PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET
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PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET
1 PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET INFLUENCIA NA FORMAÇÃO, NA CONSTRUÇÃO DO GOSTO E NO CONSUMO DE UMA PERFUMARIA DE LUXO Morgana Hamester1 “Obviamente – continuou Baldini – há muito tempo que eu sei que Amor e Psique é feito de estoraque, óleo de rosas e cravo, bem como bergamota, extrato de alecrim etc. Para descobrir isso, só se precisa, como já disse, de um nariz razoável, e pode mesmo ocorrer que Deus tenha dado a você um nariz razoavelmente refinado, como também a muitos, muitos outros homens, inclusive da sua idade. O perfume, no entanto – e aqui Baldini ergueu o indicador e estufou o peito –, o perfumista, no entanto, precisa de mais do que um nariz razoável. Precisa de um órgão de olfato educado e trinado durante vários decênios, um órgão que trabalhe sem se corromper, que o coloque em condições de decifrar com segurança inclusive os perfumes mais complexos, segundo espécies e quantidades, e que seja capaz de criar novas e desconhecidas misturas aromáticas. Um nariz desses – e ele bateu vários vezes com o dedo no seu próprio nariz – não se tem, meu rapaz! Um nariz desses só se consegue com persistência e esforço. Ou será que você seria capaz de me dizer de uma tacada a fórmula exata de Amor e Psique? Então? Seria capaz disso? Grenouille não respondeu”. Perfume: a história de um assassino, 2008, p.85. NOTAS INTRODUTÓRIAS É por meio do trecho retirado da emblemática história sobre o perfume, de Patrick Suskind (2008), que observo alguns aspectos inerentes essenciais para a compreensão sobre as relações entre as pessoas e seus perfumes. Em seus meandros, é possível perceber que a perfumaria desenvolve-se através de um processo educativo e socializador, que envolve costumes e habilidades. Se existe uma razão de ser do próprio 1 Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria – Linha Etnicidades, representações, mídia, consumo e educação. Especialista em Comunicação e Projetos de Mídia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Especialista em GestãoPública (UFSM). 2 perfume, esta razão é o nariz. Provavelmente, o perfume não existiria sem o nariz, ou melhor, sem o olfato. Ou será que existiria? A conexão íntima entre a percepção olfativa da humanidade e a essência do perfume e dos cheiros pode ser traduzida como de uma ordem primária, ou seja, o perfume provavelmente não seria o que é sem a ação humana ligada ao ato de ―sentir‖. Neste viés, é preciso levantar questionamentos sobre como aprendemos a ―sentir‖ cheiros, odores e educar nossos próprios sentidos e nossa percepção para uma perfumaria? Por um lado, a estrutura de hábitos sociais deflagrada por um processo civilizador (ELIAS, 2011) eleva o uso do perfume a uma condição distintiva de demarcação de pertencimentos e classes sociais. Por outro, os sentidos deflagram uma percepção moldada entre o sensível e a estética do ser, fazendo-nos sentir aquilo que é essencial (TODOROV, 2011). Uma busca individual pode desenvolver uma sensorialidade específica, garantindo experiências e plenitudes em matéria de reflexão, que dividem profundos conhecedores de uma perfumaria, iluminados na figura do parfumeur2, de pretensos conhecedores de um universo tão particular, que configura quase o aprendizado de uma nova língua. Assim, notáveis diferenças podem ser observadas entre connaisseurs3, pretensos conhecedores da perfumaria, que seguem trajetórias, arriscando-se no universo dos perfumes e reconfigurando gostos, estilos e ideais de vida (BOURDIEU, 2011), passando a fazer de seus ―narizes‖ instrumentos de educação sobre os perfumes, dos próprios perfumistas com formação acadêmica, intelectual e científica voltada para o desenvolvimento de um métier. 2 Expressão, que do francês, designa o métier de perfumista, ou seja, de pessoas que estudam profundamente a perfumaria, atuando na profissão, construindo perfumes, por meio do conhecimento de notas (de saída, do coração e de fundo), acordes, texturas, extratos e concentrações (eau de cologne, eau de toilette, eau de parfum e parfum), dentre outros elementos que perfazem a composição de um perfume. Para criar perfumes, é um mister a exigência de uma sensibilidade do artesão, somada a maestria técnica de um profissional, a princípio dotado de formação acadêmica. Atualmente, a Université des Sciences Versailles – Saint Quentin dispõe de um dos cursos de maior renome mundial, que habilitam para o desempenho em indústrias químicas, farmacêuticas e cosméticas, assim como especializações em determinados tipos de perfumes, cosméticos e aromatizantes para alimentos. Também a Université de Provence tem cursos para aprendizes e graduações oferecidas por seu departamento de tecnologias e sociedade (aix-marseille 1), com licenciatura para valoração e comercialização de plantas aromáticas mediterrâneas ( licence vacopam). Na cidade de Grasse, tem o Grasse Institute of Perfumerie e o AsfoGrasse, que se destinam oferecimento de cursos sazonais, de acordo com o crescimento das flores, para formar especialistas em química e aromáticos, ofertando vários cursos nos desmembramentos destas áreas. 3 Expressão apropriada da língua francesa, que designa uma pessoa com conhecimento especializado ou formação, especialmente em relação ao mundo das artes, mas, que pode designar pessoas que aspiram e entendem sobre um determinado conhecimento, por vezes, sem acesso a um conhecimento institucionalizado, mas pelo desenvolvimento educativo de determinadas habilidades. 3 Durante algum tempo, confesso, pensei a perfumaria com algo fundamentalmente ligado ao supérfluo e ao fútil, relegado a ser um objeto ou bem de luxo que se destinava para aqueles que não precisavam se preocupar com coisas ―realmente essenciais‖ na vida cotidiana. Enfim, ledo engano. Hoje, tenho a perfumaria como objeto de pesquisa, e mais especificamente, por meio de uma antropologia ―com‖ o social, o urbano, o consumo, a educação e os sentidos, penso os usos, as práticas e as implicações que existem por trás desta ação, e entre Voltaire e Miller (2007), vislumbro um objeto de luxo como ―supérfluo indispensável‖, alocado em uma pesquisa que se pretende investigar conseqüências específicas de um alto consumo perpassado por significados muito particulares, e, praticamente inalienáveis (MILLER, 2009) quanto ao preço ou o conteúdo de cada perfume escolhido por cada pessoa, e que, por meio de habilidades humanas e competências adquiridas por uma certa educação da atenção (INGOLD, 2010), podem desconstruir estéticas de relacionamento e construir relações de afetividade e laços quase indecifráveis, em movimentos que ressignificam nossas relações particulares com os objetos e com nós mesmos. Neste contexto, o presente ensaio se propõe a discutir, a partir dos dados obtidos em minha pesquisa de campo (etnografia nas comunidades ―perfumistas‖ e ―apaixonados por perfumes‖, do Orkut, e, nos grupos ―apaixonados por perfumes‖ e ―perfumania brasil‖ de Facebook) atrelados aos conceitos de educação da atenção e enskilment, propostos por Ingold (2010), dentro ainda da perspectiva civilizadora de Elias (2011), sobre como conhecedores de uma perfumaria de luxo adquirem, compartilham e trocam informações refinadas a partir do diálogo em redes sociais, blogs e sites especializados, como objetivo de construir um conhecimento bastante seletivo, e, assim, aproximarem-se de uma sofisticada formação dos sentidos, em especial, das sensibilidades olfativas para os perfumes, que pode ser percebida como ―quase‖ restrita a perfumistas de formação, dada a inseparabilidade entre humanidade e materialidade (MILLER, 2007). 4 1. PERFUMES E CORPOS: CONSTRUINDO PERCEPÇÕES E SENSIBILIDADES É um retrato histórico que, até o séx. XVIII, na França, a preocupação com as referências higiênicas não eram uma obrigação social do Estado. A partir do século XIX, a chamada propreté corporelle4 instaura, a partir classes dominantes, hábitos e normas pautados em um discurso da higiene, especialmente visível na voluptuosidade burguesia em ascensão, que desencadeou toda uma aprendizagem de moral e maneiras sobre a higiene corporal a partir daquilo que se encontra na memória dos objetos e dos gestos habituais de uma sociedade (CSERGO, 1988). Mesmo assim, a história do desenvolvimento das práticas e das indústrias da perfumaria e da cosmética, em suas raízes culturais evocadas nos maus odores corporais, já ganhara expressão, de modo que as novas noções do processo civilizador que permeava os comportamentos e costumes daquela sociedade de corte (ELIAS, ANO), passaram a incorporar a elaboração de um código fundado na olfatação (CORBIN, 1987). A inovação reside, é bom que se repita, na coerência das decisões. A partir do Consulado, elabora-se progressivamente um verdadeiro código, que ao mesmo tempo define os malefícios e determina a política que convém ser aplicada em relação a eles. A nova higiene pública ambiciona uma aceleração do ritmo de desinfecção; desta feita, ela visa a totalidade do espaço da sociedade (CORBIN, 1987, p.167). Assim, todo um processo de higiene corporal, que diz respeito à eliminação de odores e promoção dos cheiros aceitos socialmente, deve, por sua vez, garantir uma legitimidade olfativa aos perfumes, na França, de modo que ―tais convicções levam a muitas reticências no que toca à higiene individual‖ (CORBIN, 1987, p.53). Para tanto, na medida em que o perfume torna-se parte do processo civilizador naquele contexto (ELIAS, 2011), faz emergir e despontar um dos segmentos mais importantes para o esplêndido mercado do luxo francês (CASTARÈDE, 2005; ALLÉRÈS, 2006). 4 Refere-se ao processo de que envolve a problemática do corpo, em sua hexis (BOURDIEU, 2011), em relação a perspectivas culturais, políticas, estéticas, de expressão, imaginário e representações, que, por sua vez, demarca todo um código de posturas de propriedade, em nível de higiene e saúde, que envolve valores compartilhados dentro da própria sociedade a que determinados indivíduos pertencem, dada ainda a criação de instituições, que tem como objeto fazer adaptações para a prática corporal dos sujeitos. 5 Evidentemente, a história da perfumaria precede seu desenvolvimento na França, mas e lá que a evolução do perfume, por meio da história, torna-se reveladora e faz uma inigualável correlação sociocultural com o luxo. Contudo, nos primórdios da perfumaria, tinha-se o incenso, a mirra e outras madeiras aromáticas. Sua ―história teve início no dia em que o homem primitivo, depois de ter descoberto o fogo, se apercebeu de que certas madeiras e resinas, quando eram consumidas, transmitiam um gosto bom às coisas que lhe eram agradáveis ao nariz‖ (GIRARD-LAGORCE, 2006, p. 6). No antigo Egito, os faraós eram enterrados com ungüentos e óleos de substâncias como o timo e o orégano. Da religião à medicina, da higiene à beleza, o perfume fazia parte da vida do homem, assim como da vida depois da morte, do seu cotidiano e dos seus sonhos, dos seus desejos e da sua memória. Outrora criados no segredo dos templos, em cujas paredes se viam gravadas as suas fórmulas sábias, os perfumes foram codificados pelos boticários antes de verdadeiros artistas terem posto o seu gênio a serviço de imortais fragrâncias, hoje em dia prestigiosos marcos da alta costura e da indústria do luxo. Dispendiosos, raros e preciosos, os perfumes tornaram-se assim, tremendas armas de sedução, com utilizações profanas, como banhos perfumados, unções corporais e queimadores de perfumes faziam do indivíduo e do seu ambiente imediato uma esfera pesadamente odorífica. (GIRARD-LAGORCE, 2006, p.8). Assim, nas culturas antigas, o perfume era privilégio dos deuses e de seus rituais, preparados pelos sacerdotes. Do uso divino para o alcance dos mortais, como os imperadores, reis e rainhas, dignos representantes de Deus na terra, não se demorou muito. São famosas as descrições de Cleópatra, com seus perfumes, viajando pelo Rio Nilo, da Rainha de Sabá navegando a caminho de Jerusalém com um carregamento de ervas odoríferas e, mais contemporaneamente, as duas famosas gotas de Chanel Nº 5 que Merilyn Monroe declarou ter colocado antes de dormir. No comportamento de todas essas celebridades históricas, observa-se que elas combinam a essência simbólica do perfume, que mescla um ritual de poder, sedução, mistério e um pouco da própria alma humana. Com o passar do tempo, o perfume democratizou-se, saindo dos palácios e espalhando-se pelo corpo dos gregos e dos romanos, nos grandes centros do Oriente, em que o prazer do perfume tornou-se um hábito cotidiano. Mas, o que realmente é o perfume? Como poderia ser definido seu envolvimento em relação à história do próprio corpo? Para Luca Turin (2007), os perfumes são misturas complexas de que as pessoas na indústria chamam ‗matérias-primas‘. As matérias-primas, por sua vez podem ser extratos de 6 fontes naturais (misturas de moléculas), ou de matérias-primas sintéticas (geralmente moléculas individuais). Misturas, naturais e sintéticos, são frequentemente bonitas, e se projetam, em uma evolução, para atrair o outro. No entanto, eles não dizem quase nada sobre como o cheiro é escrito nas moléculas, ou seja, como sua propriedade de moléculas é responsável pelo próprio cheiro. O estudo do olfato requer uma saída do reino do belo, descer para o que os filósofos alemães costumavam chamar de "sublime", e ficar cara a cara com a estranheza da sensação duradoura e pura (TURIN, 2007, p.8, tradução minha). Desta forma, pode-se entender que, do ponto de vista de um cientista e pesquisador sobre os processos de recepção olfativa primaria e predição das características do odor, o perfume pouco tem a ver com o imaginário que dele fazemos, no sentido de Sartre (2010), e diz respeito a uma teoria da olfatação para descobrir novas fragrâncias e essências moleculares. É neste aspecto que o perfume pode ser observado da perspectiva da própria história do corpo, ligado a uma noção bio-psicosocial (MAUSS, 2003) que evidencia um homem total e envolve concepções históricas da civilização, que vão desde os gestos, a maneira de caminhar, de dormir, de comer, dentre outros aspectos do uso do próprio corpo, até a gastronomia, a sexualidade e a moralidade psicologizadas, e todo um universo de dinâmicas temporais que dizem respeito às formas de ver o mundo e de investimentos diferentes nos próprios corpos (MAUSS, 2003; VIGARELLO, 2005). Une attention historique au corps restitue d‟abord le coeur de la civilisation matérielle, modes de faire et de sentir, investiments techniques, confrontation aux éléments: l‟homme „concret‟ tel que l‟évoquait Lucien Febvre, „l‟homme vivant, l‟homme em chair et en os‟. Un fourmillement d‟existence emerge de cer univers sensible: un cumul d‟impressions, de gestes, de productions imposant l‟aliment, le froid, l‟odeur, les mobilités ou le mal, en autant de cadres „physiques‟ premiers. C‟est ce monde immédiat, celui des sans et des milieux, celui des „états‟ physiques, que restitue d‟abord une histoire du corps (VIGARELLO, 2005, p. 7). Neste contexto, os entornos do próprio corpo podem ser percebidos como associados aos modos de ser físicos e psíquicos, em um sentido sensível, que modulam as próprias atitudes corporais, instaurando ainda, em cada sociedade, hábitos que lhes são próprios (MAUSS, 2003). Para tanto, o desenvolvimento de tais hábitos pode ser conectado às técnicas de cuidados do corpo, no sentido dado por Mauss (2003, p.418), em ―esfregar, lavar e ensaboar‖ que conotam uma higiene das necessidades naturais, bem como relacionado às técnicas de consumo, relacionada aos procedimentos legitimados, normatizados e institucionalizados de determinados rituais cotidianos que 7 perfazem níveis de civilidade relativos às condutas e aos comportamentos na vida social. Está a sociedade européia, sob a égide da palavra civilité, movendo-se aos poucos para aquele tipo de comportamento refinado, aquele padrão de conduta, hábitos e controle de emoções que em nossa mente é característico de sociedade ‗civilizada‘, de ‗civilização‘ ocidental? [...] Se analisarmos os modos de comportamento que, em todas as idades, cada sociedade esperou de seus membros, tentando condicioná-los a eles, se desejamos observar mudanças de hábitos, regras e tabus sociais, então essas instruções sobre comportamento correto, embora talvez sem valor como literatura, adquirem especial importância. (ELIAS, 2011, p.90). Assim, o posicionamento do corpo diz respeito a toda uma invenção de modas e comportamentos, à ampliação de costumes e sistemas de refinamentos e aprimoramentos da própria conduta, especialmente desenvolvimentos, segundo Elias (2011), em uma sociedade de corte instaurada no século XVIII, permeada por mecanismos de desenvolvimento e difusão de um conceito de cortesia, extremamente válido para a elite social, dissimulado por esquemas de imitação entre aristocracia e burguesia, e que prevera sinais de distinção em padrões e categorias sociais da polidez. O referido autor postula ainda que um controle das emoções é estabelecido na ―formação disciplinada do comportamento como um todo, que sob o nome de cidade se desenvolveram na classe alta como fenômeno apena secular e social, como conseqüência de certas formas de vida social, apresentam afinidades com tendências particulares no comportamento eclesiástico tradicional‖ (ELIAS, 2011, p.107). Desta forma, por meio de um controle social suave, estágios de cortesia, civilidade e civilização articulam um processo civilizador pautado em uma economia das emoções, que prevê uma transformação no sentimento, nas emoções, na sensibilidade, inicialmente em pequenos círculos da sociedade de corte, e, posteriormente, permitindo modificações que se difundiram lentamente pela sociedade. Na prática, regras de propriedade e limpeza regulam a politesse cotidiana, e, requerem razões higiênicas, enquanto sinônimos de moralidade, que modelem a dignidade humana e regulamentem os padrões de exigências sociais feitas pelos indivíduos uns aos outros. E na corte vive cercado de pessoas. Tem que comportar-se em relação a cada uma delas em exata conformidade com a sua posição e a delas na vida. Precisa aprender a ajustar seus gestos exatamente às diferentes estações e posições das pessoas na corte, medis com perfeição a linguagem, e mesmo controlar exatamente os movimentos dos olhos. É uma nova autodisciplina, uma reserva incomparável mais forte, que é imposta às pessoas pelo novo espaço social e os novos laços de interdependência (ELIAS, 2011, p.203). 8 E mesmo com as mudanças nas estruturas sociais contemporâneas, em que as cortes deram lugar aos Estados democráticos, adequar-se ao convívio social tornou-se parte daquilo que se entende por educação na vida em sociedade, de maneira que pessoas com hábitos distintos, dentro da lógica ocidental educativa, podem ser mais ou menos aceitas em determinados círculos sociais. Neste sentido, o uso do perfume pode ser entendido como integrado a este processo civilizador, tão caro a Norbert Elias (2011), uma vez que pode constituir um ato de enobrecimento, virtude e aperfeiçoamento das atividades costumeiras, com um percurso inserido, de início nas classes altas socialmente privilegiadas, e, hodiernamente instaurado nas mais diversas classes e frações sociais, dos modos mais diversificados possíveis, de acordo ainda com segmentos de mercado, oportunidades e condicionantes de acesso, que vão depender ainda de um certo capital cultural adquirido sobre o conhecimento em perfumaria (BOURDIEU, 2011). Este capital cultural de leitura, que pode ser complexificado ou não, refere-se ainda a um refinamento educativo, por meio da perspectiva da construção do gosto voltado para o consumo da perfumaria de luxo. Desta forma, é importante entender artifícios que ligam o pensamento à filosofia, ao olharmos para as coisas com um dever de apreciação e reconhecimento (MERLEAU-PONTY, 1960). ―Só se vê aquilo que se olha‖, e para Merleau-Ponty, o alcance do ―olhar‖ oferece dimensões perceptivas da própria cultura nas práticas sociais. Assim, uma ―visibilidade secreta‖ persiste no próprio imaginário, que vai sendo construído ao longo do tempo e moldando os aprendizados sobre o mundo exterior que nos cerca. Desta forma, as visibilidades são recriadas diante da existência de um universo de significações, e nossos recortes sobre isso vão moldar nosso ―pequeno mundo privado‖, entre projeções e ilusões, entre o visível e o invisível, que, por sua vez, são descobertas a cada objeto em suas particularidades e marcas prévias e intensas que atingem uma profunda latência postural. Ingold (2008) observa que é possível admitir que nosso conhecimento de mundo surge por meio de algumas formas de percepção, dentro da experiência dos cinco sentidos. Para o referido autor, as possibilidades que ligam a visão ao ver, a audição ao ouvir, o tato ou pegar, o olfato ao sentir e o paladar ao experimentar dizem respeito a uma grande dificuldade em concebê-los e descrevê-los separadamente, de modo ainda que é preciso desmistificarmo-nos daquelas ideias cartesianas que entendem a visão como objetificadora e o som como personificador, operando cada um de modo isolado do outro e com desenvolvimentos diferenciados. É por meio de um entendimento no 9 relacionamento entre as pessoas e coisas, que diz respeito à língua e às práticas sensoriais, especialmente observadas nas sociedades ocidentais contemporâneas, que deve-se resgatar a importância da ―alma‖ envolvida pela ―sensação e pela emoção, ou das questões ‗introspectivas‘ da vida, ultrapassando um conhecimento e a própria fé que transcende a razão‖ (INGOLD,2008, p.4). Sobretudo, percebe-se a elevação ao topo da hierarquia dos sentidos a própria visão, que é entendida a partir das concepções de individualismo e individualidade que opõem umas pessoas a outras. Este aspecto também é objeto de reflexão de Le Breton (2011), da perspectiva do entendimento sobre as implicações da ritualização das atividades corporais manifestadas nos processos de sociabilidade. Um mundo tornado imagem é observado nos mais diversos indícios das relações entre o homem e estética. As imagens tornam-se hoje as peças para a convicção de uma realidade sempre mais evanescente. O mundo faz-se amostragem (e, portanto, demonstração); ele organiza-se, antes de tudo, nas imagens que lhe dão a ver. [...] Uma nova dimensão da realidade se oferecer por meio da universalidade do espetáculo, e o homem se faz essencialmente visão, em detrimento dos outros sentidos. As imagens tornam-se o mundo (mídia, tecnologia de ponta, fotografia, vídeo). Elas o simplificam, corrigem suas ambivalências, aplainam suas sinuosidades, tornam-no legível (frequentemente destinado apenas aos especialistas). (LE BRETON, 2011, p.310). Mas será mesmo que esta canalização de significantes para a imagem, fazem do mundo, no entrelaçamento das coisas, uma realidade apenas da visão? O fundamento da experiência postulado por Ingold (2008), realiza uma profunda reflexão sobre a interação dos sentidos dos quais as pessoas percebem o mundo a sua volta, por meio da captura de reflexos e das relações entre individualidade e coletividade compostas, em todos os sentidos, por um processo potencialmente criativo e que se refere ainda a algo que envolve o ―acostumar-se com uma percepção para a realidade dos objetos‖ (INGOLD, 2008, p.15). Para o autor, a priori, é preciso pensar sobre uma desconstrução a cerca das noções de animalidade e humanidade, dentro daquela lógica em que natureza e cultura são lógicas opostas (INGOLD, 1994). A interminável e exuberante criatividade dos pensamentos e das ações das pessoas em todos os lugares constrói uma novação própria de humanidade, que conecta sociabilidade e educação em uma concepção peculiar da singularidade humana. Neste contexto, Ingold (1994) entende uma essência humana pré-existente, que transpõe as fronteiras entre humanidade e animalidade como estados do ser, em que a natureza não é a oposição da cultura, de maneira que é possível 10 conceber um processo evolutivo da consciência, que também é biologicamente singular em cada indivíduo, na relação entre ―espécies e condição, entre seres humanos e ser humano, [...] entre duas humanidades, entre uma espécie biologicamente peculiar e suas condições sociais e culturais de existência‖ (INGOLD, 1994, p.15), pautadas na corporalidade na prática enquanto dimensões reflexivas sobre o próprio homem. Em um segundo ponto de reflexão sobre a construção de uma antropologia ―com‖ os sentidos, Ingold (2010) desconstrói a dicotomia entre capacidades inatas e competências adquiridas, a partir do entendimento sobre o ―conceito de habilidades humanas como propriedades emergentes de sistemas dinâmicos em que cada geração alcança e ultrapassa a sabedoria de seus predecessores‖ (INGOLD, 2010, p.6). Neste viés, Ingold (2010) propõe uma reflexão sobre o desenvolvimento dos próprios mecanismos que processam a informação e conhecimento para habilidades, e entende que todo o ser humano como um centro de percepções e de agência em um campo de prática. A solução, eu afirmo, é ir além da dicotomia entre capacidades inatas e competências adquiridas, através de um enfoque sobre as propriedades emergentes de sistemas dinâmicos. Habilidades, sugiro eu, são melhor compreendidas como propriedades deste tipo. É através de um processo de habilitação (enskilment), não de enculturação, que cada geração alcança e ultrapassa a sabedoria de suas predecessoras. Isso me leva a concluir que, no crescimento do conhecimento humano, a contribuição que cada geração dá à seguinte não é um suprimento acumulado de representações, mas uma educação da atenção. (INGOLD, 2010, p.7). É neste intuito, que aprender e educar a sensorialidade humana passa por uma certa pré-equipação dos mecanismos cognitivos que envolvem os processos de aprendizado e desenvolvimento das habilidades por meio da chamada educação da atenção, em que a própria habilidade passa a ser configurada como a base de todo conhecimento. Assim, o aprendizado pode ser entendido como prática, por meio de uma educação da atenção, em que o processo denominado por Ingold (2010) como ―enskilment‖, refere-se ao desenvolvimento das próprias habilidades, por meio de uma contribuição que se dá e é aprimorada de geração para geração, dentro da lógica de uma ―educação da atenção‖, revelando ainda um rompimento com a perspectiva da ciência cognitiva clássica. O ―sentimento do aprender‖ passa pela concepção de habilidade e não de acúmulo de informação, dado que o ser humano é, para Ingold (2010), um centro de percepções e agência, com particularidades biológicas, mas que tem seu desenvolvimento centrado na prática. 11 Para tanto, Ingold (2008) também dialoga com Merleau-Ponty (2011), que, por sua vez, entende, em sua Fenomenologia da Percepção, que qualquer sentido traz consigo operações concordantes com outras. Desta forma, Merleau-Ponty (2011) observa o corpo como objeto e fisiologia mecanicista operada pela experiência, traduzse em fenômenos como ―sensação‖, ―atenção‖, ―juízo‖, entre o ―sentir‖, o ―espaço‖ e as relações entre o ―outro‖, as ―coisas‖ e o ―mundo‖, dentro de uma realidade da percepção que é entendida por meio de certas representações e conjecturas. Neste contexto, o os sentidos podem ser entendidos como aspectos do funcionamento do corpo em seu movimento integrado com o ambiente, dada ainda a fusão de diferentes registros de sensações que orquestram uma sinergia corporal organizada sobre uma postura colaborativa dos próprios sentidos (INGOLD, 2010). No que concerne o envolvimento sensorial com o ambiente, Merleau-Ponty (2011) entende o olhar visual como instrumento natural da percepção, na medida em é capturado em um encontro exploratório dialógico entre perceptor e mundo, habilitando, assim, uma experiência subjetiva redefinida na nossa própria experiência do mundo, que pode conjugar os processos sociais da própria cultura. Para operacionalizar esta experiência, é possível empregar artifícios ou gradientes que tornam o pensamento um conjunto de técnicas (MERLEAU-PONTY, 2009), e redefinem o papel dos sentidos nas sociedades humanas, a partir das dimensões perceptivas da própria cultura nas práticas sociais. Dentro da linha de pensamento que envolve uma continuidade reflexiva entre ambos autores, a inserção do corpo no mundo está conectada ao entrelaçamento dos sentidos, das habilidades desenvolvidas a partir desta superposição, como produção de humanidade, bem como na construção da percepção de mundo a partir de aspectos como interioridade, reciprocidade e alteridade. Os desdobramentos em torno da percepção devem ser concebidos dentro da perspectiva de união entre corpo e alma, entre humanidade e animalidade, entre cultura e natureza (INGOLD, 1994), e referemse ainda a um mundo em torno de cada um em si mesmo, articulando uma lógica de identidades, diferenças, contextos e materialidades particulares (MERLEAU-PONTY, 2009). De fato, é preciso ―romper com estas barreiras artificiais, permitindo que as realidades da experiência irrompam sobre o turfe santificado do debato intelectual‖ (INGOLD, 2008, p.59), na medida em que viver torna-se aprender e que existe uma confluência entre gostos, fragrâncias, barulhos, temperos e cores que são deixados de 12 fora nas experiências comuns ou mais individuais, que a cada geração, tem uma transmissão diferenciada, e revela uma educação da atenção (INGOLD, 2010). Não se trata de conhecimento que me foi comunicado; trata-sede conhecimento que eu mesmo construí seguindo os mesmos caminhos dos meus predecessores e orientado por eles. Em suma, o aumento do conhecimento na história de vida de uma pessoa não é resultado de transmissão de informação, mas sim de redescoberta orientada. [...] Como observa Merleau-Ponty, nós não copiamos tanto outras pessoas quanto copiamos suas ações, e ‗encontramos outros no ponto de origem dessas ações‘. Este copiar, como já mostrei, é um processo não de transmissão de informação, mas de redescobrimento dirigido. (INGOLD, 2010, p.21). Assim, a percepção para Ingold (1994; 2008; 2010), envolve um processo de aprendizado e redescobrimento das coisas, resignificando detalhes e sentidos próprios de cada um, na interação dos indivíduos com seus respectivos ambientes, em que imana nas próprias vivências uma consciência peculiar do conhecedor, uma cognição em sentido singular que perpassa a coletividade, inseparável da prática e dos movimentos deflagrados nas sociabilidades, sem que aja a anulação ou substituição de um sentido por outro no todo que concerne a sensorialidade e corporalidade de cada um, em que o aprendizado faz um sentido particular para cada indivíduo, mas também está na vivência da cultura. Dentro da perspectiva da perfumaria, no que se refere ao refinamento educativo que separa parfumeurs de connaisseurs, é possível articular, não que os respectivos domínios de conhecimento estejam demarcados por diferenças de elevação ou subordinação de níveis, mas que uma construção do gosto, envolvendo toda uma percepção e sensibilidade, desenvolve-se de modos diferentes e particulares de apreensão de uma perfumaria concebida em sua mais ampla totalidade, que envolve diferentes esferas, pontos de conexão e significados tecidos em múltiplas subjetividades, e que não deixa ainda de ser uma experiência muito particular. A formação acadêmica que perfaz o métier de perfumista pode ser considerada apenas como uma destas interfaces que compõem o conhecimento de uma perfumaria inserida nos meandros da vida social. Contudo, são ainda raridades os connaisseurs que puderam manipular a fórmula de um perfume, ação que envolve conhecidos de química, biologia, história, dentre tantos outros aspectos, que podem, por sua vez, ser percebidos como habilidades que não tiveram meios para a educação de uma atenção e conseqüente desenvolvimento. 13 ―A metáfora é a moeda do conhecimento‖. Passei a vida aprendendo uma quantidade incrível de conhecimentos díspares, desconectados, obscuros, inúteis, e eles se revelaram, quase todos, extremamente úteis. Por quê? Porque não existem fatos desconectados. Há apenas uma estrutura complexa. E, tanto para explicar a estrutura complexa para os outros como – talvez mais importante, o que é em geral esquecido – para compreendê-la nós mesmos, precisamos de metáforas melhores. Se fui capaz de compreender isso, foi porque a minha acumulação caótica de informações simplesmente me deu metáforas melhores que as dos demais. Meu pai sempre dizia que, se alguém traduz um provérbio de uma língua para outra, passa por poeta. Vale o mesmo para a ciência. O que controla o seu avanço nesse processo é a sua disposição de traduzir continuamente, de forçar linguagens estranhas a serem suas, de viver na fronteira, de estar em toda parte e em nenhum lugar‖ (BURR, 2006, p. 392). Quando Burr (2006), em ―O imperador do olfato‖, descreve esta passagem relatada por Luca Turin, cientista reconhecido na comunidade científica por suas pesquisas sobre olfato e perfumaria, pode-se perceber as conexões que se estabelecem, especialmente por meio da linguagem, que dizem respeito aos modos de fazer (DE CERTEAU, 2008) e à compreensão do encadeamento que as possíveis ―metáforas‖, ou seja, o estabelecimento de correlações entre as interfaces e as barreiras simbólicas dessas possíveis categorias, que dizem respeito aos relacionamentos morais, sociais, econômicos, culturais das pessoas com as coisas (MAUSS, 2008), especialmente aqui tratado – o sofisticado universo da perfumaria. Assim, parfumeurs e connaisseurs podem ser percebidos em status diferentes de um mesmo empreendimento, que se refere ao universo dos perfumes, cada qual operando a seu modo e construindo recortes desta totalidade que é a perfumaria. Parte das reflexões sobre os níveis de raridade dos produtos diz respeito a um processo de busca por produtos desejados e práticas que envolvem atos de consumo enquanto atividades não só materialistas, mas configuram um certo tipo de incorporação que definiria processos como o colecionismo (BELK, 1998), por exemplo. Desta forma, a percepção do consumo de perfumes não está restrita apenas a uma esfera econômica, mas pode ser concebida como essencialmente social, cultural, da ordem de uma série de requisitos classificatórios, mitologias sociais (APPADURAI, 2008), dentre outros aspectos que permeiam a formação que pode separar consumidores, por meio de uma linha muito tênue, em compradores, apreciadores, colecionadores e compulsivos, na contemporaneidade. 14 2. CONSUMO DE LUXO: OBJETOS REFINADOS E PESSOAS SOFISTICADAS Sobretudo, foi a partir da Europa5 que se estabeleceu o centro irradiador para todo o Ocidente de uma perfumaria disseminada e mercantilizada. No século XVI, Paris recebia o título de capital dos perfumes, momento este registrado historicamente quando Catarina de Médicis chega à capital francesa, em 1533, para se casar com o futuro rei Henrique II. O fato dá um impulso decisivo à produção e comércio de produtos aromáticos. Junto com a comitiva de Catarina de Médicis, chega o perfumista Renato Bianco, que logo abriu sua boutique na Pont au Change, conquistando clientela privilegiada. Desde aquele momento, as fragrâncias e suas formas de apresentação não param de evoluir, de modo que a Europa se curvou diante dos perfumes, pomadas e óleos aromáticos, bem como a moda dos couros, luvas e outros acessórios perfumados, produzidos pelos maîtres gantie parfumeurs6. No século XVIII, as boutiques de Paris criam novas combinações aromáticas para a produção perfumeira, que passam então alcançar verdadeiros símbolos de classe e refinamento para além dos domínios da aristocracia. Liberados do papel de dissimulador de odores desagradáveis, os perfumes aromáticos tornam-se mais doces e suaves, com a predominância do aspecto floral, crescendo ainda as pesquisas sobre novos cheiros e novas formulações sobre essências raras e exóticas em flores, ervas, madeiras e secreções animais. Em um caráter mais sociológico, quando se fala em perfumes, não se pode esquecer que Sombart (2009) postula sobre os desdobramentos econômicos e sociais do luxo, eminentemente instaurado em uma França do século XVII, especialmente em sua formação para consumo, a partir de uma visão permeável das práticas sociais e seus valores hedonísticos traduzido na figura das cortesãs e suas articulações para o processo de conquista, bem como na instauração de um caráter blasé (SIMMEL, 2005) visível no surgimento das grandes cidades enquanto lugar de economia monetária, reestruturadas para de uma vida social pública movimentada, a partir dos hotéis, 5 É na Idade Média e no Renascimento, que o perfume entra nos costumes e práticas sociais. Assim, o perfume tornou-se o instrumento ideal para as pessoas se fazerem notar: usar certos perfumes, assinados por um grande nome, constituía um meio de penetrar no prestigioso mundo da aristocracia e das famílias reinantes, que distribuíam os seus ―certificados‖ de honorabilidade. (GIRARD-LAGORCE, 2006, p. 11) 6 Refere-s aos grandes mestres da perfumaria do século XVII. 15 restaurantes, teatros que prevêem a revisão das vivências cotidianas individuais e formas de vida em sociedade. Assim, para Sombart, luxo é todo o dispêndio que vai além do necessário. Trata-se obviamente, de um conceito relativo que tem sentido na medida em que dispomos de uma noção do ―necessário‖. Há duas maneiras de determiná-lo: ou seja, subjetivamente, mediante um juízo de valor (ético ou estético, por exemplo), ou fixando uma medida objetiva. Como medida objetiva pode se tomar o conjunto das necessidades fisiológicas, mas também podemos denominar o conjunto de ―necessidades culturais‖ (tradução minha, SOMBART, 2009, p.49). Evidentemente, para o referido autor, o consumo de luxo está naquilo que é além do necessário, e para tanto, um desperdício em excessos e extravagâncias. Contudo, é nos limites das necessidades e certos requerimentos culturais, que os objetos vem suprir as relações sociais, fornecendo ainda ao luxo vertentes qualitativas e quantitativas, relacionadas à prodigalidade e à qualidade, respectivamente. Mas, sobretudo, é este luxo que abre as portas do capitalismo moderno, em um refinamento que teve fins muito definidos a partir do Renascimento, tendo como principais causas, a ambição, o orgulho, a ostentação, os desejos de poder e de notoriedade, dentre outros sentimentos que revelaram sua propagação, que começa a partir da corte (nobreza ou aristocracia francesa) e chegam às demais classes sociais, virando um ideal de vida, que, por sua vez, busca conquistar um lugar próximo às elites sociais. O esbanjamento de uma aristocracia endinheirada torna as grandes cidades os principais centros de consumo, em que uma elite dominante não pretendia apenas consumir, mas adquirir cada vez mais bens, e, sobretudo, dinheiro. A aquisição e acumulação de bens e riquezas geram a concepção e a preocupação com o dinheiro na cultura contemporânea, em suas possibilidades de posse em escala interplanetária, operada a partir de uma lógica impessoal e autônoma, é entendida por Simmel (1998), nos diversos aspectos em que o dinheiro, na sua etimologia mais barata, passa a ser o elemento que define uma sequência que leva ao consumo. Assim, o ser humano, em seus limites do corpo inseridos e ordenados pelo tempo e espaço, tenta preencher incessantemente a própria auto-estima, vivendo a personalidade em uma mistura de sensações, que variam entre a solidão cosmopolita e o conseqüente estímulo de diferenciação ao refinamento e enriquecimento, alimentados pelo crescente incremento das necessidades do público que opera a lógica de sobrevivência do capitalismo, em seu 16 (re)nascimento nas grandes cidades, que podem ser vistas como verdadeiros cenários desta cultura pautada na filosofia do dinheiro (SIMMEL, 2005). A cultura social na contemporaneidade é distinta de outros tempos, uma vez que incorpora em quase todas relações sociais o a figura do dinheiro, que sustenta seu processo, a partir de uma mediação entre o homem e seus desejos, em nível de satisfação sempre plena. Assim, mesmo que o dinheiro não possa compra toda a felicidade que o indivíduo almeja, ele ainda é o meio mais eficaz de se obter outros bens (SIMMEL, 1896 apud SOUZA e ÖELZE, 1998). Em uma sociedade estratificada pelo poder e acesso financeiro ou montário, em sentido aquisitivo, uma clientela selecionada busca, por meio dos bens de luxo, firmar sua posição de superioridade social e econômica, utilizada como sinônimo de distinção e diferenciação, em sua inserção no campo do luxo. Assim, o luxo torna-se parte da obstinação humana, ao revelar um padrão extravagante de consumo7, especialmente a partir do século XVI, que infunde o imaginário humano, as identidades sociais e os estilos de vida nos dias atuais. Desta forma, as práticas de consumo de luxo passaram a ser disputadas, na medida em que uma burguesia desenvolveu sua riqueza e passou a competir consumo de objetos de luxo com a nobreza, rivalizando estilos de vida, e, alimentando assim, uma (re)organização da produção industrial. Todo este movimento pode ser visto como uma busca de novas oportunidades de vida, em alegria, felicidade, exuberância, que, consequentemente, moldaram as estruturas da cidade e o espírito blasé8 dos indivíduos, especialmente após incorporação do dinheiro9, e sua cristalização do crescimento da economia, muito bem observado por Simmel (1998). Neste viés, Sombart entende que o consumo de luxo desencadeou várias tendências de organização da vida cotidiana, que 7 Grandes talentos criativos da humanidade, por assim dizer, deram origem a prestigiosas grifes, nos diversos segmentos do luxo, como Baccarat, Fabergé, Cartier, Bollinger, Ritz, Vuitton, Gucci, Lesage, dentre outras. Especialmente tratando da moda de luxo, as grandes maisons, dirigidas por estilistas reconhecidos como produtores da alta-costura, por sua vez, dão origem a marcas globais e fazem investimentos significativos na moda prêt-à-porter, sejam em roupas, acessórios, cosmética, perfumes, etc. A partir de Charles Frederick Worth (1825-1895), considerado o pai da alta-costura, muitas mudanças se processaram no setor, e, uma nova percepção sobre a sensibilidade íntima do luxo instaurouse, juntamente com a nova perspectiva capitalista da sociedade de consumo. 8 Uma vida desmedida de prazeres urbanos torna-se blasé, fundada em uma incapacidade de reagir a novos estímulos, em uma fonte que deságua na economia monetária. (SIMMEL, 1903, apud MANA, 2005, p.577-591). 9 Cada vez mais coisas podem ser compradas com o dinheiro. [...] O dinheiro seduz – por meio de seu caráter objetivo e indiferente, pelo qual ele se oferece, do mesmo modo e sem relação interna, não só à ação mais nobre como também à ação mais baixa – uma certa leveza e irresponsabilidade do agir, que é inibido, com frequência, quando falta a mera intermediação do dinheiro, por meio da estrutura peculiar dos objetos e da relação individual dos agentes com eles(SIMMEL, 1896, apud SOUZA e ÖELZE, 1998, p. 23-40). 17 permeiam a organização dos espaços públicos e privados, seja em ornamentos da decoração dos espaços internos, seja em encontros nos bares, restaurantes, hotéis, lojas e outros pontos que formam a urbe, operados pela aquisição de objetos10, levando em consideração sensualidade e refinamento, e transformando a vivência do dia-a-dia em arte e momentos de prazer. Foi na configuração e no crescimento das grandes cidades, que se deve ao comércio e às indústrias, que uma classe consumidora desenvolveu-se, colocando a concentração do consumo por trás do crescimento de cidades como Veneza, Amisterdã, Roma, Madrid, Nápoles, Londres e Paris, em uma confluência de riqueza e capital que configurava a natureza da urbe daquela época. A respeito do desenvolvimento urbano, a economia política do séc. XVIII dedicou especial atenção ao destino que devia dar às rendas territoriais e ao fenômeno do luxo no desenvolvimento do consumo. Trata-se, de fato, de três questões relacionadas entre si: as rendas são gastas nas cidades, o consumo de luxo acontece nas cidades e as cidades crescem. (SOMBART, 2009, p. 32, tradução minha). Esta relação entre o surgimento da urbe e o desenvolvimento do consumo do luxo, relacionando o próprio luxo à formação das cidades, tem como eixo um novo grupo de cidadãos e uma circulação econômica de riquezas e objetos de prazer social. Neste viés, por meio da construção de uma perspectiva sociológica, o luxo pode ser compreendido como uma atividade que é parte das regularidades do agir humano, sobretudo, sem desprezar a pluralidade e a diversidade do mundo. Sombart (2009) pensa sob novos prismas da prática cultural e econômica ocidental, e observa determinadas relações de causa e efeito, peculiares a este campo da sociedade aparentemente visto como fútil e insignificante. É na vida amorosa da classe dominante, permeada pelas relações na corte, entre a nobreza, a burguesia e o sentido capitalista que toma aquela sociedade em seus círculos sociais, no desfrutar de prazeres, nos conceitos hedonistas que passaram a 10 Sobre os objetos, é interessante referir a idéia do fetichismo da mercadoria, muito bem articulada em Marx (2006). Os objetos viram produtos, ou seja, mercadorias, após a incidência dos modos de produção, e podem ser vistos como um resultado final deste, de modo que na interação com os consumidores, exercem algum tipo de sedução, feitiço ou magia para a consumação da aquisição, enquanto um processo que compõe o sistema capitalista. A partir da mercantilização da subjetividade e das relações de dominação e poder que complexificam a produção industrial, um novo sentimento é despertado no consumidor pela mercadoria, que acondiciona suas relações sociais. 18 conduzir o significado da beleza das mulheres, que relações ilegítimas entre os sexos podem produzir efeitos no desenvolvimento do sistema capitalista. A figura da mulher, em especial da cortesã, promove, segundo Sombart (2009), tendências gerais no desenvolvimento do luxo, como o culto à interiorização, ou seja, a preocupação com o luxo nos domicílios, atribuindo-lhe um caráter doméstico, a partir do uso dos ornamentos, como tapetes, cristais, porcelanas, tecidos finos, peças em ouro e prata, dentre outros atributos moveleiros que passaram a constituir a arquitetura das casas; uma tendência à objetivação, no sentido de as relações serem cada vez mais mediadas pela acumulação dos objetos, pela produção pessoal a partir de uma preocupação com os trajes suntuosos, as jóias, as maquiagens e outros adereços; desta forma, também passa a existir uma tendência à sensualidade e refinamento, centrada na influência social das cortesãs da época, em uma busca por satisfação e quantidade de adornos raros; por fim, vislumbrou-se uma maior capacidade de produção de bens de luxo, na sofisticação das demandas e uma crescente e acelerada comercialização. Neste contexto, cabe salientar ainda o papel da coquetterie11, tão caro à sociologia dos sexos de Simmel (2006), que mescla os sentidos de aceitação e recusa, do erótico e da sexualidade em uma cultura feminina, orquestrados por novas concepções de beleza e amor, que, em opulência e do excesso, promovem o surgimento e fixação do consumo de luxo. Este movimento, precursos do esplendor da alta costura contemporânea (BOURDIEU, 2008), aparentemente irônico e contraditório, que previa o ―empavonamento‖ das mulheres, mergulhadas em seus adornos e formas elementares eróticas, observadas nas sociabilidades da corte francesa12, desencadeia novas relações sociais, cujos efeitos puderam ser visualizados na indústria de luxo. 11 Para Simmel, a coquetterie pode ser definida como uma forma não propriamente adequada de sociabilidade que envolve um jogo das relações entre os sexos. A questão erótica envolve-se, neste contexto, em torno da aceitação e da recusa comportamental entre homens e mulheres, em um conteúdo decisivo que situaria dois pólos do coquetismo. Em outras palavras Simmel explica que ―a coqueteria é um jogo da ironia e do gracejo com o qual o elemento erótico ao mesmo tempo desata os puros esquemas de suas interações de seu conteúdo material ou totalmente individual‖, jogando com as formas de erotismo e suas simbólicas implícitas. (SIMMEL, 2006, p. 74). 12 Uma figura emblemática da coquetteria é Jeanne-Antoinette Poisson, ou Marquise de Pompadour (Paris, 29 de dezembro de 1721 — Versalhes, 15 de abril de 1764), mais conhecida como Madame de Pompadour, foi uma cortesã francesa e amante do Rei Luís XV de França considerada uma das figuras mais emblemáticas do século XVIII francês. Dotada de inteligência, encanto, beleza, e ao mesmo tempo uma mulher fria, em termos físicos e na alma, Madame de Pompadour via seu papel como o de uma secretária confidencial do Rei. Governava Versalhes, concedia audiências a embaixadores e tomava decisões sobre todas as questões ligadas à concessão de favores, de forma tão absoluta quanto qualquer 19 Assim, enquanto empreendimento capitalista, o luxo associa-se ao consumo e dita algumas diretrizes do surgimento do capitalismo, na intenção de descobrir o espírito das forças produtivas por trás das aparências; prazer pelo luxo que promove o refinamento dos sentidos. Respaldado em uma estética voluptuosa, Sombart (2009) pensa o luxo a partir da ―futilidade‖, da ―vain ostentation‖, do ―supérfluo indispensável‖ tão caro a Voltaire, e que engendra nas relações sociais um grande crescimento do capitalismo mundial, orquestrado com maestria a partir de sentimento de prazer, que passa ser um dos móveis mais preciosos da sociedade capitalista que forja a cultura no ocidente. O consumo dos bens passa a satisfazer um capricho e prazeres passageiros, de modo que a proliferação de fábricas toma conta dos entornos das cidades, para atender demandas de manufaturas sofisticadas, como seda, couro, renda de bilro, dentre outras especiarias do luxo. Neste sentido, o luxo instala novas possibilidades de desenvolvimento para as grandes cidades, a partir da criação de hotéis, teatros, salões de baile, boutiques, restaurantes, e outros espaços sociais sofisticados que, dali por diante, dão o tônus das vivências em sociedade, hierarquizando, de certa forma, as distinções entre classes, a partir das condições de acesso que se geraram na transferência de riquezas da aristocracia à burguesia e da criação de novos mercados voltados para a acumulação e refinamento de bens (SOMBART, 2009). Neste sentido, várias observações sobre o luxo tem sido feitas a partir de remarques sociais associados à ligação do próprio luxo com a figura da mulher, à opulência dos usos, à ostentação e distinção, em suas relações com a arte e a indústria, que dizem respeito aos procedimentos de qualificação dos produtos e bens de luxo. Neste sentido, a tradição do luxo tem sido amplamente pesquisada a partir de identidades culturais, da produção ou reprodução técnica dos objetos de luxo, que por sua vez, colocam em cheque o sagrado e o divino que ditam a vida e a morte do luxo enquanto fenômeno social. Desta forma, o luxo também é mistificado em efeitos perversos, e questionado sobre sua dessacralização em nome do mercado, das indústrias e suas estratégias, da filosofia econômica da contemporaneidade que remontam a história do próprio luxo, que conheceu diversos graus e variações de culturas, épocas e circunstâncias, e que não deixa ―morrer‖ a reputação de Chanel, Dior e Yves Saint Laurent na memória dos sujeitos que reconhecem mais seus produtos do que seus monarca. Influenciando politicamente as decisões reais, ela se tornou uma empreendedora, incentivando a fundação da fábrica de porcelanas de Sèvres. 20 objetos (BERGÉ, 2005). No cenário em questão, o luxo continua sobrevivendo, enquanto palavra, discurso, fenômeno ou até conceito, representando um fator importante na economia mundial, na fusão de grifes e gestão de marcas por conglomerados mundiais, defendido por comitês especializados no ―assunto‖ luxo. Para tanto, sua importância está para além da simples avaliação a partir da sociedade de consumo e de uma generalização mercadológica, mas, permeia as necessidades humanas, que são relativizadas pelo significado daquilo que é útil ou inútil, da versatilidade das marcas ou da infidelidade dos consumidores sensíveis às diferenças sociais (PAQUOT, 2005). O luxo como emblema de status social divide terreno com o luxo hedonista, mas sempre distintivo social e culturalmente, de modo que observamos um luxo de múltiplos significados entre a fabricação de produtos, internacionalização da clientela e peculiares usos e desusos em sua consumação para cada indivíduo. É desta forma que formar um visão do luxo pode dizer respeito à arte de viver, de fazer, ao tempo e ao silêncio, à vastidão do seu universo concreto e abstrato manipulado por ―sonhos‖ que o tornam muito útil à vida social (PAQUOT, 2005). É neste viés que, pensar perspectivas para o consumo de luxo, perpassa a própria cultura material e como determinadas abordagens vem sendo conduzidas a respeito das razões que levam e que sustentam determinados consumos. É a partir do pensamento de Daniel Miller (2007), podemos pensar o conceito de consumo, por meio de investigações específicas, e, neste sentido, perceber uma certa ―ignorância‖ sobre o consumo enquanto um aspecto da vida material. Neste viés, o consumo, por um lado, é amplamente associado a uma atividade maligna de destruição e deteriorização das relações e recursos, em uma abordagem celebrada em Marx (2006), Bataille (1988), dentre outros, que buscam estabelecer uma moldura moral de um consumo visto de acordo com padrões de preocupação com o materialismo contemporâneo, que, por sua vez, discutem a centralidade dos desejos versus o desperdício da ―essência‖ da humanidade. Por outro lado, um contra-discurso emerge, a partir da observação dos benefícios do consumo sempre presente nas relações entre pessoas e coisas, esclarecendo ainda uma certa ―confusão‖ relacionada aos entrelaçamentos equivocados entre a postura moral do consumo e a história do próprio consumo enquanto atividade humana (MILLER, 2007), afirmando sua contribuição cultural permeada por aspectos como posturas de intenção, necessidade de bens e natureza dos usos. 21 Neste contexto, agrupamentos de consumidores, cujas tendências culturais comandam suas demandas por bens são inseridos, no contexto que separa necessidades e desejos, que se traduz em um campo de escolhas que eleva o próprio consumo a uma importância ideológica e prática. Desta forma, podemos observar a organização de rituais recíprocos, dada a influência mútua entre consumidores, o que pode configurar uma teoria das necessidades por inveja, mas, sobretudo, significados privados que emergem de cada relação entre pessoas e coisas(DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009). Visto que os bens podem ser percebidos como a parte material da cultura, e, para tanto, produzem significações e interações em determinados espaços, devem ser entendidos com parte da realização da vida, por meio de sua contribuição positiva às relações econômicas e sociais dos indivíduos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009). Contudo, primeiramente, sentimentos como inveja, exibição, ostentação e prestígio, ainda perfazem as escolhas e as necessidades, extravagantes ou não, na busca por pertencimento social, laços estes que podem significar a mais profunda satisfação encontrada nos usos e nas práticas que envolvem mercadorias escolhidas e apropriadas. Aquilo que Douglas e Isherwood (2009) denominam serviços de marcação, diz respeito a estas conexões, por meio de um entrelaçamento com o campo das preferências, dos gostos, das razões e dos sentidos enquanto critérios pré-estabelecidos, que fazem dos próprios bens tipos de marcadores da vida social. Desta forma, perfumes, enquanto objetos de luxo, podem conotar competições, compartilhamento de experiências, profundas diferenças e ambições variadas em relação aos círculos sociais. Em segundo lugar, novas mercadorias geram novas necessidades, e o luxo do ontem se torna a necessidade de hoje, o que por outro lado, garante que sempre haverá bens de luxo, dada a freqüência de uso enquanto demarcadora de posição hierárquica, uma vez que a posse de determinados bens podem garantir vantagens sociais. Assim, objetos de luxo podem ser entendidos como armas de exclusão, pois bens que tem baixa freqüência de consumo garantem um alto status e modos de ostentação e prestígio diferenciados (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009). É neste intento, que a alta perfumaria pode diferenciar-se de uma perfumaria dita ―rasa‖ e ―midiática‖, e estabelece um estilo de vida baseado no consumo, em que bens podem ser utilizados com propósitos sociais pré-definidos, como graus de relacionamento e conexões que visivelmente podem identificar um determinado tipo de elite. Também Bourdieu (2011) pontua o consumo como sinônimo de distinção e preocupa-se com a influência da 22 construção do gosto nos estilos de vida e na constituição das classes sociais, em suas demarcações recíprocas, na ―estilização de vida‖ que reside nas variações de distâncias do mundo que, por sua vez, perfazem disposições e sensos estéticos, classificações e suas estratégias de reconversão, bem como maneiras de adquirir, configurando o próprio habitus e os estilos de vida. Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja, capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida. [...] O gosto, propensão ou aptidão para apropriação – material e/ou simbólica – de determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e classificantes é a fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de vida, conjunto unitário de preferências distintivas, que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário, linguagem ou hexis corporal – a mesma intenção expressiva. (BOURDIEU, 2011, p.162 – 165). Sobretudo, é preciso entender o gosto como a forma de amor por excelência, que parte daquilo que nos sensibiliza, de modo que um habitus configura-se para engendrar representações e práticas, ajustas às disposições éticas e estética, de aparência e de essência, tão fundamentais à própria busca por distinção. Neste contexto, os bens e as virtudes reivindicam necessidades e usos diferenciados em cada classe social, arraigados a valores e intenções socialmente reconhecidas, que devem tonalizar os níveis de distribuição sobre o que constitui o próprio luxo, que, para um lado, não passa de um ―fantasia absurda‖ e inacessível, constituída de sonhos e desejos raros, quando de ocupantes de níveis inferiores na sociedade; para outros, torna-se banal ou comum, relegado à ordem do necessário, do evidente e do cotidiano. Neste conjunto de possibilidades permeadas por disposições estéticas e simbólicas, encontramos distâncias marcadas entre classes, cada qual com competências específicas que dão condições diferenciadas ao consumo de bens de cultura legítimos. Por outro lado, Miller (2009), no sentido de superar as divisões entre o microcosmo que significa o indivíduo frente ao macrocosmo que se refere à sociedade, adotando como ponto-de-partida para uma reflexão sobre as práticas e os usos que envolvem os processos de consumo a compatibilidade entre o indivíduo e a sociedade, observa a relação entre os diversos gêneros materiais (a música, os enfeites, as roupas, a comida, a fotografia, etc) e os gêneros sociais (relações entre famílias, amigos, colegas, 23 etc), especialmente desenvolvida dentro das possibilidades inalienáveis que se estabelecem nos processos de objetificação do próprio indivíduo. Neste sentido, a perfumaria, ou melhor, o perfume, pode representar uma capacidade diferente de objeto, e, que é autenticado de um modo diferente para cada um. Tal inalienabilidade que pode estar presente em um perfume e que diz respeito ao meio pelo qual o objeto personifica o indivíduo (MILLER, 2009), pode ser percebida para além do status, do prestígio, da ambição de círculos sociais que perfazem o ―peso‖ da estrutura das classes suas frações sobre as vivências dos indivíduos, mas, pode representar a capacidade criativa dos indivíduos, em reinventar modos de relacionamento dos gêneros da cultura material para constituir um sentimento de valor inalienável nos usos, nas trocas e nas práticas, movidas por alteridades e reciprocidades, e que remontam novos processos de objetificação. Assim, o consumo assume um significado muito mais intenso, no sentido das pessoalidades, das individualidades e suas peculiaridades, que se refere a uma formação estética de relacionamento, em que os objetos podem assumir significações nas histórias de vida de uma pessoa, por meio de conexões, associações e percepções muito próprias, em contextos individuais e, ao mesmo tempo, sociais. Por sua vez, Campbell (2001) percebe as relações entre o comportamento do consumidor contemporâneo e o movimento romântico do séc XVIII, também estudado por Sombart (2009). Para além desta proposição, Colin Campbell ressalta as influências culturais que transformam os relacionamentos e consumismo articulado pelo hedonismo, a ânsia pela novidade, dentre outros aspectos originários em uma determinada época, associando o consumo ao prazer, sonho e imaginação, e que, por lógicas economicistas, tem desdobramentos na sociedade de consumo atual e polemizam as práticas morais do próprio consumo revelado no comportamento justificado do consumidor. Como o seu tradicional antecessor, o hedonismo moderno é ainda, basicamente, uma questão de conduta arrastada para a frente pelo desejo da antecipada qualidade de prazer que uma experiência promete dar. O contraste, porém, é considerável. Em primeiro lugar, o prazer é procurado por meio de estimulação emocional e não meramente sensorial, enquanto, em segundo, as imagens que preenchem esta função são ora criadas imaginativamente, ora modificadas pelo indivíduo para o autonconsumo, havendo pouca confiança na presença dos estímulos ―reais‖. (CAMPBELL, 2001, p. 114). 24 Assim, pode-se compreender as relações de consumo a partir de um entendimento dos fatores imaginativos ou ilusórios, que produzem um hedonismo autônomo que, por sua vez, requer a produção de uma capacidade de obter prazer em uma experiência auto-construída para os modos de desejar, sonhar e, consequentemente, viver. Para tanto, uma expectativa do prazer diante dos novos objetos ou atividades estabelece-se, na medida em que a apreciação é elevada a tal ponto, que pode traduzir-se apenas na busca pela qualidade experimental, que perfaz o ―hiato entre os prazeres imaginados e experimentados‖ (CAMPBELL, 2001, p.132). Neste sentido, identifica-se um consumo contemporâneo, que estabelece uma ligação íntima com o papel político, econômico e cultural das marcas na sociedade. Dada uma capacidade emblemática de representação, segundo Semprini (2006), as marcas tomaram uma proporção social para além dos próprios objetos, que, transformados em produtos, provocaram uma reflexão no contexto econômico e social, nos últimos tempos. A força deste nome, símbolo, termo, desenho ou combinação de elementos está para além da semiótica, pois, carrega consigo uma carga significativa de tradição, discurso estratégico e histórico, que, por vezes, diferenciam marcas de moda de marcas de luxo. Neste viés, o consumo das marcas é constituído por meio de um imaginário construído a partir do individualismo, do corpo, da mobilidade das próprias marcas que desfronteirizam os objetos (SEMPRINI, 2001). Também Bourdieu13 (1983) sinaliza em relação às marcas elaboradas por grifes de luxo, um processo de transubstanciação, que promove a sobrevivência da grife à perda de seus criadores, por meio da exploração da própria marca, que se perpetua na forma de perfumes.Sobre o conceito de marca, também Sahlins (2003) ao relacionar a cultura e a razão prática, concebe a importância da pretensa superioridade funcional em relação a outras alternativas possíveis em conseqüência dos valores imbricados na estrutura da economia a partir da organização social das coisas. Assim, o valor da mercadoria passa a ser regulado não só por sua utilidade ou significação das qualidades objetivas, mas também por outros significados de apropriação simbólica que modificam 13 As maisons que sobreviveram à morte de seus fundadores só se perpetuaram com a exploração industrial da grife – sob a forma de perfumes. (...) O costureiro realiza uma operação de transubstanciação. Você tem um perfume do Monoprix por três francos. A grife transforma-o num perfume Chanel, valendo trinta vezes mais. Esta faz dele um objeto de arte, assim transmutado econômica e simbolicamente. A grife é a marca que não muda a natureza material, mas a natureza social do objeto. Mas esta marca é um nome próprio. E, ao mesmo tempo, coloca-se o problema da sucessão, pois se herdam nomes comuns ou funções comuns, não um nome próprio. (...) Na verdade, o que está em jogo não é a raridade do produto, mas a raridade do produtor (BOURDIEU, 1983, p.7). 25 a natureza social do objeto (BAUDRILLARD, 2008), evidenciando a função simbólica da marca. Por sua vez, Everardo Rocha (2000) observa as relações entre objetos e marcas no sentido da demarcação de pessoas e grupos por meio de funções simbólicas, em função ainda do reconhecimento de certos ―segredos‖ dos próprios consumidores, que podem significar a diferença entre o sucesso e o fracasso de produtos e serviços, de forma que o consumo, no contexto das marcas, poderia ser pensado como um sistema simbólico que articula coisas e seres humanos de uma forma muito privilegiada dentro da complexidade que envolve determinados processos de magia no funcionamento do próprio capitalismo. Neste viés relacionado à magia da marca, Lévi-Strauss (1975) conceitua eficácia simbólica, de forma que a magia depende da crença coletiva, a priori, conquistada pelo reconhecimento social que uma determinada marca pode adquirir, operados modernamente a partir de dispositivos de mídia e anúncios de todo gênero. Neste intuito, a carga simbólica dos atos que envolvem as marcas para o consumo constitui uma linguagem própria, que envolve rituais e mensagens em uma relação íntima entre o símbolo e a coisa simbolizada, em um sentido próprio para atingir o indivíduo, inebriando-o com o poder simbólico da própria marca, que se torna um dos recortes contemporâneos do consumo, mesmo que ainda assuma um sentido individual. 3. A INTERNET E AS PESSOAS: RECONHECIMENTO DA FIGURA DO CONNAISSEUR NA REDE Quando comecei minha pesquisa nas comunidades e grupos das redes sociais, não esperava chegar a discussões como esta, que envolve níveis de educação, refinamento e conhecimento sobre um tema específico. Com a facilidade de acesso e os processos de evolução e incorporação do hipertexto, enquanto um sistema de janelas conectadas que forma a tessitura da própria internet, os modos de comunicação e compartilhamento de informações tornaram-se acelerados, evidenciando não só o papel da tecnologia na vida das pessoas, no sentido de modificá-las e, para elas, revelar um mundo paralelo, mas, a possibilidade de incorporação gradual e definitiva da internet no ethos dos indivíduos. Pensar em impactos on-line e off-line já tornou-se ―lugar comum‖ frente às práticas e aos usos pelos quais os sujeitos fazem conexões, vivências, experiências e sociabilidades na espacialidade virtual. 26 Muito embora a internet seja democrática e não gratuita, é possível perceber uma crescente utilização, de forma construtiva, no que se refere aos modos de fazer coisas colaborativas e compartilhadas, evidenciando o verdadeiro caráter democrático da própria rede. Anteriormente, conhecimentos especializados ficaram restritos a fóruns especializados, localizados em espaços restritos, como as universidades ou instituições privilegiadas, de certo modo, detentoras, por assim dizer, de saberes qualificados. Com o advento da rede, tudo mudou, de forma que os processos de interatividade e acessibilidade passaram a ser trabalhados por meio de sociabilidades, que se geraram somente com o advento da própria internet. Assim, o conceito de rede passou a ser incorporado, de fato, na cotidianidade, no sentido de aprimoramento da comunicação interpessoal, o que permitiu a observação de um ―espírito da internet‖, algo em torno dos espaços de sociabilidades (GUIMARÃES JR, 1999), em especial aqui tratando das sociabilidades intencionais e especializadas, como é o caso do culto que se apresenta em torno do consumo de perfumaria, que por sua vez, divide a própria perfumaria em ―de nicho‖ e ―comercial‖, por exemplo. O ciberespaço contempla a forma de imagens específicas, de pessoas entendidas por um público virtual como ―formadores de opinião‖, experts sobre determinada área ou assunto, de forma que a possibilidade que se constrói em torno de uma só faceta de uma determinada pessoa diante de seu grupo de interesse acaba só sendo possível diante do nível de conhecimento acumulado ou adquirido através de sua própria imersão na rede, dentro da perspectiva básica da criação da internet que compreendia o diálogo com pessoas do outro lado do mundo. Meus ―perfumistas‖ mais reconhecidos são pessoas como inserção em grupos internacionais de diálogo sobre perfumaria, que recebem e trocam amostras de perfumes com pessoas do mundo todo, que tem contatos internacionais sólidos para comercialização de perfumes das marcas ou grifes reconhecidamente de nicho, e, portanto de luxo, e vão educando suas atenções e realizando seus processos de redescoberta orientada de modo bastante acelerado (INGOLD, 2010). Como leitores de resenhas em sites especializados como fragrantica.com, nowsmellthisperfume.com e basenotes.net, e compradores em sites como fragrancenet.com ou saksfifthavenue.com, todos internacionais, estes indivíduos não podem ser considerados simples consumidores, até porque, por deterem um conhecimento especializado considerado pela maioria como muito sofisticado, passam a desempenhar um papel no grupo, de certo modo, hierárquico, elencando o topo da 27 ―pirâmide abstrata‖ que se pode imaginar dentro do próprio grupo, no que diz respeito ao conhecimento prático e conceitual sobre perfumaria de nicho. Para essas pessoas, a chamada perfumaria ―comercial‖, das peças publicitárias evidentes na TV à cabo, das lojas de depertamento mais acessíveis ao grande público, é relegada a produto comum, à condição de perfumaria mundana, que não vale a pena ser conhecida ou reconhecida. Uma divisão dramática em torno dessa perfumaria demarca o status do connaisseur, que se empenha fortemente em apresentar e representar seu conhecimento sobre uma perfumaria diferenciada, conquistada a duras penas, no convívio com taxações da receita federal, com extravios dos correios, com impostos e tantas outras dificuldades de ser acessada. A escala freqüência dos bens, proposta a partir de Mary Douglas (2009) demarca fortemente o que se percebe sobre a circulação da perfumaria nestes espaços de sociabilidade. Quanto mais difíceis e restritos, mais status o possuidor tem; quanto mais acessíveis, em nível de prêt-à-porter, mais relegados a segundo plano ficam determinados perfumes. Uma certa preocupação em manter uma coleção de perfumes de nicho, difíceis de serem encontrados e até mesmo reconhecidos, perfazem o imaginário dos connaisseurs em cada grupo, e eles podem ser facilmente identificados enquanto possíveis experts, em razão destas coleções, até certo ponto ―absurdas‖ e surreais, já que trabalham arduamente para obter um conhecimento específico sobre esta perfumaria mais refinada, que se reflete em seus processos efetivos de aquisição e consumo de bens de luxo. Suas coleções sempre são mostradas, a partir de imagens de perfumes quase desconhecidos por uma maioria, que, observa, ―cochichando‖ entre si, como a sociedade de corte de Norbert Elias, a ―grandeza‖ das coleções, a astúcia dos colecionadores ―tops‖, conhecedores de uma perfumaria restrita, de marcas desconhecidas, que, por vezes, dão ―o ar da graça‖ de suas imagens cultuadas quase na lógica do fetichismo da mercadoria proposta em Marx, e por um detalhe, a adoração aos objetos não substitui sua função mais elegante enquanto bens mediadores das relações sociais da cultura material. Assim, connaisseurs vão se confundindo com parfumeurs, especialmente após o impacto on/off line (HINE, 2004, MILLER, 2012) gerado com a maior democratização do uso da internet para o acesso a um consumo diferenciado de perfumes de luxo. Trocas, rituais e discussões passaram a ser observados, em torno de prestigiosas grifes como Serge Lutens, L‘Artisan Parfumeur, Tauer e Etat Libre D‘Orange que, por sua vez, formam um mundo a parte do circuito midiático que 28 transnacionalizou marcas de perfumes Chanel, Dior e Yves Saint Laurent. Mas, será que tal processo desencadeou um efeito real ou apenas representa a simulação (BAUDRILLARD, 1991) de uma suposta democratização de um conhecimento ainda muito condicionado a modos de aquisição intelectual que estão para além do ciberespaço. Sobretudo, é preciso considerar que a plataforma desempenha um papel fundamental para que a pessoalidade do connaisseur seja reconhecida diante de seu grupo ou comunidade de atuação, já que todo seu conhecimento depende, em grande parte, de seu desempenho, em nível de competência, capacidade e habilidade (INGOLD, 2010) de articulação na plataforma digital, de reproduzir e traduzir conteúdos, de apropriação de informações e trabalhar, com notoriedade, sua opinião no imaginário social local, internamente dentro de um determinado espaço de sociabilidade, operacionalizando metáforas e analogias que propunham uma conexão imaginativa dos cheiros com outras experiências olfativas relativas ao cotidiano de todos, na tentativa de interpretar as notas e os acordes de um perfume a partir de um diálogo no espaço virtual. O desdobramento dos sentidos, das percepções e sensorialidades fica condicionado ao uso própria da plataforma, que demonstra na atuação do connaisseur um conhecimento de mundo não somente restrito aos perfumes, mas a outras vivências possíveis, a condições quase máximas de detenção dos capitais social, econômico, cultural e simbólico (BOURDIEU, 2011), que se transfiguram a partir de seus modos de expressão e exibição dentro do próprio grupo. Contudo, um connaisseur pode dizer que ―abre‖ as notas de um determinado perfume e pode explicar sua percepção sobre cada uma delas a partir de metáforas possíveis e restritas ao uso de uma determinada linguagem, mas, ele ainda não é um criador de perfumes, não se apercebe ou consegue apropriar-se de processos metodológicos e organizados para criar um perfume, e, neste viés, não passa de um bricoleur, da figura proposta por LeviStrauss, bastante articulada, que organiza e classifica com certa habilidade seus interesses no mundo. 29 CONSIDERAÇÕES FINAIS A habilidade de um perfumista, portanto, não está apenas em inovar e inventar, mas em considerar as mudanças que estão sempre ocorrendo nos componentes e encontrar as proporções corretas necessárias para recriar um aroma que é de algum modo eterno. É sempre a busca de criar de novo e preservar na nuance e complexidade a essência de algo fugaz. Acima de tudo, como Coco Chanel sabia, perfume é um ato de memória. [...] Hoje, o aroma de Chanel Nº5 – em particular na concentração parfum luxuosa, considerada a melhor versão – permanece fiel à fragrância original de 1920. É o aroma que os perfumistas da Chanel se esforçam para preservar, e isso tem significado, diante das mudanças, descobrir como adaptar sem fazer concessões. Agora, com quase 90 anos de idade, o Chanel Nº 5 está prestes a continuar sendo o perfume mais famoso do mundo por mais um século. O segredo do Chanel Nº5, 2011, p. 239. Pensando no que significa conhecer a perfumaria, outro dia, antes de dormir, apaguei a luz do abajur e fechei os olhos. Já no escuro, abri rapidamente meus olhos, e em fração de segundos, deparei-me com uma escuridão total e uma sensação de nada conseguir ver, e que, aos poucos, foi se desfazendo na medida em que as sinuosidades, as sombras em tons de preto foram aparecendo de cada coisa que compunha meu quarto. Continuei deitada e me ocorreu que a habilidade que podemos adquirir na perfumaria passa por esta ―penumbra‖, este momento sombrio em que pouco se distingue cheiros, e aos poucos, novas definições vão tomando contornos extravagantes, e um refinamento dos sentidos pode ser percebido a partir de uma educação da atenção (INGOLD, 2010), tão própria do universo dos perfumes. E é por meio destas articulações que perfumes como o famoso Chanel Nº5 se mantém, especialmente que se trata de interações das práticas e experiências, físicas e espirituais, em que os indivíduos realizam suas molduras de conhecimento, dadas ainda as influências nestas construções, em nível de alteridade ou ação midiática, que engendram uma cultura de luxo, operada a partir de critérios de poder, tempo, memória, linguagem e outras demarcações que formalizam as distinções mais expressivas dos diversos públicos sociais que vivenciam o luxo. Séculos sob o signo do perfume desdobram-se desde a Idade Barroca, em que o perfume era cultuado em aromas fortes, passando pelo século XVIII, em que as cortes prestigiaram as mais célebres glórias da perfumaria mundial, e chegando a uma Idade Moderna (GIRARD-LAGORCE, 2006), da qual faz parte a imensa contribuição do 30 próprio Chanel Nº 5, bem como de marcas da alta perfumaria atual, como Caron, Guerlain, Coty, Molinard, dentre outros nomes da perfumaria francesa que fizeram história, juntando-se aos grandes costureiros, em um fenômeno magistral desde o século XX (BOURDIEU, 2008). A partir da década de 30, começa a irresistível combinação do perfume à alta costura, e se abre o caminho para um novo ciclo da perfumaria na França: Givenchy, Dior, Marcel Rochas, dentre outros, lançam suas fragrâncias em badaladas e chiques embalagens, concebidas semioticamente como verdadeiras armas de sedução que mexem com os sentidos das mulheres no mundo todo. A tendência continuou para as gerações seguintes, e criadores como Pierre Cardim, Yves Saint Laurent, Cacharel e Paloma Picasso imprimiram suas marcas pessoais em perfumes cuidadosamente trabalhados. Sobretudo, Sombart (2009), ao associar o desenvolvimento do materialismo às novas percepções sociais e econômicas da humanidade, reconhecendo uma cultura material de consumo nas relações entre sujeitos e objetos, já vislumbrava na modernidade diversas vivências que emolduram o espírito dos indivíduos e tornavam certas práticas do cotidiano, verdadeiros rituais de arte e satisfação, que podem ser visualizados mais nitidamente na contemporaneidade, por meio da intensificação das ações midiáticas, em publicidades e marcas, em suas estratégias e discursos. Contudo, em se tratando de uma doxa (BOURDIEU, 2011) da perfumaria contemporânea, para além do luxo, é preciso considerar dois critérios basilares: a percepção e o consumo. A primeira, refere-se à construção de uma sensorialidade ligada a uma questão corporal, a uma hexis (BOURDIEU, 2011), que produz sentidos e significações, que, ao mesmo tempo, podem ser entendidas por meio de recortes individuais, e estão ligadas à dinâmica das transformações constantes na sociedade, e entre reciprocidade e alteridade, cada indivíduo produz uma educação da atenção (INGOLD, 2010) muito particular. Assim, um saber construtivista sobre a perfumaria pode ser entendido nas conexões entre estética, historicidade, pluralidade, culturalidade, corporalidade e tantos outros aspectos que legitimam um processo de educação sentimental, que, por sua vez, perfaz a formação do ethos, seja dentro da perspectiva de Ingold (2010) sobre o enskilment, seja pela lógica do habitus postulado por Bourdieu (2011), mas que envolve, principalmente, uma profundidade de compreensão no tocante à sensibilidade dos próprios processos de percepção. O segundo ponto está organizado em torno do próprio consumo, entendido como cultura material (MILLER, 2007), que envolve, evidentemente, os capitais cultural, 31 econômico e social tão caros à Bourdieu (2011), mas que também dizem respeito a significados particulares encontrados nos objetos, nos processos de objetificação dos indivíduos, bem como na inalienabilidade das coisas, para além do próprio valor material de cada bem adquirido. Assim, assumimos uma autoridade estética (MILLER, 2009) diante das coisas que escolhemos, e em cada frasco de perfume, podem estar escondidos motivos inimagináveis, que são permeados por uma série de significados e representações, que, por sua vez, arranjam uma razão natural à prática da cosmética e perfumaria no cotidiano social dos indivíduos e garantem, assim, importância no trabalho dos perfumistas, que caminha com o trabalho dos próprios conhecedores. Desta forma, uma conexão entre percepção e consumo, perfumeurs e connaisserus, e é inegável a influencia das práticas virtuais e dos usos da plataforma online para a modelização das percepções destes últimos, que envolve a totalidade da perfumaria de luxo pode ser encontrado nas formas de aprendizagem, na produção de habilidades específicas, que não opõem produtores e consumidores, mas cria entre eles um laço natural e consecutivo e convergem para dar sentido ao próprio perfume. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2008. BELK. R. The double nature of collecting. Etnofoor, n. 11, v.1, 1998. BERGÉ, Pierre et ASSOULY, Olivier (orgs). Le luxe: essays sur la fabrique de l’ostentation. Paris: Institut Français de la Mode, 2005. BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011. _________, P. 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