,4 39,3 (3) 0,885 (3) REINO UNIDO 2.225 (6) 47,2 37,4 (40 0,849 (8) ESPANHA 1.490 (9) 60,8 36,5 (5) 0,863 (6) BRASIL 2.089 (8) 40,7 35,1 (6) 0,718 (9) CANADÁ 1.370 (10) 46,4 33,3 (7) 0,888 (2) ESTADOS UNIDOS 14.400 (1) 95 28,3 (8) 0,902 (1) JAPÃO 5.168 (3) 198 27,9 (9) 0,884 (4) CHINA 5.408 (2) 15,7 17 (10) 0,663 (10) Fonte: WIKIPEDIA – 30/01/2012 / Banco Mundial / FMI / CIA Por seu turno, o Índice de Retorno do Brasil, calculado com base na carga tributária em contraste com o IDH, é pífio em comparação com outros países de carga tributária elevada. O Índice de Retorno do Brasil é apenas o 30º do mundo, como mostra a tabela a seguir: 76 Samuel Hanan PAÍSES CARGA TRIBUTÁRIA 2010 IDH 2011 ÍNDICE DE RETORNO 1º - AUSTRÁLIA 25,90% 0,929 164,18 2º - ESTADOS UNIDOS 24,80% 0,91 163,83 3º - CORÉIA DO SUL 25,10% 0,897 162,38 4º - JAPÃO 26,90% 0,901 160,65 5º - IRLANDA 28,00% 0,908 159,98 6º - SUIÇA 29,80% 0,903 157,49 7º - CANADÁ 31,00% 0,908 156,53 8º - NOVA ZELÂNDIA 31,30% 0,908 156,19 9º - GRÉCIA 30,00% 0,861 153,69 10º - ESLOVÁQUIA 28,40% 0,834 153,23 11º - ISRAEL 32,40% 0,888 153,22 12º - ESPANHA 31,70% 0,878 153,18 13º - URUGUAI 27,18% 0,783 150,3 14º - ALEMANHA 36,70% 0,905 149,72 15º - ISLÂNDIA 36,30% 0,898 149,59 16º - ARGENTINA 29,00% 0,797 149,4 17º - REP. CHECA 34,90% 0,865 148,39 18º - REINO UNIDO 36,00% 0,863 146,96 19º - ESLOVÊNIA 37,70% 0,884 146,79 20º - LUXEMBURGO 36,70% 0,867 146,49 21º - NORUEGA 42,80% 0,943 145,94 22º - ÁUSTRIA 42,00% 0,885 141,93 23º - FINLÂNDIA 42,10% 0,882 141,56 24º - SUÉCIA 44,08% 0,904 141,15 25º - DINAMARCA 44,06% 0,895 140,41 26º - FRANÇA 43,15% 0,884 140,52 27º - HUNGRIA 38,25% 0,816 140,37 28º - BÉLGICA 43,80% 0,886 139,94 29º - ITÁLIA 43,00% 0,874 139,84 30º - BRASIL 35,13% 0,718 135,83 Fonte: IBPT – Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário 77 Em busca da melhor cidade Outro dado que precisa ser destacado é que o conceito de carga tributária sobre o PIB, que vem sendo adotado nesse tipo de estimativa, leva em consideração apenas a carga arrecadada. Porém, parte significativa da carga tributária deixa de ser realizada, em função das renúncias fiscais e da sonegação. Somando-se a carga tributária arrecadada, as renúncias fiscais e a sonegação, chega-se à conclusão de que a carga tributária brasileira é bem mais elevada do que as estatísticas vêm demonstrando. O IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgou o Comunicado nº 117, em que analisa os gastos tributários federais4. O Comunicado revela que “apenas na esfera federal, estima-se que esta forma indireta de gasto público tenha mobilizado 2,81% do PIB em 2009 – e que possa alcançar 2,98% em 2011. Ao levar em conta também as renúncias previdenciárias, chega-se a 3,53% do PIB destinados a esta modalidade de financiamento de políticas públicas. É um volume de recursos superior a 10% da carga tributária”5. A tabela abaixo, elaborada pelo IPEA, demonstra que os gastos tributários federais cresceram 47% de 2006 a 2011: GASTO TRIBUTÁRIO FEDERAL 2006 a 2009, valores estimados (em R$ milhões de 2010, corrigidos pelo IPCA médio) 2010 e 2011, valores projetados Ano Em R$ milhões nominais Em R$ milhões de 2010 (IPCA médio) 2006 65.398 78.915 2007 75.745 88.189 2008 86.572 95.379 2009 89.525 94.036 2010 105.843 105.843 2011 116.083 116.083 Fonte: IPEA 4 Gastos tributários do governo federal: um debate necessário. Comunicados do IPEA nº 117, outubro de 2011. Disponível em: <<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/111018_comunicadoipea117.pdf>>, acesso em 08/03/2012. O estudo em questão conceitua os gastos tributários no Brasil como as “desonerações que correspondem a gastos indiretos. Ou seja, são renúncias consideradas exceção à regra geral da legislação tributária, introduzidas no código tributário com a intenção de aliviar a carga tributária de uma classe específica de contribuintes, de um setor de atividade econômica ou de uma região e que, em princípio, poderiam ser substituídas por despesas orçamentárias diretas”. 5 Op. Cit., pp. 3-4. 78 Samuel Hanan BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS 2006 a 2009, valores estimados (em R$ milhões de 2010, corrigidos pelo IPCA médio) 2010 e 2011, projetados Ano Em R$ milhões nominais Em R$ milhões de 2010 (IPCA médio) 2006 12.290 14.830 2007 14.044 16.351 2008 15.558 17.141 2009 17.044 17.903 2010 19.246 19.246 2011 21.156 21.156 Fonte: IPEA A soma dos benefícios previdenciários e dos demais gastos tributários do governo federal atinge o patamar de R$ 137,2 bilhões, quantia que supera o dobro do orçamento previsto para o Ministério da Educação no mesmo ano (R$ 63,7 bilhões) . Levando-se em consideração também os gastos tributários, a carga tributária no Brasil é de praticamente 40% do PIB (semelhante à da Alemanha), desprezandose, ainda, os impactos da sonegação (impossíveis de se mensurar com precisão), como demonstra sinteticamente o quadro abaixo: CARGA TRIBUTÁRIA NO BRASIL (% DO PIB) RECEITA ARRECADADA RENÚNCIA FISCAL FEDERAL RENÚNCIA FISCAL ESTADUAL / MUNICIPAL SONEGAÇÃO FISCAL CARGA TRIBUTÁRIA EFETIVA 35,13 3,53 1,2 ? 39,86 + SONEGAÇÃO Fontes: Estado de São Paulo – J. R. Afonso / IPEA É importante destacar que parte significativa dos gastos tributários federais são efetuados com receitas que pertencem aos Municípios e aos Estados. Com efeito, o citado estudo do IPEA aponta que 59,42% do financiamento do gasto tributário do governo federal é efetivado mediante impostos compartilhados 6 Op. Cit., p. 8. 79 Em busca da melhor cidade com Estados e Municípios, como o IR e o IPI. Ou seja, “mais da metade dos recursos envolvidos nesta modalidade de política pública é cofinanciada por Estados e Municípios, que veem ser reduzido o volume de impostos a ser dividido por meio dos fundos de participação”7. Oportuna foi a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre esse tema, dando um basta à concessão de incentivos fiscais com receitas pertencentes a outros entes federativos e evitando, assim, que determinado ente realize verdadeira “cortesia com chapéu alheio”, na feliz expressão do Ministro Ricardo Lewandowski8. A decisão do Supremo Tribunal Federal deve servir de incentivo aos Municípios para coibir essa prática que vem sendo levada a cabo pela União à revelia dos demais entes federativos, inclusive mediante a adoção de medidas judiciais. Há notícias de Municípios do Nordeste que ingressaram em Juízo contra a União, para que suas quotas do Fundo de Participação dos Municípios fossem calculadas sem a dedução de incentivos fiscais concedidos unilateralmente pelo governo federal, sendo que alguns Municípios tiveram sucesso em sua demanda9. Noutro giro, o sistema tributário brasileiro atual pode ser considerado perverso, por ser altamente regressivo e, por conseguinte, não cumprir uma de suas funções sociais, que seria a desconcentração de renda. Dito de outra forma: o sistema tributário brasileiro atual, por basear-se principalmente na tributação sobre o consumo, permite que os mais ricos continuem mais ricos, onerando de forma desproporcional os mais pobres. A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE, entidade ligada ao Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade de São Paulo – FEA/USP, publicou interessante estudo no qual demonstra a regressividade do sistema tributário brasileiro10. Neste estudo, a FIPE chega à conclusão de que “por ter como principal base de incidência os bens e serviços (47% da arrecadação tributária), o sistema tributário 7 Op. Cit., p. 7. Recurso Extraordinário nº 572.762, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe nº 167, Divulgação 04/09/2008, Publicação 05/09/2008, Ementário nº 2331-4. 8 9 Municípios vão à Justiça contra isenções fiscais. Notícia veiculada no site Consultor Jurídico, em 02/10/2009. Disponível em: <<http://www.conjur.com.br/2009-out-02/decisao-stf-leva-municipios-justica-reducao-ipi-ir>>, acesso em 08/03/2012. 80 Samuel Hanan brasileiro é no seu conjunto regressivo: a progressividade dos tributos diretos (imposto de renda, contribuições previdenciárias, IPVA, IPTU e ITR) é insuficiente para compensar a regressividade dos tributos indiretos. E pior, ele é tão mais regressivo quanto mais pobre o Estado da Federação, dado que, tendo uma base econômica menor, os governos estaduais não podem abrir mão da arrecadação do ICMS sobre os bens essenciais, como fazem os Estados mais ricos. Por exemplo, famílias com renda total de até 2 salários mínimos, pagando a totalidade de IPI, ICMS, PIS e COFINS nos produtos consumidos, gastam com esses tributos 25,8% de suas rendas se residentes em São Paulo e 30,1% se residentes em Belém. Esses percentuais vão se reduzindo à medida que aumenta a renda das famílias, porque a participação do consumo na renda se reduz”11. Para corroborar que a progressividade de impostos diretos, como o IR, é insuficiente, no Brasil, para compensar a elevada regressividade da tributação indireta (sobre o consumo), a FIPE elaborou a seguinte tabela, que compara as cargas diretas e indiretas por faixa de renda familiar em 1996 e 2004. Essa tabela demonstra não só o aumento da carga tributária total para todas as faixas de renda, mas também o aumento da regressividade do sistema tributário nacional12: Deve haver uma melhor definição das competências de cada ente federativo, para reduzir as máquinas públicas. ZOCKUN, Maria Helena (coord.); ZYLBERSTAJN, Hélio; SILBER, Simão; RIZZIERI, Juarez; PORTELA, André; PELLIN, Eli; AFONSO, Luís Eduardo. Simplificando o Brasil: propostas de reforma na relação econômica do governo com o setor privado. Texto para discussão nº 03. São Paulo, março de 2007. Disponível em <<http://www.fipe.org.br/web/publicacoes/discussao/textos/texto_03_2007.pdf>>, acesso em 07/03/2012. 10 11 Op. Cit., pp. 12-13. 12 Op. Cit., p. 19. 81 Em busca da melhor cidade Em % da renda familiar 1996 2004 1996 2004 1996 2004 Acréscimo de carga tributária (em pontos de percentagem) Até 2 SM 1,7 3,1 26,5 45,8 28,2 48,8 20,6 2a3 2,6 3,5 20 34,5 22,6 38 15,4 3a5 3,1 3,7 16,3 30,2 19,4 33,9 14,5 5a6 4 4,1 14 27,9 18 32 14 Renda mensal familiar Tributação direta Tributação Carga tributária 6a8 4,2 5,2 13,8 26,5 18 31,7 13,7 8 a 10 4,1 5,9 12 25,7 16,1 31,7 15,6 10 a 15 4,6 6,8 10,5 23,7 15,1 30,5 15,4 15 a 20 5,5 6,9 9,4 21,6 14,9 28,4 13,5 20 a 30 5,7 8,6 9,1 20,1 14,8 28,7 13,9 mais de 30 10,6 9,9 7,3 16,4 17,9 26,3 8,4 Fonte: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas – FIPE Quanto maior a regressividade do sistema tributário nacional, menor será o ganho de renda líquida para as famílias mais pobres, o que aumenta ainda mais as desigualdades sociais e a concentração de renda nas famílias mais ricas, estimulando, ainda, a informalidade. Por fim, deve-se abordar a verdadeira usura que vem sendo praticada pela União nos contratos de renegociação das dívidas dos Estados e Municípios, no final da década de 1990, que acarreta mais uma transferência de recursos dos entes subnacionais para o governo federal. Vejamos, primeiramente, os seguintes dados: DÍVIDAS DE ESTADOS E MUNICÍPIOS COM A UNIÃO (RENEGOCIAÇÃO DO FINAL DE DÉCADA DE 1990) - 2010 Saldo das dívidas renegociadas em dezembro de 2000 R$ 199,3 bilhões Montante de pagamentos efetuados por Estados e Municípios de janeiro de 2001 a dezembro de 2010 R$ 199,8 bilhões Saldo devedor dos Estados e Municípios com a União em dezembro de 2010 R$ 439,8 bilhões Fonte: Governo Federal Após 10 (dez) anos, a dívida total dos Estados e Municípios junto à União mais do que dobrou no período (aumento de 2,2 vezes). Além disso, descontada a inflação 82 Samuel Hanan medida pelo IPCA, houve um aumento real de 16,24% (1,52% ao ano). Ou seja, o saldo da dívida renegociada após esse período é maior que o saldo original em valores reais. A situação é de uma distorção atroz: ao mesmo tempo em que cobra de Estados e Municípios juros reais de 8 a 9% ao ano, a União toma empréstimos junto ao Sistema Financeiro Nacional à taxa bruta, descontada a inflação, de cerca de 5,65% ao ano. Se for descontado o IR, a União paga apenas 4,04% ao ano a título de juros reais no SFN. Mais distorcida ainda fica a situação quando se verifica que o BNDES, BNE e BASA financiam o setor privado com taxa nominal de 8% ao ano (TJLP + 2 ou 3%), ou seja, com juros reais de 3,57% ao ano. Superado esse ponto, passamos a discorrer sobre a importância dos Municípios na vida dos cidadãos. Municípios fortes É fácil constatar no Brasil que o cidadão valoriza os Municípios. Tal situação começa pelo singelo fato de que o endereço de cada um é em seu respectivo Município, não no Estado (e muito menos na União). Ninguém diz “eu moro no Estado de São Paulo”, por exemplo, e sim “eu moro no Município de São Paulo”. Claro que a importância dos Municípios não reside apenas nisso. Os serviços públicos mais básicos e essenciais, demanda constante do cidadão, são de competência dos Municípios, ou ainda dos Estados, e não da União. De fato, compete aos Municípios prestar os serviços públicos de interesse local, como o de transporte coletivo, que tem caráter essencial pelos próprios dizeres da Constituição de 1988. Outros serviços de interesse local são os de coleta de lixo, distribuição de água e o de saneamento básico. Além disso, compete aos Municípios precipuamente prestar serviços de educação infantil e de ensino fundamental. Igualmente, compete aos Municípios prestar serviços de atendimento à saúde da população e promover o adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Ou seja, praticamente toda a infraestrutura urbana ficou a cargo dos Municípios pela repartição de competências prevista na Constituição de 1988. Por seu turno, a União é responsável por questões de âmbito nacional, de caráter macroeconômico, não possuindo uma participação efetiva no dia-a-dia do cidadão. 83 Em busca da melhor cidade A União pode assumir um papel regulatório, deixando a cargo de Estados e Municípios a execução das políticas públicas. 84 Pode-se concluir, assim, que os serviços públicos mais básicos, e que são os de maior preocupação dos cidadãos (o que se traduz, evidentemente, nas urnas, no momento de escolha dos seus candidatos), por afetarem diretamente o seu bem-estar, são de competência municipal (ou, quando menos, estadual). Assim, é consequência lógica que a participação dos Municípios e dos Estados na arrecadação tributária deve ser substancialmente maior. É urgente que haja compatibilidade entre os encargos atribuídos aos entes federativos e sua participação na arrecadação tributária. Por outro lado, verifica-se no Brasil uma alta concentração do Poder Legislativo na União, inclusive por força da legislação concorrente, que deveria se ater apenas à elaboração de normas gerais. É imprescindível, para que haja um municipalismo forte, com Municípios efetivamente autônomos, que exista maior participação municipal na elaboração de leis de matérias que são de interesse local. Outro ponto importante a ser destacado em relação ao municipalismo é o acúmulo de máquinas públicas que exercem a mesma função. Para ficar no exemplo da Saúde, verifica-se que tanto a União quanto os Estados possuem um Ministério ou uma Secretaria voltados, especificamente, para atuar nessa área. (Ministério da Saúde, Secretaria Estadual de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde). Com isso, a administração pública fica excessivamente grande e absorve muitos gastos com despesa de pessoal. Com maior eficiência na repartição desses encargos, pode-se reduzir tais gastos. Devese acabar com o acúmulo de Ministérios e Secretarias incumbidas das mesmas funções, para acabar com os Samuel Hanan três níveis de estrutura (federal, estadual e municipal) focados nos mesmos fins. Assim, deve haver uma melhor definição das competências de cada ente federativo, para reduzir as máquinas públicas. A União, nesse passo, pode assumir um papel regulatório, deixando a cargo de Estados e Municípios a execução das políticas públicas. Desse modo, o Município seria capaz de atender melhor as demandas do cotidiano da população, o que tende a gerar ganhos de eficiência com a descentralização, já que os Municípios estão mais aptos a diagnosticar e atender a demandas de interesse local. Conclusões e posições programáticas Como visto, houve uma deturpação do sistema tributário pela União, que aumentou a carga relativa às contribuições e diminuiu, proporcionalmente, o peso dos impostos no montante total da arrecadação federal. Assim, reduziu-se a quantia repassada aos Estados e Municípios por meio dos fundos de participação, bem como se diminuiu o investimento compulsório a cargo da União na educação de nível superior. A carga tributária brasileira é muito mal repartida entre os entes federativos, pois a União concentra a maior parte do montante arrecadado, enquanto Estados e Municípios são incumbidos de prestar os serviços públicos essenciais à população. Existe uma compreensível e natural insatisfação da população com a carga tributária nacional, que é incompatível com a qualidade dos serviços públicos prestados. A tributação no Brasil concentra-se no consumo, diminuindo o nível de informação da população sobre a carga tributária e tornando o sistema regressivo, o que perpetua as desigualdades sociais. As renúncias fiscais do governo federal representam mais de 10% da carga tributária. Na maior parte, tais renúncias são feitas em relação à arrecadação de impostos compartilhados, o que também diminui os repasses para Estados e Municípios e o investimento compulsório da União na educação de nível superior. Levando-se em conta os gastos tributários federais, a carga tributária brasileira chega a praticamente 40% do PIB (sem considerar, ainda, os efeitos da sonegação). Os Municípios são responsáveis pela prestação dos serviços públicos essenciais ao cidadão, como educação, saúde, transporte, coleta de lixo, infraestrutura urbana, lazer, abastecimento de água e saneamento básico. Assim, sua participação no montante da arrecadação tributária deve ser maior do que os valores atualmente observados, tornando-se compatível com a quantidade de encargos que lhe foi atribuída pelo Constituinte. 85 Em busca da melhor cidade Além disso, deve-se enxugar ao máximo a máquina pública, atribuindo-se à União um papel eminentemente regulatório para determinados serviços públicos, que devem ficar a cargo, com exclusividade, dos Estados e dos Municípios, de sorte a gerar ganhos de eficiência no atendimento à população e redução de despesas com pessoal. Para finalizar, cabe fazer uma breve análise dos acertos e erros dos últimos três governos presidenciais no Brasil, com destaque para os desafios da atual Presidente da República e medidas que entendemos devam ser adotadas. O governo Fernando Henrique Cardoso teve como principal acerto a estabilidade monetária com a criação e valorização da moeda nacional. O governo FHC também acertou na instituição da Lei de Responsabilidade Fiscal, nas privatizações de empresas estatais deficitárias e na adoção, ainda que tardia, do câmbio flutuante. No lado negativo da gestão FHC destacam-se o déficit previdenciário, a política cambial e os juros elevados como consequência dessa política, o que elevou a dívida pública de 29,2% para 55% do PIB. O governo Luiz Inácio Lula da Silva apresentou como grande qualidade a desmistificação de que o aumento real do salário mínimo acabaria criando um rombo nas contas da Previdência, o que trouxe a incorporação da população mais pobre na sociedade de consumo. Além disso, o governo Lula acertou na implantação do “Bolsa Família” (o maior projeto de distribuição de renda da história do País) e por ter dado início ao reequilíbrio do desenvolvimento econômico, expandindo-o para outras regiões do País. Porém, o governo Lula errou ao praticamente abandonar os investimentos em infraestrutura e por não ter levado adiante nenhum tipo de reforma política. Já o governo Dilma Roussef, atualmente no segundo ano de mandato, tem vários desafios a percorrer e deveria adotar as seguintes prioridades: manter os ganhos sociais da gestão anterior; dar prioridade à reforma da Previdência do Setor Público, para evitar o déficit crescente, que se estima chegar a R$ 52 bilhões/ano; priorizar o investimento em infraestrutura básica; levar adiante a reforma fiscal, em um novo arranjo do pacto federativo; acabar com a DRU e promover a alteração da redação do artigo 212 da Constituição Federal de 1988, para que os investimentos compulsórios em educação sejam calculados sobre a receita decorrente de todos os “tributos”, e não apenas de “impostos”; e rever, de forma abrangente, minuciosa e transparente, todas as renúncias fiscais do governo federal, extinguindo-se os incentivos setoriais (vedados pela Constituição Federal). Mas ainda há mais por fazer. Deve haver maior divulgação do montante da carga 86 Samuel Hanan tributária sobre cada produto ou serviço adquirido. Isso deve ser feito não apenas com destaques nas notas fiscais, mas também nos preços divulgados pelas lojas, a fim de que o consumidor esteja efetivamente a par sobre o custo dos produtos e serviços adquiridos e a respectiva carga tributária. Por sinal, o Constituinte de 1988 previu no artigo 150, § 5º da Constituição da República que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços”. Igualmente, deve haver a criação de um foro adequado para o diálogo entre a União, os Estados e Municípios, para evitar que a renúncia de impostos compartilhados continue a ser feita sem a concordância dos Estados e dos Municípios. No que tange aos pactos de renegociação das dívidas, existem várias propostas que podem reduzir a autêntica usura que vem sendo praticada pela União, mantendose na íntegra o restante dos contratos, dentre as quais destacamos: - unificar o indexador para o IPCA e estabelecer juros reais de 3% ou 4%; - estabelecer o teto de remuneração de 85 a 90% da taxa Selic; - ou unificar o indexador para TJLP mais juros de 3% ao ano, igual ao teto cobrado pelo BNDES/BNE/BASA do setor privado. A carga tributária deve, ainda, ser examinada e discutida com a sociedade brasileira, para ser modificada. Não podemos continuar cobrando tributos em montante equivalente aos países mais desenvolvidos e termos serviços públicos em patamares dos países em desenvolvimento. É hora de mudança! 87 Marcos Cintra PhD em Economia pela Universidade de Harvard (EUA), professor, vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas e secretário municipal de Desenvolvimento Econômico e do Trabalho de São Paulo (2009-2012). Foi eleito deputado federal em 1998 e vereador em 1992 e 2008 para a Câmara de São Paulo. Coordena o Conselho Temático sobre Administração Pública do Espaço Democrático. 88 Marcos Cintra Entre a administração pública e a política: o q u e f a z e r ? 89 Em busca da melhor cidade 90 S Marcos Cintra egundo a teoria econômica tradicional, o mercado seria capaz de promover uma eficiente alocação dos recursos produtivos. Por meio da livre concorrência, a iniciativa privada, buscando o lucro máximo, faria com que esse ideal de eficiência fosse atingido. Porém, essa situação ótima depende de situações como a nãoexistência de progresso técnico e que o mercado funcione na condição de perfeita concorrência. Duas situações que não ocorrem na prática. As “falhas de mercado” predominam no funcionamento da atividade econômica. A existência de bens públicos, a falha de competição, as externalidades, os mercados incompletos, a ocorrência de desemprego e inflação e uma indesejada distribuição da riqueza gerada são os fatores que justificam a atuação do poder público, visando o bem estar social. As ações do governo nesse sentido são resumidas como de natureza alocativa, distributiva e estabilizadora. Ação alocativa - Os bens públicos não podem ser fornecidos de forma compatível com as necessidades por intermédio do mercado. O fato de os benefícios estarem disponíveis para todos os consumidores faz com que não haja pagamentos voluntários aos fornecedores desses bens. Assim, o governo deve garantir seu provimento. Esse é o caso típico de serviços como a segurança pública e a justiça. Vale citar que há serviços em que, mesmo sendo produzidos pelo setor privado, o Estado atua de modo parcial em sua provisão, por se tratar de serviços que geram externalidades positivas. São os chamados bens semipúblicos, entre os quais se destacam a saúde e a educação. Outro exemplo de alocação de recursos pelo Estado se refere aos investimentos que demandam longo período de maturação. A demora na geração de lucros desestimula o investimento privado e o poder público intervém diretamente na produção. Esse foi uma situação comum no Brasil nos anos 40, quando foram criadas empresas estatais para produzir aço, produtos petroquímicos, minérios e outros. Finalmente, há os casos das externalidades positivas geradas nos investimentos em infraestrutura, como é o caso da abertura de estradas, que pode ter efeito direto e indireto sobre a atividade econômica de uma região. 91 Em busca da melhor cidade A universalização dos programas de seguridade social na Constituição de 1988 implicou mobilizar recursos tributários e foi um dos fatores preponderantes para a Ação distributiva - A distribuição da riqueza gerada na atividade econômica pode ser um entrave ao desenvolvimento econômico. A desigualdade da absorção da renda entre capital e trabalho, ou o grau de sua concentração nos estratos mais ricos da sociedade, podem ocorrer de modo indesejado, e o governo deve atuar como agente para a promoção de ajustes. O poder público pode atuar através da política fiscal tributando os mais ricos e subsidiando a população carente, ou aplicando mais imposto sobre as camadas de renda mais altas e direcionando esses recursos para programas voltados à população de baixa renda. A seguridade social assume papel importante na função distributiva. Benefícios de assistência social podem ser concedidos para a baixa renda sem que as pessoas tenham contribuído financeiramente. elevação da carga de impostos a partir dos anos 90. Ação estabilizadora - A intervenção do Estado se justifica também porque o sistema de mercado não é capaz de assegurar baixos níveis de desemprego, estabilidade dos preços e crescimento econômico. O poder público deve proteger a economia de flutuações bruscas e estimular a geração de postos de trabalho. Com a política fiscal o governo atua sobre a demanda agregada no sentido de elevar o nível de emprego, estimular o crescimento econômico e contribuir para o controle da inflação. Breve histórico da formação do Estado brasileiro Nos trinta anos seguintes à chegada da esquadra de Pedro Alvares Cabral ao Brasil, a Coroa portuguesa 92 Marcos Cintra não se interessou em colonizar as novas terras, limitando-se a instalar feitorias que marcavam o reconhecimento dessas posses. Tudo começou com o pau-brasil, que desencadeou a primeira atividade econômica no território brasileiro, tendo início o pagamento de tributos e a formação de uma administração pública na América. Como todas as conquistas eram consideradas propriedades do Rei, que não tinha recursos para explorar o pau-brasil, o soberano praticava uma concessão, recebendo em troca um tributo (Quinto), para a exploração dessa matéria prima que tinha grande valor no comércio internacional. Aos concessionários não bastava pagar o Quinto, ele deveriam ainda construir fortificações para defender o território de ataques externos e dos indígenas. Com o tempo notou-se que manter a segurança das terras implicava custos elevados para um particular, e que a exploração do pau-brasil seria insuficiente para financiar tal objetivo. A precária situação obrigou a Corte a instalar um novo modelo administrativo para a colônia. A colonização A fragilidade da estrutura de defesa idealizada pela Coroa portuguesa fez com que franceses e espanhóis começassem a ameaçar a posse do território. Esse fato, associado à perda do monopólio português sobre o comércio indiano, levou a Corte estabelecer um modelo administrativo mais efetivo em terras brasileiras a partir de 1530. A Coroa portuguesa e a institucionalização do fisco - A Coroa portuguesa não dispunha de recursos para colonizar o território brasileiro. Para viabilizar a vinda de pessoas de Portugal para o Brasil, proporcionando lucros para elas e renda para o governo português, era preciso desenvolver uma atividade econômica viável, e a cana de açúcar foi a saída encontrada. Se no âmbito econômico a cana de açúcar foi o produto que daria renda aos empreendedores e ao governo, no aspecto administrativo colocou-se nas mãos de particulares o ônus financeiro da colonização do Brasil, por meio da criação das Capitanias Hereditárias, que eram governadas como uma província, e não exploradas como uma fazenda. Os donatários poderiam fundar povoados, nomear auxiliares, conceder sesmarias e criar tributos. 93 Em busca da melhor cidade Governo geral - Como as Capitanias Hereditárias tinham um caráter definitivo e muitas fracassaram, o governo português criou o Governo-Geral para centralizar a administração colonial. A maior preocupação era a ineficiência na cobrança de tributos e, em 1548, criaram-se as figuras do Provedor-Mor e do Governador-Geral, que assumiram a função de equacionar a caótica situação das finanças coloniais e estabelecer uma administração de acordo com os interesses da Corte. Necessidade de estabelecer uma administração pública - O governo português tinha necessidade de uma exploração organizada sobre o Brasil. Era preciso uma administração que tivesse máximo controle sobre os funcionários que cuidavam das coisas do fisco, uma vez as fraudes se tornaram regra durante o período colonial. Em caso de falta grave de funcionários públicos, eles poderiam ser presos. As pessoas envolvidas com o fisco deveriam colocar seus bens à disposição para cobrir prejuízos que pudessem causar. Opressão fiscal e criação dos arrematadores - As autoridades fazendárias no período colonial ganharam total autonomia em relação aos outros órgãos administrativos. A preocupação do fisco era arrecadar mais e melhor, e abusos foram cometidos por agentes fiscais, que em alguns momentos atuavam de modo arbitrário, muitas vezes sem considerar a capacidade de pagamento do contribuinte. Para se ter uma ideia da opressão fiscal, em muitos postos de arrecadação foram instaladas forças militares para garantir o efetivo recolhimentos dos impostos. Além dos funcionários do fisco, Portugal criou também a figura do rendeiro, que participava de um sistema denominado arrematação. Uma pessoa era responsável pela cobrança de um determinado tributo e podia trabalhar com o dinheiro até acertar as contas com o governo português. Era uma espécie de terceirização da arrecadação pública. As bases tributárias, o ápice da opressão fiscal e a vinda da Corte para o Brasil - Ao longo do período colonial, várias formas de extração de tributos foram adotadas. Parte desses recursos tinha como destino o financiamento da instalação de uma administração pública no Brasil e a construção de cidades em seu território. Dentre as bases de tributação mais comuns destacam-se açúcar, tráfico de escravos, couro, tabaco e ouro. A mineração foi uma das principais fontes de tributos na colônia e, na 94 Marcos Cintra segunda metade do século XVIII, o quadro de abundância aurífera começou a mudar, causando sérios conflitos de interesses entre os colonos e a Corte. Teve início a decadência da produção de ouro e, com isso, a arrecadação começou a cair. A Corte imediatamente suspeitou de sonegação e aumentou a opressão fiscal com a adoção de um sistema denominado Derrama, que deu origem ao movimento rebelde conhecido como Inconfidência Mineira. A rebelião dos colonos contra a opressão fiscal foi um dos eventos mais importantes do período colonial, que começou a sofrer transformações profundas com a fuga da Corte portuguesa da Europa por conta das invasões napoleônicas. Cerca de 10 mil pessoas se deslocaram para a colônia mais rica de Portugal. Com a nova sede do Império português, teve início o processo de emancipação política do Brasil, em 1808. Aumentar o nível dos investimentos públicos no Brasil é indispensável para o País acelerar seu nível de desenvolvimento e é preciso buscar alternativa para isso. Emancipação política A chegada de Napoleão Bonaparte ao poder na França, no fim do século XVIII, deu início a uma série de invasões na Europa. A Espanha foi anexada e Portugal seria o próximo a perder a independência. A vinda da Corte portuguesa para o Brasil implicava despesas, que foram atendidas com a criação de tributos. Esse fato representou um passo importante em direção à emancipação política da colônia poucos anos depois. Novos impostos criados pela Corte e a gestão pública - A criação de novos impostos repetiu a tônica do processo de colonização. Não havia racionalidade para sua implementação. O mais importante era atender as necessidades imediatas da família 95 Em busca da melhor cidade Atualmente a carga de impostos é um dos entraves ao crescimento da economia brasileira. Mais de um terço da riqueza produzida é extraído para financiar o poder público. real, e não gerar benefícios para a população. No âmbito da administração pública, o quadro estatal contava com nobres em altos cargos públicos, muito bem pagos e que mal apareciam para trabalhar, e humildes escriturários, com baixa remuneração que muitas vezes atrasava, por conta das dificuldades financeiras. Independência, Constituição e federalismo embrionário - Com a separação política de Portugal, o Brasil contou com sua primeira Constituição em 1824 e criou-se a expectativa de que os tributos não mais saíssem do território brasileiro. Porém, como a independência se ajustava a interesses da Inglaterra, recursos continuaram sendo enviados para a Europa. A partir da segunda metade do século XIX, o Brasil começou a presenciar um embate entre a monarquia e os republicanos, que defendiam o federalismo e uma nova partilha dos tributos no País. A Guerra do Paraguai, a ascensão dos cafeicultores, o fortalecimento do exército e a abolição da escravatura foram golpes decisivos para o fim da monarquia e o advento do Brasil republicano. Brasil republicano A Constituição republicana promoveu avanços em várias frentes. Deu autonomia aos Estados, concedendo a prerrogativa para eles contraírem empréstimos externos; estabeleceu a independência dos três poderes; e promoveu a separação do Estado e da igreja. Porém, manteve uma faceta cultural da monarquia, que foi a manutenção de extensos poderes ao presidente da República. 96 Marcos Cintra Constituição consagra o federalismo - Um aspecto importante da Constituição de 1891, sob o ponto de vista administrativo, foi a instituição do federalismo. União, Estados e Municípios tiveram definidas suas competências tributárias. Um dos impostos de maior expressão para os Estados foi o incidente sobre exportações, e São Paulo aparece como o principal beneficiado por ser grande produtor de café. Era Vargas - No governo do presidente Getulio Vargas foram implementadas iniciativas de grande envergadura, visando racionalizar a administração pública e modernizar o País, como a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e o fortalecimento do Estado produtor com a criação da CSN, Vale do Rio Doce, Petrobrás e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco. Vale ressaltar o papel do DASP na administração pública brasileira, uma vez que esse órgão foi relevante no fornecimento de assessoria técnica para o presidente da República e na elaboração de orçamentos. Foi decisivo para impor racionalidade à máquina publica do País. Várias outras instituições foram importantes nesse período visando modernizar o Estado brasileiro, como a criação do Departamento de Aviação Civil, Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool, o código florestal, entre outras. Desenvolvimentismo dos anos 50 - Os anos 50 foram marcados por forte atuação ativa do Estado voltada para o desenvolvimento industrial e da infraestrutura. Foi um período de estímulo governamental a setores como o automobilístico, e a implementação de ações voltadas à abertura de estradas, como a rodovia Belém-Brasília. Destaca-se nesse período ainda a construção de Brasília, que contribuiu para a expansão da construção civil e criou um novo complexo administrativo para o País, e a fundação do BNDE (mais tarde BNDES), voltado para o fomento de investimentos. Dirigismo pós 1964 - A partir de 1964, os militares assumem para viabilizar um novo projeto para o Brasil. Saem da caserna e se unem aos tecnocratas com atuação em institutos de pesquisas como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e a ESG (Escola Superior de Guerra). Esse período de forte intervenção estatal se estendeu durante pouco mais de vinte anos. Contando com grande volume de recursos externos, os militares iniciaram uma política desenvolvimentista calcada em grandes obras, como as Usinas de Itaipú e Angra dos Reis. 97 Em busca da melhor cidade Foram criados vários órgãos de superintendência para o desenvolvimento regional, como a Sudene (que vinha do governo JK), Sudam, Sudeco e a Zona Franca de Manaus. Destaca-se na segunda metade dos anos 60 uma profunda e ampla reforma tributária no País, que contribuiu decisivamente para o forte crescimento da economia durante os anos 70. Além de mudanças significativas na sistemática de cobrança de impostos, houve uma concentração de recursos em favor da União, em detrimento da autonomia financeira dos Estados e Municípios. Desestatização - O fim do regime militar em meados dos anos 80 exigiu uma nova Constituição e a reestruturação do modelo estatizante. A Constituição Federal de 1988 promoveu mudanças no sistema tributário, enfatizando a descentralização da receita pública em favor de Estados e Municípios, mas definiu maior alcance das políticas sociais, que passaram a pressionar a carga tributária. Em 1991 foi instituído o PND (Programa Nacional de Desestatização) com o objetivo de privatizar empresas e promover concessões, com ênfase para os setores de siderurgia, petroquímica, fertilizantes, energia elétrica, ferroviário, mineração e financeiro. Constituição Federal de 1988: Brasil monta o seu “Welfare State” A ideia do Estado do bem-estar social se desenvolveu principalmente na Europa, tendo sido implementada mais intensamente nos países nórdicos. Essa forma de organização político-social teve origem com a Grande Depressão dos anos 30 e evoluiu com o fim dos governos totalitários da Europa ocidental. Seus princípios se baseiam no conceito de que todo indivíduo tem o direito, desde seu nascimento até sua morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ser fornecidos direta ou indiretamente pelo Estado. Contempla programas como atendimento médico gratuito e universal, auxílio ao desempregado, assistência ao idoso, garantia de renda mínima, etc. Ideário da universalização das políticas sociais surge em um momento em que os países ricos estão a debatê-lo - O Estado de bem-estar social passou a ser objeto de dúvida e de crítica na Europa e nos Estados Unidos a partir das décadas de 70 e 80, tanto por parte dos pensadores conservadores como 98 Marcos Cintra dos intelectuais de esquerda. Os pensadores conservadores criticaram-no dizendo que ele inibe investimentos, pois absorve um montante excessivo de recursos; leva ao acomodamento do trabalhador, por conta da garantia de estabilidade de emprego; e afugenta empresas nos países com legislação generosa. Já os pensadores de esquerda dizem que essa forma de organização social causa problemas aos trabalhadores, quando, por exemplo, ao invés de solucionar o desemprego cria o salário-desemprego; gera ineficiência e ineficácia ao promover uma burocracia estatal como executora das políticas sociais; e cria uma concepção falsa nos trabalhadores quanto aos problemas sociais, fazendo-os dirigirse não aos empregadores, mas ao Estado, burocratizando as demandas sociais. A expansão da infraestrutura é um dos fatores que limitam o crescimento da economia brasileira e comprometem a qualidade de vida nos grandes centros. Breve relato do capítulo da Seguridade Social na Constituição Federal - A Constituição Federal de 1988 consagrou a ideia de se instituir no Brasil um Welfare State em seus artigos que tratam da Seguridade Social. A generosidade é marcante na Carta Magna do País. O artigo 194 define que a Seguridade Social compreende ações do poder público voltadas a assegurar os direitos à saúde, à previdência social e à assistência social e que sua organização terá como objetivos: - Universalidade da cobertura e do atendimento - Uniformidade dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais - Irredutibilidade do valor dos benefícios - Equidade na forma de custeio - Diversidade da base de financiamento - Gestão com participação de trabalhadores, empregadores, aposentados e governo 99 Em busca da melhor cidade No Brasil, o potencial de cooperação entre o poder público e os agentes privados representa uma magnífica oportunidade para atender a interesses mútuos. Para a implementação dos programas de seguridade, o artigo 195 determina que eles devem ser financiados por toda a sociedade com contribuições: - Do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada, incidente sobre folha de salários, receita ou faturamento e lucro; - Do empregado; e - Sobre receita de concursos de prognósticos Em relação à saúde, a CF determina sua universalidade e que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aplicar um percentual mínimo da arrecadação no setor. No âmbito previdenciário, os programas devem abranger cobertura de doenças, invalidez, morte, idade avançada, proteção à maternidade e ao desempregado, concessão de salário-família, auxílio reclusão e pensão por morte do segurado para os dependentes. Por fim, a vertente da assistência social determina que ela será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição, tendo como objetivos: a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e a garantia de um salário mínimo de benefício ao deficiente e ao idoso que comprovem carência. Elevação dos gastos sociais pressiona a carga tributária - A universalização dos programas de seguridade social na Constituição Federal de outubro de 1988 implicou mobilizar recursos tributários e foi um dos fatores preponderantes para a elevação da 100 Marcos Cintra carga de impostos a partir dos anos 90. Em meados da década de 80 os tributos representavam cerca de 25% do PIB; atualmente o ônus fiscal ronda a casa dos 35%. A tabela a seguir mostra a evolução da carga tributária em relação ao PIB entre 1990 e 2010. Nesse período os tributos abocanharam um adicional de 3,81 pontos percentuais do PIB brasileiro. Os impostos que compõem o orçamento fiscal federal tiveram um ligeiro recuo de 0,64 pp, e os tributos estaduais encolheram 0,61 pp. As contribuições econômicas cresceram 0,97 pp, os tributos municipais avançaram 0,87 pp e as contribuições para a seguridade tiveram um crescimento de 3,24 pp. Dentre os tributos voltados para suprir as necessidades para a seguridade entre 1990 e 2010, o PIS/Pasep praticamente ficou estacionado na casa de 1,1% do PIB. Já as contribuições previdenciárias de empregados e empregadores avançaram de 5,39% para 5,77% do PIB (+ 0,38 pp). A CSLL saiu de 0,57% para 1,24% (+ 0,67%) e a Cofins saltou de 1,61% para 3,79% do PIB (+ 2,18 pp). Cabe lembrar que no período abrangido pelo levantamento apresentado na tabela, a CPMF foi um tributo que durante sua vigência (1997 a 2007) teve seu peso aumentado de 0,80% para 1,37% do PIB (+ 0,57 pp). A ligeira queda do orçamento da seguridade a partir de 2008 pode ser explicada pelo fim desse tributo. Evolução dos orçamentos no Brasil (% do PIB) Tributos 1990 1995 2000 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Fiscal 9,06% 7,67% 8,32% 7,87% 7,85% 8,23% 9,14% 8,30% 8,42% Seguridade 9,30% 9,86% 12,12% 13,19% 13,05% 13,28% 12,37% 12,35% 12,54% Demais * 1,54% 1,85% 2,31% 2,38% 2,44% 2,43% 2,39% 2,49% 2,51% Estados 9,08% 7,91% 8,71% 8,68% 8,59% 8,45% 8,67% 8,48% 8,47% Municípios 0,76% 1,26% 1,48% 1,27% 1,43% 1,55% 1,52% 1,52% 1,63% 29,75% 28,56% 32,,95% 33,38% 33,36% 33,95% 34,11% 33,14% 33,56% Total *Contribuições Econômicas: FGTS, Sistema “S”, Salário Educação, Cide e outros Fonte: Relatórios anuais sobre a Carga Tributária no Brasil, publicados pela Secretaria da Receita Federal (SRF). Atualmente a carga de impostos é um dos entraves ao crescimento da economia brasileira. Mais de um terço da riqueza produzida é extraído para financiar o poder público. Essa proporção só é verificada em países com nível de renda equivalente entre oito e dez vezes à observada no Brasil. 101 Em busca da melhor cidade O Brasil alargou o alcance de sua política de seguridade social a partir dos anos 90 e a carga tributária cresceu em função disso. Hoje o poder público precisa elevar sua taxa de investimentos para remover gargalos da infraestrutura, que comprometem o potencial de crescimento da economia nacional, mas não há espaço para aplicar mais impostos no País. Em termos de elevação do nível de endividamento, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) limita essa possibilidade. Segundo um estudo do Ipea (TD 126 – Como anda o investimento público no Brasil? – 29/12/2011) a taxa de investimentos das administrações públicas no Brasil teve um crescimento de 1,5% do PIB , em 2003, para cerca de 2,5% do PIB no primeiro semestre de 2011. Porém, esse valor ainda fica aquém das necessidades do País. Em outro trabalho, apresentado em seminário da Cepal em 2007 (O reduzido investimento público no Brasil e reflexões para sua retomada) os autores mostram que o investimento público em relação à despesa pública total, no período entre 1998 e 2003, ficou em média em 4,08% no caso do Brasil, bem menor do que em países como Chile (11,07%), África do Sul (10,27%), México (15,02%) e Coréia (22,13%). Portanto, aumentar o nível dos investimentos públicos no Brasil é indispensável para o País acelerar seu nível de desenvolvimento, e é preciso buscar alternativa para isso. Parcerias público-privadaS como alternativa para viabilizar investimentos A combinação entre o endividamento público e as imposições da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e das metas de superávits primários, associadas às despesas legais vinculadas à educação e saúde, gerou um quadro financeiro crítico para o poder público brasileiro. A disponibilidade de recursos orçamentários para investimentos secou dramaticamente. A retomada do crescimento da economia, entre 2004 e 2008, despertou para a necessidade de investimentos na expansão e recuperação da base produtiva do País. A carência e a deterioração das matrizes de energia e transporte e dos sistemas de armazenagem e irrigação colocam em jogo a expansão econômica. Segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), a necessidade de recursos para investimentos em infraestrutura no País nos próximos cinco anos é estimada em R$ 800 bilhões. 102 Marcos Cintra Porém, vale citar que a carência de recursos não se limita às necessidades infraestruturais. A deterioração dos serviços públicos, sobretudo nas áreas de educação, saúde e segurança, atinge níveis alarmantes, capazes de corroer de modo acelerado a sociedade organizada. Um aspecto importante a destacar no tocante aos serviços públicos é que, além da enorme demanda existente, sua oferta compreende custos crescentes por conta do ritmo mais lento de ganhos de produtividade no setor público comparativamente aos agentes privados. Em suma, o País vive um estágio caracterizado por uma enorme demanda por investimentos em infraestrutura e serviços públicos frente a orçamentos dramaticamente restritivos. Não há mais espaço para impor maior carga de impostos ao contribuinte e a margem de endividamento encontra-se no limite. Portanto, a questão que se coloca é: como equacionar este gravíssimo cenário? Como o País poderia eliminar os gargalos que impedem a economia de crescer e de que forma a crise social nos meios rural e urbano poderia ser minimizada? Mais do que qualquer debate envolvendo aspectos ideológicos, o encaminhamento dessa questão passa pela emergência de um novo padrão de relacionamento entre os poderes público e privado. Se, de um lado, há agentes públicos impossibilitados de prover de modo quantitativo e qualitativo serviços e bens tidos como de sua exclusiva competência e, de outro, há capacidade empresarial e financeira ansiosa por oportunidades de negócios, a sociedade precisa instituir meios que favoreçam um ambiente cooperativo. Nesse sentido, a convergência de interesses legítimos dos agentes público e privado se faz necessária. É preciso estimular o brasileiro a poupar com ações junto aos mercados financeiro e de capital; incentivo à previdência complementar; e reforma tributária que reduza a carga de impostos, elevando a renda disponível dos consumidores e das empresas. 103 Em busca da melhor cidade Hoje, os conceitos de força e grandeza se aplicam mais adequadamente às empresas particulares do que ao setor público. Já para o setor público o conceito chave é o da eficiência e da eficácia, e não o da potência bruta. 104 Vale a tese de Vilfredo Pareto, segundo a qual as transações entre dois agentes econômicos ocorrem quando ambos satisfazem seus interesses. A questão da infraestrutura - A expansão da infraestrutura é um dos fatores que limitam o crescimento da economia brasileira e comprometem a qualidade de vida nos grandes centros. O Brasil ainda investe pouco em relação a suas necessidades e quando comparado com outras economias emergentes. Em relação ao PIB, a China investe 46%, Vietnã, 34,5%, Indonésia, 30,8%, Índia, 29,3% e Coréia do Sul 28,7%. A taxa brasileira não alcança 20%. O Brasil tem um grande desafio que é aumentar sua taxa de investimentos em seus três níveis de governo. Há inúmeros gargalos no País que demandam ações urgentes. Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, para levar mercadorias para o Porto de Santos, trens de carga disputam espaço com vagões de passageiros, e isso contribui para que apenas 1% dos contêineres chegue àquele destino pelo transporte ferroviário. Outro caso da necessidade de investimento referese ao fato de o Brasil, que tem a terceira maior rede rodoviária do mundo, possuir apenas 15% de suas rodovias pavimentadas. A situação das estradas brasileiras, que respondem por 60% das mercadorias transportadas, é um dos principais itens do Custo-Brasil a comprometer o agronegócio do País. A perda de grãos é de 6% por conta das péssimas estradas. Segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), o Brasil precisaria investir, em cinco anos, recursos da ordem de R$ 376 Marcos Cintra bilhões em petróleo e gás, R$ 141 bilhões em energia elétrica, R$ 120 bilhões em transporte e logística, R$ 98,5 bilhões em telecomunicações e R$ 67,5 bilhões em saneamento. Há ainda outras necessidades nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília, onde problemas graves de mobilidade urbana e ocupação do solo geram perdas para os trabalhadores e para a geração de riquezas. Isso sem falar na necessidade de recuperação de áreas degradadas. Investimentos no sistema viário, expansão do transporte sobre trilhos, obras contra enchentes e de reurbanização desafiam os governantes e exigem a busca de formas alternativas de obtenção de recurso. Poupança compulsória x poupança livre - Um desafio que se apresenta ao Brasil é o aumento da taxa de poupança, principalmente a que permite proporcionar maior volume do crédito de longo prazo, de tal forma que ela sendo alocada com eficiência permita aumentar os investimentos, sobretudo os voltados à expansão da infraestrutura. Historicamente o Brasil tem uma falha no sistema de crédito de longo prazo. Para suprir essa deficiência foram criados o BNDES e a Caixa Econômica Federal, assim como mecanismo de poupança compulsória como o FGTS e o Pis/Pasep, que obrigam as pessoas e financiar empréstimos de longo prazo, o que voluntariamente elas não fariam. Os mecanismos de poupança compulsória podem ter sido eficientes no passado, mas perderam o sentido na atualidade. Estimular o aumento da poupança livre, principalmente a que eleve o crédito de longo prazo, é uma diretriz a ser seguida. É preciso estimular o brasileiro a poupar de modo voluntário com ações junto aos mercados financeiro e de capital; incentivo à previdência complementar e por capitalização; e implementar uma reforma tributária que reduza a carga individual de impostos, elevando a renda disponível dos consumidores e das empresas. Parcerias Público-Privadas - As parcerias entre agentes públicos e privados são praticadas em diversos países da Europa e no Japão, mas foi no Reino Unido que essas ações obtiveram destaque em projetos nas áreas de transportes, saúde, educação e defesa. A ideia de cooperação é relativamente antiga no mundo ocidental. No Brasil, a legislação no âmbito federal é muito recente, e o potencial de cooperação entre o poder público e os agentes privados representa uma magnífica oportunidade para atender a interesses mútuos. 105 Em busca da melhor cidade Ao setor privado as evidências apontam não apenas para a capacidade técnica, administrativa e gerencial para sua incorporação na produção de bens e serviços a cargo do Estado. Há também capacidade produtiva ociosa em busca de realização e liquidez que poderia ser canalizada, para financiar obras e serviços sob responsabilidade do poder público. Pelo lado do setor público, que não dispõe de recursos para serem investidos de acordo com as necessidades, desenvolver formas cooperativas de atuação com a iniciativa privada é a saída para a realização desses investimentos. Essa interação se apresenta com enorme potencial para a implementação de projetos voltados à qualificação de serviços públicos e para a provisão de equipamentos sociais. Cepac - A proposta do Cepac (Certificado de Potencial Adicional de Construção) surgiu em 1994, num projeto apresentado à Câmara Municipal de São Paulo. O projeto de lei 259/94 foi aprovado em março de 1995, após ter recebido entusiástica avaliação em um congresso de administradores públicos realizado em Toronto, no Canadá. Depois de um longo processo, a lei do Cepac chegou ao Executivo municipal para ser sancionada, mas acabou vetada pela então prefeita Marta Suplicy em agosto de 2001. Curiosamente, o Cepac ressurgiu na lei 13260/01, que criou a Operação Urbana Água Espraiada, e na lei 13430/02, que implantou o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. No âmbito federal, o Cepac foi incluído em 2001 no Estatuto da Cidade, que regulamenta artigos da Constituição referentes à legislação urbana. Em 2003, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) baixou a instrução 401/03 regulamentando a negociação e distribuição de Cepac. O conceito desse instrumento é simples. Em geral, o governo custeia seus gastos com arrecadação e impostos extraídos de toda a coletividade. Mas os benefícios acabam sendo absorvidos de forma diferenciada por alguns segmentos privados. Todos pagam, mas poucos usufruem. A valorização imobiliária é um exemplo típico. O governo investe em obras urbanas com recursos de toda a comunidade. Mas a valorização beneficia apenas os proprietários localizados na área que recebeu os investimentos do governo. Com o Cepac, os direitos adicionais de construção gerados por alterações no zoneamento só poderão ser exercitados mediante a apresentação desses certificados previamente adquiridos. O Cepac soluciona dois problemas: 106 Marcos Cintra 1) transfere para a coletividade parte dos benefícios e lucros gerados por investimentos públicos, que historicamente são absorvidos em sua totalidade por grupos específicos do setor privado; 2) gera recursos para o financiamento não-tributário dos gastos públicos. A ação direta do poder público brasileiro deve ocorrer primordialmente Na prática, o Cepac representa direitos adicionais de construção e de mudança de uso. A Prefeitura vende certificados em leilões públicos, para serem utilizados em duas situações: 1) em áreas sujeitas a operações de reurbanização (operações urbanas); 2) em regiões cujo zoneamento tenha sido alterado. Importante lembrar que a compra do Cepac implica direitos adicionais de construção apenas nas áreas previamente aprovadas pela Câmara Municipal. A lei que cria o Cepac não altera a legislação de uso e ocupação do solo. Ou seja, a Prefeitura continua mantendo total controle do urbanismo. A lei do Cepac avança também, de forma notável, na superação de angustiantes problemas sociais. nas atividades indelegáveis, como segurança pública, diplomacia, defesa nacional e justiça. Merece destaque a emissão de Cepac de forma compensatória, entre outras razões para implementar programas de titulação em áreas invadidas por favelas. Após autorização legislativa, o proprietário da área invadida recebe Cepac em troca da transferência da propriedade para o poder público, que fará o repasse, exclusivamente, aos moradores de favelas. Em resumo, o Cepac é um instrumento que viabiliza projetos urbanísticos, capta recursos financeiros sem gerar endividamento e socializa os benefícios provenientes de investimentos públicos em infraestrutura. 107 Em busca da melhor cidade Estados grandes e fortes, em geral tornam-se opressores em termos fiscais, endividam-se em excesso, extraem cargas tributárias muito além da capacidade contributiva do setor produtivo privado. 108 Diretrizes para a administração pública brasileira A revista The Economist publicou, na edição de 21 de janeiro de 2012, uma matéria especial com o título “The visible hand”, na qual informa que a crise do capitalismo liberal ocidental coincidiu com a ascensão de uma poderosa forma de capitalismo de Estado nos mercados emergentes. No caso do Brasil, a matéria cita que o País vive uma fase de intervencionismo insensato ao obrigar, por exemplo, que a Petrobrás utilize fornecedores locais, que têm custos mais elevados, e obriga a Vale do Rio Doce a manter funcionários que não necessita e ainda afasta seu presidente, mesmo ele sendo reconhecido como um executivo bem sucedido à frente da empresa. A questão colocada pela The Economist deve ser analisada com ponderação. Não deveria servir de parâmetro para o governo brasileiro usar como se fosse uma tendência. Nela, a revista enfatiza a China, cuja intervenção estatal envolve um elevado conteúdo ideológico, e alguns casos de países ricos, cuja atuação do poder público está restrita a alguns setores considerados estratégicos por eles. O Brasil não deveria adotar uma postura intervencionista sem limites. O País precisa rever ideias ultrapassadas, que vira e mexe voltam à tona por meio de políticos e burocratas reféns de velhos dogmas, como o que prega um Estado grande e forte nos moldes do século 19 na Europa ou dos anos 40 no Brasil. Hoje, quem tem recursos e competência para produzir e gerar emprego é o setor privado. Historicamente o poder público no Brasil demonstrou inusitado apetite pelo endividamento e por impor ônus tributário excessivo. O defunto redivivo da Marcos Cintra estatização implica risco de tolher o desenvolvimento do País, além de custar muito caro ao contribuinte. Revendo velhos dogmas - Nas eleições de 2010, um clichê fora de moda foi ressuscitado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao declarar que para gerar desenvolvimento econômico os governos devem ser grandes e fortes. Para lastrear sua afirmação, citou vários países desenvolvidos que possuem cargas tributárias tão elevadas ou mais que a brasileira. Dilma Rousseff, candidata á presidência na ocasião, defendeu essa crença ao afirmar que um Estado forte é necessário para instalar no País um novo “desenvolvimentismo”. O discurso do Partido dos Trabalhadores em defesa da maior presença do Estado na economia revela que o partido resolveu resgatar do baú um modelo de gestão que a história havia sepultado há décadas. A empolgação a favor do intervencionismo estatal exacerbado levou o governo a pensar em recriar empresas como a Telebrás, para tocar o programa de massificação de banda larga, e em criar novas estatais nos setores de fertilizantes e de energia. Fui aluno na Universidade de Harvard de um famoso historiador econômico, professor Alexander Gerschenkron. Ele mostrou que países como França e Alemanha construíram Estados grandes e fortes para complementarem o setor privado no deslanche do processo de crescimento de suas economias. Tais governos investiram em bancos, indústrias e serviços de transportes e comunicação, tendo como padrão comparativo a Inglaterra, onde tais investimentos eram privados. Mas isto foi no século 19. Naquele momento, a presença pública tornou-se necessária para suprir a falta de capitais privados, que eram escassos na Europa continental. Assim, o papel substitutivo do Estado foi essencial para alavancar o desenvolvimento naquelas economias. No Brasil ocorreu algo semelhante. O processo de desenvolvimento econômico com base na intervenção estatal direta foi utilizado no governo de Getulio Vargas, nos anos 40, época da criação de empresas como a CSN, a Petrobrás e a Vale do Rio Doce. Naquela época seria impossível dar impulso à industrialização brasileira sem a ação do Estado. Esse modelo de desenvolvimento, ocorrido há um século e meio na Europa e há mais de sessenta anos no Brasil, não pode ser resgatado para a economia brasileira nos dias atuais, pois não condiz com o cenário econômico contemporâneo. No mundo globalizado, Estado grande e forte, como discursa o PT, enfraquece os setores privados e gera desconfiança junto aos investidores ao redor do mundo. 109 Em busca da melhor cidade Quando a economia fica à mercê do poder público, exposta a interesses de natureza predominantemente políticos, recursos estrangeiros que poderiam ser canalizados para alavancar o crescimento econômico se retraem, deixando de gerar emprego e renda. Hoje, os conceitos de força e grandeza se aplicam mais adequadamente às empresas particulares do que ao setor público. Tanto no Brasil como em outros países, há setores privados capitalizados e prontos para investir. Já para o setor público o conceito chave é o da eficiência e da eficácia, e não o da potência bruta. Hoje, para alavancar o desenvolvimento compete ao Estado um papel supletivo: o da indução e da regulação. Estados grandes e fortes, em geral tornam-se opressores em termos fiscais, endividam-se em excesso, extraem cargas tributárias muito além da capacidade contributiva do setor produtivo privado. Tentam exercer um papel para o qual não possuem nem recursos e menos ainda habilidades, comparativamente aos capitais privados. Ademais, cabe lembrar que as empresas estatais sempre foram disputadas por políticos brasileiros em busca de fontes de financiamento para suas campanhas eleitorais, para acomodar familiares e apaniguados e para distribuir favores à custa da viúva. No passado, setores importantes da atividade produtiva nacional foram loteados entre velhos caciques da política nacional com resultados desastrosos para o País. Ambiguidade do brasileiro: quem administra melhor x privatização - Um aspecto interessante quanto à capacidade de gerenciamento de uma empresa e a visão a respeito da privatização foi levantada em uma pesquisa coordenada pela Fundação Espaço Democrático. Nela apurou-se que os brasileiros têm uma posição ambígua. Metade dos entrevistados considera que o setor privado é mais eficiente, mas 53% são contra a privatização. Pode-se especular em torno dessa posição do brasileiro em função do processo histórico do País, no qual o Estado sempre se posicionou como o grande condutor. Desde o período colonial há uma forte presença do poder público na maioria das questões cotidianas do povo. Porém, a posição atual, de que o setor privado administra melhor uma empresa, pode advir do fato de muitas pessoas entrevistadas reconhecerem que foi graças à recente transferência de empresas do governo para o setor privado que viemos a ter abundância de bens como o telefone, por exemplo. 110 Marcos Cintra É importante que esse levantamento sirva para direcionar o PSD para a necessidade de levantar a bandeira dos benefícios gerados pela privatização, e para a necessidade de o poder público se ater às atividades típicas de governo. As privatizações foram avaliadas em um trabalho coordenado pelo professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), William Eid Junior, (Análise do desempenho financeiro e operacional das empresas recentemente privatizadas no Brasil – 2005) e sua conclusão é que melhoraram a eficiência e a rentabilidade das empresas após a transferência delas para o setor privado, sem que isso tenha provocado redução do número de empregados. O estudo mostra também que os acionistas dessas empresas passaram a receber mais dividendos com o gerenciamento nas mãos da iniciativa privada. Estudo da Fundação Getúlio Vargas mostra que as privatizações melhoraram a eficiência e a rentabilidade das empresas após a transferência delas para o setor privado, Eficiência e eficácia: termos chave - As diretrizes sem que isso que norteiam os agentes privados devem também reger as ações do poder público. A produtividade, para uma empresa, é uma questão de sobrevivência e para isso ela precisa ter como foco a eficiência e a eficácia. Mesmo considerando que um ente público não irá sucumbir como uma empresa, se não atender a necessidade de ser eficiente e eficaz, esses elementos podem e devem guiar as ações de um governante comprometido com o bem-estar social. A eficiência para o setor público poderia ser classificada como um termo quantitativo, em que o Estado ofereça o máximo de um serviço por unidade de recursos humanos e financeiros empregados. Ou seja, os governos em seus três níveis devem atuar disponibilizando a maior quantidade possível de serviço por cada real arrecadado e cada servidor à disposição da população. tenha provocado redução do número de empregados. 111 Em busca da melhor cidade Investir na profissionalização do servidor é um aspecto fundamental para a eficiência do poder público. Em termos de eficácia, a questão refere-se aos resultados alcançados. Se para uma empresa privada esse resultado deve ser o lucro máximo, para o governo a ideia deve ser a qualidade dos serviços prestados. Ou seja, é preciso oferecer ao contribuinte o máximo retorno em termos de bem-estar. A sinergia entre as ações voltadas à eficiência e à eficácia é o elemento estratégico para os governantes comprometidos com uma gestão pública nos moldes da boa governança empresarial. Profissionalização do funcionalismo - Segundo dados oficiais, em setembro de 2007 o número de servidores civis da administração direta, autarquias e fundações do poder executivo federal era de 20.124 servidores. São cargos de direção cujos ocupantes provêm de indicações que muitas vezes são negociadas sob a ótica do interesse meramente político e não visando a boa governança. O apadrinhamento político ocorre no Brasil desde o Império, quando D. João VI, ao se instalar no País, nomeou nobres com altos salários. Essa é uma regra a ser quebrada com uma reforma administrativa e política que vise garantir eficiência e eficácia no trato da coisa pública. Os cargos de livre provimento devem se restringir ao mínimo possível. Deveriam ocorrer apenas para os primeiros escalões da administração pública, por conta de planos estratégicos definidos pelo governo eleito. Investir na profissionalização do servidor é um aspecto fundamental para a eficiência do poder público. Quadros permanentes do funcionalismo vão proporcionar maior qualificação na implementação 112 de políticas governamentais, e tornariam o Estado menos vulnerável à ação de políticos que vêm essas indicações uma forma de acomodar apaniguados às custas do erário. Foco nas atividades indelegáveis - A ação direta do poder público brasileiro deve ocorrer primordialmente nas atividades indelegáveis, como segurança pública, diplomacia, defesa nacional e justiça. São típicos bens públicos, que se distinguem dos demais pela indivisibilidade de consumo, isto é, são disponibilizados para todos os cidadãos, independentemente de manifestação de preferência. A atuação do Estado também deve ocorrer em bens que, embora passíveis de exploração pela iniciativa privada, permitam externalidades positivas, como é o caso da educação e a saúde. Essa é uma área onde o poder público brasileiro carece de atuação eficiente e eficaz, e na qual é preciso não só mobilizar recursos, mas promover profundas mudanças administrativas que revertam a lamentável situação da educação fundamental e do ensino de nível médio, e da saúde em geral. No âmbito da provisão de infraestrutura, as regras devem ser as parcerias e concessões e a utilização dos Cepacs. 113 Eleuses Paiva Deputado federal pelo PSD de São Paulo. Médico, foi presidente da APM (Associação Paulista de Medicina) e da AMB (Associação Médica Brasileira). É vice-presidente da Frente Parlamentar da Saúde no Congresso Nacional. Coordena o Conselho Temático sobre Saúde do Espaço Democrático. 114 Eleuses Paiva Município saudável, P a í s saudável 115 Em busca da melhor cidade 116 A Eleuses Paiva lguns séculos atrás, não havia participação do Estado nas questões relacionadas à saúde. Na verdade nem havia um Estado organizado. Naqueles tempos, do ponto de vista do tratamento das doenças, o que se utilizava eram basicamente as ervas, simpatias e restrições alimentares, portanto, praticamente sem custos. Muito tempo depois, surgiram os hospitais, ainda numa fase de pouco desenvolvimento da medicina, muito mais como locais de assistência social e religiosa do que de assistência médica. Foi a colonização portuguesa que nos trouxe a participação da Igreja Católica no cuidado da saúde por meio das Santas Casas de Misericórdia, que continuam até hoje a prestar relevantes serviços à população, notadamente aquela mais pobre. No Brasil, a participação do Estado na área da saúde se inicia pelas medidas de controle sobre o meio ambiente, principalmente sobre os portos, que se constituíam um recurso estratégico para a economia. Com o tempo, evolui das ações de controle da qualidade dos alimentos para as ditas ações de saúde pública, tais como vacinação e controle das doenças transmissíveis. Nessa fase, a atuação do governo se dava de modo totalmente centralizado, e a responsabilidade se restringia ao governo federal, com pouca ou nenhuma participação dos governos estaduais e municipais. A ausência da ação do Estado nos campos da previdência e assistencial social bem como da saúde fez com que os trabalhadores urbanos se organizassem, no início do século XX, para construir uma solução que resultou na criação das Caixas de Aposentadorias e Pensão por grupos ocupacionais. Essa iniciativa foi de caráter totalmente privado, sendo que a participação do Estado veio depois com o reconhecimento da sua importância social e principalmente política. Essas Caixas evoluíram posteriormente para os Institutos de Aposentadorias e Pensão, tais como o IAPI, dos industriários, o IAPC, dos comerciários, o IAPB dos bancários, etc. Durante a ditadura militar, esses institutos foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social, o INPS. Em seguida, o INPS foi estruturado em áreas de atuação, sendo que, para cuidar da assistência à saúde dos segurados, foi criado o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). O INAMPS tinha como missão ofertar assistência médica aos trabalhadores com carteira assinada e seus dependentes. Funcionava, na verdade, como um segurosaúde. Os trabalhadores contribuíam mensalmente com um valor descontado 117 Em busca da melhor cidade O SUS foi concebido de forma a depender da ação conjunta das três esferas de governo. Isto torna a sua gestão mais complexa, porém mais efetiva. 118 diretamente na folha salarial. Os demais brasileiros, ou dispunham de recursos para custear diretamente a sua assistência ou ficavam na dependência da caridade das entidades filantrópicas. Para o cumprimento de sua missão, o INAMPS priorizava a assistência médica, particularmente aquela prestada em âmbito hospitalar. Ocorre que este modelo foi se mostrando insustentável. Por um lado, em função do crescimento dos custos decorrente da incorporação de novas tecnologias e, por outro, em função da ausência de políticas de promoção da saúde e prevenção das doenças. É importante destacar a verdadeira revolução tecnológica ocorrida a partir da metade do século passado com a incorporação de novos recursos diagnósticos e terapêuticos. Ocorre que, na saúde, a incorporação de novas tecnologias tem um comportamento diferente de qualquer outra atividade econômica, resultando em acumulação da tecnologia existente, em vez de substituição (por exemplo, o ultrassom e a tomografia não substituíram o raio-X convencional), em aumento dos custos e, principalmente, no aumento da incorporação de recursos humanos. Toda essa conjuntura, somada a períodos de baixa atividade econômica (desemprego e baixa da arrecadação), levou ao agravamento da crise de financiamento da Previdência Social, inclusive para o INAMPS, com graves consequências para a qualidade da assistência a saúde prestada aos seus segurados. Esse processo de grande desenvolvimento do conhecimento e da incorporação de novas tecnologias, que ampliavam enormemente as possibilidade de diagnóstico e de tratamentos das doenças, tornou cada dia mais evidente a injusta exclusão de muitos brasileiros que não estavam formalmente inseridos Eleuses Paiva no mercado de trabalho, e que, portanto, não estavam protegidos pela Previdência Social. Essa situação se dava exatamente no período em que a sociedade brasileira se organizava em busca da redemocratização do País, quando a questão da saúde assumiu um papel de destaque. Como principal marco da redemocratização do Brasil se apresenta a Constituição Federal de 1988, que trouxe grandes avanços na área de proteção social. Destaca-se a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, estabelecendo, no Artigo 196, que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. No entanto, a criação do SUS não significou (nem poderia) sua implantação efetiva. Este é um longo processo cujo segundo passo foi a aprovação em 1990 da Lei Orgânica da Saúde, a Lei 8.080. Ao longo desses mais de 20 anos, o SUS tem alcançado grandes avanços, mas ainda persistem grandes desafios. Muito se avançou quanto ao cumprimento do princípio da universalidade. Esse avanço decorre fundamentalmente da participação maciça dos Municípios brasileiros, que assumiram suas responsabilidades, principalmente no que se refere a Atenção Básica à Saúde, em grande medida por meio do Programa de Saúde da Família, o PSF. Mas o SUS foi concebido de forma a depender da ação conjunta das três esferas de governo. Isto torna a sua gestão mais complexa, porém mais efetiva. Para tornar esse modelo de gestão possível, foram criados espaços de compartilhamento da gestão por meio de pactuações. Nos Estados são as Comissões Gestoras Bipartites, as CIBs, compostas por representantes dos Municípios e do Estado e no âmbito nacional, a Comissão Intergestora Tripartite, a CIT, composta por representantes do Ministério da Saúde, das Secretaria Estaduais de Saúde e das Secretarias Municipais de Saúde. Desse modo, é possível se afirmar que tanto os sucessos quanto os insucessos que acontecem no SUS são de igual responsabilidade da gestão municipal, estadual e federal. No entanto, frequentemente se vê o Ministério da Saúde tomando decisões para a implantação de medidas, de modo isolado, muitas vezes, com sérias implicações financeiras para Estados e Municípios. Ocorre que, independentemente destes problemas circunstanciais, alguns 119 Em busca da melhor cidade desafios são exclusivos dos Municípios, principalmente daqueles de pequeno porte (com população inferior a 20 mil habitantes), que são maioria no Brasil. Dentre estes, se destaca a contratação de profissionais de saúde, em especial os médicos. Este problema decorre da falta de uma carreira de Estado para os médicos, resultado da omissão do Ministério da Saúde. Tal carreira, por exemplo, contribuiria para uma melhor distribuição dos médicos hoje concentrados nas grandes cidades no centro-sul. Esta situação tem levado os Municípios brasileiros a assumirem compromissos financeiros com a saúde que praticamente os impossibilitam de dar conta de outras áreas da gestão municipal. De todo modo, são inegáveis os avanços obtidos pelo sistema de saúde brasileiro. Recentemente, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo realizou uma pesquisa para avaliar o nível de contentamento entre as pessoas que usam os serviços municipais de saúde. A pesquisa ouviu 3.500 pessoas em duas etapas (2.000 em março de 2008, 1.500 em fevereiro de 2009). Nas duas ocasiões, ficou evidente a percepção de que, embora ainda não seja ótima, a saúde pública apresenta melhoras significativas na cidade de São Paulo. Em 2008, 51% dos entrevistados consideraram bom ou ótimo o atendimento em urgência e emergência; em 2009, a aprovação subiu para 61%. A prevalência de bom e ótimo se repete em outras áreas, como atendimento ambulatorial (50% em 2008, 55% em 2009), atendimento especializado em cardiologia, ortopedia e outros (57% e 61%), internação (74% e 78%) e cirurgias (74% e 87%). Mas também existem bons resultados de abrangência nacional. Recentemente a imprensa divulgou os novos dados da mortalidade infantil. A taxa teve redução recorde na última década, e chegou a 15,6 mortes de menores de um ano de idade por mil nascidos vivos, segundo dados do Censo 2010 divulgados pelo IBGE. O índice é 47,5% menor que os 29,7 por mil registrados no ano 2000. Porém, apesar dos avanços, o Brasil ainda está longe dos padrões dos países mais desenvolvidos, de cinco mortes por mil nascidos vivos ou menos, e continua atrás da Argentina (13,4 por mil), Uruguai (13,1por mil ) e Chile (7,2 por mil). Sem dúvida, muito desses resultados se deve ao SUS, que presta assistência à saúde para mais de 92% dos brasileiros e ações de prevenção de doenças e promoção da saúde para a totalidade da população. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Brasil, 2006), 61,5% dos brasileiros são usuários 120 Eleuses Paiva exclusivos do SUS, 28,6% são usuários não exclusivos e apenas 8,7% dos brasileiros não são usuários do SUS. O Estado de São Paulo apresenta o maior percentual de cobertura de planos e seguros privados de saúde, com 37,8%. O SUS apresenta números impressionantes: em 2007, foram 610 milhões de consultas, 2,7 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 10,8 milhões de internações, 212 milhões de atendimentos odontológicos, 403 milhões de exames laboratoriais, 2,1 milhões de partos , 150 milhões de doses de vacina, 9,7 milhões de seções de hemodiálise. (Santos NR, 2009). Mas a saúde também tem importância econômica. Entre 2000 e 2005, as atividades de saúde foram diretamente responsáveis, em média, por mais de 4% do total de postos de trabalho no País. Os dois setores com maior número de ocupações são a saúde pública, gerando 1,3 milhão de postos de trabalho e outras atividades vinculadas à saúde, com 1 milhão de empregos (Santos NR). Os Municípios brasileiros têm assumido compromissos financeiros com a saúde que praticamente os impossibilitam de dar conta de outras áreas da gestão pública. O público e o privado na saúde Por várias razões, o SUS vem se consolidando como parte de um sistema segmentado que incorpora dois outros subsistemas relevantes, o Sistema de Saúde Suplementar e o de Desembolso Direto (Brasil, 2006). O Sistema de Saúde Suplementar é um sistema privado de assistência à saúde, exercitado por operadoras privadas, que durante a década de 1990 teve crescimento desordenado e desregulado (Brasil, 2007). Entre os fatores que levaram a este crescimento, 121 Em busca da melhor cidade A assistência farmacêutica é um dos grandes desafios à consolidação do SUS. No Brasil, a compra de medicamentos é o item mais importante na despesa das famílias com saúde. 122 está o subfinanciamento do SUS, e suas consequências sobre a oferta e qualidade dos serviços prestados, além do fato de ter sido esse um período em que a conjuntura internacional vivia uma onda conservadora de reformas, em vários países, nos planos econômico, social e político, com reflexos no Brasil. Esse crescimento desordenado e desregulado do Sistema de Saúde Suplementar foi estruturado em linhas gerais a partir de quatro segmentos, quais sejam: Medicina de Grupo; Seguro de Saúde; Cooperativa Médica; e Autogestão. Cada um destes segmentos apesar de possuir características e formas de organização, inclusive com órgãos de representação social diferentes, possui basicamente a mesma natureza da atividade desenvolvida (Brasil, 2007). Esse crescimento desregulado era resultado na falta de norma legal que ordenasse o setor. O projeto de lei de planos de saúde há muito era discutido no Congresso Nacional e, em 1998, mediante acordo entre as duas casas legislativas e o Executivo, o texto da Câmara foi aprovado pelo Senado com as alterações possíveis apenas por emendas supressivas e foi sancionada a Lei 9.656/98. No entanto, não chegou a vigorar imediatamente, em função da emissão de uma Medida Provisória alterando a referida Lei. Os primeiros passos de grande impacto social da regulamentação – que se caracterizaram por avanços e inovações no setor de planos e seguros de saúde – ocorreram no período de 1998 a 1999. Em novembro de 1999, foi criada a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio da Medida Provisória (MP) nº 1.928, aprovada pelo Congresso Nacional e convertida na Lei nº 9.961, de 28/01/2000. Eleuses Paiva Na última década não houve qualquer avanço que pudesse significar um aperfeiçoamento da Lei 9.656/98, bem como da atuação da ANS, para melhor atender as necessidades dos usuários. Esta é uma agenda que se impõe no quadro político atual. Os desafios da assistência farmacêutica Há décadas se reconhece internacionalmente o acesso aos medicamentos como uma condição essencial para o efetivo direito à saúde. No entanto, aproximadamente um terço da população mundial não tem acesso adequado a medicamentos. Por outro lado, desde as últimas décadas do século passado, muitos cientistas têm chamado a atenção para o excessivo uso de medicamentos nas sociedades ocidentais, seja pela aquisição direta pela população ou por exagero nas prescrições médicas com riscos para a saúde individual e da coletividade. Antes do SUS a assistência farmacêutica para a população em geral não era atribuição do setor público de saúde. Contudo, o Ministério da Saúde se responsabilizava pelo fornecimento de medicamentos para doenças transmissíveis, tais como a tuberculose, hanseníase, malária, etc Atualmente, a assistência farmacêutica constitui-se um dos grandes desafios à consolidação do SUS, uma vez que o acesso a medicamentos de qualidade, no momento adequado, é condição fundamental para se garantir bons resultados na assistência prestada. No Brasil, na despesa das famílias com saúde, o item mais importante é a compra de medicamentos. Para fazer frente a este desafio, foram realizadas várias pactuações entre as três esferas de governo para a divisão de responsabilidades. Ocorre que, muitas vezes, em função da proximidade, a população cobra diretamente da gestão municipal o acesso a medicamentos que seriam de responsabilidade de outra esfera de governo. A questão das sentenças judiciais para o fornecimento de medicamentos torna ainda mais grave a situação. Embora se reconheçam as dificuldades para a solução deste desafio, entende-se que a intensificação do uso dos medicamentos genéricos, a avaliação de novos medicamentos (não concedendo registro àqueles que não apresentam inovação mas apenas nova roupagem com preços abusivos) e o estabelecimento de protocolos são medidas que podem trazer melhorias quanto ao acesso da população a medicamentos. 123 Em busca da melhor cidade Os desafios do financiamento da saúde no Brasil Os serviços de saúde têm custos elevados e os gastos não param de crescer. No SUS, a pressão sobre o aumento das despesas se explica pelo caráter universal, pela incorporação de novas tecnologias e pelo envelhecimento da população. É inegável o quanto o SUS é um projeto ambicioso, que foi concebido aparentemente sem a correspondente garantia de financiamento. No entanto, isto não ocorreu por imprevidência, já que desde a proposta apresentada pela Comissão Nacional da Reforma Sanitária, criada em 1986, se pretendia vincular à saúde recursos equivalentes a 10% do PIB. Em função do insucesso desta proposta, os constituintes vinculados à reforma sanitária conseguiram aprovar nas Disposições Transitórias da CF 88 que deveriam ser destinados à saúde, obrigatoriamente, no mínimo 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS), excluído o seguro desemprego. Porém, nunca se obteve qualquer forma de vinculação de recursos para a saúde. No início, o financiamento do SUS teve como principal fonte os recursos da Previdência Social, através do INAMPS. Ocorre que, em 1993, o MPAS deixou de transferir os recursos do INAMPS, o que significou a perda da principal fonte de financiamento do SUS. Esta situação levou a uma grave crise de financiamento do SUS, chegando a ameaçar a sua viabilidade. Diante deste quadro, criaram-se algumas alternativas, sem sucesso, para conceder alguma estabilidade ao financiamento do sistema público, dentre as quais se destacam a Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), em 1996, e a Emenda Constitucional nº 29 (EC 29), em 2000. A EC 29 somente foi regulamentada no final de 2011, sem trazer qualquer centavo a mais para a saúde. O problema continua. Os planos e seguros de saúde declararam ter arrecadado, em 2009, cerca de R$ 64 bilhões para atender, apenas na assistência, a 43 milhões de usuários, o que significa um valor per capita de R$ 1.488. Adotando o mesmo valor per capita, chegaríamos a um orçamento total do SUS, para atendimento de toda a população brasileira, de R$ 284 bilhões. No entanto, o orçamento naquele ano foi de apenas R$ 62 bilhões. Diante destes números, é possível dizer que o problema do SUS não é falta de dinheiro? Muitos críticos do SUS dizem que o gasto total com saúde no Brasil é alto (8,4% 124 Eleuses Paiva do PIB em 2007), comparável a países como o Japão (8,0% do PIB), Austrália (8,9% do PIB), Argentina (10,0%) e Canadá (10,1%). No entanto, esquecemse de dizer que, no Brasil, o gasto público com saúde é muito baixo, se comparado com países de sistemas universais. É de apenas 212 dólares per capita/ano, valor inferior ao da Argentina (426 dólares), México (372 dólares) e Costa Rica (305 dólares). No Brasil, os gastos públicos com saúde correspondem a apenas 45,3% do gasto total, enquanto, por exemplo, na Espanha correspondem a 71,3 %, na Itália 75,1%, na França 76,35, na Costa Rica 78,8%. O que é importante compreender é que quanto menor o gasto público, maior é o gasto das famílias e das empresas privadas, e menor é o gasto do governo. Uma importante questão para o equacionamento deste problema é a divisão das responsabilidades entre as três esferas de governo. Enquanto o governo federal arrecada 64% do total da receita pública, é responsável por apenas 49,9% dos gastos com a saúde, enquanto os Estados arrecadam e gastam exatamente os mesmos 23%, e os Municípios arrecadam apenas 13%, e são responsáveis por 27% dos gastos com o SUS (Sobrinho e Sousa, 2011). Esta situação vem se agravando ao longo das últimas décadas. Em 1980, a União era responsável por 75% das despesas públicas com saúde, enquanto os Estados eram responsáveis por 17,8%, e os Municípios por apenas 7,2%. Em 2008, a União participou com apenas 43,5%, a participação dos Estados cresceu 10 pontos percentuais (com 27,6%), e a participação dos Municípios quadruplicou, passando para 29,0%. Esses dados demonstram o quanto Muitos críticos do SUS dizem que o gasto total com saúde no Brasil é alto (8,4% do PIB em 2007), mas esquecem-se de dizer que o gasto público com saúde é muito baixo, se comparado com países de sistemas universais (US$ 212 per capita/ano). 125 Em busca da melhor cidade É importante compreender que quanto menor o gasto público, maior é o gasto das famílias e das empresas privadas, e menor é o gasto do governo. 126 o processo de construção do SUS está sobrecarregando os Estados e, principalmente, os Municípios (Brasil, 2011). Desse modo, fica evidente que a solução para o grave problema de financiamento do SUS passa, necessariamente, pela ampliação da participação do governo federal. Como pedido de socorro Uma Emenda Popular A frustrante aprovação da Emenda 29, onde estavam depositadas grandes expectativas de solução para a falta de dinheiro no SUS, mostrou a todos que era hora de agir independentemente do governo federal, que eximiu a União de repassar verbas para o setor da saúde, deixando para Estados e Municípios a obrigação de aplicar, respectivamente, 12% e 15% do que arrecadam. Vendo a saúde pública agonizar, conhecendo a realidade dela no País e consciente do direito que lhes reserva a Carta Magna, a população se uniu para pressionar pela melhoria da saúde no Brasil. Assim nasceu um projeto de lei de iniciativa popular, que propõe o investimento, de no mínimo, 10% da receita corrente bruta da União para a saúde. Vários segmentos da sociedade estão envolvidos na causa. Mais de 65 entidades, dentre elas OAB, CNBB/ Pastoral da Saúde, AMB, CONASS, CONASEMS, entre outras, estão envolvidas com este movimento para mobilizar as pessoas e conseguir coletar ao menos 1,5 milhão de assinaturas, com o objetivo de levar a proposta ao Congresso Nacional. O número de assinaturas corresponde a 1% do eleitorado nacional, distribuídas em pelo menos Eleuses Paiva cinco Estados (0,3% dos eleitores de cada um). Desta forma, o projeto será apresentado e seguirá a tramitação normal no Congresso. Este projeto modifica a Lei Complementar nº 141/12, que regulamentou a Emenda Constitucional 29, não só em relação ao subfinanciamento do SUS, mas também apresenta a proposta de aplicação dos recursos em conta vinculada, mantida em instituição financeira oficial, sob responsabilidade do gestor de saúde. Assim, somente com mais recursos na saúde o povo brasileiro poderá contar com um sistema público que atenda as suas necessidades e que possa ser considerado como um patrimônio. Referências bibliográficas 1. Censo 2010 - IBGE 2. Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Saúde Suplementar. Brasília, DF, 2007a.(Coleção Progestores - Para entender a gestão do SUS, 11). 3. Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O Financiamento da Saúde/Conselho Nacional de Secretários de Saúde. – Brasília: CONASS, 2011. 124 p. (Coleção Para Entender a Gestão do SUS 2011,2) 4. Santos NR A Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde: tendências e desafios após 20 anos, in Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.33, numero 81, jan/abr de 2009 5. Sobrinho EJMA, Sousa MF. Este jogo não pode ser 1 x 1: A trajetória da politica de saúde no Brasil. In Perillo EBF, Amorim MCS, Organizadores. Para entender a saúde no Brasil 4. São Paulo (SP): LCTE Editora; 2011. P.11-25 127 Alexandre Schneider Foi o secretário municipal de Educação em São Paulo que mais tempo permaneceu no cargo (2006-2012). É mestre em administração pública pela FGV e foi responsável pela criação e implantação do Infocrim – o primeiro sistema de georeferenciamento criminal do Brasil. Coordena o Conselho Temático sobre Educação do Espaço Democrático. 128 Alexandre Schneider O salto E d u c a c i o n a l começa perto de casa 129 Em busca da melhor cidade 130 Alexandre Schneider F “A palavra ‘progresso’ não terá qualquer sentido enquanto houver crianças infelizes.” - Albert Einstein alta pouco - uma frase curta, lacônica e que vem sendo repetida entre muitos cientistas políticos, sociólogos, economistas e especialistas do mercado financeiro. De estrela do BRICS a sede da Copa, o Brasil alimenta expectativas, esperanças e figura em diversas projeções econômicas - e estas, bastante otimistas. No pouco que falta, entretanto, falta educação. Porque ainda não fomos, governo e sociedade, capazes de garantir que todos os brasileiros saibam ler e escrever, fazer contas e, sobretudo, entender o significado das letras e palavras que aprendem e repetem no cotidiano. Seja nos emergentes asiáticos ou em outros países que se destacam pela excelência de sua educação, como a Finlândia e o Canadá, a característica predominante é sempre a mesma: sociedade e governo compartilham, defendem e praticam o mesmo ideal. Governo e sociedade garantem educação de qualidade a cada um de seus cidadãos desde os primeiros anos de vida. Naturalmente, no papel e no discurso parece mais simples. Porém, é possível. E tão possível que está acontecendo em São Paulo. A educação no Município vem sendo fortemente alavancada desde 2005, obtendo ano a ano grandes e importantes conquistas. A primeira: a escola. A gestão iniciada em 2005 e reeleita em 2008 foi responsável pelo fim das chamadas “escolas de lata”, uma solução emergencial implantada entre 1997 e 2000 como solução temporária e que se manteve por quase dez anos. Eram estruturas metálicas, quentes no verão, frias no inverno e absolutamente sensíveis a qualquer barulho externo, fosse de chuva, de passarinho ou, bem mais comum nos grandes centros, de buzinas de caminhão. Reestruturamos a rede. Tiramos da escola os programas assistenciais que desviavam diretores e funcionários de suas tarefas educativas: a entrega de leite passou a ser feita pelos Correios e a logística de distribuição de material e uniformes escolares deixou de ser executada pela rede. Ao mesmo tempo, tratamos de recuperar os nossos equipamentos: foram construídas e entregues mais de 250 novas escolas e reformadas outras 1.200. Escolas novas, pensamento novo: modificamos também as salas de aula. Reduzimos o número de alunos e determinamos uma quantidade máxima para as creches (média de 12 crianças por sala), a educação infantil (30 a 31 alunos por sala) e o ensino 131 Em busca da melhor cidade A gestão iniciada em 2005 e reeleita em 2008 acabou com as “escolas de lata”, uma solução emergencial implantada em 1997 como solução temporária e mantida por quase dez anos. Foram construídas e entregues mais de 250 novas escolas e reformadas outras 1.200. 132 fundamental, que agora tem no máximo 35 alunos, mas chegava a ter até 46 alunos. A Prefeitura de São Paulo se mostrou também pioneira no atendimento às crianças portadoras de deficiência. São Paulo implantou o INCLUI, o maior e mais completo programa de educação inclusiva do Brasil. A Rede Municipal atende hoje cerca de 17 mil crianças, adolescentes, jovens e adultos com deficiência intelectual, visual, física, auditiva e múltipla, assim como alunos com condutas típicas de quadros neurológicos, psiquiátricos e psicológicos, que, no contexto escolar, evidenciam necessidades educacionais especiais e demandam atendimento especializado. Foram criados 13 Centros de Formação e Apoio à Inclusão, que apoiam as escolas na execução dos programas. Também foram contratados 1.300 estagiários que auxiliam os professores em salas onde há alunos com deficiência, e ainda outros 500 auxiliares de Vida Escolar, pessoas da comunidade que são formadas por profissionais da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) para acompanhar e apoiar os alunos com deficiências severas, que não tem autonomia para se alimentar, fazer sua higiene própria ou se locomover. O Município também garante Transporte Escolar Adaptado a todos os alunos com deficiência da rede, e formação especializada para mais de 30 mil professores para atuar com os alunos com deficiência. E São Paulo sai na frente também em relação às creches: é o único Município no País a publicar na Internet a demanda por creches. É também o único Município que publica a lista dos interessados em vagas, garantindo absoluta transparência para as famílias e os órgãos de controle. Nos últimos oito anos, a cidade é a que mais aumentou o número de matrícu- Alexandre Schneider las em creche no País. Em 2004 eram 60 mil crianças de 0 a 3 anos completos nas creches do Município. Em dezembro de 2010 este número subiu para 130 mil. E não é só nas creches que as coisas mudaram. Antes, na Educação Infantil, 91% dos alunos estudavam em escolas organizadas em três períodos de 4 horas diárias. Hoje 97% dos alunos estudam em escolas organizadas em dois períodos de 6 ou 8 horas. No Ensino Fundamental, em 2005, a jornada de todos os alunos era de somente 4 horas diárias. E 80% dos alunos frequentavam escolas organizadas em três turnos diurnos. Hoje apenas 6% dos alunos frequentam escolas organizadas em três turnos diurnos. E em 2013 todos os alunos do ensino fundamental estarão em escolas organizadas em 2 turnos diurnos. Com esta reorganização, os alunos do ensino fundamental tiveram sua jornada ampliada de 4 para 5 horas diárias e com isso, têm acesso desde o primeiro ano a novas disciplinas obrigatórias na grade escolar: Leitura, Tecnologia de Informação e Comunicação, Educação Artística, Educação Física e Inglês. É importante lembrar que a cidade de São Paulo convivia há 30 anos com escolas organizadas em três turnos. Além de ampliar a permanência dos alunos do ensino fundamental de 4 para 5 horas diárias, nossa gestão deu um passo na ampliação da jornada para 7 horas diárias com a criação do Programa Ampliar, que oferece mais de 300 mil vagas no contraturno escolar. São 125 mil vagas de recuperação paralela e cerca de 188 mil em atividades esportivas e culturais, como a criação de rádios escolares, oficinas de vídeo e de mídias sociais, xadrez, ginástica rítmica, esportes coletivos, música, bandas e fanfarras, teatro e dança. Enquanto o Congresso discute a ampliação da carga horária para 960 horas em 200 dias letivos, a rede municipal de São Paulo já faz mais que isso: cerca de 608 mil alunos já estudam em pelo menos 5 horas/dia, totalizando não 960, mas, 1.000 horas nos 200 dias letivos. É fundamental citar a importância da parceria e apoio dos professores e funcionários da rede. Os profissionais que garantem a educação para as nossas crianças também tiveram carreira, salário, cursos e materiais garantidos pelo poder público. Hoje há um mínimo de 30 mil vagas de formação por ano e são disponibilizadas assinatura de revistas voltadas à educação para todos os profissionais, além do Cartão do Educador, que, numa parceria com a Câmara Brasileira do Livro, dá desconto em todas as livrarias da cidade. E porque tivemos uma Prefeitura dedicada à educação, foi também possível realizar o mais agressivo plano de aumento salarial da história de São Paulo. 133 Em busca da melhor cidade Foram concedidos aumentos salariais superiores à inflação do período, e o piso salarial mais do que dobrou. Um professor com 40hs/aula (25 com os alunos e 15 de preparação) recebia R$1.215,00 como salário inicial em 2005. Hoje o piso é de R$ 2.600,00. Com isso, a cidade de São Paulo passou a ter um dos mais altos pisos salariais do Brasil, e hoje atrai professores de outras redes públicas e da rede particular da cidade. Por tudo isso, São Paulo celebra. E por isso criou o Valeu Professor. Inspirado na Virada Cultural, o Valeu Professor promove, uma vez por ano e em um fim de semana, eventos espalhados por toda a cidade que são exclusivos para os professores e funcionários da rede. Eles participam de concursos de contos, de artes plásticas e música. Museus, CEUs, teatros e outros equipamentos públicos e privados elaboram programações especiais para os professores e nesta semana também são homenageados professores que se destacam nas suas funções com projetos inovadores. A cidade reconhece e valoriza o professor que melhor ensina, o que insiste e o que garante a cada criança o seu direito de ler e escrever - e isso traz aqui a lembrança do mais importante programa implantado na gestão. Lançado em fevereiro de 2006, o Programa Ler e Escrever foi a primeira iniciativa da Prefeitura de São Paulo com foco na alfabetização dos alunos e englobou dois projetos: o TOF (Toda Força ao Primeiro Ano) e o PIC. O TOF compreende o início da alfabetização dos alunos, no primeiro ano do ensino fundamental, e o PIC trabalha com os alunos que chegam ao último ano do ciclo com dificuldades de aprendizagem. As classes de primeiro ano contam com material e formação específicos para os professores, além de um professor auxiliar, aluno de pedagogia que é acompanhado pela universidade a que pertence e pela Secretaria. Já os alunos do último ano do ciclo que apresentam dificuldades de aprendizagem são organizados em classes menores e também contam com material específico. O programa Ler e Escrever foi levado à rede estadual de São Paulo e também já está presente em outros Municípios brasileiros. Integralmente elaborado pela Secretaria Municipal de Educação, os materiais do Programa Ler e Escrever estão sob uma licença autoral Creative Commons, que permite a qualquer professor, organização ou secretaria a sua utilização gratuita, desde que citada a fonte. Em paralelo ao Ler e Escrever, o Município também elaborou as expectativas de aprendizagem para todos os anos e todas as áreas de conhecimento, 134 Alexandre Schneider num processo que envolveu técnicos da Secretaria e de universidades, além da participação dos profissionais da rede. Hoje, São Paulo tem um currículo. E todos os programas de formação de professores estão apoiados neste currículo. Desta forma, os professores da rede municipal sabem o que devem ensinar. E têm formação específica para isso. Foram criados também os Cadernos de Apoio e Aprendizagem - materiais para uso em sala de aula, para o professor e para o aluno, com atividades e exercícios. Compreendem as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Com o objetivo de verificar sua eficácia, foram realizadas pesquisas pela Secretaria, por organizações não governamentais e também por membros da academia. Todos demonstraram que os professores utilizam o material e reconhecem a sua importância na organização das aulas. No mesmo ano, criamos a Prova São Paulo, uma avaliação municipal de aprendizagem. Foi o primeiro exame externo do País a avaliar o segundo ano do Ensino Fundamental com a escala SAEB. Também o primeiro exame no País a avaliar a área de Ciências nesta escala. Uma prova que permite avaliar cada aluno individualmente e assim torna possível acompanhar seu desenvolvimento ano a ano, verificar sua evolução e também fazer análises comparativas entre as diferentes gerações. É fundamental ainda lembrar que os resultados da Prova SP são enviados às escolas em um minucioso relatório pedagógico que serve de apoio às decisões relativas aos programas de reforço e recuperação, e que também são enviados aos pais pelo Correio, para que possam acompanhar o desempenho de seus filhos. São Paulo passou a ter um dos mais altos pisos salariais do Brasil (R$ 2.600) e hoje atrai professores de outras redes públicas e da rede particular da cidade. 135 Em busca da melhor cidade As soluções existem. Mas não dependem somente do Município. Precisamos de uma política nacional de educação que privilegie Educação Básica e o Ensino Fundamental. a 136 A cidade conta ainda com um Programa de Recuperação Paralela criado especialmente para os que apresentam mais dificuldades nos resultados da Prova São Paulo e com parcerias que permitem diferentes e também importantes oportunidades de ensino. Entre estas, cabe mencionar a que se estabeleceu, em maio de 2009, com o governo do Estado, tendo como finalidade ampliar o atendimento nos cursos técnicos gratuitos das Escolas Técnicas Estaduais, as Etecs, geridas pelo Centro Paula Souza. Na cidade de São Paulo, foram criadas 600 novas vagas para o ensino técnico, que proporcionaram cerca de 1.800 matrículas. As aulas acontecem nos CEUs e são dadas por professores das Etecs. São cursos de Administração, Secretariado, Contabilidade, Comércio e Logística, com duração de três semestres. Um importante diferencial desse projeto está na utilização dos horários livres dos Centros de Educação Unificada (CEUs), tornando possível ampliar vagas sem a necessidade de construção de novas unidades escolares. A verdade é que as soluções e possibilidades existem. Mas sua viabilidade, no entanto, não depende somente do Município. Precisamos de uma política nacional de educação que privilegie a Educação Básica e o Ensino Fundamental. Ainda temos 50% das crianças do terceiro ano do ensino fundamental do País sem entender o que lêem. Precisamos aprovar o Plano Nacional de Educação que tramita, flutua, transita e vaga em discussões e debates estéreis em torno de questionamentos que, importantes ou não, não podem se sobrepor às necessidades das crianças brasileiras. Estão contidas no PNE as metas que o Brasil deverá cumprir nos Alexandre Schneider próximos dez anos; estão contidas no PNE as estratégias que devem ser implementadas para o cumprimento dessas metas. Convergem, para esse documento, as esperanças, o presente e o futuro das nossas crianças. Educação não é apenas ensino. Precisamos que a educação seja, também, cultura. Entendemos o CEU como um espaço de práticas artísticas, como espaço de apreciação das artes e de cidadania. Entre 2006 e 2010, construímos e entregamos 24 novas unidades e hoje, a cidade conta com 45 CEUs. Grandes nomes da música e do teatro sobem aos palcos dos CEUs. Grupos e artistas consagrados, ao lado de artistas locais. Entendemos a música como instrumento de formação do pensamento. Assim como o xadrez. Temos bandas e fanfarras espalhadas em toda a cidade. Campeões mundiais de xadrez prestigiam o nosso campeonato local. Da mesma forma, estimulamos e incentivamos a comunicação. Nossos alunos são apresentadores, produtores, editores e repórteres de rádios, blogs e programas produzidos na rede municipal. E o que eles pensam, dizem, reverbera e modifica a escola. Precisamos, assim, não esquecer que estamos, mulheres e homens públicos, a seu serviço. A escola tem prioridades que ultrapassam as diferenças, e necessidades que extrapolam as disputas. O debate que importa é o que modifica. O que fica. Vale o legado: se promovemos o futuro ou se interrompemos o seu fluxo. Para a criança não interessa saber quem fez a escola. O que importa é ter certeza de que ela ensina. 137 Reinhold Stephanes Deputado federal pelo PSD do Paraná, já ocupou os cargos de ministro da Previdência, do Trabalho, da Assistência Social e da Agricultura. No Paraná, foi secretário de Agricultura, de Administração e de Planejamento, além de presidir o Banco do Estado. Coordena o Conselho Temático sobre Previdência Social do Espaço Democrático. 138 Reinhold Stephanes A g r i c u l t u r a motor das cidades 139 Em busca da melhor cidade 140 R Reinhold Stephanes ecebi da Fundação Espaço Democrático convite para abordar, nesta obra, o papel do municipalismo no desenvolvimento agrícola do País. A melhor análise que posso oferecer aos leitores é a que propõe a inversão da lógica do tema, considerando que a expansão da produção agrícola foi, na maioria dos casos, a própria razão de existência dos Municípios. Atualmente, são quatro mil e 950 cidades brasileiras que dependem diretamente do agronegócio e que têm a base econômica na produção agrícola. São dados que levam a inferir que os governos municipais exercem ou exerceram papel fundamental para a evolução das propriedades rurais no País. Contudo, na realidade, a expansão da agricultura tem ocorrido ao longo de décadas independentemente da interferência das administrações locais. Vale ressaltar que são restritivas as atribuições legais e a capacidade orçamentária e financeira do poder municipal, que atua como coadjuvante nesse processo, prestando assistência técnica mediante convênio ou atuando na conservação de estradas municipais, para citar dois casos. E assim mesmo, de maneira geral, de forma precária. O fato de o Município ter limitações para influenciar o desempenho do setor agropecuário não desobriga os prefeitos de colocarem o tema na agenda de prioridades, inclusive, por exemplo, como um item de discussão na Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, que acontece todos os anos. O movimento atrai mais de cinco mil participantes, de prefeitos a secretários municipais, mas a maior parte das reivindicações se concentra em questões fiscais. Ou seja, mesmo que tantas cidades dependam do agronegócio, os desafios do setor não são assimilados pelos gestores públicos. Atuar em defesa da agricultura pode ser significativo para o Município. Até porque quando a agricultura vai bem, também prospera a maioria das atividades das cidades, seja comércio ou prestação de serviços. O resultado é mais renda para a população e impulso ao crescimento local. Razões suficientes para que os prefeitos incorporem essa ideia. As atribuições, competências e os recursos financeiros para definir a política agrícola pertencem, fundamentalmente, à esfera federal. Por essa razão, é recomendável abordar a agricultura como responsabilidade nacional. Responsabilidade esta que deve ser dividida em parte com os Estados, nas áreas de defesa sanitária animal e vegetal, assistência técnica e pesquisa, sendo que alguns deles já possuem instituições próprias. Assim, a abordagem sobre o desenvolvimento agrícola deve ser feita sobre o ponto de vista da gestão estratégica, definindo diretrizes e questões básicas. 141 Em busca da melhor cidade Diretrizes para um programa A agricultura tem ajudado a puxar a inflação para baixo, embora o processo tenda a se inverter pelo aquecimento da demanda mundial por alimentos. 142 A agricultura brasileira cresceu muito nos últimos anos. E o ritmo de crescimento tem sido maior do que o do próprio País. É a segunda mais eficiente do mundo, alimenta 190 milhões de brasileiros e exporta excedentes para 180 países, ocupando a segunda posição no mercado mundial e devendo, nos próximos quinze anos, assumir a primeira posição. É a atividade que gera todo o superávit anual da balança comercial brasileira, entre R$ 50 bilhões a R$ 70 bilhões, exercendo papel fundamental para o desenvolvimento dos Municípios de base econômica agrícola. E isso a preços relativamente baixos, em relação aos demais bens e serviços, já que nos últimos 20 anos observa-se um crescimento de preços dos produtos agrícolas bem abaixo de itens como educação, saúde, transporte e outros serviços. A conclusão é que a agricultura tem ajudado a puxar a inflação para baixo, embora o processo tenda a se inverter pelo aquecimento da demanda mundial por alimentos. Em cinqüenta anos, o mundo vai necessitar do dobro da produção de alimentos, e o Brasil é o melhor posicionado entre os poucos países em condições de dar essa resposta. Segundo a FAO, espera-se que o Brasil dobre a produção em vinte anos, porque o País tem tecnologia, terras disponíveis, clima, água, organização de produção e agricultores eficientes. Há quatro possibilidades de crescimento: - Por aumento da produtividade; - Por recuperação e incorporação de 50 milhões de hectares de áreas degradadas; - Pelo aumento da utilização de irrigação no CentroOeste; e Reinhold Stephanes - Pela incorporação de áreas de cerrado no sul do Piauí e do Maranhão, além de áreas no Estado do Tocantins. Esta é a visão de futuro com que devemos estruturar o setor. São informações que mostram a necessidade de tratar a agricultura como estratégica para o desenvolvimento. Questões básicas - O modelo de financiamento, seguro e preço, além de levar ao endividamento, não atende às necessidades de custo, de produção e de renda do produtor. - Grande deficiência de infraestrutura e de logística. - Necessidade de regulação nas questões ambientais, nas terras indígenas, nos quilombolas, nas terras estrangeiras, além de rever o Plano Nacional de Direitos Humanos, que explicita preconceito contra a agricultura comercial. - Alta dependência do Brasil na importação de fertilizantes O balanço de produção e de consumo nacional de fertilizantes mostra um aumento da dependência externa, com importação de 65% do fósforo necessário e 90% do potássio utilizado. A participação nos custos de produção das principais lavouras no País varia de 10% a 30% do total, de acordo com o produto e a região. A importação de fertilizantes depende de poucos países e de empresas que dominam o mercado no mundo e no Brasil. Esse cenário permite oligopólio ou mesmo cartelização do setor. No caso brasileiro, os preços dos insumos cresceram fortemente nos últimos dez anos, tendo dobrado em relação aos preços equivalentes dos produtos que os utilizam. - Sistema de Defesa Animal e Vegetal Manter o bom nível do sistema de vigilância sanitária brasileiro depende de fortalecer os sistemas de inspeção e de controle, além do permanente combate às pragas e doenças. Essas ações vão diminuir custos de produção, reduzir riscos para a expansão do mercado externo e para a saúde humana. Para isso, o setor precisa de muitos investimentos adicionais e modernização da legislação, já que o código sanitário tem mais de meio século. Apesar de ter sido realizado recente esforço no sentido de produzir novo código, envolvendo 143 Em busca da melhor cidade especialistas e incorporando regras e exigências mais importantes estabelecidas pelo mercado externo, o assunto está congelado. - Mercado A agricultura é o setor que apresenta o maior nível de imperfeição de mercados. Em praticamente todos os produtos temos centenas de milhares de produtores e um número pequeno de empresas que viabilizam a comercialização. De um lado, o produtor sofre a pressão exercida pelos grandes fornecedores de insumos e equipamentos; por outro, é pressionado pelos compradores, incluindo as agroindústrias. E os instrumentos públicos de comercialização não têm demonstrado a eficiência necessária. - Participação nas decisões A agricultura não tem conseguido visibilidade e participação no processo decisório, predominando em consequência o aspecto urbano nas decisões de política econômica. Por exemplo, no debate sobre os produtos agrícolas é comum prevalecer a questão dos preços para o consumidor e submergir a questão da renda do produtor. A preocupação maior sempre está na cidade, na mesa do consumidor, ou melhor, em seu bolso. Nesta mesma linha, várias questões que afetam diretamente a agricultura têm sido decididas por instituições outras que assumem o monopólio do conhecimento. Vale salientar que o Ministério da Agricultura e as instituições estaduais ligadas à agropecuária são organizações bem preparadas, com capacidade e inteligência suficientes para responder às necessidades técnicas e científicas do processo de governança. Quando se fala do processo decisório, também, estão incluídos temas como meio ambiente, gases de efeito estufa, minerais estratégicos para agricultura, e transportes, portos e vias navegáveis. PONTOS ESTRUTURANTES Pesquisa e inovação tecnológica A pesquisa e o bom uso da tecnologia se refletem no aumento da produtividade e fazem com que a agricultura brasileira seja líder mundial em crescimento da sua eficiência. A agricultura vem crescendo em média 4,5%, ao ano, sendo que 144 Reinhold Stephanes 75% desse crescimento se dão por aumento de produtividade, na qual a tecnologia se destaca. Para o futuro, com certeza, uma nova revolução tecnológica vai acontecer na agricultura brasileira. E esse será um mérito da Embrapa, das instituições estaduais de pesquisa, das cooperativas e das universidades, que precisam ser vistas como uma rede que trabalha em sintonia. As propostas básicas são: - Aumentar os investimentos nessa rede; - Reestruturar a assistência técnica no País. Defesa sanitária A defesa sanitária é fundamental para melhorar a qualidade de nossos produtos, diminuir o custo de produção e fortalecer nossa posição como exportadores. Neste item, há quatro questões: 1. Melhoria de gestão; 2. Modernização da legislação; 3. Maior integração entre Estados e Municípios; e 4. Maior disponibilidade de recursos. A agricultura é o setor que apresenta o maior nível de imperfeição de mercados. Em praticamente todos os produtos temos milhares de produtores e poucas empresas que viabilizam a comercialização. Política agrícola A política agrícola se baseia no tripé financiamento, seguro e comercialização. Existe consenso sobre a necessidade de aperfeiçoamento desses instrumentos, bem como no uso mais eficiente. Além da alocação de recursos adequados, isso também inclui: 1. Reestudo da política de financiamento agrícola; 2. Revisão do conceito de preços mínimos; 3. Política de seguro contra a variação de preço; 4. Ampliação do seguro (falta implantação do fundo de catástrofe); e 5. Fortalecimento do sistema cooperativista. 145 Em busca da melhor cidade Num contexto em que as lavouras de grãos vêm sendo apresentadas como uma face competitiva e consolidada da nossa agricultura, o fertilizante emerge como indicador preocupante. 146 Infraestrutura e logística Uma das questões mais difíceis a serem enfrentadas e que geram um grande impacto nos preços dos produtos agrícolas é a infraestrutura, a logística, com reflexo direto na renda do produtor e na competitividade. Atualmente, a competitividade permanece em função da demanda mundial que está aquecida, mantendo também os preços. Ao contrário, estaríamos em sérias dificuldades. Os problemas se iniciam nas propriedades com baixa capacidade de armazenagem, se agravam pelas estradas municipais sem manutenção e a inadequação de estradas estaduais, se estendendo até as deficiências portuárias. Com isso, o custo brasileiro entre a produção e a chegada ao mercado do consumo (ou seja, a logística do transporte) é o dobro do praticado nos Estados Unidos e 20% superior ao da Argentina. Algumas regiões apresentam uma posição crítica. O incremento da produção agrícola, com a expansão das áreas de cultivo em Mato Grosso, Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins, não encontra ressonância na infraestrutura de transportes existente nessas regiões, acarretando o aumento do preço dos produtos agrícolas, em relação aos mercados consumidores. A tendência natural seria a saída por outros portos do Norte e do Nordeste, que estão geograficamente em posição privilegiada, pela menor distância dos grandes consumidores asiáticos e europeus. Esta também é uma alternativa que aliviaria a pressão sobre os portos de Santos e Paranaguá. Proposta: adoção de um plano de escoamento de safras. Algumas obras que atendem parte das Reinhold Stephanes necessidades do setor estão em execução ou foram projetadas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), porém há estudos precisos que apontam a viabilidade de um plano de ações em médio e longo prazos, levando em consideração a atual e a futura projeção da produção. Fertilizantes Atualmente, somos o segundo maior exportador de alimentos. Nos próximos quinze anos devemos assumir a liderança mundial, com domínio de um terço das exportações agrícolas. Essa produção adicional de alimentos é altamente dependente, entre outros fatores, do uso de fertilizantes (Nitrogênio, Fósforo e Potássio), cujo volume consumido no País, anualmente, é 25 milhões de toneladas. Num contexto em que as lavouras de grãos vêm sendo apresentadas como uma face competitiva e consolidada da nossa agricultura, o fertilizante emerge como indicador preocupante. Nessa reflexão, chamo a atenção para a falta de um plano nacional de fertilizantes, com objetivo de conter ou minimizar a dependência que se transformou num grande gargalo para a renda do produtor e para a competitividade brasileira na agricultura. Nesse plano, devem ser destacados: 1. A exploração mineral. Na área, se mantém uma legislação arcaica de mineração de toda natureza, da mesma forma que a dos fertilizantes. Esta situação gerou um processo cartorial baseado no interesse privado de grandes corporações; e 2. O potencial excepcional do Brasil para explorar jazidas tanto de fósforo quanto de potássio. Embora muitas das ocorrências dessas jazidas necessitem de maior conhecimento, o problema está na falta de pesquisa e de dimensionamento, que devem considerar a rentabilidade de cada exploração. Mas, de forma geral, há consenso de que o Brasil tem potencial para se tornar autossuficiente num prazo de dez anos. Especificamente, há três caminhos a seguir: - na área de nitrogenados, a solução é, aparentemente, mais fácil. Para isso, basta que essa área seja considerada, de forma mais efetiva, no contexto de matriz energética coordenada pela Petrobrás; - a elaboração de uma política nacional para produção de fertilizantes, consistente em termos de pesquisa e exploração de fósforo e potássio; e - a criação de marco regulatório próprio para exploração de jazidas destinadas aos 147 Em busca da melhor cidade fertilizantes. Se continuarem juntos com os demais minerais, mesmo que em um novo código, nada mudará. Aqui, quando se trata de um novo código, tão amplo e complexo, podemos considerar que sua aprovação levará de cinco a dez anos, ao passo que um marco regulatório específico para a exploração dos fertilizantes poderia ser articulado de forma bem mais rápida. Outro aspecto fica vinculado ao governo federal, tendo a responsabilidade para compreender que há reação de parcela importante dos técnicos do Ministério de Minas e Energia ligados ao poder de comando e controle, ou das mineradoras que atuam, cartorialmente, no setor e que efetuam a exploração mineral e sua comercialização. Esses lobbies, evidentemente, rejeitam qualquer mudança dentro do setor que não seja superficial. Esta, se ocorrer, não atenderá os interesses de nossa agricultura. Além disso, a aprovação poderá levar anos. Lembro ainda que, tanto no potássio quanto no fósforo, já existem jazidas para a rápida exploração. Temos, também, a questão de jazidas com exploração paralisadas por razões ambientais mal definidas. Há, ainda, casos de certas jazidas bloqueadas sem que mesmo autoridades governamentais compreendam as razões do bloqueio. Também há outro grupo de jazidas sem estudos que mostrem sua viabilidade econômico-financeira. Nesse sentido, pode-se assegurar: é necessário analisar caso a caso. Por fim, devemos considerar os fertilizantes a serem produzidos utilizando resíduos provenientes de regiões de grande produção de aves e suínos. Propostas: 1. Definir uma política nacional de autossuficiência em fertilizantes; 2. Estabelecer um marco regulatório específico para a exploração de jazidas de fósforo e potássio; 3. Mapear as jazidas conhecidas em condições de exploração imediata; 4. Da mesma forma, mapear as que necessitam de maior conhecimento, pesquisa, dimensionamento e estudo de viabilidade econômica e financeira; 5. Definir, caso a caso, as decisões políticas e administrativas que deverão ser tomadas; e 6. Estabelecer regras e decisões específicas para a exploração das jazidas de potássio situadas no Estado do Amazonas (consideradas pela maioria das empresas exploradoras como a terceira maior província no mundo). 148 Reinhold Stephanes Meio ambiente Reclamo, há algum tempo, que faltou ciência e racionalidade ao debate sobre as questões ambientais. Porém, não me iludo de que os argumentos racionais e lógicos sempre prevalecem na defesa de um ideal. O meio ambiente é uma dessas causas capazes de mobilizar seguidores que, de tão bem-intencionados, repudiam qualquer tipo de mudança, mesmo em áreas que sequer conhecem na realidade. E aqueles que tentam apontar alternativas são vistos como “inimigos” da natureza, o que deixa em segundo plano os reais motivos para a normatização necessária. Essa omissão ficou clara em um dos seminários da Frente Parlamentar Ambientalista, da qual faço parte na Câmara dos Deputados, com especialistas da Sociedade Brasileira para Proteção da Ciência (SBPC) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), vinculada à USP. Sob a aprovação do público, predominantemente ambientalista, técnicos apresentaram três teses, com as quais há consenso: - as versões do Código Florestal de 1934 e 1965 foram elaboradas com base na ciência; - a agricultura deve crescer por produtividade e não por avanço em novas áreas; e - antes de desmatar, devemos recuperar áreas degradadas. Portanto, o seminário nenhuma novidade trouxe ao debate, pois essas três teses já eram absolutamente defendidas há anos pelo Ministério da Agricultura e a agricultura nacional já as pratica. Apresentá-las, no evento, demonstrou que os participantes nada mais fizeram do que se apropriarem do que já era conhecido pelos que atuam no setor. O meio ambiente é uma dessas causas capazes de mobilizar seguidores que, de tão bemintencionados, repudiam qualquer tipo de mudança, mesmo em áreas que sequer conhecem na realidade. 149 Em busca da melhor cidade A produção nacional vem crescendo 3% ao ano, por aumento de produtividade e sem expansão da área de plantio. Além disso, nos últimos dez anos, somos o País que mais cresce em eficiência. 150 Não houve contribuição para aperfeiçoar o debate. No final, esses três pontos foram apresentados para apoiar teses políticas e ideológicas contra qualquer mudança. Por outro lado, a discussão foi oportuna, já que votamos o projeto que alterou o atual Código. E isso aconteceu para simplificar uma legislação com mais de 16 mil itens e que deixou de ser aquela definida pelos agrônomos e especialistas em 1965. Na verdade, 80% da legislação sofreram mudanças profundas de conceito, instituídas, principalmente, por Medida Provisória, em 2001, sem a participação dos cientistas, agricultores e Ministério da Agricultura. É bom lembrar que a agricultura brasileira mudou muito nos últimos anos. Desde os códigos de 1934 e 1965, houve transformações expressivas na ciência agrícola, entre elas a descoberta da fixação biológica de nitrogênio, que retira este elemento químico da atmosfera, convertendo-o em compostos importantes para a nutrição de plantas e, ainda, reduzindo o custo de produção. Essa tecnologia permitiu alimentos mais baratos e saudáveis e valeu a indicação aos prêmios Nobel da Paz e de Química, em 1997, da pesquisadora Johanna Döbereiner, que aperfeiçoou o processo e integrou os quadros da Embrapa. Outra prática importante e sustentável chegou ao Brasil nos anos 1970: o plantio direto na palha, considerado um sistema conservacionista, eficiente no controle da erosão, que reduz custos e aumenta a produtividade. Esse sistema vem sendo difundido há mais de trinta anos e se alia a tantas outras técnicas agrícolas modernas impulsionadas por órgãos ligados à ciência agrícola, como a Embrapa, as 17 unidades estaduais de pesquisa agropecuária e outras instituições do gênero. Reinhold Stephanes Uma prova incontestável do avanço da ciência agrícola está nos números, sendo assunto consagrado e de absoluto conhecimento de líderes e dirigentes agrícolas: a produção nacional vem crescendo 3% ao ano, por aumento de produtividade e sem expansão da área de plantio. Além disso, nos últimos dez anos, somos o País que mais cresce em eficiência, embora ainda não sejamos os mais eficientes. Outro ponto: a recuperação de áreas degradadas já é realidade no campo e há anos faz parte do trabalho da Embrapa, sendo inclusive orientação de governo, com oferta de financiamentos aos produtores. O conjunto de normas em vigor desde 2001, se aplicado, inviabilizaria grande parte da agricultura. Mais de três milhões de pequenos e médios produtores estariam criminalizados e um milhão de pequenos produtores perderiam a capacidade de produzir. Ou seja, suas propriedades teriam de ser anexadas a propriedades maiores para atender às normas ambientais. E teríamos sérios problemas em encostas e topos de morro. Nesses casos se incluem culturas praticadas há mais de cinquenta anos, como as plantações de maçã, em São Joaquim (SC); cafezais, em Minas Gerais e no Espírito Santo; vinhedos nas serras gaúchas; e arrozais em várzeas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O debate sobre a mudança ambiental tem que caminhar na direção de encontrar amparo legal para mantermos, de forma sustentável, a produção de alimentos que abastece o País e exporta para mais de 180 mercados em todo mundo. Não podemos ser omissos em deixar prevalecer posições ideológicas e doutrinárias, afetadas pelo preconceito contra o campo por parte daqueles que nem sequer conhecem o meio ambiente que pretendem defender. Estou certo de que há ciência disponível para equilibrar o desejo de ambos os lados. A aprovação do Código Florestal não põe fim às preocupações do setor produtivo em relação à legislação ambiental. Há outras etapas a seguir, como a necessidade de refazer o texto da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que estabelece sanções penais e administrativas para crimes contra o meio ambiente. E, também, a reformulação do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). A Lei 9.605/98 levou à aplicação generalizada de multas rigorosas a produtores rurais, devido, muitas vezes, a ações de insignificante potencial lesivo ao meio ambiente. Por exemplo, um agricultor com uma colmeia localizada em local inadequado pode receber multa com valor superior a toda a produção de mel. Ou então, o produtor rural pode ter o gado confiscado, caso os animais rompam uma cerca e sejam pegos bebendo água num rio. São exemplos extremos de uma legislação malfeita. 151 Em busca da melhor cidade O Conama, por sua vez, como está constituído, vive sob a influência de ONGs internacionais e se tornou um conselho doutrinário e ideológico dominado por ambientalistas – muitos deles distantes da realidade e da sensatez. É bom lembrar que o órgão tem o poder de baixar resoluções e, mesmo que estas estejam alinhadas ao novo Código, o Conselho pode interpretar algumas questões de forma diferente do que vem sendo discutido, saindo da linha que busca o equilíbrio entre a produção de alimentos e a preservação ambiental. Assim, há que reformulá-lo para que tenha integrantes efetivamente preparados técnica e cientificamente. De qualquer forma, há consenso de que não devemos realizar novos desmatamentos, a não ser em casos específicos em pequenas áreas do cerrado citadas anteriormente. A discussão maior se mantém no aproveitamento de áreas consolidadas e já liberadas para o plantio. Propostas: 1. Estimular a recuperação de áreas degradadas; e 2. Criar condições para implantação de projetos agrícolas de sustentabilidade para reduzir a emissão de gases de efeito estufa apresentados pelo Brasil na COP-15: - por meio da melhoria tecnológica e do manejo; - por meio da recuperação de áreas degradadas; - por meio da intensificação da produção bovina e, consequentemente, a liberação das áreas de pastagem; - com a expansão futura em área de Cerrado; e maior uso da irrigação, com aproveitamento da água das chuvas. Produtos sensíveis São necessárias políticas específicas para produtos sensíveis, como etanol, leite, trigo, arroz e feijão, pelas seguintes razões: Etanol – A falta de etanol e a competição com a gasolina poderão levar à retração da indústria flex e à descrença no próprio programa de energia limpa. Há pelo menos cinco anos, o mercado previa que o sucesso de venda desses veículos iria, no mínimo, dobrar a procura pelo combustível. Embora o mercado automobilístico esteja fazendo sua parte, a produção de etanol ainda é insuficiente. E o preço do combustível tem ficado perto do limite de 70% do preço da gasolina, levando o consumidor a deixar de optar pelo etanol. 152 Reinhold Stephanes A possibilidade de aumentar a produtividade existe, com a renovação dos canaviais, a introdução de variedades de cana de açúcar e, no futuro, com a incorporação de tecnologia de segunda geração, assim como a produção de matérias primas que aumentem o ciclo de moagem das indústrias. Entretanto, nas condições atuais, mesmo aumentando a produtividade, a oferta de etanol continuará pequena porque o Brasil não se preparou como deveria. Isso inclui definição de regras em relação a questões como preço, tributo e estocagem. É claro que ocorrências climáticas podem interferir no plantio e na colheita, reduzindo a produtividade, porém, o planejamento ajudaria a lidar com questões sazonais. É importante saber se o governo considera o etanol uma questão estratégica dentro da matriz energética. Lamentavelmente, os movimentos não sinalizam nessa direção. O primeiro exemplo foi a retirada das atribuições do Ministério da Agricultura para a ANP (Agência Nacional do Petróleo); até mesmo porque os dois últimos ministros deixaram o assunto fora da agenda. O segundo sinal está na medida provisória que introduz a taxação do etanol na Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico). Por último, fica a ideia de que a questão é tratada no governo pelo viés regulatório, quando na verdade se trata de produção. A demanda por etanol no Brasil é grande e há investidores interessados em atendê-la. Nos próximos oito anos, será necessária a construção de 120 novas usinas, que irão consumir mais de R$ 100 bilhões. Contudo, a decisão de implantar uma nova usina e a adoção de novas tecnologias, principalmente as de segunda geração, não apresentarão resultados A falta de etanol e a competição com a gasolina poderão levar à retração da indústria flex e à descrença no próprio programa de energia limpa, mas o governo não parece considerar o etanol como uma questão estratégica dentro da matriz energética. 153 Em busca da melhor cidade A produtividade do trigo passou de mil para três mil quilos por hectare em 20 anos. Deve ficar claro que, embora os preços do trigo importado sejam mais baixos, a defasagem será compensada por outras vantagens da produção interna 154 imediatos no mercado. Existem organizações nacionais e internacionais em condições de dar essa resposta, mas aguardam regras claras, vinculadas principalmente ao preço, já que a Petrobrás controla o valor da gasolina, que serve de referência, e a tributação, como forma de regular o mercado e a concorrência. Recordamos que, há pouco tempo, o Brasil se comprometeu internacionalmente a produzir energia limpa e assumiu a liderança dessa iniciativa, com o etanol e o biodiesel. Da mesma forma que avalizou a tecnologia flex. As questões de produção podem e devem ser superadas desde se estabeleçam regras mais claras e o incentivo necessário. Ao contrário, as dificuldades se acentuarão. Trigo – Além de importante como rotação de cultura, o plantio do trigo contribui para a sustentabilidade da atividade agrícola por proteger o solo no período de inverno. É uma atividade importante para o meio ambiente e sob o ponto de vista social e econômico, pelos empregos que gera – 180 mil no período de produção – e por permitir renda complementar ao produtor. Discute-se sobre a produtividade do trigo e a capacidade de competir com os preços do trigo importado. Aqui é importante salientar que o setor vem avançando muito, em termos de produtividade, ao passar de mil quilos para três mil quilos por hectare, em 20 anos. A produção de trigo ainda tem espaço para aumentar sua produtividade e diminuir os custos de produção, porém, isso levará algum tempo. Deve ficar claro que, embora os preços do trigo importado sejam mais baixos do que os produzidos internamente, a defasagem será compensada por outras vantagens em produzir o trigo no País. Reinhold Stephanes Devemos considerar, também, que os estoques mundiais de trigo estão muito baixos, e eventuais quedas de safra em grandes países produtores podem elevar em muito o preço do produto importado. Por isso, devemos adotar uma visão de médio e longo prazo. Recomenda-se definir uma política agrícola, da qual façam parte: - preço mínimo adequado, - financiamento à produção, - seguro agrícola, - recursos para a comercialização e, finalmente, - planejamento da importação do cereal para não coincidir com o período da safra nacional. Os produtores nacionais já demonstraram, no passado, capacidade de resposta rápida aos estímulos. Leite - É uma atividade praticada por quase um milhão de propriedades, normalmente médias e pequenas, e que sofre uma concorrência estimulada, tanto de produtos provindos de países do Mercosul, como Argentina e Uruguai, e países terceiros. Na Câmara dos Deputados, foi instalada a Subcomissão Especial do Leite, no âmbito da Comissão de Agricultura, estudando diretrizes para o setor. O grupo, do qual participo, deve consolidar uma proposta em breve e apresentá-la para apreciação da sociedade e do governo. Arroz e feijão – Dois produtos que não são commodities e estão na dieta básica dos brasileiros, necessitando de atenção especial. No caso do feijão, embora o Brasil produza quatro safras por ano, por não ser estocável tem uma grande variação de preço, levando à volatilidade do mercado. Os temas citados anteriormente são objeto de estudos detalhados por técnicos, especialistas e respectivos setores da academia. Aqui, procurei apresentar uma síntese dessas inteligências que atuam em questões agrícolas, no Ministério da Fazenda, no Ministério da Agricultura, no Banco do Brasil, na Embrapa, nas cooperativas – por meio das representações – e na Confederação Nacional da Agricultura, entre outras instituições. Ao reuni-los, meu objetivo foi contribuir para a construção de uma agenda para a agricultura que aponte os caminhos para desenvolver os Municípios e, assim, o próprio País. 155 Ricardo Patah Presidente da União Geral dos Trabalhadores e do Sindicato dos Comerciários de São Paulo. Graduado em Administração pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e em Direito pela Universidade São Judas Tadeu, em 2007 fundou a UGT e foi eleito o primeiro presidente da entidade. Coordena o Conselho Temático sobre Emprego e Trabalho do Espaço Democrático. 156 Ricardo Patah Senhor Prefeito, quero t r a b a l h a r 157 Em busca da melhor cidade 158 O Ricardo Patah título deste capítulo parece uma palavra de ordem escrita por um líder sindical. E é! Afinal, a missão de um líder sindical é a de garantir direitos e lutar por melhores condições de trabalho para todos. Todo trabalhador e trabalhadora quer viver em um País melhor. Um País com mais empregos, melhores salários, mais saúde, mais habitação, mais transportes, educação para todos. Um País mais desenvolvido e mais justo. Para quem trabalha e estuda a vida acontece no Município, e a autoridade mais próxima do munícipe é o poder municipal, a Prefeitura. O trabalhador nasce, cresce e trabalha no Município, em algum Município. É onde vive e se relaciona socialmente. Portanto, é do Município que parte sua prosperidade e a garantia de seus sonhos. Mas, como pode o Município garantir emprego? Hoje, em qualquer análise do mercado de trabalho do Brasil, lê-se que faltam trabalhadores qualificados e que batemos o recorde de autorização de trabalho para estrangeiros. A falta de qualificação do trabalhador brasileiro impede que haja uma melhoria em sua vida profissional, e que ele concorra a cargos que exigem maior conhecimento. Estes trabalhos de maior valor já são uma realidade e muitos ainda estão por vir. A área de serviços, a que mais emprega atualmente no Brasil, exibe um índice muito baixo de produtividade. Isto deve ser corrigido. A chave para este salto de produtividade vai exigir um trabalhador com maior bagagem educacional voltada para o trabalho. Mas, como o Município pode ajudar nisto? Iniciamos nossos estudos sob a responsabilidade do Município. Não é à toa que a parte educacional que cabe ao Município se chama Ensino Fundamental. Mas não é só isto que o Município pode fazer. Nada impede que seja implantado um ensino técnico e também projetos de qualificação profissional. É claro que não adianta preparar trabalhadores para um trabalho que não existe. Ainda assim é muito melhor uma pessoa preparada, que terá liberdade para trabalhar onde aparecer uma oportunidade, em qualquer Município do País. Ou melhor, preparar o trabalhador e a trabalhadora para o mundo do trabalho. Afinal, se aceitamos que o mundo está globalizado, não podemos ter trabalhador apenas com vocação local. A educação profissional de nível técnico está crescendo, mas nem de longe acompanha as necessidades atuais. Iniciativas como a Rede Certific e Pronatec estão em seu nível inicial para atendimento de uma necessidade real e impositiva. Isto significa que é preciso que o Município tome uma posição e seja protagonista nesta ação necessária. 159 Em busca da melhor cidade Defendemos o conceito de empregabilidade, ou seja, que a inserção no mercado de trabalho não signifique “estar empregado” e sim em condições de concorrer a uma vaga. 160 A todo o momento, e de alguma maneira, somos agentes de mudança. Votamos nas eleições, apoiamos atitudes e decisões dos governantes, produzimos riqueza e progresso. De alguma forma, e a todo o momento, nós, homens e mulheres, mostramos nossa importância para a sociedade e provocamos mudanças. Nunca podemos abandonar a capacidade de mudar e, principalmente, de mudar a nós mesmos. Porém, como para tudo na vida, temos que nos preparar. Com este intuito e motivação é que falamos em qualificação profissional. Que seja um processo de mudança e não somente um aprendizado industrial, mas, sim, um aprendizado cidadão. O que defendemos aqui é o conceito de empregabilidade, ou seja, que a inserção no mercado de trabalho não significa “estar empregado” e sim em condições de concorrer a uma vaga, estar em condições de competição. Hoje, boa parte das vagas oferecidas no mercado por meio do Sistema Nacional de Emprego – SINE – não são preenchidas por falta de habilitação dos candidatos. O trabalhador ou trabalhadora, com melhor qualificação, adquire a condição de empregabilidade, ou seja, torna-se apto a concorrer a uma vaga disponível no mercado de trabalho, pois vai conseguir identificar que a habilidade ou habilidades que domina estão de acordo com o que o mercado está requerendo. A globalização é identificada como algo que afeta nossas vidas para o bem e para o mal. Trabalhamos com a certeza de que o mundo mudou, com todos nós dentro, e que oportunidades e ameaças acontecem a todo o tempo. Acabou o emprego de nossos avós e até de nossos pais que passavam a vida numa empresa só e saíam Ricardo Patah de lá aposentados. A educação formal, hoje, na melhor das hipóteses, nos dá condição de melhor apreender coisas novas, mas não cria habilidades que nos coloquem no mercado de forma competitiva. Por outro lado, a longevidade dentro de uma mesma organização pode nos levar a uma incapacidade treinada, ou seja, a uma falta de flexibilidade frente a um ambiente em mutação. Isso ocorre devido a uma preparação inadequada do indivíduo. A “psicose ocupacional” se baseia na rotina diária, na qual os indivíduos vão adquirindo preferências e antipatias. A “deformação profissional” pode ser considerada como uma união dos conceitos anteriores. Nela o funcionário é formado em constante pressão, que tem a finalidade de torná-lo metódico, prudente e disciplinado. Para o trabalhador que ingressa no mercado de trabalho pela primeira vez, e para aquele que passou boa parte de sua vida executando atividades que hoje não existem mais, é fundamental adquirir alguma habilidade especifica que os coloquem à frente daquilo que é exigido pelo setor produtivo nos dias de hoje. No mundo atual e globalizado em que vivemos, o mercado de trabalho mostra-se cada vez mais exigente, e a busca por uma colocação profissional não é mais uma questão de empenho ou de sorte, e sim de qualificação. A qualificação profissional deve ser vista como fator determinante para o futuro daqueles que estão buscando uma colocação no mercado de trabalho. E é muito mais importante ainda que a posição conquistada seja mantida, alimentando chances reais de crescimento nas corporações. O que nos leva a crer que à medida que o tempo passa e o mundo evolui, muito além da experiência, adquirir e renovar conhecimento torna-se inevitável. Seu objetivo principal é a incorporação de conhecimentos teóricos, técnicos e operacionais relacionados à produção de bens e serviços, por meio de processos educativos desenvolvidos em diversas instâncias (escolas, sindicatos, empresas, associações). É a preparação do cidadão ou da cidadã, por intermédio de uma formação profissional, para que ele ou ela possam aprimorar suas habilidades para executar funções específicas demandadas pelo mercado de trabalho. Existem diversos programas de qualificação e requalificação profissional patrocinados por empresas, cujo publico são seus próprios trabalhadores. O sistema S (SESC, SENAI, SENAT, etc) constitui-se, em sua maioria, de programas de formação profissional que obedecem a uma programação, na maioria das vezes, anual. São a esses programas públicos que a grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras tem acesso. 161 Em busca da melhor cidade Geralmente, são programas de grande espectro e, nos moldes atuais, sua consecução e definição programática permitem ampla participação da sociedade e, particularmente, dos representantes dos trabalhadores. O programa tem várias virtudes, sendo a maior, talvez, é claro, o fato de ser gratuito. Porém, não menos importante é sua flexibilidade, que permite a definição rápida de um setor econômico; uma determinada categoria profissional ser contemplada com um curso de qualificação para atendimento de uma demanda específica e pontual. Sem dúvida, o grande programa em nível nacional é o do Ministério do Trabalho e Emprego custeado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. O Plano Nacional de Qualificação Social e Profissional – PNQ – está organizado de forma participativa e com total transparência. Atua em todo o País e seu mérito é o de sua execução ser feita em parceria, seja com entes públicos – Estados e Municípios – seja com entidades sem fins lucrativos, o que lhes dá maior efetividade e resolutividade. O PNQ entende a qualificação profissional como uma complexa construção social que inclui, necessariamente, uma dimensão pedagógica, ao mesmo tempo em que não se restringe a uma ação educativa, nem muito menos a um processo educativo de caráter exclusivamente técnico. Por outro lado, quanto mais associada estiver a uma visão educativa que a tome como um direito de cidadania, mais poderá contribuir para a democratização das relações de trabalho e para imprimir um caráter social e participativo ao modelo de desenvolvimento. O PNQ deve contribuir para promover a integração das políticas e para a articulação das ações de qualificação social e, em conjunto com outras políticas e ações vinculadas ao emprego, ao trabalho, à renda e à educação, deve promover gradativamente a universalização do direito dos trabalhadores à qualificação, com vistas a contribuir para: I – A formação integral (intelectual, técnica, cultural e cidadã) dos trabalhadores; II – Aumento da probabilidade de obtenção de emprego e trabalho decente e da participação em processos de geração de oportunidades de trabalho e de renda, reduzindo os níveis de desemprego e subemprego; III – Elevação da escolaridade dos trabalhadores, por meio da articulação com as políticas públicas de educação, em particular com a educação de jovens e adultos; IV – Inclusão social, redução da pobreza, combate à discriminação e diminuição da vulnerabilidade das populações; 162 Ricardo Patah V – Aumento da probabilidade de permanência no mercado de trabalho, reduzindo os riscos de demissão e as taxas de rotatividade ou aumento da probabilidade de sobrevivência do empreendimento individual e coletivo; VI – Elevação da produtividade, melhoria dos serviços prestados, aumento da competitividade e das possibilidades de elevação do salário ou da renda; VII – Efetiva contribuição para articulação e consolidação do Sistema Nacional de Formação Profissional, articulado ao Sistema Público de Emprego e ao Sistema Nacional de Educação. A qualificação profissional deve ser vista como fator determinante para o futuro. É muito importante que a posição Dentro do PNQ existem várias e importantes modalidades de execução identificadas como planos. Aqueles que no momento refletem melhor nossas necessidades e que permitem um maior envolvimento dos sindicatos e de sua base, bem como a formalização de parcerias locais, são os Planseqs e Planteqs. No caso do Planteq, as ações de educação profissional, compreendendo formação inicial e continuada, poderão ser realizadas tendo como referência territórios ou setores produtivos específicos. No segundo caso, a modalidade de execução será concebida como plano complementar aos anteriores. Em termos genéricos, os Planteqs e Planseqs caracterizam-se como espaços de integração das políticas de desenvolvimento, inclusão social e trabalho (em particular, intermediação de mãode-obra, geração de trabalho e renda e economia solidária) às políticas de qualificação social e profissional, em articulação direta com oportunidades concretas de inserção do trabalhador e da trabalhadora no mercado de trabalho. Esses dois planos devem ser estruturados com base na concertação conquistada seja mantida, alimentando chances reais de crescimento nas corporações. 163 Em busca da melhor cidade A política de qualificação profissional não poderá sozinha vencer esse desafio se não se transformar numa causa de massas. 164 social que envolve agentes governamentais e da sociedade civil, dando particular atenção ao diálogo tripartite e à lógica do cofinanciamento, segundo o porte e a capacidade econômica de cada parte envolvida. Para todas as formas de participação, o Ministério do Trabalho e Emprego prestará basicamente apoio financeiro, com recursos do FAT, não participando diretamente de sua execução, na qual entra a plena e necessária atuação do Município. Os Planteqs contemplam projetos e ações de QSP circunscritos a um determinado território (unidade federativa ou Município), devendo ser analisados, aprovados, em primeira instância, e homologados pelas Comissões/ Conselhos Estaduais e Municipais de Trabalho, Emprego e Renda, e posteriormente submetidos ao Ministério do Trabalho e Emprego, para aprovação final. No processo de execução das ações do PNQ, é de suma importância a articulação e o acompanhamento, pelas Comissões/Conselhos Estaduais de Trabalho/Emprego e pelas Comissões/Conselhos Municipais de Trabalho/Emprego, das demandas levantadas pelo poder público e pela sociedade civil organizada. Essas entidades deverão também aprovar planos e projetos, em primeira instância, e supervisionar a execução das ações de QSP no âmbito do seu território, podendo, inclusive, convidar os setores específicos não representados na comissão no momento de definição da demanda e outros momentos pertinentes. Nesse sentido, os Planteqs são instrumentos para progressiva articulação e alinhamento da demanda e da oferta de QSP em cada unidade da federação, devendo explicitar a proporção do atendimento a ser Ricardo Patah realizado com recursos do FAT, de acordo com as prioridades definidas neste Termo de Referência, e informando a proporção efetiva ou potencialmente atendida pela rede local de QSP, financiada por outras fontes públicas e/ou privadas. Dado o seu caráter territorial, os Planteqs estarão voltados exclusivamente para qualificação social e profissional vinculada ao desenvolvimento econômico e social do território (oportunidades de desenvolvimento, vocação, implantação de empresas, atendimento de populações vulneráveis etc.). Para a implantação de um Planteq, é preciso que seja discutido o Plano de Trabalho e anexos, em reunião específica da Comissão/Conselho Estadual, se plano estadual, ou Municipal de Trabalho/Emprego, se plano municipal, e só poderão ser apresentados ao MTE após aprovação, devidamente comprovada por ata e assinatura dos seus membros. Para os planos municipais, após aprovação da comissão municipal, conforme regras estabelecidas acima, o plano de trabalho deve ser encaminhado pela comissão municipal para a comissão estadual, que deverá reunir-se, juntamente com representantes da comissão municipal em questão, visando à aprovação do plano municipal, que será encaminhado ao MTE pela entidade municipal. Caso a comissão estadual requeira algum ajuste no plano a ela submetido, deverá a comissão municipal providenciar as alterações em até sete dias úteis e submeter à comissão estadual, em nova reunião, para apreciação e aprovação. Nesse sentido, cabe às comissões estaduais e municipais a discussão e aprovação do Plano de Trabalho e anexos, não cabendo, portanto, a aprovação da minuta de convênio. Uma vez implantado o Planteq, sua execução será feita sob gestão de um responsável legal, que pode ser a secretaria municipal de Trabalho ou sua equivalente. Saliente-se, ainda, que é vedada a superposição de ações no território, devendo estas serem analisadas e informadas pelo MTE aos proponentes para a devida adequação dos projetos, eliminando tais superposições. Para tanto, as Comissões Municipais de Emprego devem estar atentas à execução de todas as ações de qualificação, seja Planteq estadual, municipal ou Planseq, e, caso identifiquem alguma superposição de ação, informar o MTE. Os Planos Setoriais de Qualificação - Planseqs são projetos e ações de QSP de caráter estruturante, setorial ou emergencial, que não possam, por volume ou temporalidade, ser atendidos por Planteqs. Por isso, trata-se de um instrumento complementar e/ou associado aos Planteqs, orientado ao atendimento transversal e concertado de demandas emergenciais, estruturantes ou setorializadas de qualificação, as quais são identificadas a partir de iniciativas governamentais ou 165 Em busca da melhor cidade sociais, cujo atendimento não tenha sido possível nos planejamento dos Planteqs. Os Planseqs devem estar articulados, obrigatoriamente, com outras políticas públicas de emprego pertinentes e podem ser formais (os trabalhadores do setor produtivo atendido são, prioritariamente, assalariados), sociais (voltados, prioritariamente, para trabalhadores autônomos, de autoemprego, empreendedores da economia solidária, agricultores familiares, grupos sociais organizados etc.) e emergenciais (quando relativos a desemprego em massa causado por fatores econômicos, tecnológicos e/ou sociais relevantes). Para um Planseq ser implantado, é preciso que seja proposto ao MTE, para fins de concertação e cofinanciamento, por uma ou mais entidades demandantes. Os demandantes podem ser órgãos da administração pública federal, inclusive o Ministério do Trabalho e Emprego, secretarias estaduais ou municipais de Trabalho que tenham a responsabilidade em seu território pelas ações de qualificação social e profissional, centrais e confederações sindicais, sindicatos locais, federações e confederações patronais e entidades representativas de movimentos ou setores sociais organizados e, por fim, empresas públicas ou privadas. Sempre que uma ou mais dessas entidades apresentarem uma proposta factível de Planseq, essa apresentação será seguida por debate participativo do projeto, por meio de uma ou mais audiências públicas convocadas pelo MTE. Na audiência pública, os agentes públicos, privados e sociais envolvidos serão organizados sob a forma de uma Comissão de Concertação, de forma paritária e, no mínimo, tripartite, sendo garantida a participação de representantes da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego ou Gerência Regional vinculada ao território; do MTE; dos governos estadual e municipal; das comissões/conselhos estadual e municipal de trabalho e emprego dos territórios em que se pretende desenvolver o Planseq; bem como sindicatos de trabalhadores e empresários do setor. Portanto temos um processo participativo e que exige mobilização. Não é um projeto único e sim algo que pode sofrer mudanças e acompanhar o dinamismo exigido pelo mercado de trabalho. Porém, fica claro para nós, trabalhadores organizados, que a política de qualificação profissional não poderá sozinha vencer esse desafio se não se transformar numa causa de massas, que possa, ao mesmo tempo, garantir a qualidade de suas ações. O que torna urgente nossas ações, para aproveitar o bom momento da economia e formarmos um trabalho competitivo, são as previsões para o futuro. O relatório de Competitividade Global 2009-2010, publicado pelo World Economic Forum, 166 Ricardo Patah demonstra que o Brasil melhorou em vários aspectos, mostrando um crescimento no nível de emprego. Mas chama a atenção o atraso comparativo na área de educação. O percentual de brasileiros que possuem apenas o curso primário ou o primeiro grau é de 57%. As coisas não mudam quando analisamos os dados do recente relatório da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD 2008 na parte de números da educação, indicando o aumento do número de analfabetos na faixa de maiores de 25 anos. É o fator educação o grande diferencial que poderá fazer crescer renda e trabalho. Se o Brasil quiser ficar entre os grandes, este quadro tem que mudar. É um dado muito ruim, pois a qualificação profissional não substitui a educação formal. Sem a educação formal ficam restritos os campos de atuação do trabalhador. Hoje se luta pelas 40 horas semanais de trabalho. É importante que o trabalhador aproveite estas horas a mais que vai ter, livres, para voltar a estudar ou avançar na graduação. A crise mundial teve um reflexo grande na Europa. Porém dois países se destacam na recuperação: França e Alemanha. São exatamente os dois países que têm a carga de trabalho menor da Europa. Destacam-se pela qualidade de sua produção, reflexo direto da potencialidade de sua mão de obra. Portanto, o investimento em educação e qualificação se torna fundamental para que o trabalhador possa trabalhar menos, produzir melhor e ganhar mais. Para que isto aconteça, as políticas públicas têm que alcançar o trabalhador com oferta de educação e qualificação que o motive, e que ele perceba que isto é fundamental para seu futuro. Dedicar tempo à educação sempre é algo fora dos planos: é normal Chama a atenção o atraso comparativo na área de educação. O percentual de brasileiros que possuem apenas o curso primário ou o primeiro grau é de 57%. É o fator educação o grande diferencial que poderá fazer crescer renda e trabalho. 167 Em busca da melhor cidade Dedicar tempo à educação sempre é algo fora dos planos: é normal o “não tenho tempo”. O desafio é fazer com que a escola seja algo sedutor. 168 o “não tenho tempo”. O desafio é fazer com que a escola seja algo sedutor. Com os constantes avanços tecnológicos e sociais advindos da nova fase econômica que estamos vivenciando, pode-se perceber um mercado de trabalho cada vez mais exigente, buscando profissionais com nível de escolaridade e qualificação cada vez maiores. Apesar do acelerado crescimento da geração de emprego nos últimos tempos e da previsão da criação de novos, devido ao surgimento de novas profissões, a falta de qualificação passa a ser uma grande barreira para o crescimento do número de postos de trabalho. Cria o grande gargalo da geração de empregos em um País onde cresce a cultura da formação universitária e, por vezes, deixam-se de lado os cursos técnicos e os de qualificação profissional, e que atualmente mostram-se tão necessários. Visto que a exigência do mercado precisa e deve ser atendida no mesmo espaço de tempo em que surge a demanda, e se for observado desse patamar, já estamos com uma defasagem em relação às necessidades atuais. Durante muitos séculos a educação vem passando por profundas mudanças. Na segunda metade do século 20, produziu transformações na prática social e no trabalho. Por isso verifica-se em todo o planeta uma grande inquietação nos meios ligados ao setor educacional, provocando reformas que buscam sua adequação às novas exigências. No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê que a educação básica precisa dar condições de o cidadão progredir no trabalho: “A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Lei n. 9.394, 1996). Ricardo Patah É um dos aspectos essenciais na superação do subdesenvolvimento e na integração dos países à competitividade do mercado internacional e na redução do desemprego. A educação é um fenômeno observado em toda sociedade, sendo um dever da família e do Estado transmitir, às gerações que se seguem, os modos culturais de ser, estar e agir necessários à convivência e ao ajustamento de um membro no seu grupo ou sociedade. Atualmente, o maior desafio encontrado é a qualidade dos sistemas educacionais. Como conciliar os objetivos de preparação para o prosseguimento de estudos, de preparação para o mercado de trabalho e de desenvolvimento pessoal. Os grandes desafios enfrentados por esses sistemas assumem, na realidade brasileira, características específicas de um País que está passando por grandes transformações entre os vínculos que estão sendo estabelecidos entre a educação geral e a educação profissional. Falar sobre qualificação nos tempos atuais se tornou fundamental nas organizações e, principalmente, nas instituições de ensino, já que é impossível se falar em qualificação sem aprendizado. A condição para a qualificação é a alteração no quadro existente de conhecimento e de aceitação de determinadas realidades. É primordial contar com uma base de conhecimentos sustentada por um processo de aprendizado contínuo. A ligação da formação profissional com o sistema educacional também é fundamental, porque o trabalho é uma forma de inserção na sociedade. As universidades e os cursos técnicos são os dois principais elos entre educação e formação profissional. A qualificação profissional pode ser compreendida como poderosa explicação para o êxito ou as restrições das pessoas e mesmo dos países em transitarem por esse cenário turbulento de reestruturação produtiva e da globalização. Assim, o processo de qualificação profissional está relacionado à aprendizagem humana. Um aspecto que merece destaque é que a qualificação profissional envolve pelo menos dois atores sociais: o governo e os trabalhadores. Para o governo, a qualificação profissional representa uma forma de assegurar a produtividade e a competitividade do País; para os trabalhadores, representa autonomia e autovalorização. Nesse sentido, os dois atores sociais podem buscar qualificação profissional, assumindo o custo desse investimento. Face à nova realidade vivenciada nestas ultimas décadas, o que se pode perceber é que o novo ritmo ditado pelo modelo econômico atual faz com que o trabalho tradicional também embarque neste carrossel de mudanças. O modelo de profis- 169 Em busca da melhor cidade sional que as empresas queriam no passado eram profissionais especialistas e executores. Muitas organizações estão cortando empregos, e aqueles que permanecem estão se transformando e mudando a forma de trabalhar dos empregados. A tradicional divisão do trabalho em atividades específicas está perdendo terreno para o trabalho com base em informação-conhecimentos, de modo que o trabalhador rígido se torna descartável para uma gama de atividades. As exigências são de um trabalhador versátil, flexível e adaptável, que consiga modificar rapidamente o desenvolvimento de suas atividades. Como consequência das novas tecnologias, novas profissões surgem constantemente, e diversas funções tradicionais estão sendo transformadas, substituídas, e até mesmo extintas. Diante de tudo isso, seria ousadia tentar definir quais as novas demandas profissionais para o futuro e que rumos irão tomar o trabalho e o emprego como até então se conhecia, até porque as transformações variam segundo as condições de cada região, segmento da economia e qualificação de cada trabalhador. Porém, se for feita uma análise desse novo mercado de trabalho, se poderá constatar que muitos dos empregos existentes, na maioria dos casos, são considerados temporários. Há empresas que delegam tarefas a pessoas que não fazem parte de seu corpo funcional. Esses profissionais são os consultores independentes que comercializam seus talentos sem nenhum vínculo empregatício com a empresa. O novo mercado de trabalho exige que as empresas sejam cada vez mais dinâmicas, e isso está mudando completamente a relação entre empregado e empregador. Com base nessas informações, pode se dizer que o potencial de crescimento do setor de serviços é praticamente ilimitado. O desenvolvimento de políticas públicas socialmente desejáveis nas comunidades tem sido uma maneira de enfrentar essa situação, e um bom caminho para um trabalho que visa à democracia e à cidadania. A formação humana para a cidadania se dá na tomada de consciência grupal do comportamento próprio e do alheio, evitando-se que interesses subalternos, egocêntricos predominem nas deliberações grupais. A verdadeira cidadania é o compromisso do indivíduo com os interesses de sua comunidade e chama-se democracia, participação de todos em tudo. Sobre o papel da educação na formação humana, Morin (2002, p. 65) alerta: “A educação deve contribuir para a transformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar um cidadão”. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria. O que supõe o enraizamento de sua identidade nacional. Embora mui- 170 Ricardo Patah tos dos países apresentam legislação que assegura os direitos de todos os cidadãos igualmente, mesmo assim a sociedade não está preparada o suficiente para exercer a inclusão social em sua plenitude. Não bastam somente leis para incorporar a inclusão entre os atores da sociedade. E sim, concordando com Tanaka e Manzini (2005), “Por meio de uma ação conjunta entre o indivíduo, a família, a sociedade e o governo”. Interação é uma palavra que resume a ideia de inclusão social alcançada por meio da oportunidade de qualificação levada a quem está à margem do processo de desenvolvimento. Outro fator importante é que a organização da sociedade civil precisa estabelecer uma compreensão crítica do mundo em que se vive e que sejam criadas, entre as pessoas, referências comuns sobre a educação que tem como objetivo essencial o desenvolvimento humano, tendo como valores a construção de um espaço de socialização e preparação de um projeto de melhoria na qualidade de vida das comunidades, gerando fatores como: satisfação no trabalho, salário, lazer, relações familiares, disposição, prazer, estado de saúde, e até espiritualidade. Em um sentido mais amplo, a qualidade de vida é uma medida da própria dignidade humana, pois implica atendimento das necessidades humanas fundamentais. Não há dúvida de que um novo olhar tem sido dado à questão da qualificação profissional no Brasil. Porém, apesar de toda a ênfase dada à questão da qualificação, e do discurso crescente acerca de sua importância, ainda não conseguimos dar uma importância que a realidade exige. Os resultados demonstram que é necessário refletir acerca da qualificação profissional, visto que, se o panorama atual for mantido, a tendência é de A tradicional divisão do trabalho em atividades específicas está perdendo terreno para o trabalho com base em informaçãoconhecimentos, de modo que o trabalhador rígido se torna descartável para uma gama de atividades. 171 Em busca da melhor cidade É importante que sejam criadas políticas públicas de resgate dessa parcela da população que está à margem do desenvolvimento por não ter sido preparada adequadamente para desfrutar desse crescimento. 172 agravamento das diferenças entre as necessidades de mercado e a oferta de mão-de-obra qualificada, com poucas oportunidades para a maioria dos jovens trabalhadores. Sugere uma reflexão acerca das políticas públicas de qualificação, no sentido de atender a demanda de jovens em busca de horizonte, especialmente os que se encontram em situações de menor oportunidade de qualificação. É preciso que os gestores públicos e até mesmo o setor privado compreendam que, quando se investe em qualificação profissional, os resultados não ficam restritos ao indivíduo que participa da ação, mas que existe uma difusão maior de conhecimento. Com o intuito de amenizar as desigualdades sociais e econômicas existentes no Município, sugere-se: ampliar as oportunidades de qualificação profissional; maior e melhor divulgação das políticas de qualificação já existentes; criar programas de resgate para a população que está à margem. Existe a necessidade de que se transformem em realidade os discursos sobre qualificação profissional, cada vez mais presentes nos debates sociais. Importante que sejam criadas políticas públicas de resgate dessa parcela da população que está à margem do desenvolvimento por não ter sido preparada adequadamente para desfrutar desse crescimento. O trabalhador quer emprego. Mas emprego em que ele tenha condições de competir no mercado de trabalho. O Estado ainda é parte fundamental no enfrentamento destas questões e nós, representantes dos trabalhadores e trabalhadores, somos partícipes. A União Geral dos Trabalhadores – UGT, entidade que tenho a honra de presidir, define em seus objetivos o seguinte: Ricardo Patah CAPÍTULO II DOS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS ARTIGO 2º - São Objetivos fundamentais da UGT: I. Executar, através de convênios, contratos ou de outros instrumentos legais, com fundações ou organismos de direito público ou privado, nacional ou internacional, ou em parceria, ações de qualificação e requalificação, tanto social quanto profissional, por meio de planos territoriais, municipais, regionais, mesoregionais, estaduais ou de âmbito nacional de qualificação que contemple, dentre outros objetivos: a formação integral (intelectual, técnica, cultural e cidadã) dos/as trabalhadores/as brasileiros/as; aumento da probabilidade de obtenção de emprego e trabalho decente e da participação em processos de geração de oportunidades de trabalho e de renda, e também recolocação na área de trabalho, reduzindo os níveis de desemprego e subemprego; elevação da escolaridade dos trabalhadores/as, através da articulação com as políticas públicas de educação, em particular com a Educação de Jovens e Adultos; inclusão social, redução da pobreza, combate à discriminação e diminuição da vulnerabilidade das populações; aumento da probabilidade de permanência no mercado de trabalho, reduzindo os riscos de demissão e as taxas de rotatividade ou aumento da probabilidade de sobrevivência do empreendimento individual e coletivo; elevação da produtividade, melhoria dos serviços prestados, aumento da competitividade e das possibilidades de elevação do salário ou da renda; efetiva contribuição para articulação e consolidação do Sistema Nacional de Formação Profissional, articulado ao Sistema Público de Emprego e ao Sistema Nacional de Educação, podendo ainda, executar planos setoriais de qualificação e projetos especiais de qualificação, que contemplem a elaboração de estudos, pesquisas, metodologias e tecnologias de qualificação social e profissional destinadas a populações especificas ou abordando aspectos da demanda, oferta e do aperfeiçoamento das políticas públicas de qualificação e de gestão participativa, implementadas em escala regional ou nacional. Senhor Prefeito: queremos trabalhar juntos na criação do trabalhador e da trabalhadora do futuro. 173 Paulo Simão Engenheiro civil e administrador de empresas, é presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Integra o Conselho de Desenvolvimento, Econômico e Social da Presidência da República desde 2003. Coordena o Conselho Temático sobre Desenvolvimento Urbano do Espaço Democrático. 174 Paulo Simão Urbanização e civilização: avanços e d e s a f i o s 175 Em busca da melhor cidade 176 O Paulo Simão século XX trouxe um desafio inédito para a espécie humana: como acomodar, com dignidade, um número cada vez maior de pessoas em cidades que não param de crescer? Como oferecer trabalho, moradia, saúde, alimentação, mobilidade, segurança e outros direitos fundamentais a populações de milhões de habitantes forçadas a viver em megacidades? Segundo a Organização das Nações Unidas, o número de megacidades (com mais de 10 milhões de habitantes) passou de duas, em 1950 (Tóquio e Nova York), para 20, em 2005. Em 2015, serão 22, sendo 17 delas situadas em países em desenvolvimento. A mesma ONU estima que, por volta do ano 2050, quase 80% da população mundial estarão concentrados em grandes centros urbanos. A consequência disso será um aumento exponencial da pressão sobre serviços e infraestrutura. No Brasil, até o Censo de 1940, apenas um terço da população vivia nas cidades. Nas décadas seguintes, o crescimento da indústria brasileira e a integração do território nacional por meio de estradas e da aviação comercial levaram um número cada vez maior de pessoas dos campos para as cidades. Nos anos 1980, todas as regiões brasileiras já possuíam a maioria dos seus habitantes em centros urbanos. Hoje, o País está entre as nações mais urbanizadas do mundo. Segundo dados do último censo do IBGE, apenas 15,65% da população viviam no campo em 2010, contra 84,35% que viviam nas cidades. Para os gestores públicos e para a própria sociedade brasileira, está colocado um grave desafio para os próximos anos: uma grande parte das cidades brasileiras, em particular as de médio e grande porte, se encontra à beira de um colapso e está cada dia mais distante do objetivo de proporcionar aos seus habitantes uma boa qualidade de vida. O mesmo Censo de 2010 constatou o lamentável crescimento de aglomerados precários, totalizando 6.329 áreas espalhadas por 323 Municípios brasileiros – ou, mais de 3,2 milhões de domicílios e 11 milhões de pessoas. São áreas ocupadas irregularmente, sem serviços públicos adequados, representadas por favelas, palafitas, grotas e vilas. O resultado desse descaso são as repetidas tragédias nas épocas das chuvas e a alta incidência de doenças causadas pela falta de saneamento básico, principalmente entre crianças. São várias as razões que levaram o País a ter que conviver com essa lamentável realidade. A principal origem do problema está na ausência, durante longos anos, de políticas urbanas adequadas. Às vésperas de se tornar a quinta potência 177 Em busca da melhor cidade econômica do mundo, o Brasil não pode se omitir em equacionar essas e outras questões urgentes. Há de se considerar também que, nos últimos anos, em função de políticas sociais cada vez mais abrangentes e focadas, as populações de renda mais baixa têm se desenvolvido em velocidade superior à média do País. Esse desenvolvimento trouxe para o núcleo da sociedade consumidora um contingente expressivo da população brasileira, disposta a consumir mais e exigir seus direitos, dentre os quais, melhor qualidade de vida urbana. O novo desenho da sociedade brasileira ilustra bem essa mudança que se deu no País nos últimos 10 anos. Composição das Classes Sociais Brasileiras (milhões de pessoas) 7,2 Classe A 9,6 7,3 Classe B 10,4 67,5 Classe C 95,0 46,1 Classe D 44,5 46,6 Classe E 28,9 2002 2009 Total: 175 milhões Total: 188 milhões De qualquer forma, é preciso ter consciência de que, além de políticas corretas e adequadas, não se pode prescindir de uma gestão eficiente, moderna e transparente, sem o que não haverá êxito na implantação das metas definidas. De igual importância é a participação efetiva da iniciativa privada na realização dos projetos, principalmente na área de infraestrutura. A parceria correta do ente público com o privado torna-se cada vez mais urgente. As crescentes demandas da sociedade e a necessidade de melhor equipar as nossas cidades exigem investimentos cada vez maiores, que o poder público sozinho não tem conseguido atender. Uma cidade bem planejada traça metas e objetivos de longo prazo, que na maioria das vezes ultrapassa o período de vários mandatos de governantes, caracterizando-se como políticas de Estado, ao invés de programas de governo. Isto traz a vantagem de garantia de implantação da política completa, e a certeza da perenidade dos investimentos, fator fundamental na atração do capital privado. 178 Paulo Simão Por fim, temos que pensar na melhor forma de participação dos cidadãos nas decisões que serão tomadas. Afinal, o objetivo final é desenvolver as cidades para que as populações que ali habitam, ou frequentam por algum motivo, tenham melhores condições de vida e possam usufruir adequadamente dos inúmeros serviços que lhes são oferecidos pelos investimentos aportados, provenientes dos impostos que os próprios cidadãos pagam. Não há mais espaço para políticas e projetos impostos pelos entes públicos de cima para baixo. A participação cada vez mais intensa da sociedade organizada torna-se cada dia mais importante. Neste capítulo, quero me dedicar a analisar particularmente três temas fundamentais, que estão na base da maioria dos problemas que atingem a vida das populações nos grandes centros urbanos: Moradia, Saneamento Básico e Mobilidade. MORADIA – DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL Não há mais espaço para políticas e projetos impostos pelos entes públicos de cima para baixo. A participação intensa da sociedade organizada torna-se cada dia mais importante. O direito à moradia é considerado como base para a conquista de uma série de outros direitos fundamentais. Já estava previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde 1948; e no ano 2000 foi incluído na Constituição Brasileira, por meio de uma emenda constitucional. Conquistar um lar digno não significa apenas ter um “teto” para morar, mas ter assegurada toda a infraestrutura básica que garanta uma vida saudável (água tratada, coleta e tratamento de esgoto e lixo, fornecimento de energia, entre outros itens). Apesar de todos os esforços feitos nos últimos anos, o Brasil ainda tem uma grave dívida social a sanar: um déficit de aproximadamente 5,5 milhões de 179 Em busca da melhor cidade O Brasil tem um déficit de aproximadamente 5,5 milhões de moradias. Segundo o IBGE, 95% desse déficit está localizado principalmente entre famílias com renda mensal de até seis salários mínimos, com pouca capacidade de pagamento ou nenhuma renda. 180 moradias. Segundo dados do IBGE, 95% desse déficit está localizado principalmente entre famílias com renda mensal de até seis salários mínimos, ou seja, que tem pouca capacidade de pagamento ou nenhuma renda. Neste sentido, a solução do problema habitacional passa, necessariamente, por uma ação conjunta que envolve os três níveis de governo, a sociedade civil organizada e a iniciativa privada. Oferecer moradias de qualidade a todos os brasileiros sem casa ou que vivem em locais precários implica subsídio e financiamento. Em outras palavras, o combate ao déficit deve estar focado na expansão da oferta de moradias dignas para as classes de menor poder aquisitivo. Além da construção de novas unidades habitacionais, existem muitos casarões nos centros históricos das cidades brasileiras que, preservados em suas fachadas e volumetria, podem ser retrofitados e transformados em prédios habitacionais ou mistos. Como essas regiões dispõem de boa infraestrutura, o repovoamento poderá se constituir em uma das formas de enfrentar o problema do déficit. VARIÁVEIS SIGNIFICATIVAS - Estamos convencidos de que a participação da iniciativa privada na produção de moradias destinadas à população de baixa renda é fundamental para eliminar o atual déficit habitacional. A nosso ver, para viabilizar esse projeto será necessária uma série de ações das diferentes esferas de governo que estejam articuladas entre si. Aqui, quero chamar a atenção, em especial, para aquelas ações que estão diretamente localizadas no âmbito da gestão municipal ou não podem prescindir de uma ação forte e objetiva dos dirigentes do Município: Paulo Simão • Melhores condições para comercializar lotes urbanos: autorização de linhas de financiamento; • Utilização de espaços públicos disponíveis; • Agilidade no processo de aprovação de novos loteamentos; • Criar a figura do Loteamento para HIS (Habitação de Interesse Social); • Concessionárias devem assumir o custo de infraestrutura em loteamentos para HIS; • Capacitação e treinamento para servidores públicos; • Aquisição de equipamentos e sistemas modernos; • Simplificação e atualização do quadro legal-normativo; • Organização de leis e regulamentos; • Análise integrada do empreendimento por comitês multissetoriais; • Necessidade de padronizar parâmetros em relação às HIS; Dentre essas medidas, quero me aprofundar em quatro ações: Desoneração do produto final dos empreendimentos de HIS - Estudos demonstram que a desoneração é compensada pelos efeitos positivos que gera no nível de atividade da cadeia produtiva da construção. É importante assegurar a sua transferência integral às famílias beneficiárias, de forma a reduzir o custo da habitação. Estudos da Fundação Getulio Vargas indicam que os impostos e tributos devidos nos três níveis de governo impactam em cerca de 38% o custo das unidades de HIS. Nesse contexto, o poder público municipal pode isentar todos os impostos e tributos incidentes sobre empreendimentos caracterizados como HIS, desde as taxas de aprovação até a de transferência de propriedade (ITBI). Incentivar a ampliação da oferta de terra urbanizada como instrumento de redução de custo - Para empreendimentos de interesse social, as concessionárias públicas dos serviços de fornecimento de água potável, coleta e tratamento do esgoto sanitário e distribuição de energia e iluminação pública deverão assumir os custos de implantação desses serviços. A autorização de linhas de financiamento e de recursos adequados para a produção e comercialização de lotes urbanizados permitirá a participação de mais empreendedores no mercado, com consequente aumento da oferta. 181 Em busca da melhor cidade Existe, no País, um grande número de terrenos e imóveis públicos que, bem localizados mas ociosos, poderiam ser usados para a viabilização de HIS. O cadastro dessas propriedades e sua regularização pelo Serviço de Patrimônio da União – SPU e os órgãos regionais equivalentes permitirão ampliar a oferta. A cessão sem ônus desses imóveis ou sua adequada utilização serão importantes elementos de regulação dos preços, especialmente se considerarmos a extensão das áreas existentes, ou na viabilização de projetos a serem construídos em outros locais. A rapidez do processo de aprovação de novos loteamentos reduzirá o custo dos empreendimentos, agilizará a entrada de terra urbanizada e permitirá o retorno mais rápido do capital investido. Desburocratizar os procedimentos para a aprovação de empreendimentos de HIS - O setor público precisa adotar medidas de capacitação e treinamento para seus servidores, além de adquirir equipamentos e sistemas modernos que facilitem a análise de projetos. Assim, são relevantes as ações de promoção e apoio à simplificação e atualização do quadro legal-normativo que rege a aprovação de projetos. As Prefeituras, em geral, não disponibilizam de forma organizada o conjunto de leis e regulamentos aplicáveis à aprovação de projetos. Trabalhadores pouco qualificados, equipamentos e sistemas desatualizados, excesso de leis, decretos e portarias são fatores que encarecem e até mesmo inviabilizam a produção de habitações. Criar uma base única de registro de imóveis - Precisamos de um sistema de registro de imóveis inteligente, que torne as operações mais rápidas, seguras e menos custosas. A modernização do sistema de registro e controle de imóveis envolve a centralização das informações fiscais, de propriedade e de dívida, que devem ser atreladas à matrícula do imóvel e disponibilizadas para o público com acesso on-line. SANEAMENTO BÁSICO – UMA DÍVIDA SOCIAL Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 30% dos Municípios brasileiros não têm qualquer serviço de saneamento básico. Dados do Serviço Nacional de Informações de Saneamento (SNIS) mostram que 19% dos brasileiros não têm abastecimento de água tratada. Mesmo nas locali- 182 Paulo Simão dades onde o serviço existe, muitas vezes é deficiente. Quase um quarto dos Municípios do País enfrenta racionamentos constantes. Quanto ao esgoto, mais da metade da população (53%) não tem coleta. Do pouco que é coletado, menos ainda é tratado: 38%. Ou seja, a grande maioria do esgoto produzido no Brasil acaba sendo jogado diretamente nos rios e lagos. Estima-se que mais de 470 Municípios brasileiros estejam com seus mananciais de água comprometidos por causa dessa poluição. Por trás desses números que mostram uma realidade incompatível com um País da relevância econômica e política do Brasil, existe um drama humano de proporções impensáveis: mortalidade infantil, redução da expectativa de vida e piora do nível de desenvolvimento humano em todos os aspectos (estatura, capacidade de aprendizagem, entre outros). Estimase que a falta de saneamento esteja diretamente ligada a 65% das internações em hospitais no País. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (UNICEF), para cada real investido no setor, economizam-se quatro em serviços hospitalares. A falta de acesso a água de boa qualidade e a convivência com esgoto a céu aberto levam à proliferação de doenças como diarreias, esquistossomose, dengue e leptospirose. Só essas enfermidades causaram 61 mil mortes, em todo o Brasil, nos últimos dez anos. Precisamos de um sistema de registro de imóveis inteligente, que torne as operações mais rápidas, seguras e menos custosas. Indicadores de Terceiro Mundo - Avaliando isoladamente os dados dos diferentes Estados brasileiros, podemos afirmar que os indicadores de saneamento em algumas localidades do País podem ser comparados aos dos mais pobres países do mundo. Segundo 183 Em busca da melhor cidade Um dos maiores obstáculos do setor está relacionado à cultura de falta de planejamento existente no País. A dificuldade começa com uma baixa compreensão sobre a importância de um bom projeto de engenharia e leva a uma incompreensão acerca dos serviços de apoio indispensáveis, como topografia e geotecnia. 184 dados da Divisão de Estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2008, metade da população de Angola tinha acesso à água potável. Enquanto isso, em Ananindeua (no Pará), apenas 29,5% da população contava com esse serviço (dados de 2009). Na mesma linha, enquanto em Cabo Verde, 54% da população tinham acesso ao serviço de saneamento (no ano de 2008), no Recife – uma das maiores cidades brasileiras – apenas 37,7% da população contava com esse direito. O Relatório da ONU sobre os Objetivos do Milênio alerta que uma das maiores afrontas à dignidade humana é a prática de defecar em espaços abertos, o que causa a transmissão de diversas doenças que podem ser fatais para as populações mais vulneráveis (em especial as crianças). Estimativas divulgadas em 2010 mostram que cerca de 1 bilhão de pessoas estão sujeitadas a essa situação no mundo. No Brasil, segundo as mesmas fontes, esse número chega a 13 milhões de pessoas. Problema de gestão - A maioria das companhias estaduais de saneamento está em má situação financeira. Das 26 empresas, 15 são deficitárias, ou seja, gastam mais do que arrecadam. O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, indica que as operadoras de água e esgoto tiveram prejuízo de R$ 3 bilhões em 2009. O problema de gestão no setor de saneamento é tão grave que deve consumir 20% dos 420 bilhões de investimentos a serem feitos nos próximos 20 anos no Brasil. A ideia é investir R$ 86 bilhões apenas em programas de melhoria de eficiência e capacitação técnica de profissionais. Grande parte das receitas se perde em vazamentos e Paulo Simão ligações clandestinas. Do total do volume de água tratada produzido no País, 37% se perde entre a estação de tratamento e a casa das pessoas. Ou seja, grande parte do trabalho de separar o lodo e adicionar cloro e flúor na água dos mananciais acaba indo pelo ralo. Isso acontece principalmente por causa das tubulações antigas que passam muito tempo sem manutenção. Modelos de gestão - A ampliação do conceito da gestão compartilhada, empregando-se as várias formas de regionalização já existentes – seja com os Comitês de Bacia, os Consórcios Intermunicipais, as associações por agregação de interesse – é uma das formas de se aproveitar as estruturas existentes, aproximando-se as soluções das comunidades. O que não se pode aceitar é a situação atual, em que os grandes centros urbanos conseguem formular seus objetivos e os pequenos Municípios, os mais carentes, ficam alijados do processo. Além dos investimentos aplicados na expansão e ampliação dos sistemas, é preciso destinar parte desses recursos para a melhoria contínua da qualidade de gestão dos serviços e na eficiência operacional dos sistemas de saneamento básico. É imperativa a melhoria dos processos gerenciais, tecnológicos e operacionais dos agentes prestadores de serviços como forma de conservar e manter os altos investimentos aplicados, além de propiciar maior controle nas operações, com redução dos percentuais de perdas de água, diminuição dos índices de inadimplência e evasão de receitas. A Importância dos Projetos As últimas discussões levadas a cabo no setor de saneamento apontaram, de forma uniforme e unânime, que um dos maiores obstáculos no setor está relacionado à cultura de falta de planejamento existente no País. A dificuldade começa com uma baixa compreensão sobre a importância de um bom projeto de engenharia. Esse desconhecimento leva, por consequência, a uma incompreensão acerca do tempo necessário para a elaboração de um projeto, assim como dos serviços de apoio indispensáveis, tais como topografia e geotecnia. Ainda mais grave, essa cultura leva a uma falta de percepção sobre o quanto o projeto de engenharia é fundamental para a correta formatação do empreendimento. Assim, neste cenário, é natural que não existam bons projetos disponíveis, como regra. Essa carência de projetos de saneamento não permite que os Municípios 185 Em busca da melhor cidade tenham acesso às diversas fontes de financiamento disponíveis, o que termina por estabelecer um círculo perverso. Os Municípios melhor estruturados articulam a elaboração de bons projetos, firmes na convicção de que representam maior economicidade do empreendimento, maior segurança durante a obra, com menores transtornos durante a execução, e com a obtenção de um produto final mais próximo do que havia sido concebido. Essa melhor estruturação representa, como regra, garantia de empreendimentos viáveis, o que torna o empreendedor cada vez mais apto a uma boa gestão. De outro lado, os tomadores que não possuem estrutura não conseguem articular bons projetos e, dessa forma, não têm acesso aos recursos. Quando conseguem obtê-los, não realizam bons empreendimentos e assim tornam-se menos aptos, dificultando ainda mais o desafio de se universalizar o saneamento. Dentre outras razões, isto ocorre pela falta de estrutura técnica, ou financeira, por parte dos Municípios que não conseguem elaborar os projetos executivos, ou não dispõem de recursos para contratá-los. Algumas questões centrais precisam ser incorporadas em um processo de mudanças. Como todos sabem, os custos dos projetos são a parte substancialmente menor do custo total das obras. Assim, dever-se-ia pensar em incluir esses custos no financiamento global do empreendimento, tomando-se os valores previamente despendidos como contrapartida. A manutenção do quadro atual com o nível de responsabilidades estabelecidas no plano municipal já demonstrou não conseguir gerar um fluxo regular de projetos capaz de garantir a universalização dos serviços. É de se destacar que, mesmo a agregação por Estados idealizada para os componentes de água e esgotos, não conseguiu suprir as deficiências, inclusive nos Estados com melhor prestação desses serviços. Essa realidade se torna ainda mais complexa quando se agregam os componentes dos resíduos sólidos e da drenagem urbana, uma exigência dos dias atuais. De tal modo, acreditamos, pelo exposto, que a busca de uma regionalização que trabalhe a questão em um plano supra municipal pode ser a saída para a produção de projetos confiáveis, capazes de garantir empreendimentos saudáveis. Nesse aspecto, poder-se-ia aproveitar a estrutura de regionalização existente, como os vários órgãos e organismos já constituídos, a partir da garantia de um fluxo regular de recursos financeiros. Neste capítulo, gostaria de enfocar algumas propostas que podem, no âmbito municipal, contribuir com a solução do problema: 186 Paulo Simão • Planos municipais vinculados ao plano regional - Necessário superar barreiras ideológicas e corporativas para garantir maior participação do capital privado. • Cuidados para que os planos municipais de saneamento sejam elaborados de forma adequada e não sejam apenas “preenchimento de formulários”. • Aproveitar o fato de que o Ministério das Cidades produziu cartilha de orientação aos Municípios para elaboração dos planos de saneamento. • Buscar regras para que os planos municipais já sejam aprovados ao menos com a aprovação inicial das entidades do meio ambiente. • Fundo que irá fazer compensação de tarifa poderá auxiliar, também, na elaboração dos planos de Municípios carentes. • Subsídio - Criar um fundo compensatório para tornar economicamente viáveis sistemas deficitários por problemas de baixa densidade ou problemas técnicos. • Mecanismo que substitua o antigo “subsídio cruzado” • Mudança no tratamento orçamentário/contábil dos recursos destinados a projetos • Os projetos devem ser considerados tão determinantes quanto os investimentos, pois um não se resolve sem o outro. Desta forma, os projetos devem ter o mesmo tratamento contábil e de importância. • Custo de projetos como valor de contrapartida nos financiamentos • Recebíveis do subsistema como garantia do financiamento • PPI – Projetos Piloto de Investimentos em nível estadual e municipal • É possível construir uma solução que contemple A mobilidade urbana é um dos temas mais delicados na agenda das grandes e médias cidades do mundo. Os engarrafamentos têm custo elevado para a economia. Na Cidade do México, por exemplo, as perdas chegam a 2,5% do PIB. 187 Em busca da melhor cidade Houve gradativo abandono dos transportes Projetos Piloto de Investimentos em nível estadual e, principalmente, municipal que permitam que os investimentos realizados não sejam considerados como despesa primária. • Projeto de Saneamento deve ser classificado como Projeto de Meio Ambiente (novo paradigma) públicos por parte da população. Nas oito maiores capitais brasileiras, a queda foi 25% entre 1994 e 2001. de 188 MOBILIDADE URBANA: O DESAFIO DA MODERNIDADE A mobilidade urbana é um dos temas mais delicados e urgentes na agenda das grandes e médias cidades do mundo. Os engarrafamentos quilométricos têm um custo elevado para a economia e chegam a provocar prejuízos expressivos. Na Cidade do México, por exemplo, as perdas chegam a 2,5% do PIB. São produtos que deixam de circular, eventos que deixam de ser realizados, negócios desfeitos... Entretanto, prejuízo maior se dá na vida da população, em especial das faixas mais pobres da sociedade, que moram na periferia dos grandes centros, e que chegam a desperdiçar até quatro horas por dia em engarrafamentos. Estimativas mais recentes, feitas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres em 2002, mostram que eram feitos por dia cerca de 200 milhões de deslocamentos nas cidades brasileiras. Metade desses deslocamentos era feita a pé ou em bicicletas. A outra metade correspondia a viagens feitas por veículos motorizados. O estudo da ANTT mostrou que o transporte público representa a parte mais significativa dos deslocamentos feitos de forma motorizada (60% do total). Nesse universo, os ônibus eram maioria absoluta, transportando 94% de todos que usam o transporte coletivo. Os trens e metrôs levavam quase 5%. Paulo Simão Mudança de paradigmas – a evolução da classe C e uma série de facilidades e vantagens tornaram carros e motos mais baratos. O resultado tem sido um gradativo abandono dos transportes públicos por uma parcela cada vez maior da população. Nas oito maiores capitais brasileiras, a queda foi de 25% entre 1994 e 2001. Trens urbanos e metrôs mantiveram-se estáveis nesse período. A queda foi causada pela falta de qualidade dos serviços, mas também pela concorrência dos automóveis e motos e pela ação de transportadores ilegais. Duas linhas diferentes de atitude frente ao problema foram adotadas no mundo: a primeira, principalmente na América do Norte, foi a de supremacia inconteste do automóvel sobre o transporte público, com a implantação de infraestrutura viária de alta capacidade voltada para o transporte privado. A outra, adotada na Europa, foi a de desenvolvimento de sistemas de transporte de alta capacidade, especialmente sobre trilhos, para o transporte da maioria da população, e a adoção, a partir dos anos 60, de medidas de restrição ao uso do automóvel nos principais centros urbanos, inicialmente de forma pontual, depois de modo mais abrangente. O Brasil não se situou nem em um bloco nem em outro, no que se refere ao seu relacionamento com o automóvel. Se por um lado não conseguiu fazer os investimentos necessários para a acomodação dos volumes de tráfego nem em capacidade nem em segurança, pelo outro não investiu em sistemas de transporte que se tornassem alternativas viáveis ao automóvel, como sistemas metroviários. O círculo vicioso do aumento do tráfego e da saturação do trânsito foi rápido e inexorável, reforçado pela estabilidade econômica trazida a partir do Plano Real e pela disponibilidade de crédito que impulsionaram a fabricação e venda de automóveis a patamares nunca antes imaginados. Despreparado para enfrentar esse crescimento, o País viu-se gradativamente mergulhado em números inaceitáveis de acidentes de trânsito, estimados de forma diferente por diversos organismos, pela incapacidade formal de apresentação de números precisos. O número de mortes no trânsito por ano é anunciado por diversas fontes, e varia desde 35.000 mortes por ano, fornecido pelo DENATRAN, até 56.000, baseado no número de indenizações por morte pagas pelo DPVAT. Mudar essa realidade é um desafio que implica vontade política, pressupõe o envolvimento das três esferas de poder e envolve medidas muitas vezes impopulares. Possivelmente por esses motivos, a Política Nacional de Mobilidade Urbana demorou 17 anos tramitando no Congresso Nacional. Ela foi finalmente 189 Em busca da melhor cidade sancionada em 3 de janeiro de 2012, na Lei nº 12.587, e objetiva a integração entre os diferentes modos de transporte e a melhoria da acessibilidade e mobilidade de pessoas e cargas do território do Município. Neste contexto, entretanto, não há dúvida de que os planos diretores das cidades são as peças fundamentais para mudar essa realidade. Eles devem, entre outras soluções, propor políticas habitacionais para privilegiar a consolidação de áreas urbanas já ocupadas, como prédios sem uso no centro, ou revitalizar bairros degradados. Essas medidas fazem com que as cidades se adensem em áreas que já contam com infraestrutura. É preciso ainda estimular o uso misto do solo, favorecendo a descentralização da economia e dos empregos e também dos serviços públicos. Se mais pessoas morarem mais perto do emprego, em bairros com escolas, hospitais, lazer, comércio e serviços, menor será a necessidade de deslocamentos e, portanto, menos motorizada, barulhenta e poluída será a cidade. Os planos diretores precisam também cuidar dos projetos de expansão urbana, prevendo redes integradas de transportes e trânsito para as novas regiões a serem criadas. E também precisam controlar a implantação, em áreas já ocupadas, de novos shoppings centers, edifícios de escritórios, faculdades e outros empreendimentos que geram muito tráfego. Grandes metrópoles mundiais, como Paris, Londres, Nova York e Tóquio, têm encontrado soluções inteligentes para administrar o problema da mobilidade urbana. Entre elas podemos ressaltar: • O transporte público agrega valor para o desenvolvimento de novas áreas. Transporte público de alta qualidade aumenta o valor dos imóveis. A infraestrutura de transportes pode ser financiada conjuntamente com os desenvolvedores que se beneficiam desse crescente valor da terra. • Muitas cidades têm sucesso em projetos que integram uma política de revitalização do centro com uma requalificação dos transportes públicos • Pedestres, ciclistas, ônibus e bondes coexistem perfeitamente bem nas áreas centrais das grandes cidades. Mesmo em ruas estreitas onde os carros são proibidos, pedestres, ciclistas, bondes elétricos e ônibus podem funcionar em harmonia. • Integração dos diferentes modais de transportes. Estações de intercâmbio bem planejadas podem unir os transportes ferroviários, os metrôs, ônibus e bondes. • Em Gotemburgo (Suécia) uma ampla rede de monitores informa, em tempo real, a posição de mais de 450 ônibus elétricos e veículos leves sobre trilhos. 190 Paulo Simão Essas informações são acessíveis em tempo real, pela internet. • Corredores de ônibus transportam de 40% a 200% mais passageiros em horários de pico. Dublin (Irlanda) tem investido em 12 corredores de ônibus de qualidade. Esses corredores preveem: prioridade, direito de passagem e espaço viário dedicado a ônibus (um ônibus a cada 1-3 minutos durante períodos de pico), informações em tempo real; abrigos em cada parada. Com isso, o tempo de viagem de ônibus foi reduzido em 30% a 50%. O número de automóveis que entram no interior da cidade de Dublin foi reduzido em 21,4% (de novembro de 1997 a novembro de 2004), e o número de passageiros de ônibus aumentou 49% durante o mesmo período. • Redes de ônibus de alta capacidade podem transportar grandes quantidades de pessoas. Países emergentes e em desenvolvimento precisam investir em sistemas de transportes urbanos que sejam sustentáveis e que possam responder às suas crescentes necessidades de mobilidade. • O renascimento dos bondes - 20 anos atrás, apenas três cidades da França ainda tinham bondes. Sistemas totalmente novos foram introduzidos com sucesso em Nantes, Grenoble, Estrasburgo, Paris, Rouen, Montpellier, Lyon e Orleans. Isso foi possível graças à implementação de uma “taxa de transporte”, um imposto pago pelos empregadores e utilizado para o investimento e operação dos transportes públicos. • Nas cidades grandes, o metrô é inigualável na sua capacidade de rapidamente mover grande número de pessoas: 20.000 passageiros por hora em cada sentido é a média, subindo para mais de 80.000 em algumas redes. Mesmo em ruas estreitas onde os carros são proibidos, pedestres, ciclistas, bondes elétricos e ônibus podem funcionar em harmonia. 191 Em busca da melhor cidade Considerações finais As chamadas “dores do crescimento” cobram alto preço das diferentes instâncias de governo, da iniciativa privada e da própria sociedade. 192 O Brasil alcançou na última década um estágio de maturidade econômica e de desenvolvimento social que levou o País a um papel de protagonismo no contexto internacional como uma das nações mais importantes do mundo. Essa evolução não tem se dado, entretanto, sem contratempos. As chamadas “dores do crescimento” cobram alto preço das diferentes instâncias de governo, da iniciativa privada e da própria sociedade. São problemas de infraestrutura que, nos grandes centros urbanos, assumem cores dramáticas. Neste capítulo, procuramos lançar luz sobre três temas que consideramos fundamentais para a vida nas cidades: moradia, saneamento e mobilidade. Neste ano de eleições municipais, gestores públicos e a própria sociedade tiveram a oportunidade de promover um amplo debate sobre soluções permanentes para esses temas, que estão na base de problemas cruciais nos grandes centros urbanos, como: violência, elevada incidência de doenças sanitárias, expansão do volume de populações em situação de vulnerabilidade, estrangulamento da capacidade de fluxo de produtos e pessoas, entre outros impactos decorrentes do crescimento das cidades sem planejamento. O Partido Social Democrático, com o presente documento, presta um importante serviço ao povo brasileiro, oferecendo valiosos subsídios para a qualificação dos debates políticos que não devem se limitar ao período de eleições municipais. Espero que as avaliações e considerações feitas neste capítulo sirvam de base para a elaboração de planos de governo para os gestores que acabam de ser eleitos, e também para orientação dos vereadores que terão como missão auxiliá-los ou fiscalizá-los. FONTES 1. Programa Sanear é Viver – Câmara Brasileira da Indústria da Construção 2. Programa Moradia Digna – Câmara Brasileira da Indústria da Construção 3. Transport Problems Facing World Cities – estudo elaborado pelo Parlamento Australiano 4. CIUDADES EN MOVIMIENTO – Revisión de la Estrategia de Transporte Urbano de Banco Mundial –pelo Banco Mundial 5. O Transporte Público e o Trânsito para uma Cidade Melhor - Cartilha elaborada pela Agência Nacional de Transportes Públicos 6. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento 193 Fábio Feldmann Administrador e advogado com mais de 40 anos de atuação na área de meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Contribuiu para a criação da Fundação SOS Mata Atlântica e foi secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, além de ser autor de parte da legislação ambiental brasileira. Coordena o Conselho Temático sobre Meio Ambiente do Espaço Democrático. 194 Fábio Feldmann O l i x o e a rua: o Município e o meio ambiente 195 Em busca da melhor cidade 196 Fábio Feldmann “ Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora das cidades, sem dúvida; mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar para mais longe; a imponência dos tributos aumenta e os impostos elevamse, estratificam-se, estendem-se por um perímetro mais amplo. Acrescente-se que, quanto mais Leônia se supera na arte de fabricar novos materiais, mais substancioso torna-se o lixo, resistindo ao tempo, às intempéries, à fermentação e à combustão. É uma fortaleza de rebotalhos indestrutíveis que circunda Leônia, domina-a de todos os lados como uma cadeia de montanhas” (CALVINO, Ítalo; As cidades invisíveis, pg. 106 1). Lixo filosoficamente... Segundo o livro “Dirty: the filthy reality of everyday life”2, desde o período Neolítico, observamos as conseqüências culturais, mentais e econômicas da nossa aversão à sujeira. Diferentemente de outros animais, humanos não apenas criaram ferramentas e tecnologias para manter a “sujeira” afastada, como também criaram ideologias que agregaram o significado de perigo em relação a ela para amedrontar, coagir e educar as pessoas. O lixo doméstico, em particular, ressalta o problema do lixo como íntimo, perpétuo e desprezado. É íntimo por ser uma das poucas atividades que praticamos por 24 horas, exceto, talvez, durante o sono, quando não o geramos. Assim, o lixo que produzimos reflete desde os nossos comportamentos mais banais até nossos momentos mais importantes. É perpétuo, por não existir uma forma de parar a sua produção. E é desprezado por muitas razões: a mais simples delas é o seu poder conglomerado de desgosto. Uma única casca de laranja mofada não é tão grave, especialmente se for nossa própria laranja, mas um balde de laranjas podres de uma fonte desconhecida pode provocar forte reação negativa. 1 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. COX, Rosie.; GEORGE, Rose; HORNE, R. H.; NAGLE, Robin; PISANI, Elizabeth; RALPH, Brian.; SMITH, Virginia. Dirty: The filthy reality of everyday life. Londres: Profile Books, 2011.190 p 2 197 Em busca da melhor cidade O lixo é um dos poucos assuntos que nos permitem refletir sobre os valores da sociedade. No Brasil, o espelho de como nos relacionamos com a coisa pública é a atitude muitos de nós ao simplesmente jogar na rua ponta de cigarro, papel usado e outros utensílios como latas ou embalagens. Esta atitude não é exclusividade de nenhuma classe social. É comum entre pobres e ricos. Aliás, o que surpreende é que o brasileiro, de maneira geral, é muito preocupado com a higiene, mas esta preocupação encontra limite nos muros da sua casa. Lixo no Brasil Em que pese a importância da economia brasileira no mundo hoje, a maioria das nossas cidades ainda deposita os seus resíduos em lixões e, quando muito, em aterros sanitários nem sempre bem operados. Os dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, estudo do IBGE de 2008, são reveladores: Destino final dos resíduos sólidos, por unidades de destino dos resíduos (%) Ano Vazadouro a céu aberto Aterro controlado Aterro sanitário 1989 88,2 9,6 1,1 2000 72,3 22,3 17,3 2008 50,8 22,5 27,7 Fonte: Pesquisa Nacional do Saneamento Básico de 2008 - IBGE A tabela indica que o número de cidades brasileiras que dão uma destinação final adequada aos resíduos sólidos aumentou entre 2000 e 2008, mas os lixões (vazadouros a céu aberto) ainda eram o principal destino do lixo em 50,8% das cidades há 4 anos. Em 2000, esse percentual era de 72,3%. Os lixões ainda são um dos principais desafios de saneamento básico do Brasil. Neles são lançados todos os tipos de resíduos, sem qualquer forma de tratamento ou reciclagem, provocando sérios danos ao meio ambiente. A decomposição do lixo orgânico gera potentes gases causadores de efeito estufa, como o metano e o dióxido de carbono. Sem falar na contaminação que, do solo, vai para a água. A título de explicação, os gases de efeito estufa (GEE) são gases presentes na atmosfera terrestre que têm como função bloquear parte dessa radiação infravermelha. Muitos deles, como o vapor d’água, o dióxido de carbono (CO2), o metano 198 Fábio Feldmann (CH4), o óxido nitroso (N2O) e o ozônio (O3), existem naturalmente na atmosfera e são essenciais para a manutenção da vida no planeta, pois, sem eles, a Terra seria, em média, 30ºC mais fria. O aumento da concentração desses gases na atmosfera, em razão da ação humana, tem causado a potencialização do “efeito estufa”, aumentando a temperatura média do planeta. A pesquisa do IBGE mostra também que o índice de Municípios que passaram a usar prioritariamente os aterros sanitários aumentou de 17,3% em 2000, para 27,7% em 2008. Já a proporção de cidades que recorrem a aterros controlados, mais adequados do que os lixões, mas que não são a alternativa ideal, permaneceu praticamente estagnada: em 2000, eram 22,3%; em 2008, esse número passou para 22,5%. Segundo dados da Abrelpe – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, com o crescimento da economia e do consumo, em 2011, foram produzidos no Brasil quase 62 milhões de toneladas de lixo, 1,8% a mais que em 2010, sendo que cada brasileiro produziu, em média, em 2011, um quilo e 223 gramas de lixo por dia. De todo o lixo produzido, 10% não foram coletados, ou seja, 6,4 milhões de toneladas3. Outro problema grave é a mistura do lixo tóxico com o lixo comum; um exemplo citado na pesquisa do IBGE é que, em 2008, apenas 38,9% das empresas coletoras de lixo tratavam resíduos de serviços de saúde em aterros específicos. Política Nacional de Educação Ambiental X Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) Do ponto de vista legal, apenas no ano de 2010, após quase 20 anos de tramitação no Congresso Nacional, foi editada uma legislação específica sobre resíduos sólidos: a Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº. 12.305/2010). Conforme mencionado no artigo a ser publicado “Lei dos Resíduos e Lei da Educação Ambiental: por uma aplicação integrada das normas relativas às políticas públicas”, a primeira proposta a trazer a idéia de uma lei abrangente sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos foi o Projeto de Lei nº 3.333/92, que surgiu logo após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento 3 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/04/mais-de-40-do-lixo-coletado-nao-temdestinacao-adequada-mostra-relatorio.html 199 Em busca da melhor cidade Os lixões ainda são um dos principais desafios de saneamento básico do Brasil. Neles são lançados todos os tipos de resíduos, sem qualquer forma de tratamento ou reciclagem, provocando sérios danos ao meio ambiente. 200 (Cnumad), mais conhecida como Eco-92 ou Rio-92, em conjunto com o Projeto de Lei nº 3.792/93, que veio a se transformar na Lei da Educação Ambiental. Ambas as legislações compartilham gênese e fundamentação teórico-conceitual, assumindo o paradigma do Desenvolvimento Sustentável, que se consagrou a partir da publicação do Relatório Brundtland, em 1987. Ambas adotam a concepção do meio ambiente em sua integralidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural. Entendem que a proteção ambiental é responsabilidade compartilhada do poder público, de todas as esferas de governo e dos diferentes atores sociais. E o mais importante: os dois textos legais põem, no núcleo da eficácia das ações governamentais nesse campo, as práticas educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais. Vale ressaltar que a lentidão do processo legislativo que gerou a Política Nacional de Resíduos Sólidos pode ser explicada, pelo menos em parte, em face da quantidade e da complexidade de assuntos debatidos. As maiores polêmicas relacionam-se à responsabilidade pós-consumo do setor empresarial, à importação de resíduos e à incineração. Mesmo após ser aprovada, infelizmente a aplicação da Lei ainda caminha lentamente: dos 5.565 Municípios brasileiros, apenas 191 (3,4%) possuem, até o momento, novos planos de gestão aprovados pelo Ministério do Meio Ambiente. De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Prefeituras e Estados têm até 2 de agosto de 2012 para apresentar seus planos, caso queiram receber recursos do governo para aplicação no setor. Fábio Feldmann Lixo e o Planeta – Metano X Aquecimento Global Como já foi explicado acima, o processo de decomposição de dejetos orgânicos libera CH4 em grandes proporções. Ou seja, quanto mais lixo, mais gás metano! As emissões do Setor de Tratamento de Resíduos, conforme a Segunda Comunicação Nacional de 2005, apresentada ao Secretariado da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, representaram 9,6% do total das emissões de CH4 em 2005. No período de 1990 a 2005, as emissões de CH4 do Tratamento de Resíduos Sólidos aumentaram 42%, e já estamos em 2012! Certamente essas emissões tendem a aumentar, pelo crescimento da economia e o aumento do consumo. É importante se assinalar que a captura do metano tem sido um dos principais focos de projetos de MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. A título de explicação, o MDL é um dos mecanismos de flexibilização, previsto pelo Protocolo de Kyoto, que tem como finalidade ajudar os países do Anexo I do tratado a cumprirem suas metas quantificadas de redução de emissões, além de promover o desenvolvimento sustentável em países do Não Anexo I. Vale lembrar que a cidade de São Paulo realizou um importante projeto de MDL no Aterro Bandeirantes, no qual os gases liberados no aterro são capturados e transformados em energia elétrica. Dessa maneira, além de se evitar o lançamento de GEE, os resíduos são aproveitados para gerar energia e, com isso, a Prefeitura pode comercializar as RCE’s – Reduções Certificadas de Emissão. A geração de lixo orgânico demonstra que cada um de nós, ao desperdiçar alimentos, contribui para o aquecimento global. Tanto isso é importante que o Parlamento Europeu, em recentíssima Resolução, no dia 19 de janeiro de 2012, solicitou que medidas urgentes sejam tomadas a fim de reduzir para metade o desperdício alimentar até 2025. Um estudo publicado pelo Parlamento Europeu estima a produção anual de resíduos alimentares, nos 27 Estados-Membros, em cerca de 89 milhões de toneladas, isto é, 179 kg per capita, com grandes variações entre os países e os diversos setores, sem sequer mencionar os desperdícios em nível de produção agrícola ou as devoluções de peixes ao mar. À medida que a economia brasileira está crescendo, há necessidade de que o País também passe a adotar providências nesse sentido. Se medidas preventivas adicionais não forem tomadas, o volume global de desperdício alimentar atingirá, em 201 Em busca da melhor cidade 2020, 126 milhões de toneladas (aumento de 40%). Esta Resolução demonstra claramente como é urgente a necessidade de mudança de atitude das pessoas em relação ao desperdício alimentar. No Brasil, ainda que não tenhamos dados precisos, há um movimento cultural de informar o desperdício, como se verificou em uma matéria recentemente publicada na Folha de São Paulo, no suplemento A Gourmet, no dia 04 de abril de 2012, da jornalista Alexandra Forbes, sob o título “Os chefs que abraçam o lixo”. Este artigo evidencia o desperdício de peixes vendidos no atacado do Ceasa (Centro de abastecimento de São Paulo), devido ao descuido no manuseio e transporte, resultando em um desinteresse por parte dos compradores em peixes descabeçados e machucados, e até mesmo em peixes pequenos. Lixo e Oceanos O lixo, além de contribuir para o aquecimento global, está gerando graves problemas aos oceanos. Estes se tornaram uma espécie de repositório global para o lixo que geramos, incluindo madeira, metal, vidro e plástico de várias fontes. O papel do plástico no oceano é ainda pouco compreendido, mas representa uma ameaça potencial para os ecossistemas e para a saúde humana. A cada ano, bilhões de toneladas de plástico são produzidas no mundo e apenas uma parte é reciclada ou reaproveitada, sendo que a maior parte vai para a natureza. O tempo de degradação do plástico no meio ambiente é, em grande parte, desconhecido, mas as estimativas estão na ordem de centenas de anos. De acordo com a Global Marine Litter Information Gateway, do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), detritos de plástico constituem 90% de todo o lixo flutuante dos oceanos. Além disso, o próprio Pnuma aponta que cigarros e pontas de cigarro representam quase um quarto de todo o lixo despejado nos oceanos4. Mais uma vez ressaltamos que atitudes banais comprometem enormemente nossos oceanos. UNEP – Ocean Conservancy, Regional Seas, GPA. Marine litter: a global challenge. Nairobi, 2009. 4 FELDMANN, Fabio. Sustentabilidade planetária, onde eu entro nisso? / Fabio Feldmann. – São Paulo: Terra Virgem, 2011.il. pág. 143. 5 202 Fábio Feldmann É importante mencionar que, hoje, há um “continente de lixo” que navega no Pacífico. Descoberto há uma década entre o Havaí e a Califórnia, é o “maior lixão” da Terra: flutuante, cobre uma área tão grande quanto a do continente americano5. Segundo pesquisadores, é provável que também existam ilhas de lixo como essa em outros lugares do planeta: ao que parece, o fenômeno já foi documentado por dois grupos de cientistas que navegavam entre a paradisíaca Bermuda e as ilhas portuguesas dos Açores, no meio do Atlântico. Isso ocorre porque os detritos de plástico são menos densos que a água e, portanto, flutuam. Lixo e fauna Segundo estudo publicado em 2011 pelas instituições Algalita Marine Research Foundation e California Coastal Water Research Project, cerca de 35% dos peixes apanhados em uma expedição de pesquisa realizada em 2008, na costa oeste dos Estados Unidos, apresentaram em média dois pedaços de plástico em seus estômagos. A ingestão de plásticos, confundidos com comida, é facilmente documentada em aves, tartarugas marinhas e mamíferos marinhos, e pode ser fatal: albatrozes podem confundir plástico vermelho com lulas, tartarugas podem confundir sacos plásticos com medusas. No Brasil esse problema é uma das grandes ameaças à fauna marinha. Um dos animais que mais sofrem com os plásticos são as tartarugas marinhas. Elas confundem os restos de plástico com alimento, ingerindo-os, mas seus estômagos não digerem esse material. De acordo com especialistas do Projeto O lixo, além de contribuir para o aquecimento global, está gerando graves problemas aos oceanos. Estes se tornaram uma espécie de repositório global para os resíduos que geramos. 203 Em busca da melhor cidade A médio prazo, a implementação Tamar, o plástico fica paralisado no estômago das tartarugas e proporciona uma sensação de saciedade. Em consequência, elas param de se alimentar e morrem de inanição. da logística reversa pode significar uma radical inovação em toda a cadeia produtiva, exigindo que o pós-consumo seja levado em consideração. Lixo eletrônico Além dos desafios do lixo mencionados anteriormente, surge um dos novos desafios em relação aos resíduos sólidos, que diz respeito ao lixo eletrônico. De acordo com o Pnuma, o Brasil é o mercado emergente que gera o maior volume de lixo eletrônico per capita, o que mais toneladas de geladeiras abandona a cada ano por pessoa, além de ser um dos líderes em descartar celulares, televisões e impressoras. Para se ter uma idéia, o Brasil abandona 96,8 mil toneladas métricas de computadores por ano, ficando atrás apenas da China, com 300 mil toneladas6. Comemorando a explosão do consumo no Brasil, o então presidente da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), Ronaldo Sardenberg, anunciou, em novembro de 2010, que o Brasil já havia ultrapassado a marca de um celular por habitante. A preocupação que fica é o destino desses celulares e de suas baterias. Nesse sentido, fica ainda mais evidente a necessidade de um consumo mais consciente por parte de todos. BRASIL é o campeão do lixo eletrônico entre emergentes. O Estado de S. Paulo, 22 fev. 2012. disponível em: http:// www.estadao.com.br/noticias/vidae,brasil-e-o-campeao-dolixo-eletronico-entre-emergentes,514495,o.htm 6 204 Fábio Feldmann Economia circular O lixo, portanto, reclama da sociedade uma mudança radical, desde o comportamento de cada cidadão, exigindo o que muitos chamam de “economia circular”, ou seja, quando o uso de materiais e a geração de resíduos são minimizados, os resíduos inevitáveis são reciclados ou remanufaturados, e qualquer resíduo restante é tratado de modo que cause o mínimo dano ao meio ambiente e à saúde humana7. Dessa maneira, caso queiramos de fato caminhar na direção do desenvolvimento sustentável, há que se repensar o que é o lixo, a partir de uma visão holística, de modo a introduzi-lo nesse novo conceito de economia. Vale ressaltar que um dos pontos mais desafiadores na implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, com um papel catalisador na economia circular, é a chamada “logística reversa” ou “responsabilidade pós-consumo”: o setor empresarial, junto ao poder público e aos consumidores, assume a responsabilidade de garantir uma boa destinação ao lixo. A médio prazo, a implementação da logística reversa pode significar uma radical inovação em toda a cadeia produtiva, exigindo que, desde a concepção e o desenho dos bens e serviços, o pós-consumo seja levado em consideração. No caso dos celulares, por exemplo, a logística reversa será muito eficaz, uma vez que muitos desses aparelhos são descartados em um período de dois anos, e alguns de seus componentes são tóxicos e cumulativos. Rio + 20 A Rio-92 foi um marco importante no estabelecimento de uma agenda do século XXI e influenciou a legislação brasileira, principalmente a Política Nacional de Recursos Hídricos, a Política Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Nacional de Educação Ambiental. Ambientalistas de todo o mundo acompanharam com interesse especial os preparativos da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável realizada entre 13 e 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, e que teve como eixos principais os temas: Economia FELDMANN, Fabio. Sustentabilidade planetária, onde eu entro nisso? / Fabio Feldmann. – São Paulo: Terra Virgem, 2011. il. Pág. 140 7 205 Em busca da melhor cidade Verde no Contexto do Desenvolvimento Sustentável e Erradicação da Pobreza e Governança Ambiental Internacional. Estabeleceu-se como objetivo da Conferência a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, por meio da avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes. Via-se como o grande desafio da Conferência não a formulação de novos temas, e sim o desenvolvimento dos temas já discutidos por todos em uma dimensão planetária. Havia grande esperança de que esta Conferência tivesse a capacidade de transmitir o senso de urgência trazido pelos estudos científicos que demonstram que há necessidade de ação imediata para evitar o agravamento das condições de sustentabilidade do planeta. A título de exemplo, num paradigmático artigo recentemente publicado na revista Nature (Vol. 461 – 24/09/2009), uma equipe de cientistas liderados por Johan Rockström apontou nove limites planetários: mudanças climáticas, acidificação dos oceanos, ozônio estratosférico, ciclos globais de Fósforo e Nitrogênio, aerossol atmosférico, mudanças no uso do solo, perda na biodiversidade, poluição química e o consumo de água doce. O artigo é paradigmático pela tentativa de estabelecer uma metodologia de mensuração, ainda que evidencie as dificuldades científicas para tanto. Sinaliza a necessidade de que a comunidade internacional, os países, as empresas, as cidades, enfim, a sociedade contemporânea, incorpore essa nova visão de mundo nos processos de tomada de decisão. Para enfrentar um desafio tão dramático, a Humanidade terá que traçar novas estratégias, repensar a economia e, mais do que qualquer coisa, discutir os padrões de consumo e estilos de vida praticados pelo que chamamos, genericamente, de “sociedade de consumo”. Talvez a maior dificuldade resida em se colocar o cidadão comum nesta discussão com a consciência de que cada um de nós tem a sua responsabilidade na geração inevitável do nosso lixo de cada dia. Este nosso lixo de cada dia tem um papel crucial na construção de uma cidadania planetária do século XXI, uma vez que contribui para o aquecimento global, a contaminação dos mares, ameaça à biodiversidade, enfim, a nossa sobrevivência. Para tanto, esta agenda deve ser compartilhada entre cidadãos, enquanto eleitores e consumidores, empresários, produtores de bens e serviços, governos, sociedade civil e partidos políticos, responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas. 206 207 Tulio Kahn Sociólogo, doutor em ciência política pela USP e autor de diversos trabalhos sobre segurança e criminologia. Foi Diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça no governo FHC e coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo. Colaborou com universidades da Inglaterra e dos EUA e atualmente é conselheiro do Espaço Democrático 208 Tulio Kahn Calçadas iluminadas: a segurança pública e o p o d e r l o c a l 209 Em busca da melhor cidade 210 Q Tulio Kahn ual o papel do Município na segurança pública, levando em conta o marco federativo? Durante muitos anos predominou no Brasil a visão de que segurança pública é um problema do governo estadual, que controla as polícias Civil e Militar, principais responsáveis pela investigação e prevenção imediata e ostensiva ao crime. Essa visão restritiva do problema da segurança ocorre quando se identifica segurança pública com polícia. Se segurança equivalesse apenas a polícia, haveria uma parcela de verdade naquela percepção, pois embora a União controle a Polícia Federal e a Rodoviária Federal, e muitos Municípios tenham Guardas, suas funções são limitadas pela Constituição e seus efetivos e recursos são diminutos, comparando-os com as polícias estaduais. Ocorre que já se percebeu, há muitos anos, que o tema segurança pública é muito mais amplo e envolve outras esferas de atuação, muitas delas de responsabilidade municipal. Limitar a questão da segurança pública ao policiamento investigativo e ostensivo é garantia de uma política de segurança mal concebida e mal sucedida. Para além desta ampliação conceitual da “segurança”, que não se limita à polícia, é preciso repensar o atual marco federativo que restringiu na Constituição o papel das Guardas municipais à proteção patrimonial dos próprios municipais. Tal limitação, já superada na prática, ainda não foi equacionada no âmbito legal. Basta olhar as pesquisas do IBGE sobre a atuação das Guardas para perceber que elas já executam tarefas muito mais amplas do que as reservadas pela Constituição. Segundo a pesquisa MUNIC 2009, entre as funções exercidas pelas Guardas estão: “Segurança e/ou proteção do prefeito e/ou outras autoridades”, “Ronda escolar”, ‘Proteção de bens, serviços e instalações do Município”, “Posto de guarda”, “Patrulhamento ostensivo a pé, motorizado ou montado”, “Atividades da defesa civil”, “Atendimento de ocorrências policiais”, “Proteção ambiental”, “Auxílio no ordenamento do trânsito”, “Controle e fiscalização de comércio de ambulantes”, “Auxílio à Polícia Militar”, “Ações educativas junto à população”, “Auxílio à Polícia Civil”, “Patrulhamento de vias públicas”, “Auxílio ao público”, “Auxílio no atendimento ao Conselho Tutelar”, “Segurança em eventos/comemorações”, “Atendimentos sociais (partos, assistência social, dentre outros)”, “Serviços administrativos”, “Assistência ao Judiciário” e “Programas sociais de prevenção ao crime e violência”, entre outras. Trata-se de um arranjo institucional informal e que não raramente implica conflito e sobreposição de tarefas com os outros atores. Faz-se necessário um novo 211 Em busca da melhor cidade A população não restringe segurança à polícia e vê no desemprego e na pobreza algumas das causas da violência. Por isso, governo federal, estaduais e municipais são responsabilizados igualmente quando a criminalidade cresce. 212 arranjo federativo para adequar as atuais funções das Guardas ao marco legal, pois hoje há um grande descompasso entre a esfera legal e a realidade das Guardas. Esta extrapolação de funções tem diversas causas – facilitadas pelas ambiguidades e falta de clareza jurídica na área: ao mesmo tempo em que, por um lado, rejeitam compartilhar o “poder de polícia” com as Guardas e reclamam de intromissão indevida, por outro, as polícias estaduais aceitam de bom grado a colaboração das Guardas no atendimento à população, principalmente quando se trata de ocorrências de menor potencial ofensivo e tarefas de preservação da ordem e costumes. Quando passam da ativa para a reserva, é frequente que ex-delegados ou ex-oficiais da PM assumam postos de comando nas Guardas ou Secretarias Municipais de Segurança. Nessa posição vão provavelmente repetir o que aprenderam nas polícias, e acabam por transformar as Guardas em versões menores das polícias estaduais. Finalmente, o governo federal, mediante seus fundos, patrocina atividades que, a rigor, não caberiam às Guardas, reforçando a tendência municipalista que já afetou outras esferas. Qual a contribuição dos municípios na área? A maioria dos Municípios criou suas Guardas municipais nas últimas duas décadas, e muitos atrelaramnas a secretarias municipais de segurança pública ou algo equivalente, como secretarias de defesa, cidadania, etc. Segundo o IBGE (MUNIC, 2009), 15,5% dos Municípios brasileiros contam atualmente com Guardas Municipais, porcentual que cresce linearmente conforme o tamanho da população: nos Municípios com mais de 500 mil habitantes, o percentual com Tulio Kahn Guarda sobe para 87,5%. Em números absolutos, são 865 Guardas em atuação no País, somando um efetivo de 86.199 pessoas. Grandes Regiões e classes de tamanho da população dos Municípios Municípios Com existência de Guarda Municipal Total Total Efetivo Total (1) Homens Mulheres Brasil 5 565 865 86 199 73 624 11 525 Até 5 000 1 257 25 213 194 19 De 5 001 a 10 000 1 294 81 1 208 1 140 68 De 10 001 a 20 000 1 370 183 4 078 3 796 282 De 20 001 a 50 000 1 055 268 12 396 11 189 1 207 De 50 001 a 100 000 316 122 9 544 8 336 1 208 De 100 001 a 500 000 233 151 25 375 21 827 3 378 40 35 33 385 27 142 5 363 Mais de 500 000 Essa tendência tem várias explicações, que vão além da “interiorização” da violência, e aponto aqui apenas algumas delas. Em primeiro lugar, os Municípios sempre investiram em segurança, ajudando as polícias estaduais que raramente contam com os recursos adequados. As Prefeituras emprestam seus funcionários para ajudar no atendimento em delegacias, pagam gasolina para as viaturas, emprestam ou alugam imóveis para sediar as polícias, cedem equipamentos e insumos. Segundo a pesquisa “Perfil das Guardas Municipais”, conduzida em 2007 pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, 26% da amostra de Municípios afirmou contribuir com as polícias estaduais. O investimento médio anual dos Municípios nas polícias estaduais foi estimado em R$ 678 mil reais, o suficiente para manter um pequeno efetivo de Guardas (cerca de 30). As Prefeituras gastam também contratando vigilantes das empresas privadas de segurança, terceirizando o serviço a um custo menor. Mesmo contribuindo financeiramente, nem sempre as necessidades da Prefeitura são levadas em conta pelas polícias estaduais. Assim, já que é para gastar, muitos prefeitos optam por criar suas próprias forças locais, sob sua subordinação exclusiva. Outro aspecto a destacar é que, para a população, todos os níveis de governo são responsáveis quando a segurança capenga. Várias pesquisas de opinião já constataram isso. 213 Em busca da melhor cidade A população não restringe segurança à polícia e vê no desemprego e na pobreza algumas das causas da violência. Por isso, governo federal, estaduais e municipais são responsabilizados igualmente quando a criminalidade cresce. Isto tem implicações políticas, por certo, e exige respostas de todos os Poderes. E explica em parte porque, na última década, tanto o governo federal quanto as Prefeituras assumiram parcialmente para si a questão da segurança. Entre outras iniciativas, o governo federal criou o Fundo Nacional de Segurança Pública, disponibilizando recursos aos Municípios para que invistam em segurança, o que tem incentivado a que cada vez mais os Municípios se envolvam com o tema. Carências das polícias estaduais, responsabilização política e eleitoral e novas fontes de recursos, portanto, são fatores que têm agido em conjunto para o crescimento das Guardas, criação de Secretarias Municipais de Segurança e Planos Municipais de Segurança. Quaisquer que sejam as razões, a entrada dos Municípios na esfera da segurança é um fato consumado, que tem trazido contribuições significativas para o País. Em razão da sua criação mais recente (as polícias estaduais são instituições centenárias), das limitações de funções e de prerrogativas, as Guardas têm procurado muitas vezes adotar um modelo diferente de atuação na segurança pública, de tipo mais comunitário, menos violento, mais participativo, mais preventivo e mais integrado com os demais órgãos municipais. A limitação das Guardas, inclusive no que tange ao armamento, pode ser um incentivo para inventar outro modo de se fazer segurança pública, transformando a limitação em virtude. As polícias estaduais, mesmo as que dizem adotar policiamento comunitário, concentraram-se na investigação e perseguição aos crimes mais graves, e muitos policiais ainda consideram o atendimento social e o controle da desordem física e social atividades menos nobres, de segunda ordem, que não dizem respeito às polícias. Por essas e outras razões, a atuação das Guardas vem ganhando espaço: problemas como desordem – barulho, flanelinhas, pedintes agressivos, pichação, sujeira, etc. – afetam cotidianamente um grande número de pessoas e incomodam às vezes muito mais do que os crimes graves, que são relativamente raros. Mais do que ser vítima de roubo, algo grave mas raro, são estes os elementos que aumentam a sensação de insegurança da população, como revelaram as pesquisas de vitimização. É aí que o Município vem fincando suas bandeiras e ganhando espaço e o reconhecimento da população. 214 Tulio Kahn Iniciativas Municipais Embora nem todos os Municípios contem com Guardas municipais, e estas tenham atribuições limitadas na esfera da segurança, todos os Municípios contam com recursos importantíssimos para a segurança. As Prefeituras cuidam da limpeza, da conservação de ruas e praças, da iluminação pública, do planejamento urbano, dos excessos de ruídos e contam ainda com equipamentos públicos de esportes e lazer. Sem mencionar a corresponsabilidade nas áreas de saúde e educação. O título escolhido para este artigo, “calçadas iluminadas: a segurança pública e o poder local” é um exemplo disso. Mas o que calçadas iluminadas têm que ver com segurança? Estudos criminológicos apontam há décadas as raízes sociais e econômicas da criminalidade e da violência. Revelam também como a desordem urbana afeta a sensação de segurança e atrai a criminalidade mais grave (teoria das janelas quebradas). Mostram como soluções urbanísticas, mudanças no mobiliário urbano e alterações arquitetônicas podem ajudar na prevenção da criminalidade (Crime Prevention Trough Enviromental Design – CPTED). Se não limitarmos segurança a policiamento, podemos afirmar que o Município conta, para lidar com a criminalidade, com recursos estratégicos que nem mesmo Estado e União têm. Usando um exemplo clássico, imaginemos que, para que um crime aconteça, precisemos necessariamente de ao menos três elementos: um agressor motivado, uma vítima ou bem disponível e um local onde ambos se encontrem para a consumação. Na medida em que o Município despende recursos de modo eficaz em educação e em políticas sociais para a redução da Se não limitarmos segurança a policiamento, podemos afirmar que Município conta, para o lidar com a criminalidade, com recursos estratégicos que nem mesmo Estado e União têm. 215 Em busca da melhor cidade Existem iniciativas relevantes em diversos níveis nas mãos dos Municípios que queiram atuar na esfera da segurança, tenham ou não Guardas Municipais. 216 pobreza e da desigualdade, ele indiretamente reduz a motivação do agressor para o crime. Ruas limpas, bem cuidadas e iluminadas reduzem a sensação de insegurança da vítima, aumentam a visibilidade do espaço público e previnem crimes. Um plano diretor bem concebido e planejado evita o crescimento desordenado de bairros sem qualquer infraestrutura, com elevado potencial criminógeno. Mudanças na posição da catraca dos ônibus diminuem a evasão de tarifas, e a troca das fichas por cartões evita a vandalização e o furto dos orelhões. Câmaras de monitoramento, usadas com parcimônia em áreas comerciais de grande circulação, levam à redução de furtos. A criação de um centro integrado de monitoramento e despacho de veículos de emergência, juntando serviços da Prefeitura e do Estado, é um dos projetos mais populares nas Prefeituras que optaram por atuar na segurança, até porque conta com apoio e recursos federais. Muitos costumam afirmar que essas políticas sociais de saúde e educação da população são de longo prazo e impactam apenas de forma indireta na criminalidade, enquanto a população quer soluções para já. Isso é verdade para as políticas sociais aplicadas de forma geral, mas estamos falando aqui de investimentos focados com critérios epidemiológicos, ou seja, prevenção “secundária”, como classificam os criminólogos. Programas sociais com foco espacial e sócio-demográfico – centrado, por exemplo, nos jovens de sexo masculino, moradores da periferia, que abandonaram a escola, que moram apenas com um dos pais, etc. – são muito mais rápidos e eficazes se o objetivo explícito é reduzir a criminalidade. Com relação às outras políticas de controle da desordem física e social e de reformas arquitetôni- Tulio Kahn cas e urbanísticas, inclusive alterações no mobiliário urbano, elas surtem efeitos a curto prazo e, ao contrário do que se imagina, podem trazer impactos muito mais diretos na criminalidade do que comprar novas viaturas e armas, invariavelmente solicitados aos fundos federais. Outra estratégia eficiente, porém pouco utilizada por Estados e Municípios, é a regulação dos espaços semipúblicos (espaços privados por onde circula grande quantidade de pessoas e, por isso, enfrentam problemas criminais que demandam a intervenção do Poder Público, como shoppings e bancos). A criação e fiscalização das posturas municipais e estaduais nesses espaços são uma forma de organizar o uso desses equipamentos urbanos, garantindo algumas regras mínimas. Exemplos disso são as posturas que exigem que os estacionamentos dos shoppings ofereçam seguro, que os bancos instalem portas giratórias e contratem vigilantes, que os caixas automáticos 24 horas contem com isolamento para os usuários, que as pessoas cuidem da pintura, segurança e manutenção das edificações. A famosa Lei Seca, adotada em algumas cidades paulistas, e que limitou o funcionamento dos bares em certos horários e dias da semana, é um exemplo de regulação dos espaços semipúblicos que contribuiu para a redução dos homicídios em São Paulo. Finalmente, é preciso lembrar as regras já existentes, porém pouco fiscalizadas, como as que proíbem a venda de bebidas alcoólicas para menores, a fiscalização dos desmanches de automóveis, a interdição de imóveis deteriorados e utilizados para o consumo de drogas, a fiscalização da lei do silêncio. Em suma, existem iniciativas relevantes em diversos níveis nas mãos dos Municípios que queiram atuar na esfera da segurança, tenham ou não Guardas Municipais. Iluminação Pública e Segurança Em teoria, faz sentido a tese de que melhorias na iluminação das ruas e calçadas aumentam a possibilidade de que as pessoas vejam umas às outras, reforçando assim a segurança mútua. A questão da visibilidade é um dos aspectos-chave para os adeptos da estratégia do CPTED – prevenção através de mudanças ambientais. Entretanto, existiriam evidências sólidas de que a iluminação realmente traz um impacto positivo sobre a criminalidade ou a insegurança? Os achados são ambíguos, como veremos na revisão a seguir. Em 1979, o Instituto Nacional de Aplicação da Lei e Justiça Criminal dos EUA fez 217 Em busca da melhor cidade uma revisão de 60 avaliações do efeito da iluminação sobre a criminalidade. O autor da revisão não conseguiu concluir na ocasião se a iluminação das ruas era ou não uma abordagem efetiva para deter o crime. O problema estava na pobreza metodológica e na precariedade dos dados e estudos, que impediam qualquer conclusão definitiva sobre a relação entre iluminação e crime (Tien, et. al. 1979, page 93). Nos anos 80 novos estudos foram realizados, principalmente em bairros de Londres, com resultados pouco promissores. Atkins, Husain e Storey (1991) compararam os crimes registrados um ano antes e depois que 39 áreas de um bairro tiveram a iluminação reforçada. Embora o experimento não tenha sido rigoroso do ponto de vista científico, a conclusão foi que nenhuma mudança sistemática nos níveis de criminalidade foi observada. Pesquisa com os moradores de uma das áreas tampouco encontrou mudanças nas percepções de segurança. Por outro lado, resultados mais promissores foram encontrados posteriormente em estudos realizados na Escócia e Inglaterra. Os estudos compararam taxas de vitimização e crimes registrados na polícia antes e depois do projeto de iluminação, porém sem utilização de grupos de controle, o que diminui sua validade. Painter (1994) examinou três intervenções que melhoraram a iluminação em áreas que concentravam crimes em Londres. Pedestres foram entrevistados, sempre à noite, antes e depois das seis semanas de implantação das melhorias. Os resultados são reportados na tabela a seguir. Autores e data Atkins, Husain e Storey. 1991 local efeitos 39 áreas Nenhum efeito sistemático sobre crimes ou percepção de Londres de segurança Ditton e Nair. 1994 Glascow Diminuição da vitimização na vizinhança entre 32% e 68%. Redução de 14% nos crimes relatados a polícia Painter. 1994 Londres 86% de redução nos roubos de rua, crimes em veículos e ameaças Painter. 1994 Londres 78% de redução nos roubos de rua, crimes em veículos e ameaças Painter. 1994 Londres 100% de redução nos roubos de rua, crimes em veículos e ameaças (mas com taxas base muito pequenas para serem significativas) Fonte: Eck, John. Capitulo 7 de Preventing Crime, What Works, What doesn´t, What´s promising 218 Tulio Kahn Apesar dos resultados mais animadores dessas pesquisas sobre iluminação e redução de crimes e insegurança, os críticos apontam a fraqueza metodológica dessas pesquisas, pois não permitem fazer inferências seguras em razão da falta de grupos de controle. Como Eck sintetiza ao final da meta análise, “nós podemos especular que a iluminação é efetiva em alguns lugares, ineficaz em outros e ainda contraprodutiva em algumas circunstâncias”, pois a mesma luz que transmite a sensação de segurança pode, em certos casos, ajudar os criminosos a detectar suas vítimas em potencial. Esse exemplo da iluminação é ilustrativo de um problema recorrente na segurança pública. Há muitas crenças sobre o que contribui para aumentar ou diminuir a criminalidade e a sensação de segurança, mas a maioria delas jamais foi avaliada de modo rigoroso. É comum que em campanhas eleitorais apareçam propostas para a segurança, recomendadas por “especialistas”, propostas que já se mostraram ineficazes nos locais onde foram adotadas. Recordo aqui o caso das “quadras esportivas” que, invariavelmente, aparecem ligadas à redução da violência juvenil. Sherman (2007) relata o caso de uma comunidade americana onde havia gangues juvenis, mas poucos confrontos, pois as gangues são territoriais e vigorava uma espécie de acordo de não agressão. Pois bem, com a criação do centro poliesportivo, as gangues passaram a disputar o controle do equipamento, gerando, ao contrário, mais violência do que antes... Em resumo, o caso alerta para o perigo de adotarmos acriticamente iniciativas que parecem lógicas, baseadas no senso comum, para diminuir a violência. Toda iniciativa nesta área – como, aliás, em qualquer outra da administração – deve ser precedida de uma análise extensiva da literatura existente, de um projeto piloto e acompanhada de uma avaliação criteriosa, antes de ser transformada em política pública de larga escala. Sugestões para melhorar o desempenho municipal Para melhorar o desempenho municipal na esfera da segurança, é preciso em primeiro lugar planejar e coordenar as tarefas dos diferentes órgãos envolvidos, inclusive a interação com os demais órgãos municipais, estaduais e federal. Um Plano Municipal de Segurança é a primeira etapa, pois é o que define as linhas mestras de atuação e os princípios que a regerão: respeito aos direitos individuais, interdisciplinaridade, transparência das ações, participação comunitária. 219 Em busca da melhor cidade Além dos princípios, ele deve estabelecer os principais programas, existentes ou a serem desenvolvidos, os focos das intervenções, as responsabilidades de cada entidade, as fontes de recurso, os grandes temas a serem abordados: desordem urbana, ações comunitárias, prevenção às drogas, pacificação do trânsito, entre outros. A pesquisa Senasp “Perfil Organizacional das Guardas Municipais”, de 2007, traz uma boa amostra dos princípios contidos nos Planos Municipais de Segurança, reproduzidos na tabela a seguir. Princípios dos Planos Municipais de Segurança Urbana entre os Municípios que possuem Guarda Municipal (Brasil - 2005/2007): Planos com Princípio 2005 2006 2007 N. Abs. (%) N. Abs. (%) N. Abs. (%)* 106 91,38 110 93,22 118 55,92 Promoção dos direitos humanos 81 69,83 89 75,42 90 42,65 Obediência a legalidade 98 84,48 103 87,29 107 50,71 Incentivo a participação comunitária 96 82,76 102 86,44 111 52,61 Integração entre órgãos municipais 90 77,59 98 83,05 111 52,61 104 89,66 99 83,90 110 52,13 Implementação de ações sociais 95 81,90 97 82,20 102 48,34 Ampliação e modernização da guarda 98 84,48 102 86,44 106 50,24 - - - - 83 39,34 89 42,18 111 52,61 111 52,61 81 38,39 Integração com as polícias civil e militar Fiscalização às leis e posturas municipais Planejamento com metas Capacitação contínua do efetivo Orientação sobre limites legais na ação Transparência na divulgação de informações Mediação de conflitos *Para 2007 o percentual concerne todas as guardas municipais existentes, não somente as que relataram ter planos municipais de segurança. esta alteração foi necessária porque diversas GMs responderam a respeito dos princípios, apesar de terem afirmado não existir o plano municipal. Fonte: Ministério da Justiça / Secretaria Nacional de Segurança Pública / Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública / Pesquisa Perfil Organizacional das Guardas Municipais 220 Tulio Kahn A etapa seguinte passa pela criação de um órgão específico para coordenar as ações municipais, com É possível status de secretaria ou não. Não estamos falando tratar a em apenas nomear um assessor para essa área, segurança como é comum, mas de um órgão completo, com es- como um tema trutura física e recursos humanos e materiais, orçamento definido, com poderes para acessar as informações do Município, recrutar funcionários, realizar convênios e licitações e até interferir na alocação de recursos e projetos dos demais órgãos municipais, “carimbando” recursos para a segurança. É este órgão que discute com as polícias estaduais e transversal de governo, ligado a vários setores da administração municipal. o governo federal as bases para a atuação no Município, que busca recursos externos, faz os convênios e contratos, interage com as demais secretarias. É também o órgão que avalia com rigor os projetos implementados e testa sua efetividade, como no caso da iluminação de rua. A pesquisa MUNIC do IBGE (2009) revela que são vários os arranjos possíveis para institucionalizar esse órgão coordenador, desde uma Secretaria de Segurança Exclusiva até um órgão da administração indireta. Note-se na tabela que 1.230 cidades afirmaram contar com alguma estrutura para gerir a área de segurança, enquanto apenas 865 relataram ter Guardas. Isto sugere que a existência da Guarda não é uma condição necessária para atuar sobre a segurança municipal. É possível tratar a segurança como um tema transversal de governo, ligado a vários setores da administração municipal. 221 Em busca da melhor cidade Grandes Regiões e classes de tamanho da população dos Municípios Brasil Municípios Com estrutura na área de segurança, por caracterização do órgão gestor Total Secretaria municipal exclusiva Secretaria municipal em conjunto com outras políticas Total Setor subordinado a outra secretaria Setor subordinado direta mente a chefia do executivo Órgão da administração indireta Não possui estrutura específica 5 565 1 230 166 102 377 581 4 4 334 Até 5 000 1 257 133 1 4 31 97 - 1 124 De 5 001 a 10 000 1 294 212 7 1 52 152 - 1 082 De 10 001 a 20 000 1 370 228 16 7 78 127 - 1 142 De 20 001 a 50 000 1 055 303 38 19 129 117 - 752 De 50 001 a 100 000 316 151 21 34 48 48 - 165 De 100 001 a 500 000 233 168 67 32 35 31 3 64 40 35 16 5 4 9 1 5 Mais de 500 000 Se a opção for pela criação ou ampliação da Guarda Municipal, é o Plano de Segurança e seu órgão executor que definem o estilo de atuação da mesma, o treinamento, o tamanho do efetivo, os recursos orçamentários, se deve atuar armada ou não, suas tarefas primárias e secundárias, onde e como ela deve realizar seu trabalho. Ainda no campo da organização institucional, para além da trinca Plano, Secretaria e Guarda, é possível e desejável criar em algum momento futuro um Fundo Municipal de Segurança, um Conselho Municipal de Segurança com integrantes de entidades públicas e da sociedade, uma Ouvidoria para fiscalizar eventuais abusos e Conselhos Comunitários de Segurança em cada bairro ou Distrito. Estas instituições complementares são baseadas nas “boas práticas” já aplicadas pelas polícias estaduais, e altamente recomendáveis para traçar as linhas de atuação na segurança, estimular a participação da sociedade e garantir o controle sobre a Guarda. Na tabela abaixo, extraída da MUNIC IBGE (2009), reportamos a quantidade absoluta de Municípios que afirmaram contar com alguma espécie de Conselho Municipal, Fundos e Plano Municipal de Segurança. 222 Tulio Kahn Grandes Regiões e classes de tamanho da população dos Municípios Brasil Municípios Com Conselho Municipal de Segurança Algumas características do conselho Total Total Caráter do conselho Paritário Consultivo Deliberativo Normativo Fiscalizador Realizou reunião nos últimos 12 meses Com Fundo Municipal de Segurança Com Plano Municipal de Segurança 5 565 579 448 400 368 190 299 418 246 329 Até 5 000 1 257 60 51 38 40 26 37 46 24 23 De 5 001 a 10 000 1 294 93 72 61 55 38 53 61 37 20 De 10 001 a 20 000 1 370 110 85 78 71 31 56 78 46 35 De 20 001 a 50 000 1 055 133 105 86 98 55 73 100 58 94 De 50 001 a 100 000 316 76 58 55 51 21 41 57 41 55 De 100 001 a 500 000 233 85 60 68 39 16 32 64 30 81 40 22 17 14 14 3 7 12 10 21 Mais de 500 000 Para atuar de forma criteriosa e efetiva na segurança pública, os Municípios precisam se instrumentalizar e despender recursos significativos para garantir o sucesso das políticas públicas de segurança, que não são apenas políticas de segurança pública. Trata-se de uma tarefa de longo prazo, para minimizar aquela que é uma das principais preocupações da população, segundo as pesquisas de opinião. Não se trata de criar uma dezena de leis e decretos e resolver a questão de forma rápida e econômica, como num passe de mágica. Não existem atalhos. Trata-se de uma tarefa árdua e de longo prazo, cujos frutos serão colhidos talvez em futuras gestões. Mas esta é precisamente a diferença entre um político oportunista, que tem os olhos voltados apenas para as próximas eleições, e um estadista de fato, que decide enfrentar o problema porque sabe que é necessário para os cidadãos e a cidade, não importa quanto tempo leve para colher os frutos da iniciativa. 223 Em busca da melhor cidade Bibliografia 1. Beato Filho, CdC. 1999. “Políticas públicas de segurança e a questão policial.” São Paulo em Perspectiva. 13(4):. 13-27. 2. BEATO, Cláudio. Crime e Políticas Sociais na América Latina. Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, Universidade Federal de Minas Gerais. Informativo nº 1, dezembro de 2001 3. Buvinic, M., Morrison, A., Shifter, M. 1999. Violence in Latin America and the Caribbean: a framework for action. Sustainable Development Department, Inter-American Development bank. (http://www.iadb.org/sds/doc/1073eng.pdf) 4. CEBALLOS, Miguel e GERARD, Martin. Bogotá: anatomia de una transformacion. Politicas de Seguridad ciudadana 1995-2003, Bogotá, 2004 5. CECCATO, Vânia; HAINING, Robert e KAHN, Tulio .The geography of homicide in São Paulo, Brazil., 2004. Paper ainda não publicado, 6. GAWRYSZEWSKI , V. P; KAHN, Túlio e MELLO JORGE, Maria Helena. Homicídios no Município de São Paulo: integrando informações para ampliar o conhecimento do problema. Revista Panamericana de Saúde (no prelo) 7. IBGE, 2009. Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic). Rio de Janeiro, 2009. 8. KAHN, Túlio. Cidades Blindadas – ensaios de criminologia. Sicurezza, São Paulo, 2002. 9. KAHN, Tulio. Nova e Velha Polícia. São Paulo, Ed. Sicurezza, 2002. 10. Kahn, Tulio. Pesquisas de Vitimização. Revista do Ilanud n° 10, São Paulo, 1998. 11. LIMA, R.S. 2005. Contando Crimes e Criminosos em São Paulo: uma sociologia das estatísticas produzidas e utilizadas entre 1871 e 2000. Tese de Doutorado, São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 12. LIMA, Renato Sergio. Conflito Social e Criminalidade Urbana em São Paulo – análise dos homicídios cometidos no Municípios de São Paulo. Ed. Sicurezza, 2002. 13. Lynch, James P. and Addington, Lynn A. Understanding Crime Statistics. Revisitng the Divergence of the NCVS and UCR. Cambridge University Press, 2007 14. PASTORE, José, ROCCA, Denise Franco e PEZZIN, Liliana. Crime e Violência Urbana. São Paulo, IPE-USP:FIPE, 1991. 15. Pezzin, Liliana. 1986. Criminalidade Urbana e Crise Econômica: o Caso de São Paulo. São Paulo: IPE/USP. 16. Sampson, Robert J. “Urban disorder, crime and neighborhood collective efficacy”. paper given at the international seminar on crime and violence prevention in urban settings. Bogota, Colombia, May, 2003. 17. SENASP, 2010. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Perfil Organizacional das Guardas Municipais. Ministério da Justiça, Brasília, 2010. 18. SHERMAN, Lawrence. “Preventing Crime: what works, what doens’t, what’s promissing”. National Institute of Justice, 1997. 19. United Nations Human Settlements Programme. Enhancing Urban Safety and Security. UN-Habitat, UK, 2007 20. Waller, Irvin, Welsh, Brandon C. e Sansfaçon, Daniel. Crime Prevention Digest 1997 Successes, Benefits and Directions from Seven Countries. Montreal, International Centre for the Prevention of Crime, 1997. 21. WHO – World Health Organization. World report on violence and health. http://www. who.in/violence_injury_prevention. Em 06/10/2002. 22. World Bank. 2006. Crime, Violence and Economic Development in Brazil. Washington: World Bank Report no. 36525. http://www.unodc.org/pdf/brazil/Crime_and_Violence_jan_2007.pdf. 23. Zimring, Franklin. 2007. The Great American Crime Decline. New York: Oxford. 224 225 Alda Marco Antônio Vice-prefeita de São Paulo e secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (2009-2012). É engenheira civil e já ocupou cargos nos governos estadual e federal. Coordena o Conselho Temático sobre Desenvolvimento e Inclusão Social do Espaço Democrático. 226 Alda Marco Antônio Área social: base de um governo r e s p o n s á v e l 227 Em busca da melhor cidade 228 N Alda Marco Antônio em faz tanto tempo assim: um repórter estrangeiro, entrevistando um governador cujo partido tinha o nome “social”, achou estranho que não houvesse qualquer referência do político a qualquer programa social. Perguntou e teve a resposta: “Social? Isso é com a senhora minha esposa”. No Brasil – e não apenas no Brasil, mas em boa parte do mundo –, a Assistência Social foi por muitos anos um feudo da família do governante. Quem cuidava dos pobres era a esposa do governante, às vezes a filha. Muitas vezes eram pessoas de bom coração, compassivas, preocupadas com os pobres, cheias de boa-vontade, mas vazias de conhecimentos específicos. Em todos os governos havia áreas de assistência social, mas no fundo a política não as julgava importantes: existiam porque tinham de existir, para dar aos carentes a ideia de que alguém se preocupava com eles, para tranquilizar a consciência dos bem-intencionados, sabedores de que havia alguém se preocupando com os pobres, e por isso sossegados. Por incrível que pareça, esta é a melhor faceta do que se fez em Assistência Social nos tempos idos. A área foi frequentemente transformada em moeda política de troca. Quem desse apoio ao governante de plantão ficaria com as mãos livres para lidar com a área social. Mãos livres, mas raramente vazias. Como não havia normas nem legislação específica, a coisa ainda podia piorar: cestas básicas em troca de votos, por exemplo. Ou prioridade, para os chefes de comunidades, no atendimento de algumas demandas. Ou, em casos menos discretos, promoção social, sim, mas só para o titular da pasta, seus parentes e seus amigos. Como diria Justo Veríssimo, o imortal personagem de Chico Anysio, ao citar seu próprio slogan, “esta terra que eu piso, este povo que eu amo”, e só dizendo a verdade ao enganar-se na citação: “este povo que eu piso, esta terra que eu amo”. Nem faz tanto tempo assim, repita-se: a realidade só começou a mudar com a Constituição de 1988, a Constituição-Cidadã do notável deputado e líder democrático Ulysses Guimarães. O governo Itamar Franco, em que tive a honra de dirigir a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência, implantou no País as exigências de profissionalismo e eficiência básicas para que as políticas de Assistência Social pudessem funcionar: houve a implantação da primeira Lei Orgânica da Assistência Social, LOAS, uma legislação essencial para o atendimento de boa qualidade aos carentes. 229 Em busca da melhor cidade Mais próximo... Aparentemente, o trabalho de Assistência Social é uma unanimidade: todos são favoráveis a melhorar as condições dos carentes. No entanto, este apoio muitas vezes é apenas aparente. Todos são favoráveis, por exemplo, à criação de abrigos, mas essa unanimidade cessa quando os abrigos estão perto de suas residências. 230 A Lei Orgânica de Assistência Social foi promulgada em 1993; as Prefeituras tiveram prazo de mais de sete anos para implantar a nova lei em seus Municípios. Em vez de uma política social ditada de cima (com frequência mal sintonizada com as necessidades da população, muitas vezes utilizada apenas com fins político-partidários), buscou-se a pesquisa com os necessitados, e desta maneira partir das carências para as soluções. É assim que se faz. A primeira medida que se tomou, em busca da participação dos diretamente interessados no problema e em suas soluções, foi criar o Conselho Municipal da Assistência Social. O Conselho é formado por membros da sociedade, escolhidos em eleição direta, e do governo, nomeados. A segunda, decorrente da primeira, foi a criação do Fundo Municipal de Assistência Social, com autoridade para receber recursos da Prefeitura Municipal e de outras origens, para ajudar – uma ajuda sempre bem-vinda, e essencial - a custear os serviços de atendimento da população mais carente. ...mais eficiente... Hoje em dia, os Municípios estão implantando o Sistema Único de Assistência Social - SUAS. Com isso, o Brasil poderá ter ações uniformes em todo o País, o Estado atendendo à população que, sem ele, não terá condições de sobreviver; ou, na menos ruim das hipóteses, não terá condições de viver com dignidade. Lei, entretanto, não é tudo. Tenho todos os motivos para louvar as leis que permitiram notável avanço na assistência social brasileira, até mesmo por ter Alda Marco Antônio participado ativamente não apenas de sua concepção mas também do trabalho de implantá-las; mas é preciso ter em conta que a adequada estrutura legal, se mantém abertos os caminhos para o sucesso, só funcionará se os governos e os conselhos de assistência social trabalharem duro, com criatividade e ousadia, no interesse do objetivo maior que é salvar vidas de brasileiros e oferecer-lhes condições para que se reintegrem com dignidade ao dia-a-dia da nação. ...e mais complexo Aparentemente, o trabalho de Assistência Social é uma unanimidade: todos são favoráveis a melhorar as condições dos carentes, a abrigá-los das intempéries, a criar condições para que retomem a vida no ponto em que foram levados a modificar seus hábitos e abandonar suas atividades normais. Eventualmente, isso pode significar até fornecer passagens para que carentes retornem às cidades de onde saíram e para onde gostariam de voltar, mais perto da família. No entanto, este apoio muitas vezes é apenas aparente. Todos são favoráveis, por exemplo, à criação de abrigos, mas essa unanimidade cessa quando os abrigos estão perto de suas residências. Atender às necessidades mais prementes dos pobres é ótimo, desde que longe de casa. Todos defendem os centros de alimentação dos carentes, mesmo porque a alternativa – obrigá-los a pecinchar restos de comida – cria problemas praticamente insolúveis de higiene, de atração de insetos e roedores que buscam os restos dos restos. Mas cada implantação de um centro de alimentação gera protestos em série, dos moradores da vizinhança: alimentar pobres vá lá, mas atraí-los para perto de suas casas já desperta oposição. Curiosamente, os mesmos porta-vozes que condenam a falta de lugares para que os carentes se alimentem condignamente, sem ter de pedir comida, sem deixar restos no meio da rua, são os que criticam os centros de alimentação, por aproximar os pobres de moradores de outras categorias sociais; de, em outras palavras, integrar os pobres à cidade. A assistência social exige, portanto, uma rede de alianças que lhe permita convencer moradores, superar dificuldades, buscar as soluções mais adequadas. A maior das alianças é com os religiosos – pessoas devotadas ao bem-estar comum, que dedicam sua vida ao desenvolvimento social de outras vidas e, por isso, merecem respeito especial das populações carentes. Sua palavra é ouvida; seu trabalho de intermediação dos setores mais pobres com outras camadas sociais é absolutamente notável e insubstituível. 231 Em busca da melhor cidade Aliar-se a religiosos também não é fácil: não sem razão, eles sabem que muitos os procuram apenas para tirar proveito de seu prestígio. Tive dos religiosos, entretanto, todo o apoio possível: eles confiaram em minha reputação, em minha atuação permanente na área social, nos projetos que criei e ajudei a implantar. Juntos, reunidos em torno de projetos sociais, pudemos avançar muito. E continuamos avançando, fraternalmente. São avanços, mas não a solução dos problemas sociais – este é um trabalho bem mais longo e abrangente. Nós, do PSD, acreditamos que a assistência social deve ter como objetivo, a longo prazo, o atendimento a pessoas que não consigam de maneira nenhuma, sozinhas, reerguer sua vida. Acreditamos que a solução para a maioria dos carentes seja auxiliá-los a se realizar, produzindo para si e para suas famílias, prescindindo, sempre a longo prazo, do apoio total do Estado. É um trabalho que envolve educação, saúde, qualificação profissional, emprego. Isto é o que abre a possibilidade de fazer com que a população carente tenha condições de inserir-se numa sociedade mais justa e menos dependente de programas públicos. O PSD persegue este objetivo: ajudar quem puder reerguer-se, até que consiga caminhar por suas próprias pernas (e braços produtivos); garantir assistência total a quem não tenha condições de retomar seus caminhos. Um detalhe interessante (e pouco conhecido): os moradores de rua, carentes entre os carentes, são gente trabalhadora. A Prefeitura paulistana, administrada pelo PSD, realizou recentemente um censo e os resultados acabaram mostrando que 67% dos sem-teto ganham algum dinheiro – quase um salário mínimo por mês. Infelizmente, muitos gastam o dinheiro que obtêm com dificuldade na compra de cigarros ou drogas; mas já mostraram sua capacidade para ganhar ao menos parte de seu sustento; já mostraram potencial para desenvolver-se. Os passos certos Até lá, o caminho é longo, mas já começou a ser percorrido. De 14 programas de atendimento criados sob minha supervisão, oito foram escolhidos pelo Unicef, órgão da ONU, como modelos para outros países. Não é apenas uma homenagem: o Unicef firmou convênio com São Paulo para aperfeiçoamento de técnicos internacionais, tornando o Centro de Informação, Divulgação e Treinamento de Recursos Humanos um centro de referência mundial. Quem trabalha com bons projetos certamente trabalha melhor, com mais eficiência e qualidade. 232 Alda Marco Antônio Um problema sério para quem se dedica à assistência social é a desconfiança dos assistidos. Não pense que uma pessoa, por não ter casa, por não poder tomar banho, por não ter qualquer segurança, por não saber se vai ou não alimentar-se no dia seguinte, está ansiosa por ser assistida. Pelos mais diversos motivos, muitas pessoas temem abrigos, não gostam de ir a centros de alimentação, consideram inaceitáveis determinadas normas de funcionamento de albergues (por exemplo, tomar banho), repudiam aquilo que consideram uma limitação à sua liberdade. A boa preparação dos assistentes sociais ajuda; a colaboração dos religiosos é inestimável; mas mesmo assim há resistência. A assistência social evoluiu e modernizou-se, aproximando-se cada vez mais das pessoas que dela necessitam. Os educadores percorrem as ruas a pé, conversando amigavelmente, familiarmente, com os carentes e com sua vizinhança, tentando identificar problemas e conquistando sua confiança para que aceitem as soluções e serviços disponíveis. O trabalho ganhou novo ímpeto com essa aproximação: fica mais fácil para os carentes aceitar as propostas de trocar as ruas por moradias, onde há dignidade, conforto e segurança. Crianças e adolescentes em situação de rua sempre resistiram a sair de seu meio-ambiente, com medo de restrições à liberdade. Isso está mudando: nos Centros para Crianças e Adolescentes e nos Centros de Juventude, no período complementar à escola pública, encontram brincadeiras, oficinas, têm acesso à informática, auxílio escolar, esportes, oficinas. Não é um espaço feio, fechado, escuro, abafado, com cara de prisão; são lugares abertos, claros, bem ventilados, onde há alegria e os carentes são bem recebidos, por educadores não apenas competentes Um detalhe interessante: os moradores de rua são gente trabalhadora. Um censo recente mostrou que 67% dos sem-teto ganham algum dinheiro – quase um salário mínimo por mês. 233 Em busca da melhor cidade As pessoas não precisam apenas de um lugar para comer e dormir. Precisam de um lugar para viver e conviver, onde o tratamento seja competente, mas também afetivo, compassivo, respeitoso. 234 e treinados, mas cujo treinamento é permanente, cujo desempenho é avaliado. Um ambiente lúdico, que desperta a vontade de ser feliz. Para os idosos, o tipo de tratamento é o mesmo, mas adequado à sua faixa de idade. Esqueça os velhos asilos, os cortiços que em outras épocas serviam de abrigo aos carentes. Hoje, os idosos independentes (capazes de locomover-se, tomar banho e alimentarse sozinhos), que viviam em albergues, estão em moradas recém-reformadas, em bons prédios na área central da cidade, perto dos lugares em que se concentrava a população de rua. Nessas moradas, dividem suítes (com banheiro próprio) no máximo com três outros idosos. Têm, além de abrigo num alojamento de boa qualidade, convívio, distração, alimentação saudável – cinco refeições diárias; acesso a oficinas de artesanato, de música, de jardinagem (atividades que podem eventualmente, mais tarde, prover a pelo menos parte de seu sustento); organizam-se para assistir a espetáculos, para participar de passeios turísticos e culturais. As pessoas não precisam apenas de um lugar para comer e dormir, de um depósito de gente tratada às vezes com competência, mas sempre com frieza. Precisam de um lugar para viver e conviver, onde o tratamento seja competente, mas também afetivo, compassivo, respeitoso. Eles têm muito a nos ensinar e, com eles, temos muito a aprender. Estes são os símbolos do programa de assistência social de nosso partido, o PSD: tudo aquilo que é necessário para que desenvolvam seu potencial de busca da felicidade. 235 Antônio Moreno Neto Engenheiro agrimensor e civil e pós-graduado em Administração de Empresas. Secretário de Esportes do Município de São Paulo (2012), atuou na diretoria do São Paulo (2005) e comandou o Esporte Clube Pinheiros (2007-2011). É membro do Conselho Nacional do Esporte - Ministério dos Esportes e Diretor Executivo da Lide Esporte. Coordena o Conselho Temático sobre Esportes do Espaço Democrático. 236 Antônio Moreno Neto A Copa, a Olimpíada e o Município: o estágio dos esportes no B r a s i l 237 Em busca da melhor cidade 238 O Antônio Moreno Neto esporte é uma atividade imprescindível na vida do ser humano em qualquer idade, é um instrumento precioso para a educação e a convivência. Tem a preciosa e mágica capacidade de nos educar para a vida, de forma intensa, divertida e emocional. Em todas as épocas e culturas o esporte tem sido o momento privilegiado para ajudar o ser humano a conquistar os seus mais antigos e persistentes sonhos: superar a violência e vencer a desigualdade. Alguns dizem que o esporte não corrige as distorções e não redistribui a renda. Mas corrige distorções emocionais e sociais, representadas pelo preconceito, e redistribui a auto estima. Todo esporte é uma lição viva e simples de como conviver democraticamente, na vitória ou na derrota. É uma lição de solidariedade, conquistas individuais e/ou coletivas, disciplinado, com metas a serem atingidas, evolução do auto conhecimento, dando uma motivação especial para a vida. O esporte tem tudo para reforçar laços intensos e divertidos entre os moradores de diferentes bairros, culturas, ruas, idades e condições físicas. Esporte e desenvolvimento econômico Ao mesmo tempo que é essencial para o desenvolvimento, o esporte contribui também para o desenvolvimento econômico. O potencial econômico do esporte é destacado pelo seu peso resultante de atividades tais como: a fabricação de produtos esportivos, eventos desportivos, serviços relacionados ao esporte e a mídia. O esporte, além de ser uma força econômica em si, é também um potencial catalisador para o desenvolvimento econômico, uma população fisicamente ativa é uma população mais saudável, melhorando a produtividade da força de trabalho e aumentando os resultados econômicos. O esporte e a atividade física propiciam também uma das formas mais custo-efetivas de medicina preventiva com potencial para reduzir drasticamente os custos com a saúde. O esporte acrescenta ainda mais ao desenvolvimento econômico fornecendo um método barato de melhorar a empregabilidade, especialmente entre os jovens. Ensinando as habilidades essenciais para um ambiente de trabalho, tais como: um trabalho em equipe, a liderança, a disciplina e o valor do esforço, oferecem aos jovens uma atividade construtiva que ajuda a reduzir os níveis de criminalidade juvenil e o comportamento antissocial e, em circunstancias envolvendo 239 Em busca da melhor cidade O modelo de formação esportiva no Brasil deveria ser como o dos EUA e outros países em que as escolas e universidades têm papel preponderante na iniciação e desenvolvimento das modalidades trabalho infantil, oferece um substituto significativo ao trabalho. O esporte também pode ser uma força para o desenvolvimento econômico local e a geração de emprego. Os programas de esportes oferecem oportunidades de emprego, assim como estimulam a demanda de produtos e serviços; o esporte é ainda uma fonte importante de investimentos públicos e privados, tais como os gastos em infraestrutura durante grandes eventos e consumo. Juntos, esses fatores demonstram que o esporte tem um potencial considerável para iniciar o desenvolvimento econômico. “A arte e o esporte têm o poder de mudar o mundo, o poder de inspirar, o poder de unir pessoas como poucos conseguiram. A arte e o esporte podem criar esperança onde antes só havia desespero. São instrumentos de paz muito mais poderosos que governos.” Nelson Mandela. esportivas e dos esportistas. A Copa, a Olimpíada e o Município A Copa do Mundo de futebol de 2014 é um grande marco da modalidade que o brasileiro mais admira e pratica em todos os cantos de nossa nação. Ela movimenta a sociedade como um todo gerando empregos com a realização das obras dos estádios, toda a infraestrutura necessária para o funcionamento dos mesmos, bem como as realizações e benfeitorias efetivadas em seu entorno, não só nas 12 cidades sedes, bem como naquelas que indiretamente participarão da Copa. Rede de hotéis, serviços de transportes, segurança, alimentação, voluntariedade, lazer e entretenimento, aprendizado de novos idiomas, são alguns dos efeitos em que as Prefeituras, juntamente com 240 Antônio Moreno Neto a sociedade, terão que se preparar e trabalhar conjuntamente. O papel dos Municípios é muito importante, pois atuarão de maneira decisiva em todos os elementos que envolvem a Copa. Um dos principais objetivos das Prefeituras juntamente com o Estado e a Federação é criar um espírito de participação, patriotismo e, especialmente, o sentimento de receber todos os outros países de forma digna, civilizada e organizada. Olimpíada A Olimpíada de 2016 poderá ser, juntamente com o futebol, um marco na implantação do esporte como instrumento de desenvolvimento físico, social, cultural e saúde. A importância de bons resultados em 2016, ou seja, alcançar o Top 10 (estar entre os 10 melhores colocados) é uma meta a ser perseguida. No entanto, mais importante que isto, é estabelecer a Olimpíada 2016 como um marco definitivo para a implantação do esporte como uma das prioridades de toda a sociedade brasileira. Estrutura do esporte olímpico no Brasil O Ministério dos Esportes, COB (Comitê Olímpico Brasileiro), CPB (Comitê Paraolímpico Brasileiro), CNE (Conselho Nacional do Esporte), Confederações, Clubes, Governos Estaduais e Municipais, Associações, Entidades, fazem parte do sistema esportivo do nosso País. O que necessitamos é de um P.N.E. (Plano Nacional de Esporte), pois não existe o estabelecimento de metas e recursos previamente definidos para as entidades do esporte citadas, havendo sobreposição de esforços e recursos financeiros, que resultam em ações sobrepostas ineficientes para se atingir as metas determinadas. Outro problema seríssimo: a média de participação de verbas para o esporte em âmbito federal, estadual e municipal é de 0,5% do orçamento global dos mesmos. O modelo de formação esportiva no Brasil deveria ser como o dos EUA e outros países em que as escolas e universidades têm papel preponderante na iniciação e desenvolvimento das modalidades esportivas e dos esportistas. Atualmente, no Brasil, essa função é essencialmente realizada pelos Clubes; e devemos implantar em todos os Municípios brasileiros condições de termos a iniciação esportiva. O projeto a médio e longo prazo é que o esporte seja implantado em todas as escolas municipais do País. Por incrível que pareça, há alguns anos as aulas de 241 Em busca da melhor cidade educação física nas escolas deixaram de ser obrigatórias; recentemente corrigiuse esta absurda determinação. DADOS NO BRASIL - ESPORTE NAS ESCOLAS • Somente 18% das escolas brasileiras públicas municipais de ensino fundamental têm quadras esportivas. No Sudeste - a região com melhor índice - esse número é de 40%. No Nordeste, a pior região nesse quesito, apenas 7% das escolas municipais de ensino fundamental possuem quadras esportivas. • Apenas 69% dessas escolas têm professores de educação física. Na região Sudeste, esse número chega a 88%. Na Região Nordeste, apenas 52%. • Dentre as escolas privadas em todo o Brasil, 58% têm quadras e 82% têm professores de educação física. Fonte: Censo escolar, 2009, MEC ATIVIDADE FÍSICA NAS ESCOLAS - Capitais • 4,8% dos estudantes do último ano do ensino fundamental são inativos fisicamente. 56,9% desses estudantes têm menos de seis horas de atividade esportiva acumulada nos últimos sete dias, dentro e fora da escola. • 20% dos estudantes não frequentaram aula de educação física na escola nos últimos sete dias. 30,8% frequentaram 1 dia, e 36,1% frequentaram dois dias. • Somente 49,2% dos estudantes tiveram dois ou mais dias de aulas de educação física na escola em uma semana. Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Saúde Escolar – PENSE 2009 ATIVIDADE FÍSICA DA POPULAÇÃO - Capitais • 16,4 % dos brasileiros com mais de 18 anos praticam atividades físicas/esportivas suficientes no lazer. • A média masculina dos que praticam é de 20,6% e a média feminina é de 12,8%. • Entre as cidades, Palmas tem o maior índice - 21,5%, e São Paulo tem o menor, com 12,1%. • Quanto maior a escolaridade, maior é a prática. Na faixa de 0 a 8 anos de estudo, 20% praticam atividades físicas. De 9 a 11 anos de estudo, 30,8%, e com 12 anos de estudo ou mais, 36,1%. 242 Antônio Moreno Neto Nota: prática recomendada de 30 minutos diários de atividade física de intensidade leve ou moderada em cinco ou mais dias da semana ou a prática de pelo menos 20 minutos diários de atividade física de intensidade vigorosa em três ou mais dias da semana INATIVIDADE FÍSICA DA POPULAÇÃO Capitais • 26,3% dos brasileiros com mais de 18 anos não praticam atividades físicas/esportivas suficientes no lazer. • A média masculina dos que não praticam é de 29,5%. Já a feminina, é de 23,5%. • Entre as cidades, Natal tem o pior índice com 32,3% da população entre os que não praticam atividades físicas/esportivas. Palmas tem o melhor índice, com apenas 18,7% de sedentários. • Nas faixas populacionais de maior escolaridade, é também maior a taxa de prática esportiva. A parcela da população com 0 a 8 anos de estudo possui uma média de prática esportiva de 20%. Com 9 a 11 anos de estudo, 30,8%, e com 12 anos de estudo ou mais, 36,1%. Nota: 1) não praticaram qualquer atividade física no lazer nos últimos três meses; 2) não realizavam esforços físicos intensos no trabalho (não andavam muito, não carregavam peso e não faziam outras atividades equivalentes em termos de esforço físico); 3) não se deslocavam para o trabalho a pé ou de bicicleta; e 4) não eram responsáveis pela limpeza pesada de suas casas. Somente 18% das escolas brasileiras públicas municipais de ensino fundamental têm quadras esportivas. No Sudeste, esse número é 40%. No Nordeste, de apenas 7%. de Fonte: Ministério da Saúde, VIGITEL, 2008 243 Em busca da melhor cidade Estas informações demonstram que temos que realizar um trabalho intenso para transformarmos radicalmente estes índices. Só para exemplificar, a Inglaterra promoveu um projeto nacional denominado School Sport Partnership para o legado dos Jogos Olímpicos de Londres: de 2003 a 2009 houve um aumento de 3% para 8% de alunos identificados como talentos esportivos. Entre 2007 à 2009 houve um aumento de 19% para 25% de alunos que se engajaram em atividades esportivas voluntarias em suas comunidades. Entre os alunos mais velhos do 10º ao 13º anos escolares, o aumento foi maior: de 9% em 2003 para 25% em 2009. Houve uma sensível melhora nas notas escolares desses alunos engajados no esporte, havendo uma relação positiva na atividade física e melhora da função cognitiva. Já existe um projeto, que está sendo realizado pelos Atletas pela Cidadania e apoiado por varias instituições, com o objetivo de, até o ano de 2022, pelo menos todas as 12 cidades sedes da Copa terem quadras poliesportivas cobertas em todas as suas escolas públicas. Esse trabalho deverá ser feito em parceria com as Prefeituras independentemente de qual gestão estiver no comando. Por que não elaborarmos um projeto para participar e ampliar estes objetivos? O modelo ideal seria a iniciação e formação de atletas nas escolas. Aqueles que se destacarem, teriam a oportunidade de treinar em Clubes e Associações até chegarem ao alto rendimento. r O modelo de operação: Transição g Centro de excelência Competitivo g Clubes Formação e Iniciação 244 g Escolas Antônio Moreno Neto LEIS DE INCENTIVO AO ESPORTE A Lei Federal de Incentivo ao Esporte é um importante instrumento que prevê a possibilidade de Pessoa Física ou Pessoa Jurídica destinarem, para projetos de natureza desportiva aprovados por Comissão Técnica instituída no âmbito do Ministério do Esporte, uma parcela do imposto de renda devido. LIMITE DE DEDUÇÃO PESSOA JURÍDICA com base no lucro real: • 1% - Limite específico - sem comulatividade. PESSOA FÍSICA em declaração modelo completo: • 6% - Limite global - observadas outras doações - CONANDA, Audiovisual, Rouanet - Art. 22 da Lei nº 9.532, de 10/12/1997 . Obs.: Podemos estudar uma Lei de Incentivo ao Esporte Municipal • Sugestões de melhorias no desempenho municipal a) Redefinição das dimensões do esporte para que todos os atores compreendam o que é o esporte para o desenvolvimento; b) Participação na elaboração e/ou revisão da legislação que possibilite a efetiva implementação de um sistema esportivo nacional; c) Coleta de dados anuais sobre atividade física da população, disponibilidade de utilização dos equipamentos esportivos nas cidades, esporte nas escolas e valorização do professor de educação física, investimento e informação para o esporte educacional nas escolas municipais; d) Criação de Lei de Incentivo ao Esporte Municipal criando atração de investimento empresarial ao esporte educacional e esporte participação; e) Criação do Fundo Nacional de Esporte, formado por recursos dos saldos de execução de projetos incentivados (que normalmente são devolvidos para o tesouro) e outras fontes de recursos a serem estabelecidas para financiar projetos de Esporte Para Todos, em regiões geográficas e populações menos favorecidas por patrocínios; f) Fomento para a formação de Fundos Municipais de Esporte com a mesma finalidade do Fundo Nacional; g) Apoio para criação de redes regionais e nacional de Esporte para Todos, integrando Municípios e Estados. h) Sugestão de meta para 2022: 100% das escolas no País com esporte educacional. Dobrar a frequência da atividade física no País. 245 Aleksandar Mandic Criou em 1990 a Mandic BBS, que se tornaria um dos primeiros gigantes da internet brasileira. Em janeiro de 2000, se tornou sócio-fundador do IG – Internet Group, onde ocupou o cargo de vice-presidente até setembro de 2001. Em seguida, reabriu a Mandic, desta vez com foco em e-mail corporativo. Coordena o Conselho Temático sobre Inteligência e Mídias Digitais do Espaço Democrático. 246 Aleksandar Mandic A vizinhança das mídias d i g i t a i s a Prefeitura ligada 247 Em busca da melhor cidade 248 O Aleksandar Mandic crescimento do acesso da população aos serviços de telecomunicações, com ênfase na internet e na telefonia móvel, determina um contexto de nova atribuição de papéis para o setor público no País. A internet tem confirmado expectativas de mudanças positivas na ordem social e política, ao possibilitar maior interatividade, participação e transparência, e esse quadro tem entre suas repercussões o aperfeiçoamento da democracia. Nos últimos anos, o ambiente virtual sofreu transformações que permitiram aos internautas criar conteúdos, compartilhar informações, opiniões, projetos e reivindicações e ganhar uma atuação que modificou seu papel na rede, inicialmente restrito ao de meros receptores de informações. A evolução da internet e a popularização das redes sociais tornaram a comunidade da web mais atuante e mais envolvida com as questões públicas, do nível municipal ao global. Em tempos recentes, pelos meios on-line, foram organizadas campanhas pela condenação de regimes ditatoriais, abriram-se fóruns virtuais que questionavam obras do governo federal e feitas convocações para manifestações em torno de reivindicações de toda espécie. Porém, por mais que a disseminação da cultura digital tenha reduzido a burocracia, aproximado governantes e governados e dinamizado programas públicos de muitas cidades brasileiras, nem todos os gestores de serviços municipais tiraram ainda pleno partido das suas potencialidades. Ainda é incipiente entre nós a aplicação mais ampla do conceito de Prefeitura Digital ou Cidade Digital, cujas origens remontam à Amsterdã de 1994. Naquela cidade da Holanda, ganhou status de utilidade pública o projeto civil pioneiro De Digitale Stad, portal com informações gerais e serviços, comunidades virtuais e representação política sobre a área urbana. Em pouco tempo, surgiram em outros centros urbanos iniciativas que acrescentavam interfaces entre o espaço eletrônico e o espaço físico pelo oferecimento de teleportos, telecentros, quiosques multimídia e áreas de acesso e serviços. Finalmente, vieram os projetos chamados por alguns autores de “non-grounded cybercities”, cidades não enraizadas em espaços urbanos reais. Essas Cidades Digitais são sites que criam comunidades virtuais (fóruns, chats, redes sociais) utilizando, para a organização do acesso e da navegação pelas informações, a metáfora de uma cidade. 249 Em busca da melhor cidade É necessário um trabalho permanente para levar a Prefeitura até o cidadão e de trazer os cidadãos à Prefeitura. Os instrumentos mais indicados para essa tarefa, na atualidade, são as mídias eletrônicas. 250 “As metrópoles são hoje cidades “desplugadas”, ambientes de conexão envolvendo o usuário em mobilidade, interligando máquinas, pessoas e objetos no espaço urbano”, avalia o professor André Lemos, da Facom/UFBa, coordenador do Grupo de Pesquisa em Cibercidade, consultor da Fapesp, CNPq e CAPES, em seu estudo O que é a Cidade Digital. “Os lugares tradicionais, como ruas, praças, avenidas estão, pouco a pouco, transformando-se com as novas práticas socioculturais de acesso e controle da informação. A máxima que reza que o ciberespaço desconecta-se do espaço físico não se sustenta atualmente. A cidade contemporânea caminha para se transformar em um lugar de conexão permanente, ubíquo, permitindo trocas de informação em mobilidade e criando ‘territórios informacionais’”. Tendo essa conjuntura em vista, os Municípios brasileiros defrontam-se com um cenário de oportunidades e desafios, que precisa ser enfrentado para que uma maior gama de formalidades administrativas possam ser cumpridas pela internet, em processos mais ágeis e amigáveis. As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) são hoje decisivas para ajudar o Executivo Municipal a oferecer os melhores serviços possíveis, sem custos suplementares e com menor impacto ambiental. Administrar uma cidade exige cada dia mais um contato permanente com a população governada, em todas as etapas, do planejamento à execução, do monitoramento à difusão dos resultados alcançados. Qualquer modelo urbano a perseguir não pode mais ser pensado ou implantado “de cima para baixo”, sem a utilização constante de instrumentos de aferição da vontade popular e de canais de acesso rápido e desburocratizado aos serviços públicos. Aleksandar Mandic O economista norte-americano Joseph E. Stiglitz, professor da Columbia University que recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2001, exatamente por seus trabalhos sobre assimetria informacional, ressalta a relevância de se compreender, como um bem público, a informação produzida pelos governos. “Embora todos reconheçamos a necessidade de ação coletiva e as consequências de ações coletivas para as liberdades individuais, temos um direito básico de saber como estão sendo usadas as forças que foram entregues ao coletivo”, afirma ele. “Isso me parece ser um direito básico do contrato implícito entre os governados e aqueles que foram selecionados para governá-los temporariamente. Quanto menos diretamente avaliável pelo público for um órgão do governo, mais importante se torna que suas ações sejam abertas e transparentes”. Fundador do Institute for Policy Dialogue (IPD), uma rede global de aperfeiçoamento das práticas democráticas e pelo aumento da participação da sociedade civil nos processos de decisão dos governos, Stiglitz prossegue em sua argumentação lembrando que a população deve “exercer seus deveres (por exemplo, pagar seus impostos, taxas e multas), mas também, e principalmente, seus direitos: contraargumentar a cobrança de impostos, taxas e multas; agendar a realização de serviços públicos específicos (de saúde, de educação, de assistência social, etc.); monitorar e cobrar o governo; ter acesso às decisões tomadas pelos poderes; ser comunicado sobre fatos relevantes para sua vida em curto, médio e longo prazo (desde as notas de seus filhos e a disponibilidade de vagas no sistema de educação pública, passando pela decisão sobre um pedido de aposentadoria e por alimentos classificados pelo governo como contendo altos índices de componentes transgênicos); etc. Uma boa política de governança eletrônica tem foco no cidadão e na cidadã, em seus direitos, anseios e necessidades, e não apenas nas necessidades dos governos como máquinas de arrecadação ou de propaganda de seus próprios feitos”. Respeitando esta ótica, é necessário um trabalho permanente de levar a Prefeitura até o cidadão e de trazer os cidadãos à Prefeitura. Os instrumentos mais indicados para essa tarefa, na atualidade, são as mídias eletrônicas, potenciais vias de mãodupla para o aperfeiçoamento da gestão. A expansão da internet, o acesso em banda larga, das redes sociais, os smartphones e a telefonia móvel interligaram os cidadãos e intensificaram a frequência de suas demandas no País. No entanto, por experiências frustrantes ou questões culturais, ainda é grande a resistência dos diversos segmentos da população brasileira ao uso dos serviços públicos na rede. 251 Em busca da melhor cidade A pesquisa Tecnologias de Informação e Comunicação Domicílios 2010, realizada pelo Comitê Gestor da Internet Brasil (CGI.br), tentou mapear os principais motivos que inibem a procura dessas funcionalidades, na web, entre as pessoas que já acessaram a internet nos doze meses que antecederam o levantamento. Como dado inicial, 46% dos entrevistados que não utilizam a internet na sua relação com governos eletrônicos declararam preferir o atendimento presencial nas repartições (“prefiro fazer contato pessoalmente”). Do mesmo total, 14% admitiram ter preocupação com a proteção e a segurança de seus dados; 12% alegaram que os serviços de que precisam são “difíceis de encontrar”; 11% disseram que esses serviços “não estão disponíveis”; 9% argumentaram que contatar a administração pública pela internet “é muito complicado”; 3% afirmaram que dificilmente recebem retorno ou respostas às suas solicitações; 2% tentaram utilizá-los e não conseguiram completar a transação; e 19% alegaram outros motivos. A constatação é preocupante, quando se percebe o crescente interesse dos brasileiros em conectar-se. Em 2010, o acesso à internet nos domicílios urbanos cresceu 15% em relação ao ano anterior, porém com margem inferior à verificada em 2009, ano em que a taxa de crescimento foi a maior da série histórica: 35% em relação a 2008. Em setembro de 2011, o Brasil possuía 81,3 milhões de internautas a partir de 12 anos, segundo o F/Nazca, e 78 milhões a partir de 16 anos, segundo o Ibope/Nielsen. De acordo com levantamento da Fecomércio-RJ/Ipsos, do mesmo período, o percentual de brasileiros conectados à internet quase dobrou entre 2007 e 2011, passando de 27% para 48%. O principal local de acesso declarado foi a lan house (31%), seguido da própria casa (27%) e da casa de parentes e amigos (25%). No ano de 2011, o Brasil atingiu a quinta posição entre os países com maior número de conexões à rede. De acordo com o levantamento Fecomercio-RJ/Ipsos, a frequência do uso da web também aumentou no País: 47% dos brasileiros conectados afirmaram acessar diariamente a internet, enquanto 33% disseram usar a web mais de uma vez por semana e 12% apenas uma vez por semana. Quanto ao período de conexão, mais da metade (55%) passa de 30 a 120 minutos na rede; 23% ficam entre duas e quatro horas conectados e 14% menos de meia hora. As classes de maior poder aquisitivo, A e B, lideram o acesso no País com 84%, bem acima da média do País, de 48%. O percentual dessas classes era de 72% em 2007. Já a classe C, que cresceu de 31% para 43% no período, fica mais próxima da 252 Aleksandar Mandic média nacional. No total, as conexões de banda larga fixa se expandiram proporcionalmente mais entre domicílios menos favorecidos em termos econômicos, das classes C e DE. As classes mais baixas, D e E, dobraram de 8% para 17% sua participação e apresentam o maior potencial de crescimento de acesso à web no País, tanto pelo avanço da tecnologia, que reduz os preços dos produtos, quanto pelo aumento no poder de compra dos brasileiros verificado no período. Outro fator que auxiliou a expansão no uso da internet no Brasil foi a isenção dos impostos PIS e Cofins (válida até 2014) sobre a venda de computadores e componentes. As redes sociais e sites de mensagens instantâneas, incluindo Facebook, MSN e Orkut, dominam o acesso online no País, com 61%. Logo atrás vêm outros tipos de acesso: para pesquisas (48%), e-mails e sites de notícias (empatados com 34%), diversão e serviços (também juntos, com 17% cada). Quando se analisa o total por região, o Sudeste desponta com a maior proporção de usuários do Twitter (16%), seguido das regiões Sul (15%), Centro-Oeste (14%), Norte (11%) e Nordeste (10%). Em relação à classe social, os usuários do Twitter estão concentrados na classe A, em que 30% dos internautas utilizam essa ferramenta, contra apenas 9% na classe DE. Em relação à faixa etária e grau de instrução, os usuários do Twitter são preponderantemente jovens e escolarizados. Causa estranheza, portanto, em um País onde a internet se expande com razoável rapidez, o distanciamento que a população ainda sente em relação aos órgãos oficiais na web. O fato de o cidadão ainda resistir ou encontrar dificuldades em manter contato pelos meios virtuais com a administração pública Causa estranheza, em um país onde a internet se expande com razoável rapidez, o distanciamento que a população ainda sente em relação aos órgãos oficiais na web. 253 Em busca da melhor cidade Experiências de inclusão digital também são fundamentais no apoio às atividades da rede municipal de ensino, em que professores e alunos recebem capacitação específica e são iniciados nas práticas virtuais e nas novas tecnologias. 254 não pode ser um impeditivo, justificativa ou fator de retardamento às ações necessárias a uma relação via rede mais produtiva entre governo e população, ou entre as próprias esferas da administração. A iniciativa para diminuir essa distância precisa partir do poder público, por meio de políticas especificas para essa finalidade e que permeiem as diretrizes de todos os seus órgãos. Interagir digitalmente com a representação de sua localidade é uma forma de utilização da internet que não depende – e não pode depender – apenas da vontade do usuário, em especial quando se trata daquele de escolaridade deficiente, baixa renda e menor acesso à informação. Não há como cidadão ter esse tipo de iniciativa espontaneamente, se não tiver como dominar os meios teóricos ou de acesso necessários. Cabe à administração municipal compreender a importância crucial de seu papel em prover cursos de formação, assim como disponibilizar postos de acesso gratuito à internet, no sentido de fomentar o progresso individual e coletivo dos cidadãos. Por meio da democratização do acesso, e com ajuda da tecnologia disponível, pode-se promover a integração entre educação, tecnologia e cidadania, visando à transformação social. A chamada inclusão digital – e de forma abrangente, não apenas em seus rudimentos – é fator mais e mais necessário à garantia do direito de se manifestar e lutar por melhores serviços. Os brasileiros de todos os extratos sociais são interessados em assimilar as novas tecnologias e, em outros momentos, já se mostraram rapidamente adaptáveis a inovações, como ocorreu na introdução do uso dos caixas eletrônicos de bancos, das operações com cartões magnéticos e mesmo dos recursos Aleksandar Mandic dos telefones celulares. Não há por que duvidar, portanto, de que, dados os meios necessários, a quase totalidade da população estará integrada à rede em um prazo não muito longo. Pesquisa do Programa de Estudos do Futuro da Fundação Instituto de Administração (Profuturo/FIA) aponta que, até 2020, 99% da classe A e 90% da classe B estarão conectadas à web via banda larga. E mais da metade da população que compõe a classe C terá acesso à internet. Desse montante de acessos, 60% serão via conexão banda larga. A cobertura total é prevista em um horizonte de 15 anos. No campo da profissionalização, tornou-se inescapável, também, a responsabilidade da administração pública no sentido de capacitar a população de baixa renda. Como uma porcentagem cada dia maior das carreiras exige a utilização do computador, impõe-se a necessidade da abertura de cursos gratuitos de introdução ao processamento de dados, edição de texto, planilhas, montagem de websites, tratamento de imagens e outros conhecimentos voltados para a informática. As inscrições devem ser realizadas no próprio site da Prefeitura, com vagas oferecidas em diversos postos da cidade, a fim de que os interessados possam frequentá-los em locais próximos de suas regiões de moradia, estudo ou trabalho. Experiências de inclusão digital também são fundamentais no apoio às atividades da rede municipal de ensino, em que professores e alunos recebem capacitação específica e são iniciados nas práticas virtuais e nas novas tecnologias. O sucesso dos projetos pode dar-se tanto pela preocupação em aproximar os estudantes das novidades quanto pela melhoria da estrutura da educação básica. Deve haver a preocupação adicional de capacitar o corpo docente para o manuseio de novas tecnologias, bem como para a criação e execução de projetos por meio de subsídios teóricos, metodológicos e práticos. Os professores precisam receber treinamento para compreender o potencial pedagógico desses novos recursos, para planejar estratégias de ensino e aprendizagem e para utilizar as TICs na prática pedagógica. Neste particular, também deve haver cautela. O principal cuidado que os Municípios devem ter é definir políticas com realismo e planejar a sustentação dos projetos no longo prazo. Não é realista, por exemplo – ao menos na situação atual –, imaginar o fornecimento de banda larga gratuita a toda a população do Município, se isso depender de acordos com empresas fornecedoras que poderiam ser alterados em futuras renovações de contrato. Criatividade na gestão, no entanto, é fundamental e não deve conhecer limites. É o que ocorre na Prefeitura de Curitiba, que implantou o Cartão Aprender, um cartão 255 Em busca da melhor cidade de identificação dirigido aos alunos da Rede Municipal de Ensino, com o qual é possível ao estudante agendar internet, pegar livros emprestados nas 48 bibliotecas públicas e ainda contar com descontos nas principais redes de farmácia da cidade. A inclusão digital dos sujeitos das comunidades forma cidadãos mais qualificados e preparados para o mercado de trabalho, o que colabora para o desenvolvimento regional. Entre seus demais benefícios pode-se citar sua capacidade de: - Aumentar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pela diminuição dos excluídos digitalmente; - Possibilitar avanços sociais às classes mais baixas por meio do ingresso diferenciado ao mercado de trabalho; - Aumentar a renda familiar por intermédio da educação digital, que permite a ocupação de melhores postos de trabalho; - Diminuir o abandono da escola final no ensino fundamental, quando o uso do computador é intensificado; - Possibilitar a autonomia dos envolvidos na criação de alternativas de trabalho no campo das tecnologias; - Aumentar o Índice de Avanço Tecnológico (IAT), pela disseminação do domínio de novas tecnologias; - Construção e exercício da cidadania com a diminuição da exclusão social por meio de parcerias em projetos; É um engano, porém, imaginar que apenas a população de baixa renda ou escolaridade depende da atuação eficaz da Prefeitura para evoluir social e economicamente. O empreendedorismo representa um dos ramos que obtêm melhor beneficio de uma interface municipal on-line dinâmica e o mais livre possível de obstáculos que impeçam o seu estabelecimento e sua afirmação no mercado. Segundo um relatório do Banco Mundial divulgado em agosto de 2011, o Brasil ocupa o 122º lugar, no mundo, no ranking de ambientes regulatórios favoráveis aos negócios e à abertura de empresas, posição próxima à de países da África Subsaariana. De acordo com o Banco, uma empresa brasileira gasta em média 152 dias para finalizar seu processo de abertura. Isso muitas vezes significa que, ao completar seu ciclo de implantação, o empreendimento pode estar endividado, em função da série de gastos realizados antes mesmo de ter produzido receita. Mas há avanços pontuais significativos que apontam caminhos e permitem otimismo para o futuro próximo, principalmente em função da informatização. A Prefeitura de Sorocaba (SP), cidade de 580 mil habitantes, durante o mandato 256 Aleksandar Mandic de Vitor Lippi (PSDB), iniciado em 2005, conseguiu reduzir tempo de abertura de uma empresa, que era em média de 120 dias, para 15. Abrir uma empresa por ali leva agora o mesmo tempo que na Suécia. E o processo hoje pode ser feito inteiramente pela internet, sem entraves. Para melhorar o serviço, o mapa com o zoneamento da cidade foi digitalizado, e a Prefeitura emite um alvará de funcionamento provisório anterior à vistoria do imóvel, o que torna tudo mais rápido. A medida só não vale para atividades de risco, como a estocagem de produtos químicos ou de bebidas alcoólicas. O processo na Prefeitura consome no máximo dois dias, quando antes costumava demorar de 30 a 90. A meta agora é encurtar o tempo que as empresas gastam para se registrar no Estado e na Receita Federal, e fazer com que o tempo total de abertura de uma empresa caia para 5 dias, em média – igual ao padrão americano. No aspecto fiscal, toda administração municipal tem a oportunidade de potencializar a arrecadação de recursos com o suporte dos meios eletrônicos. A perspectiva de deslocar-se até uma agência bancária para efetuar o pagamento de taxas públicas é desanimadora para o cidadão que pretende manter-se em dia com seus compromissos. A disponibilização de um sistema de emissão de boletos, de cálculo de multas e pagamento on-line torna-se a cada dia mais imperativa. Se o contribuinte consegue, por seus próprios meios, pesquisar sua situação fiscal, levantar valores de tributos e quitar suas pendências por meio de sua conta de internet banking, amplia-se a economia com estruturas físicas de unidades arrecadadoras e o esforço humano envolvido. O empreendedorismo representa um dos ramos que obtêm melhor beneficio de uma interface municipal on-line dinâmica e o mais livre possível de obstáculos que impeçam o seu estabelecimento e sua afirmação no mercado. 257 Em busca da melhor cidade Uma ouvidoria da Prefeitura precisa estar estruturada para fazer o acompanhamento do que se passa nas mídias sociais, a fim de que possa responder aos anseios da população de forma cada vez mais eficiente. 258 Um grande número de Prefeituras no Estado de São Paulo e em diversas outras regiões do País já oferecem esse tipo de funcionalidade. Resta, porém, a possibilidade de realizar as operações nos próprios sites das Prefeituras, o que exigiria uma estrutura de segurança mais complexa, mas permitiria agilidade ainda maior nas captações, que neste caso ocorreriam sem a intermediação de bancos ou casas lotéricas. Outro grande avanço possível nessa área é a emissão on-line de certidões negativas, solicitadas quando o contribuinte necessita comprovar a algum órgão público ou privado que não possui débitos no Município. São frequentemente solicitadas para serem apresentadas em licitações, convênios, vendas de imóveis, processos de inventário, escrituras e financiamentos diversos. Quanto maior for a desburocratização obtida nesse campo, menos obstáculos haverá ao fechamento desses variados negócios, em que o tempo é um fator determinante para sua realização. O mapeamento eletrônico dos procedimentos internos da administração municipal pode ajudar a reduzi-los ao mínimo necessário para a boa gestão. Algumas Prefeituras no País chegam a seguir mais de 5 mil procedimentos internos em suas diversas repartições. Mas já existem casos de administrações que conseguiram enxugar esses números para menos de 200. Os sites dos serviços municipais de transporte, como páginas autônomas ou apêndices do endereço da Prefeitura, têm relevância fundamental por sua função como guias de itinerários das linhas de ônibus, por representar um meio de divulgação de projetos e de convocação de audiências públicas para Aleksandar Mandic debater aspectos específicos do transporte da comunidade, e também por seus canais de atendimento ao usuário. Do lado do cidadão, as redes sociais têm sido o mais poderoso instrumento de pressão por melhorias nos transportes urbanos. Os usuários do Twitter, do Facebook, do Youtube, de blogs e microblogs começam a entender a eficácia dessas comunidades virtuais para informar atrasos em trens metropolitanos, veículos de transporte público em mau estado ou com frequente superlotação, denunciar a circulação de ônibus clandestinos, reportar veículos particulares ou de carga estacionados irregularmente e cobrar mais investimentos na malha e na modernização de terminais. Há inclusive reivindicações, nessa área, que extrapolam a reclamação cotidiana e assumem um caráter de campanha, de movimento, em torno de uma necessidade que precisa ser suprida ou restaurada, como uma linha de transporte coletivo que foi descontinuada ou uma parada de ônibus cuja alteração afetou negativamente a rotina de considerável número de moradores de uma localidade. Além da relação entre a administração municipal e os cidadãos, a rede social pode hospedar outro grupo de atores sociais nessa prestação de serviço – os próprios funcionários da companhia. Assim, o ambiente virtual mostra-se capaz de abrigar os diversos aspectos do sistema, do Município provedor ao operador e ao usuário final, em uma troca de experiências e visões que, se bem absorvidas, contribuirão para maior satisfação da comunidade com o serviço público. Com ferramentas como o Facebook e o Twitter, dificulta-se ainda a tentativa de servidores públicos de encobrir reivindicações ou de mandá-las simplesmente para o alto de uma pilha de papéis. Não é mais como cobrar por e-mail ou por telefone, quando ninguém sabia se o outro lado estava recebendo a demanda ou importando-se com ela. Ganha-se muito mais transparência na cobrança e na solução dos problemas. Mas a maioria esmagadora ainda não dispõe de moderadores que respondam em tempo real às postagens e, dessa forma, ainda é imensa a porcentagem de dúvidas ou demandas que caem no vazio. Uma ouvidoria da Prefeitura precisa estar estruturada para fazer o acompanhamento do que se passa nessas mídias sociais, a fim de que possa responder aos anseios da população de forma cada vez mais eficiente. No Município de São Paulo, a página no Twitter da SPTrans, a autarquia encarregada da gestão do transporte por ônibus na cidade, chegou à marca de 3 mil seguidores em março de 2012. Ela informa quantos veículos a cada dia estão 259 Em busca da melhor cidade atendendo estações do metrô, fornece dados referentes ao bilhete único e seus pontos de venda, alterações de linha e assim por diante. Da mesma forma, registra informações fornecidas pelos motoristas que circulam pela cidade, que talvez escapassem ao crivo dos agentes públicos. No dia 24 de fevereiro de 2012, por exemplo, um deles postou o seguinte comentário: “Acidente com microônibus deixa 8 feridos na Lapa, zona oeste da capital. SPTrans precisa fiscalizar melhor os lotações”. O aperfeiçoamento da oferta de serviços digitais nessa área nas cidades brasileiras vem avançando, mas é possível sugerir: - Cadastramento on-line em sistema de bilhete único e mesmo a alternativa de impressão em domicílio de bilhetes dotados de códigos de barras para serem utilizados nas estações e veículos coletivos. A medida seria importante para desburocratizar a operação, economizar tempo dos passageiros, evitar a produção de cartões plásticos, reduzir filas nos terminais e poupar tempo de embarque; - Publicação de editais de licitação, projetos agendados e em andamento na página da web; - Oferecer um mapeamento on-line da estrutura de mobilidade no Município, para facilitar e garantir, aos portadores de necessidades especiais de locomoção, o direito básico de ir e vir com segurança e autonomia; - Transporte gratuito, porta a porta, às pessoas com deficiência com vínculo a cadeira de rodas, que possa ser requisitado por meio do site da Prefeitura ou suas redes sociais, inclusive por dispositivos móveis como smartphones e tablets; - Monitoramento das principais vias da cidade com câmeras, mantendo as imagens disponíveis ao público em um endereço na internet; - Serviços de SMS que informem sobre acidentes, vias interditadas e pontos de lentidão na cidade; - Possibilidade de dar entrada na documentação para uso especial de vagas de estacionamento para portadores de deficiências e idosos por meio do preenchimento de formulários on-line; - Possibilidade de dar entrada na documentação para licenciamento da atividade de motoboys; - Disparo automático de mensagens para as centrais de trânsito, alertando sobre semáforos e outros equipamentos de sinalização com defeito; - Implantação do sistema de bilhetagem para ônibus, metrô e linhas de trem metropolitanos por celular, que além do pagamento possibilita a comunicação por proximidade (Near Field Communication - NFC), em leitores eletrônicos 260 Aleksandar Mandic instalados nas cabines ou catracas dos coletivos; - Criação de um canal de atendimento on-line em sistema de plantão 24 horas. No que se refere a obras, nenhuma Prefeitura pode mais prescindir de oferecer a alternativa de expedição (ou entrada) pela internet de alvarás para construção e reforma de imóveis residenciais ou comerciais, assim como para a instalação de quiosques em locais públicos. A rede também é o veículo ideal para a difusão do código de posturas municipais, o conjunto de regras criadas com o objetivo de permitir aos habitantes do Município a segurança, o direito de ir e vir, um sistema de trânsito eficiente, a limpeza e conservação dos locais públicos, além de um meio ambiente sem poluição de qualquer espécie, para que todas as partes interessadas mantenhamse informadas sobre a ocupação de espaços públicos e a circulação em seus limites. Seria interessante que os cidadãos ajudassem a alimentar um cadastro on-line de pontos do Município deteriorados ou com necessidade de conservação – lixeiras, calçadas, jardins, calçamentos, rua a rua, bairro a bairro, uma espécie de wiki urbanístico. Eles poderiam indicar em um mapa interativo o estado do local após a recuperação e a Prefeitura manteria um monitoramento, com a ajuda dos internautas, que assinalariam qualquer alteração. Contagem de dias em que área foi recuperada e há quanto tempo se mantém em boas condições. Se bem sucedida uma experiência desse tipo, poderse-ia tentar algo ainda mais amplo, explorando iniciativas na linha do chamado crowdsourcing, ou seja, projetos desenvolvidos coletivamente, em uma parceria informal entre uma empresa, ou orga- Seria interessante se os cidadãos ajudassem a alimentar um cadastro on-line de pontos do município deteriorados ou com necessidade de conservação – lixeiras, calçadas, jardins, calçamentos, rua a rua, bairro a bairro, uma espécie de wiki urbanístico. 261 Em busca da melhor cidade A necessária troca de experiências com outras Prefeituras pode ser obtida por meio da abertura de fóruns virtuais, à semelhança de redes sociais. nização, e voluntários espalhados pela internet. O crowdsourcing comporta a noção de que o universo dos internautas pode fornecer aos gestores informações tão ou até mais exatas do que peritos individuais. Essas “armas de colaboração em massa” comportam uma ideia que se ajustaria à perfeição a quase todas as áreas da administração municipal, além de estimular o sentido de responsabilidade e o exercício de cidadania do grupo social. A coordenação poderia ser entregue a uma área incubadora, a ser criada pela Prefeitura, que hospedaria os projetos e acompanharia a evolução de cada um deles. No que se refere à ressocialização de excluídos, deve-se promover e disponibilizar um levantamento do número e a identificação da população de rua, assim como o de usuários de abrigos municipais, a fim permitir sua possível localização por parentes ou amigos, uma vez que em muitos casos essas pessoas perderam contato com suas famílias e não têm mais referências de seus lugares de origem. CIRCULAÇÃO DAS INFORMAÇÕES A necessária troca de experiências com outras Prefeituras pode ser obtida por meio da abertura de fóruns virtuais, à semelhança de redes sociais, e divididos por temas, em que os prefeitos e seus secretários possam manter contato e conhecer iniciativas de sucesso em outras administrações. Ações como essas permitiriam testá-las em suas próprias localidades ou realizar trabalhos conjuntos com Municípios próximos, quando isso se fizer necessário, para operacionalizar projetos e for do interesse das partes. As secretarias e o corpo de gestores também precisam compreender a importância de uma ação 262 Aleksandar Mandic coordenada, o que o frequente trabalho em rede é capaz de permitir sem grandes dificuldades. Ao garantir que as diversas esferas da Prefeitura se comuniquem, saibam o que as outras estão fazendo, a administração municipal potencializa o trabalho de cada uma delas. A secretaria de saúde e a de meio ambiente, por exemplo, podem colaborar em ações que busquem como resultado a melhoria da qualidade de vida na cidade, e assim por diante. Outra iniciativa que tem o fator necessário para inspirar e manter em sintonia os gestores públicos municipais é a criação de um banco digital de informações, periodicamente atualizado de cidades bem geridas no Brasil e no mundo. A cidade de Barcelona, na Espanha, para citar uma delas, tem como prioridade o investimento em educação e cultura. Toronto, no Canadá, busca ser a metrópole mais sustentável do mundo, equilibrando gigantismo e práticas ecologicamente corretas. Londres investe no patrimônio histórico e em uma atmosfera favorável ao crescimento das empresas. Berlim prevê ações urbanísticas que eliminem as disparidades ainda visíveis entre os antigos setores ocidental e oriental. Erros e acertos verificados em cidades brasileiras também devem ser catalogados para servir como termo comparativo. A Prefeitura de Nova York conta com a figura do Public Advocate, que vai além do papel do ouvidor, pois não apenas recebe e centraliza demandas, mas também informa o que está realizando, e como está fazendo isso. O papel do Public Advocate é descrito por seus responsáveis como o de “vigilante”, para garantir que a cidade receba os serviços públicos que precisa e dar voz à população. A partir dessas práticas, o órgão pauta políticas públicas realmente capazes de atender às necessidades e anseios mais urgentes dos cidadãos, com ênfase nas questões que digam respeito às crianças, aos trabalhadores de baixa renda e à população mais carente. Em 2011 o Public Advocate inaugurou um website (http://pubadvocate.nyc.gov/ open-govt) que, além de atuar nas faixas mencionadas, mostra de forma transparente – e nos mínimos detalhes – como o dinheiro público está sendo usado. A página lista quanto foi requisitado para cada projeto ou despesa pela área em questão (saúde, cultura, meio ambiente, etc), o quanto foi liberado, qual secretário ou funcionário pediu o recurso, o quanto foi aplicado e quando o item foi implementado. Tudo isso é mostrado em uma simples tabela, de fácil compreensão, rápido acesso e atualização permanente, para que o contribuinte possa se sentir mais seguro e fiscalize a utilização dos impostos que paga. 263 Em busca da melhor cidade Embora não haja um organismo com função semelhante na gestão das cidades brasileiras, é possível reforçar a transparência sobre todas as decisões e despesas relacionadas à manutenção municipal. É obrigatório, por parte do poder público, garantir ao cidadão seu direito à informação e a transparência de seus processos de gestão. Todos os órgãos integrantes da administração pública devem disponibilizar, em seu endereço eletrônico na internet, a emissão de leis e decretos municipais, informações ao público relativas às despesas realizadas, sejam elas obras, compras ou gastos de outra natureza, a saber: valor orçado, valor contratado e valor executado; cronograma de execução; modalidade e tipo de contratação. Também deverá ser tornado público, pela via on-line, o orçamento vigente e o dos três últimos exercícios de cada secretaria, em consonância com as normas usuais da ciência da contabilidade. As experiências de pregão eletrônico para definir a aquisição de bens e serviços também são práticas que podem representar uma economia significativa para os cofres municipais. No caso de gastos com publicidade, devem ser obrigatoriamente especificados para o público o valor total e unitário das peças; forma, condição e data de pagamento; quantitativo de material e demais características necessárias à perfeita descrição do produto; e ainda, contrato social e últimas alterações da empresa contratada. E, não menos importante, contribui para lisura maior na atuação do funcionalismo municipal um canal para envio de denúncias de mau atendimento, de pedidos de propina para acelerar procedimentos, de achaques por fiscais da Prefeitura, com o devido sigilo assegurado, e posterior investigação para constatar a veracidade dos fatos. A simples implantação de canais on-line da municipalidade com o cidadão não garante, por si só, a eficácia desses serviços, em que as demandas populares serão encaminhadas devidamente. Como apontou a pesquisa do Comitê Gestor da Internet Brasil no início deste capítulo, muitos deixam de procurar os meios de governança eletrônica porque temem “não receber retorno ou respostas às suas solicitações”. É preciso, portanto, um trabalho permanente de monitoramento e muita vontade política para que a estrutura criada não seja um investimento no vazio. É fundamental que as respostas sejam rápidas, claras, consistentes e satisfatórias. Os casos que não puderem ser resolvidos no canal procurado devem ser encaminhados automaticamente à área mais indicada, ou deve-se informar ao cidadão os endereços, telefones e sites de consulta mais adequados. A medição da atividade on-line e a avaliação dos resultados da interação entre 264 Aleksandar Mandic a administração pública devem ser auditadas por meio de ferramentas específicas, que poderão indicar quais são os assuntos mais discutidos, quais indicam maior ou menor satisfação com a gestão pública, de que regiões partem as maiores reclamações, de onde veem os elogios mais frequentes, que iniciativas foram um sucesso, quais foram inócuas, e assim por diante. Ações como essas, para centralizar dados, depurá-los e utilizá-los como motor de decisões, revertem ao contribuinte sob a forma de aperfeiçoamento constante dos serviços e agilidade para quem depende da administração pública. O conceito de Prefeitura Digital já é uma realidade em diversas cidades brasileiras. Porém, mais que um termo tecnológico, significa uma gestão pública moderna, capaz de oferecer novos serviços e facilidades aos seus habitantes. E, o mais importante, uma nova perspectiva de cidadania. Os benefícios abrangem todas as áreas, da administração pública à educação, passando pela saúde e a segurança, e estendendo-se à economia do Município. Dentro desse processo, impõe-se que todas as ações do Executivo, do ponto de vista contábil, fiscal, orçamentário e até estratégico – pois se trata da gestão da riqueza coletiva – estejam à disposição do cidadão-contribuinte, sem máscaras. Ao longo da próxima década, as cidades vão continuar a crescer e a se expandir. Os desafios serão maiores e os instrumentos para lidar com eles terão de ser explorados ao limite. No artigo O Futuro das Cidades, Informação e Inclusão, publicado em 21 de janeiro de 2011 no Guia das Cidades Digitais, o consultor Mauricio Williamson, especialista na adoção de redes municipais utilizando a tecnologia wireless (sem fio) e topologia Mesh ou WiMAX, resume alguns A avaliação dos resultados da interação entre a administração pública pode indicar quais são os assuntos mais discutidos, quais indicam maior ou menor satisfação com a gestão pública e regiões com as maiores reclamações, entre outros dados. 265 Em busca da melhor cidade O conceito de Prefeitura Digital já é uma realidade em diversas cidades brasileiras. Mais que um termo tecnológico, significa uma gestão pública moderna. 266 dos desafios que os próximos tempos apresentam: “O futuro não será apenas um fluxo de avançadas tecnologias de norte a sul, mas uma rigorosa e complexa infraestrutura de comunicação e boas ideias. Estas experiências desenvolveram novos moldes para criação, projeto e planejamento, escala de mercado e governo para cada cidadão individualmente, redes de instituições e cidadãos, e urbanização de cidades inteiras” (...) “Contudo, a rápida mudança e a falta de previdência em relação à pobreza conduziram a um enxame de problemas urbanos, condições inadequadas de instrução e cuidados médicos, desigualdades raciais e étnicas. A próxima década se apresenta como uma grande oportunidade de se aproveitar a informação para melhorar a qualidade dos serviços públicos, diminuir a pobreza e a desigualdade” (...) E pergunta ele: “• Quais as oportunidades econômicas que a informação urbana fornecerá aos grupos excluídos? • Que novas exclusões poderão se apresentar com os novos tipos de dados sobre a cidade e seus cidadãos? • Como as comunidades economicamente estáveis poderão utilizar a informação para melhorar a qualidade do fornecimento dos serviços, a transparência e o engajamento do cidadão?“ De fato, essas são as grandes incertezas e preocupações que os próximos tempos nos reservam. Encontrar respostas para elas é o grande desafio e a grande oportunidade para os administradores públicos, sobretudo da esfera municipal, que, com liderança e espírito inovador, terão de recorrer à tecnologia da informação para transformar em realidade as aspirações individuais e coletivas das comunidades que os elegeram. 267 Indio da Costa Formado e pós-graduado em Direito, foi vereador e comandou a Secretaria Municipal de Administração do Rio de Janeiro. Em 2006 elegeu-se deputado federal. Foi um dos relatores da Lei da Ficha Limpa do Congresso Nacional. No ano de 2010, concorreu nas eleições presidenciais como candidato a vice-presidente. 268 Indio da Costa Ficha Limpa nas eleições municipais: combate à corrupção e reforma p o l í t i c a 269 Em busca da melhor cidade 270 N Indio da Costa ossas emoções são geoprocessadas nas cidades. A vida acontece nas ruas, nas esquinas, nos bairros, nas cidades. O Brasil, de dimensão continental, precisa desenvolver e consolidar políticas públicas voltadas para os Estados e Municípios para atender aos carioca-brasileiros, paulistano-brasileiros, curitibano-brasileiros, candango-brasileiros, e assim por diante. Afinal, nossas vidas são vinculadas às nossas experiências, amigos, familiares, histórias da infância e da adolescência. E tudo isso está vinculado aos territórios onde nascemos, crescemos e habitamos. Advém daí a importância das eleições municipais. Em 2012, iniciando sua caminhada pela construção de um novo Brasil, o PSD disputou sua primeira eleição e se consolidou com a conquista de grande número de mandatos de prefeitos e vereadores em todo o País. Como assinala o nosso deputado federal Arolde de Oliveira, a base de qualquer partido é o Município. Depois de participar, como coordenador ou candidato, de diversas campanhas municipais, estaduais e nacionais, posso afirmar que as eleições municipais são as mais trabalhosas. O esforço físico, sobretudo para vereadores, é muito grande. São muitos candidatos em busca dos mesmos votos e, apesar de Plano de Governo não eleger prefeito ou vereador, são as boas idéias que agregam votos, se de acordo com o interesse dos eleitores e defendidas de forma clara. Portanto, o Plano de Governo pode ser um bom instrumento de agregação. Em geral, vence uma eleição o candidato que defende os mesmos valores em que seu eleitorado acredita + propõe Idéias-Força que solucionem questões de interesse do eleitorado + Capacidade de Realização comprovada pelo passado do candidato e pela razoabilidade de suas propostas + Proximidade com o Eleitor. É prioritário definir os temas de cada candidatura alinhando seus projetos com os interesses dos eleitores. Nada mais gratificante do que conversar com as pessoas e conquistar seu comprometimento e sua participação. Nas caminhadas, reuniões e encontros presenciais ou virtuais com os eleitores, encontramos adeptos e é essencial transformá-los em multiplicadores. E assim construir um projeto comum para sua cidade. Uma frase que muito me ajudou na primeira eleição foi: “Para encher um copo de ‘sim’, talvez seja necessário encher uma piscina de ‘não”. Logo, qualidade não é suficiente. É preciso quantidade de esforço, contato direto com o eleitor. Além das campanhas, a política exige muita dedicação e abdicação. Só sugiro essa atividade 271 Em busca da melhor cidade O processo de aprovação da Ficha Limpa demonstrou que, quando a sociedade se mobiliza, é capaz de fazer as mudanças que o Brasil precisa e o Congresso, por si só, não teria a motivação ou empenho em fazê-las. 272 àqueles que sonham. Quem deseja empreender na vida pública deve estar pronto para enfrentar espinhosos desafios para realizar aquilo em que verdadeiramente acredita. Minha experiência política soma 20 anos. No Legislativo foram 14 anos de mandato – 10 como vereador no Rio de Janeiro, a segunda maior cidade do Brasil, e 4 como deputado federal. No Executivo municipal, participei de conselhos de desenvolvimento, fui administrador de bairros nos anos 90 e secretário de administração na década de 2000. A candidatura a vice-presidente foi uma oportunidade única para, ao lado de pessoas sérias e comprometidas com o Brasil, conhecer melhor o nosso País, suas necessidades e mazelas, além de vivenciar com profundidade o processo político nacional. Filho e neto de profissionais liberais, não venho de família política tradicional. Meu tio-avô, Luiz Simões Lopes, getulista confesso, fundou e presidiu a Fundação Getúlio Vargas por 50 anos. Entre muitas outras iniciativas, criou e gerenciou o DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público –, que instituiu o concurso público e organizou as carreiras do funcionalismo no Brasil. Decidi-me pela vida pública pela necessidade de defender uma transformação das relações e serviços entre o setor público e os cidadãos, e disseminar a visão de que é possível fazer mais com menos recursos e em menor tempo. Em uma palavra, é possível modernizar o Estado. Vou além: simplificá-lo é essencial. Desburocratizar, reduzir custos e prazos, multiplicar seus resultados; é possível construir um Estado que apoie as iniciativas empreendedoras e universalize seus serviços básicos. Muito além da insuficiente e antiquada definição Indio da Costa ideológica, o Estado deve ser presente e eficiente. Acredito que o brasileiro precisa de serviço público de qualidade, da oferta de políticas públicas voltadas para seus reais interesses e necessidades, em especial para os desvalidos que dependem quase que exclusivamente dos serviços do Estado. E é possível fazer muito mais do que é feito, a custos bem menores, com muito menos impostos. O desperdício de recursos na burocracia é inaceitável, mas o que se tem feito no Brasil é o contrário: cobra-se mais e mais impostos e contribuições do cidadão. Nesta linha de princípios e valores, defendo a largada na corrida eleitoral com regras que garantam igualdade entre os candidatos. Há centenas de formas indecorosas de se multiplicar o voto e esse verdadeiro vale-tudo precisa acabar. Em particular, é necessário barrar a entrada de candidatos sem escrúpulos que lançam mão de recursos escusos para se eleger, sobretudo aqueles que, embora já tenham sido condenados pela Justiça e – atraídos pela imunidade parlamentar e seu foro especial – usam o mandato para se proteger dos crimes cometidos. O ponto alto mais conhecido na minha carreira legislativa foi a oportunidade de ser o relator de um projeto de lei revolucionário – Ficha Limpa – graças ao apoio do então líder de minha bancada na Câmara dos Deputados, o experiente parlamentar Paulo Bornhausen. Este projeto, redigido pelo Movimento de Combate de Corrupção Eleitoral (MCCE ) e apoiado por milhões de brasileiros, era similar ao projeto de lei que eu havia apresentado dois anos antes, e que foi incorporado ao projeto de iniciativa popular. O processo de aprovação da Ficha Limpa demonstrou que, quando a sociedade se mobiliza, é capaz de fazer as mudanças que o Brasil precisa e o Congresso, por si só, não teria a motivação ou empenho em fazê-las. A aprovação dessa lei estabeleceu novos critérios para candidatos a cargos eletivos, excluindo do processo eleitoral quem se candidata apenas para evitar a punição por crimes já cometidos por meio da imunidade parlamentar. Também proíbe a reeleição daqueles que foram condenados por colegiado, nos casos definidos pela nova lei. Vale a pena traçar um paralelo com o serviço público. Seu alicerce é o servidor concursado. É ele que detém o verdadeiro conhecimento para tocar a máquina estatal, garantindo o controle dos recursos públicos tanto na arrecadação e gastos quanto na qualidade dos projetos. Este corpo técnico deve seguir as orientações do gestor, isto é: do chefe do Executivo (federal, estadual ou municipal) eleito pela população para realizar as promessas de campanha. Ora, se nenhum servidor concursado pode ser empossado caso tenha tido uma única condenação, por que razão quem os comanda não deveria estar sujeito a esta mesma restrição? 273 Em busca da melhor cidade Com a nova regra, o eleitor pode escolher seus candidatos com mais tranquilidade. A regra afeta também os partidos políticos. Aqueles focados apenas em resultados eleitorais, independentemente da ética e da capacidade legislativa, gerencial e transformadora de seus candidatos, terão que se submeter aos mesmos critérios dos partidos que se preocupam em escolher quadros de qualidade para os cargos que pleiteiam. Assim, a Ficha Limpa estabelece também um novo modelo para estruturação partidária. O quadro a seguir resume as condições e circunstâncias em que a Lei da Ficha Limpa aplica-se aos candidatos a cargos eletivos. O que determina a Lei da Ficha Limpa Crimes que resultam em inelegibilidade Crimes contra o patrimônio privado, o sistema financeiro e o mercado de capitais; Crimes previstos na lei que regula a falência; Crimes contra o meio ambiente e a saúde pública; Crimes eleitorais, para os quais a lei determine pena privativa de liberdade; Crime de abuso de autoridade; Crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; Crimes de racismo, tortura, terrorismo e hediondos; Crime de exploração de mão de obra escrava; Crimes contra a vida e a dignidade sexual; Crime de associação com organizações criminosas milícias, quadrilha ou bando. Infrações eleitorais que resultam em inelegibilidade Corrupção eleitoral; Compra de votos; Doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha; Condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas. Também ficam inelegíveis: Aqueles impedidos de exercerem profissão por órgão profissional competente salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário); Os que tenham sido demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial (salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário); Os condenados em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade. 274 Indio da Costa Todas as leis que mudam paradigmas são suscetíveis de críticas, algumas bem intencionadas e que contribuem para aprimorá-las e outras, motivadas por interesses escusos. Difícil é saber diferenciá-las. Influentes “fichas suja” sempre buscarão argumentos convincentes para derrubar regras que sobreponham a transparência à corrupção nas campanhas eleitorais. Previsivelmente, a Ficha Limpa não deixou de ser fartamente questionada. Até que o tema fosse pacificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a grande questão em debate dizia respeito ao trânsito em julgado. Isto é: uma pessoa só ficaria inelegível depois de percorrer todas as instâncias possíveis. Como, no Brasil, percorrer todas as instâncias pode levar um par de décadas ou até mais, o eleitor continuaria à mercê da ignorância sobre a vida pregressa dos candidatos ao definir seu voto. A solução da Lei da Ficha Limpa foi exigir apenas uma condenação por órgão colegiado do Judiciário ou de representação profissional para tornar um candidato inelegível. Evitam-se assim perseguições políticas, pois uma condenação em segunda instância, longe de ser monocrática, resulta da deliberação coletiva de juízes, desembargadores ou ministros de tribunais superiores. No entanto, os defensores da participação na política sem qualquer critério prévio sempre questionarão a nova lei, sugerindo formas de flexibilizá-la. Precisamos estar alerta. Se há excessos na lei, o tempo se encarregará de corrigi-los. Se isso aconteceu com a lei que transformou a administração pública - a Lei de Responsabilidade Fiscal – por que seria diferente para a Lei que exclui candidatos que ostentam alentadas folhas corridas? A nova Lei da Ficha Limpa já valeu para as eleições de 2012 e seus principais articuladores estão hoje no PSD. Se no futuro você pretender ser candidato pelo nosso partido, desfralde em sua campanha essa bandeira que é sua, que é uma conquista dos eleitores brasileiros. A Ficha Limpa garante uma nova conduta para o processo eleitoral, mas é preciso dar ao eleitor instrumentos concretos de fiscalização e cobrança. O primeiro passo para votarmos adequadamente é saber quem estamos elegendo. O passo seguinte consiste em acompanhar a atuação daqueles que elegemos para nos representar, e cobrar deles um comportamento ético e o cumprimento de seus compromissos de campanha. Este próximo passo exige uma reforma política. Falase muito sobre essa reforma e, muitas vezes, os eleitores sentem-se desnorteados com a multiplicidade de propostas. Acredito que a reforma política que interessa ao eleitor é a reforma eleitoral com adoção do voto distrital – proposta que integra o programa do PSD. 275 Em busca da melhor cidade O voto distrital é a reforma política que interessa aos eleitores, embora não necessariamente a todos os políticos. Muitos são contrários a mudanças, pois foram eleitos pelo sistema atual, que favorece aqueles que já estão no poder. 276 Hoje, elegemos os prefeitos, os governadores, os senadores e o Presidente da República pelo voto majoritário. Quem conquista a maioria dos votos, em primeiro ou segundo turno, é eleito. No entanto, nossos vereadores, deputados estaduais e deputados federais são eleitos por um complexo e viciado sistema de voto proporcional. Neste sistema, votase num candidato e se elege outro, proliferando os caronas que têm baixíssima ou nenhuma representatividade, mas se elegem às custas de candidatos mais bem votados. Depois, no plenário, o voto de um parlamentar-carona tem o mesmo peso de um parlamentar escolhido e eleito com o voto popular. Como os eleitores podem exercer seu poder de fiscalização e cobrança se nem sequer se lembram em quem votaram na última eleição para representá-los na Câmara Municipal, na Assembléia Legislativa ou no Congresso Nacional? No sistema atual, milhares de candidatos buscam votos em todo o território de um Município ou de um Estado, e o máximo de contato que têm com milhões de eleitores são apariçõesrelâmpago no horário eleitoral no rádio e televisão. Com o voto distrital, divide-se um Estado ou Município em pequenos distritos com número similar de habitantes. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, que tem 46 representantes na Câmara dos Deputados, seria dividido em 46 distritos eleitorais com aproximadamente 350 mil habitantes cada um. Assim, no sistema distrital, o eleitor conhece de perto quem elege, o que aumenta a fiscalização sobre os políticos e aproxima representantes e representados. Cada partido indica apenas um candidato por distrito; e cada distrito elege um único representante pela maioria dos votos. Se nenhum candidato tiver Indio da Costa mais da metade dos votos, o eleitor vota, em segundo turno, no parlamentar que preferir. Eleitos pela maioria dos votos em seus respectivos distritos, os representantes terão maior autonomia e os projetos de lei, hoje preponderantemente elaborados pelo Executivo, passarão a ser cada vez mais de iniciativa dos legisladores, refletindo mais de perto os interesses da população. Hoje, o Congresso só vota o que é de interesse do Executivo, que usa e abusa de medidas provisórias, as quais são muitas vezes inconstitucionais e quase sempre distantes do que a população demanda. O mesmo ocorre nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais, onde se faz sentir a mão pesada dos governadores e prefeitos sobre os parlamentares. Para equalizar o poder do Poder Executivo e do Poder Legislativo, todas as eleições em todos os níveis de governo devem ser majoritárias. Por fim, mas não menos importante, no sistema distrital diminuem-se os gastos de campanha. Em vez de distribuir cabos eleitorais por todo o Estado, os candidatos terão de bater de porta em porta, conquistando seus eleitores no contato pessoal. No conjunto, a Lei Ficha Limpa, menores gastos de campanha e maior poder de fiscalização e cobrança pelos eleitores, compõem o arsenal perfeito para o combate efetivo à corrupção. O voto distrital é a reforma política que interessa aos eleitores, embora não necessariamente a todos os políticos. Muitos políticos são contrários a mudanças, pois foram eleitos pelo sistema atual que favorece aqueles que já estão no poder. Resistências existirão sempre, mas não podemos retroceder face ao que aqueles políticos tanto temem na verdadeira democracia: o poder do eleitor. O voto distrital inverte a lógica da política no Brasil e por isso é um bom tema para ser defendido nas campanhas municipais. O que se pregará é aumentar o poder do eleitor para fiscalizar os políticos; democratizar as disputas eleitorais; reduzir o custo das campanhas; estimular a redução do número de partidos e aproximá-los dos eleitores; fortalecer a relação entre representantes e representados. Nós, como homens públicos, somos eleitos para servir à sociedade e não para dela nos servirmos. Mas a reforma política só sairá do papel sob enorme pressão da sociedade. É no período eleitoral que temos a oportunidade de defender idéias inovadoras, propondo um novo modelo para a política brasileira. As mídias digitais abrem um novo rumo para o Brasil, viabilizando o livre fluxo de informações e idéias e a participação e o engajamento popular na vida política. O celular, a internet e as redes sociais dão aos eleitores o poder de fiscalização, de denúncia, de cobrança e, se necessário, de punição aos maus políticos. 277 Em busca da melhor cidade Podemos mudar os rumos do Brasil, desenhar um novo projeto para a nação, mais justo e participativo, no qual a população sinta-se representada de forma democrática. Proponho que, ao lado da defesa e aplicação da Ficha Limpa, coloquemos em destaque na campanha eleitoral que se aproxima a adoção do voto distrital. Assim, colocaremos as idéias do PSD de forma clara e democrática para o eleitorado, buscando seu apoio para este movimento que já alterou o cenário político brasileiro. 278 279 280 Presidente: Guilherme Afif Vice-Presidente: Vilmar Rocha Diretoria Diretor: Rubens Figueiredo Comunicação: Sérgio Rondino Núcleo de Estudos: Roberto Macedo Núcleo de Formação: Rogério Schmitt Núcleo de Relações Parlamentares: Antonio Carlos Rizek Malufe Núcleo de Relações Estratégicas: Marcelo Rehder Núcleo de Relações Internacionais: Alfredo Cotait 281 Este livro foi composto na tipologia Neo Sans Pro e impresso em papel Pólen Bold 90g. 282 “ Tenho reiterado que, hoje, o grande desafio do Brasil é aumentar sua produtividade. Para isso, o País precisa urgentemente aumentar sua eficiência na área privada e, principalmente, nos serviços públicos, onde as administrações municipais têm papel importante pela proximidade com o cidadão. Vivemos uma realidade em que as cidades dispõem de poucos recursos para atender às demandas de seus habitantes e o melhor antídoto para isso é o uso mais eficaz do pouco que se dispõe. Esta publicação do Espaço Democrático certamente será de grande ajuda nesse sentido. “ Henrique Meirelles Coordenador do Conselho Temático de Política Econômica do Espaço Democrático 283 “ É nas administrações municipais que a população procura prioritariamente o atendimento de suas necessidades básicas. Assoberbados pela falta de recursos, pela magnitude das carências e, muitas vezes, também pela falta de conhecimentos técnicos, os gestores de nossas cidades têm que se desdobrar para atender às queixas dos moradores. Neste livro, o Espaço Democrático oferece ideias e propostas que podem ser muito úteis àqueles que acreditam que podem construir um futuro melhor ao mesmo tempo em que trabalham para minorar as dificuldades de seus concidadãos. “ Omar Aziz Governador do Estado do Amazonas “ A qualificação dos gestores municipais é, sem dúvida, um dos pilares do desenvolvimento de qualquer País. No Brasil esse é um processo que já começou, mas ainda tem um longo percurso pela frente. A iniciativa do Espaço Democrático, ao lançar Em Busca da Melhor Cidade, é um grande passo nesse caminho. O conhecimento de experiências bem sucedidas e das questões estruturais e conjunturais que dificultam ou mesmo impedem a elevação da qualidade de vida dos cidadãos é muito importante nesse processo. Trata-se de leitura “ fundamental para os administradores de nossas cidades. Raimundo Colombo Governador do Estado de Santa Catarina www.psd.org.br